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ἀληθής ISSN 2177-4633 PERIÓDICO CIENTÍFICO DOS GRADUANDOS EM DIREITO DA UFJF Nº 3 – NOVEMBRO DE 2010 /MAIO DE 2011

ἀληθής - UFJF€¦ · Autor: Francisco de Goya y Lucientes Data: 1810-1814 Museu: Museo del Grabado de Goya ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito da UFJF

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ἀληθης

ISSN 2177-4633

Periódico científico dos Graduandos em direito da UfjfNº 3 – novembro de 2010 /maio de 2011

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AlethesPeriódico científico dos Graduandos

em direito da Ufjf

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Periódico Científico dos Graduandos em Direito Ufjf nº 3 - Ano 2

Alethes

Diagramação: Francislene Pereira de PaulaCapa: Com razão ou sem elaAutor: Francisco de Goya y Lucientes Data: 1810-1814 Museu: Museo del Grabado de Goya

ALETHES: Periódico Científico dos Graduandos em Direito da UFJF. n. 3. Vol. 2. (Novembro de 2010/Maio de 2011) – Juiz de Fora: DABC, 2011. Semestral. 1. Direito – Periódicos. ISSN 2177-4633

Normas para publicação e Revista online:www.alethes.com.br

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Periódico Científico dos Graduandos em DireitoAlethes

CONSELHO EDITORIAL

Dr. Alexandre Travessoni Gomes - UFMG Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos - UFMGDr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães - PUC-SPDra. Cláudia Toledo - UFJFDr. Denis Franco Silva - UFJFDr. Marcos Vinício Chein Feres - UFJFDr. Noel Struchiner - PUC-RIOMestre Renato Chaves Ferreira - UFJFDr. Thomas da Rosa de Bustamante - UFMG

EDITORES

Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes

Victor Freitas Lopes Nunes

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Sumário

Editorial ...............................................................................................................09

Artigos

O princípio da igualdade e as cotas raciais no BrasilAndré Vinícius Carvalho Meira ...............................................................................11

Por uma Justiça Democrática - Proposição de uma via para a efetivação jurisdicional dos valores constitucionaisBárbara Machado ....................................................................................................29

Inovações científico-tecnológicas e o vício em ideias: a inconstitucionalidade da inserção do THC na Portaria n. 344 da ANVISABrahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes ..............................................................47

Dos obstáculos à tutela judicial dos direitos sociais Victor Chaves Ribeiro França Guimarães .................................................................59

Interpretação Fenomenológica da Natureza Jurídica da Lei Orçamentária AnualVictor Freitas Lopes Nunes .....................................................................................77

A prudência e o abismo jurídico hermenêutico-gnosiológicoWaldir Araújo Carvalho ..........................................................................................89

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alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - Ufjf - nº 3 - Ano 2�

Editorial

Alethes, em sua terceira edição, vem reiterar sua busca na internalização e concretiza-ção dos valores que compõe o Direito em todas as suas esferas. Como na pintura que

ilustra a capa desta edição, em que os combatentes civis espanhóis enfrentam as baionetas dos soldados franceses, Alethes se põe novamente frente a todos os desafios.

Reitera-se o desejo de fazer deste periódico um veículo de publicação não só de artigos científicos de graduandos, mas, fundamentalmente, um importante meio de luta contra esquecimento do verdadeiro valor do estudo do Direito. O verdadeiro jurista presta gran-de atenção ao que é de direito, ao que é justo e se preocupa incansavelmente em alcançar sempre a melhor solução possível para todos os problemas sob análise.

Zelar pelo Direito é zelar não só pela manutenção da ordem legal ou social, é zelar pelas instituições e pelas pessoas, pelo justo e pela Justiça.

Corajosamente, todos que contribuem para mais essa publicação ajudam a reconstruir o Direito. Goya intitula sua obra como “Com razão ou sem ela”, no entanto, os editores deste periódico, na verdade, acreditam que tais atos de coragem, seja a dos combatentes civis, seja dos colaboradores de Alethes, são expressões da razão. São atos em defesa de valores importantes, os quais somente a razão pode dar motivos para proteger, caso con-trário, por que se levantar contra a tirania como os civis da gravura, ou contra o descaso com o Direito?

Que dessas batalhas não se esqueçam...

Victor Freitas Lopes NunesEditor da Alethes

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Artigos

O princípio da igualdade e as cotas raciais no Brasil

André Vinícius Carvalho Meira1

1 Graduando em Direito pela UFJF

Resumo:

Este artigo tem o objetivo de analisar o sistema de cotas raciais no Brasil sob a ótica do princípio da igualdade, buscando deixar claro que é difícil demonstrar a existência de uma conexão lógica plausível entre o tratamento desigual criado por tal política e o critério da raça. Para tanto, serão estudados os principais argumentos que tentam justificar tal sistema de ação afirmativa.

Palavras-chave: princípio da igualdade; cotas raciais; critério da raça; conexão lógica

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Abstract:

This article aims to analyze the racial quota system in Brazil from the perspective of the principle of equality, seeking to make clear that it is hard to demonstrate the existence of a plausible and logical connection between the unequal treatment created by such policy and the criterion of race. To this purpose, the main arguments that try to justify such affirmative action system will be studied.

Keywords: principle of equality; racial quotes; criterion of race; logical connection

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alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - Ufjf - nº 3 - Ano 213

1. Introdução

As cotas raciais estão, atualmente, no centro das discussões políticas e jurídicas no Brasil. Muito embora não haja ainda lei federal regulando o tema, dois projetos de lei que versam sobre a questão já tramitam no congresso nacional: o estatuto da igualdade racial2 e a lei de cotas3. No entanto, a falta de lei regulamentando a matéria não impediu até ago-ra que universidades públicas de todo Brasil passassem a adotar sistemas de preferência racial nos seus processos seletivos. Com isso, alguns segmentos da sociedade se mobiliza-ram contra as cotas raciais, de modo que, hoje, várias ações4 que contestam tais políticas já chegaram ao Supremo Tribunal Federal, que está prestes a iniciar o julgamento sobre a sua constitucionalidade.

O país vive, portanto, um momento muito importante, pois está decidindo sobre uma questão que pode ter inúmeras repercussões sociais. Mais especificamente, o proble-ma das cotas raciais traz também muitos problemas para o mundo jurídico, já que coloca à prova os limites do princípio da igualdade, o que será mais bem explicado no decorrer deste estudo.

Todas essas circunstancias influenciaram sobremaneira na escolha das cotas raciais como o tema a ser discutido neste artigo, o qual tentará dar sua contribuição para o escla-recimento dessa questão tão controversa tanto no meio jurídico quanto na sociedade.

Para uma melhor compreensão do estudo ora realizado, deve-se deixar claro o es-pecífico objeto que se pretende aqui investigar, visto ser vasta a quantidade de diferentes abordagens a que esse tema pode dar ensejo.

Nesse sentido, é importante enfatizar que o objetivo deste estudo é evidenciar que, no Brasil, as cotas raciais colocam à prova os limites do princípio da igualdade, sendo difícil, através de seus argumentos de justificação mais comumente usados, demonstrar uma conexão lógica plausível entre o tratamento desigual por elas instituído e o elemento “raça”, usado como o critério de discriminação.

Não se pretende lidar aqui com qualquer específico sistema de preferência ra-cial para ingresso em universidades públicas. Pelo contrário, a idéia central do artigo é analisar o fenômeno das cotas raciais no Brasil como um todo, sem se ater às espe-cificidades do sistema adotado por cada universidade. Isso não obstará, contudo, que alguns casos de aplicação concreta de cotas raciais sejam mencionados ao longo do texto a título de exemplo.

Deve-se ressaltar ainda que, embora seja possível questionar a constitucionalidade

2 Projeto de Lei N.º 6.264/05, proposto pelo Senador Paulo Paim (PT-RS).3 Projeto de Lei da Câmara N.º 180/08, proposto pela Deputada Federal Nice Lobão (DEM-MA)4 Talvez a ação mais conhecida seja a ADPF 186, movida pelo partido político Democratas em 2009 e que contesta a constitucionalidade do sistema de cotas adotado pela Universidade de Brasília (UnB)

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das cotas raciais com base em diversos princípios expressos em nossa Constituição5, o objeto da análise do presente artigo se restringe ao cotejo das cotas raciais face ao prin-cípio da igualdade, cuja cláusula geral está presente no caput do artigo 5º6 de nossa Carta Magna.

Os resultados desta investigação serão mostrados nos tópicos seguintes, estruturan-do-se da seguinte forma: primeiramente, será feita uma análise sobre o princípio da igual-dade, onde se procurará explicar suas origens, desenvolvimentos históricos e principal-mente seus limites; em seguida, se abordará especificamente o fenômeno da cotas raciais no Brasil, buscando-se explicitar seus objetivos e os problemas que trazem ao princípio isonômico; posteriormente, se analisará, com as devidas críticas, os principais argumentos que pretendem justificar as cotas raciais com base na isonomia; e, finalmente, serão feitas, no último tópico, as considerações finais e conclusivas sobre o estudo.

2. O princípio da igualdade

A Constituição Federal brasileira de 1988 prevê a chamada cláusula geral do princí-pio da igualdade no caput de seu artigo 5º, onde se lê que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”. É muito significativo que tal disposição apareça encabe-çando a lista dos direitos fundamentais e não mais, como ocorria em antigas constituições, como apenas mais um direito individual. Isso nos revela que o constituinte de 1988 pre-tendeu colocar a isonomia como um verdadeiro princípio informador e condicionador de todos os direitos7. Como diz Celso Ribeiro de Bastos, “a igualdade é, portanto, o mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ela não seja impositiva” (1998, p.183).

Não obstante a grande importância da isonomia nos ordenamentos jurídicos de praticamente todos os países democráticos da atualidade, deve-se ressaltar que o verda-deiro conteúdo desse princípio sofreu historicamente grandes transformações, gerando até hoje dificuldades de interpretação.

Pode-se situar historicamente a origem do direito à igualdade na Revolução Fran-cesa8. Através dela, a burguesia conseguiu finalmente derrubar os privilégios feudais do clero e da nobreza, dando origem a uma sociedade que não mais admitia a discrimina-ção com base no nascimento9. O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirmava que os homens nasciam livres e iguais em direito. Assim, o princípio da igualdade surgia com um caráter essencialmente negativo, objetivando impedir privilégios

5 Como exemplo, pode-se citar o princípio meritocrático, previsto no artigo 208, inciso V e o direito universal à educa-ção, expresso no artigo 205.6 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”.7 Cf. BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, 1998, p. 183.8 Cf. BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, 1998, p. 180.9 Cf. BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, 1998, p. 181.

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e perseguições. Tratava-se, portanto, de uma igualdade nitidamente formal10 que partia do pressuposto de que todos os indivíduos tinham as mesmas possibilidades de evoluir den-tro da sociedade, desde que o Estado não privilegiasse nem perseguisse qualquer grupo. Celso Ribeiro de Bastos definiu muito bem essa situação, afirmando que se tratava de uma igualdade “de ponto de partida” (1998, p.183).

Contudo, com o passar do tempo e o aumento das demandas sociais por melhores condições de vida e trabalho, o conceito de igualdade foi aperfeiçoado, passando a enfa-tizar uma igualdade fática entre os indivíduos, não meramente jurídico-formal. Com isso, desenvolveu-se, por exemplo, o Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor, que objetivam, através da proteção à parte mais fraca da relação jurídica, estabelecer uma real situação de igualdade, inexistente na sociedade. Trata-se aqui da igualdade material que, deve-se ressaltar, foi bastante promovida em nossa atual constituição11, que “reforça o prin-cípio com muitas outras normas sobre a igualdade, buscando a igualização dos desiguais pela outorga de direitos substanciais” (SILVA, 2001, p. 214).

Outra questão importante que se deve abordar para a devida compreensão do tema diz respeito à terminologia adotada por nossa constituição, assim como por diversas ou-tras, para enunciar a cláusula geral do princípio da igualdade, qual seja, a formulação “iguais perante a lei”. Essa expressão foi entendida historicamente como um dever de igualdade na aplicação do direito12. Assim, tal dever diria apenas que as leis devem ser aplicadas tal como são a todos aqueles a que se destinam, sem perseguições ou privilégios13. Essa compreensão está, contudo, ultrapassada, tendo sido alvo de críticas por ilustres pensa-dores do Direito. Robert Alexy, por exemplo, diz que “o dever de igualdade na aplicação da lei exige apenas aquilo que já é de qualquer forma aplicável se as normas jurídicas são válidas” (ALEXY, p.394). Hans Kelsen, por sua vez, afirma que o problema da igualdade perante a lei se reduz ao princípio da regularidade da aplicação da lei em geral e ao princí-pio da legalidade da aplicação das leis14.

Desse modo, em decorrência da pobreza dessa interpretação literal da expressão “iguais perante a lei”, a doutrina brasileira já consagrou o entendimento de que ela não se dirige somente ao aplicador do direito, mas também e principalmente ao legislador15.

10 Cf. SILVA, José Afonso de, Curso de Direito Constitucional Positivo, 2001, p. 217.11 Cf. LENZA, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 2010, p. 751-752. O autor enumera diversas hipóteses em que a própria constituição se encarrega de aprofundar a regra da isonomia material: “a) art. 3º, I, III e IV; b) art. 4º, VIII; c) art. 5º, I, XXXVII, XLI e XLII; d) art. 7º, XX, XXX, XXXI, XXXII e XXXIV; e) art. 12, § § 2º e 3º; f) art. 14, caput; g) art. 19, III; h) art. 23, II e X; i) art. 24, XIV; j) art. 37, I e VIII; k) art. 43, caput; l) art. 146, III, d; m) art. 150, II; n) art. 183, § 1º, e art. 189, parágrafo único; o) art. 2003, IV e V; p) art. 206, I; q) art. 208, III; r) art. 226, § 5º; s) art. 231, § 2º etc.” 12 Cf. ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 393.13 Cf. ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 394.14 Cf. KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, p. 158.15 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 9-10.

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Existe, portanto, um dever de igualdade na criação do direito, que exige que se tratem igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, conforme notória e tantas vezes repe-tida máxima aristotélica.

Embora excessivamente vaga, a referida afirmação de Aristóteles nos revela algo muito importante, isto é, que “o enunciado geral de igualdade, dirigido ao legislador, não pode exigir que todos sejam tratados exatamente da mesma forma” (ALEXY, p. 397). Pelo contrário, quando houver situações substancialmente distintas, elas merecerão tutelas diferenciadas do legislador, sob pena de se ofender o próprio princípio da igualdade.

Contudo, a grande questão que se coloca (e, talvez, este seja o ponto mais sensí-vel desta análise) é saber quais são os critérios juridicamente legítimos que permitem a discriminação de pessoas e situações, ou, ainda, quais seriam as discriminações juridica-mente intoleráveis16.

Robert Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, nos oferece um caminho para a solução desse problema. Ele cita a jurisprudência do Tribunal Constitucional Fede-ral da Alemanha sobre essa questão, que diz assim:

Uma diferenciação arbitrária ocorre se não é possível encontrar um fundamento razoável, que decorra da natureza das coisas, ou uma ra-zão objetivamente evidente para a diferenciação ou para o tratamento igual feitos pela lei (ALEXY, p. 407).

O ilustre jurista alemão resume essa jurisprudência, dizendo que é necessária uma razão suficiente para que uma diferenciação seja justificada17 e estabelece, a partir dela, a seguinte definição do dever de tratamento igual: “se não houver uma razão suficiente para a permissibilidade de um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obrigatório” (ALEXY, p. 408).

Percebe-se, pelos ensinamentos de Robert Alexy, que a cláusula geral de igualdade estabelece um ônus argumentativo para a defesa de um tratamento desigual18, colocando a igualdade de tratamento como regra que só poderá ser excepcionada quando houver uma razão suficiente para tanto.

O jurista alemão define “razão suficiente” através do conceito de arbítrio, dizen-do que aquela só existirá quando não for arbitrária. Não seria necessário, portanto, a melhor razão para se justificar uma discriminação, sendo considerada suficiente uma razão plausível19.

Entre nós, Celso Antônio Bandeira de Melo, em seu famoso artigo intitulado O

16 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 11.17 Cf. ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 408.18 Cf. ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 409.19 Cf. ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 413.

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Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, também nos oferece valiosa contribuição para o deslinde desse problema. O autor deixa claro que discriminar situações, colocando pes-soas sob a égide de diferentes regimes é da própria essência do ato de legislar, não cons-tituindo, portanto, só por só, gravame ao princípio da igualdade20. Segundo ele, o ponto central estaria em se saber quando seria vedado à lei estabelecer tais discriminações, isto é, quais seriam os limites à função legal de discriminar21.

Para começar a responder a essas questões, Bandeira de Melo diz que, via de regra, não é no critério escolhido como fator de discriminação que se deve buscar algum desa-cato ao princípio da igualdade22. Segundo ele, “qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações pode ser escolhido pela lei como fator de discriminação” (BANDEIRA DE MELO, p. 17). Logo, fatores como sexo, altura e credo religioso poderiam, em abstrato, servir como critérios de diferenciação, sem que nenhuma mácula se inflija ao princípio isonômico.

Desse modo, segundo o autor, o que realmente importa para aferir a correção de uma um regra discriminatória em face do princípio da igualdade é a existência ou não de uma conexão lógica entre a distinção de regimes jurídicos estabelecidos e a desigualdade das situações fáticas correspondentes23. Em outras palavras, é preciso que os critérios com base nos quais uma discriminação legal foi efetuada guarde uma relação de pertinência com tal diferenciação de tratamento, de modo que sejam idôneos a justificá-la.

Finalmente, após esse necessário estudo do princípio da igualdade, é possível agora analisar com propriedade o tema das cotas raciais no Brasil. Nos próximos tópicos, tais políticas de preferências raciais serão explicadas e contrastadas com as exigências do prin-cípio isonômico aqui já expostas.

3. As cotas raciais no Brasil

As cotas raciais, como são conhecidas, são instrumentos de ação afirmativa uti-lizados em muitas universidades públicas brasileiras, cujo objetivo é favorecer grupos considerados historicamente excluídos e discriminados em função da suposta raça a que pertenceriam. Notadamente, o principal alvo dessas políticas públicas, no Brasil, são aque-les indivíduos considerados da raça negra.

A primeira vez que tal sistema foi adotado no país foi no ano de 2003, quando a Universidade Estadual do Rio de Janeiro foi obrigada a estabelecer cotas raciais no seu processo de seleção em decorrência de uma lei estadual aprovada dois anos antes. Desde então, várias universidades públicas têm adotado tal sistema de, pelo menos, duas formas

20 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 12.21 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 13.22 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 17.23 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 37-40.

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distintas. A mais comum é aquela em que a cota racial é fixada dentro da chamada cota so-cial, que reserva uma determinada porcentagem das vagas para alunos de escolas públicas. A outra modalidade é a cota racial pura, em que ela é instituída diretamente em função do total de vagas, beneficiando igualmente indivíduos tidos como negros oriundos de escolas públicas ou de instituições privadas de ensino. O exemplo mais conhecido desse último caso é o da Universidade de Brasília (UnB).

De modo geral, a principal inspiração para a criação de tais políticas públicas é, em tese, a promoção de uma igualdade fática ou material. Busca-se, assim, trazer os negros, que estariam em uma situação de inferioridade no processo de seleção para ingresso em universidades públicas, para um patamar de igualdade real em relação àqueles considera-dos brancos.

Como se percebe, as cotas raciais são instituídas por normas que conferem aos par-ticipantes de um processo de seleção para ingresso em universidades públicas tratamento desigual, enquadrando-os em regimes diferentes e utilizando como critério a suposta raça a que pertenceriam.

Submetendo tais normas ao filtro constitucional do princípio da igualdade, deve-se analisar primeiramente o critério que elas adotam para efetuar a discriminação, isto é, o critério da raça.

Celso Antônio Bandeira de Mello, em artigo já citado, coloca a raça, assim como o sexo ou a altura, como um fator diferencial existente nas pessoas e, portanto, abstrata-mente idôneo a servir de critério para diferenciações de tratamento jurídico24. Segundo o ilustre jurista brasileiro, o que se veda é que elementos que não existam nas próprias pessoas, coisas ou situações sirvam de critério para submetê-las a diferentes regimes25.

Contudo, deve-se fazer uma ressalva a este posicionamento. Isso porque é atu-almente de duvidosa correção a afirmação de que a raça é um elemento existente nas pessoas. Na verdade, do ponto de vista biológico raças humanas não existem, tendo essa constatação já se tornado um fato científico irrefutável com os avanços do Projeto Geno-ma Humano26. Desse modo, só é possível falar hoje em raças em um sentido político-so-ciológico, considerando-as como meras construções sociais, geralmente associadas à cor da pele. O próprio STF já se pronunciou nesse sentido27.

Assim, pode-se até colocar a raça como um critério abstratamente idôneo para realizar distinções entre as pessoas, mas desde que se deixe claro que se trata de uma diferenciação baseada na idéia social de raça e não na já amplamente rechaçada con-cepção biológica.

24 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 15-16.25 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 23.26 Cf. PENA, Sérgio, Ciência, bruxas e raças, p. 45.27 Cf. HC 82424 RS

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Feitas as considerações devidas sobre a eleição do critério da raça pelas normas instituidoras de cotas raciais, deve-se passar à análise do ponto mais crítico dessa ques-tão, qual seja, a existência ou não de uma conexão lógica entre a discriminação efetuada por essas normas, que beneficiam negros em detrimento de brancos, e a raça a que tais indivíduos pertenceriam. Ou ainda: existe razão plausível suficiente para justificar esse tratamento desigual?

Relembrando um ensinamento de Robert Alexy, aqui já referido, “o enunciado geral de igualdade estabelece um ônus argumentativo para o tratamento desigual” (ALEXY, p.409). Assim, se não houver razão plausível que justifique a discriminação efetuada pelas cotas raciais, elas não serão admissíveis pelo princípio da igualdade.

As razões normalmente trazidas para explicar a necessidade do tratamento desigual de indivíduos considerados negros e aqueles tidos como brancos nos processos seletivos para ingresso em universidades públicas podem ser, de modo geral, sintetizadas em duas: a) o argumento da reparação histórica, segundo o qual a sociedade teria uma imensa dívida a pagar aos negros em decorrência dos séculos de escravização a que eles teriam sido subme-tidos; b) e argumento da inclusão social, segundo o qual os negros estariam atualmente em uma situação de exclusão social em decorrência da grande discriminação racial que sofre-riam, tendo, por isso, menores chances de ingressar em uma universidade pública.

Resta agora saber se tais razões são plausíveis e suficientes para se permitir o tra-tamento desigual entre pessoas consideradas brancas e aquelas tidas como negras. Em outras palavras, tais razões demonstram realmente alguma conexão lógica entre a “raça” dos candidatos a uma universidade pública e a discriminação que se pretende fazer deles com base nesse critério?

Para se responder a esses questionamentos, cada uma dessas razões será analisada detalhadamente nos próximos tópicos.

4. O argumento da reparação histórica

A primeira vez que tal argumento foi usado para justificar políticas de ação afirma-tiva foi na Índia, o primeiro país do mundo a adotar tais políticas. Naquele contexto, um de seus principais objetivos era justamente o de compensar um determinado grupo social (os dalits ou “intocáveis”) por injustiças cometidas no passado28.

Posteriormente, o mesmo argumento veio a ser novamente utilizado nos Estados Unidos, primeiro pelo Civil Rights Movement, chegando depois a ser incorporado até como fundamento de decisões da Suprema Corte americana29. O presidente americano Lyndon

28 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; FERES JÚNIOR, João, Ação Afirmativa: Normatividade e Constitucionalidade, p. 346.29 Regents of the University of California v. Bakke (1978).

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B. Johnson30, precursor das medidas de ação afirmativa nos Estados Unidos, em um dis-curso aos formandos da turma de 1965 da Howard University, se valeu exatamente do ar-gumento da reparação histórica para justificar as políticas de favorecimento dos negros:

A liberdade, per se, não é suficiente. Não se apaga de repente cicatrizes de séculos proferindo simplesmente: agora vocês estão livres para ir onde quiserem e escolher os líderes que lhe aprouverem. [...] Não se pode pegar um homem que ficou acorrentado por anos, libertá-lo das cadeias, conduzi-lo, logo em seguida, à linha de largada de uma corrida, dizer “você é livre para competir com os outros”, e assim pensar que se age com justiça.

Finalmente, no Brasil, onde tais políticas são bem mais recentes, vê-se o argu-mento da reparação histórica ser utilizado generalizadamente pelos mais diversos setores da sociedade, desde movimentos negros e até mesmo pelo poder judiciário. Veja-se, por exemplo, este trecho de um voto proferido em decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e que justificava as cotas raciais exatamente com esse argumento:

Não resta dúvida de que a relação que se preconiza com a reserva serve como medida, ainda que provisória, para resolver um problema moral da sociedade brasileira. Trata-se de resgatar uma imensa dívida da sociedade em face da população negra brasileira. Negros seqües-trados na África, famílias inteiras separadas, o sofrimento e a dor dos navios negreiros, privações física, humilhações, dor moral (TJ/RJ, AI 2005.017.00015, ReI. Des. Silvio Teixeira, J. 17.04.2006).

