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Sumário INTRODUÇÃO 2 Da criação ao roteiro 4 Antes das filmagens 12 Nas Filmagens 20 Depois das filmagens 28 CONCLUSÃO 34 BIBLIOGRAFIA 36 FICHA TÉCNICA 37 1

A idéia de se elaborar um material reflexivo sobre a ...  · Web viewINTRODUÇÃO . 2. Da criação ao roteiro . 4

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Sumário

INTRODUÇÃO 2

Da criação ao roteiro 4

Antes das filmagens 12

Nas Filmagens 20

Depois das filmagens 28

CONCLUSÃO 34

BIBLIOGRAFIA 36

FICHA TÉCNICA 37

ANEXOS Roteiro 1 Fotos 16 Orçamento 21

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Introdução

A realização de um vídeo de ficção – ao qual apelidarei carinhosamente de “filme”,

dando nome ao sonho de um dia poder realizá-lo ou transformá-lo em película – é uma

idéia há muito presente em meus planos e anseios profissionais. Mais do que um hobby ou

uma simples curiosidade, essa iniciativa nasceu a partir do convívio quase que diário com

as telas de cinema. Cinéfila, muito antes de entrar para a Faculdade de Comunicação já

assistia a um grande número de filmes por mês, e costumava alterar mentalmente trechos de

seqüências que não me agradavam, criando um novo filme a partir do primeiro. Nascia ali a

intenção de um dia ser cineasta.

À cinefilia uniram-se o senso crítico e a formação teórica propiciada pela

Faculdade de Comunicação da UFBA, na qual pude cursar praticamente todas as matérias

de cinema disponíveis no curso. Como não havia graduação nessa área em Salvador, optei

pelo curso de Jornalismo da Facom na tentativa de obter uma boa formação intelectual que

me fornecesse instrumentos para ser crítica de cinema e, quem sabe um dia, cineasta.

Assim, pude ampliar meus conhecimentos cursando disciplinas como Temas Especiais em

Cinema e em Televisão, Cinema Brasileiro, Cinema Internacional, Narrativas Audiovisuais

e Oficina de Vídeo. Paralelamente, na tentativa de acalmar os meus anseios de realizadora,

comprei muitos livros sobre cinema e busquei cursos de extensão na Fundação Cultural do

Estado, a DIMAS, onde pude aprender sobre roteiro, direção, técnicas de montagem etc.

Durante esses anos, foram muitos os professores, de diferentes instituições, que me

ensinaram sobre a história, a linguagem e a natureza do cinema, aumentando assim o meu

interesse particular pela sétima arte e sofisticando o meu pensamento enquanto espectadora.

De espectadora até pretensa cineasta não foi preciso muita coisa. Realizei o meu

primeiro vídeo graças à disciplina Comunicação e Atualidade I, cursada na Facom em

2001, e não parei mais. O trabalho, entitulado “Cinema sem Película”, era um

documentário sobre cinema brasileiro, baseando-se no depoimento de críticos de cinema e

realizadores baianos. No entanto, uma visão mais ampliada do fazer cinematográfico, suas

técnicas e sua linguagem, só viriam a ser desenvolvidos em 2003, na disciplina Oficina de

Vídeo oferecida pelo professor-orientador José Francisco Serafim. Desenvolvendo

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habilidades técnicas, os alunos da disciplina tinham de produzir uma série de vídeos

individuais durante o semestre, e o exercício de avaliar e ser avaliado era uma constante,

exercitando o senso crítico e a sensibilidade. Os vídeos realizados configuravam-se como

registros do cotidiano, que culminavam num vídeo-documentário final mais elaborado

sobre qualquer atividade de interesse do realizador. Assim nasceu “Ensaio de um Regente”,

documentário sobre um dia de ensaio na vida de um maestro. Filmado na Reitoria da

UFBA, ele mostra os vários momentos do ensaio de uma ópera, “As Bodas de Fígaro”.

No entanto, a realização desses vídeos, apesar de me proporcionarem imensa

satisfação, aumentavam cada vez mais o desejo de me aventurar pelo mundo da ficção.

Especialmente devido à cinefilia e às disciplinas oferecidas pela Facom, nas quais pude

conhecer a fundo o trabalho de diretores como Ingmar Bergman, Stanley Kubrick, Alfred

Hitchcock etc. Percebi que o trabalho de conclusão de curso era a grande chance de

penetrar nesse mundo de sonho que as imagens criadas por esses cineastas proporcionam,

tendo ainda a oportunidade de ver o meu produto final avaliado por especialistas da área.

Não poderia ser melhor.

A partir daí, nascia o curta-metragem “À Margem do Tempo” (16min). Baseado no

conto O Outro, de Jorge Luís Borges, criei um roteiro sobre um homem solitário, entediado

com o seu cotidiano, que reflete pelos cômodos de sua casa sobre o significado da vida. A

partir daí, ele relembra uma estranha situação em que viveu, quando encontrou-se à

margem do rio consigo mesmo quando jovem. Ambos conhecem mais um sobre o outro, e

fazem grandes descobertas.

A história, de caráter fantástico, oscila entre o sonho e a realidade, e foram muitas as

escolhas a serem feitas para obter esse resultado final. Foram necessários meses de

preparação, elaboração do roteiro, escolhas dos atores, da equipe e das locações, até

concluir a minha primeira obra cinematográfica de ficção. O percurso foi longo, cheio de

erros e acertos, até chegar à elaboração dessa memória.

Apresento aqui uma reflexão sobre o meu trabalho, com as influências que recebi e os

caminhos que percorri para chegar até aqui. A memória está dividida em quatro capítulos

principais, que correspondem a quatro etapas na realização de um filme: “Da criação ao

roteiro” (que narra da idéia à finalização do roteiro); “Antes das filmagens” (que fala das

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escolhas do formato do filme, das locações, atores, equipe etc); “Nas filmagens” e “Depois

das filmagens”, o que corresponde à etapa da montagem.

