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Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 4 2019, p.2367-2398. Bethania Assy e Rafael Rolo DOI: 10.1590/2179-8966/2019/37973 ISSN: 2179-8966 2367 A concretização inventiva de si a partir da perspectiva do outro: Notas a uma Antropofilosofia Decolonial em Viveiros de Castro The inventive embodiment of oneself from the perspective of the other: Notes to a Decolonial Anthropophilosophy in Viveiros de Castro Bethania Assy 1 1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2290-3457. Rafael Rolo 2 2 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9060-7380. Artigo recebido em 2/11/2018 e aceito em 10/08/2019. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

A concretização inventiva de si a partir da perspectiva do ... · esquema conceptual à disposição no perspectivismo e multinaturalismo ameríndio, se levado à sério, muito

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Page 1: A concretização inventiva de si a partir da perspectiva do ... · esquema conceptual à disposição no perspectivismo e multinaturalismo ameríndio, se levado à sério, muito

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.10,N.42019,p.2367-2398.BethaniaAssyeRafaelRoloDOI:10.1590/2179-8966/2019/37973ISSN:2179-8966

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A concretização inventiva de si a partir da perspectiva dooutro: Notas a uma Antropofilosofia Decolonial emViveirosdeCastroThe inventive embodiment of oneself from the perspective of the other:NotestoaDecolonialAnthropophilosophyinViveirosdeCastro

BethaniaAssy11PontifíciaUniversidadeCatólicadoRiodeJaneiroeUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,RiodeJaneiro,Brasil.E-mail:[email protected]:https://orcid.org/0000-0003-2290-3457.RafaelRolo22PontifíciaUniversidadeCatólicadoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,RiodeJaneiro,Brasil.E-mail:[email protected]:https://orcid.org/0000-0001-9060-7380.Artigorecebidoem2/11/2018eaceitoem10/08/2019.

ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense.

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Resumo

Esse artigo reivindica a inscrição da antropologia americanista na obra de Viveiros de

Castrosnoseiodeumateoria-práticadadescolonizaçãopermanentedopensamento.O

esquema conceptual à disposiçãonoperspectivismoemultinaturalismoameríndio, se

levadoà sério,muitomaisdoque simplesmente inverterou revertera summadivisio

tradicional entre natureza e cultura, propõe a problematização das assimetrias

constitutivasdecadapontodevistaparticular.Aexperiênciadepensamentoviabilizada

pelaantropologiadospovosameríndiospermitenãosimplesmenterepensararelação

entrehumanosenão-humanos,ouentrenaturezaecultura,mas,aoexigirumespecial

engajamentode todosqueentramemcontato comaproblemática associada a esses

dualismos, garante sustento e apoio para a crítica das fronteiras e obstáculos

tradicionais erigidos pela imagem dogmática do pensamento filosófico. O presente

artigo propõe um debate em duas partes com o perspectivismo ameríndio teorizado

pelo antropólogo brasileiro. Em um primeiro momento, serão expostos os principais

delineamentos dessa antropofilosofia, concebida como uma rede de relações. Na

segundaparte,tentar-se-áapontarbrevementealgumasimplicaçõesdesseprojetopara

uma ética performativa radical, nas quais o humanismo ameríndio e o xamanismo

cosmopolítico serão considerados. Se, diferentemente do pensamento europeu, a

humanidade é assumida pelos ameríndios como elemento dado a todas as

individualidades existentes, que humanidade é essa que, paradoxalmente, deve ser

constantementereafirmada inactuemsuarelaçãocomocorpo,sobpenadeperecer

diantedalógicadapredação?Nãoháqualquerprivilégiometafísicodohomosapiensno

contexto da “ontologia amazônica da predação” (que, todavia, antes de ser uma

ontologiaéumapragmáticaradical),pois,ondehá intencionalidadeportodocanto,o

humanonãopodeestarinequivocamentesegurodesuacondição.

Palavras-chave:Perspectivismoameríndio;Multinaturalismoameríndio;Descolonização

do pensamento; Alteridade performática radial; Eduardo Viveiros de Castro;

Antropofilosofia;Ontologiaamazônicadapredação.

Abstract

ThisarticleclaimstheinscriptionofViveirosdeCastros’amerindiananthropologyatthe

core of a practical-theory of a permanent decolonization of thinking. The conceptual

scheme available in Amerindian perspectivism andmultinaturalism, if taken seriously,

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muchmorethansimplyreversingthetraditionalboundarybetweennatureandculture,

proposestoproblematizetheconstitutiveasymmetriesofeachparticularpointofview.

The experience of thought made possible by the anthropology of the Amerindian

peoples allows us not simply to rethink the relationship between humans and

nonhumans. It rather provides sustenance and support for a criticism of traditional

boundariesandobstacleserectedbythedogmaticimageofphilosophicalthought.This

paper proposes a two-part debate with Amerindian perspectivism theorized by the

Brazilian anthropologist. At first, the main outlines of this anthropophilosophy,

conceivedasanetworkofrelationships,willbeexposed.Inthesecondpart,wewilltry

to briefly point out some implications of this project towards a radical performative

ethics,inwhichtheAmerindianhumanismandtheshamaniccosmopoliticswillbetaken

intoaccount. If,unlikeEuropeanthought,humanity is takenbytheAmerindiansasan

elementgiventoallexistingindividualities,whathumanityisitthat,paradoxically,must

be constantly reaffirmed in its relation to the body, under penalty of perishing in the

faceof predation’ schema?There is nometaphysical privilegeofhomo sapiens in the

context of the “Amazonian ontology of predation” (which, however, before being an

ontologyisaradicalpragmatics),becausewherethereisintentionalityeverywhere,the

humancannotbeunambiguouslysureofitscondition.

Keywords: Amerindian perspectivism; Amerindian multinaturalism; Decolonization of

thought;Radialperformancealterity;EduardoViveirosdeCastro;Anthropophilosophy;

Amazonianontologyofpredation.

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Introdução

O queainda dizer doHomem? Seu fim já foi anunciado e não é de hoje. A crítica ao

conceito de Homem é, talvez, tão antiga quanto o próprio conceito e, inobstante a

ancestralidadedaquestão,afactualidadedeseufimseapresentacomoumpersistente

(eresistente)embaraçoparaafilosofiaocidental.AquestãoarespeitodoHomem(do

humano, da humanidade, de sua cultura, enfim) parece ser tanto inevitável como

intransponível.Adificuldadeno tratodo temaé tantosignodopesometafísicoquea

tradiçãodopensamentoocidentallheimpõe,comodafissura(fêlure,crack)detodoseu

edifícioaxiomático,apontandoparaoutrasdimensõesdemundo.

A fenomenologia desse encontro com o absolutamente diferente é

concretamente experimentada (e experienciada) a partir daquilo que a antropologia

denominade“choquecultural”1,consequênciadeumtrabalhodecampo2responsável

nãosomentepela invençãodoalheio,mastambémpelacontrainvençãodoqueháde

mais próprio àquele que passa pelo experimento/pela experiência3. Assim, se o

problemadoHomemnoparadigmada filosofiaocidentalpareceseconsubstanciarna

constante crise face ao esgotamento da própria questão, talvez seja o momento de

consideraroutrasviasde inquiriçãoque levememcontaaexperiênciado“choque”e

possibilitemacontrainvençãodaquiloqueestámaispróximo4.

É preciso considerar, com as Metafísicas Canibais de Viveiros de Castro, a

necessidadedeumAnti-Narciso5.Istoé,éprecisorepensararelaçãoentreohumanoe

1 “A cultura é tornada visível pelo choque cultural, pelo ato de submeter-se a situações que excedem acompetênciainterpessoalordináriaedeobjetificaradiscrepânciacomoumaentidade–elaédelineadapormeiodeumaconcretizaçãoinventivadessaentidadeapósaexperiênciainicial”(WAGNER,Roy.Ainvençãodacultura.SãoPaulo:UBU,2017,p.32)2Nemtodo“trabalhodecampo”évoluntárioeacadêmico.Arespeito,conferir:“Comaexpansãopolíticaeeconômica da sociedade europeia no século XIX, muitos povos tribais domundo todo se viram em umasituaçãode‘trabalhodecampo’,semquetivessemalgumaresponsabilidadeporisso.‘Trabalhodecampo’talvezsejaumeufemismoparaaquiloquemuitasvezesfoipoucomaisqueumchoqueculturalcontinuado,cumulativo(...)”(Idem,p.63).3 “Éapenasmedianteuma ‘invenção’dessaordemqueo sentidoabstratode cultura (edemuitosoutrosconceitos)podeserapreendido,eéapenaspormeiodocontrasteexperienciadoquesuaprópriaculturasetorna‘visível’.Noatodeinventaroutracultura,oantropólogoinventaasuaprópriaeacabaporinventarapróprianoçãodecultura”(Ibidem,p.29).4 “(...) [N]a tentativa de se identificar com os que têm um modo de existência distinto do seu paracompreendê-lomelhor,do interior,dividindosuasalegriasetristezaseasrazõesquealegamparafazeroquefazem,vocêseránecessariamentelevado,porcontraste,aquestionaraevidênciadoshábitosdevidadesuaprópriacomunidade.Vocêsetornaráumpoucodiferente,edependendodotempoquepassarlongedecasa, poderá se tornar quase estrangeiro ao que era antes” (DESCOLA, Philippe.Outras culturas, outrasnaturezas.SãoPaulo:Editora34,2016,p.10).5“Aquestãoaxiald’OAnti-Narcisoéepistemológica,ouseja,política.Seestamostodosmaisoumenosdeacordoparadizerqueaantropologia,emboraocolonialismoconstituaumdeseusapriorihistóricos,está

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onão-humanodemodoapermitira(contra-)invençãodenovosregistrosdepossíveis,

aocontrárioda soluçãousualquepassapelaconstante reativaçãodamesmaquestão

comomerafunçãofática6.Nesseintuito,seafilosofiaocidentalfazgrandequestãodo

conceito/problemadahumanidadehumana,ViveirosdeCastrodenunciaacondiçãodos

índiosamazônicos(emespecialocasodosAraweté)queproblematizam,aocontrário,o

conceito/problemadoscorposesuasrespectivasperspectivas7.

Considerar o esgotamento do problema da humanidade humana a partir da

assimetria (dos corpos) aberta pelo perspectivismo ameríndio não implica umamera

reabilitaçãodoconceito/problema,reavivandoascoreseavivacidadedeumparadigma

cujohorizonteapontaparaoesgotamento.Nãosetratadeumpossível(oudesejável)

retorno em direção a um ponto supostamente “mais original” ou a uma “tradição

perdida”.Oprojetoàdisposiçãonoperspectivismoameríndio,selevadoàsério,nãoé

conservador ou reacionário, mas simplesmente selvagem8. Muito mais do que

simplesmente inverter ou reverter a summa divisio tradicional (i.e., “tradicional” aos

olhosdoocidente9)entrenaturezaecultura,operspectivismoameríndiosugeridopor

Viveiros de Castro propõe a problematização das assimetrias constitutivas de cada

pontodevistaparticular10.Relaçõesdiferenciaisquenãosedeixamsedentarizar.Contra

a lógica das Grandes Partilhas sedentárias, propõe-se a disseminação de uma lógica