Enfim, percebe-se que, através do argumento da reparação histórica, tenta-se atual-mente, no Brasil, justificar o tratamento desigual entre candidatos a universidades públi-cas brancos e negros, com base no critério da raça. Para tanto, defende-se que, como no passado a “raça branca” teria escravizado a “raça negra”, hoje essa mesma “raça negra” mereceria uma reparação história, que poderia ser perfeitamente realizada em detrimento da “raça branca”, já que esta teria sido a agressora no passado e, portanto, poderia sofrer as conseqüência dessa compensação no presente.

Há uma quantidade imensa de equívocos e inexatidões históricas e lógicas nesse raciocínio. Em primeiro lugar, ele parte do pressuposto histórico falso de que a escravidão foi um fato racial, em que uma raça (a branca) teria escravizado outra raça (a negra). Na verdade, a escravidão foi um fato econômico que não seria possível sem que reais interes-

30 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; FERES JÚNIOR, João, Ação Afirmativa: Normatividade e Constitucionalidade, p. 348.

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ses comerciais relacionados ao tráfico transatlântico existissem em ambas as margens do oceano31. De fato, é dado histórico inegável que os negros eram escravizados primeira-mente por tribos rivais do mesmo continente e só depois vendidos aos europeus.

Além disso, no Brasil, os negros não eram somente escravos, mas também tiveram participação expressiva como proprietários de escravos32. O historiador José Roberto Pin-to Góes nos informa que, por volta de 1830, em Sabará, Minas Gerais, quase metade da população livre de cor tinha escravos. Já, na região de Campos, ainda de acordo com Pinto Góes, um terço da classe senhorial era de descendentes de escravos33.

Outro ponto que se deve ressaltar aqui são as informações que o estudo da genética nos traz. Por meio de tal ciência já foi possível concluir que, no Brasil, em decorrência do elevado grau de miscigenação, não é possível aferir a ancestralidade de um indivíduo atra-vés da mera análise de características fenotípicas como a cor da pele. Sobre essa questão, afirma o médico geneticista Sérgio Pena que:

No Brasil, a cor, avaliada fenotipicamente, tem uma correlação muito fraca com o grau de ancestralidade africana. No nível individual qual-quer tentativa de previsão torna-se impossível, ou seja, pela inspeção da aparência física de um brasileiro não podemos chegar a nenhuma conclusão confiável sobre seu grau de ancestralidade africana. (PENA, Sérgio, Razões para banir o conceito de raça da medicina brasileira, p. 336)

Desse modo, é totalmente descabido considerar que um candidato a uma universi-dade pública de cor preta possa ser privilegiado em detrimento de seu concorrente de pele mais clara, com base na presunção de que o primeiro seria necessariamente descendente de escravos e, por isso, merecedor de reparação, enquanto o segundo seria necessaria-mente descendente de donos de escravos, podendo, assim, sofrer as conseqüências dessa compensação histórica.

Na verdade, nada impede que aquele estudante de pele mais escura seja, por exem-plo, descendente de um ex-escravo que se tornou depois proprietário de escravos, ou ainda que sua ancestralidade seja mais européia do que africana. Do mesmo modo, é perfeitamente possível que o estudante de pele mais clara possua, entre seus ascendentes, africanos escravizados, sendo, portanto, pelo raciocínio da reparação histórica, legítimo detentor do direito de compensação.

Assim, retomando lição de Alexy aqui já várias vezes citada, é preciso se perguntar: o argumento da reparação histórica é plausível? É suficiente para justificar um tratamento desigual entre candidatos brancos e negros a uma vaga em uma universidade pública bra-

31 Cf. GÓES, José Roberto Pinto, Histórias mal contadas, p. 59.32 Cf. LUNA, F. V. e KLEIN, H, Evolução da Sociedade e Economia Escravagista de São Paulo, de 1750 a 1850, p. 201-202.33 Cf. GÓES, José Roberto Pinto, Histórias mal contadas, p. 60.

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sileira? A resposta só pode ser negativa, seja pela falta de consistência histórica de tal argumen-to, seja por contrariar postulados básicos da Genética, como acaba de ser demonstrado.

5. O argumento da inclusão social

Enquanto o argumento da reparação histórica volta-se para o passado, o da inclusão social procura analisar tão-somente a situação do indivíduo considerado negro na socieda-de brasileira do presente. Segundo tal argumento, os negros se encontrariam hoje em uma situação de inferioridade na disputa por vagas em universidades públicas, porque seriam socialmente excluídos em função do racismo que sofreriam. Desse modo, as cotas raciais seriam legítimas, porque, ao funcionar como um instrumento de inclusão social dos ne-gros, elas os trariam para uma situação de igualdade fática maior em relação aos brancos no processo de seleção para ingresso em cursos superiores.

Para se avaliar a plausibilidade desse argumento, deve-se primeiro investigar quais são os fatores objetivos que influenciam na competição por vagas em uma universidade pública. De modo geral, pode-se afirmar que os candidatos aprovados em um vestibular serão aqueles mais bem preparados para o exame, isto é, os que estudaram mais, freqüen-taram melhores escolas e contaram com uma estrutura melhor para aprender aquilo que lhes é cobrado nas provas de conhecimento colocadas como instrumento de seleção pelas universidades.

Ocorre que nem todos os candidatos tiveram acesso às mesmas oportunidades de estudo e de se preparar adequadamente para o vestibular. Notadamente, os filhos de famílias ricas e de classe média possuem condições muito maiores de realizar de forma apropriada tal preparação do que aqueles oriundos de famílias pobres. Enquanto os pri-meiros têm a oportunidade de freqüentar colégios particulares de nível elevado e contam ainda, via de regra, com um ambiente familiar mais estável, os segundos vêem-se sem outra escolha que não a de serem abarcados por um sistema público de educação de pés-sima qualidade, tendo de suportar ainda as instabilidades familiares que a falta de recursos financeiros normalmente traz.

Por esse motivo, muitas universidades públicas adotam as chamadas cotas sociais, que beneficiam alunos oriundos de escolas públicas, com o objetivo de corrigir essas distorções sociais. Tais medidas, ainda que questionáveis sob o ponto de vista de sua conveniência política, são absolutamente irrepreensíveis sob a perspectiva do princípio da igualdade, já que é evidente a correlação lógica entre o tratamento desigual promovido e o critério de discriminação adotado.

Entretanto, que influência significativa o elemento “raça” possui em disputas por vagas em universidades públicas? Para se responder a essa questão, deve-se analisar situ-ações em que todas as variáveis externas ao estudante que comumente influenciam no

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seu êxito ou fracasso no vestibular são constantes, colocando-se como o único fator de diferenciação o fator “raça”.

Assim, a título de ilustração, imaginemos dois jovens brasileiros pobres, moradores de uma mesma favela em uma grande cidade brasileira, ambos provenientes de famílias desestruturadas e alunos de uma mesma escola pública deteriorada, na qual freqüentam a mesma classe, assistindo aulas com os mesmos professores mal remunerados e tendo acesso ao mesmo material didático precário. Possuem, portanto, condições sociais iguais, diferenciando-se apenas pela cor da pele. Enquanto um possui pele branca, o outro tem pele preta. Seria plausível estabelecer-se um tratamento desigual entre os dois, com base no critério da raça, de modo a favorecer aquele indivíduo pobre de pele preta em detri-mento do outro de pele branca, somente pelo fato de possuírem tons de pele diferentes? Seria essa discriminação compatível com o princípio da igualdade?

Evidentemente que a resposta só pode ser negativa. A cor da pele desses jovens não os torna mais ou menos capazes de se preparar para um vestibular. Eles possuem exatamente as mesmas precárias oportunidades de estudo, de modo que os discriminar somente criaria, arbitrariamente, uma desigualdade onde originalmente predominava uma situação de plena igualdade fática, o que não é de forma alguma admissível pelo Direito.

Nesse ponto, é relevante mencionar o caso das cotas raciais em estado puro, como as que existem na Universidade de Brasília. Nesse caso, a incompatibilidade do tratamento desigual estabelecido com o princípio isonômico é ainda mais clara. Isso porque tal sistema admite que mesmo jovens negros oriundos de famílias prósperas e que sempre puderam freqüentar instituições privadas de ensino de excelente qualidade sejam beneficiados pelas cotas em detrimento de pobres de todas as demais cores. Privilegiam-se, assim, em nome de uma suposta justiça social, inclusive, candidatos com todas as condições materiais para se preparar adequadamente para o vestibular, prejudicando-se injustificadamente concor-rentes não-negros mais desfavorecidos socialmente.

O argumento da inclusão social do negro como fundamento para cotas raciais peca por tentar justificá-las por meio de bases excessivamente genéricas, esquecendo-se que, concretamente, grandes injustiças podem ser cometidas com brasileiros de todas as de-mais cores e que sofrem igualmente com os obstáculos ao ingresso em universidades públicas que a pobreza lhes impõe.

A realidade brasileira nos revela que, se analisarmos a situação de grupos negros e brancos que possuem a mesma situação social desfavorável, não é possível constatar qualquer diferença significativa no acesso de ambos à educação.

É exatamente isso que prova um trabalho do estatístico Elmo Iório sobre a ques-tão34. Com o objetivo de comparar a realidade de negros e brancos pobres na socieda-

34 KAMEL, Ali, Não somos Racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor, p. 82.

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de brasileira, ele fez tabulações, com base em dados brutos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE de 2004, da situação dos brasileiros dessas duas “raças”, residentes em áreas urbanas, com um filho e rendimento familiar total de até dois salários mínimos. A intenção, como se percebe, era reunir brasileiros pobres brancos e negros em grupos comparáveis para se poder ter uma real noção da influência que a cor da pele, em si, poderia ter sobre a condição de uma pessoa na sociedade brasileira.

A pesquisa revela uma semelhança muito grande entre os dois grupos:

72% dos brancos, 73% dos pretos e 69% dos pardos sabem ler e escre-ver. A média de anos de estudo, para os brancos, pretos e pardos é de 5 anos. 28% dos brancos, 28% dos pretos e 29% dos pardos têm entre quatro e sete anos de estudo. 9% dos brancos, 9% dos negros e 7% dos pardos estudaram entre 11 e 14 anos. Praticamente nenhum branco, preto ou pardo estudou mais de 15 anos. O ensino fundamental foi o curso mais elevado que 55% dos brancos, 56% dos pretos e 62% dos pardos freqüentaram. Já para 22% dos brancos, 22% dos pretos e 19% dos pardos, o curso mais elevado que já freqüentaram foi o ensino mé-dio. O número de brancos, pretos e pardos que concluíram o ensino superior é desprezível. (KAMEL, p.83-84)

Os resultados dessa pesquisa deixam claro que, tomando-se em consideração gru-pos equivalentes, o fator “raça” em nada influencia nos indicadores sociais de brancos e negros, não tendo, inclusive, qualquer relação com as suas chances de chegar a uma universidade. Na verdade, o grande obstáculo que impede brancos e negros pobres de ingressar em um curso superior é justamente a pobreza, que condena ambos igualmente a um ensino público de péssima qualidade.

Por último, deve-se lembrar que as cotas raciais, onde quer que tenham sido implan-tadas no mundo, não melhoraram a situação social daqueles que pretendiam beneficiar. Thomas Sowell, famoso economista americano, prova exatamente isso em seu demolidor livro Affirmative Action Around the World.

Analisando as cotas raciais nos Estados Unidos da América, Sowell constatou que, antes do estabelecimento das políticas de ação afirmativa fundadas no critério racial, a proporção de negros abaixo da linha oficial de pobreza declinou de 87% em 1940 para 47% em 1960 e finalmente para 30% em 1970. No entanto, durante a década de setenta, justamente quando tais políticas foram fortemente implementadas, esse índice reduziu-se, segundo ele, para apenas 29%, isto é, uma diferença de somente 1%35.

O livro ainda nos revela que, em 1940, os negros americanos entre 25 e 29 anos

35 SOWELL, Affirmative Action Around the World: an empirical study, p. 119-120.

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possuíam aproximadamente quatro anos de estudo a menos que os brancos. Em vinte anos, segundo o historiador, a diferença caiu para dois, e, em 1970, era de menos de um ano, 12,1 contra 12,736. Isso demonstra que, antes do início das políticas de cotas raciais nos Estados unidos, os negros americanos já tinham se aproximados muito dos brancos na educação, sem precisar de qualquer favorecimento racial por parte do Estado.

A Índia é outro importante exemplo, dado por Sowell, do fracasso do modelo de cotas raciais como instrumento de inclusão social de grupos historicamente desfavoreci-dos. A sociedade indiana é dividida em castas que, na verdade, possuem significado muito próximo daquilo que se entende, no Brasil, por raça. Lá, as cotas foram utilizadas, pela primeira vez na história mundial, para beneficiar os dalits (também chamados de “into-cáveis”), casta historicamente excluída e discriminada no país. No entanto, ao longo dos anos, tal política se expandiu tanto que não menos de 52% da população do país foram incorporados na categoria de grupos beneficiários37.

A despeito de tamanha força, as cotas raciais não reduziram as desigualdades eco-nômicas na Índia. A realidade, como nos ensina Thomas Sowell, é que “os benefícios reservados para os intocáveis se dirigem desproporcionalmente para aqueles grupos de intocáveis que são mais prósperos” (SOWELL, p. 48). Por isso, o ilustre economista ame-ricano conclui que “a ação afirmativa na Índia produziu benefícios mínimos para aqueles que mais precisam deles e máximo ressentimento e hostilidade contra tais pessoas por parte de outros” (SOWELL, p. 49).

Outros exemplos poderiam ser dados, mas esses já são suficientes para demonstrar que as cotas raciais, quando aplicadas na prática, não costumam produzir inclusão social, nem têm o potencial de beneficiar verdadeiramente os seus principais alvos.

Enfim, após todas as considerações aqui feitas, conclui-se que o argumento da in-clusão social não é suficiente para a permissibilidade de um tratamento desigual entre can-didatos negros e brancos a uma universidade pública brasileira. Falta-lhe plausibilidade, já que discriminar pessoas igualmente capazes de competir por uma vaga em um curso supe-rior (vide exemplo dos dois jovens pobres acima dado), em nome de uma suposta justiça social, que a experiência demonstra que não promovem, outro coisa não é senão arbítrio. Esse quadro é ainda mais grave quando as cotas raciais beneficiam indiscriminadamente negros ricos e pobres. Nesse caso, como se demonstrou, a arbitrariedade do tratamento desigual é ainda mais evidente.

Além disso, não é possível, através desse argumento, aferir qualquer correlação lógica entre o tratamento desigual dispensado e o critério da raça. Afinal, quando se

36 SOWELL, Affirmative Action Around the World: an empirical study, p. 118-119. 37 MAGNOLI, Demétrio, Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial, 291.

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compara, no Brasil, a situação de um negro e um branco pobres e iguais sob os demais aspectos sócio-econômicos, não é possível identificar entre eles quaisquer diferenças substanciais de acesso à educação e de chances de se chegar a uma universidade pública que pudessem ser atribuídas à diferença de cor, como demonstra o já citado trabalho do estatístico Elmo Iório38.

6. Conclusão

Este estudo procurou demonstrar, como foi antecipado em sua parte introdutória, as dificuldades de se justificar logicamente a adoção das cotas raciais em universidades públicas brasileiras sob a perspectiva do princípio isonômico. Ao longo da exposição, deixou-se claro que tal princípio, muitas vezes, admite ou até exige tratamentos distintos entre pessoas, mas que essa discriminação juridicamente válida possui também limites muito nítidos.

Explicou-se, assim, que, para ser legítimo, um tratamento desigual precisaria ter razões suficientes, isto é plausíveis, sendo de crucial importância a análise sobre a exis-tência ou não de uma correlação lógica entre o critério discriminatório e a diferenciação concretamente implementada com base nele. Disse-se ainda que, nesse caso, o ônus ar-gumentativo seria sempre de quem defende o tratamento desigual, uma vez que a regra é a igualdade.

Por isso, os principais argumentos usados no Brasil para fundamentar a desequipa-ração de candidatos negros e brancos foram colocados, explicados e, finalmente, analisa-dos detalhadamente.

O primeiro argumento mencionado foi o da reparação histórica, segundo o qual as cotas raciais seriam instrumentos de compensação para os negros pelas injustiças come-tidas contra os escravos no passado. A insuficiência desse argumento foi demonstrada, lembrando-se que a escravidão não foi um fato racial, mas econômico, e que a genética já comprovou que a cor de pele, em si, é um elemento incapaz de indicar a exata ascendência de uma pessoa. Assim, brancos atuais também poderiam ser descendentes de escravos, bem como os negros, de donos de escravos.

O outro argumento analisado foi o da inclusão social, segundo o qual o negro teria menos chances de ingressar em uma universidade pública por ser excluído socialmente. Também esse argumento mostrou-se insuficiente, já que negros e brancos igualmente pobres têm o mesmo acesso à educação e as mesmas dificuldades de chegar a uma univer-sidade, o que demonstra ser a pobreza e não a “raça” o grande obstáculo a ser superado.

38 Infelizmente, as pesquisas demográficas no Brasil não são apresentadas em regra com esse grau de detalhamento, que permite contrastar grupos de negros e brancos comparáveis entre si, isto é, iguais sob os aspectos sócio-econômicos gerais. Daí o valor do trabalho do estatístico Elmo Iório.

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Além disso, mostrou-se que as experiências internacionais de adoção de cotas raciais tam-bém não foram capazes de melhorar a situação social de seus destinatários.

Pode-se dizer, assim, que as principais razões colocadas para justificar a discrimina-ção estabelecida pelas cotas raciais são insuficientes, não sendo capazes de explicar qual seria a correlação lógica entre a “raça” de um indivíduo e o eventual benefício (para ne-gros) ou prejuízo (para brancos) que, com base nela, o Estado procura instituir.

Portanto, conclui-se que enquanto não existirem razões realmente capazes de justificar as cotas raciais no Brasil perante o princípio da igualdade, fica valendo a já referida máxima formulada pelo jurista alemão Robert Alexy: “se não houver uma razão suficiente para a permissibilidade de um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obri-gatório” (ALEXY, p. 408).

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Por uma justiça DemocráticaProposição de uma via para a efetivação jurisdicional dos

valores constitucionais

Bárbara Machado1

Resumo:

Não obstante as grandes mudanças que o direito vem sofrendo em sua processualística, o Poder Judiciário segue produzindo resultados elitistas, permanece distante da efetivação dos valores de nosso ordenamento. Para corrigí-lo, apresenta-se o Império do Direito e a Reforma Estrutural como direcionamentos capazes de promover o respeito à Princípios e a Democracia Judicial, respectivamente.

Palavras-chave: democracia judicial; Império do Direito; Reforma Estrutural; ação civil pública

1 Graduanda em Direito pela UFJF

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alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - Ufjf - nº 3 - Ano 23030

Abstract:

Even with the changes in the process law, the Judiciary Power goes on attending just some classes interests, far away from realizing our ordination values. To correct it there are the Law’s Impire and the Structure Reform like a way to promote the respect to Principles and the Judiciary Democracy, respectively.

Keywords: judicial democracy; Law’s Impire; Structure Reform; public civil action.

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alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - Ufjf - nº 3 - Ano 231

1 Introdução

Muito se falou e se fala sobre o estabelecimento de nosso país como uma grande República Democrática que venceu o autoritarismo e firmou uma base constitucional sólida, capaz de resguardar as liberdades e os direitos individuais e coletivos. Tripartido, o poder, conforme respeitável construção político-científica iluminista2 acolhida em nossa Constituição, seria equilibrado e contido pelo controle de uma instituição sobre a outra. Assim, Executivo, Legislativo e Judiciário, devidamente estruturados, poderiam, de acor-do com suas atribuições, realizar os valores do Estado que ora se reformava.

Dentro dessa divisão de atribuições, ao Poder Judiciário, nosso objeto, caberia fazer valer o Direito de acordo com as prescrições legais, em situações conflituosas, após neces-sária provocação, sem o que a imparcialidade estaria comprometida. Ao juiz, como exce-lentíssima autoridade representante desse poder no exercício jurisdicional, restaria a muito criativa atividade de interpretar a lei e também os fatos, de acordo com ela, a subsunção.

Passados já alguns anos da redemocratização e deixada para trás a embriaguez es-perançosa que acompanhou o processo, algumas críticas se tornaram cabíveis a essa es-trutura, que não se mostrou assim tão eficaz na efetivação dos valores e, por conseguinte, dos muitos direitos previstos na Constituição Federal3. Nem de longe se pretende aqui defender a redução desses direitos com o fundamento formalista de que a previsão ex-cessiva, que tornaria o cumprimento impossível, comprometeria o poder normativo do diploma. Pelo contrário, o que se pretende é demonstrar que essa efetivação é possível e que o Judiciário e a atividade jurisdicional podem protagonizá-la.

Não faz parte, também, das pretensões desse trabalho discutir largamente sobre a judicialização da política ou defender o ativismo judiciário. Pretende-se sim que os Juízes, imparciais como devem ser, se localizem de acordo com os Princípios que norteiam o nosso ordenamento, baseando neles suas decisões, mas sem perder de vista os dados con-cretos que evidenciam a distância ainda existente, e resistente, entre a prescrição formal, o direito positivado e o materializado. Na medida do possível, pretende-se apontar os meios processuais que podem tornar essa sugestão em ação, bem como as outras instituições, que nesse processo atuariam ao lado dos magistrados.

2 Montesquieu, O espírito das leis.3 Direitos em cujo catálogo já foram incluídos, com justiça, os de caráter social, que, no entanto, vem sendo sistemati-camente renegados pela “hipocrisia e falta de vontade política dos governantes” (BOAVENTURA, p. 10), mas também pela cegueira e apatia das instituições da Justiça, dos magistrados e das que lhe são essenciais, principalmente o Ministé-rio Público, que resiste em assumir uma postura pró-ativa que lhe é, não só permitida, mas também adequada.

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alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - Ufjf - nº 3 - Ano 23232

2 Anti-democraticidade jurisdicional: o elitismo adjudcatório e decisório, e a ine-fetividade dos direitos sociais

A despeito de haver dispositivos constitucionais no sentido de garantir um amplo acesso à justiça, tais como a gratuidade da assistência judiciária àqueles que comprovam ca-recer de recursos para o provimento dessa despesa4 e das ações de habeas corpus, habeas data e de outros atos referentes ao exercício da cidadania5, que tem status de Direitos Fundamentais inclusive; e outros que legitimam autores para levar à apreciação judiciária questões refe-rentes à tutela de Direitos Sociais, como é o caso, por exemplo, dos sindicatos que podem representar judicialmente aos trabalhadores de sua classe quanto aos direitos individuais e ou coletivos6 e do Ministério Público, legítimo para promover a ação civil pública7; e ainda que instituem a Defensoria Pública, que se destina a representação dos necessitados8, a prestação jurisdicional e a atuação do Poder Judiciário de modo geral permanecem elitistas e desatentas às questões sociais, que compõe a complexa realidade de nossa sociedade e de nosso imenso país. Tal desatenção não poderia ter outro resultado que não o desrespeito aos objetivos do Estado e suas instituições9 e aos princípios constitucionais.

Um dos motivos dessa distorção é o distanciamento entre as Instituições de Di-reito, associadas estritamente ao Estado, e a sociedade, cada um sendo regido por seus estatutos próprios, que possuem pouco ou nenhum contato entre si. Quando é o caso, o estatuto jurídico, que paira sobre o social, é chamado a interferir neste, sem que seja ne-cessário respeitar-lhe as pré-disposições. É o que se vê no trecho que segue:

“Pensamos em papéis, processos, ritos, togas e burocracia, todos esses elementos traduzindo a autonomia da forma jurídica em relação ao mundo social. As partes comparecem para defender seus interesses ou prestar contas pela infração à norma e o juiz, com base nas prescri-ções e princípios do sistema jurídico, produz sentenças. É como se a

4 Art. 5º, inciso LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.5 Art. 5º, inciso LXXVII: “são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania”.6 Art. 8º, inciso III da CF/88: “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos e individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”.7 Art. 129 da CF/88: “São funções institucionais do Ministério Público: III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”8 Art. 134 da CF/88: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV.”9 Art. 3º da CF/88: “São objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

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10 “esta consciência de direitos é uma consciência complexa porque engloba não só o direito à igualdade, como também o direito à diferença, designadamente à diferença cultural, e aos direitos coletivos dos camponeses sem terra, dos povos indígenas, dos afro-descendentes. É essa nova consciência de direitos e a sua complexidade que torna o atual momento sócio-jurídico tão estimulante quanto exigente”. (BOAVENTURA, p. 11)

sociedade tivesse um sistema autônomo, num plano paralelo e abaixo do Estado e, quando ocorresse conflito, o Estado fosse chamado a olhar para baixo, interferir e dar a solução. Entendendo o Direito dessa forma, fica fácil descobrir quais são seus grandes problemas: as leis são pouco rigorosas ou atrasadas, o processo é lento e a burocracia é pou-co modernizada e sujeita a corrupção”. (COUTINHO, p. 2)

Essa interpretação, de que o aparelho judiciário é destinado à mera solução de controvérsias através da aplicação de normas, o juiz, neutro, prestando-se tão somente a dirimir os conflitos entre as partes, só pode ter por consequência o perdão da pobreza dos resultados da instituição judiciária, e o creditamento de suas falhas a problemas que, se bem visto, não lhe tocam diretamente por serem defeitos generalizados – por exemplo, quanto à corrupção, há um entendimento de que é parte integrante de todas as estru-turas do Estado, como se lhes fosse inerente, não caracterizando somente os quadros judiciários em específico. Está aí uma das responsáveis pelo abismo havido entre tantas prescrições normativas e a dimensão fática, que, além disso, representa uma deturpação do sentido do Direito, que certamente é capaz de vôos mais altos.