Da criação ao roteiro

A idéia de se elaborar um material sobre as etapas da feitura de um filme, assim

como qualquer outra forma de criação, pode soar assustadora para quem a concebeu. Isso

porque o exercício de criar é, antes de tudo, um processo interminável de tentativas e erros,

recuos e acertos, e organizá-las e registrá-las passo a passo é tarefa quase impossível. A

elaboração de uma memória requer, e porque não dizer, uma boa memória. As páginas que

seguem são apenas uma tentativa de registrar uma parte significativa desse processo. Nesse

capítulo, procurarei narrar desde o surgimento da idéia até a concepção do roteiro final.

Obviamente, tratarei dos elementos que me ajudaram a compor o roteiro, assim como o

filme em si. É apenas uma breve narrativa das associações e idéias que se configuraram

num roteiro a partir de um estudo prévio sobre seus mecanismos.

De início, tinha uma vaga noção dos temas que gostaria de filmar. Sempre me

atraíram especialmente livros, peças teatrais e filmes que tratassem de questões

existenciais. Sabia que gostaria de lidar com temas mais universais, ligados aos

sentimentos, emoções e pensamentos intrínsecos a qualquer ser humano. Mas isso era tudo.

Era só uma vaga idéia do que queria, e não sabia por onde começar. Dentro deste conjunto

maior – o de questões existenciais – retornavam sempre à mente motivos como morte,

envelhecimento e solidão, temas caros para mim. Quanto às imagens recorrentes,

costumava ver sempre um homem pensativo diante de sua janela – velho, perto da morte e

solitário. Agora vejo que era a imagem-síntese dos temas que eu gostaria de abordar.

Mas um velho sozinho em sua janela não é um filme. É apenas uma imagem. Não

conseguia ver adiante, não sabia o que iria acontecer com ele, o que exatamente o motivava

a estar ali. “Idéias são pontos de partida para a confecção de um roteiro. Pode ser uma

situação, um personagem, um acontecimento, um desejo ou até um objeto. Sempre algo

concreto.” (Duarte, p.52). Acreditei na idéia e comecei a investigá-la, a refletir sobre isso.

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Aos poucos, fui descobrindo que se tratava de um velho que se sentia cada dia mais

próximo de sua morte, entediado com seus dias todos iguais, refletindo sobre o sentido da

vida. Era o ponto de partida.

Intuitivamente, sem saber se iria dar certo, reuni alguns livros sobre o assunto, e

passei a consultá-los diariamente. O primeiro deles foi O Livro de Areia, de Jorge Luis

Borges, no qual reli uma história que me impressionou muito: O Outro. Em linhas gerais,

narrava em primeira pessoa a história de um velho escritor de 70 anos, que sentado junto à

margem de um rio encontrava-se com um rapaz que ele descobria ser ele mesmo quando

jovem. O conto se resumia basicamente ao diálogo entre os dois, entremeado por algumas

observações pessoais. A história me impressionou por dois motivos: primeiro, pela carga

emocional que naturalmente um encontro desses proporcionaria a qualquer pessoa; e

segundo, pelo ar meio fantástico, onírico, o mundo de sonho que os contos de Borges

costumam evocar naqueles que os lêem. Naturalmente, Borges sempre me agradou por

causa da sua proximidade com o mundo dos sonhos, assim como o cinema. A combinação

dos dois me parecia brilhante. Logo me veio a idéia de adaptar o conto, transformá-lo em

filme. Depois disso, o reli várias vezes, e consegui visualizar algumas cenas. Acreditei que

dali sairia uma boa história.

A idéia de adaptar uma obra literária para o meio audiovisual pode soar intrigante e

até mesmo assustadora, já que envolve questões delicadas como fidelidade aos escritos, por

exemplo. Sempre achei que não se deveria dar tanta importância a isso, e sei que não estou

sozinha nessa opinião. Ano passado, no Festival de Cinema de Brasília, pude conferir

satisfeita que no debate sobre “Cinema e Literatura”, realizadores como Julio Bressane e

estudiosos como Ismail Xavier eram unânimes em afirmar que a única fidelidade a ser

cumprida pelo roteirista/cineasta na adaptação de uma obra é consigo mesmo. Se entender,

assimilar o universo ficcional de um escritor e conseguir traduzi-lo em imagens já é tarefa

bastante difícil, ser “fiel ao seu estilo” é algo muito mais subjetivo e complexo. Embora

ambos pertençam, nesse caso, ao mesmo terreno da ficção, cinema e literatura são duas

formas de linguagem distintas, e é quase impossível imaginar o que seria a tradução

perfeita de uma modalidade em outra. No entanto, ao olhar novamente para o meu roteiro,

percebo que as diferenças não são tão gritantes assim, já que tenho uma certa intimidade

com os livros de Borges, e me agradam o seu teor fantástico e as questões filosóficas que o

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envolvem. Ao menos esses dois elementos, o fantástico e o filosófico, estão presentes no

roteiro – e procurei mantê-los menos por querer “ser fiel” a Borges, do que por estes

coincidirem com o tipo de filme que gostaria de realizar. Também senti que algo deveria

ser acrescentado ao diálogo, que algumas falas poderiam ser mal-entendidas, e precisavam

se tornar mais claras para o espectador. Era preciso incluir algumas falas e eliminar outras

para que se adequasse bem à linguagem audiovisual. Sabia que o filme deveria valorizar o

olhar, os pequenos gestos, a paisagem que os envolvia, sendo mais contemplativo. Nesse

sentido, as aulas de cinema da Facom me ajudaram muito a entender a natureza do cinema,

e a valorizar o poder da imagem em detrimento das palavras. Não queria que o meu filme

fosse um teatro filmado.

Mas a adaptação dessa obra pedia mais da minha criatividade do que algumas

modestas modificações. Reli o conto muitas vezes, e ele descrevia basicamente o diálogo

entre o velho e ele mesmo quando jovem, e só. Sentia que algo estava faltando àquela

história, e não sabia dizer exatamente o quê. Conseguia ver o velho sentado à margem do

rio, encontrando-se com o jovem e conversando, mas sentia falta de cenas anteriores e

posteriores a essa. Nesse sentido, as aulas de roteiro na DIMAS, ministradas pelo professor

Roberto Duarte em 2001, foram de grande ajuda para mim. Logo percebi que o que eu

sentia falta era de uma apresentação do personagem, comum no primeiro ato de um

filme/roteiro, para que o espectador saiba de onde ele veio, o que faz, seus anseios, etc.