hojeencerrandoseuciclocármico,éprecisoentãoaceitarquechegouahoraderadicalizaroprocessodereconstituiçãodadisciplina,levando-oaseutermo.Aantropologiaestáprontaparaassumirintegralmentesuaverdadeiramissão,adeserateoria-práticadadescolonizaçãopermanentedopensamento”(VIVEIROSDECASTRO,Eduardo.MetafísicasCanibais.SãoPaulo:CosacNaify,N-1,2015,p.20).6A função fática, no sentidode JakobsoneMalinowski, possui a finalidadede simplesmente (re)ativarocanaldacomunicação.Sobrea função fática, conferir: “Estependorparaocontatoou,nadesignaçãodeMalinowski,paraafunçãofática,podeserevidenciadaporumatrocaprofusadefórmulasritualizadas,pordiálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação” (JAKOBSON, Roman. Linguística eComunicação.8.ed.SãoPaulo:Cultrix,1975,p.126).7ViveirosdeCastrofazreferênciaconstanteadeterminadaparáboladeLévi-Strausssobreaconquistadaamérica,contadaemRaçaeHistória.Aparábolasegueassim:“DanslesGrandesAntilles,quelquesannéesaprèsladécouvertedel’Amérique,pendantquelesEspagnolsenvoyaientdescommissionsd’enquêtepourrecherchersi lesindigènespossédaientounonuneâme,cesdernierss’employaientàimmergerdesblancsprisonniers afin de vérifier par une surveillance prolongée si leur cadavre était, ou non, sujet à laputréfaction”(LÉVI-STRAUSS,Claude.Raceethistoire.Paris:Denoël,1987,p.21).8Osentidode“selvagem”aplicadoaquiésimplesmenteaquelejáavançadoporClastres,quemafirmouarespeito dos índiosGuayaki: “E esse pensamento selvagem, que quase cega por tanta luz, nos diz que olugardenascimentodoMal,dafontedainfelicidade,éoUm”(CLASTRES,Pierre.SociedadecontraoEstado.São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 229). O projeto selvagem tratado neste momento é aquele que seapresentasimplesmentecomofugidioàtotalizaçãoporumSignificanteúltimo.9Arespeito,conferirotestemunhodeDescola:“Osachuardesconhecemessasdistinções,quemepareciamtãoevidentes, entreoshumanoseosnão-humanos, entreoquepertenceànaturezaeoquepertenceàcultura.Emoutraspalavras,meusensocomumnãotinhanadaavercomodeles.Quandoobservávamosasplantaseosanimais,nãovíamosamesmacoisa”(DESCOLA,P.Outras...op.cit.,p.14).10“Opontodevistadodomsobreamercadorianãoéomesmoqueopontodevistadamercadoriasobreodom.Implicaçãorecíprocaassimétrica”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.132).

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radicalmentediferenciante11.Opensamentoameríndionãoésimplesmenteocontrário

do europeu, mas o seu absolutamente outro, afinal, na análise das multiplicidades

indiciadasnosdualismos,percebe-sequeo“trajetonãoéomesmonosdoissentidos”12.

Dizendo emoutras palavras, o selvagemnão é um anti-europeu. Aquilo que europeu

enxerganoselvageméincomensurávelemfacedaquiloqueoselvagemvêquandoestá

diantedeumeuropeu.

Como hipótese de trabalho, acredita-se que a experiência de pensamento

viabilizadapelaantropologiadospovosameríndiospermitenãosimplesmenterepensar

arelaçãoentrehumanosenão-humanos,ouentrenaturezaecultura,mas,aoexigirum

especialengajamentodetodosqueentramemcontatocomaproblemáticaassociadaa

esses dualismos13, garante sustento e apoio para a crítica das fronteiras e obstáculos

tradicionais erigidos pela imagemdogmática do pensamento filosófico (i.e., a “nossa”

filosofia,segundoLévi-Strauss14).

Seolivrointitulado“MetafísicasCanibais”éumaresenhaacabadadeumaobra

inacabada (e infinita), que terá sido denominada “Anti-Narciso:Daantropologia como

ciênciamenor”ecujoobjetoéainscriçãodaantropologiaamericanistanoseiodeuma

“teoria-prática da descolonização permanente do pensamento”15, este breve artigo

correspondeaumcomentáriodaenésimaordemque,eoipso,propõe-seajogarojogo

daleituraentreaobrapresente(MetafísicasCanibais)eaausente(OAnti-Narciso)e,tal

11“(...)[C]ontraasGrandesPartilhas,umaantropologiamenorfaráproliferaraspequenasmultiplicidades–nãoonarcisismodaspequenasdiferenças(...)”(Idem,p.27/28).12Cfr.otrechocompleto,nooriginal:“Uneméditationduperspectivismenietzschéendonnesaconsistancepositiveàladisjonction:distanceentredespointsdevue,àlafoisindécomposableetinégaleàsoipuisqueletrajet n'est pas lemêmedans les deux sens (selon un exemple nietzschéen célèbre, le point de vue de lasanté sur la maladie diffère du point de vue de la maladie sur la santé – LS, 202-204 ; AŒ, 90-91)”(ZOURABICHVILI,François.LevocabulairedeDeleuze.Paris:Ellipses,2005,p.79).13 “Fica claro do que se expôs que os devotos de ambos os conceitos, carga ou cultura, não conseguemapreender facilmente o outro conceito sem transformá-lo no seu próprio, as também fica claro que essacaracterísticanãoéexclusivadosseguidoresdocultooudosantropólogos,quetodososhomensprojetam,provocameestendemsuasideiaseanalogiassobreummundodefenômenosintransigentes.Éfundamentalparaumadefiniçãodohomemqueelecontinuamente invistasuas ideias,buscandoequivalentesexternosque não apenas as articulem, mas também as transformem sutilmente no processo, até que essessignificados adquiram vida própria e possuam seus autores. O homem é o xamã de seus significados”(WAGNER,R.Ainvenção...op.cit.,p.67).14 “De ce courant d’idées, une impression d’en- semble se dégage : qu’on s’en réjouisse ou qu’on s’eninquiète, la philosophie occupe à nouveau le devant de la scène anthropologique. Non plus notrephilosophie,dontmagénérationavaitdemandéauxpeuplesexotiquesdel’aideràsedéfaire;mais,parunfrappantretourdeschoses,laleur”(LÉVI-STRAUSS,C.Postface.L’Homme,v.154-155,abr/set,p.720).15VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.20.

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comoumfractal,abrir-senaaberturaquenos legaopensamentoameríndio.Miseen

abymeantropofilosófica16.

O presente artigo propõe um debate em duas partes com o perspectivismo

ameríndio teorizado pelo antropólogo brasileiro. Em um primeiro momento, serão

expostososprincipaisdelineamentosdessaantropofilosofia,concebidacomoumarede

de relações17. “Viveiros de Castro” interessará menos como nome próprio (eventual

suportedeumargumentodeautoridadequalquer),doque comocluster dasdiversas

linhasdeforçaqueoatravessameconstituemoplanodesuasMetafísicasCanibais.

Na segundaparte, tentar-se-áapontarbrevementequaisas implicaçõeséticas

desseprojetode“descolonizaçãocontínuadopensamento”apartirdaproblematização

das assimetrias dos corpos entre si. Se, diferentemente do pensamento europeu, a

humanidade é assumida pelos ameríndios como elemento dado a todas as

individualidadesexistentes18-19,quehumanidadeéessaque,paradoxalmente,deveser

constantementereafirmadainactuemsuarelaçãocomocorpo20,sobpenadeperecer

dianteda lógicadapredação?Nãoháqualquerprivilégiometafísicodohomo sapiens

(do “homem humano”) no contexto da “ontologia amazônica da predação”21 (que,

todavia, antes de ser uma ontologia é uma pragmática radical), pois, onde há

16 Amise en abyme pode ser considerada a imagemdo pensamento tanto da desconstrução derridiana,como também da seriação “ordinal” e da pura repetição como conceito damais absoluta diferença emDeleuze. A conexão específica entre esses dois modos de pensamento en abyme ainda merece umaproblematização que aqui somente pode ser apontada. Independente se Différance e Différenc/tiation,contudo, a imagem movente proporcionada pelo fractal corresponde perfeitamente à noção de um“estruturalismo sem estrutura” que Viveiros de Castro associa àquilo que ele denomina de “pós-estruturalismo”. A respeito da diferença entre pré- e pós-estruturalismo emViveiros de Castro, conferir:Idem,pp.233ess.17 InspiradoemBruno Latour, propõe-sepensar a antropofilosofia deViveirosdeCastro a partir deumamudançatopológicanaimagemdopensamento.“Insteadofthinkingintermsofsurfaces–twodimensions–orspheres–threedimensions–oneisaskedtothinkintermsofnodesthathaveasmanydimensionsastheyhaveconnections”(LATOUR,Bruno.Onactor-networktheory.Afewclarificationsplusmorethanafewcomplications. SozialeWelt, v. 47, 1996.Disponível em:http://www.cours.fse.ulaval.ca/edc-65804/latour-clarifications.pdf,acessadoem10.01.19).18“Acondiçãooriginalcomumaoshumanoseanimaisnãoéaanimalidade,masahumanidade.Agrandedivisãomíticamostramenosaculturasedistinguindodanaturezaqueanaturezaseafastandodacultura:osmitos contam como os animais perderam os atributos herdados oumantidos pelos humanos (...). Oshumanossãoaquelesquecontinuaramiguaisasimesmos:osanimaissãoex-humanos,enãooshumanosex-animais”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismoemultinaturalismonaaméricalatina.In:Inconstânciasdaalmaselvagem.SãoPaulo:CosacNaify,2002,p.355).19 A respeito do tema, considerar ainda a análise de RoyWagner que influenciou aquela de Viveiros deCastro: “(...) [O] argumento de A invenção da cultura se baseia na articulação entre dois domíniosuniversalmentereconhecidosdaexperiência:oreinodoinato,ou‘dado’,daquiloqueéinerenteànaturezadas coisas, e reino dos assuntos sobre os quais os seres humanos podem exercer controle ou assumirresponsabilidade”(WAGNER,R.Ainvenção...p.221).20 Afinal, como reconhece Viveiros de Castro, a “problemática ameríndia da distinção natureza/cultura,nessestermos,antesdeserdissolvidaemnomedeumacomumsocialidadeanímicahumano-animal,deveserrelidaàluzdoperspectivismosomático”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.389).21Idem,p.353.

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intencionalidadeportodocanto,ohumanonãopodeestarinequivocamentesegurode

suacondição.

I.

AsMetafísicas Canibais, i.e., tanto o nome de uma resenha acabada de uma obra

inacabada como o possível epíteto para a antropologia ameríndia, atendem a um

movimentoqueasatravessatransversalmentenaformadeumagenciamentoentretrês

interlocutoresqueserelacionamemrede(i.e.,enredam-se),quaissejam:(i)oautordo

denominado“Anti-Narciso”,(ii)DeleuzeeGuattarie(iii)Lévi-Strauss.Muitomaisdoque

pontosdosquaispartiriamdeterminadaslinhasdecoerência,essesnomesprópriossão

naverdadefrutodasconfluênciaseinflexõesdasmúltiplaslinhasdeforçaquecortamo

pensamento de Viveiros de Castro22. A confluência dessas linhas múltiplas, uma se

envelopandonaoutra,desenhaomilieuhiperbólicoporondeopensamentoselvagemé

capazdeproliferar23.

Essa antropologia possui um objetivo duplo, qual seja, promover num único

movimento a leitura cruzada entre antropologia e filosofia, informada tanto pelo

pensamento amazônico como pelo “estruturalismo dissidente”24 de Gilles Deleuze e

Félix Guattari. Com o desenvolvimento desses objetivos, percebe-se que o destino

visadoporessemovimentotambéméduplonamedidaemquepretende“aproximar-se

do ideal de uma antropologia enquanto exercício de descolonização permanente do

pensamentoeproporumoutromododecriaçãodeconceitosquenãoo‘filosófico’,no

sentido histórico-acadêmico do termo”25. Os deslocamentos mútuos entre (uma)

22“Jen’aimepaslalignequiestentredeuxpoints,maislepointaucroisementdeplusieurslignes.Lalignen’estjamaisrégulière, lepoint,c’estseulementl’inflexiondelaligne.Aussibien,cequicompte,cenesontpaslesdébutsnilesfins,maislemilieu.Leschosesetlespenséespoussentougrandissentparlemilieu,etc’est làqu’il faut s’installer, c’est toujours làque ça seplie” (DELEUZE,Gilles.Sur Leibniz. In: Pourparlers,1972-1990.Paris:Minuit,1990,p.219).23 “Certo dia, formei o desígnio e esbocei o desenho de um livro que, de algum modo, prestasse umahomenagemaGillesDeleuzeeaFélixGuattaridopontodevistademinhaprópriadisciplina.EledeveriasechamarOAnti-Narciso:Da antropologia como ciênciamenor. Seu propósito seria caracterizar as tensõesconceituais que atravessam e dinamizam a antropologia contemporânea” (VIVEIROS DE CASTRO, E.Metafísicas...op.cit.,p.19).Maisadianteoautoraindadestaca:“AodefinirasMitológicascomoomitodamitologiaeoconhecimentoantropológicocomoumatransformaçãodapráxisindígena,aantropologialévi-straussianaprojetauma‘filosofiadoporvir’:OAnti-Narciso”(Idem,p.260).24Ibidem,p.32.25Ibidem,p.32.