Da construção desse panorama redutivo participa também o sofisma da neutrali-dade, que possui o condão de dotar as decisões dos juízes de ares de justiça, quando uma observação realística, mesmo que superficial, denuncia que existem sim tendências, e que a indiferença conveniente é o mais perto que essas decisões chegam da neutralidade.

“Essa pretensão de neutralidade é uma das principais formas de legiti-mação da Justiça, já que, a partir dela, é montada a idéia, fundamental em um Estado Democrático de Direito, de que todo processo é orien-tado, não por conflitos e hierarquias próprias da realidade social, mas por princípios jurídicos que obedecem a critérios morais e possuem uma lógica e uma autonomia específicas”. (COUTINHO, p. 2)

A descrita ausência quase absoluta de observação pelo judiciário da realidade social acaba fazendo com que escape àquele a dinamicidade e a mutabilidade desta, o que ine-gavelmente cria óbice a correta adequação das normas aos casos concretos, acarretando o típico e conhecido conservadorismo e a repetição de entendimentos ultrapassados ou o atraso da atualização destes, ou ainda, o que pode se mostrar muito mais perverso, torna praticamente inviável que os novos direitos de teor social, que exigiriam sem dúvidas uma atenção adicional por extrapolar aos já antigos e consagrados princípios10, sejam aplica-

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dos, por que sequer seus destinatários e as necessidades deles podem ser devidamente reconhecidos e localizados, o que transformaria tais preceitos em letras mortas que pode-riam então ser enterradas lado a lado com as cartas de intenções.

A não efetivação desses direitos sociais e a atuação judiciária desavisada no tocante as principais demandas de uma sociedade tão plural e dinâmica como é a nossa, não é segredo, liga-se ao neoliberalismo, que há algumas décadas vem se solidificando no Brasil e no mundo. O que não é assim tão óbvio é que algumas das grandes dificuldades estru-turais por que tem passado a justiça de vários países, o abarrotamento de processos, a sobrecarga dos magistrados, que são impelidos a resolvê-los a toque de caixa, e a lentidão na prestação jurisdicional, enfim o afogamento de todo o sistema (o que acaba servindo como mais uma desculpa para a desatenção à realidade social, pois a pressa necessária im-pediria uma análise mais detida desta) tem como uma das causas, justamente, a precariza-ção dos direitos sociais, o que é praticamente uma premissa dessa orientação econômica. Essa carência de prestações por parte do Estado tem conduzido, pois, a um considerável aumento da litigância11. Pelo que se pode concluir que a efetivação dessa cartela de novos direitos poderia contribuir para o contorno dessa dificuldade o que culminaria com uma otimização do exercício jurisdicional.

Ainda ligada a esse ambiente econômico neoliberal, é de se observar que os siste-mas processuais vem sendo alterados no sentido de melhor servi-lo, com o consequente aparelhamento judiciário para atender aos interesses do capital. O mercado, os negócios, demandam previsibilidade, segurança e rapidez na solução de suas questões e o processo o reflete à medida que torna a celeridade o único ideal a ser alcançado12. As reformas no judiciário pelo mundo vem ocorrendo, dessa forma, de maneira seletiva, reforma-se tão somente o que interessa ao pleno desenvolvimento da atividade econômica. “As reformas são orientadas quase que exclusivamente pela idéia de rapidez. Isto é, pela necessidade de uma justiça célere”13.

É claro que a busca por celeridade processual não pode ser tomada como um mal em si, mas se deve observar que nem sempre o resultado rápido será o mais justo e que essa rapidez é reivindicada por aqueles que sabem que esse resultado atenderá aos seus interesses. Uma interpretação cidadã do direito, apta a promover justiça social, demanda naturalmente um maior tempo de análise14.

11 “Muita da litigação que chega aos tribunais deve-se ao desmantelamento do Estado social (direito laboral,previdência social, educação, saúde, etc.) A Suécia, que tem talvez ainda hoje o melhor sistema de Estado de bem-estar da Europa, tem baixíssima litigação judicial. A Holanda é, também, um dos países com as mais baixas taxas de litigação na Europa. O que significa que a litigação tem a ver com culturas jurídicas e políticas, mas tem a ver, também, com um nível de efetividade da aplicação dos direitos e com a existência de estruturas administrativas que sustentam essa explicação. (BOAVENTURA, p. 17)12 Citar mudanças processuais nesse sentido, inclusive no novo CPC.13 Idem, p. 24.14 Idem, p. 27.

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15 Apontar as emendas e as mudanças.16 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito.17 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito.

No Brasil, é preciso ser justo, até foram introduzidas certas mudanças processuais, sobretudo pelo processo de emenda a Constituição no sentido de promover o acesso a justiça15, assim como acima o dissemos. Ocorre, no entanto, que segue existindo toda uma classe de pessoas que, apesar de conhecerem seus direitos (característica crescente) não os reivindicam quando esses são violados, por se sentirem impotentes, por se sentirem pouco à vontade diante da ininteligível estrutura judiciária.

“Não é filantropia, nem a caridade das organizações não-governamen-tais que procuram; apenas reivindicam seus direitos. Ficam totalmente desalentados sempre que entram no sistema judicial, sempre que con-tactam com as autoridades, que os esmagam pela sua linguagem esoté-rica, pela sua presença arrogante, pela sua maneira cerimonial de vestir, pelos seus edifícios esmagadores, pelas suas labirínticas secretarias etc. Estes cidadãos intimidados e impotentes são detentores de uma pro-cura suprimida. [...] A procura suprimida é uma área da sociologia das ausências, isto é, é uma ausência que é socialmente produzida, algo ativamente produzido como não existente.” (BOAVENTURA, p. 32)

Em suma, as mudanças havidas foram incipientes em relação às enormes ca-rências sociais, e inidôneas a produzir uma democracia judicial de fato, através da qual se verifiquem os princípios constitucionais, através da qual possa se estabelecer o Império do Direito16, mas não só relativamente às decisões das causas, mas também à quais causas estão em juízo, quais causas alcançam o judiciário, ou, melhor ainda, quais são por ele alcançadas.

3 A “reforma estrutural” como instrumento da Integridade

O império do Direito, a teoria do Direito como Integridade, fornece, diante desse quadro de desigualdade da prestação judiciária, uma primeira solução. O juiz ao proferir suas sentenças, deve manter-se fiel não a estrita legalidade, mas aos valores de todo o ordenamento, de acordo com os quais deve interpretar a norma específica, considerando o Direito em sua totalidade, em sua Integridade. Está aí instrutiva fórmula para que os magistrados decidam os casos mais difíceis, para os quais somente os Princípios podem fornecer resposta17. É assim como em Amistad, o belo filme de Spilberg, em que os ne-gros que se rebelaram contra seus traficantes em alto- mar, tomando o controle do navio que os conduzia à escravidão e acabando por atracar nos EUA, sendo depois reivindica-

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18 De Steaven Spilberg, Amistad, narra a história de um grupo de negros que, capturados na África, conseguem tomar o controle do navio negreiro e acabam tornando-se objeto de litígio ao desembarcar em terras americanas. A sua luta por liberdade passa por vários reveses judiciais e enfrenta ainda a dificuldade de comunicação, até que por fim o debate se trava no campo da Integridade, o que resulta na recondução dos africanos ao seu continente e na ordem para o desmantelamento da fortaleza que servia à captura e embarque de africanos para o Novo Mundo. Além da grande lição de Direito a obra é também demonstrativa de como a estrutura judiciária deve se adaptar às peculiaridades das causas que adjudica. 19 Os criminosos, por exemplo, aqueles que ocupam o banco dos réus no processo penal, são escolhidos no momento em que as leis penais são tecidas, no momento em que se elegem as condutas a serem tipificadas. Na sociedade capitalis-ta, criminoso é aquele que oferece risco à propriedade e aos negócios burgueses, ou seja, são criminalizadas as condutas da classe miserável, para quem o Estado não mostra outra face senão a penal, enquanto tende a haver indulgência com relação às práticas das classes superiores, que ou sequer chegam a ser crimes, mesmo que tenham muitas vítimas, ou, quando são tipificadas, o que é raro, beneficiam-se da negligência deliberada das autoridades, que sempre resulta na cancerígena impunidade. A esse respeito ver Michel Foucault, Vigiar e Punir.

dos como propriedade de vários entes (a coroa espanhola entre eles), cuja defesa estava devidamente embasada em dispositivos legais, puderam ser devolvidos à sua terra em liberdade, decisão final fundada nos Princípios em que se baseia o ordenamento jurídico americano desde a independência daquele país, precipuamente a Liberdade18.

Sim, todas as causas devem ser decididas com base em Princípios, principalmente os hard cases, mas a Integridade deve ir além, para atingir o momento anterior a adjudica-ção, deve atuar no momento em que são selecionadas quais causas serão levadas à apre-ciação (conforme já se discutiu aqui, não se pode ser ingênuo ao ponto de acreditar que o sistema legal-judiciário não seleciona seus casos, seus autores e seus réus19) e, se for o caso, demandá-lo de outras instituições que não a magistratura.

É preciso, pois, que se fortaleçam as estruturas capazes de conduzir causas de maior interesse social ao judiciário, para que esse poder se torne vetor da promoção dos valores constitucionais, para que torne democrático a ele próprio e ao Estado do qual faz parte. Nesse sentido, o professor americano Owen Fiss, defende a “reforma estrutural” como possibilidade de promover o “embate entre o Judiciário e as burocracias estatais”, visando remover os óbices que impedem a democracia judicial.

“A reforma estrutural é baseada na noção de que a qualidade de nossa vida social é afetada de forma significativa pela operação de organiza-ções de grande porte e não somente por indivíduos agindo dentro des-sas organizações. [...] O processo judicial de caráter estrutural é aquele no qual um juiz, enfrentando uma burocracia estatal no que tange aos valores de âmbito constitucional, incumbe-se de reestruturar a orga-nização para eliminar a ameaça imposta a tais valores pelos arranjos institucionais existentes.” (FISS, p. 2)

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Relativamente antiga nos EUA, foi a idéia de reforma estrutural o que permitiu que a separação de negros e brancos em escolas diferentes fosse revista na década de 50. À época, percebeu-se que “o fim daquela segregação era um processo de transformação total, no qual o juiz encarregava-se da reconstrução de uma instituição social existente. A eliminação da segregação exigia uma revisão das concepções formadas sobre a estrutura das partes, novas normas de controle do comportamento judicial e novas maneiras de observar a relação entre direitos e medidas judiciais”20.

Naturalmente que, a princípio, essa transformação moveu-se no escuro, não se po-dia prever o desenrolar da mudança na prestação jurisdicional e da eliminação das diferen-ças havidas no interior das estruturas burocráticas do Estado. Só quando licenciados para agir em nome da Suprema Corte, os juízes federais puderam dimensionar o tamanho do trabalho e adaptar os procedimentos tradicionais para atender às necessidades do caso.

“A legitimidade foi igualada à necessidade e, nesse sentido, o procedi-mento tornou-se dependente da substância. Um compromisso primor-dial com a igualdade racial motivou a inovação procedimental, consti-tuindo a justificativa para os distanciamentos da tradição”. (FISS, p.3)

Aqueles que se opuseram à reforma estrutural nos EUA, defendiam que o judiciário deve submeter-se ao legislativo, a menos que o processo legislativo seja tomado por ina-dequado, situação chamada “falha legislativa”, ocasião em que estaria autorizada a atuação diferenciada dos magistrados21.

Ao surgir, a reforma estrutural não pôs em risco a teoria da “falha legislativa”, pois naqueles casos não cabia a defesa do majoritarismo, uma vez que o grupo vitimado era uma minoria determinada e isolada e, de qualquer maneira, aos negros era negado o direito ao voto. Mas, é preciso observar que a atual garantia do direito ao voto a todas as etnias naquele país, não foi suficiente para reverter a desigualdade e a pobreza que recaem sobre as populações negras, e, na verdade, essa pobreza persistente é óbice à participação política desse grupo racial. Ocorre que a pobreza não é listada entre uma das hipóteses da falha legislativa, pois se fosse, de tão difusa que é, a própria premissa do majoritarismo estaria em risco.

Além disso, a simplificação contida na idéia de maioria, apesar de vir em defesa da cidadania, pode ser atentatória dela mesma. A teoria da falha legislativa contribui pouco quando a referência é a enorme estrutura estatal e a hipossuficiência de certos grupos diante dela. Porém, para que fique claro, é preciso dizer que “a função do juiz não é falar

20 FISS, p.3. 21 Haveria dois tipos de falha legislativa: “restrição do direito de voto e a discriminação de uma minoria determinada e isolada, um grupo incapaz de formar coalizões e, consequentemente, de participar efetivamente em políticas majoritá-rias”. (FISS, p. 32)

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22 Idem, p. 36.23 Idem, p. 42.24 Idem, p. 46.

pela minoria ou aumentar sua expressividade, mas dotar os valores constitucionais de sig-nificado, o que é feito por meio do trabalho com o texto constitucional, história e ideais sociais. Ele procura o que é verdadeiro, correto ou justo, não se tornando um participante nos interesses das políticas de grupo”22.

A idéia de que cabe aos juízes dotar os valores constitucionais de significado prático é sem dúvida uma superestima de suas capacidades e idoneidade moral “a capacidade que possuem de dar uma contribuição especial para a vida social não é decorrente de qual-quer conhecimento ou traço pessoal, mas da definição da atividade na qual se encontram e através da qual exercem o poder. Tal atividade é estruturada por fatores institucionais e ideológicos que permitem e, talvez, forcem o juiz a ser objetivo – não para expressar suas preferências ou crenças pessoais acerca do que é certo ou justo, ou às preferências populares, mas para o constante empenho na busca do verdadeiro significado dos valores constitucionais. Dois aspectos da atividade judicial conferem-lhe esse molde especial: a obrigação do juiz de participar de um diálogo e a sua independência”23.

É de se esperar que haja quem evoque o ideal democrático para dizer que o po-der judiciário carece de legitimidade em relação aos poderes constituídos por sufrágio, executivo e legislativo. Mas é preciso entender que significar os valores constitucionais é tarefa “dialética e pluralista”, sendo uma redução considerá-la tão somente em termos numéricos, para entender que todos os poderes podem fazê-lo, majoritária ou propor-cionalmente. Além disso, “a teoria da reforma estrutural, como qualquer outra forma de litígio constitucional, não exige que as cortes tenham a única ou a última palavra, mas que possam se pronunciar e o façam com certa autoridade, cuja medida é o processo”24.

Nos EUA, durante os anos 60, as cortes tiveram posição preponderante em função do entendimento de que a diferenciação racial era incompatível com o ideal de igualdade, em defesa dos grupos sociais em relação às instituições totais, porém no fim da década e com redescoberta do liberalismo, a defesa da supremacia legislativa foi retomada com concomitante abstenção dos juízes. Para Fiss, essa mudança não se deu em função da des-crença na idoneidade da instituição judicial, mas sim em uma crise valorativa, com a pre-ponderância de preferências circunstanciais aos princípios. Daí que a defesa da reforma estrutural também tem que vir em defesa da base valorativa do ordenamento, e vice-versa, pois um depende do outro.

“Somente quando reafirmarmos nossa crença na existência de valores públicos e acreditarmos que valores tais como a igualdade, liberdade, devido processo legal, não utilização de punições cruéis e incomuns,

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25 Idem, p, 48.26 “Um indivíduo precisa ser um pequeno herói para tomar uma posição desafiadora do status quo: imagine a coragem e a firmeza que deve ter um representante em um processo judicial que tenha por objeto a eliminação da segregação nas escolas ou, pior ainda, em uma ação que desafie a administração de uma instituição total, tal como um presídio. Nesse caso, os indivíduos encontram-se em uma posição tão vulnerável, expõe-se tanto, que é uma crueldade insistir [...]”. (FISS, p. 53)

segurança da pessoa e liberdade de expressão podem ter um significa-do verdadeiro e importante, que deve ser consolidado e implementado – sim, descoberto – o papel das cortes no sistema político tornar-se-á significativo ou até mesmo, com relação a essa questão, inteligível”. (FISS, p.48)

Entretanto, o argumento principal em função do processo judicial estrutural é a

inaptidão do processo comum, “o modelo de solução de controvérsias”, para os casos em que as partes estão em incorrigível relação de desigualdade, como é o caso dos grupos sociais diante das imensas estruturas estatais. O modelo tradicional “é tríade e altamente individualista: uma ação é visualizada – com a ajuda do ícone da Justiça segurando sua balança – como um conflito entre dois indivíduos, o autor da ação e o réu, e um terceiro situado entre duas partes, como um árbitro imparcial, para decidir quem está certo e de-clarar o que deve ser feito”25, e claramente não pode atender às necessidades processuais demandadas pela criação de direitos sociais.

“O foco da reforma estrutural não é direcionado para transações ou incidentes particulares, mas para as condições da vida social e para o papel que as organizações de grande porte desempenham na determi-nação dessas condições. O que é crucial não é o fato da criança negra ser rejeitada em uma escola de brancos ou o ato individual de bruta-lidade policial. Esses incidentes podem desencadear a ação judicial e também, ter significado probatório: evidência de um ‘padrão ou práti-ca’ de racismo ou ilegalidade. Todavia, a questão principal do processo, ou o foco da investigação judicial, não são esses incidentes, os quais são eventos particularizados e isolados, mas uma condição social que ameaça importantes valores constitucionais e a dinâmica organizacio-nal que cria e perpetua tal condição”. (FISS, p. 50)

Pela reforma estrutural, o conceito comum de partes perde sentido e o exclusivismo individualista é substituído pela figura dos grupos sociais e dos advogados institucionais, pois a vítima é um grupo - não só uma construção legal ou um aglomerado - e não um indivíduo. Tal grupo deve possuir um representante legal, não havendo razão para se exigir que este seja membro26, o que seria mesmo uma incoerência. Pois se o grupo é

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hipossuficiente o que será um indivíduo seu integrante se tomado em separado? Mas, é claro que a corte deve avaliar a adequação desse representante, podendo ser oportuna a ligação instrumental entre o grupo vitimado e o representante, o que o incentivaria a uma atividade mais engajada (nos casos de representantes privados, claro, pois os públicos de-vem possuir a dedicação como dever funcional) e a uma multiplicidade de representantes, podendo, assim, as diferentes ponderações relativas aos interesses do grupo vitimado ser distribuídas entre eles, o que seria um ponto em favor do contraditório, à medida que favoreceria uma discussão mais ampla que culminaria, logicamente, em uma decisão mais realista e justa.

De acordo com o defendido por Owen Fiss, cabe a ressalva de que as vítimas e os beneficiários do processo não precisam ser coincidentes, ao que exemplifica com um caso de abuso policial, em que a polícia age ilicitamente em relação a um grupo racial determinado de uma cidade. Nesse caso, podería-se começar um processo administrati-vo-disciplinar, de forma a coibir essa má ação dos representantes da instituição policial, deixando aos indivíduos que se sentirem lesados o processo judicial como opção. Ou a corte, percebendo a ineficiência e insuficiência dessa possibilidade, poderia levar a prote-ção para todos aqueles em situação de vulnerabilidade nessa cidade. Essa possibilidade de distinção entre as vítimas e os beneficiários decorre do fato de que a corte deve se pautar, como em qualquer exercício do poder estatal, por considerações relativas à eficácia e à justiça, considerações que podem levar a corte a “estruturar a classe beneficiada de forma não coincidente com o grupo vitimado”. É claro, no entanto, que os limites entre esses grupos devem ser próximos.

No pólo passivo, naturalmente, também haveria uma transformação. No modelo de solução de controvérsias, o réu executa “três diferentes funções: (a) representante; (b) autor do ato ilícito; e (c) destinatário (ou pessoa que deve prover a medida judicial)”27. Há aí pressuposição de que em uma só figura, tais fatores se unifiquem, já no processo estrutural, a idéia de réu como autor do ato ilícito praticamente desaparece, individualista que é, e as outras funções são separadas. Na verdade, o causador da ilicitude, no processo estrutural, é a burocracia do Estado e a desigualdade social. O réu, sobre quem recairão os ônus, é a organização, que deve ser reformada naquilo em que sua ação ofende aos valores constitucionais.

Essa reparação institucional, não seria incidental ou esporádica visando corrigir ocasionalidades, obviamente, poder-se-ía dizer mesmo que não teria fim. “Envolve uma relação longa e contínua entre o juiz e a instituição; não se refere à implementação de uma medida judicial já concedida, mas à concessão ou forma da medida. A tarefa não é declarar quem está certo ou errado, nem calcular o total de danos ou proferir uma deci-são destinada a fazer com que um ato isolado deixe de ser praticado. A tarefa consiste na

27 Idem, p. 55.

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eliminação da condição que ameaça valores constitucionais”28. O que significa dizer que a ação jurisdicional sobre a instituição, através de supervisão assídua, deve durar enquanto persistir a ameaça.

Essas são as linhas gerais da “reforma estrutural”, inspirada no pensamento de Owen Fiss aqui apresentada. Estabelecida essa base, parte-se, a seguir, para uma análise das possibilidades e impossibilidades processuais brasileiras, que, no entanto, por limita-ções de natureza prática, não poderá ser profunda quanto a todas elas, incompletude que ficará registrada aqui como uma dívida a ser paga em um trabalho complementar deste. Por hora, pretende-se apontar as diferenças principais havidas entre o processo nacional e o americano, no tocante a viabilização da reforma, bem como sugerir um meio, entre os dispositivos existentes em nosso ordenamento, para tanto, a saber, a ação civil pública a ser proposta pelo Ministério Público, um de seus titulares.

4 Breve digressão: o caráter instrumental do processo

Antes de adentrar na questão processual propriamente, é preciso lembrar que o processo, há algum tempo já concluiu a sua teoria geral, é um instrumento, não um fim em si. Presta-se a garantir, na dimensão prática, o respeito a direitos com base em princípios. Suas formas não devem ser tomadas em um sentido absoluto, encerrado em si mesmo, mas sim como um meio que, quando visivelmente inadequado, deve ser revisto, para que o direito material tutelado não saia prejudicado por um formalismo excessivo e irracional. Desse Princípio da Instrumentalidade das Formas Processuais deve se valer, portanto, a reforma estrutural, que, como dito antes, não poderá ser operacionalizada se a atuação jurisdicional apegar-se à formalidade.

“É a instrumentalidade o núcleo e a síntese dos movimentos pelo apri-moramento do sistema processual, sendo consciente ou inconsciente-mente tomada como premissa pelos que defendem o alargamento da via de acesso ao Judiciário e eliminação das diferenças de oportunida-des em função da situação econômica dos sujeitos, nos estudos e pro-postas pela inafastabilidade do controle jurisdicional e efetividade do processo, nas preocupações pela garantia da ampla defesa no processo criminal ou pela igualdade em qualquer processo, no aumento da parti-cipação do juiz na instrução da causa e da sua liberdade na apreciação do resultado da instrução”. (VIGLIAR, P. 37)

Do trecho destaca-se, também, o quão importante é esse princípio para o aprimora-mento do sistema processual, pois é via para a superação da estagnação que o positivismo

28 Idem, p. 63

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estrito tende a causar, além de permitir maior acesso ao judiciário, uma relação menos desequilibrada entre as partes com localização econômica muito diferente entre si, e uma atitude menos negligente do juiz, tudo isso culminado com a ampliação da possibilidade de sua efetividade, que pode “fazer com que o processo tenha plena e total aderência à realidade sócio-jurídica a que se destina, cumprindo sua primordial vocação que é a de servir de instrumento à efetiva realização dos direitos”29.

5 Questões processuais: incompatibilidades entre o processo civil americano e o brasileiro quanto à reforma estrutural e possíveis soluções

Naturalmente que a idéia de processo estrutural ao ser pensada para questões norte-americanas, contava com institutos processuais existentes lá, o que cria a necessidade de uma análise mais detida dos mecanismos brasileiros que poderiam permitir sua transpo-sição para o nosso país.

A reforma estrutural no ordenamento americano, de acordo com sugestão de Fiss, deve lançar mão da Injunction30, que permitiria uma ação preventiva do magistrado, ao contrário das medidas judiciais comuns, que são retrospectivas, buscando restabelecer a ordem jurídica ofendida por um erro passado. A “injuction pode servir como mecanismo formal por meio do qual a corte emite diretivas a respeito de como esse objetivo deve ser alcançado. [...] A qualidade prospectiva da Injunction, aliada ao fato de que confere poder ao juiz, explica a preeminência dessa medida na reforma estrutural”31. Adiante, quando já decorridas muitas medidas suplementares, medidas específicas, como sanções criminais e indenizações, viriam a calhar. Tais diretivas a serem emitidas pelos juízes teriam como destinatários as estruturas burocráticas, e não os indivíduos que as representam.