Além disso, senti que alguns trechos dos diálogos soavam bem enquanto literatura, mas

pareciam pouco naturais dentro de um filme de ficção. Sabia que algumas alterações,

supressões e acréscimos deveriam ser dados às falas, e que um primeiro e um último ato

deveriam ser criados para encabeçar a trama. Mas nem sabia por onde começar.

Foi então que passei a ler outros livros que poderiam me inspirar a compor os

personagens e as partes que faltavam à história. O primeiro deles foi O Tempo da Memória,

de Norberto Bobbio, obra autobiográfica na qual ele se debruça em suas lembranças mais

íntimas e trata do mecanismo da memória, presente sobretudo na fase da velhice. Logo após

relê-lo percebi que o meu personagem estaria, naturalmente, se ocupando de suas

lembranças – e daí então se lembraria, fatalmente, do dia em que se reencontrou consigo

mesmo. E Bobbio, no alto dos seus 87 anos, refletindo sobre o significado da vida e

traçando um auto-retrato, era o material perfeito para ajudar a compor o meu personagem.

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Junto a isso, procurei estreitar ainda mais a convivência com minha avó, uma simpática

velhinha de 84 anos que, desconfio, me influenciou de maneira decisiva a fazer um filme

sobre isso. “O material básico é tão amplo como a própria vida. Em pouco tempo vamos

estar escrevendo sobre nós mesmos, sobre nossa família e amigos. Ainda não estaremos

escrevendo o roteiro, mas criando o nosso próprio material de pesquisa, as fontes da nossa

história” (Duarte, 2000 p.53)

Além de O Tempo da Memória, tinha lido há pouco tempo Cartas a um Jovem

Poeta, de Rainer Maria Rilke, uma compilação de cartas do famoso escritor a um jovem

poeta, que tratava exatamente da relação entre a sabedoria de um velho escritor e a

inexperiência de um jovem iniciante. O livro me inspirou na construção dos personagens,

além de apresentar, entre muitos aspectos, um olhar preciso sobre a solidão. Junto a ele,

senti a necessidade de ler poesias que me inspirassem, e mais uma vez optei por Borges:

Elogio da Sombra, livro que me ajudou na associação de idéias e visualização das imagens,

e que acabou por ter um verso citado na trama. Esse verso, por sua vez, faz parte de um

poema borgiano chamado Heráclito, e representa para mim a alma do filme, a questão

central entre os temas da morte, envelhecimento e solidão: o tempo. A partir daí, percebi

que se tratava de um filme sobre o tempo, e que toda a construção e estrutura do roteiro

deveria se guiar por isso.

A leitura desses livros fez parte do que Roberto Duarte, citando Roberto Menna

Barreto, chama de primeira fase da criação: a preparação. É a fase em que se reúne o

máximo de informação disponível sobre o assunto, consistindo numa pesquisa. No entanto,

optei por não ler uma quantidade grande de livros, mas apenas o essencial para que pudesse

me inspirar a construir uma história. Além da leitura, também procurei assistir muitos

filmes, e foram muitos os que me influenciaram nesse processo. Mas acho que não seria

possível listar todos aqui, já que são incontáveis os filmes que me inspiraram, e fizeram

parte da minha formação cinematográfica. Mas citaria sobretudo O Anjo Exterminador e A

Bela da Tarde, dois clássicos surrealistas de Luís Buñuel, além de Cidade dos Sonhos, de

David Lynch.

Após a leitura, vem o que se chama fase de incubação, quando a mente trabalha com

o material que recebeu de maneira mais ou menos inconsciente. Assim, durante mais de

uma semana amadureci a idéia, visualizei e construí cenas mentalmente, para em seguida

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destruí-las ou reconstruí-las, a fim de fazer um filme que reunisse todos esses dados que

acumulei de maneira que apresentasse uma coesão, trabalhando com as técnicas e

ferramentas aprendidas nas aulas de roteiro.

Depois de mais de uma semana em que “digeri” toda a informação disponível,

trabalhando a partir da minha intuição, começaram a surgir as idéias. Tinha em mente um

velho escritor solitário, andando dentro de casa, entediado com o seu cotidiano. Queria

transmitir a idéia de que, por levar uma vida assim, por viver questionando o seu sentido

quando se está tão próximo da morte, ele sentia a cada instante o tempo passar. E então

comecei a visualizá-lo em seus dias todos iguais, na velha rotina dentro de casa, a cabeça

cheia de lembranças, acordando, lavando o rosto, tomando café, escrevendo, e é claro – a

cena que não poderia faltar – postando-se pensativo à janela. E os dias passavam, todos

iguais, e apenas as lembranças eram vivas, pois ele já estava morto em seus gestos e hábitos

cada vez mais mecânicos e inúteis. Sua vida não fazia mais sentido.

Cheguei então a outra fase do processo: eu já sabia o que queria dizer, mas como

transmitir isso em imagens e encadeá-las passo a passo com os sons? Sabia que o roteiro

consiste na ordenação prévia das imagens e sons, mas dentro disso as possibilidades são

infinitas, são muitas as imagens e sons possíveis dentro de uma mesma seqüência. Escolher

é limitar, é tornar real e palpável a sua criação, as suas idéias, e descobri na pele o quanto

isso pode ser difícil e doloroso.

E no entanto, mesmo tendo à frente um oceano de possibilidades, no início do

processo a mesma imagem aparecia constantemente. Logo que comecei a criar e visualizar

as cenas, imaginava sempre o velho acordando, abrindo os olhos e levantando-se da cama.

Não sabia o porquê. Parecia crise de inspiração. Depois fui entender que essa imagem tão

recorrente trazia consigo dois significados. O primeiro deles era que, em se tratando de um

filme sobre o tempo, em que se sente passar cada instante, nada melhor do que utilizar o

recurso da repetição. O segundo, mais óbvio que o primeiro, revelou que o velho acordando

a todo momento, lembrando-se de uma situação tão absurda – ele encontrando-se consigo

mesmo quando jovem – só nos lembra que o filme é um grande terreno movediço, em que

não se sabe onde termina o sonho e onde começa a realidade. Acredito que vê-lo acordando

continuamente foi uma espécie de insight, o que nos remete à chamada terceira fase do

processo de criação, a iluminação: é quando brotam os resultados, as associações

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surpreendentes. É claro que associações assim surgem desde a fase inicial até o fim do

processo, já que a todo momento estamos recriando a partir do que já criamos, e a partir do

próprio processo de criação em si. Assim, vê-lo acordar repetidas vezes foi uma maneira de

estruturar o roteiro segundo a questão do tempo e do sonho, e me fez ter mais certeza de

que aquele era o caminho certo.