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filosofia e (uma) antropologia, portanto, caracterizam o Anti-Narciso na sua crítica à

imagemdopensamentoselvagem26.

Oprojetoduplocomduploobjetivoéele-própriodesdobradoemoutrasduas

experiências típicas do pensamento ameríndio, caracterizadoras de uma teoria

cosmopolítica indígena27, quais sejam: (i) operspectivismo e (ii) omultinaturalismo.O

multinaturalismo é perspectivista, na exata medida em que o perspectivismo é

multinaturalista. Ambos os conceitos antropofilosóficos se entrelaçam e formam um

quiasmanatarefadetradução/transformaçãodopensamentoselvageme,emespecial,

dopensamentoameríndioqueagenciaamultiplicidadenacultura,ouainda,acultura

enquantomultiplicidade,anunciandoosurgimentodeumaoutraantropologianaexata

medidaque,comViveirosdeCastro(esuarededeinterlocutores),“[t]odaexperiência

deumoutropensamentoéumaexperiênciasobreonossopróprio”28.

O quiasma entre perspectivismo e multinaturalismo é sentido como uma

espécie de curto-circuito entre duas pretensões aparentemente contraditórias, quais

sejam: (a)operspectivismoameríndiopressupõequecadaentevêa sipróprio (eaos

seus) como humanos, ao passo que todos os demais são considerados como não-

humanos, seguindouma lógicadecorrespondênciasno seiodas relaçõesdepredação

(ouseja,osjaguaresseriamhumanosentreosjaguares,masespíritos-predadorespara

osqueixadaseassimpordianteseguindoacontiguidadedasdiferençascorporais);(b)o

multinaturalismo se caracteriza pela afirmação da humanidade (ou da cultura) como

característica universal de todos os entes inseridos no contexto da cosmopolítica de

predação,oquedariasuporteteóricoà“doutrinadasroupasanimais”29.

26AcríticadaimagemdopensamentoéumadasprincipaispreocupaçõesdeDeleuzeaolongodesuaobra,em atenção ao seu projeto de pensar a pura diferença desvinculada da noção de “mesmo”. A respeito,conferir: “En ce sens, la pensée conceptuelle philosophique a pour présuppose implicite une Image de lapensée,préphilosophiqueetnaturelle,empruntéà l’élémentpurdusenscommun.D’aprèscette image, lapenséeestenaffinitéaveclevrai,possèdeformellementlevraietvautmatériellementlevrai.Etc’estsurcetteimagequechacunsait,estcensésavoircequesignifiepenser.Alorsilimportepeuquelaphilosophiecommence par l’objet ou par le sujet, par l’être ou par l’étant, tant que la pensée reste soumise à cetteImage qui préjuge déjà de tout, et de la distribution de l’objet et du sujet, et de l’être et de l’étant”(DELEUZE,Gilles.DifférenceetRépétition.12.ed.2.tir.Paris:PUF,2013,p.172).27VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.71.28VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.96.29Anoçãoderoupaanimalimplicaumprocessodediferenciaçãocujotermoinicialéocorpohumano,pois,como destaca Viveiros de Castro, a “forma humana é como um corpo dentro do corpo, o corpo nuprimordiala‘alma’docorpo”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.389).Aroupaé“menosformaquefunção”(Idem,p.394),servemaispeloqueelafaz(oupermitefazer),doquepeloqueesconde(oupermiteesconder).Pelaconcepçãoameríndia,Prometeutantonãoexistecomoseriaumpersonagemabsolutamenteirrelevante,poisatécnicadefinitivamentenãoestádoladohumano.Humanoéoplanodoaindanãodiferenciadoemanimal.

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Assim,ahumanidadeperformadadoperspectivismoeahumanidadeuniversal

do multinaturalismo se agenciam no estruturalismo sem estrutura da mitologia

ameríndia.Essaantropologiamenor,declaradamenteinspiradanafilosofiadeDeleuzee

Guattari, desenha uma cartografia de movimentos aberrantes30 implicados no

perspectivismo multinaturalista a partir das categorias-mestras de aliança e filiação.

Comopropõe“aquestãoé(...)apossibilidadedeconversãodasnoçõesdealiançaede

filiação,classicamentetomadascomoascoordenadasdasociogênesehumanatalcomo

efetuada no elemento do parentesco, em modalidades de abertura para o extra-

humano”31.

Viveiros de Castro, ao analisar o corpus da obra de Deleuze e Guattari,

reconhece que o Anti-Édipo “está firmemente amarrado a uma concepção

antropocêntrica da socialidade; seu problema continua a ser o problema da

hominização,a‘passagem’daNaturezaàCultura”32equeseusautores“parecemcrer,

porexemplo,queaaliançadizrespeitoaoparentesco,equeoparentescodizrespeitoà

sociedade. Por uma vez, eles se mostram excessivamente prudentes”33. Para o

antropólogo, o Anti-Édipo não chega a conduzir suas próprias premissas às últimas

consequências.Aradicalizaçãoquecaracterizaoprojetoguattaro-deleuzeanosomente

éatingidacomMilPlatôs,apartirdodeslocamentodasatençõesparaoproblemados

devires(“relaçãoreal,moleculare intensivaqueoperaemumregistrooutroqueoda

racionalidadeaindaapenasmorfológicadoestruturalismo”34).Odeviréooutronome

dasdenominadasmultiplicidades intensivas queoperama todo instanteparaalémda

metáfora ou metamorfose, não significando “imitar, aparecer, ser, corresponder”35,

fugindo, portanto, da lógicamimética, mas uma forma de “participação ‘antinatural’

(contre-nature) entre o homem e a natureza; ele é um movimento instantâneo de

captura,simbiose,conexãotransversalentreheterogêneos”36.

Como desdobramento dessa ressignificação do tema da aliança, a passagem

paraalgoalémdoestruturalismoé realizadaporViveirosdeCastroemfunçãodesua 30 “Ce qui intéresse avant tout Deleuze, ce sont lesmouvements aberrants. La philosophie deDeleuze seprésentecommeunephilosophiedesmouvementsaberrantsoudesmouvements«forcés».Elleconstituelatentative laplus rigoureuse, laplusdémesurée, laplussystématiqueaussi,derépertorier lesmouvementsaberrantsquitraversentlamatière,lavie,lapensée,lanature,l’histoiredessociétés”(LAPOUJADE,David.Deleuze,lesmouvementsaberrants.Paris:Minuit,2014,p.09).31VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.133.32Idem,p.138.33Ibidem,p.139.34Ibidem,p.184.35Ibidem,p.185.36Ibidem,p.186.

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experiênciapessoalnaanáliseoperadasobreoshábitosecostumesdosíndiosAraweté,

em especial em torno do canibalismo. O povo Araweté promove uma espécie de

transfiguraçãodatradiçãoTupinambá,namedidaemquetodocanibalismoArawetéé

simbólico e póstumo. A devoração das almas dos Araweté mortos é operada por

divindades (Maï), comoetapanoprocessode transformaçãodosdevorados em seres

semelhantes aos devoradores. A relação diferencial entre Araweté e Tupinambá não

está, simplesmente na dimensão simbólica, contudo, mas no que Viveiros de Castro

denominade“deslocamentopragmático”,ouseja,naespecífica“torçãooutranslação

deperspectivasqueafetavaosvaloreseasfunçõesde‘sujeito’ede‘objeto’,de‘meio’e

de‘fim’,de‘si’ede‘outrem’”37.Nessadinâmica,“o‘eu’sedeterminacomo‘outro’pelo

atomesmodeincorporaresse‘outro’,queporsuavezsetornaum‘eu’,massempreno

outro, através de outro (‘através’ no sentido solecístico de ‘por meio de’)”38. O rito

canibalnãocorresponde,sobessaóptica,aumasimplesdevoraçãodocorpofísico,mas

aumadinâmicanecessáriadesubjetivaçãoeautodeterminaçãorecíproca,peloqueoEu

seafirmadesdeoOutro.Devorada,éaalteridade“comopontodevistasobreoEu”39.

Nessa dinâmica diferenciada-diferenciante, encontra-se a diferença entre a

antropologia multiculturalista europeia (que busca descrever a experiência humana

desde “o ponto de vista do nativo”) e a antropologia multinaturalista nativa (que

promoveaautodescriçãodesde“opontodevistado inimigo”).ComoconcluiViveiros

deCastro,“‘[a]través’deseuinimigo,omatadorarawetévê-seoupõe-secomoinimigo,

‘enquanto’ inimigo.Eleseapreendecomosujeitoapartirdomomentoemquevêasi

mesmo através do olhar de sua vítima, ou antes, em que ele pronuncia sua própria

singularidade pela voz do outro. Perspectivismo”40. Assim, destaca-se uma noção

essencialàscomunidadesameríndias,asquaisanteanecessidadedeatodomomento

constituíremoEucomoOutro,nãoexistemsenãoforadesi,peloque“sua imanência

coincidecomsuatranscendência”41.

Nessecontexto, interessanteéaposiçãoocupadapeloxamanismo.Osxamãs,

espéciesdediplomatasdiretosnessa cosmopolíticaemqueahumanidadeéuniversal

são seres capazes de atravessar as fronteiras entre o humano e o não-humano,

assumindoasperspectivasespecíficasdosoutros,na tarefadeautodeterminaçãopelo

37Ibidem,p.159,destacado.38Ibidem,p.159.39Ibidem,p.160.40Ibidem,p.161.41Ibidem,p.162.

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Outro. Essa cosmopolítica que permite aos xamãs deslizarem entre os registros

intensivosdahumanidadeuniversalnãocorrespondeanenhumrelativismoà la lógica

europeia.Antes,trata-sedeumexercíciodasdiferençasporelasmesmas,namedidaem

que toda perspectiva é única e total e, portanto, trata-se de uma multiplicidade

irredutível a uma totalidade superior. Ao se afirmar ahumanidade de todos os seres,

não se está afirmando que todos têm um acessomínimo e imperfeito à (ideia de)

humanidade (como se da imanência, agora capturada por uma transcendência, fosse

possívelafirmarumaigualdadehomogeneizanteetotalitária).Aocontrário,parte-seda

afirmaçãodeque“[t]odopontodevistaétotal,enenhumpontodevistaéequivalente

a nenhum outro”42. O xamanismo é transversal, uma vez seu devir-outro não

corresponderaumameraassimilaçãodooutro (comodefenderiauma“hermenêutica

romântica”), mas à afirmação radical do outro como alteridade irredutível. Não se

assimila nada, já que as perspectivas não são equivalentes. Como Viveiros de Castro

semprefazquestãodelembrar,“oOutrodosOutrosésempreoutro”43.

Aaliançaqueoxamãfirmacomosoutrosoperaumacontiguidadenafronteira,

porissoésempretransversal.Trata-sedeumdevirqueoperanapuraexterioridade,em

queasrelaçõesestabelecidassãosempreabertasàdeterminaçãodoOutropeloOutro.

Essemodelo não é produtivo,maspredatório, emqueo desejo opera não (somente)

umaprodução(comosepensavanoAnti-Édipo),masumrouboeumdom,umarelação

mediada necessariamente pelo Outro, em que o Eu, para se afirmar, precisa devir-

Outro. A cosmopolítica empreendida pelos xamãs -- espécies de preceptores do

esquematismocósmico--,écapazdecomunicareadministrarperspectivascruzadasde

formaatorná-lasapreensíveis.