Quanto ao juiz, as pistas mostram que deveria superar sua postura inerte, comum na jurisdição tradicional, a qual confia na iniciativa das partes para a apresentação dos fatos, restando-lhe, ao fim, declarar com qual delas está a razão. Já na reforma estrutural, em que existe atenção ao fato de que os recursos são distribuídos desigualmente, pelo que as partes não podem ser tomadas por iguais, cabe ao juiz uma postura ativa, um cuidado para estar informado de fato sobre a situação da parte, que é hipossuficiente em relação às organizações que lhe ofendem os direitos.

O autor da ação e seu advogado falariam em nome de todos os usuários de uma instituição, os futuros inclusive, o que talvez seja uma inadequação, pois pode ser que o mal reconhecido pelo autor da causa não seja aquele que de fato cria a ofensa aos direitos. Daí a necessidade de o juiz assumir uma postura proativa para garantir uma representação adequada, de forma a, mantendo seu compromisso com a imparcialidade, construir uma

29 Watanabe in Sales, p. 13.30 Buscar explicar em detalhe como funciona a Injuction e onde é previsto na lei americana.31 Idem, p.57.

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“ampla estrutura representativa”, capaz de discutir a questão a partir de diferentes óticas.

5.1 Brasil: O Ministério público e a reforma estrutural

Já no Brasil, não há previsão da injuction e seria muito difícil defender o ativismo judicial nos moldes em que ele é aceito nos países de Common Law, em que a jurisprudên-cia tende a ser mais criativa, posto que ao juiz é concedido o direito de julgar conforme a equidade, mesmo que se venha sinalizando a aproximação de nosso sistema, Civil Law, àquele. Por isso, faz-se necessário buscar em outras possibilidades legais e institucionais a viabilidade da reforma estrutural, preservando assim a tão cara imparcialidade do juiz, que, como antes o dissemos, não pode ser confundida com a indiferença.

Voltamos, pois, nossa atenção para o Ministério Público, que na ordem brasileira tem mais possibilidades para propor os processos em que deve operar a “reforma estrutural”, pos-sibilidades estas decorrentes das funções que lhe atribui a Constituição, quais sejam a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis32.

Tais atribuições conferidas a esse órgão, bem como sua configuração, encontram ex-plicação na necessidade de dotar o sistema político de um aparelhamento para o controle da constitucionalidade, tendo em vista que o regime autoritário, ao qual seguiu a nossa constitui-ção, era contumaz desrespeitador dessa. “Desta forma, amplitude de tarefas e de prerrogativas emprestadas ao parquet nacional espelha a necessidade de mecanismos institucionais eficazes para o controle do poder estatal”33. A defesa do povo34 atribuída ao Ministério Público, por sua vez, decorre da situação de miserabilidade de boa parte da população brasileira.

Olhando para fora, em contrapartida, deve-se dizer que, em comparação com outros países, os Ministérios Públicos brasileiros, tanto os estaduais quanto os da União, são melhor dotados quanto a estrutura, garantias e funções. “Concluí-se que a instituição nacional, relati-vamente à de outros países, possui privilegiada situação de independência funcional (...)”35.

Estão aí algumas boas pistas da missão que o Ministério Público deve assumir, atuando como ator principal, no sentido de promover a efetivação dos valores constitu-cionais e a extensão da democracia, o que já tarda, ao exercício jurisdicional36. Interessa,

32 Art. 127, CF/88.33 SALLES, p. 42.34 Hugo Nigro Mazzili in Salles, p. 43.35 SALLES, p. 47.36 Mas, é preciso explicar, essa concepção finalística desse órgão é recente e nasceu com a Constituição de 1988. A ausência de objetivos estabelecidos levava, antes dessa, “a inexistência de uma ação uniforme e planejada, ficando a atividade institucional fragmentada entre diversas atribuições incoerentes e até mesmo contraditórias. Por esse motivo, as inovações introduzidas pela constituição vigente fazem necessário urgente reexame das funções legalmente atribuí-das ao Ministério Público, de forma que sua atuação corresponda aos objetivos institucionais previstos e às atribuições para as quais foi expressamente incumbido”. (SALLES, p. 56) Aí está, além de informação histórica sobre o Ministério Público, a sinalização de que concepções arcaicas e não conformes com as novas demandas sociais para as quais deve se voltar essa instituição devem ser revistas.

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pois, a este estudo, a função dessa instituição no tocante a efetividade da jurisdição cons-titucional, como forma de atender a necessidade crescente de tutela de direitos coletivos e sociais e como forma de controlar a própria atividade estatal, estando, assim, a serviço da sociedade civil, representando-a na colocação em atividade da máquina judiciária, inerte por princípio.

Cabe ao Ministério Público, por tudo isso, a defesa da cidadania, a fiscalização tanto da atuação dos poderes públicos quanto dos serviços de relevância pública, atribuição que decorre, entre outras coisas, do crescimento do “intervencionismo liberal”37 do Estado e da hipertrofia de suas estruturas. Não obstante à contradição havida nessa expressão, ela encontra suporte histórico no fato de o Estado, cedendo às pressões de certos setores econômicos, quando os mecanismos de mercado deixaram de ser capazes de, por sua con-ta, garantir o sucesso da empreitada capitalista, ter ampliado a sua própria burocratização, “face à necessidade de institucionalização do planejamento e consequente racionalidade administrativa”38. Essa mudança, claro, jamais ocorreu em nome da promoção da igual-dade social ou de qualquer outro objetivo nobre e lucrativamente desinteressado, mas sim para que a atividade econômica se mantivesse viável.

Nesse sentindo, não obstante aos 23 anos já transcorridos desde a redemocratiza-ção, faz-se ainda imperativo que esse órgão movimente-se no sentido de assumir de vez a missão que lhe foi legada dentro do sistema constitucional, o que vem ocorrendo até agora com parcimônia, a conta-gotas mesmo. Uma forma de fazê-lo seria essa que ora sugerimos: a trazida à adjudicação questões de interesse coletivo, ensejando assim o prin-cípio de processos de natureza estrutural, através de sua competência para promover o inquérito civil e a ação civil pública39, de forma a garantir o respeito dos poderes e serviços públicos aos direitos constitucionalmente resguardados40.

5.1.1 A questão da legitimação do Ministério Público

A atuação ministerial no processo não ocorre, todavia, sem que haja uma avaliação prévia de sua legitimidade, o que quase sempre se dá através da verificação do “interesse público qualificado”, expressão de Carlos A. de Salles que visa lembrar que nem todo interesse público ensejará a atuação desse órgão. Reside aí alguma dificuldade decorrente do fato de haver alto grau de abstração do conceito nessa atribuição genérica, dificuldade que só pode ser superada pela disciplina do inciso IX do artigo 129 da Constituição, que

37 SALLES, p. 64.38 Idem39 Cf/88: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: III – promover o inquérito civil e a ação civil públi-ca, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; 40 Art. 129. II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos asse-gurados nessa Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia;

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lembra que as funções que forem atribuídas ao Ministério Público devem ser compatibi-lizadas com sua finalidade.

Para dizer só da legitimidade para defesa dos direitos ditos sociais, matéria que afeta a esse trabalho, é preciso sinalizar a sua problemática, surgida com a lei 7347/85, Lei de Ação Civil Pública, em função justamente de seu maior alcance social e do fato de essa legitimação não assentar-se nas modalidades previstas em sede doutrinária. Além disso, como o ajuizamento de ações civis públicas é sempre de direito alheio em nome próprio, toda atuação do Ministério Público, nesse sentido, depende de previsão legal41.

Mas, há aí grande questão, que se relaciona ao fato de que, pela ação civil pública, quanto aos direitos difusos e coletivos, na verdade, a titularidade do direito que se preten-de proteger não é delimitável, o que cria inadequação para a legitimação extraordinária do Ministério Público, uma vez que não se trata da defesa de interesses alheios, já que não são atribuídos a sujeitos determinados. Em contrapartida, por óbvio, também não se pode dizer que essa titularidade é ordinária, pelo que, de acordo com Salles, melhor é dizer que é uma legitimação “anômala”.

Para estabelecer-se a legitimidade do Ministério Público, nesses casos, é preciso, pois, um entendimento profundo sobre de que maneira o direito material toca aos sujei-tos implicados, ou, o que interessa mais a esse trabalho, de que maneira a agressão desses direitos os atinge, ao que C. A. de Salles chama de “qualificação subjetiva da situação de fato”42. Trata-se de um exercício lógico, que visa a verificação dos requisitos da ação, como forma de permitir uma decisão do mérito apta a produzir efeitos jurídicos. Exer-cício esse que deve sempre guardar atenção às finalidades dessa instituição: a defesa do regime democrático (melhor seria dizer, a despeito do texto da Constituição, mas muito mais próximo de seus valores, defesa da Democracia, vez que o substantivo “regime” re-duz o adjetivo “democrático” à formação de um corpo político representativo por via não autoritária, quando poderia superar a mera formalidade para significar igualdade de fato) e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, para citá-las ainda uma vez.

6 Conclusão

Sem pretensões de exaustividade, intentou-se demonstrar nessa sede o quanto há por fazer no sentido da consolidação da Democracia, da promoção da justiça social, e, principalmente, da possibilidade de participação do Poder Judiciário nesse processo. Com a Integridade por norte e a reforma estrutural por forma, esse poder podería remover os óbices que, apesar de todo clamor pela constitucionalidade de seus atos, resistem dentro

41 CPC: Art 6º. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.42 SALLES, p. 121.

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das estruturas estatais e são responsáveis, juntamente com outros fatores, por retardar esse avanço.

Restou provado, ainda, que a rígida divisão funcional entre os poderes, com a per-missão da interferência entre eles somente com a finalidade fiscalizatória, é de pouca ser-ventia quando o assunto transborda à esfera da organização do Estado, e que os valores constitucionais devem ser ideais para os parlamentares e administradores públicos tanto quanto a Democracia deve sê-lo para os juízes, promotores e advogados. Só assim, com uma atuação mais coerente e coordenada entre todos eles, grandes questões como a desi-gualdade social e suas decorrências, como a violência institucional, podem ser honesta e efetivamente enfrentadas.

Ademais, já é tempo de as instituições judiciárias, através de seus representantes, assumirem a capitania nesse contexto de efetivação de valores constitucionais, para impri-mir em cada um de seus atos – petições, acusações, representações, ações, sentenças, etc. – tudo aquilo o que o Direito representa, ao invés de legar aos seus princípios a função de mero recurso retórico de grande efeito, esvaziando-lhes, assim, o sentido.

Referências bibliográficas: DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

FISS, Owen. Um Novo Processo Civil: Estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2004.

GUEDES, Clarissa Diniz. Direitos sociais, qual é o futuro? Rio Janeiro: Forense, 403, ano 105.

GUEDES, Clarissa Diniz. Legitimidade ativa e representatividade na ação civil pública. Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação da UERJ para obtenção do titulo de mestre na área de Direito Processual. Rio de Janeiro, 2009.

SALES, Carlos Alberto de. A Legitimação do Ministério Público para Defesa de Direitos e Garantias Constitucionais. Dissertação apresentada ao Curso de Pós- graduação para obtenção do título de mestre, na área de Direito Processual. São Paulo, 1992.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. SOUZA SANTOS, Boaventura de. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação Civil Pública. São Paulo: Atlas S.A., 1999.

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Inovações científico-tecnológicas e o vício em ideias: a inconstitucionalidade da inserção do THC na Portaria

n. 344 da ANVISA 1

Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes2

Resumo:

O trabalho demonstra a falta de motivação do ato administrativo que proíbe a maconha no Brasil. Isso é feito pela análise dos atuais conhecimentos científicos sobre a planta que demonstram sua baixa nocividade.

Palavras-chave: Maconha; Racismo; Motivação do ato administrativo; Norma penal em branco; Inconstitucionalidade.

1 Dedico esse artigo a todas as pessoas, vivas ou mortas, que não abdicaram da própria consciência e, portanto, fizeram o certo, ainda que fosse ilegal. Agradeço a Letícia Fonseca Braga Machado, por me incentivar e acompanhar na busca crítica pelo correto.2 Graduando em Direito pela UFJF.

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Abstract:

The work demonstrates the lack of motivation of the administrative act that prohibits marijuana in Brazil. This is done by analyzing the current knowledge about the plant to demonstrate its low harmfulness.

Keywords: Marijuana; Racism; Motivation of an administrative act; Blank criminal rule; Unconstitutionality.

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1 Introdução

A legalização3 da maconha é um tema cujo debate tem se arrastado por décadas. Muitas contribuições foram dadas por pesquisadores médicos, sociólogos, economistas, psicólogos, juristas. Entretanto, como pretendemos demonstrar, parece que a maioria des-sas pesquisas não tem sido absorvida pela população. O povo é alvo da (des)informação costumeiramente veiculada pela mídia hegemônica, tendo a opinião formada não pelos pesquisadores acima referidos, mas pelo preconceito perpetuado por empresas mais com-prometidas com o sensacionalismo do que com a verdade.

Sendo notório que o ideário popular se embasa mais na mídia do que na ciência, o inadmissível é que permitamos que o Estado faça o mesmo. A instituição estatal brasilei-ra, cuja uma das funções constitucionais é garantir uma educação de qualidade, não pode se valer da ignorância popular para implementar políticas desarrazoadas e imprestáveis a garantir os direitos fundamentais. Portanto, é urgente que os dados empíricos das ciências deixem de ser propositalmente ignorados pelo Estado e deixem, também, de ser oculta-dos da população4.

Pretendemos demonstrar como a evolução científica dos estudos sobre a maconha exige sua retirada da portaria da ANVISA, bem como exige a alteração do imaginário popular. Para isso nos valeremos de informações históricas, médicas, antropológicas, ju-rídicas e sociológicas.

Certamente o objetivo deste artigo poderia se valer da mais sofisticada linguagem filosófica, tematizando a liberdade, o controle popular do Estado, o alcance da paz social, etc. Entretanto, evitaremos o vocabulário filosófico para demonstrar que esse tema de relevância social cotidiana, também pode ser trabalhado por meio de raciocínios claros e inteligíveis pela maioria da população.

3 Tendo em vista os preconceitos sociais, é politicamente recomendável a substituição do termo “legalização” por “regu-lamentação”. Esse eufemismo cumpre a função de driblar as barreiras mentais que impedem a maioria da população de refletir criticamente sobre o assunto. Entretanto, por se tratar de trabalho científico e não político, manteremos o termo “legalização”, vez que expressa melhor a ideia de tornar algo lícito, tal qual são lícitos o álcool e o tabaco sem prejuízo às regulamentações legais, como a proibição de ambos aos menores de 18 anos, a proibição do primeiro aos motoristas e do segundo em locais sem ventilação.4 Lamentáveis tentativas de impedir a instauração de um debate social sobre o tema têm sido feitas pelo próprio judici-ário. Houve inúmeras proibições judiciais da Marcha da Maconha, – movimento pacífico pela legalização da cannabis – alguns juízes classificavam o movimento como apologia ao crime. É preciso que tais magistrados repensem seu en-tendimento sobre a Constituição Federal, pois seus atos foram repudiados pela unanimidade do plenário do Supremo Tribunal Federal, que declarou a licitude da Marcha na ADPF 187.

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2 Um minuto de história

Parece-nos interessante iniciar este trabalho com considerações sobre a história da proibição à maconha no Brasil. Tal abordagem é especialmente relevante para os que acreditam na interpretação histórica da norma jurídica como um relevante método her-menêutico. A maioria dos dados históricos foi retirada de rica obra editada pela Universi-dade Federal da Bahia, intitulada “Rodas de fumo: O uso da maconha entre camadas médias urbanas” (MACRAE; SIMÕES, 2000, pp. 18-27), os demais serão devidamente citados.

Randall Kennedy, de forma geral, afirma que o “racismo, historicamente, influenciou a formulação da política de drogas”5 (KENNEDY, 1997, p.366). Isso parece ter sido verdade em nosso país. O hábito de fumar maconha foi introduzido no Brasil por escravos africanos, tendo se difundido entre populações rurais e indígenas do norte e nordeste. Gilberto Freyre chegou a considerar a maconha um elemento cultural de resistência à “desafricani-zação”. São expressivas as palavras de Raul Francisco Magalhães:

Há um dado em sua criminalização [da maconha] histórica que trans-cende o discurso médico. Trata-se do caráter explicitamente racista do seu processo de criminalização, quando foi associada a uma perversão própria dos descendentes dos africanos que teriam trazido tal doença para a sociedade civilizada. (MAGALHÃES, 1994, p.107)

Desta forma, a proibição da maconha foi mais uma tentativa de repressão à cultura negra, entretanto devemos mencionar que nem só de racismo foi forjada a lei. Houve ainda a necessidade de controle social de segmentos marginalizados da população, que àquele tempo6 se estabeleciam nas cidades (SIMÕES; MACRAE, 2003, p. 95). Por fim, houve razões médicas que embasaram a medida proibicionista.

Nos estudos médicos oficialmente considerados da época a maconha era apontada como causadora de agressividade, violência, delírios furiosos, loucura, taras degenerativas, degradação física, idiotia e sensualidade desenfreada. Suas propriedades farmacológicas foram identificadas às do ópio e seus derivados, o que levou a qualificar o consumo da erva como “uso compulsivo”. Resta aí a pergunta que pretendemos trabalhar: caso essas razões médicas forem equívocos científicos, o que restará para embasar a proibição, além do racismo e do controle da classe pobre por meio de sua criminalização?

5 Tradução livre do trecho: “racism has historically influenced the formulation of drug policy”.6 A primeira proibição ocidental à maconha foi posta no Brasil por uma lei municipal do Rio de Janeiro em 1830, mas foi somente em 1934 que seu uso passou a ser nacionalmente penalizado por lei federal.

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3 A maconha no atual contexto científico

Não teríamos espaço suficiente nesse artigo para expor todos os casos históricos em que as informações médicas foram manipuladas intencionalmente para denegrir a imagem da planta. Citaremos apenas um episódio protagonizado por Harry Anslinger, considerado um dos principais responsáveis pela política proibicionista estadunidense e mundial.

O caso favorito de Anslinger era o de Victor Licata, um jovem de 21 anos, que, depois de fumar um baseado, matou os pais e os três ir-mãos a machadadas. O que ninguém contou na época é que o exame psiquiátrico de Licata revelou que ele sempre tivera alucinações segui-das de impulsos homicidas e que já havia sido internado num hospí-cio uma vez, após um ataque de agressividade sem relação nenhuma com a maconha. Isso não impediu Anslinger de escrever, no artigo “Marijuana: assassina de jovens”, publicado em 1937 na revista Ame-rican Magazine, que o rapaz “era tido como um jovem razoável e tranquilo” antes de começar a fumar maconha. (BURGIERMAN, 2002, p.35-36) negrito nosso.

Seria ingênuo imaginar que a atualidade já teria superado, por completo, as mentiras tão amplamente veiculadas nas gerações passadas, e não nos referimos apenas ao imaginá-rio popular, algumas obras contemporâneas ainda ecoam a ignorância e o preconceito do passado. O mais assustador é que não se tratam de obras renegadas e esquecidas, mas de obras utilizadas no ensino jurídico de faculdades de excelência pelo país. A título de exem-plo, são lamentáveis as afirmações colocadas por Delton Croce e Delton Croce Júnior em seu manual de Medicina Legal. Sem qualquer menção a estudos científicos os autores cometem desde vários erros médicos, como a afirmação de que maconha “não serve para tratar glaucoma” (CROCE; CROCE JÚNIOR, 1995, p. 544), até erros interdisciplinares, como a afirmação de que o usuário crônico de maconha seria um “verdadeiro arremedo de ser humano à margem da sociedade” (CROCE; CROCE JÚNIOR, 1995, p. 543)7.

Um dos pontos mais relevantes no atual contexto científico da cannabis é seu uso medicinal, embora essa consideração não seja nada atual, havendo registros do uso da planta como remédio desde 2800 a.C. na China, onde era remédio para gota, malária, reumatismo, beribéri, problemas de memória e problemas menstruais (EARLEYWINE, 2002, p. 169); (IVERSEN, 2000, p. 122). Atualmente são inúmeras as possibilidades de

7 A edição citada é de 1995, mas as mesmas informações continuam presentes até a edição de 2010, última que conse-guimos consultar.

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tratamentos proporcionáveis pela Maconha. Em debate realizado pela Folha de São Pau-lo em 20/10/2010, o neurobiólogo, doutor em neurociência, Renato Malcher considera possível potencializar diversos princípios ativos presentes na planta gerando espécies se-dativas, analgésicas, antipsicóticas, estimuladoras de apetite, antieméticas, anticanceríge-nas, antiespasmódicas, anti-inflamatórias e broncodilatadoras. A visão da maconha como remédio prevaleceu até suas recentes proibições no século XX. No tocante ao tratamento de glaucoma, citado acima, a maconha se mostra como extremamente eficaz. Entretanto, como seria necessário fumar vários baseados por dia, considerou-se melhor fazer um remédio específico extraído da planta, embora alguns pacientes tenham continuado pre-ferindo a inalação. Um desses casos ficou famoso nos EUA com a ação de Randall contra o Estado para que lhe fosse garantido o direito de tratar seu glaucoma com a única coisa que lhe deu resultado, a maconha. Venceu o pleito em 1978, adquirindo o direito de rece-ber aproximadamente 300 cigarros de maconha por mês do próprio governo. Tomando o referido manual de Medicina Legal como exemplo, notamos como a literatura atual ainda pode ser problemática ao abordar a maconha, aproveitamos para recomendar ao leitor que evite se embasar nos amplos manuais de psiquiatria ou outros ramos. É extremamen-te preferível que se busque informações em livros específicos sobre a planta, que tragam não apenas informações livres, mas que remetam e descrevam os estudos científicos que os embasam.

O mais relevante no tocante à proibição é o uso recreativo, muitas vezes conside-rado pela literatura preconceituosa como um sintoma de fraqueza de personalidade. En-tretanto, pesquisa realizada na Inglaterra demonstra que os usuários têm uma visão bem diferente sobre o motivo que os levam a usar a maconha, dos 522 britânicos: 306 disseram que a planta os proporcionava prazer, diversão, relaxamento e aumentava a sociabilidade; 167 consideravam a cannabis mais barata e menos prejudicial que o álcool e outras drogas; 131 atribuíram o uso à maximização da consciência e do entendimento; 128 disseram que consumiam apenas porque gostavam (IVERSEN, 2000, p. 236). Uma das contribuições trazidas pela ciência da atualidade foi a possibilidade de comprovação da segurança do uso recreativo responsável da cannabis. Tal já havia sido afirmado em diversas pesquisas cien-tíficas ao longo da história, sem qualquer reflexo nas políticas legislativas, Iversen elenca diversos estudos que foram sistematicamente ignorados pelo legislador, como: “The Indian Hemp Drugs Commission Report, em 1894” (IVERSEN, 2000, p. 241); “Mayor La Guardia’s Report, em 1944” (IVERSEN, 2000, p. 243); “The Wootton Report, em 1968” (IVERSEN, 2000, p. 245); “La Dain Report, em 1970” (IVERSEN, 2000, p. 246). Diversas foram as pesquisas que demonstraram a baixa nocividade da planta ao organismo humano, o pro-blema é que o legislador silenciou a essas pesquisas, negando sua cientificidade ou mesmo ignorando-as. Hoje, com o desenvolvimento dos métodos de pesquisa, e com a facilidade de circulação da informação, não é tão simples permanecer na ignorância.

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As pesquisas da atualidade demonstram que o grau de nocividade da cannabis é relevante e merece controle estatal, mas é menor do que o do álcool e menor que o do ta-baco na maioria dos aspectos, não merecendo, portanto, a ilicitude. Estudos comparativos da nocividade de várias drogas foram reunidos no livro Cannabis Policy (HALL et al., 2010, p. 41-42), os resultados, em síntese, foram os seguintes8:

1. Quanto à dosagem necessária para ocorrência de morte, a cannabis se mostrou a menos nociva.

2. Quanto ao nível de intoxicação produzido pela substância, a despeito da dose e condições de consumo, o álcool foi classificado como o mais nocivo, a maconha ficou com a quarta colocação e o tabaco, logo após, com a quinta.

3. Quanto a quão difícil seria abandonar o uso, no referente aos critérios de desis-tência de usar, desenvolvimento de tolerância, necessidade de ajuda e nível de dependên-cia. O resultado foi a demonstração de que a cannabis seria a menos nociva, enquanto o tabaco qualificou-se como o mais problemático, seguido da heroína, em segundo lugar, ficando o álcool com a quarta colocação.

4. Quanto ao grau de dependência psicológica, a maconha ocupa, mais uma vez, a posição de menos nociva entre as substâncias analisadas, sendo qualificada como fraca, enquanto os estimulantes são considerados como medianos. O álcool e o tabaco são clas-sificados como muito fortes nesse quesito quantitativo de dependência psicológica.