A partir daí, imaginei monólogos que descrevem sensações, lembranças e

momentos do dia-a-dia do protagonista. Foi a quarta e última fase do processo de criação

idealizado por Menna Barreto, que ele denomina verificação. É quando as idéias surgidas

necessitam se adaptar e acomodar para se integrar no todo que se está criando. (Duarte,

2000, p.52) Nesta fase, as idéias devem se acomodar dentro de uma idéia maior, e é

necessário visualizar a história como um todo.

Após conseguir imaginar as cenas de forma mais ou menos ordenada, finalizei a

fase de criação e do tratamento da idéia. Agora seria necessário desenvolver a história, criar

novas seqüências, e modificar o que fosse necessário. Nessa fase de desenvolvimento,

decidi passar as minhas idéias para o computador, para em seguida tentar visualizar o todo,

obedecendo com maior precisão as técnicas aprendidas nas aulas de roteiro. No entanto, no

processo de confecção do roteiro nem todas as lições ensinadas foram cegamente

obedecidas. A idéia, por exemplo, de que cada seqüência devesse ser escrita em fichas

móveis, para que o roteirista pudesse acrescentar fichas novas entre elas, ou modificar a sua

ordem – o que os professores de roteiro chamam de “escaleta”, ou relação das seqüências

de um filme – não foi seguida à risca. Isso porque, embora soubesse da importância e da

utilidade da escaleta, comecei escrevendo as sequências num computador, e acabei por

finalizar o meu roteiro ali. Ao invés de preencher fichas móveis escritas à mão, escrevi as

seqüências e modifiquei-as no computador, mudando a ordem ou acrescentando algo

através dos recursos presentes no programa word. Não sei se foi melhor ou pior assim, mas

isso não impediu que modificasse muitas e muitas vezes a estrutura do meu roteiro, até

chegar onde queria. Provavelmente num roteiro de longa-metragem, em que seria mais

complicado visualizá-lo como um todo, eu sentiria mais a necessidade de ter à mão fichas

escritas e mais ou menos ordenadas. Num curta-metragem, foi suficiente ordená-las uma

primeira vez no computador e imprimi-las – e assim fiquei trabalhando com o material

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impresso por dias e dias, riscando-o com caneta, para depois passar as modificações

novamente para o computador.

A essa altura, o roteiro já possuía um “esqueleto”, uma estrutura, com seqüências

mais ou menos definidas. As primeiras e as últimas seqüências se passariam dentro de casa,

intercaladas pelas lembranças do velho com o jovem à margem do rio – este último

inspirado no conto de Borges. Passei a imaginá-lo nos mais diferentes ambientes de sua

casa, com seus pensamentos e reflexões diante da vida. Sabia que era assim que se deveria

iniciar e terminar o filme. Ao mesmo tempo, como optei pela repetição, percebi que a

trajetória pelos cômodos da casa deveria obedecer sempre a mesma ordem. A idéia era que

os espaços mudassem continuamente, sem que precisasse com isso mudar a linha de

pensamento do personagem. Queria dar a idéia de espaços múltiplos, tempos múltiplos,

fundindo o presente do cotidiano com o passado das lembranças e o tempo indefinido que

caracterizam os sonhos. Tudo para criar uma realidade própria, um mundo particular, que

favorecesse a ilusão que caracteriza a própria história. A intenção era recriar o mundo

fantástico dos contos de Borges e dos filmes surrealistas que admiro, tais como os já citados

de David Lynch e Buñuel, com criatividade e sensibilidade para respeitar os parâmetros que

caracterizam a história em si. Sabia que era preciso respeitar o seu universo ficcional, em

todas as fases do processo, seja no roteiro, nas filmagens ou na montagem, sem procurar

inserir na história nenhum elemento que alterasse o seu ritmo natural.

Os manuais de roteiro sugerem que o roteirista “dê asas à sua imaginação”,

colocando tudo o que for possível no papel, para só depois eliminar o que não se encaixa na

história. Entretanto, procurei ser mais econômica e “freei” algumas idéias, deixando só o

que considerava essencial na construção da trama. Mas mesmo economizando linhas e

idéias, percebi que alguns cortes são sempre necessários. Por exemplo, logo de início

construí um diálogo com o velho e uma suposta empregada que trabalhava em sua casa.

Imaginava uma espécie de acompanhante, que demonstrasse que o velho era mesmo

solitário, já que precisava pagar a alguém para lhe fazer companhia. O diálogo era sobre

uma fruta mais “exótica”, um kiwi, que ele desconhecia, e lhe causava um certo

estranhamento – o que nos remete ao estranhamento que costuma causar o mundo dos

sonhos e histórias fantásticas. Tendo a empregada esclarecido que se tratava de um kiwi,

ele deixaria a fruta de lado, para demonstrar a recusa da velhice em experimentar e

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conhecer o novo. Mais tarde, após a confecção do roteiro, percebi que essa cena não caberia

no todo, que se tratava de um aspecto da velhice que eu gostaria de mostrar, mas que não

caberia num filme sobre o tempo, o autoconhecimento e a solidão. E assim acabei cortando

toda a cena.

Assim, reescrevendo meu roteiro, percebi que o roteirista não deve ter dúvidas sobre

o que deseja mostrar em cada seqüência – ou pelo menos, deve tentar reduzi-las ao

máximo, sob pena de prejudicar todo o filme. Isso parece óbvio, mas viver isso na pele foi

uma grande experiência. Foi importante perceber que cada seqüência possui uma intenção,

transmitindo uma mensagem ou sensação, e o roteirista/cineasta deve ter em mente

exatamente o que deseja transmitir ao espectador através daquele conjunto de sons e

imagens. Por isso, depois de refletir sobre o que eu queria da seqüência mencionada, decidi

cortar o que era desnecessário nela.