A afirmação da experiência de pensamento (experiência “de entrada no

pensamentopelaexperiênciareal”44)queconstituioAnti-Narcisopermiteque“aficção

setornasseantropologia,masumaantropologiaquenãoéfictícia”45.Paraessaficção,

que toma as ideias indígenas como verdadeiros conceitos e permite a construção de

uma linguagem menor46 dentro da disciplina antropológica, interessa a projeção do

42Ibidem,p.180.43Ibidem,p.93.44Ibidem,p.217.45Ibidem,p.217.46 “‘Mineurs’ serontdites ces créationsénonciatives– littéraires,maisaussibienpolitiques, théoriquesouphilosophiques – qui savent créer un nouveau langage dans une langue majeure ou dominante et, enminorant cette langue, forger ‘lesmoyensd’uneautre conscienceet d’uneautre sensibilité’ concourantà

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mundopossívelqueessasideiaspermitemconstruir,tantopornãohavermundopronto

e acabado a ser vislumbrado antesmesmoda divisão entre o visível e o invisível que

constituiohorizontedopensamento,comopelarecusaàexplicaçãotranscendentedo

contexto.Emsuma,omodeloindígenadepensamento,diferentedoeuropeu,procura

projetaralgodesimesmodesdeopontodevistadeumoutro.Propõe-sea“ocupação

do ponto de vista do inimigo”47 como forma elementar de subjetivação a partir do

constantedevir-OutrodoEu,segundoaquala“interiorizaçãodoOutroéinseparávelda

exteriorização do Eu; o domesticar-se daquele é consubstancial ao ‘enselvajar-se’

deste”48.

Na forma das conclusões de Viveiros de Castro, os índios pensamque todo o

vivente, tanto os humanos como os não-humanos, a despeito de suas diferenças

corpóreas, pensamde formaestruturalmente igual, pelo que, a partir da premissa da

homogeneidadedaalmade todovivente,podemserproduzidasdiversasperspectivas

diversas e divergentes49.O problema antropológico, então, está na contínua tradução

dasdiversasnarrativasdosexcluídos,nãonosentidodadescobertadeumsignificado

velado, mas na subversão de sua línguamaior, pormeio da “conversibilidademútua

entreantropologiaemitologia”,ouno sentidodequeo canibalismoéaantropologia

indígena (em níveis diversos e não necessariamente simbólicos), de modo a permitir

“multiplicarnossomundo,‘povoando-odetodosessesexprimidosquenãoexistemfora

desuasexpressões’”,jáque“nãopodemospensarcomoosíndios;podemosnomáximo

pensarcomeles”50.

Comoconsequênciadessasconcepções,ViveirosdeCastropropõereinscrevero

pensamento de Lévi-Strauss no contexto dos alicerces ameríndios de pensamento. O

pensamento lévi-straussianoé caracterizado comoessencialmentedividido, aindaque

essas divisões não constituam oposições ou antagonismos inconciliáveis.

Primeiramente, no nível de sua personalidade teórica, o estruturalismo é

sincronicamentedivididoentreduasfigurasqueseimplicammutuamente,natensãoda

qualdecorrem,i.e.entre“umheróiculturaleumtrickster,opersonagemdamediação

(mas que também é instaurador do discreto e da ordem) e o contrapersonagem da

fairedevenirrévolutionnaires lesminoritésauxquellesellessontconnectées”(SIBERTIN-BLANC,Guillaume.Deleuzeetles“minorités”:quelles“politiques”?Cités2009/4(nº40),pp.42/43).47VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.291.48Idem,p.290.49VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.219.50Idem,p.231,destacado.

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separação (mas que é aomesmo tempo omestre do cromatismo e da desordem)”51.

Trata-se,a todaevidência,deumasuperposição intensivadedoisestadosdodiscurso

estruturaldeLévi-Strauss.Emsegundoplano,aobradeLévi-Strausspodeserdividida

diacronicamente,empré-estruturalista(Asestruturaselementares)epós-estruturalista

(Mitológicas).OestruturalismodasMitológicaséconsideradocomo“umestruturalismo

semestrutura”52(e,portanto,um“pós-estruturalismo”),emqueamitologiaameríndia

éconcebidacomoumamultiplicidadeaberta,naqual“todomitoéumaversãodeum

outromito,todooutromitoabreparaumterceiroeumquartomitos,eosn-1mitosda

América indígena não exprimem uma origem nem apontam um destino: não tem

referência”53.

Omitodevémpoucoapoucoaprópriamáquinadesentidoque(se)agenciana

superfíciedoperspectivismomultinaturalista.Atarefadetradução,quenãoconstituio

mito, senãonamedidaemqueomitoé tradução, implicaumaespéciedeaberturae

fechamentodaestruturamíticapelaqualsepermitepensara infinidadedenarrativas

míticas.ComodestacaViveirosdeCastro,“Todo‘grupo’demitosterminaporserevelar

situadona intersecçãodeumnúmero indeterminadodeoutrosgrupos (...).Osgrupos

devemse fechar (clore);masoanalistanãopodesedeixarencerrar (enfermer)dentro

deles”54. Omito ameríndio, portanto, em certamedida impõe a fuga e amediação a

todo instante,nãohavendofechamento,senãonamedidadaabertura,oumelhor,há

sempreumdesequilíbrioouumaespéciedeassimetriadeperspectivasque impõema

repetiçãodomovimentodefugacomonecessidadeinterna55.

A dinâmica de predação do Outro pelo Outro conflui para a imagem desse

estruturalismosemestruturadomito.DeDeleuzeeGuattariaLévi-Strauss,Viveirosde

Castro enreda sua antropofilosofia de forma a permitir que a mise en abyme

51VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.234.52“Existeminúmerasestruturasnosmitosameríndios,masnãoháumaestruturadomitoameríndio–nãoháestruturaselementaresdamitologia”(Idem,p.242)53Idem,p.243.54Idem,pp.247/248.55 É reconhecido o alerta de Viveiros de Castro no sentido de que as Mitológicas de Lévi-Strauss nãocorresponder (oumesmo aderir) à imagem da “Obra Aberta” (atribuível a Umberto Eco). Contudo, paracorroborar o ponto, destaque-se o seguinte trecho: “Acontece, porém, que a multiplicação dasdemonstraçõesdefechamentoproduzaimpressãoaparentementeparadoxaldeumnúmeroteoricamenteindefinido,istoé,aberto,deestruturasfechadas.Asestruturassefecham,masonúmerodeestruturas,edevias por onde fechá-las, é aberto – não há uma estrutura de estruturas, no sentido de um nível final detotalização estrutural, nemumadeterminaçãoa priori dos eixos semânticos (os códigos)mobilizados emestrutura”(Idem,p.247).

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antropofilosófica assuma a seguinte palavra de ordem: “Contra o mito dométodo, o

métododomito”56.

II.

A humanidade araweté (bïde)57 e a humanidade ocidental (άνθρωπος) compõemdois

polos do problema que ora é cercado e avaliado. Não se trata de afirmar uma

contradição propriamente dita entre ambas58, mas de se pensar a condição de

metaestabilidade que possibilita a diferenciação e as defasagens entre cada qual59.

Afinal, entre o mundo ameríndio e o mundo ocidental não há um absoluto abismo

intransponível,hajavistaqueoencontro(eoconfronto)entremundosdiferentesnãoé

somente possível como inevitável60. Entre esses diferentes mundos há uma série de

56Idemp.259.57“Apalavrabïde,quetraduzipor‘humanidade’,significatambém‘nós’, ‘agente’,e‘osAraweté’.Nãosetrata, note-se de um etnônimo, equivalente a ‘Araweté’ (palavra inventada pelos brancos) ou de umaautodesignaçãosubstantivaedistintiva.Bïdeésintáticaesemanticamenteequivalenteañane,pronomedaprimeira pessoa do plural inclusivo (por oposição aure, primeira pessoa do plural exclusivo).Bïde é umamarca de posição enunciativa, ou seja, trata-se efetivamente de um pronome que marca a posição dosujeito,nãodeumnomepróprio.Comováriasoutrassociedadesamazônicas,osAraweténãoobjetificamocoletivoaquepertencempormeiodesubstantivosdetipoetnonímico,reservando-separaosoutros,istoé,precisamente, para os inimigos (awin)” (VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A imanência do inimigo. In:Inconstânciasdaalmaselvagem.SãoPaulo:CosacNaify,2002,p.271).58Afenomenologiada“contradição”merecesercriticadaetalvezdevasersuperadaemalgummomento.Afinal, não se exclui a possibilidade de outros “polos”, outras “fases”, portanto, que assumem entre sirelações muito mais produtivas e interessantes que aquelas de simples “oposição”. Não seria absurdoimaginarumaestruturamultipolaroumultifásica,sendoquecadapolo/fasecompõeumasériedetensõesprodutivas, tanto internas comoexternas, com todososdemaispolos/fases existentes.Assim,para alémdosmodelos ameríndio e europeu, seria o casode sepensarnomodelo totêmicos,modelonômade, nomodelo africano (magrebino, subsaariano etc.), enfim. Essas considerações possuem alguma relevância,acredita-se,paraacompreensãoecríticadasepistemologias“decoloniais”e/ou“pós-coloniais”.59 A inspiração para essa análise é trazida da análise de Simondon e seu emprego aqui é puramente“tateante”: “L’apparition de la distinction entre figure et fond provient bien d’un état de tension,d’incompatibilitédu systèmepar rapportà lui-même,deceque l’onpourraitnommer la sursaturationdusystème;maislastructurationn’estpasladécouverteduplusbasniveaud’équilibre:l’équilibrestable,danslequel tout potentiel serait actualisé, correspondrait à la mort de toute possibilité de transformationultérieure; or, les systèmes vivants, ceux qui précisément manifestent la plus grande spontanéitéd’organisation, sont des systèmes d’équilibre métastable; la découverte d’une structure est bien unerésolution au moins provisoire des incompatibilités, mais elle n’est pas la destruction des potentiels; lesystèmecontinueàvivreetàévoluer;iln’estpasdégradéparl’apparitiondelastructure;ilrestetenduetcapabledesemodifier”(SIMONDON,G.Dumoded’existencedesobjetstechniques.Paris:Aubier,2012,p.226/227).60NãosedesconheceoalertadeViveirosdeCastroacercadaincompossibilidade,apartirdonossopontodevista,daperspectivaocidentaledaperspectivaameríndia.Arespeito,conferir:VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo... op. cit., p. 398).Destaca-se, tão-somente, comoo próprio autor deixa claro, queo fatodessa incompossibilidade é tambémuma consequência perspectiva.No sentido proposto acima, importareconhecerqueseassociedadesditas“primitivas”sãopropriamentesociedadescontraoEstado,ouaindasociedadesqueprocessamumaconjuração-antecipaçãodaforma-Estado,talcondiçãosedevejustamentepelaexistênciadeumarelaçãodiferencialque,deacordocomumateoriamarginalistaaplicadaàpolítica,

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instabilidadeseinconsistênciasquepermitemaambosmanterem-sevivos,garantindoa

perpetuaçãodoproblemadatradução(econtaminação)deumsistema-mundoparao

outroe,consequentemente,doequívoco61.