5. No que se refere à toxidade em geral, levando em conta efeitos do uso a longo prazo sobre a saúde, bem como efeitos da utilização razoável da droga e outras consequ-ências, o resultado detectou a maconha como possuidora de uma toxidade geral muito baixa, enquanto o álcool foi considerado possuidor de uma forte toxidade e o tabaco de uma muito forte.

6. No que toca à danosidade social, considerados os critérios de estimulo a condutas violentas, bem como outras desordens, como brigas e roubos, ou mesmo casos de direção

8 Daremos ênfase nas comparações entre a cannabis o álcool e o tabaco, vez que para nosso propósito é crucial demons-trar a discrepância entre tais substância. O livro citado apresenta três quadros sinópticos de comparação. No primeiro são confrontados: cannabis, MDMA, estimulantes, tabaco, álcool, cocaína e heroína. No segundo: cannabis, valium, ecstasy, estimulantes, tabaco, álcool, cocaína e heroína. No terceiro: cannabis, tabaco, heroína e álcool. Os trabalhos sintetizados no primeiro quadro são: GABLE, R.S. (2004) Comparison of acute lethal toxicity of commonly abu-sed psychoactive substances. Addiction, 99: 686-96; HILTS, P. H. (1994) Is nicotine addictive? It depends on whose criteria you use: Experts say the definition of addiction is evolving. New York Times 2 August: p. C3.; STRATEGY UNIT (2005). Strategy Unit Drugs Report, May 2003. London: Prime Minister’s Strategy Unit. Available at: http://www.strategy.gov.uk/work_areas/drugs/index.asp (Full report at http://image.guardian.co.uk/sys-files/Guardian/docu-ments/2005/07/05/Report.pdf).; ROQUES, B., chair (1999). La Dangerosité de Drogues: Rapport au Secrétariat d’État à la Santé. Paris: La Documentation française-Odile Jacob. O segundo quadro é referente a esse último livro. O terceiro é uma síntese de HALL, W. D. (1999). Assessing the health and psychological effects of cannabis use. In: Kalant, H., Corrigall, W., Hall, W.D. & Smart, R. (eds.), The Health Effects of Cannabis. Toronto: Centre for Addiction and Mental Health, pp. 1-17.

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irresponsável de veículos, a maconha classificou-se como fraca. O tabaco teve uma da-nosidade social considerada nula. Porém, o álcool, outra droga lícita, demonstra ter uma danosidade social bem acima da maconha, sendo qualificada como forte.

7. O último quadro comparou as substâncias em diversos critérios, atribuindo um asterisco às hipóteses tidas como menos comuns ou menos comprovadas e dois asteriscos às hipóteses consideradas como efeitos importantes. O resultado na distribuição foi o se-guinte: a cannabis recebeu um asterisco no tocante a acidentes de trânsito e outros aciden-tes, doenças respiratórias, cânceres, doenças mentais, efeitos sobre o feto; dois asteriscos foram recebidos pela erva no tocante à dependência psicológica. Nota-se que, novamente, a maconha foi considerada a droga menos problemática, vejamos a classificação do taba-co: um asterisco para efeitos sobre o feto e dois asteriscos para doenças do coração, do-enças respiratórias, cânceres e dependência psicológica. Lembrando que os quesitos não mencionados são os que não receberam nenhum asterisco, vejamos a situação do álcool: um asterisco para morte por overdose, infecções do fígado, doenças do coração, cânceres; e dois asteriscos para acidentes de trânsito e outros acidentes, violência e suicídio, cirrose hepática, doenças mentais, dependência psicológica e efeitos sobre o feto.

4 O vício em ideias e a portaria 344 da ANVISA

Por diversas vezes os usuários de maconha foram acusados de estarem se afastando da realidade, mas o que é a realidade? Certamente não é o mundo fictício no qual maconha causa agressividade, violência, delírios furiosos, loucura, taras degenerativas, degradação física, idiotia e sensualidade desenfreada. Com isso chegamos a uma conclusão curiosa, os que tanto clamam pela realidade estão submersos em um oceano de ignorância e precon-ceito que os impedem de ver a própria realidade. É o que chamamos de vício em ideias, algo que nos parece socialmente mais danoso que o vício em maconha.

Não é aceitável que nossas instituições permaneçam contaminadas por esse vício, quando, na realidade, sua função seria combatê-lo. A ANVISA, como agência reguladora, deveria ser uma entidade “politicamente neutra e tecnicamente especializada” (BINENBOJM, 2008, p. 247). Por meio de sua competência técnica, tal agência reguladora deveria ter se negado a manter a cannabis na referida portaria que complementa a norma penal em branco da lei de drogas. É sabido que os motivos que, na prática, levaram nossa agência reguladora a proibir a maconha, não foram pesquisas realizadas em respeito a sua com-petência técnica. A ANVISA fechou os olhos para a ciência e, em respeito a tratados internacionais de índole política, – portanto incompatíveis com a natureza das agências reguladoras que se prestam a prover pareceres técnicos – inseriu a maconha no rol das substâncias proibidas.

Daí se fazer necessário o controle judicial do ato administrativo da ANVISA que

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insere o THC no referido rol, tendo em vista que “a validade do ato estará condicionada à existência dos fatos apontados pela Administração como pressuposto fático-jurídico para sua prática, bem como à juridicidade de tal escolha” (BINENBOJM, 2008, p. 206). Portanto, pela natureza técnica das agências reguladoras, a mera existência de tratados internacionais não justifica o ato administrativo, devendo haver uma fundamentação técnica. Obviamente, respeitado o Estado de Direito, a administração não pode ser arbitrária em seus atos, adentrando ao âmbito científico não bastaria a ANVISA mencionar os danos gerados pela cannabis, teria de enfrentar a questão de confrontar tais males com os de substâncias que ela permite, como o álcool e o tabaco, do contrário, sem tal confrontamento, permaneceria a repressão cultural materializada na proibição de uma substância menos nociva enquanto outras mais danosas, por razões políticas e não técnicas, são permitidas.

5 Norma penal em branco e as inovações científico-tecnológicas

Como é sabido, no direito brasileiro adota-se a chamada norma penal em branco para o tema das drogas. A lei de 11.343 não define quais são as substâncias objeto de sua tutela. Deixa tal tarefa para a ANVISA, na portaria 344. Muito se questiona sobre a utili-zação dessa técnica que acaba por deixar a cargo de uma agência reguladora a tipicidade de uma conduta criminal. Entretanto, há boas justificativas para sua utilização.

Inicialmente, é de se constatar que “a norma penal em branco se destina a objetos mutáveis” (LOPES, 1993, p. 46), portanto, a justificativa de sua utilização estaria em garantir um trâmite mais célere e fundamentado a questões mutáveis que não deveriam estar sujeitas às contingências do jogo político legislativo. Entretanto, sabe-se que a lei penal em branco não é uma carta branca outorgada a outro poder para que este decida como bem entender (MARQUES, 2002, p. 160). Desta forma, a norma penal em branco não pode ser inter-pretada apenas no sentido de possibilitar o acréscimo de condutas criminalizadas, deve também abarcar a possibilidade da descriminalização. É o que parece exigir a ciência, ao demonstrar que a maconha não deveria estar elencada na portaria da ANVISA.

As inovações científico-tecnológicas permitem, não somente a descoberta da baixa nocividade da cannabis, mas também a divulgação dessa descoberta. Isso surte um efeito social que propicia a superação do antidireito instituído na atualidade. A população, aos poucos, toma ciência de que foi enganada, de que a consciência jurídica que possuem foi determinada por inverdades intencionalmente veiculadas com a finalidade de inebriar sua razão. Apesar disso, deve-se ressaltar que esse debate não deve ser resolvido pelo critério da maioria, não se deve esperar até que a parte majoritária da população descubra que foi enganada. Sendo uma questão de direito e não de política, a legalização da maconha é uma exigência da integridade esperada de um Estado Democrático de Direito, que não pode abandonar o multiculturalismo, muito menos por meio da adoção de uma política

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culturalmente repressiva, sem o devido respaldo na ciência médica. Quanto à possível hipótese de uma proibição legislativa direta à maconha, não se

aplicaria a tese aqui defendida no tocante à necessidade de correta fundamentação do ato administrativo, visto a maior liberdade conferida ao legislador. Entretanto, entendemos que esta maior liberdade não lhe daria o direito de positivar normas racistas de evidente repressão cultural. Uma vez estabelecido pela ciência majoritária que a nocividade da ma-conha é menor que a do álcool e que a do tabaco, qual seria a fundamentação de uma lei que a proibisse? Excluindo a hipótese de que a lei também proibisse o álcool, o fato seria que tal ato normativo apenas estaria reprimindo um costume estranho ao ideário judaico-cristão, enquanto permite outros mais nocivos, mas abarcados pelo costume ocidental. Teríamos, portanto, uma inconstitucionalidade não por falta de válida motivação do ato administrativo, como no caso da ANVISA, mas uma inconstitucionalidade pela proibição de normas racistas que apenas visariam reprimir culturas minoritárias desprovidas que qualquer danosidade social intolerável.

6 A gravidade do problema

É importante evidenciar a relevância do enfrentamento deste tema que, por uns e outros, costuma ser apontado como de relevância secundária. De início, há uma urgente necessidade de veiculação de informações verídicas sobre a cannabis. A desinformação é tão grande que em 2001, em pesquisa nacional realizada pelo CEBRID, verificou-se que 43% dos entrevistados consideraram um risco grave usar maconha uma ou duas vezes na vida (CARLINI, 2002, p. 102), resultado totalmente desconectado do atual saber científi-co sobre a planta. Esse pavor social voltado à maconha reflete-se contra os maconheiros, que sofrem diariamente a perda de dignidade pela necessidade de esconderem seu hábito pouco nocivo de fumar cannabis, enquanto drogas muito mais nocivas recebem o aceite social financiado pela indústria farmacêutica. É preciso que se note a injustiça de julgar a capacidade produtiva de alguém por seu uso de maconha, é necessária a percepção de que esta injustiça é tão séria quanto as que julgam tal capacidade embasando-se na cor da pele do indivíduo.

Tais preconceitos e a consequente discriminação social são alimentados pela de-sastrosa forma com que a ONU lida com o problema. Seus relatórios são recheados de catalisadores da discriminação, um trecho pode esclarecer bem este ponto:

A linguagem dos relatórios, em especial atenção aos dois primeiros, le-gitima argumentos de combate às drogas de cunho moral (“monstro”; as drogas “atormentam” o mundo), de caráter médico (“epidemia” de uso de drogas) ou mesmo de inspiração militarista (o “inimigo” contra o qual lutamos; a “batalha” contra as drogas; os vínculos entre crime

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organizado, terrorismo e consumo de drogas). Assim contribui tanto para a (re)produção sistemática do discurso de pânico social como para o recrudescimento do sistema penal em matéria de drogas. (SABA-DELL; ELIAS, 2008, p. 226)

Além da mencionada discriminação social, ocorre algo que poderíamos chamar de discriminação institucional. Como a atual lei de drogas não estabelece critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante, deixando à discricionariedade judicial tal classifica-ção, acaba ocorrendo um fenômeno bem denominado de criminalização da pobreza. Não analisamos estatísticas específicas, mas cremos que nas tão numerosas zonas limítrofes entre tráfico e uso, o indivíduo pobre e morador da favela terá muito mais dificuldade para convencer o juiz de que não estava vendendo drogas do que o indivíduo não periférico. Daí o portador de drogas favelado ser sempre um traficante em potencial.

Por fim, há a questão do orçamento público. Os gastos com o suposto combate ao narcotráfico envolvem gigantesco volume monetário que poderia estar sendo investido, por exemplo, em saúde, mas a atual política insiste em construir penitenciárias, ao passo que deveria estar edificando hospitais. Além disso, a arrecadação oriunda da regulamenta-ção da produção e consumo da maconha seria de grande valia aos cofres públicos, princi-palmente tendo-se em vista as múltiplas utilidades industriais da maconha.

7 Conclusão

Inúmeros pensadores já chegaram à conclusão do terrível fracasso da atual política de drogas, notando que “criminaliza-se o que a lei quer que seja criminalizado, independente do dano causado ao bem jurídico saúde” (GIACOMOLLI, 2008, p. 573), de forma que “a história da criminalização das drogas indica, como, em poucas décadas, o sistema de justiça penal, por meio do proibicionismo, constrói um grave problema social a fim de justificar sua intervenção, gerando violação de direitos fundamentais dos cidadãos” (SABADELL; ELIAS, 2008, p. 218).

No caso da maconha, que representa a maior parte do uso ilegal de drogas, a proi-bição se mostra inconstitucional, ao menos se estiverem corretas as pesquisas científicas consultadas neste trabalho. Nossa bibliografia, ao constatar a disparidade de nocividade entre a maconha e o álcool, exige que a ANVISA demonstre quais as razões técnicas para a proibição do primeiro e permissão do segundo.

O efervescente desenvolvimento tecnológico permite que a informação circule com maior facilidade, possibilitando discussões que por décadas não obtiveram o devido tratamento da mídia hegemônica. Desta forma, o judiciário não deve permanecer fossili-zado, ignorando as descobertas da ciência e sua circulação, sendo um bom momento para o direito evidenciar seu potencial emancipador. O multiculturalismo é essencial ao Estado Democrático de Direito, e a dignidade dos maconheiros não tem encontrado a devida

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proteção jurídica. Não há dignidade quando se é forçado a praticar escondido um deter-minado ato que não provoca qualquer dano social relevante, não há dignidade quando se é obrigado a colaborar com o tráfico para permanecer realizando uma prática cultural legí-tima. Os maconheiros são pessoas que utilizam uma substância menos nociva que outras legalizadas, só sendo um grupo fora da lei por ela estar afastada da justiça.

Referências bibliográficas

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Dos obstáculos à tutela judicial dos direitos sociais

Victor Chaves Ribeiro frança Guimarães1

1 Graduando em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e graduando em Administração de Empresas na Faculdade Machado Sobrinho.

Resumo:

O presente artigo visa a explicitar alguns obstáculos jurídicos e não jurídicos à tutela ju-dicial dos direitos sociais, demonstrando o grande ônus argumentativo que têm os juízes quando, em suas sentenças, obrigam o poder público a despender recursos com o fulcro de satisfazer tais direitos. Serão analisados alguns aspectos constitucionais concernentes ao tema, e elencados obstáculos que impedem a tutela judicial dos direitos sociais, segui-dos dos obstáculos que restringem essa tutela. Dada a obrigatoriedade constitucional da motivação das decisões judiciais, todas as sentenças concessivas de direitos sociais devem analisar esses obstáculos e justificar exaustivamente sua não aplicação no caso sub judice, sob pena de nulidade.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais Sociais; Proteção Judicial; Colisão de Princípios; Motivação das Decisões.

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Abstract:

This article intends to explain some of the various legal and non-legal obstacles to judicial protection of social rights and to demonstrate the effort of argumentation that judges have to make when, in their sentences, they force the government to expend resources to make real such rights. We will analyze some aspects concerning the Constitution and we will list some obstacles that prevent the judicial protection of social rights, followed by the obstacles that merely restrict such protection. Given the constitutional obligation of the motivation of judicial decisions, every concessive sentence of social rights should examine these obstacles and exhaustively justify its non-application in the present case, under penalty of nullity.

Keywords: Fundamental Social Rights; Judicial Protection; Collision of Principles; Mo-tivation of Decisions.

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1 Introdução

A possibilidade da tutela judicial dos direitos sociais é uma das questões que mais vêm chamando a atenção nos últimos tempos, dado o seu crescimento exponencial em poucos anos e as perplexidades suscitadas. Conforme notícia recentemente divulgada nos meios de comunicação2, os valores gastos pelo Ministério da Saúde para cumprir decisões judiciais que determinavam o fornecimento de medicamentos de alto custo aumentaram mais de 5.000% nos últimos seis anos, passando de R$ 2,24 milhões, em 2005, para R$ 132,58 milhões, em 2010. Assim, em curto lapso temporal, o gasto do Ministério para cumprir sentenças judiciais aumentou em cinquenta vezes, mostrando uma óbvia tendên-cia de, cada vez em maior escala, ocorrer a sindicabilidade dos direitos prestacionais.

Em razão disso, urge estabelecer parâmetros e limites para a atuação dos juízes na concessão, via sentenças, de tais direitos. Se não é correto adotar, a priori, uma postura contrária à tutela judicial dos direitos sociais, também não se pode adotar a posição dema-gógica - e potencialmente ruinosa - de concedê-la livremente.

Antes de entrar propriamente no tema, é necessário especificar o significado da expressão “direitos sociais” ou “direitos prestacionais”, conforme serão aqui tratados. Na verdade, são corolários do princípio da igualdade, da solidariedade e da dignidade da pessoa humana e visam a promover redução de desigualdades e a melhoria da qualidade de vida, através de prestações positivas, tais como alimentação, saúde, moradia e educação. São, portanto, direitos a prestações positivas do Estado, necessitando de grande volume de recursos públicos.

É fácil perceber que a tutela judicial desses direitos demanda gastos vultosos e im-previsíveis (já que não há como prever o número de prestações solicitadas, nem, muito menos, o de demandas acatadas pelos juízes) por parte do Estado, que, muitas vezes, já previra destinação diversa àquele montante, sendo obrigado a abandonar seu planejamen-to prévio.

É conveniente, neste passo, trazer à discussão o conceito econômico de escassez. Conforme ensina PASSOS (2005, p. 04):

A escassez existe porque as necessidades humanas a serem satisfeitas através do consumo dos mais diversos tipos de bens (alimentos, rou-pas, casas etc.) e serviços (transporte, assistência médica etc.) são infi-nitas e ilimitadas, ao passo que os recursos produtivos (máquinas, fábricas, terras agricultáveis, matérias-primas etc.) à disposição da sociedade e que são utilizados na produção dos mais diferentes tipos de produtos

2 Disponível em http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia/2011/04/28/sobe-5000-gasto-do-governo-com-remedio-via-justica.jhtm. Acesso em 24/06/11.

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são finitos e limitados, ou seja, são insuficientes para se produzir o volume de bens e serviços necessários para satisfazer as necessidades de todas as pessoas. (...) Da dura necessidade da escassez decorre a necessidade da escolha.

A escassez econômica aplica-se perfeitamente à temática dos direitos prestacionais, uma vez que há, de um lado, necessidades e demandas sociais crescentes e ilimitadas, e, de outro, limitação de recursos por parte do Estado. Assim, há que se fazer uma escolha alocativa de recursos, e garantir os direitos daqueles que litigam judicialmente implicará necessariamente em reduzir o quantum disponível para a coletividade.

Dada a limitação de recursos, sempre será necessário o enfrentamento das cha-madas “escolhas trágicas”, optando-se por alocar os recursos de determinada maneira e deixar desguarnecidos muitos que precisam igualmente deles. Qualquer administrador público vê-se, eventualmente, diante dessas escolhas, ainda mais num país com tantas carências como é o Brasil.

Um grande problema na discussão acerca da sindicabilidade dos direitos sociais é a abrangência desse conceito. De fato, potencialmente, há uma infinidade de direitos a prestações, pois não se pode quantificar, de pronto, as necessidades prestacionais positi-vas para que os indivíduos tenham uma vida digna. Ademais, o número de necessidades das pessoas aumenta com o passar do tempo, à medida que a sociedade vai ficando mais desenvolvida e complexa. A título de exemplo, podem-se citar os computadores, que, há algumas décadas, eram um luxo para poucos. Hoje, a falta deles pode comprometer seria-mente o desenvolvimento profissional de um jovem, que pode ser alijado do mercado de trabalho se não tiver conhecimentos de informática - tornando-se um, veja-se a expres-são!, “analfabeto digital”. Será que, dentre os direitos sociais passíveis de tutela judicial (sendo que, entre eles, há o à educação), está o direito a ter um computador? E, se estiver, cabe ao Estado provê-lo?

Uma maneira comumente apresentada para se contornar a imprecisão dos direitos sociais é a garantia do enigmático “mínimo existencial”. Entretanto, também em relação a sua definição, não há o mínimo consenso. E, relegado ao decisionismo judicial, esse conceito se banaliza, podendo ser utilizado de forma arbitrária e descabida. É interessante notar que o conceito do “mínimo existencial” serve justamente para se rebater a crítica de que os direitos sociais, por serem muito genéricos, não poderiam ser tutelados pelo Poder Judiciário. A ideia era a de que, pelo menos, o mínimo do mínimo deveria ser protegido ju-dicialmente. Como se vê, é uma tentativa de se colmatar a definição de direitos altamente imprecisos (os sociais) com um conceito ainda mais vago (o mínimo existencial), que aca-ba incorrendo, do mesmo modo, no risco de definições casuísticas e arbitrárias. De fato, gerou-se uma tautologia - os direitos sociais devem ser garantidos no mínimo existencial,

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e este, por sua vez, consiste no cerne dos direitos sociais -, que serve mais para confundir do que para trazer luz à discussão.

Já se pôde perceber, com essa breve explanação, quão complexo é o assunto. Não se vai defender, no presente artigo, nenhuma posição extremada - seja de total permissivi-dade ou de total proibição da tutela judicial dos direitos sociais -, mas sim apresentar, sem qualquer pretensão de exaurimento do assunto, alguns obstáculos que devem ser vencidos pelos juízes antes de conceder tais direitos, como forma de evitar o decisionismo e o ar-bítrio e de promover uma maior parametrização das decisões.

2 Alguns aspectos constitucionais prévios

Antes de adentrar propriamente nos obstáculos à sindicabilidade dos direitos so-ciais, é necessário tratar de alguns aspectos constitucionais relevantes à questão.

Um argumento frequentemente levantado pelos defensores de uma tutela judicial subjetiva dos direitos sociais diz respeito ao conteúdo do art. 5ª, § 1º, da Constituição Federal. O referido dispositivo normativo dispõe o seguinte: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. A redação do parágrafo teria, supostamente, o condão de permitir, irrestritamente, a tutela judicial de tais direitos, pois eles seriam autoaplicáveis.

Entretanto, deve-se ter o cuidado de analisar esse dispositivo como um institui-dor de um princípio, não de uma regra. Nesse sentido, não se pode inferir, a partir dele, que a Constituição obriga a tutela judicial dos direitos sociais, mesmo porque ela própria não especificou em que medida tais direitos devem ser concretizados. Conforme lição de MENDES (2008, p. 260):

A maioria dos direitos a prestação, entretanto, quer pelo modo como enunciados na Constituição, quer pelas peculiaridades do seu objeto, depende da interposição do legislador para produzir efeitos plenos. (...) Os direitos em comento têm que ver com a redistribuição de riquezas - matéria suscetível às influências do quadro político de cada instante. A exigência de satisfação desses direitos é mediada pela ponderação, a cargo do legislador, dos interesses envolvidos, observado o estádio de desenvolvimento da sociedade.

Ao contrário, fazendo-se uma interpretação sistemática, a partir do princípio da unidade da Constituição, pode-se concluir que não é possível, com base nesse disposi-tivo, pretender a anulação de toda uma base principiológica constitucional, fundada na Democracia, no Estado de Direito e nos Direito Fundamentais. Ora, tratar tal dispositivo como regra implicaria tratar os direitos sociais igualmente como regras, o que obviamente

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contraria a mais básica hermenêutica constitucional. Não há como tornar autoaplicáveis normas tão vagas como são os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, sob pena de se cair no mais absurdo decisionismo - o que, infelizmente, tem ocorrido em muitas sentenças que concedem tutela a direitos sociais.

Além disso, fazendo-se uma interpretação teleológica do referido parágrafo, perce-be-se que sua finalidade maior é a efetivação dos direitos fundamentais. Assim, no que se refere aos direitos sociais, pode-se perceber que a maneira mais eficaz de garanti-los não é, necessariamente, a tutela judicial subjetiva, isto é, uma proteção pontual caso a caso, mas, possivelmente, uma proteção objetiva, feita pelo legislador e pela administração pública com vistas a tutelar os direitos sociais de toda a coletividade.

Portanto, brandir o art. 5º, § 1º, da Constituição Federal como um argumento ter-minativo da discussão da tutela judicial dos direitos sociais não procede, sendo meramente uma forma simplista de tentar encerrar o debate. Na verdade, é imperioso considerar tal dispositivo como um princípio, e não como uma regra.

Outra questão constitucional importante a ser suscitada é a obrigatoriedade de mo-tivação de todas as decisões judiciais. Conforme o artigo 93, inciso IX, da Constituição: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)”.

Em razão do imperativo constitucional, e dada a polêmica em torno da sindicabi-lidade dos direitos sociais, é forçoso que todo magistrado, ao conceder a tutela judicial desses direitos, motive exaustivamente suas razões para fazê-lo, mostrando por que, no caso concreto, foram afastados os obstáculos que, abstratamente, impedem ou restringem essa tutela.

Portanto, tratando-se de tema polêmico, o ônus argumentativo do juiz é muito grande, tendo ele que percorrer um longo caminho até chegar à tutela propriamente dita. Não o fazendo, a decisão por ele proferida será, possivelmente, eivada de nulidade e, por-tanto, inapta a produzir efeitos no mundo jurídico. Entender de modo diverso seria per-mitir uma “meia” motivação, um arremedo de motivação, o que violaria flagrantemente a imposição constitucional.