Suprimindo aqui e acrescentando ali, fui terminando a confecção do roteiro (página

1 do anexo) Mesmo depois de pronto, ele viria a sofrer inúmeras alterações, pequenas é

claro, mas que ajudaram no seu aperfeiçoamento. A mais importante delas, e que

constituiu-se também numa espécie de insight, está presente no desfecho da trama: como

decidi, em vários pontos do filme, seguir o protagonista percorrendo os mesmos espaços da

casa, percebi que o final deveria seguir a mesma trajetória, só que sem ele. A câmera

deixou o personagem e seguiu sozinha, percorrendo os mesmos cômodos vazios, para que

eles falassem por si mesmos. Procurei fazer os pertences e lugares do velho falarem sobre

ele mesmo, sobre a solidão e a morte – o momento em que ele deixou de existir.

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Antes das filmagens

Findo o processo de elaboração do roteiro inspirado no conto de Borges, iniciava-se

outro processo de criação não menos complicado: a elaboração do roteiro técnico. Até

então, o que eu possuía era apenas o roteiro com as falas, sons, indicações do lugar e das

ações dos personagens, seguindo o padrão do que se estabeleceu como roteiro literário. Já

o roteiro técnico, como o nome já diz, inclui junto a isso informações sobre os planos,

movimentos de câmera etc. Alguns já estavam muito bem definidos e visualizados desde o

início, tais como os das sequências do velho acordando, do velho à janela, e do fim do

diálogo. Outros ainda eram um grande enigma para mim.

Para que conseguisse visualizar melhor o meu filme, procurei confeccionar um

storyboard, ou seja, um conjunto de desenhos dos planos. Posso dizer que esse recurso

ajudou bastante, embora eu não tenha terminado o storyboard por absoluta falta de tempo.

Mas ele me ajudou no processo de construção do roteiro técnico, na medida em que,

desenhando um plano, conseguia visualizar o plano seguinte. E assim os enquadramentos,

os movimentos de câmera foram surgindo, e o filme realmente ganhou sons e formas para

mim. Era como se, a partir daquele momento, ele passasse realmente a existir.

Não é preciso dizer que esse roteiro técnico foi modificado muitas e muitas vezes,

até adquirir a forma final. E eu sabia que ele viria a sofrer novas modificações durante as

filmagens, assim como o roteiro literário. Mas foi um importante guia para não me perder

nas gravações.

Posso dizer que, na etapa da elaboração dos planos e movimentos de câmera, foi

fundamental ter assistido com cuidado a muitos filmes de ficção. Cada enquadramento,

cada panorâmica foi fruto de um longo aprendizado enquanto espectadora. A leitura de

livros sobre cinema também ajudou muito, tais como A Linguagem Secreta do Cinema, de

Jean-Claude Carrière, e A Estética do Filme, de Jacques Aumont. Eles me ajudaram a

entender a linguagem do cinema, e seus mecanismos para reforçar alguns aspectos, de

maneira a transmitir com maior precisão aquela mensagem/sensação para o espectador.

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O tipo de filmes que mais me agrada, e que são os que costumo assistir com maior

freqüência, são os chamados “filmes de arte”. Refiro-me a essas produções como filmes de

arte por eles possuírem, em sua maioria, uma estética mais diversa da hollywoodiana, e que

em tese não pertençam ao modo de produção cinematográfico dito industrial. Dentre eles,

os que mais se afinam com meu gosto pessoal são aqueles mais lentos, contemplativos, com

planos-sequência e montagem mais lenta, obedecendo mais ao tempo psicológico dos

personagens do que ao tempo cronológico em que os fatos ocorrem. Tudo isso, de uma

maneira ou de outra, está presente em Á Margem do Tempo, e busquei construí-lo na

proposta e no enredo do filme. Escolhi trabalhar com planos-sequência, e em sua maioria,

fixos, mas não unicamente pelo fato de ser os que mais me agradam, mas também por achar

que se adequavam melhor à trama. Não queria inserir movimentos de câmera

desnecessários, queria que eles fossem utilizados apenas quando quisessem sublinhar algo,

estivessem explorando a paisagem ou acompanhando algum movimento dos personagens.

Um exemplo é quando, ao fim do diálogo, o velho fala ao jovem sobre sua cegueira. O

trecho poderia ser filmado com mais um plano fixo, mas no roteiro técnico optei pela

câmera se aproximando dele, para sublinhar a emoção do personagem. Como não queria

utilizar o efeito do zoom, que definitivamente não me agrada, coloquei no roteiro que ali

seria usado um travelling em frente a ele, aproximando-se bem lentamente num primeiro

plano, destacando o seu rosto e a emoção daquele instante.

Terminado o roteiro técnico, começava a longa jornada atrás de equipamentos,

profissionais, locações, atores etc. Foi uma jornada longa e exaustiva, e acabei sentindo a

necessidade de contratar alguém para me ajudar na etapa da produção. E assim fui

montando minha equipe, através de indicações de profissionais da área. Ao todo, foram 12

pessoas, entre diretor de fotografia, técnico de som, assistentes, maquiador etc. O

orçamento era curto, e o tempo também, e muitas vezes achei que não conseguiria fazer o

filme da maneira que gostaria ou tinha imaginado. Mas graças ao apoio de todos, à

colaboração da DIMAS e da minha família, consegui realizar um filme mais próximo do

que eu havia idealizado.

Foram muitas as escolhas a serem feitas antes das filmagens. A procura pelos dois

atores, para interpretar os papéis do jovem e do velho, foi o mais difícil. Não fazia idéia de

onde começar a procurar.

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Por incrível que pareça, assim que terminei o roteiro pensei em André Setaro.

Primeiramente, não como o protagonista do meu filme, mas como alguém que se

identificaria com a história – fui aluna dele, e suas reflexões sobre a morte e o tempo eram

uma constante em suas aulas. Mas até chegar a ele, foi um longo caminho. Durante mais de

um mês, conversei com atores mais velhos, como Harildo Deda e Carlos Petrovich, estive

em agências, sindicatos de atores e na Escola de Teatro. Descobri, para o meu desespero,

que são raros os atores em atividade nessa faixa etária em Salvador. Não encontrei o que

procurava, até perceber que ninguém faria o papel tão bem como Setaro. A princípio, achei

que ele não aceitaria. Até que ele leu o roteiro, gostou bastante e se identificou com o

personagem (como eu imaginava), e uma semana depois, respondeu que aceitava atuar no

filme. Mais tarde fui descobrir que ele possuía no currículo duas pequenas experiências

como ator em filmes há anos atrás. Tudo parecia dar certo. Para completar, faltava

envelhecê-lo um pouco, e já sabia que isso seria um trabalho de maquiagem e

caracterização.