RoyWagner,decertaforma,propõeexatamenteissocomsuaanálisearespeito

dadistribuiçãodo inato (oudodado)edocontingente (oudoâmbitodeagência),ou

melhor, nos termos que serão empregados a seguir, entre fundo e figura, em uma

determinadacultura.Problematizaroconceitodehumanidadeàluzdessasexperiências

convida a pensar a respeito da proliferação das diferenças em meio aos planos

desenhados pelas diferentes conformações entre fundo (o inato) e figura (o

contingente).Afinal,seosocidentaispensamahumanidade(eeoipsosuacultura)como

figura, ou melhor, como o âmbito extensivo do atual-diferenciado sobre um fundo

natural, no qual a categoria da espécie humana está necessariamente inserida com

todos os demais não-humanos, os ameríndios pensam a humanidade como o fundo

intensivovirtual-diferenciantesobreoqualasdiferentes(ediferintes)figurascorpóreas

tomarão parte na (cosmo)política da predação, motivo pelo qual a participação na

espécienãoestánuncaterminantementegarantida62.Paraosameríndios,“areferência

comumatodososseresdanaturezanãoéohomemcomoespécie,masahumanidade

como condição”63. Viveiros de Castro esclarece: “Para nós, a espécie humana e a

condição humana coincidem necessariamente em extensão, mas a primeira tem

primazia ontológica; por isso, recusar a condição humana a outrem termina, cedo ou

transformaolimiteemlimiar(seuil).Arespeito,conferir:SIBERTIN-BLANC,Guillaume.PolitiqueetÉtatchezDeleuzeetGuattari:Essaisurlematérialismehistórico-machinique.Paris:PUF,2013,p.51.61 “A antropologia, então, vive de equívocos. Mas, como observou RoyWagner (...) sobre suas relaçõesiniciaiscomosDaribidaNovaGuiné:‘Oequívocodelesameurespeitonãoeraomesmoquemeuequívocoacercadeles’(...)–talvezamelhordefiniçãoantropológicadeculturajáproposta.Opontocrucialaquinãoé o fato empírico das incompreensões,mas o ‘fato transcendental’ de que elas não eram asmesmas. Aquestão,pois,nãoéadesaberquemestáenganado,emuitomenosaindaquemestáenganandoquem.(...)Oequívocodeterminaaspremissas,maisqueédeterminadoporelas.Porconseguinte,elenãopertenceaomundodacontradiçãodialética,poissuasínteseédisjuntivaeinfinita:toma-locomoobjetodeterminaumoutroequívocoamontante,eassimpordiante”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.92/93).62ContrariamenteàquiloquesugereOscar-GuardiolaRiveraeDrucillaCornellemrecentestextosarespeitodopensamentodeViveirosdeCastro, nãohá “grau zeroperspectivista”.Operspectivismonãopode seracusadodepermanecer“foradecritério”,jáqueeleinteriorizaaprópriarelação(ZOURABICHVILI,François.Deleuze:Umafilosofiadoacontecimento.SãoPaulo:Editora34,2016,p.84).Todo“grau-zero”nãopodecorresponder senãoauma interpretaçãodaspráticasameríndiasapartirdaperspectivadoocidental. Seassim é, para que a interpretação europeia se mantenha produtiva (e interessante), essa invenção dacultura alheia (como diria Roy Wagner) deve assumir sua participação no equívoco das traduções. Arespeito,cfr.:RIVERA,Oscar-Guardiola.OnaShaman’sCouch:Whyonlyamerindianscansavethemodernsoul.Disponívelem:http://kindlemag.in/shamans-couch-indians-save-modern-soul/,acessadoem26.12.18,e CORNELL, Drucilla. Mythologizing History. Jaguar Humans, or How to Creolize Heidegger throughAmerindianCosmo-politics,textogentilmentecedidopelaautoraeaindanãopublicado.63ViveirosdeCastrocitaDESCOLA,Philippe.Lanaturedomestique:symbolismeetpraxisdansl’écologiedesAchuar.Paris:MaisondesSciencesdeL’Homme,1986,p.120.

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tarde,emumarecusadesuaco-especificidade.Nocasoindígena,éacondiçãoquetem

primaziasobreaespécie,easegundaéatribuídaatodoserquesepostulacompartilhar

daprimeira”64.

Nocontextoemqueohumanoestáemtodocanto,quetudoéintencionalidade

equeosprocessosdesubjetivaçãonãotêmfim,ahumanidadeéoutracoisatotalmente

diferente. Essa parece ser a lição principal do perspectivismo e multinaturalismo

ameríndio. No contexto dasMetafísicas Canibais, a distinção entre humanos e não-

humanosnão se faznuncadeumavezpor todas (i.e.,nunca se sedentarizade forma

absoluta). Em um mundo onde “tudo pode ser humano, então nada é humano

inequivocamente”65.Háumaproliferaçãodasdiferençasquenãosedeixacapturarpela

lógica do transcendente. Tanto no seio da experiência de mundo araweté, como na

relação equívoca que se estabelece no encontro entre o pensamento ocidental e o

pensamentoselvagem,podemserverificadosdiferentesconcepçõesdohumano.

Verifica-seumaproliferaçãodeorientaçõessobreohumano,apartirdaleitura

daspráticasaraweté.Afinal,eestaéateseprincipalaserdefendidanestemomento,o

conceito antropofilosóficodesenvolvidoporViveirosdeCastroparapensarohumano

araweté(bidë)possuiriaaomenostrêsdimensõesamerecerdestaque,quaissejam:(i)

humano enquanto plano universal (espécie de tabula rasa) a partir do qual os entes

cósmicosparticipamda(onto-)lógicadapredação66;(ii)humanoenquantolinhatrópica

dediferenciaçãointensivaqueseestabeleceapartirdoencontrocomaperspectivado

inimigo67;e(iii)ohumanocomopontotópicoquereclamaconstante(re-)afirmaçãopor

meiodaenunciaçãodaprópriaperspectivacomodominante68.

64VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.p.382.65Idem,p.377.66“Acondiçãooriginalcomumaoshumanoseanimaisnãoéaanimalidade,masahumanidade.Agrandedivisãomíticamostramenosaculturasedistinguindodanaturezaqueanaturezaseafastandodacultura:os mitos contam como os animais perderam atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os não-humanossãoex-humanos,enãooshumanososex-não-humanos.Assim,senossaantropologiapopularvêahumanidadecomoerguidasobrealicercesanimaisnormalmenteocultospelacultura–tendooutrorasido‘completamente’animais,permanecendo,‘nofundo’,animais–,opensamentoindígenaconcluiaocontrárioque,tendooutrorasidohumanos,osanimaiseoutrosexistentescósmicoscontinuamasê-lo,mesmoquedeumamaneiranãoevidenteparanós”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.60).67“Aoescolhercomoprincípiodemovimentoaincorporaçãodeatributosdoinimigo,osociusameríndioélevado a se ‘definir’ – determinar – segundo esses mesmos atributos. (...) Enfim, eis o essencial da‘metafísicadapredação’dequefalavaLévi-Strauss:asociedadeprimitivacomoumasociedadeseminterior,quenãoésenãoforadesi.Suaimanênciacoincidecomsuatranscendência”(Idem,p.162).68“Veja-seoqueosAchuarestudadosporTaylorrecomendam,comométododeproteçãoaoseencontrarumiwianch,umfantasmaouespírito,nafloresta.Deve-sedizeraoiwianch:‘Eutambémsouumapessoa!...’.Ouseja,deve-seafirmaroprópriopontodevista;quandoohumanodizquetambéméumapessoa,oqueeleestádizendoéqueeleéoeu,nãoooutro:averdadeirapessoaaquisoueu”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.397).

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O plano, tropos e topos (ou o plano, a linha e o ponto) – A imagem do

pensamento selvagem pressupõe uma topologia e uma topografia totalmente

diferentes daquelas da imagem do pensamento ocidental69. Pensar as diferenças

radicaisentreessascartografiaséumatarefaantropofilosófica.

Decerta forma,astrêsdimensõesdoconceitoameríndiodehumanoapontam

paraumaestruturahiperbólica (não-euclidiana)perante aqual cadaumaenvelopa as

demais, sem nunca uma totalizar ou englobar totalmente a outra, não havendo

necessidade ou pertinência na perquirição sobre qual estrutura seria mais

“fundamental” em relação às demais (não há uma “estrutura de estruturas”, diria

ViveirosdeCastro70).Apassagemparaumadeterminadadimensãonãoépropriamente

umasoluçãoparaaproblemáticaapresentadaemoutra,namedidaemquequalquer

passagem só é possível levando em conta a necessária procrastinação do problema

comomododevida71.

Perspectivismo e multinaturalismo ameríndio, ao assumirem a condição

universal (eeo ispoproblemática72) dohumano, imprimemuma lógicadomovimento

que conjura a sedentarização, lançando-se contra os humanismos consumados ou

finalizados (i.e., incapazes de devires) na medida em que propõem um “humanismo

interminável”73, perante o qual nunca se pode estar certo de qual é a perspectiva

69 “Nesse sentido, a assimilação predatória de propriedades da vítima, no caso amazônico, deve sercompreendida não tanto nos termos de uma física das substâncias como nos de uma geometria dasrelações, isto é, enquanto movimento de preensão perspectiva, onde as transformações resultantes daagressãoguerreira incidemsobreposiçõesdeterminadas comopontosdevista” (VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.291).70VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.247.71 “(...) [O]s selvagensnosmostraméo esforçopermanentepara impedir os chefes de serem chefes, é arecusa da unificação, é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm umahistóriaé,diz-se,ahistóriada lutadeclasses.Ahistóriadospovossemhistóriaé,dir-se-ácomaomenostanta verdade, a história da sua luta contra o Estado” (CLASTRES, P.A Sociedade contra o Estado. In: ASociedade contraoEstado:Pesquisasdeantropologiapolítica. SãoPaulo:CosacNaify2013,p.231).Seriainteressante demonstrar commais vagar como essa procrastinação do problema comomodo de vida serelaciona intimamente com a recusa à unificação por parte das sociedades “primitivas”, tal comodenunciado por Pierre Clastres. Afinal, “[a] aliança intensiva amazônica é uma aliança contra o Estado(...homenagemaPierreClastres)”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.206).72“Seulel’Idée,seulleproblèmeestuniversel.Cen’estpaslasolutionquiprêtesonuniversalitéauproblème,maisleproblèmequiprêtesonuniversalitéàlasolution.Iln’estjamaissuffisantderésoudreunproblèmeàl’aide d’une série de cas simples jouant le rôle d’éléments analytiques; encore faut-il déterminer lesconditionsdans lesquelles leproblèmeacquiert lemaximumdecompréhensionetd’extension, capabledecommuniquer aux cas de solution la continuité idéelle qui lui est propre. (…) Résoudre, c’est toujoursengendrerlesdiscontinuitéssurfondd’unecontinuitéfonctionnantcommeIdée”(DELEUZE,G.Différence...op.cit.,p.211).73VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.27/28

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dominante74. Esse outro humanismo é experimentado/experienciado a partir de uma

pragmática que radicaliza a própria concepção demundo ao interiorizar a relação no

conceito.ÉdissoqueViveirosdeCastro trataaodiscutiracaracterística“pronominal”

dasexpressõesindígenasquesãogeralmentetraduzidaspeloocidentalpor“humano”75.