Daí a importância de se elencar alguns possíveis obstáculos à tutela judicial dos direitos sociais: o juiz terá, em sua motivação, que passar por eles, mostrando quais são as circunstâncias do caso concreto que justificam seu afastamento. Só aí a decisão estará plenamente motivada e será constitucionalmente legítima.

3 Obstáculos impeditivos da tutela judicial dos direitos sociais

Primeiramente, há que se elencar alguns obstáculos que, potencialmente, impedem a tutela judicial dos direitos sociais. Isso quer dizer que, prevalecendo eles em uma análise

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principiológica, não há como sustentar essa tutela, pois vão diretamente de encontro a ela. Utilizando-se a imagem da colisão de princípios, pode-se dizer que eles colidem frontal-mente com ela.

Somente uma ponderação de princípios - feita com base no caso concreto, e não a priori -, calcada no princípio da proporcionalidade (item 4.3, infra), pode afastar a incidên-cia desses obstáculos e permitir a sindicabilidade dos direitos prestacionais.

3.1 Princípio Democrático

São os poderes Legislativo e Executivo (e não o Judiciário) as instâncias democrati-camente legítimas para escolher a melhor forma de utilização dos recursos públicos. Afi-nal, é atribuição constitucional do Executivo elaborar as leis orçamentárias; e é atribuição constitucional exclusiva do Legislativo votar e aprovar essas leis. As decisões judiciais que concedem direitos sociais violam a separação de poderes, na medida em desviam recursos da destinação estipulada por aqueles democraticamente competentes.

O jurista alemão Ernst Wolfgang Böckenförde já defendia, em sua obra Estudios sobre el Estado de Derecho y la Democracia, que a atuação do Poder Judiciário, por não ser legi-timada através de uma responsabilidade democrática equipada com sanções (como acontece com o Executivo e o Legislativo), deveria, para ser legítima, guardar uma estrita vinculação à legislação produzida por um Parlamento eleito diretamente pelo povo. Assim, corrobora-se a necessidade de o Judiciário respeitar a alta legitimidade democrática do Legislativo, para que este possa, através da elaboração de leis, garantir a efetivação dos direitos sociais do modo como julgar mais apropriado.

Como toda decisão judicial que visa a tutelar um direito social subjetivo é essen-cialmente alocativa, também ocorre sempre, nesses casos, uma desalocação de recursos. Assim, quando o juiz decide pela concessão de um benefício material a uma pessoa (ou a um grupo restrito delas), ele acaba, necessariamente, desguarnecendo aqueles indivíduos para os quais o legislador ou o administrador público havia legítima e originalmente des-tinado os recursos. Conforme MENDES (2008, p. 261):

Na medida em que a Constituição não oferece comando indeclinável para as opções de alocação de recursos, essas decisões devem ficar a cargo de órgão político, legitimado pela representação popular, com-petente para fixar as linhas mestras da política financeira e social. Essa legitimação popular é tanto mais importante, uma vez que a realização dos direitos sociais implica, necessariamente, privilegiar um bem ju-rídico sobre outro, buscando-se concretizá-lo com prioridade sobre outros. A efetivação desses direitos implica favorecer segmentos da população, por meio de decisões que cobram procedimento democrá-

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tico para serem legitimamente formadas - tudo a apontar para o Parla-mento como a sede precípua dessas deliberações e, em segundo lugar, a Administração.

Portanto, não cabe ao Judiciário, e sim ao Legislativo, em primeiro lugar, e ao Exe-cutivo, em segundo, tomar decisões alocativas de recursos públicos, pois elas dependem de uma legitimação democrática que os tribunais não têm.

Com a sindicabilidade dos direitos sociais, surgem alguns questionamentos e algu-mas perplexidades. Deveriam as leis orçamentárias reservar previamente uma cota para cumprir sentenças judiciais? Se sim, quanto e como proceder se forem insuficientes? Se não, como evitar a transformação dessas leis em letra morta?

Vale ressaltar, por amor ao debate, que o STF já se pronunciou a respeito, com en-tendimento em parte diverso do aqui apontado, conforme se pode perceber do fragmento do voto do Min. Celso de Mello3:

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções insti-tucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais compe-tentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política “não pode converter-se em promessa constitu-cional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto ir-responsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado” (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

3 Trecho do voto do Min. Celso de Mello, proferido na ADPF 45/2004.

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3.2 Princípio da Segurança Jurídica

Outro ponto que não pode ser relegado a segundo plano é a ameaça da tutela judi-cial ao princípio da segurança jurídica, que é um dos postulados do Estado de Direito, e que, portanto, tem assento constitucional .

Levando-se em consideração esse princípio constitucional, não se poderia permitir que o Judiciário, casuística e discricionariamente, reestabeleça o destino dos recursos, pre-viamente decidido pelos poderes Legislativo e Executivo. Isso porque tal expediente gera grande insegurança para os gestores públicos, que não sabem nunca se, de fato, podem contar com os recursos que o orçamento lhes confere. Dessa forma, compromete-se todo o planejamento prévio da Administração Pública, podendo, potencialmente, gerar um caos administrativo.

Também a população em geral vê sua segurança jurídica ameaçada, já que pode ter rotineiramente suas expectativas frustradas por decisões judiciais, a partir do momento em que recursos anteriormente destinados a determinada finalidade coletiva são alocados para cumprir determinadas decisões judiciais, em prol de alguns indivíduos.

Um exemplo marcante desse tipo de ameaça foi dado pelo então advogado-geral da União, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antônio Dias Toffoli, na audiên-cia pública sobre saúde que aconteceu no dia 27/04/2009 no STF4. Nessa ocasião, citou ele o exemplo de um prefeito do estado de São Paulo que, após cumprir uma decisão judi-cial, entregou as “chaves da cidade” ao juiz, sob o argumento de ter gasto toda a verba de saúde para cumprir a sentença. Esse caso é sintomático do quão lesiva para os interesses da sociedade pode ser a interferência do Judiciário nas esferas de legitimidade exclusivas do Executivo e do Legislativo, inviabilizando a concretização de todo um planejamento anterior.

O Ministro Toffoli afirmou, na ocasião, que “a complexidade da questão é muito maior do que se tem discutido em juízo” e que as decisões judiciais que garantem forne-cimento de remédios e tratamentos a indivíduos criam um “sistema de saúde paralelo ao SUS, priorizando o atendimento a pessoas que muitas vezes sequer procuraram o siste-ma”.

Percebe-se, pois, a imprevisibilidade consequente da sindicabilidade dos direitos sociais, que gera uma atmosfera de insegurança generalizada no Legislativo, no Executivo e na população, chegando a casos de completa incompatibilidade e subversão dos funda-mentos do Estado de Direito.

4 Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-abr-27/decisoes-obrigam-estado-dar-remedios-dividem-opinioes. Acesso em 25/06/11.

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3.3 Princípio da Isonomia

Dada a escassez inerente aos recursos públicos, há o risco de se transformar a Justi-ça em uma espécie de “bingo”, em que os primeiros que a ela recorrem têm suas deman-das atendidas, exaurindo os recursos, e deixando os demais desassistidos.

Outra distorção deriva do fato de que os segmentos mais excluídos da sociedade, exatamente aqueles que mais demandam direitos sociais, têm dificuldade de acesso à jus-tiça, seja por deficiência da Defensoria Pública, seja por falta de informação. Com isso, a tutela judicial dos direitos sociais pode ser um instrumento de concentração de renda, na medida em que a classe média pode utilizá-la para atender às suas demandas individuais, exaurindo os recursos, em detrimento da classe baixa. Com isso, gera-se uma distorção global na estrutura macroeconômica da sociedade, prejudicando, no final das contas, os que mais carecem desses direitos.

Os recursos estatais são escassos. A observância dos direitos sociais é especialmente custosa e impossível de ser plenamente concretizada. Num país pobre, como o Brasil, esse aspecto é ainda mais relevante. Não se pode atender a todas as expectativas.

Só seria viável essa tutela se pudesse ser universalizada a todos em semelhante si-tuação (princípio da isonomia), sob pena de se causarem injustiças e de se promover o “bingo” jurídico. Com isso, tornar-se-ia praticamente inviável a tutela judicial dos direitos sociais, pois dificilmente seria possível atendê-los de forma universal. Conforme SAR-MENTO (2008, p. 23):

O que pretendo salientar é apenas que, em razão do princípio da isono-mia, pessoas que estiverem na mesma situação devem receber o mes-mo tratamento, razão pela qual não se pode exigir judicialmente do Estado que forneça algo a um indivíduo que não seja possível conceder a todos aqueles que estiverem nas mesmas condições.

Dessa forma, o princípio da isonomia passa a ser obstáculo quase intransponível à sindicabilidade dos direitos sociais - daí ter sido aqui classificado como impeditivo da tutela. Na verdade, dificilmente pode-se conceber situação em que seria possível estender deter-minada tutela a todas as pessoas na mesma situação. Assim, para evitar odioso privilégio dos “mais espertos”, que chegarem antes, forçoso seria negar tal tutela.

4. Obstáculos restritivos da tutela judicial dos direitos sociais

Além dos obstáculos que, potencialmente, impedem a tutela judicial dos direitos sociais, existem aqueles que a restringem. Isso quer dizer que, caso prevaleçam na análise do caso concreto, através de uma ponderação de princípios, não inviabilizarão a tutela, mas

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apenas restringirão sua abrangência ou sua intensidade. Não são capazes de colidir frontalmente com a sindicabilidade dos direitos prestacio-

nais, impedindo-a, mas apenas lateralmente, afastando sua incidência no caso específico ou minorando-lhe os efeitos, reduzindo o quantum que o Estado será compelido a prestar.

4.1 Reserva do Possível

A expressão “reserva do possível” foi consagrada por decisão da Corte Constitucio-nal Alemã de 1972, no caso que ficou conhecido como “Numerus Clausus”. Analisando a validade da limitação do número de vagas em universidades públicas, entendeu a Corte que, a despeito da existência do direito de acesso ao ensino universitário, tal direito “se encontra sob a reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode o indivíduo ra-zoavelmente exigir da sociedade”5. Conforme LIMA (2007, p. 131):

A partir daí, começou a ser desenvolvida a máxima da reserva do pos-sível, que pode assim ser sintetizada: os direitos a prestações podem ser exigidos judicialmente, cabendo ao Judiciário, observando o princípio da proporcionalidade, impor ao Poder Público as medidas necessárias à implementação do direito, desde que a ordem judicial fique dentro do financeiramente possível. Nas palavras do Tribunal Constitucional ale-mão, a reserva do possíveléaquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da coletividade. Se for razoável (melhor dizendo, proporcional), não pode o Estado se negar a fornecer (...).

A reserva do possível tem em vista a difícil decisão de alocar os relativamente poucos recursos disponíveis em face da profusão de necessidades sociais - as chamadas “escolhas trágicas”. Ela não obsta a tutela judicial dos direitos sociais, mas apenas chama os juízes à realidade, mostrando o descompasso entre as demandas e os meios para atendê-las.

O Supremo Tribunal Federal já teve decisão em que se entendeu não ter a reserva do possível o condão de exonerar o Estado de cumprir seus deveres constitucionais. Con-forme entendeu o Min. Celso de Mello6, ela consistiria em um meio de sopesamento da demanda feita em face do Poder Público com as disponibilidades financeiras do Estado:

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do

5 BVerfGE 33, 303 (1972). Os trechos mais importantes da decisão estão reproduzidos, em língua portuguesa, em Jür-gen Schwabe. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Trad. Beatriz Hennig et. al.. Konrad Adenauer Stiftung: Berlim, 2005, p. 656-667 apud SARMENTO, 2008, p. 18. 6 Trecho do voto do Min. Celso de Mello, proferido na ADPF 45/2004.

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cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quan-do, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (...)Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “re-serva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de se-gunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Portanto, a reserva do possível é um balizador e um limitador de decisões judiciais, evitando irresponsabilidades por parte de juízes, porém sem vetar de todo a possibilidade de uma tutela judicial.

MENDES (2008, p. 1369) ainda sugere outra vertente para o princípio da reserva do possível - por ele chamado de princípio da reserva do financeiramente possível. Se-gundo ensina o Ministro, baseado nas advertências de Ernst Forsthoff, uma sociedade em que os indivíduos dependem de forma absoluta das prestações estatais para sobreviverem converter-se-ia facilmente em uma sociedade totalitária, pois seria difícil o Estado não fazer uso político de tão confortável situação. Em tal sociedade, os indivíduos buscariam sempre viver em harmonia com os poderosos, pois “para quem precisa de tudo, o estô-mago é o senhor de todas as decisões”.

Dessa forma, se é de se lamentar que existam pobreza e necessidades não atendidas entre as pessoas, o mesmo não se pode dizer da limitação de recursos do Estado. De fato, o ideal não seria um Estado todo-poderoso, que suprisse todas as necessidades dos indiví-duos à custa de sua liberdade e de sua autonomia, mas sim que todos tivessem condições de, sem ter que depender de prestações estatais, levar uma vida digna.

4.2 Falta de Expertise dos Juízes e Inadequação da Via Processual

Existem alguns obstáculos de ordem prática que dificultam sobremaneira a tutela judicial dos direitos sociais. Um deles é a falta de expertise dos juízes para tomar determi-nadas decisões, que requerem profundo conhecimento técnico sobre assuntos alheios ao Direito. Os poderes Executivo e Legislativo, especialmente o primeiro, contornam tal problema através da manutenção, em seus quadro, de vários assessores especializados nos mais diversos assuntos, possibilitando a tomada de decisões de maior complexidade.

Os juízes não possuem conhecimentos técnicos e específicos, nem assessores que o tenham, para tomar decisões complexas, que envolvam aspectos macroeconômicos,

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políticos, sociais, médicos etc. Essa falta de expertise pode gerar muitos problemas, como, por exemplo, decisões que ignoram as listas de espera existentes no caso de transplantes7

ou que ordenam a compra de remédios proibidos pela ANVISA8.Esse inconveniente não é capaz de afastar, é certo, o controle judicial dos atos dos

poderes Executivo e Legislativo, nem pode, por si mesmo, inviabilizar uma tutela judicial de direitos prestacionais. Entretanto, serve de alerta aos magistrados para que sejam cau-telosos e parcimoniosos na tomada de tais decisões, pois podem, no afã de querer garantir os direitos de um indivíduo, violarem direitos de muitos outros e alcançarem resultados indesejáveis.

Outro problema é a inadequação da via processual, originalmente concebida para a resolução de lides bilaterais, para a resolução de problemas tão complexos, que envolvem plúrimos interesses. Conforme SARMENTO (2008, p. 33):

O processo judicial foi pensado com foco nas questões bilaterais da justiça comutativa, em que os interesses em disputa são apenas aqueles das partes devidamente representadas. Contudo, a problemática sub-jacente aos direitos sociais envolve sobretudo questões de justiça dis-tributiva, de natureza multilateral, já que, diante da escassez, garantir prestações a alguns significa retirar recursos do bolo que serve aos demais. Boas decisões nesta área pressupõem a capacidade de formar uma adequada visão de conjunto, o que é muito difícil de se obter no âmbito de um processo judicial. Este, com seus prazos e formalidades, está longe de ser o ambiente mais propício para a análise de políticas públicas, por não proporcionar pleno acesso a miríade de informações, dados e pontos de vista existentes sobre aspectos controvertidos. Na verdade, o processo judicial tende a gerar uma “visão de túnel”, em que muitos elementos importantes para uma decisão bem informada são eliminados do cenário, enquanto o foco se centra sobre outros – não necessariamente os mais relevantes.

É certo que tal problema pode ser amenizado, por exemplo, com a utilização dos amici curiae ou com a preferência de demandas coletivas sobre as individuais. Esses expe-dientes, entretanto, não são capazes de modificar a natureza intrínseca ao processo judi-

7 Apelação em Mandado de Segurança nº 2002.51.01.018517-9, 4ª Turma do TRF da 2ª Região, Relator Desembargador Federal Arnaldo Lima, julgada e, 17 de março de 2004; Agravo de Instrumento nº 2005.02.01.003581-8, 7ª Turma do TRF da 2ª Região, Relator Desembargador Federal Reis Friede, julgada em 22/06/2005; Agravo de Instrumento nº 2006.02.01.005318-7, 7ª Turma do TRF da 2ª Região, Relator Desembargador Federal Sergio Schwaitzer, julgado em 27 de setembro de 2006, apud SARMENTO, 2008, p. 5. 8 Decisão proferida pelo então Presidente do STJ, Ministro Edson Vidigal, na Suspensão de Segurança nº 1.408/SP, prolatada em 08/09/2004, apud SARMENTO, 2008, p. 5.

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cial, que o torna um meio bastante questionável de concretização dos direitos sociais.

4.3 Princípio da Proporcionalidade e Ponderação de Princípios

O princípio da proporcionalidade, se, por um lado, serve de obstáculo à concessão da tutela judicial dos direito prestacionais em determinados casos, de outro, é o grande instrumento dos juízes para, através de ponderação e sopesamento de princípios, vencer os obstáculos à tutela e aplicá-la.

O princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit) passou a ser entendido como central da ideia de Estado de Direito, em razão de sua ligação com os direitos fundamen-tais, que, ao mesmo tempo, lhe dão suporte e dele dependem para se concretizar. É um forte parâmetro, que, através de seus três subníveis - adequação, necessidade e proporcio-nalidade em sentido estrito -, proíbe tanto o excesso (Übermassverbot) quanto a proteção insuficiente (Untermassverbot). É um limite à atuação do Estado, sendo aplicável sobre os atos de quaisquer de seus poderes.

O princípio da proporcionalidade pode ser, em alguns casos, limitador à concessão da tutela judicial (por ser excessiva a prestação que se pretende) e, em outros, justificativa da concessão da tutela (por vedar a proteção insuficiente do indivíduo que demanda as prestações estatais positivas). Por esse motivo, foi ele aqui elencado como obstáculo res-tritivo dessa concessão, embora possa ser, paradoxalmente, o instrumento removedor dos demais obstáculos.

Portanto, a possibilidade da sindicabilidade dos direitos sociais será aferida, no caso concreto, a partir de uma ponderação, pautada na proporcionalidade. De um dos lados da balança, estarão os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da solidarie-dade; de outro, todos os obstáculos impeditivos e restritivos da tutela.

É importante ressaltar que esse sopesamento não será feito aprioristicamente, em abstrato, mas sim face às peculiaridades e vicissitudes do caso concreto. Isso porque, se feita a priori, tal ponderação levaria a um resultado extremado e inexorável de resposta sim ou não, incompatível com a análise de um problema de tamanha complexidade e com tantas peculiaridades caso a caso.

Percebe-se, pois, que a decisão que nega ou concede a tutela dos direitos presta-cionais deve ser exaustivamente motivada, trazendo uma complexa ponderação de prin-cípios. Lamentavelmente, muitas vezes, os tribunais não adentram a complexa discussão, concedendo a tutela de forma paternalista e demagógica, esquivando-se de confrontar argumentativamente os obstáculos a ela. Exemplos disso são as seguintes decisões do STF:

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A singularidade do caso ..., a imprescindibilidade da medida cautelar concedida pelo Poder Judiciário de Santa Catarina (necessidade de transplante das células mioblásticas, que constitui o único meio capaz de salvar a vida do paciente) e a impostergabilidade do cumprimento do dever político-constitucional que se impõe ao Poder Público, em todas as dimensões da organização federativa, de assegurar a todos a proteção à saúde (CF, art. 196) e de dispensar especial tutela à criança e ao adolescente (CF, art. 6º, c/c art. 227, Par. 1º), constituem fatores, que, associados ao imperativo de solidariedade humana, desautorizam o deferimento do pedido ora formulado... Entre proteger a inviolabili-dade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inaliená-vel assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra esta prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado este dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida9.

A educação infantil representa prerrogativa constitucional indispo-nível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito do seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV)Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado ..., a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possi-bilitem ... o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola... A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a ava-liações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental...Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se pos-sível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas defini-das pela Constituição”10.

9 Petição 1.246 MC/SC, julgada em 31/01/1997.10 Agravo de Instrumento no Recurso Extraordinário nº 410.715-5/SP, julgado em 22/11/2005.

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5 Considerações finais

A sindicabilidade dos direitos sociais é uma questão que se faz, a cada dia, mais relevante e mais urgente de ser parametrizada, dado o vertiginoso aumento do número de decisões que deferem a tutela a tais direitos. O aumento exponencial do gasto do governo para cumprir sentenças enseja uma discussão e um debate acerca do tema.

Percebe-se que, muitas vezes, magistrados deixam-se levar pelas emoções e por sentimentos paternalistas e/ou demagógicos, não refletindo mais demoradamente sobre o assunto e suas implicações, e motivando de forma insuficiente suas decisões.

O presente artigo visou a elencar, sem pretensão de exaurimento do tema, alguns dos obstáculos impeditivos e restritivos à tutela judicial dos direitos sociais, não para ad-vogar a impossibilidade desta, mas para estabelecer parâmetros e limites às decisões e para demonstrar o grande ônus argumentativo que têm os magistrados ao prolatá-las.

Dada a imposição constitucional de motivação das decisões (inciso IX do art. 93 da Constituição Federal), acarretando pena de nulidade, é tarefa indeclinável dos juízes, em suas decisões, enfrentar o debate e apontar porque vão ou não afastar os obstáculos à tutela judicial dos direitos prestacionais. Ao furtarem-se à análise desses obstáculos, adotando soluções simplistas, contrariam o dispositivo constitucional, o que pode, poten-cialmente, culminar na nulidade de suas decisões

A partir disso, será o princípio da proporcionalidade que pautará uma ponderação e um sopesamento de princípios, de forma que se chegue à solução mais consoante com as disposições constitucionais. Tal inteligência não será feita em abstrato - ou se chegaria a uma solução única, extremada e errada -, mas sim com base no caso concreto e nas suas peculiaridades.

Referências bibliográficas

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Interpretação fenomenológica da Natureza jurídica da Lei Orçamentária Anual

Victor freitas Lopes Nunes1

Resumo:

Este artigo busca mostrar que a Lei Orçamentária Anual tem natureza jurídica de lei ma-terial. Para tanto, proceder-se-á a uma análise fenomenológica deste tipo de dispositivo legal, de modo a que reste demonstrado que tais leis jamais se confundem com meros atos administrativos (lei formal), uma vez que são constituídas de um processo, de um movimento característico de todas as leis. Apresentando-se como a forma que se volta como conteúdo da forma.

Palavras-chave: Fenomenologia – Lei formal – Lei material – Universal Incondiciona-do

1 Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.2 A confirmação (confirmatio que para Cícero era sinômino de argumentação) persuade o ouvinte pelo raciocínio, esta-belece a verdade da causa e acha as provas que a fazem triunfar.

“Confirmatio est per quam argumentando nostrae casae fidem et auctoritatem et firmamentum adjungit oratio”2 (Cícero)

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Abstract:

This paper will show that the Brazilian Annual Budget Act is a real act, just like any other, not only a mere decision made by the public administrator. Thus it will be proceeded an analysis based on the three initial chapters of the book “The Phenomenology of Spirit”, which will demonstrate that this act is part of an process, a movement, that is characte-ristic of every single act. It will be showed that the form is, actually, the content of the form itself.

Keywords: Phenomenology – Formal Act – Contented Act – Unconditioned universal

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1 Introdução

A Lei Orçamentária Anual (LOA) é o instrumento pelo qual o poder público es-tima e faz previsões dos gastos e receitas públicos para o ano fiscal seguinte. Ela é com-posta basicamente das previsões de receitas e despesas, incluindo em suas disposições o orçamento fiscal, o de investimento das empresas estatais e o da seguridade social.

Há muito tempo discute-se a natureza jurídica desta lei, sendo ainda hoje controver-tido seu caráter ser de lei material, “com conteúdo de regra de direito e eficácia inovadora” (TORRES, pg. 93) ou se tem caráter meramente formal, na qual estão inscritas somente possíveis destinações do dinheiro público.

Neste trabalho se buscará encontrar uma resposta e, o que para o Direito tem es-pecial importância, uma justificativa para a solução dada a tal problema, para tanto proce-der-se-á a uma análise fenomenológica dos dispositivos legais, lançando mão, em especial, do conceito desvendado no capítulo terceiro de Fenomenologia do Espírito, qual seja o universal incondicionado.

2 A forma como conteúdo dos movimentos da consciência

A Filosofia se preocupa e muito discute, desde muito tempo, a separação entre su-jeito e objeto, em Fenomenologia do Espírito, especialmente nos três primeiros capítulos (os quais são objeto de nossa análise), Hegel trava um diálogo com a consciência que culminará na identificação como sendo ela própria um objeto. Nesse primeiro momento do livro, se desenvolvem paralelamente dois diálogos, o primeiro deles entre Hegel e a “consciência”, e o segundo entre Hegel e o “nós” (leitores, que acompanham os mo-vimentos desse processo). Vê-se uma estrutura helicoidal em que o autor descreve os movimentos da consciência enquanto esta analisa e descreve o objeto (qualquer que seja ele; neste momento analisado em abstrato). A consciência que quando perguntada sobre o que é o objeto responde e insiste em algo separado dela, progressivamente vai admitindo mediações na coisa, até, finalmente, admitir que o objeto tem uma lógica própria, e que as mediações de antes a consciência dizia ser ela quem fazia, são, na verdade, feitas pelo próprio objeto.