Com o ator jovem, a procura não foi menos difícil. Embora não existisse o problema

da idade, o ator deveria se parecer – pelo menos um pouco – com André Setaro. Não foi

fácil. Cheguei a entrevistar vários alunos da escola de teatro, e me aconselharam a marcar

uma audição com os alunos numa das salas da escola. Confeccionei cartazes procurando

atores jovens com determinado tipo físico, e acrescentei que deveriam ser introvertidos –

não queria atuações exageradas, forçadas, “teatrais” – e ter um bom conhecimento sobre

literatura. Depois de um mês nessa procura, achei que não conseguiria encontrar alguém

com todos esses atributos. Até que uma amiga atriz me indicou o nome de Lucas Valadares,

ator conhecido no ramo, com muitas peças e dois filmes no currículo, e um jeito e biotipo

que me fizeram acreditar que ele poderia interpretar o jovem da trama. O fundamental era

que eu pudesse imaginá-lo no papel, sentado à margem do rio ao lado de Setaro, e isso

aconteceu assim que o vi.

Escolhidos os atores, procurei logo marcar um ensaio. O professor Setaro dificultou

um pouco essa parte, pois estava sempre ocupado, e volta e meia desmarcava o dia. E o

tempo foi passando, passando, até que finalmente consegui agendar um horário com os

dois, numa sala da Facom, uma semana antes das filmagens. Com o roteiro nas mãos, pedi

que eles fizessem algumas leituras do diálogo, estudando a entonação do texto. Depois os

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coloquei lado a lado, como se estivessem sentados no banco, e iniciei o ensaio. Algumas

falas ainda não haviam sido decoradas, mas já dava para ter uma boa noção de como seriam

as atuações, e elas me agradaram. A química entre eles, por sorte, funcionou. E Setaro,

embora não fosse um ator profissional, demonstrou nesse dia que tinha um grande

potencial.

Dei a eles algumas indicações do comportamento dos personagens, algumas idéias

do que eles estavam pensando e sentindo em cada momento, o que eles queriam dizer com

cada gesto, cada fala. Mas percebi, enquanto lhes transmitia essas informações, que não

estava assim tão certa sobre a construção psicológica do personagem do jovem. Haviam

algumas dúvidas quanto ao tom em que ele deveria dizer as falas, como ele deveria reagir

diante da idéia dos dois serem a mesma pessoa... Saí do ensaio desesperada, com medo de

que algumas incertezas pudessem prejudicar irremediavelmente meu filme.

O trabalho do diretor é árduo, pois dele todos da equipe esperam

segurança, tanto na escolha dos planos como na condução da filmagem

tecnicamente falando.(...)Ele deve conhecer perfeitamente todos os detalhes do

roteiro, estudá-lo num storyboard, e ter previamente uma imagem feita de cada

plano, que no conjunto dará significado à sua obra.(...)É necessário senso de

medida apurado, que só se obtém quando se está totalmente imerso num

projeto. 1

Nem tudo estava claro para mim. Percebi que precisava conhecer o meu roteiro mais

detalhadamente, entender o porquê de cada linha, cada fala, cada plano. E a hora era aquela.

O tempo corria. Durante dois dias, estudei a fundo meu roteiro, me prendendo em cada

ponto, em cada gesto. Apesar de ser inspirado na obra de um escritor, procurei não reler o

conto de Borges, por achar que o roteiro havia adquirido uma outra forma, havia

transcendido aqueles escritos. Depois de estudar a fundo meu roteiro, consegui resolver em

minha cabeça alguns dos mistérios que rondavam o filme. O personagem do rapaz ficou

muito mais claro para mim, e consegui perceber que se tratava de um jovem escritor

1 Retirado do site mnemocine, na página dedicada ao diretor de cinema, entitulada O Diretor

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arrogante e cético, e que por isso ele custava a acreditar que tudo aquilo pudesse ser

verdade. Graças à leitura e ao ensaio, que também me ajudou muito, consegui esclarecer

essas dúvidas. Essa releitura detalhada do roteiro acabou rendendo novas e pequenas

alterações em algumas seqüências, para melhor se ajustar às minhas novas descobertas.

Parecia que, a cada novo dia, o filme ganhava um novo olhar, um novo aspecto,e a partir

daí, se renovava. É espantoso como, mesmo muito antes das filmagens, tanta coisa já havia

mudado desde o nascimento do roteiro. Cada fator novo o modificava de alguma forma, e

ele já não era mais o mesmo que eu idealizei um dia.

Com as locações, por exemplo, foi assim. Não encontrei o local que havia

imaginado, mas acabei descobrindo algo muito melhor, e bastante diferente. Algo que

alterou profundamente a forma inicial do meu filme.

Procurar as locações foi um longo trabalho. O conto de Borges dava indicações de

um rio numa praça, com uma paisagem tipicamente urbana. Mas eu logo achei que a

locação não deveria ser assim, que deveria ser desabitado, envolto pela natureza, e possuir

um ar mais onírico. Levei dois dias percorrendo a estrada da Linha Verde com o diretor de

fotografia para achar o local adequado. Estava à procura de um rio caudaloso, que estivesse

envolto por uma paisagem diferente, onírica, para dar o clima certo ao filme. De início,

pensei em filmar no Rio Pojuca. O rio era mais estreito, cheio de árvores, sombras e muito

verde, formando uma paisagem bucólica. O diretor de fotografia observou a luz, de que

lado nascia o sol, e afirmou que ali nós conseguiríamos uma luz muito bonita. Mas embora

o lugar fosse muito bonito, eu sabia que não deveria ser ali, pois faltava aquele ar onírico

que eu procurava, e o rio era estreito demais e com pouca água. A vegetação, por sua vez,

também era muito abundante, e transmitia um certo ar de “selva”, que não tinha a ver com

o clima do filme.