EmboraViveirosdeCastronãoindiqueafonte,ateorialinguísticadeJakobson,

com base nas análises do dinamarquês Otto Jespersen, identifica o gênero de

fenômenossemelhantesapartirdonomedeshifters76.Eaqui talvez seja interessante

uma breve explicação do fenômeno. Um shifter corresponde a uma específica

conformação da relação entremensagem e código (conteúdo e expressão), as quais

podemtantoserutilizadas,comosimplesmentereferidas(i.e., instrumentalizadaspara

outrosusos).Adependerdocaso,portanto,entre(i)mensagemutilizada,(ii)mensagem

referida, (iii) código utilizado e (iv) código referido é possível estabelecer relações de

circularidade(M/MouC/C)oudesobreposição(M/CouC/M)queredundamemquatro

relações fundamentais, quais sejam: (i) Mensagem utilizada/Mensagem referida

(discursoindireto),(ii)Códigoutilizado/Códigoreferido(nomepróprio),(iii)Mensagem

utilizada/código referido (discurso autônimo, típico de circunlóquios, sinônimos e

traduções) e (iv) Código utilizado/Mensagem referida (shifters). Um shifter, portanto,

caracteriza-se pelo fato de seu código não poder ser definido sem referência à

mensagem, ou melhor, os shifters correspondem a uma categoria verbal a meio

74“Asaparênciasenganamporquenuncasepodeestarcertosobrequaléopontodevistadominante,istoé, quemundoestáemvigorquando se interage comoutrem.Tudoéperigoso; sobretudo quando tudoégente,enóstalveznãosejamos”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.397).75“Aprimeiracoisaaconsideraréqueaspalavrasindígenasquesecostumamtraduzirpor‘serhumano’,eque entram na composição das tais autodesignações etnocêntricas, não denotam a humanidade comoespécienatural,masacondiçãosocialdepessoa,e,sobretudoquandomodificadasporintensificadoresdotipo‘deverdade’,‘realmente’,‘genuínos’,funcionam,pragmáticaquandonãosintaticamente,menoscomosubstantivosquecomopronomes.Elasindicamaposiçãodesujeito;sãoummarcadorenunciativo,nãoumnome.Longedemanifestaremumafunilamentosemânticodonomecomumaopróprio (tomando ‘gente’paranomedatribo),essaspalavrasfazemooposto,indodosubstantivoaoperspectivismo(usando‘gente’comoaexpressãopronominal‘agente’).Porissoascategoriasindígenasdeidentidadecoletivatêmaquelaenorme variabilidade de escopo característica dos pronomes, marcando contrastiva e contextualmentedesdeaparentelaimediatadeumEgoatétodososhumanos,outodososseresdotadosdeconsciência;suacoagulação como etnônimo parece ser, na maioria dos casos, um artefato produzido no contexto dainteração com o etnógrafo. Não é, tampouco, por acaso que a maioria dos etnônimos ameríndios quepassaram à literatura não são autodesignações,mas nomes (frequentemente pejorativos) conferidos poroutrospovos: aobjetivaçãoetnonímica incideprimordialmente sobreosoutros, não sobrequemestáemposiçãodesujeito(verUrban1996:32-44).Osetnônimossãonomesdeterceiros,pertencemàcategoriado‘eles’,nãoàcategoriado‘nós’.Issoéconsistente,aliás,comumadifundidaevitaçãodaautorreferêncianoplanodaonomásticapessoal: os nomesnão sãopronunciadospor seus portadores, ou em suapresença;nomearéexternalizar,separar(d)osujeito”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.371/372).76Arespeito,cfr.:JAKOBSON,Roman.Shifters,verbalcategoriesandRussianverb. In:SelectedWritingsII:WordandLanguage.TheHague:Mouton&Co.,1971,pp.130ess.

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caminho entre o índice e o símbolo e, por isso, são denominados de “indexical

symbols”77.

Oqueimportadestacaréque,paraJakobson,opronomeéapenasumaespécie

do gênero de categorias verbais denominadas de shifters78. Jakobson entende que a

unidadeelementardacomunicaçãoseriaadoeventonarrado79,apartirdaqualdiversas

outras combinações são possíveis. Os shifters, portanto, corresponderiam a uma

aquisiçãolinguísticatardia80.

Essespontossãoessenciaisparaseconceberadiferençaentreacosmopolítica

ameríndia e a metafísica ocidental. Primeiramente, como Viveiros de Castro parece

sugerir, o perspectivismo e o multinaturalismo ameríndio são caracterizados,

primordialmente, pelo fato de a estrutura pronominal que os determina não

corresponder a umamera aquisição tardia e inessencial da fala, como apontado por

Jakobson,masàestruturaaxialdaenunciação.Paraoameríndio,oenunciado (procès

del’énoncé)nãopossuinuncaumvalorabsoluto,capazdeserdesvinculadodoevento

deenunciação(procèsdel’énonciation)81.

Com outras palavras, a performance assume posição de destaque. O

estruturalismosemestruturadomito,sugeridoporViveirosdeCastro,apontaparauma

aberturaúltimadopensamentoprecisamenteparaoeventodeenunciação82.Énesse

sentido,emboraporumaviatotalmentediferente,queViveirosdeCastropodeafirmar

77“TheirsemioticnaturewasdiscussedbyBurksinhisstudyonPeirces’classificationofsignsintosymbols,indices, and icons. According to Peirce, a symbol (e.g. the English word red) is associated with therepresentedobjectbyaconventionalrule,whilean index(e.g.theactofpointing) is inexistentialrelationwiththeobjectitrepresents.ShifterscombinebothfunctionsandbelongthereforetotheclassofINDEXICALSYMBOLS”(JAKOBSON,R.Shifters...op.cit.,p.131/132).78Apesardessaconstataçãonecessária,orestantedoensaioempregaonome“estruturapronominal”ou“marcadorpronominal”aoinvésde“shifter”.Trata-sedeumusoassumidamentemetonímico.79“Anyverbisconcernedwithanarratedevent”(JAKOBSON,R.Shifters...op.cit.,p.133).80 “The indexical symbols, and in particular the personal pronouns, which the Humboldtian traditionconceives as the most elementary and primitive stratum of language, are, on the contrary, a complexcategory where code and message overlap. Therefore pronouns belong to the late acquisitions in childlanguageandtotheearlylossesinaphasia”(JAKOBSON,R.Shifters...op.cit.,p.132).81 “Both designators and connectorsmay characterize the narrated event (procès de l’énoncé) and/or itsparticipants either without or with reference to the speech event (procès de l’énonciation) (…/Es) or itsparticipants (…/Ps). Categories implying such a reference are to be termed shifters; thosewithout such areferencearenon-shifters”(JAKOBSON,R.Shifters...op.cit.,p.134).82“Amitologiaameríndia,enfim,éumamultiplicidadeaberta,umamultiplicidaden-1,oudiríamosmelhora“M-1”,emhomenagemaomitodereferência,MI,omitobororoque,comologoseconstatavaemOcrueocozido,eraapenasumaversão invertidaeenfraquecidadosmitos jêqueoseguiam(M7-M12).Omito ‘dereferência’éummitoqualquer,ummito‘semreferências’–comotodomito.Poistodomitoéaversãodeum outro mito, todo outro mito abre para um terceiro e um quarto mitos, e os n-1 mitos da Américaindígena não exprimem uma origem nem apontam um destino: não têm referência. Discurso sobre asorigens,omitoéprecisamenteoquesefurtaaumaorigem”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.243).

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que “[t]odo ‘grupo’ de mitos termina por se revelar situado na intersecção de um

número indeterminado de outros grupos; e dentro de cada grupo, cada ‘mito’ é

igualmenteumainterconexão;edentrodecadamito...”83.Omito,nomecoletivoparaa

multiplicidadedaredemítica,correspondeaumamiseenabymeantropofilosófica.Esse

estruturalismo sem estrutura predefinida é possível pois o marcador pronominal

corresponde a uma categoria fundamental do pensamento ameríndio, garantindo a

proliferaçãodesériesmíticas.

Em segundo plano, a afirmação da posição determinante da estrutura

pronominalparaoaraweténãoénuncaaposiçãodo“eu”,comonocasodoocidental,

masaquelado“tu”.ApredaçãodaperspectivadoOutro,comosedisseacima,écapaz

deproduziroutrosOutros.Anoçãodehumanoameríndio(bidë)edeculturaquelheé

correspondenteétributáriadesseprocessodeseriaçãoperformativaquenuncapodese

desdobrar fora das redes pragmáticas da (onto-)lógica da predação. A afirmação da

humanidadeéinseridasemprenareferênciaaoeventodapredação.

O evento predatório corresponde de fato a uma espécie de captura e, na

medidaemquetodossãohumanoseemúltimamedidatodasasrelaçõessãosociais84,

deumaespéciedecanibalismo.Trata-sedeum“[c]ontextoanormalnoqualosujeitoé

capturadoporumoutropontodevistacosmológicodominante,ondeeleéotudeuma

perspectivanãohumana,aSobrenaturezaéaformadoOutrocomoSujeito,implicando

a objetivação do eu humano como um tu para este Outro”85. As posições do “eu”

(cultura) e do “ele” (natureza) são mediadas pela possibilidade constante do “tu”

(Sobrenatureza) que para se tornar eficaz deve ser capaz de capturar. Como alerta

Viveiros de Castro, aquele que “responde a um tu dito por um não humano aceita a

condiçãodeser sua ‘segundapessoa’,eaoassumir,por suavez,aposiçãodeeu jáo

fará como um não humano”86-87. A defesa da própria condição humana, perante a

83Idem,p.247.84VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.286.85VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.396/397.86Idem,p.397.87Aexortaçãodopredadorpoderiaseraproximadadaquelaproferidapelopolicialalthusseriano(“hé,vous,là-bas!”).Emcadacasoháumacapturaqueseprocessa.Emcadacaso,umamorte.Adiferençaentreumaeoutra,contudo,éessencialnopontoemqueoencontronaflorestacomopredadorpermanecesendoumeventoqueseprocessaàmargemdatribo,aopassoqueoencontrocomoagentedeEstadocorrespondeanadamaisqueummecanismonormalizado (ordemdocontrole)denormalização (controledaordem)noseiodasdinâmicasburguesas,oquepoderiaserchamado,inspiradoemBourdieu,dea“ordemdocontroledaordem”.OEstadodependedasubjetivaçãopredatóriaparagarantirsuaexistência,produzindomortos-vivosequase-suicídiosatodoinstante,aopassoque,nocontextodacomunidadeameríndia,oeventodepredaçãopermanececomoumapossibilidademarginal(agenciandooduplodeum“limite/limiar”),ouumaespéciedeapocalipsepagão(CLASTRES,P.Sociedade...op.cit.,p.230).

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ameaça de um predador, está na (re)afirmação (mais que simbólica) da própria

humanidade, pelo que é preciso constantemente “afirmar o próprio ponto de vista;

quandoohumanodizquetambéméumapessoa,oqueeleestádizendoéqueéoeu,

não o outro: a verdadeira pessoa aqui sou eu”88. O que importa, em cada caso, é a

enunciação,nãooenunciado.Tudoésubjetivadoapartirdoqueameaçaoenunciante

e,nãorarasvezes,tomaseu lugar(i.e.,osujeitovivo-enunciantesetornaosujeitodo

morto-enunciado).Éexatamenteapartirdessaexperiênciaquedevesercompreendida

acríticaatodohumanismoacabado,seguro-de-sieestagnado,conformeapropostade

descolonizaçãopermanentedopensamento.

Ora, em resumo dos últimos parágrafos, foram identificadas duas diferenças

essenciais entre o multiculturalismo ocidental e o multinaturalismo ameríndio.

Primeiramente,diferentementedoocidental,oameríndiotemnaestruturapronominal

não uma aquisição tardia e inessencial da fala, mas uma estrutura transcendental,

determinando a condição de possibilidade de seu próprio ser. Em segundo plano, a

perspectivadeterminanteparaaindividuaçãodomarcadorpronominalnãoéaquelado

“eu”,masado“tu”,pormeiodacanibalizaçãodo“pontodevistadoinimigo”89.

A predação da perspectiva do inimigo (o “tu”) é, para o perspectivismo

ameríndio,constitutivadequalquersubjetividadeprópria(o“eu”).Énocontextodesse

encontro(i.e.,nocontextodacaçaedaguerra),queoprópriocorpocoletivodatribose

constituina sua contraposição comosdemais.O “socius se constituiprecisamentena

interfacecomseuexterior,ou,emoutraspalavras,queelesepõecomoessencialmente

determinado pela exterioridade”90. Essa ocupação do ponto de vista do inimigo91 é

responsável pela assimilação das narrativasmíticas responsáveis pela constituição do

sociusameríndio,sempreemcontrapontocomumadadaexterioridade.92

O mito selvagem não é estático e ancestral, mas dinâmico e performático.

ViveirosdeCastroafirmaqueomitoameríndioésem-referência,mastalvezfossemais

elucidativo dizer que o mito não possui referência abstrata. O mito problematiza a

própriareferênciaquesomentepodeserafirmadanoatodesuaenunciação(comona

estrutura pronominal). A problemática referência do mito constitui a sua

88VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.397.89VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.282ess.90VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.290/291.91Idem,p.291.92ConcluiViveirosdeCastro:o “canibalismocomo imagemdopensamento,o inimigo comopersonagemconceitual: resta todo um capítulo da Geofilosofia deleuzo-guattariana a escrever”. Esse capítulo a serescrito(ouqueterásidoescrito)éoAnti-Narciso.VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.225.