Fenomenologia do Espírito é, também, uma crítica à teoria do conhecimento de-senvolvida até então. Na introdução do livro, foram feitas críticas aos empiristas e racio-nalistas, dos quais podem ser citados (indiretamente pelo autor) importantes filósofos, com Hume, Descartes e, em especial, Kant. Para Hegel, esses expoentes da filosofia que até hoje são muito estudados e aplaudidos tiveram medo de errar, o que para o autor “introduz uma desconfiança na ciência” (HEGEL, pg. 72), para o saber o medo do erro

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é o próprio erro, não sendo possível a ciência se separados o objeto do conhecimento do conhecimento em si, o qual jamais seria mero instrumento para se chegar à verdade. Neste momento, revela-se uma idéia do pensamento hegeliano, o qual acredita que a verdade – absoluto – não está nem no ponto de chegada nem no ponto de partida, mas sim no processo que conduz de um ao outro, englobando ambos, inclusive o caminho, o proces-so que conduziu àquele saber.

O primeiro momento desse processo de convencimento e reconhecimento é a cer-teza sensível. Quando é proposto a alguém que conheça determinado objeto, o primeiro passo para que se apreenda o conhecimento daquela coisa se dá com o sujeito indo ao seu encontro, que terá o seu primeiro contato mediado pelos sentidos, por isso, é à certeza sensível dedicado o primeiro capítulo do livro. Nesse estágio, se pergunta à consciência o que é um objeto, qualquer que seja ele, e ela responde “é o isto”. Mas então, o que é o isto, é a próxima indagação, neste instante teria a consciências duas possíveis respostas, a primeira delas seria insistir no “isto”, o que não resolveria o problema deixando a questão mais uma vez e ad infinitum sem resposta; a segunda seria enfrentar a barreira lingüística e tentar expressar o conteúdo do “isto” com palavras. Para tanto ela lança mão de dois condicionantes o aqui e o agora.

Contudo, esses dois condicionantes são mediações, uma vez que o agora, ao qual se refere a consciência para falar do objeto, só é aquele agora que já se foi, e não é mais o agora que se refere neste momento, pois este é futuro daquele. Ocorre, portanto, um movimento dialético de construção do agora. E o mesmo ocorrerá se se analisar o aqui, que não pode ser nenhum outro senão o qual é apontado pela a consciência construído referencialmente no espaço como negação de todos os outros lugares.

Estaria afastada a tese de que o objeto é o “isto” ou “puro ser” imediatamente apreendido, posto que para que se chegasse a ele provou-se necessário a mediação da consciência, mas ela se socorre dizendo que esta primeira mediação não está no objeto, é inessencial, é, na verdade, ela quem faz.

Passa-se, assim, para um segundo momento, em que não há mais um “puro ser” imediatamente apreendido, mas sim um objeto mediatizado pela consciência. Não está em questão mais um singular, procede-se agora a uma análise de um “isto” que é parti-cular. Tomando o exemplo dado, analisa-se o cristal de sal, o qual é descrito como sendo branco, cúbico e sápido. Primeiramente, é mister ressaltar que inclusive essas qualidades (matérias livres) estão referenciadas com outras, nas palavras do autor: “O branco só é em oposição ao preto etc., e a coisa só é uno justamente porque se opõe às outras.” (HEGEL, pg. 101).

Aparentemente a consciência parece falar de dois objetos diferentes o primeiro deles um “puro ser” e um outro o qual se apreende a partir de referenciais externos à

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própria coisa. Contudo o que se trata, ou melhor, do que se trata é de dois momentos distintos foco da análise feita pela consciência3.

Retomando o exemplo do cristal de sal, percebe-se que a apreensão do objeto se dá novamente através da mediação, já não mais através do “aqui” ou do “agora”, mas sim do que se chamam de “matérias livres”, as qualidades propostas para descrever o cristal. No-vamente, observa-se que a construção do conceito do “isto” é referenciada e mediatizada. Nas palavras do autor:

‘“Desse modo, as coisas diversas são postas para si, e o conflito recai nelas com tal reciprocidade que cada uma é diversa não de si mesma, mas somente de outra. Ora, com isso, cada coisa se determina como sendo ela mesma algo diferente, e tem nela a distinção essencial em relação às outras; mas ao mesmo tempo não tem em si essa diferença, de modo que fosse uma oposição nela mesma. Ao contrario: é para si uma determinidade simples, a qual constitui seu caráter essencial, dis-tinguindo-a das outras.” (HEGEL, pg. 103)

Os objetos são negações de todos os outros que não eles mesmos, suprassumindo a sua essência desta negação, que é sua afirmação enquanto diferente particular:

“A coisa posta como ser-para-si, ou como negação absoluta de todo ser outro; portanto, como negação absoluta que só consigo se relaciona. Mas essa negação que se relaciona consigo é o suprassumir de si mes-ma; ou seja, é ter sua essência em um outro.” (HEGEL, pg. 104)

Até então, percorreu-se um caminho que fez transformar um ser sensível – ou isto ou puro ser – num universal, o qual por se originar da certeza sensível está por ela con-dicionado, não sendo igual a si mesmo em decorrência dos condicionamentos impostos. Lança mão a consciência, de mais dois instrumentos que visam afastá-la do objeto, rea-firmando o “isto”, quais sejam: o “também”4 e o “enquanto”5. A partir desses “sofismas” (HEGEL, pg. 105 – 106) a consciência busca assegurar sua mediação, afirmando que todo esse movimento foi ela quem realizou, e ainda assim se mantém distinta do objeto.

Chegamos então, à terra pátria da verdade para o problema que se põe em questão nesse trabalho.

A consciência ainda insiste na dicotomia sujeito e objeto, mas avança da percepção

3 “Sendo assim, é isto o que está presente para a consciência qua apreende através dessa experiência: a coisa se apresenta de um modo determinado, mas ela está, ao mesmo tempo, fora do modo como se apresenta, e refletida sobre si mesma. Quer dizer: a coisa tem nela mesma uma verdade oposta.” (HEGEL, pg. 102).4 O cristal de sal é sápido, mas é também cúbico, e branco. 5 Contudo, enquanto é sápido, não pode ser também cúbico ou branco.

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para um novo estágio, chamado no capítulo terceiro de universal incondicionado, que é aquele que se relaciona com os outros, expandindo o seu ser dentre as diversas matérias livres, e paradoxalmente se contrai de volta num uno, particular. Aqui para a consciência não é mais possível admitir que as mediações são fruto de sua tentativa, até então frustrada de apreender a coisa, resta somente admitir que as mediações estão na coisa. Se imaginado um objeto complexo, como um corpo em queda, não é inteligível o movimento se anali-sadas as diversas características em separado. Qualquer “congelamento” do movimento fará desaparecer características indispensáveis a uma queda, como velocidade, aceleração, direção, dentre outras intrínsecas à coisa em questão.

Para o “nós” fica claro que os movimentos descritos até então e agora admitida-mente realizados pelo próprio objeto, são os mesmos que outrora fez – e faz ainda agora – a consciência na sua tentativa de apreendê-lo. Contudo, opõe-se, à primeira vista, a anunciada suprassunção da consciência (sujeito) como sendo ela mesma objeto, que os movimentos feitos pela coisa (que para o “nós” já é, também, consciência) concernem exclusivamente à forma do processo de sua apreensão, porém se é através desses movi-mentos que se chega ao conteúdo do universal incondicionado, são eles parte da coisa, sendo também a forma conteúdo da consciência.

É importante ressaltar que se forma e conteúdo são aqui o mesmo momento, em algum outro já foram diferentes, uma vez que para se igualar duas coisas elas são antes desiguais, caso não fossem uma delas sequer existiria vez que o conceito sempre foi inequívoco6.

3 Lei orçamentária anual

As matérias de Direito Financeiro estão ligadas à Constituição Federal de 1988, na qual se encontram dispositivos tratando não só da Lei Orçamentária Anual, mas tam-bém, do Plano Plurianual7 (PPA) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias8. Estes diplomas normativos previstos no art. 165 do texto constitucional buscam se compatibilizar com aquilo que Torres (2008) chama de princípio do planejamento, de modo que os planos globais da sociedade (econômicos, sociais, culturais, etc.) sejam atingidos. Segundo o já mencionado artigo, a LOA deve respeitar os parâmetros estabelecidos na lei de diretri-zes, a qual deve prestar concordância com o Plano Plurianual.

6 Ao se enunciar A=B, pressupõe-se que A e B não são antes da operação iguais; caso fosse A ou B não faria sentido como outro a ser igualado, pois de pronto se teriam como o mesmo.7 Será instituído por lei, nos termos do §1ª do art. 165 da Constituição, cujo objetivo é estabelecer um programa de metas governamentais a longo prazo, norteando a promoção do desenvolvimento econômico, realizando-o de forma equilibrada.8 É um lei que “compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital, para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento” (§2º do art. 165 da Constituição de 1988).

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Nestes termos, a LOA compreende o orçamento fiscal, o de investimentos das empresas estatais e o da seguridade social, definidos também no texto constitucional (art. 165, §5º da CF/88) como: i. “o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direita e indireta, inclusive fundações insti-tuídas e mantidas pelo Poder Público”; ii. “o orçamento de investimento das empresas em que a União, direita ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto”; iii. “o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direita ou indireta, bom como os fundos de fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público”.

O texto da Carta Magna, ademais, estabelece uma série de proibições como a proi-bição do chamado orçamento rabilongo e a compatibilização da LOA com o PPA, nos §8º e §7º, respectivamente, do mesmo artigo. Além de outras vedações e nuances do regime jurídico aplicável à LOA presentes no art. 167 da Lei Maior.

A doutrina, por sua vez, há muito controverte sobre qual é a natureza jurídica da Lei Orçamentária Anual. Discussão que é de suma importância, pois a partir da delimitação correta de qual é a natureza jurídica de um determinado instituto, qualquer que seja ele, pode-se proceder a uma análise mais precisa do conteúdo de seu regime jurídico, aprimo-rando-se, por exemplo, métodos hermenêuticos a ele aplicáveis, de modo a maximizar sua eficácia. Tem-se, pois, para a LOA, que se pretende, conforme já dito, um meio de planejar e promover o desenvolvimento do país, em todos os aspectos, especial importância, já que seria otimizada, mediante a melhor delimitação da sua natureza jurídica, a consecução de seus objetivos.

4 Lei formal e lei material

Dentre outras classificações, divide-se a doutrina, especialmente, entre a delimita-ção da natureza jurídica da lei orçamentária anual, como sendo lei formal e lei material.

Há quem entenda se tratar de lei formal9 como Louis Trotabas, que segundo Regis Fernandes do Oliveira (2010) designava o orçamento como lei de meios, qualificando-o como:

“mero instrumento de arrecadação, mesmo porque não diz respeito aos objetivos maiores do Estado. É simples procedimento arreca-datório para que o Estado cumpra suas funções. Cuidar-se-ia de ato administrativo. Formalmente, não há distinção das demais leis. É ele aprovado pela mesma forma dos demais projetos (arts. 59 a 69 da

9 Neste sentido já decidiu, inclusive o Supremo Tribunal Federal na ADI 2100, relatada pelo Min. Néri da Silveira, cuja ementa é: “Constitucional. Lei de Diretrizes Orçamentárias. Vinculação de Percentuais a Programas. Previsão de Inclu-são obrigatória de investimentos não executados do orçamento anterior no novo. Efeitos concretos. Não se conhece de ação quanto à lei, desta natureza, salvo quando estabelecer norma geral e abstrata. Ação não conhecida.”

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CF), ainda que possa ter, em seu conteúdo, atos específicos. Formal-mente, é lei.” (OLIVEIRA, pg.347)

De outro modo, como relata Ricardo Lobo Torres (2008), as palavras mais eluci-dativas de Laband10 (1901)

“Nem a Constituição do Império, nem a Constituição prussiana con-têm indicação sobre os efeitos jurídicos do orçamento legalmente es-tabelecido. Esses efeitos devem ser deduzidos cientificamente da na-tureza jurídica do orçamento. Assim aparecem as conseqüências do princípio segundo o qual o orçamento, embora estabelecido por uma lei, do ponto de vista formal, não é uma lei, mas um plano de festão. O orçamento não contém nenhuma regra jurídica, nenhuma ordem, nenhuma proibição.” (LABAND, pg.289)

Por outro lado, há quem acredite ter o orçamento natureza material, criadora de direitos e inovadora da ordem jurídica. Destaca-se neste meio o jurista espanhol Saiz de Bujanda (1988), o qual considera o orçamento como “lei em sentido pleno, de conteúdo normativo, ou como tendo “eficácia material constitutiva e inovadora”, apresentando, também, todas as características de uma lei, quais sejam: “a impossibilidade de que suas normas sejam derrogadas ou modificadas por simples regulamentos e a possibilidade de modificar e até derrogar as normas precedentes de hierarquia igual ou inferior” (BUJAN-DA, pg. 453).

5 O problema de um sistema estático de normas

Seria no mínimo contraditório que após a adoção de um método que diz que a verdade se encontra através de um processo se pretendesse estatizar o conceito de uma lei, seja ela orçamentária ou não, dentro da classificação entre lei formal e material.

Contudo, como lembra Tercio Sampaio Ferraz Junior (2011), o método tópico11 de pensamento do jurista é um instrumento didático valioso, uma vez que “a profusão de normas não permite sua organização teórica na forma de uma definição genérica que se especifica lógica e rigorosamente em seus tipos” (FERRAZ Jr., pq.104). Não se pretende aqui analisar a problemática da criação, emissão, revogação de normas, outrossim, leva-se em conta a estrutura ou a matéria a ser normatizada.

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10 Laband foi quem desenvolveu inicialmente, na Alemanha, a teoria do orçamento como lei formal.11 Este método é caracterizado, nas palavras do ilustre professor Ferraz Jr. (2011) “por conceber um problema, procurar para ele um critério orientado (o lugar-comum) e proceder distinções e classificações provisórias, pois se multiplicam e exigem novas distinções e classificações, à medida que novos problemas são percebidos” (FERRAZ Jr. Pg. 104).

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Tratar-se-á, pois, a questão sobre um ponto de vista que é estático. No entanto, este padrão imóvel adotado permite que se vislumbre dentro da classificação anteriormente exposta (lei formal e lei material) um processo, um movimento, algo que é eminentemente dinâmico.

6 A suprassunção do orçamento como universal incondicionado

Doutrina majoritária entende ser o orçamento lei formal, “simples autorização do Parlamento para a prática de atos de natureza administrativa” (TORRES, pg. 95), enten-dimento este corroborado inclusive pelo Supremo Tribunal Federal. Minoritariamente se aceita que seja lei material inovadora e instrumento para a concretização de políticas e serviços públicos, criando para os beneficiários direito subjetivo.

Primeiramente, há uma contradição entre se admitir o caráter de lei formal à LOA, e a obrigação por parte da União de, por exemplo, pagar seus funcionários, uma vez que esta obrigação é despesa pública12, que deve ser inscrita no orçamento anual, e não pode deixar de ser adimplida tendo em vista que a remuneração dos funcionários públicos é sim direito subjetivo dos mesmos, os quais ao exercerem emprego ou cargo que lhes compe-tem, devem receber seu provento. Caso realmente o orçamento fosse lei formal, poderia, inclusive, a União deixar de pagar seus funcionários ou demiti-los13, caso não entendesse viável a manutenção dos mesmos nos quadros do serviço público. Sob esse prisma, por-tanto, não se pode admitir um caráter formal ao orçamento, se tratando, na mais constru-tiva das hipóteses, de uma lei de caráter sui generis, parte formal parte material.

Num segundo momento, se analisada a positivação de gastos e receitas da União o que se pretende é que tais despesas venham a ser realizadas com o que for auferido atra-vés da arrecadação, de modo a criar expectativas de direito aos possíveis beneficiários das obras e serviços a serem realizados no exercício fiscal abarcado por determinada LOA. Não é de se crer que os gastos inscritos no orçamento não devessem possivelmente ser realizados, já que deliberadamente não é crível que ao se incluir determinada despesa no orçamento, se imagina de pronto que jamais se a executará. O que pode de fato ocorrer é que acontecimentos posteriores inviabilizem o empenho de determinada verba inscrita na LOA, de modo que não haja recursos para sua realização.

Negar que aquele crédito inscrito na LOA terá, a princípio, liberados os recursos condizentes é estranho à natureza de qualquer lei, que tem em sua essência ao menos uma

12 Regis Fernandes de Oliveira (2010) transcreve dois verbetes do grande mestre tributarista Aliomar Baleeiro para expressar um conceito de despesa pública, quais sejam: “conjunto dos dispêndios do Estado, ou de outra pessoa de direito público, para o funcionamento dos serviços públicos”, ou ainda, “aplicação de certa quantia, em dinheiro, ,por parte da autoridade ou agente público competente, dentro duma autorização legislativa, para execução de fim a cargo do governo”.13 Importa lembrar que cumprido o período de estágio probatório o funcionário tem direito à efetivação, não podendo ser demitido, salvo as hipóteses expressamente previstas em lei.

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pretensão de efetividade14. O que se nega, desta forma, é que uma vez inscrito o crédito este gere para o poder público uma obrigação na sua execução, não sendo, no entanto, discricionária a decisão de lançar mão ou não do credito, ou mesmo remanejar recursos dentro da LOA.

Afirmar a posição de plena discricionariedade do agente público implica perma-necer na certeza sensível, e afirmar a LOA como “puro ser”, no qual as mediações per-maneceriam no âmbito do aplicador, o qual pode circunstanciar sua aplicação do modo como lhe parecer conveniente e oportuno. Mostra-se necessária a revelação do orçamento como universal incondicionado, lei que a despeito de buscar subsídios em outras leis e atos normativos, como: Constituição Federal, leis sobre o processo legislativo e leis e dis-positivos sobre o sistema financeiro; referencia-se neles, mas volta a si e se mantém una, coesa, imperativa e cogente.

Uma lei, qualquer que seja, não é “puro ser”, ela mesma já intrinsecamente contém as suas mediações. O legislador ao positivá-la previamente discutiu e decidiu em que me-dida determinada conduta é obrigatória, proibida ou permitida, cabe ao aplicador unica-mente apreender o objeto em questão e realizá-lo.

Desta forma, se trata aqui de claro equívoco a respeito do caráter discricionário da LOA, a qual deve ser, em sua melhor luz, compreendida como lei material, vinculante.

7 Conclusão

Ao longo deste trabalho15, buscou-se demonstrar a contradição entre o entendi-mento majoritário tanto jurisprudencial quanto doutrinário de se tratar a Lei Orçamen-tária Anual como lei de natureza jurídica formal. Restou demonstrado, – a despeito da contradição entre os mandamentos extraídos do ordenamento jurídico e o entendimen-to doutrinário de jurisprudencial majoritário – conforme explicitado pelo marco teórico adotado, enxergar a LOA como lei formal é permanecer num momento superável de certeza sensível, em que o “puro ser” é mediado pelo aplicador.

Mais coerente seria admitir a LOA como de natureza material, como lei em que já foram realizadas as mediações necessárias, não sendo possível grande espaço para tomada de decisões discricionárias. As quais estariam limitadas a mudanças no substrato fático, como queda brusca na arrecadação, sendo, somente nesses casos, admissível remaneja-mento de recursos por meio de emendas à lei vigente.

14 Inimaginável parece ser a positivação de uma lei que se pretenda letra morta, ou que jamais terá aplicabilidade. Além de clara violação do caráter imperativo das normas jurídicas. 15 Trabalho, este, no qual presto meus agradecimentos ao ilustre Prof. Dr. Pedro Rocha, pessoa de notável saber e de grande coração.

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Referências Bibliográficas

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ADI 2100, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 01.06.2001. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=375330. Acesso em: 19 de junho de 2011.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. “Fenomenologia do Espírito”, 5ª ed.. Petrópolis. Vozes. 2002.

FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 6ª ed. São Paulo. Atlas, 2011.

LABAND, Paul. Le Droit public de l’empire allemand. V. Giard & E. Brière. Paris, 1901.

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A prudência e o abismo jurídico hermenêutico-gnosiológico

Waldir Araújo Carvalho 1

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Realiza pesquisa na área de Filosofia do Di-reito pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq/UFOP). Pesquisador-extensionista do Programa de Extensão Núcleo de Direitos Humanos (NDH)-UFOP.

Resumo:

O presente artigo discute a relação entre aplicação da norma jurídica e interpretação da norma jurídica, através de um estudo crítico do positivismo jurídico e do conceito clássico de “prudência” aplicado ao direito.

Palavras-chave: Abismo jurídico hermenêutico-gnosiológico; Interpretação; Aplicação; Prudência

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Abstract:

The present article discusses the relationship between law enforcement and interpretation of law, through by a critical study of the legal positivism and the classical concept of “prudence” applied to Right.

Keywords: Precipice-legal hermeneutical-gnosiologic; Interpretation; Application; Pru-dence.

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1 Introdução

O artigo a seguir terá o seguinte roteiro: (a) primeiramente será feita uma sintéti-ca contextualização e ilustração histórica acerca das ficções e dos mitos construídos na história da filosofia do direito sobre a aplicação das normas jurídicas; em seguida (b) a expressão que intitula esse artigo (abismo hermenêutico-gnosiológico) será desenvolvida pelo autor e relacionada com questões próprias da hermenêutica e da jusfilosofia; e antes das devidas conclusões (c) outro termo que aparece no título será estudado, trata-se da “prudência” – que é de importância elementar na tese defendida pelo autor.

É fundamental, nessa nota introdutória, tornar-se consciente da importância histó-rica do direito natural clássico, das obras clássica que vão de Aristóteles a Santo Tomás de Aquino (apesar do artigo não aprofundar minuciosamente na obra dos autores). O objetivo basilar desse trabalho desenvolvido é construir uma crítica fundamentada acerca do desafio jurídico ontológico-hermenêutico de se aplicar-interpretar as regras, ou seja, o desafio da concretização das normas de direito e todas as implicações que advém desse desafio.

2 Desmistificando a aplicação-interpretação do Direito: o mito do fundacionalis-mo intelectualista e as ficções juspositivistas

Noberto Bobbio (1995, p.67) narra um momento que ilustra bem o contexto jurídi-co-iluminista do século XVIII: Siéyès dizia que quando a codificação começasse a vigorar, o procedimento judiciário não passaria de mero “juízo de fato”, seria dispensada a inter-pretação e as leis seriam aplicadas mecanicamente pelo juiz. Beccaria no seu clássico Dos delitos e das Penas tinha influências da mesma concepção: “Os juízes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela razão mesma de que não são legisladores (...) o juiz deve fazer um silogismo perfeito, (...) com leis penais executadas à letra [...] Quanto mais pronta for a aplicação da pena e mais perto seguir o direito, tanto mais justa e útil ela será” (2011, p.29-30, p.73).

O fundacionalismo intelectualista é justamente essa pretensão de um procedimento ju-diciário de mero processo lógico-dedutivo – dispensando assim a necessidade de se interpretar as leis. Um verdadeiro “behaviorismo jurídico-legislativo”: a lei estimula e o juiz apenas reage, aplicando mecanicamente as normas. Os juristas do século XVIII acreditavam que bastaria assegurar que fossem verificados os fatos previstos pela lei, visto que o direito se tornaria tão claro que a quaestio juris (a determinação da norma jurídica a ser aplicada no caso em exame) não apresentaria qualquer dificuldade. Imaginavam que com a codificação, as leis, além de re-gular a conduta do cidadão, seriam capaz de regular a sua própria aplicação.

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Entretanto, o fato é que esse processo é uma ficção, nunca será alcançado. Por mais bem descritas e por mais situações prescritas possíveis nas leis, mesmo assim, a inter-pretação nunca poderá ser dispensada, pois é a interpretação do direito que permite que esse seja aplicado. Como bem nota Gadamer (2010), interpretação e aplicação do direito é um processo sobreposto2 - existe uma impossibilidade jurídico-ontológica de separar a aplicação da interpretação.

Abrindo um parêntese, é interessante anotar que a mentalidade do homem comum vê o direito como uma “gramática”: as leis são como regras gramaticais que dizem o “cer-to” e o “errado”, o que “pode” e o que “não pode” – ou seja, vêem o direito como um conjunto de regras instituídas. Sobretudo, como um conjunto de regras instituídas que são capazes de responder a todas as questões jurídicas, como se existisse “uma lei” especifica para cada situação especifica – típica concepção que se herdou das ficções do positivismo jurídico clássico. Na crítica a esse senso comum jurídico, Michel Villey afirma que o direi-to não é extraído das regras, pelo contrário, as regras é que devem ser extraídas do direito3. Logo, regras e direito não são sinônimos, o direito é algo mais do que as leis, os códigos e os sistema de regras (estes são parte do direito) – entretanto, vamos nos restringir a essa anotação relevante, pois a discussão sobre a definição de direito além de exaustiva, não é a nossa pretensão.