Continuamos percorrendo outros lugares e pedindo informações. Foram incontáveis

os rios que visitamos: Pojuca, Areal, Imbassaí, Jacuípe etc. Parecia que nada se ajustava ao

que eu tinha imaginado: uma paisagem cheia de árvores e verde, com muita sombra e um

rio cheio e veloz. Já estava tendo que decidir pelo rio Pojuca, que parecia não ser a locação

que eu procurava, mas era o mais próximo dentro do que eu havia visto. Até que nos

indicaram novamente o rio Jacuípe, e decidimos voltar lá, para conhecer uma outra parte do

local.

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Lá chegando, descobri que poderia existir uma paisagem ainda melhor do que eu

havia imaginado. Na parte que não havíamos visitado, havia o encontro do rio com o mar, e

ao invés do verde em sua margem, o lugar possuía uma areia branca, e o local assemelhava-

se a uma praia diferente de todas que eu já vi. A bancada de areia branca e a imensidão do

lugar assemelhava-se a uma paisagem desértica, e com a presença do rio, o lugar era quase

um oásis. Próximo à água corrente, haviam algumas árvores com sombra, e grandes

arbustos na outra margem. Era ali. Soube desde o primeiro momento que aquela era a

locação, embora ela fosse tão diferente do que eu havia imaginado. E assim comecei a

visualizar, dia após dia, as cenas à margem daquele rio. E um novo filme nasceu na minha

mente.

Com a locação da casa, a procura não foi menos difícil. Queria que a casa do velho

possuísse móveis antigos, com uma biblioteca e um vasto e estreito corredor. Mas achar

todos esses atributos numa casa só era tarefa quase impossível. Durante três semanas,

perguntei a todos que conhecia, visitei casas e museus, como o Palácio da Aclamação e o

Costa Pinto, até encontrar a locação. Até que descobri uma antiga casa no bairro da Pituba,

com um bom gabinete com biblioteca, e quartos antigos. Mas não havia um vasto corredor.

O jeito foi abrir mão disso. E o filme mais uma vez foi modificado pelas circunstâncias.

Quanto aos objetos, foi difícil encontrar o que queria. Consegui tudo perguntando a

um e outro, aqui e ali: o banco, a máquina de escrever, as moedas antigas...Até mesmo o

figurino foi conseguido com empréstimos de conhecidos.

Também foi preciso decidir pelo formato e os equipamentos a serem utilizados. De

início, pensei logo em reservar os equipamentos da DIMAS, e fiz isso com antecedência.

Consultei o diretor de fotografia e soube que a câmera de lá era boa, e por isso a reservei,

junto com o microfone, a grua e o travelling, para utilizar em alguns movimentos de

câmera. O microfone escolhido foi o conhecido “boom”, que era bastante adequado para

captar as falas nas cenas externas, já que permitia isolar ao máximo as vozes dos atores de

fatores externos como ruídos do vento. Optamos por fazer a captação direta, pegando o som

ambiente, os pássaros, o barulho da água etc., para depois trabalhar o áudio

Semanas depois de reservar a câmera, o diretor de fotografia acabou me

convencendo a filmar em 16 x 9, formato que ele costuma trabalhar e que amplia os

espaços laterais, sendo bastante adequado para filmar as cenas do diálogo.

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E então começou a procura pela câmera que trabalhasse nesse formato. Eram

pouquíssimas que faziam isso em Salvador, e o aluguel sairia bastante caro. Até que

consegui, através de uma produtora indicada pelo diretor de fotografia, o aluguel de uma

câmera D35, que trabalhava nesse formato, pela metade do preço. Só que dias antes das

filmagens fui descobrir, para meu desespero, que a câmera era uma Betacam. As fitas

sairiam pelo triplo do preço, e a idéia de filmar em Betacam não me agradava. Acabei

conseguindo a tempo outra D35, que filmava em formato digital, mas que não captava em

16 x 9. Preferimos abrir mão disso para não filmarmos em Betacam. Mais tarde eu percebi

o quanto essa decisão foi acertada, pois a definição e a qualidade da imagem da câmera

digital é infinitamente melhor.

Também através de uma recomendação do diretor de fotografia, aluguei uma

máquina de fumaça, para valorizar a luz e criar um leve efeito de névoa na imagem. O

funcionário da empresa em que aluguei os equipamentos de iluminação, por sua vez, era

eletricista e maquinista, e tive que contratá-lo para operar os equipamentos de iluminação,

além do travelling e da grua. Ele logo me avisou que seria necessário contratar um

assistente para ajudá-lo a carregar e montar os equipamentos, aumentando o número de

pessoas na equipe.

Todos esses equipamentos, sobretudo a câmera, o travelling, a grua e a iluminação

são bastante pesados, e logo me informaram que seria necessário alugar uma Kombi. Ao

todo, foram dois carros lotados e uma Kombi para levar todos da equipe. Fomos todos para

um apartamento da minha família em Villas do Atlântico, e lá dormimos como pudemos.

Acertamos de ir para lá na véspera das filmagens, à noite, já que o diretor de

fotografia me informou que às 6:00h da manhã teríamos que estar filmando, para pegar a

luz do alvorecer. Como estávamos à procura de uma fotografia bem suave, combinamos

previamente de filmar somente no início da manhã e no final da tarde. Passaríamos o dia

inteiro na margem do rio Jacuípe e retornaríamos à noite para o apartamento, para filmar na

manhã seguinte o que faltasse. À tarde seguiríamos para a locação da casa, filmar as cenas

em que o protagonista estivesse sozinho com suas lembranças. A ordenação das seqüências

a serem filmadas durante os dois dias ficou a cargo de uma colega da Facom, que assumiu a

produção e procurou colocar as seqüências semelhantes próximas uma da outra para

economizar tempo e facilitar o trabalho de todos.

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Também recebi grande ajuda da produtora de vídeo em que estou estagiando como

editora, a Stage 3. Como ainda estava iniciando meu aprendizado como editora, o dono da

produtora se ofereceu para fazer a montagem do filme, e acabou por fazer também a

captação do som nas filmagens.

Obviamente, sabia que seria muito difícil conseguir um patrocínio, e sabia que não

haveria tempo para isso. A minha família terminou por arcar com todas as despesas, que

não foram poucas. Acabei reunindo tudo isso e montei um orçamento (página 21 do anexo)

com os principais itens: aluguel de equipamentos, equipe, montagem, alimentação, aluguel

da Kombi, combustível e pedágio.