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universalidade93.Trata-sedeumareferênciavirtualcujodestinoésuacristalizaçãopor

meio da prática perspectivista. Fala-se de cristalização como uma complicação do

binômio virtual-intensivo/atual-extensivo. O mito corresponde a um agenciamento

específico no qual o atual e o virtual não correspondem simplesmente a dois estados

diferentes de uma sequência diacrônica, mas às fases sincrônicas de uma estrutura

responsável por um contínuo deslocamento de perspectivas94. A repetição como

conceitodadiferençapura,responsávelpelacontínua(des)territorializaçãodecorpos.

Todaessadiscussão implicaprofundas consequências paraodesenvolvimento

de uma teoria ética das interações entre humanos e não-humanos, entre natureza e

cultura, as quais merecem ser devidamente levadas em consideração. Afirmar que a

humanidadenãoestánuncaasseguradaouque,adespeitodaexistênciadeumplano

englobante (verdadeira tabula rasa) em que “tudo é humano”, no qual todos têm

acesso ao mesmo fundo de cultura e perante o qual, em razão dessa mesma

universalidade, não há garantia alguma que impeça um ente de simplesmente passar

para o lado dos algozes, é determinante para a lógica de predação da cosmopolítica

ameríndia.

Ao contrário da humanidade ocidental, fincada na certeza de uma disjunção

exclusiva, segundo a lógica do gênero e espécie, a qual todavia não consegue senão

pensar a diferença a partir do mesmo, a humanidade ameríndia pensa a diferença

radical no sentido da pura repetição dos processos de seriação assimétrica,

internalizando a relação nos termos e permitindo pensar em múltiplos devires

prosopomórficos,paraalém (ouaquém)dacastração típicada subjetivaçãoocidental.

Seopensamentoselvagempartedoprincípio“tunãoésmaisqueosoutros”95, como

adiantou Pierre Clastres, e se a definição do que são “os outros” deve ser

93 Cfr.: DELEUZE, G.Différence... op. cit., p. 211. Não se pode esquecer que Deleuze diferencia entre oabstratoeouniversal(problemático).Arespeito,conferir:“LesIdéesparelles-mêmessontproblématiques,problématisantes – et Kant, malgré certains textes où il assimile les termes, s’efforce de montrer ladifférenceentre«problématique»d’unepart,etd’autrepart«hypothétique»,«fictif»,«général»ou«abstrait»”(Idem,p.218).94“L’imagevirtuelleabsorbetouteactualitédupersonnage,enmêmetempsquelepersonnageactueln’estplus qu’une virtualité. Cet échange perpétuel du virtuel et de l’actuel définit un cristal. C’est sur le pland’immanencequ’apparaissent lescristaux.L’actuelet levirtuelcoexistent,etentrentdansunétroitcircuitqui nous ramène constammentde l’unà l’autre. Cen’est plusune singularisation,maisune individuationcomme processus, l’actuel et son virtuel. Ce n’est plus une actualisationmais une cristallisation. La purevirtualitén’aplusà s’actualiserpuisqu’elleest strictement corrélativede l’actuelavec lequel elle forme leplus petit circuit. Il n’y a plus inassignabilité de l’actuel et du virtuel,mais indiscernabilité entre les deuxtermes qui s’échangent ” (DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’actuel et le virtuel. In: Dialogues. Paris:Flammarion,2008,p.184.95CLASTRES,P.Asociedade...op.cit.,p.220.

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consequentemente ampliada no sentido da proposta multinaturalista de Viveiros de

Castro, o homem-humano ameríndio não possui qualquer estatuto especial garantido

naescalahierárquicaemetafísicaemcomparaçãoaosoutrosseres,aocontráriodoque

acredita o homem ocidental96, mas é apenas um nódulo na rede de relações de

predação que se estabelece sempre in actu. Em outros termos, enquanto o homem

europeu tem a tarefa existencial de “tornar-se o que se é” atendendo à exortação

délficamilenar,ohomemameríndiocorresempreoriscodejáterpassadoparaolado

do não-mais-humano97. Em suma, a humanidade ameríndia não prescinde do ato de

enunciaçãoapartirdaperspectivadoinimigo,responsávelpelacontínuareafirmaçãode

sua condição humana. Uma das consequências éticas dessa humanidade ameríndia,

longede firmarumrelativismovitalista,é justamentea ideiadequeareafirmaçãoda

minhacondiçãohumanadependedaafirmaçãocontíguadaperspectivadoinimigo,ou

seja,daalteridaderadical.

Comoantropologiaselvagem,naveiaabertaporPierreClastres,asMetafísicas

Canibais se expressam como contínua conjuração da metafísica do unum (ou do

proprium)98 e, consequentemente, como convite à proliferação das diferenças e da

disseminação das concepções de humano99. Aponta-se para uma ética performativa

radical capaz de desconstruir (e aqui importa considerar em que medida a

desconstrução seria necessariamente um construtivismo) os binômios estanques da

96 Toma-se em conta, a título de mero exemplo, o “Discurso sobre a dignidade humana”, de Pico delaMirandola,umdos textos seminaisdohumanismoeuropeu (cfr.MIRANDOLA,Picodela.Discursosobreadignidadehumana.Ed.bilíngue.6.ed.Lisboa:Edições70,2011).Nosentidodacríticaoraproposta,bastasimplesmente fazer alusão à análise deAgambena respeito: “La tesi centrale dell’orazione è, infatti, chel’uomo,essendostatoplasmatoquandoimodellidellacreazioneeranotuttiesauriti(…),nonpuòaverenéarchetiponéluogoproprio(…)nérangospecifico(…).Anzi,poichélacreazioneèavvenutasenzaunmodellodefinito (…),eglinonhapropriamentenemmenouna faccia (…)edevemodellarlaa suoarbitrio in formabestiale o divina (…). In quantononhané essenzané vocazione specifica,Homoè costitutivamentenon-umano,puòriceveretuttelenatureetuttelefacce(…).Lascopertaumanisticadell’uomoèlascopertadelsuomancareasestesso,dellasuairrimediabileassenzadidignitas”(AGAMBEN,Giorgio.L’aperto:L’uomoel’animale.Torino:BollatiBoringhieri,2010,p.35/36).97“Éimportanteobservarqueessescorposameríndiosnãosãopensadossobomododofato,masdofeito.(...)ABildungameríndiaincidesobreocorpoantesquesobreoespírito:nãohámudançaespiritualquenãopasseporumatransformaçãodocorpo,porumaredefiniçãodesuasafecçõesecapacidades”(VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.390).98SegundoClastres:“(...)[E]ssepensamentoselvagem,quequasecegaportantaluz,nosdizqueolugardenascimentodoMal, da fonte da infelicidade, é oUm” (CLASTRES, P.A sociedade... op. cit., p. 229).Maisadiante,oautoraindaquestiona:“EmquecondiçõesépossívelpensaroUm?Éprecisoque,dealgummodo,sua presença, odiada ou desejada, seja visível. É por isso que acreditamos poder revelar, sob a equaçãometafísicaqueigualaoMalaoUm,umaoutraequaçãomaissecreta,edeordempolítica,quedizqueoUmé o Estado. O profetismo tupi-guarani é a tentativa heroica de uma sociedade primitiva para abolir ainfelicidadenarecusaradicaldoUmcomoessênciauniversaldoEstado”(Idem,p.229/230).99 “Se a filosofia real abunda em selvagens imaginários, a geofilosofia visada pela antropologia faz umafilosofia imaginária com selvagens reais. ‘Imaginary gardenswith real toads in them’ (MarianneMoore):jardinsimaginárioscomsaposdeverdade”(VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.224).

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lógica ocidental: humano e não-humano, natureza e cultura, dentro e fora, fundo e

figura, enfim.Mais do que uma posição simetricamente oposta em comparação a do

ocidental (o que determinadas leituras antropológicas não se cansam de evidenciar,

talvez rápido demais), o pensamento ameríndio aponta em direção a uma assimetria

entre sociedades ocidentais e sociedades ditas “primitivas” (ou contra o Estado)100.

Reprisando a exortação pregnante de Viveiros de Castro, para quem “o Outro dos

Outrosésempreoutro”101.Essaassimetriaestá inseridaemdoisdiferentesregimesde

espacializaçãodoproblemaemconformidadeadiferentestopologiasetopografias.

Separaopensamentoocidental,ohumanoéafiguradaquelequesedeslocano

espaço já delimitado e formatado em fronteiras, para o pensamento ameríndio o

humanoéopanodefundosemprecapazdesubverterqualquerfronteiraestabelecida

em favor da instauração de uma cosmopolítica entre todos os viventes. Se para o

ocidental, o humano é aquele cuja propriedade é não possuir especificamente um

proprium,podendoassumirtantoascaracterísticasdeumanimal,comoasdeumanjo,

adependerdeumaespecíficadisposiçãodoespírito,paraoameríndio,ohumanoéo

anti-proprium, sempre preparado para a transgressão de fronteiras e a assunção da

perspectiva de um terceiro, evitando-se justamente a constituição de qualquer

perspectivaprivilegiada,transcendentalouredundante.Separaoocidentalosolipsismo

é o principal receio epistêmico, para o ameríndio o principal receio vital seria a

desintegraçãodocorpocanibalizado.

Contraaviolênciaepistêmicadopensamentoocidental,que,apartirda lógica

dosaparelhosdecaptura, cria tantoaCultura comooHomemquese tornamobjetos

dessamesmacaptura102,opensamentoameríndiopropõeumacontra-violência(oque

nãoéomesmoqueumanão-violência)semprepreocupadaemconjurar-anteciparessa

capturaapartirdeseudiscurso“só-sujeito”103.Enfim,contraaviolênciaepistêmicado

Estado,contraacapturadaculturahegemônica,contraosmodelosdesubjetivaçãodo

homemocidental,opensamentoameríndioapresentaumestruturalismosemestrutura

paraseuhumanismointerminável.

100Vernota71,supra.101VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.93.102“Finalement,iln’yapasdutoutdemystère:lemécanismedecapturefaitdéjàpartiedelaconstitutiondel’ensemblesurlequellacaptures’effectue”(DELEUZE,G;GUATTARI,F.Mille...op.cit.,p.557)103VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.355.

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ConsideraçõesFinais

Retorne-seàquestão:oqueaindadizerdohomem?Seufim(eskhaton)jáfoianunciado.

Inobstante, e esta foi uma premissa importante deste trabalho, não basta anunciar o

esgotamento. É preciso ressignificar a narrativa escatológica para sensibilizar o

pensamentoàshumanidadesintermináveisanunciadaspelopensamentoameríndio.

Como dito, o perspectivismo e o multinaturalismo ameríndio agenciam o

conceitodehumanonãoapartirdalógicadafalta(i.e.,comomeranegatividade),mas

conforme a ontologia da predação, em cuja “dialética só há Mestres”104. Tal (onto-

)lógica selvagem, fincada na perspectiva do inimigo, cuja humanidade é referencial

compartilhado por todos os partícipes de sua cosmopolítica, é capaz de enfrentar a

captura/estagnação do pensamento que se resolve na reafirmação de binômios por

demais conhecidos, tais como: humanos/não-humanos, natureza/cultura, dentro/fora,

figura/fundo,enfim.Emfacedascapturasocidentais,opensamentoameríndiopermite

vislumbrarummodelodedisseminaçãodosconceitosdehumano.

Essadisseminaçãonãocorrespondeaumaexperiênciahomogeneizante.Muito

pelo contrário. É caso de pensar a disseminação dasmultiplicidades,mas também, e

talvez principalmente, das assimetrias e desequilíbrios. Considerar o “humanismo

universal”ameríndiosobajustaluz,implicaevitartodaequalquerafirmaçãoapressada

e simplória no sentido de que todos os entes envolvidos na cosmopolítica indígena

seriamequivalentesemdignidade,talcomoprocede,porexemplo,umaingênuacrítica

da relação entre homem e animal a partir de determinado paradigma jurídico

contemporâneo. Ao contrário, a lógica da predação, em toda sua imanência, associa

intrinsecamentedireitoepoder (segundooqueodireitodecadaqual seestendeaté

ondevaisuapotência),namedidaemquecadaperspectiva lutaparaseperpetuarna

cadeia de predação105. O humanismo universal implicado no xamanismo transversal

ameríndioé frutodeuma“geometriadas relações”106 entreos viventes,marcadapor

“umdesequilíbrioperpétuo”107.