Retomando então essa impossibilidade jurídico-ontológica de separar a aplicação da interpretação, um sistema de regras é incapaz de prever todas as situações contingentes e de controlar normativamente sua própria aplicação/interpretação - ao contrário do que pensa Dworkin (2002, p. 40), ao afirmar que: “pelo menos em teoria, todas as exceções podem ser arroladas e quanto mais o forem, mais completo será o enunciado da regra”. Entretanto, é impossível o texto legal prever a priori toda uma infinidade de situações e conflitos jurídicos e ele é incapaz de prescrever no seu próprio corpo de normas, em to-dos os casos, como “se deve interpretar” ou como “se deve aplicar” determinada lei (por mais “intelectuais” que essas leis sejam).

Essa incapacidade de auto-aplicação legislativa pode ser explicada de um lado pelas questões histórico-culturais (que mudam contextos, alteram o pano de fundo) e de outro pelo próprio pluralismo semântico das palavras (os significados são mutáveis, o vocabulá-rio num contexto é reinterpretado noutro contexto), e também pelas lacunas, que sempre existirão em todo ordenamento jurídico. É dedutível então que não existe uma “interpre-tação certa” e previamente certa na aplicação da norma em um determinado momento de decisão (julgamento). Como bem destaca Grau (2002. p. 39):

2 Ver GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. São Paulo: Editora Vozes, 2010.3 Ver VILLEY, Michel. Filosofia do Direito: definições e fins do direito, os meios do direito. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008

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Nego peremptoriamente a existência de uma única resposta correta (verdadeira, portanto) para o caso jurídico – ainda que o interprete es-teja, através dos princípios, vinculado pelo sistema jurídico. Nem mes-mo o juiz Hercules [Dworkin] estará em condições de encontrar para cada caso uma resposta verdadeira, pois aquela que seria a única res-posta correta simplesmente não existe. (...) inexistindo, portanto, uma interpretação objetivamente verdadeira [Zagrebelsky].

É nesse sentindo, que nas palavras de Oliveira (2009, p. 22-23):

Não existe um ‘pé de letra’ da regra, bem como não existe uma correta compreensão do contrato que possa ser extraído do contrato mesmo, uma vez que a maneira correta de seguir uma regra não pode ser extra-ída da regra mesma. O que existe são interpretações que se sustentam sobre panos de fundo, às vezes inarticulados, mas sempre presentes.

Não existe interpretação “simples” de “mera aplicação”, toda lei demanda um mo-vimento de inteligência, de raciocínio vinculado a realidade, sustentado por um pano de fundo, para poder ser aplicada (interpretada). Na mesma concepção de panos de fundo, nos adverte Taylor (2000, p.183):

Compreendemos sempre contra panos de fundo daquilo que é tido por certo, em que simplesmente nos apoiamos. Sempre pode aparecer alguém que não disponha desse pano de fundo, razão porque a mais simples coisa pode ser entendida erroneamente.

Não existe, evidentemente, nenhuma “essência normativa”, não existe uma verdade dentro da norma que permaneça inalterável em todos os contextos – a idéia de essência da norma (vulgo, a “intenção do legislador”) não passa de mais uma ficção, que no fundo é apenas a tentativa frustrada de se construir uma “metafísica juspositivista”. Pois as regras são finitas, as exceções infinitas – há casos em que simplesmente o legislador não tinha nenhuma intenção, pois simplesmente tais fatos nunca haviam sido imaginados por ele.

3 O abismo hermenêutico-gnosiológico na interpretação-aplicação da norma ju-rídica

Partindo dessa compreensão, existe entre a regra e sua aplicação-interpretação um obstáculo ontológico vinculado a própria essência das normas, esse obstáculo consiste em um “abismo”, que não consegue ser ultrapassado por nenhuma inteligência apriorís-

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tica, que sempre existirá e que as leis (ou o legislador) não são capazes de transpor por si mesmas – abismo que não apenas tem relação com a semântica jurídica, mas que também está intrínseco, subentendido no mundo das realidades existentes. Abismo que recebe, em geral, a nomenclatura de hermenêutico-gnosiológico (para alguns, apenas hermenêutico, ou hermenêutico-ontológico).

O abismo hermenêutico-gnosiológico consiste na elementar dificuldade de se “jul-gar a norma” - que está intimamente ligada a problemas próprios da interpretação do texto legal para sua aplicabilidade (hermenêutica jurídica) e do próprio sujeito cognos-cente e a validade do seu conhecimento (gnosiologia). O sujeito não é capaz de prever intelectualmente todas as variações normativas em termos de caso concreto (exceções) e em termos hermenêuticos (não é capaz de escrever um texto com uma única possibilidade de entendimento). Em resumo, o abismo hermenêutico-gnosiológico é a impossibilidade de se desvincular a interpretação do direito da aplicação do direito.

Atente-se para o fato de que interpretar o direito não é uma atividade descritiva de mera compreensão do “significado” das normas jurídicas. Quando se fala em interpretar o direito não se trata de “traduzir” a linguagem jurídica ou de “entender” o que está “es-crito na lei”4, muito menos é uma atividade declaratória de “dizer o que a lei diz”. Para além disso, interpretamos para aplicar o direito no caso histórico-concreto. Interpretação jurídica é aplicação do direito. E também ao aplicarmos o direito, interpretamos a realida-de, fazemos uma “leitura da realidade” - interpretar o direito implica em compreender a situação, compreender o caso jurídico. Mas sempre existirá um grau de relatividade nessa interpretação da realidade, inerente a própria concretização do direito. Logo, a interpreta-ção do direito tem um caráter constitutivo ou construtivo, se constrói durante a aplicação. Como inexistem soluções jurídicas previamente estruturadas, essa é a função da interpre-tação, que será especifica para cada situação especifica – cada aplicação.

É interessante analisar um elemento componente da nossa jurisprudência, as cha-madas súmulas vinculantes. As súmulas trazem em si a pretensão de dizer antecipadamen-te como se deve interpretar determinada situação-problema do direito, visando buscar uma uniformização jurisprudencial (que na prática é impossível). Na crítica de Streck (2010, p. 71):

[a súmula vinculante] trata-se da construção de enunciados assertórios que pretendem abarcar, de antemão, todas as possíveis hipóteses de aplicação. São respostas a priori, “oferecidas” antes das perguntas (que somente ocorrem nos casos concretos). (...) No fundo trata-se de um “sonho” de que a interpretação do direito seja isomórfica.

4 Essa concepção é típica da Escola da Exegese (séc. XIX), que identificava o direito com o código.

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O fato é que se pode criar infinitas súmulas de como se deve interpretar determina-do situação-problema do direito, mesmo assim, elas nunca serão suficientes para prescre-ver todas as, mais infinitas ainda, possibilidades do contingente.

Interessante também é analisar as características do direito romano, por exemplo: na jurisprudência romana a hermenêutica e a prática jurídica se desenvolveram mutua-mente. Pretores e jurisconsultores diziam o direito para cada situação jurídica concreta-mente analisada – existia ali um vinculo indissociável entre aplicar e interpretar. Porém, a prática jurisprudencial romana, de dizer o direito a posteriori no caso presente (concreto-definido), foi distorcida pela mentalidade de “segurança jurídica” do juspositivismo, para a qual era necessário que já estivessem prescritas em lei as “respostas jurídicas certas”. Como se existisse a resposta certa e previamente certa. Os juspositivistas pregavam que era necessário haver um “princípio da certeza” no direito, isso implica que já deveríamos saber, antes mesmo da interpretação/aplicação, qual seria (aproximadamente) a solução no julgamento de determinado fato – ignoravam a impossibilidade hermenêutico-gnosio-lógica de tal procedimento.

Aprofundando mais a extensão do nosso estudo, é possível se extrair uma crítica basilar a pretensão positivista do direito de se “eliminar” ou mitigar a relação aplicação-interpretação da norma jurídica, a partir de uma leitura atenta da clássica obra Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. De acordo com o mestre de Viena:

A idéia, subjacente á teoria tradicional da interpretação, de que a deter-minação do ato jurídico a pôr, não realizada pela norma jurídica apli-canda, poderia ser obtida através de qualquer espécie de conhecimento do Direito preexistente é uma auto-ilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de uma interpretação. (KELSEN; 1998, p.392-393).

Kelsen (1999, p. 248) vai ainda além, segundo ele:

Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de Direito positivo - segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como “corre-ta” - desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica.

Ainda dentro da jusfilosofia kelseniana, a aplicação do direito, enquanto ato cog-nitivo é também produto de um ato volitivo (ato de vontade), para ele a interpretação autêntica (realizada pelo órgão competente) cria o direito, isso também implica que a

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interpretação pode ir além da “moldura” da norma. No último capitulo da Teoria Pura do Direito, Kelsen (1998) escreve:

De resto, uma interpretação estritamente científica de uma lei que, ba-seada na análise crítica, revele todas as significações possíveis, mesmo aquelas que são politicamente indesejáveis, pode ter um efeito prático que supere de longe a vantagem política da ficção do sentido único: É que uma tal interpretação científica pode mostrar à autoridade legisla-dora quão longe está a sua obra de satisfazer à exigência técnico-jurídi-ca de uma formulação de normas jurídicas o mais possível inequívocas ou, pelo menos, de uma formulação feita por maneira tal que a inevitá-vel pluralidade de significações seja reduzida a um mínimo e, assim, se obtenha o maior grau possível de segurança jurídica (p. 396-397).

Isso implica em dizer que criar leis inequívocas, com sentido único, pré-interpre-tadas e auto-aplicadas é uma ficção legislativa. O que temos é uma relativa (in) segurança jurídica. Logo, a pré-limitação perfeita de todos os sentidos de uma norma é inalcançável e a univocidade de significados que produziriam o maior grau possível de segurança jurí-dica é uma ficção. Nesse ponto da teoria jusfilósofica kelseniana, Oliveira (2009, p.26) é incisivo:

Mas, ao fim do resultado de seu trabalho, o que resta é uma moldura que não se fecha. O que resta é um direito que não se aplica senão por meio de uma vontade que nem o direito nem a ciência são capazes de controlar. O que resta é uma relativa indeterminação do ato de aplica-ção do direito, que é a maneira kelseniana de dizer que o que resta é incerteza, é o poder, é o olhar esbugalhado da Górgona.

O “olhar esbugalhado da Górgona”5 kelseniano, ao qual Oliveira faz referência, é uma metáfora do nosso abismo jurídico hermenêutico-gnosiológico: diante o desafio da aplicação-interpretação normativa o que nos resta é um precipício, que não se pode enxergar o fundo (incerto e inseguro), e que não pode ser ultrapassado por nenhum co-nhecimento jurídico-metodológico positivo preexistente.

5 Essa metáfora aparece no prefácio do livro de Hans Kelsen “O problema da justiça” (referência recomendada: KEL-SEN, Hans. O problema da justiça. 3 ed. Tradução João Baptista Machado, São Paulo: Martins Fontes, 1998).

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4 A Prudência do Direito Natural Clássico

Mas isso não implica que os juristas estejam diante um fato inexorável, sem solução ou alternativa. Implica apenas que o silogismo jurídico-platônico, de se deduzir todas as “respostas jurídicas” dos casos em espécie a partir de um sistema “metafísico-transcen-dental” de regras, não é possível.

Na contramão dessa herança jurídica da filosofia platônica-positivista (e para ilus-trar o porque dessa expressão), Pierre Aubenque, em um trecho, nos lembra de um sábio ensinamento da filosofia aristotélica – a impossibilidade de se deduzir, no mundo real, o particular do universal:

Enquanto Platão não parece ter posto em dúvida que um sabe suficien-temente transcendente poderia abranger a totalidade dos casos particu-lares, Aristóteles nunca espera poder deduzir o particular do universal: a falta, nos diz ele, não está na lei nem no legislador, mas na natureza da coisa, [...]. Onde Platão via uma fraqueza psicológica devido à ignorân-cia dos homens, Aristóteles reconhece, como faz habitualmente, um obstáculo ontológico, um hiato que afeta a própria realidade e que ne-nhuma ciência poderá superar. A aplicação das regras é antes de tudo uma questão de prudência (phronesis) (AUBENQUE, 2003, p. 75)

Esse “hiato aristotélico” que Aubenque cita, é o que Charles Taylor intitula de “hia-to fronético”6. Esse hiato ontológico, nada mais é do que o abismo jurídico hermenêuti-co-gnosiológico. E Taylor o chama de “fronético” justamente para fazer referência a um conceito do direito natural clássico, o conceito de “prudência” – e é no conceito de pru-dência, diga-se, na interpretação/aplicação prudente, que o Direito encontra a ferramenta necessária para concretizar as normas jurídicas (e, por que não, concretizar a justiça).

Leia-se prudência no seu significado clássico (aristotélico-tomista), pois existe uma grande ignorância em torno da concepção do léxico “prudência”7, que na menta-lidade do homem comum significa “cautela”, indecisão (o homem prudente é aquele que fica”em cima do muro”). Essa ignorância também afeta o entendimento dos juristas sobre o “direito natural” – que por ser uma expressão que abarca diversos momentos

6 “Fronético” da palavra grega phronesis: prudência, sabedoria prática.7 MacIntyre afirma que houve uma “perca de contextos” do debate moral na passagem para a idade moderna, uma “ruptura aristotélica”, segundo ele: “Na transição da diversidade de contextos dos quais se originaram até nossa cul-tura contemporânea, ‘virtude’, ‘justiça’, ‘piedade’, ‘obrigação’ e até ‘dever’ tornaram-se diferentes do que eram. (...) ao presumir que a linguagem da moralidade passou de um estado de ordem para um estado de desordem, essa passagem certamente refletirá justamente nessa mudança de significado. (...) isso tem sido o tratamento anti-histórico persistente que os filósofos contemporâneos vêm aplicando á filosofia moral, tanto ao escrever sobre o assunto quanto ao ensiná-lo (...) tratando Platão, Hume e Mill como contemporâneos nossos e uns dos outros. Isso leva a abstrair esses filósofos do meio social e cultural no qual viveram e pensaram.” (MACINTYRE; 2001, p. 28-29)

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históricos acaba criando vários significado mal-compreendidos. Como bem nota Villey (2005, p.54):

Realista e nem um pouco idealista, [Aristóteles] pratica um método de observação: à maneira de um botânico, colhe as experiências dos impérios e das polis de seu tempo. Prenuncia o direito comparado e a sociologia do direito. O direito natural é um método experimental.

Javier Hervada, por sua vez, sustenta que a teoria de direito natural aristotélico-tomista “enquadra-se no realismo jurídico clássico, pois se refere às coisas naturalmente adequadas ao homem (...) o direito natural é o justo ou adequado à natureza humana pela natureza das coisas” (2008; p.347).

Ao contrário dos estereótipos e das idéias de obscurismo e dogmatismo (e de dis-cricionariedade, do ponto de vista jurídico) normalmente atribuídos ao Direito Natural, na prática ele opera com base em conceitos concretos, decorrente da realidade observada, caracteriza-se pela práxis e não pelo mito da razão especulativa (nada é deduzido a priori) – o direito natural não se caracteriza por abstrações e idealismos; essas características são típicas da concepção moderna de direito natural (jusnaturalismo/jusracionalismo) e das escolas kantianas. O direito natural clássico lida com questões contingentes e com ações que se aplicam a contextos particulares, concretos. Quando fala em justiça, não faz refe-rência a idéias vagas ou idealistas, justiça não é algo a ser buscado, distante, utópica – a justiça não é onírica. O justo é uma coisa concreta e determinada – vale anotar que na concepção aristotélica, prudência e justiça estão intimamente articuladas.

Partindo dessa tomada de consciência, dentro do direito natural clássico, em Tomás de Aquino a prudentia é a arte de decidir-se corretamente com base na realidade, é um conhecimento não-acadêmico, um saber contigente da vida diária, que pode ser praticado inclusive por analfabetos8. Por isso, a interpretação-aplicação das normas, antes de ser uma ciência é uma prudência – pois ela é a inteligência do concreto que não decide por base em conceitos abstratos mas sobre casos concretos. É partindo desse marco-teórico que o professor Jean Lauand faz a seguinte advertência:

Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar a realidade (ou seja, renúncia à prudentia) é trocar essa fina sensibilidade de discernir o que, naquela situação concreta, a realidade exige por critérios operacio-nais rígidos, como um ‘Manual do Escoteiro Ético’ ou, no campo do direito, num estreito legalismo à margem da verdadeira justiça9.

8 Ver AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução de Aldo Vanuchi et al. São Paulo: Loyola, 20039 LAUAND, L. J. Prudentia, virtude intelectual: “lições de vida”. Notandum, n 12. Disponível em: < http://www.hottopos.com/notand12/jean.htm > Acesso em 22 de mar. 2011.

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Renunciar a enfrentar a realidade, é ignorar o desafio jurídico-ontológico de se apli-car-interpretar a norma, é criar discursos jurídicos atolados em paroxismos legalistas e proselitismos – discurso que simula um direito justo com uma excessiva produção de leis (supostamente) “justas”. E por mais atormentador, por mais insegurança que isso pareça proporcionar, o fato é que a única justiça que existe é a justiça da decisão realizada pelo homem, pelo intérprete-aplicador do direito.

Haja vista a observação de Aubenque (2003; p.73-74): “Na Ética a Nicomaquéia, o julgamento ético não será mais comparado ao saber do geômetra mas ao engenho do carpinteiro, e a exatidão matemática lhe será expressamente recusada em proveito da aproximação, sem dúvida escandalosa para um platônico, com a retórica”. A ciência do direito não é uma ciência matemática, e sim uma ciência retórica, prudente, quase-artísti-ca. Direito é mais interpretação do que qualquer outra coisa possível.

Nessa perspectiva, quando tratamos de aplicar-interpretar o direito, quando estamos a tratar das nossas rotinas jurídicas, tem-se a óbvia constatação de Villey (2005, p. 63):

Portanto, o juiz estará autorizado a tomar, por vezes, liberdades em relação ao texto de lei; a adaptá-lo às circunstâncias, a levar em conta condições próprias a cada causa particular, por exemplo, em matéria penal, a idade do acusado, sua situação social, seu passado, suas in-tenções, etc. A equidade é, portanto, comparável ao metro que se usa em Lebos, régua de chumbo flexível, que se casa com as formas do objeto.

Tome-se equidade, simplificadamente, como a interpretação justa da norma em um determinado julgamento. Vê-se assim, na metáfora da régua de Lebos, que o direito tem que ser mais mudança do que permanência, mais adaptação do que consistência – e é justamente a interpretação/aplicação prudente que permite que o direito seja mutante e adaptador, pois a prudência é a inteligência prática e a lei é a inteligência “legalista-trans-cendental” (fictícia). A prudência é, sobretudo, uma disposição prática que concerne a regra de escolha, ou mesmo, aprodundando no discurso, “a prudência é nomotética, ou dicástica – legisladora e judiciária; é por isso que os romanos falarão da jurisprudência” (VILLEY; 2005, p.59).

Isso não implica que os textos legais não tenham nenhuma importância, ou ne-nhum significado, mas sim que os textos legais tem função acessória, que são imperfeitos e inconclusos por sua própria natureza – apenas a interpretação prudente, que é aquela que atua empiricamente sobre o núcleo semântico das regras, é capaz de “completar” as normas na sua aplicação concreta.

O intérprete/aplicador do direito prudente é aquele que se vê diante o abismo hermenêutico-gnosiológico e não cria “pontes fictícias”, não engana a realidade, não dis-

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simula construindo métodos jurídico-burocráticos. O intérprete do direito prudente tem plena consciência da existência desse abismo, ele também tem consciência das suas limita-ções – o prudente não é nenhum Hércules dworkiniano confiante e infalível (o prudente não é um semi-deus), muito menos um Rei-Filósofo platônico de sabedoria infinita e que tudo conhece. O prudente é apenas o interprete que enfrenta a realidade com sapiência e discernimento, que aprende e ensina com a experiência concreta do direito. O prudente é aquele que sabe trabalhar com a inexistência de respostas pré-moldadas, que mesmo sem critérios pré-definidos e consciente da insuficiência desses mesmos critérios tem o conhe-cimento necessário para atuar no caso-concreto.

5 Conclusões transitórias

A indeterminação da aplicação-interpretação da norma, não é um problema apenas da filosofia do direito, ou um problema de ordem prática – mas é um problema ontoló-gico do próprio Direito em si. Não existe uma conclusão absoluta para uma correta apli-cação da norma jurídica, pois aquela que é a correta forma de aplicar (a forma prudente) não pressupõe um “manual”, não vem pronta antes mesmo do caso a ser aplicado. A interpretação-aplicação prudente do direito é construída no momento da própria inter-pretação-aplicação.

Nesse sentido, devemos pensar as normas em função de situações específicas, pen-sá-las a partir dos seus problemas práticos (da sua aplicação). Interpretar o direito com-preender a nossa própria realidade – a realidade existente, não as normas “preexistentes”. Aplicação-interpretação da lei não é mera relação causa-efeito, não é uma operação de subsunção formalista, pois sempre existirá um obstáculo hermenêutico-ontológico.

O que alcançamos aqui são apenas conclusões transitórias, noções que direcionam, perspectivas relevantes, que não acaba aqui, pelo contrário: se inicia. As discussões não são resolvidas, porque não há uma resolução correta em absoluto para elas, o que há são aproxima-ções neo-relativas de verdades tocáveis. O professor Villey (2005, p. 55) diz que: “O direito é o objeto de uma investigação jamais concluída, que se realiza pela dialética e com base em ob-servações da realidade. O estudo jamais chega a outra coisa senão resultados provisórios”. O que há são caminhos que precisam ser construídos e redirecionados. São pequenas correções que precisam ser feitas no discurso jusfilósofico atual – afinal, como ensina o mesmo Villey10: de nada serve uma filosofia que apenas confirme nossas rotinas jurídicas.

Isso não significa que a argumentação aqui desenvolvida tenha sido inútil, pois ela propôs algo fundamental: abertura. Abertura que incide sobre nossas verdades, sobre

10 Ver VILLEY, Michel. Filosofia do Direito: definições e fins do direito, os meios do direito. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008

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nossa “segurança jurídica”. Abertura para o diálogo crítico com nossas concepções sobre aplicação do direito, muitas vezes, fundadas sobre ficções de alguma forma de positivismo jurídico que subtrai a existência do abismo jurídico hermenêutico-gnosiológico e elabora um mecanismo não-prudente e pseudo-justo de se interpretar o direito e concretizar a norma de forma equivocada com a realidade. É necessário tomar consciência da nossa própria “consciência jurídica” (nossos preconceitos e nossas referências de entendimen-to), sobretudo nossos entendimentos sobre da aplicação da norma que distorcem o direi-to em um estreito legalismo.

Estamos tão acostumados, tão moldados a pensar o direito da forma como nos é ensinado, que caímos em um “conformismo processual”. Absorvemos uma verdade como a única verdade possível, como se (entre outras coisas) aplicação e interpretação fossem elementos distantes e a justiça possível fosse apenas a justiça legal. E de repente nos vemos diante problemas essenciais do conhecimento jurídico, problemas que preci-sam ser resolvidos, mas não somos capazes de agir e nem ao menos sugerir mudanças, pois nos tornamos indiferentes pelo “devido processo legislativo”. Como nos conta Otto Lara Resende em Vistas Cansadas11: “O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. (...) Nossos olhos se gas-tam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença”.

Ainda nos apropriando mais profundamente da literatura nacional, nas palavras do prudente jagunço (jusfilósofo) Riobaldo de Guimarães Rosa, encontramos um erudito conhecimento que ensina aos juristas a importância da prudência, a importância dessa “coisa” na superação dos abismos:

E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto: mas, fora dessa con-seqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador - sua parte, que antes já foi inventada, num papel(...) ( ROSA; 2001, p.338).

Portanto, a prudência jurídica não é um conceito romântico ou erudito que enfeita os trabalhos acadêmicos. Prudência é ver a realidade e decidir-se corretamente com base na própria realidade, sem um “como agir” pressuposto, com nenhum comportamento pré-definido; ela é uma prática sui generis essencial a aplicação e interpretação do direito.

11 Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.

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Referências Bibliográficas

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Sumário

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Editorial ...............................................................................................................09

Artigos

O princípio da igualdade e as cotas raciais no BrasilAndré Vinícius Carvalho Meira ...............................................................................11

Por uma Justiça Democrática - Proposição de uma via para a efetivação jurisdicional dos valores constitucionaisBárbara Machado ....................................................................................................29

Inovações científico-tecnológicas e o vício em ideias: a inconstitucionalidade da inserção do THC na Portaria n. 344 da ANVISABrahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes ..............................................................47

Dos obstáculos à tutela judicial dos direitos sociais Victor Chaves Ribeiro França Guimarães .................................................................59

Interpretação Fenomenológica da Natureza Jurídica da Lei Orçamentária AnualVictor Freitas Lopes Nunes .....................................................................................77

A prudência e o abismo jurídico hermenêutico-gnosiológicoWaldir Araújo Carvalho ..........................................................................................89