104VIVEIROSDECASTRO,E.Imanências...op.cit.,p.291.105As implicações entreo pensamento ameríndio e a filosofia spinozana e nietzschiana seráo objetodeestudo próprio e futuro, fugindo do escopo e dos limites deste artigo. Nestemomento, importa apenasapontarparaaquestão,semcontudoadensarconceitualmenteasdimensõesdoproblema.106VIVEIROSDECASTRO,E.Imanências...op.cit.,p.291.107VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.180.

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Afirmarqueasdiferentesperspectivassobreohumano(eeoipsoasdiferentes

conformaçõesdahumanidade)nãoseequivalemimplicasugerirumaaberturaradicalàs

alteridades.Radical em dois sentidosmínimos, pode-se dizer. Primeiramente, pois na

dialética “só-Mestres”, nenhuma espécie em particular pensa encontrar-se no vértice

absoluto da cadeia de predação, ou mesmo personificar a posição de absoluta

precariedade. O xamanismo transversal araweté corresponde a um “dispositivo de

intercâmbioentreosviventeseosMaï”108,numcontextodepensamento“pronominal”

perante o qual, cada conformação da humanidade (i.e., a humanidade-queixada, a

humanidade-jaguar, a humanidade-humana, enfim) compartilha uma série de

referentesentresi,demodoquecadaumaencontra-setensionadanoseiodarelação

de predação. Se o homem-humano é um espírito para o queixada, o jaguar pode se

encontrar em posição de enxergar o homem-humano como só mais uma presa. A

ocupaçãocomaalteridade,portanto,surgenamedidaemquearelaçãoentreviventes

eMaïnãoénuncaestabelecidanumúnicosentido.Hásempreoriscodeassumiruma

posiçãoquejánãoémaisa“sua”posiçãohumana.Nestesentido,acadeiadepredação

não implica na mera lógica da “lei do mais forte”, ao contrário, aponta para uma

relacionalidade éticade tensadeferênciaàalteridade radicaldooutro,namedidaem

queacadeiadepredaçãonuncapersonalizaumaposiçãoabsolutaesegura.

Em segundo lugar, pois ao compartilhar determinados referentes, os viventes

proliferamdiferentesexpressõesdahumanidade.Porisso,trata-sedeumahumanidade

interminável,afinal,o“outrodosoutrosétambémOutro”109.Perceba-se,porém,queo

“Outro” de Viveiros de Castro não é nem o marcador da falta, nem o marcador da

transcendência,masumagentededisseminação.Ametafísicadapredaçãoameríndiaé

responsável por uma antropologia que vive de equívocos (os quais devem ser

entendidosnãocomo“falhasubjetiva”,mascomo“dispositivodeobjetivação”110).Ser

determinado pelo ponto de vista do inimigo exige que cada perspectiva prolifere

diferentes narrativas de mundos diferentes (trata-se da “circulação infinita de

perspectivas”,asquaisseabremumasàsoutras,comofractais),sobacondiçãodecada

pontodevistaassumir,atodoinstante,operigoabsolutodejánãomaiscorresponderà

perspectivadominantedarelaçãodepredação.

108VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.269.109VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.260.110Idem,p.93.

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Essadisseminaçãodedisseminaçãoevocaumacondiçãoprofundamenteética,a

qual assumiria uma conformação efetivamente prosopomórfica (e não propriamente

antropomórfica que tome o homem-humano como ideal de forma), perante a qual a

expressão se constitui como elemento indispensável. O xamanismo ameríndio

correspondeaumaarteético-políticasingular,“[p]oisaboa interpretaçãoxamânicaé

aquela que consegue ver cada evento como sendo, em verdade, uma ação, uma

expressãodeestadosoupredicadosintencionaisdealgumagente”111.Saberpersonificar

é necessário justamente porque é necessário personificar para saber112. Viveiros de

Castro sintetiza: “se no mundo naturalista da modernidade um sujeito é um objeto

insuficientemente analisado, a convenção interpretativa ameríndia segue o princípio

inverso: um objeto é um sujeito incompletamente interpretado”113. A impessoalidade

interpretativa,ouausênciadacapacidadededeterminar sua relaçãosocial (epolítica)

comaquelequeconhece,nãotemrelevânciaontológica.

Nãosetratanemdeumanimismovoluntarista,nemdeumrelativismo,masde

umrelacionismo114.Nãosugereanimismovoluntarista,nosentidodequeosanimaisse

assemelham aos homens-humanos, tidos como paradigmas existenciais. O

perspectivismo assume que animais e humanos são difereintes de si mesmos, numa

diferença intensiva. Tambémnão supõeamultiplicidadede representações subjetivas

sobreamesmanaturezaexternatotaleindiferenteàsrepresentações,comonomodelo

relativista.Todaperspectivaétotal.Oquemudadeenteparaenteéoprópriomundo

que cada qual vê. Trata-se de uma perspectiva total e não de uma simples

representaçãoparcelardarealidade.

A diferença entre os pontos de vista está no corpo, ou seja, a capacidade

perspectivista em Viveiros de Castro é uma potência do corpo. Corporeidade é

entendidanãocomodiferençafisiológica,massimcomoascapacidadeseafecçõesque

singularizamcadaespéciedecorponaconstituiçãodeseushábitos.Esse“maneirismo

corporal” expõem uma diferença que só pode ser apreendida em termos de

intensidades “(...) para outrem, uma vez que, para simesmo, cada tipo de ser tem a

mesma forma (a forma genérica do humano): os corpos são o modo pelo qual a

alteridadeéapreendidacomotal.Nãovemos,emcondiçõesnormais,osanimaiscomo

111VIVEIROSDECASTRO,E.Perspectivismo...op.cit.,p.359.112Idem,p.360/361.113Ibidem,p.360.114Ibidem,p.382.

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gente, e reciprocamente, porque nossos corpos respectivos (e perspectivos) são

diferentes”115.

Essa ontologia ameríndia levada a sério por Viveiros de Castro acenaria para

umaéticaperformativaradical.Namedidaemqueestabeleceumarespectividadedos

corpos, permitiria levar a cabo a tarefa de finalizar o humano e, ao mesmo tempo

ressignificaranarrativadoesgotamento,aoinseriroproblemadaperformancenoloop

constantedarepetiçãoenquantoprocessoabsolutodediferenciação(eternoretornoda

diferença). Não haveria de se falar em utopias ou distopias, mas na radicalização da

(onto-)lógica do equívoco, capaz de superar as amarras epistêmicas para conferir a

possibilidade de simplesmente transbordar para além das formas (e fôrmas)

estabelecidasdoshorizontestranscendentes.

Umaéticaperformativaradical,também,namedidaemqueessarespectividade

dos corpos assinala, retomandoa inspiraçãoemRoyWagner, paraumaconcretização

inventiva de si a partir da perspectiva do outro, tanto do ponto de vista do sujeito

quanto da vida social. Havíamos ressaltado três imbricadas dimensões de pensar o

humano araweté na antropofilosofia a partir de Viveiros de Castro. Um humano

enquantoplanouniversalnoqualtodososentesparticipamdahumanidade,nãocomo

uma constante autônoma, mas como variável de uma função, em que todos são

mestres,enuncasepodeestarcertodequaléaperspectivadominante.Umhumano

queelegecomoprincípiodemovimentoainclusãodeatributosdoinimigo,implicaum

sociusameríndionoqualoqueosujeitoassimiladooutrosãoossignosdaalteridadedo

próprioinimigo.116Umhumanoquereivindicaconstantementeaafirmaçãoenunciativa

de sua perspectiva como pessoa. Em todas as três dimensões se expressa um

humanismocomutador,noqual,segundoViveirosdeCastro,o“eu”eo“outro” intra-

humanos se comutam. Esse mesmo humanismo perspectivista, segundo o qual as

diferentes subjetividades que povoam o universo são dotadas de pontos de vista

radicalmente distintos se comutam, está pressuposto também no contexto do

xamanismo.Nesseúltimo,certoshumanospossuemacapacidadedecruzarasbarreiras

corporaiseadotaraperspectivahumanadassubjetividadesnão-humanas.Umaespécie

decampocosmopolitanaqualacomutação/conduçãoentreo“eu”eo“outro”sedáde

115Ibidem,p.380/381.116VIVEIROSDECASTRO,E.Imanência...op.cit.,p.290.

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forma interespecífica.117ComoafirmaViveirosdeCastro, “nãohá lugarparaum ‘nós’

senãoojádeterminadopelaalteridade”118

Umacontinuidadepossíveldapresenteinvestigaçãopartiriaparaaapreciaçãoe

aprofundamento da discussão a respeito dos modos de ser da antropofilosofia de

ViveirosdeCastro.Trata-sedealçaro“quomodo?”àcondiçãodepalavradeordem.

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117 VIVEIROS DE CASTRO, E. Xamanismo e sacrifício. In: Inconstâncias... op. cit., p. 468. Como ressaltaViveirosdeCastro,nãoapenasnóshumanos,emsentidoestrito,dispomosdexamãs.118VIVEIROSDECASTRO,E.Metafísicas...op.cit.,p.260

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SobreosautoresBethaniaAssyProfessora de Filosofia do Direito dos programas de mestrado e doutorado daPontifíciaUniversidadeCatólicadoRiodeJaneiroedaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro.MestradoePhDemFilosofiapelaNewSchoolforSocialResearch–NY,USA.Orientanda da filósofa Agnes Heller. Pós-doutorado emDireito pelaBirkbeckLaw School - Universidade de Londres (2012-2013). Coordenadora Adjunta daCátedraUnescoViolence,GovernmentandGovernance.Pesquisadoravisitanteem:UniversidadedeBremen (2001);UniversidadedeFrankfurt(2003);UniversidadedeOldenburg(2001,2006,2007);noInstitutoMaxPlanckdeHistóriadaCiência-Berlin(2005);UniversidadeLivredeBerlin(2009).ProfessoraVisitantenaUniversidadedeNanterre–ParisX (2018, 2015,2013).PublicouÉtica, Responsabilidadee JuízoemHannah Arendt, (em inglês- Editora Peter Lang, português-Editora Perspectiva eitaliano-EditoraMimesis); publicou com José Ricardo Cunha: Teoria do Direito e osujeito da injustiça social (português); editouDireitosHumanos: Justiça, VerdadeeMemória(português)eatualmenteestátrabalhandonopróximolivro,emcoautoriacom Allan Hillani: The Subject of Injustice: political action, law and empowerment(inglês,editoraRutledge).E-mail:[email protected] em Direito, graduado pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2003-2009),MestreemDireitoProcessualpelaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro–UERJ (2013-2015) eDoutorandoemTeoria doEstado eDireito Constitucional pelaPontifíciaUniversidadeCatólica doRiode Janeiro – PUC-RIO (2016-presentedata),com sanduíche na University of London – Birkbeck (primeiro semestre de 2018).ProcuradordoEstadodoPará(2010-presentedata).Já lecionoudiversasdisciplinasdoDireitoemcursosespecíficose seminários, taiscomooDireitoConstitucional,oDireitoFinanceiro eoDireito Processual. Recentementeaprovadopara o cargodeprofessor substitutodaUniversidadeFederaldoPará–UFPAparaasdisciplinasdeHistóriadoPensamento Jurídico,TeoriadoDireito,Ética JurídicaeHermenêuticaeTeoria daArgumentação. Possui interesses emFilosofia, Filosofia Política, Filosofiado Direito, Teoria do Estado e Direito Constitucional. E-mail:[email protected]íramigualmenteparaaredaçãodoartigo.