O orçamento foi todo calculado tomando como base dois dias de filmagem, 27 e 28

de março. Imaginei que num fim-de-semana as pessoas e os equipamentos estariam mais

disponíveis, e seria mais fácil.

Depois de apresentar o orçamento à minha família e confirmar a data com todos,

pude me sentir mais aliviada. Estava tudo acertado. Agora faltavam apenas pequenos

ajustes para esperar o grande dia.

Mas algo inesperado aconteceu, e mudou o rumo das coisas. O primeiro dos grandes

imprevistos que ainda estavam por vir. Resolvi visitar a locação em Jacuípe no fim-de-

semana com a produtora, e qual não foi a minha surpresa quando vi que o lugar estava

lotado! Mesas, cadeiras, pessoas falando alto, e o pior de tudo: jet-skis circulando no rio por

todos os lados. Percebi que seria impossível filmar no fim-de-semana.

E recomecei a avisar a um por um que as filmagens teriam que acontecer em outra

data, em dias de semana. Consultei a todos sobre suas possibilidades, já que teria que filmar

o mais rápido possível, pois estava em cima da hora. Junto com a produtora, liguei para

todos os 11 componentes da equipe, além da DIMAS e das produtoras onde iria alugar os

outros equipamentos. Perguntando aqui e ali, consegui combinar com todos uma nova data,

nos dias 31 de março e 1º de abril. Chegamos todos no apartamento na véspera, dia 30 à

noite, já que eu e o motorista da Kombi passamos o dia recolhendo os equipamentos, para

depois pegar em casa cada um dos membros da equipe. Lá chegando, tarde da noite,

jantamos e nos organizamos para dormir.

E fomos filmar.

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Nas Filmagens

Quando idealizei os planos e movimentos de câmera no roteiro técnico, imaginei

que o meu filme sairia exatamente como eu tinha planejado. Não pensei que pudessem

existir tantos imprevistos e problemas imprevisíveis que iriam refletir diretamente sobre o

trabalho, modificando-o em muitos aspectos. A partir dos imprevistos, novas decisões da

minha parte, enquanto diretora, precisavam ser tomadas em curto espaço de tempo.

É claro que não desconhecia os imprevistos que podem ocorrer durante uma

filmagem, mas não imaginei que fossem tantos, e que influenciassem tanto o produto final.

As mínimas coisas que ocorrem ou deixam de ocorrer num set de filmagem – e fora dele –

deixam marcas inalteráveis num filme de ficção, assim como em qualquer experiência.

Podemos dizer que desde o início pequenos detalhes mudaram o rumo do que já

estava estabelecido. Havíamos programado para chegar em Villas por volta das 20:00h, e

no entanto chegamos às 23:00h. Tivemos que pegar todos os equipamentos, um em cada

local da cidade, e carregar todos aqueles pesados trilhos do travelling, a grua e o banco de

praça foi bastante trabalhoso, e demorou muito mais do que havíamos calculado. De certa

forma, todos esses problemas que fizeram atrasar a nossa chegada a Villas foram fruto de

um orçamento apertado, e por isso alugamos uma Kombi mais barata (e por isso mais

velha), não contratamos outras pessoas para ajudar a carregar os equipamentos etc.

Com isso, chegamos tarde da noite no apartamento, exaustos, e com poucas horas

para dormir. Deveríamos acordar às 3:30h da manhã para que pudéssemos começar a filmar

às 6:00h. E assim, cansados e com muito sono, pegamos a estrada.

Lá chegando, o primeiro grande imprevisto: na área de acesso, havia um portão com

cadeado no local, colocado dias atrás. Não sabíamos o que fazer. Nesse momento, veio a

chuva. E o carro que eu estava dirigindo, pifou. Tudo de uma só vez.

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Esses foram apenas os primeiros de muitos contratempos que tivemos durante os

dois dias de filmagem. Tivemos que esperar o porteiro chegar para abrir o local, resolver o

problema do carro, e lá se foi parte da manhã reservada para filmar.

Montados os refletores, os equipamentos de som e a câmera, começamos a filmar.

Os atores, agora maquiados e sentados no banco, recebiam de mim as primeiras

coordenadas. Fui para o monitor conferir a fotografia, e pedi que ela ganhasse um tom mais

amarelado. Era esse o tom que acompanharia todas as imagens das externas, obedecendo às

variações de tempo. Queria que esse tom variasse de acordo com as diferentes posições do

sol, sinalizando a passagem de tempo. Inclusive no próprio roteiro técnico isso está bem

claro, já que indiquei planos do sol em vários momentos. Mas a falta de tempo acabaria por

reduzir o número desses planos.

Com o roteiro técnico na mão, de início queria filmar os planos de acordo com o

que eu havia traçado. Mas o diretor de fotografia me aconselhou a filmar o diálogo inteiro

no mesmo plano médio dos dois, para ter a base, e depois filmar os planos separadamente.

Isso facilitaria e daria mais opções na hora da montagem.

O microfone boom da DIMAS, que iria fazer a captação, não funcionou. Foi preciso

improvisar outro com o operador de som, já que ele não havia conferido isso previamente,

nem se o cabo do microfone estava funcionando. Esse foi mais um dentre muitos problemas

ocasionados pelo orçamento apertado: para economizar, chamei o editor para fazer a

captação, sem cobrar nada. Por causa disso, ele não se comprometeu realmente com o

projeto, e isso acabou refletindo no resultado final. Como ele não captou o som ambiente

sozinho para inserir depois, ele ficou repleto de ruídos, e as falas oscilaram várias vezes o

volume.

Improvisaram um microfone, ajeitaram os refletores, posicionaram a câmera e

começamos a filmar. Os contratempos mudaram os nossos planos, pois perdemos uma hora

e meia, e por isso tivemos que agilizar tudo. De início, fizemos um breve ensaio com a

câmera, e senti que os atores estavam pouco à vontade. Á medida que fomos ensaiando,

senti que eles se aproximavam mais dos personagens. Lucas, por exemplo, de início parecia

exagerado, dando um tom a mais nas falas. Isso foi resolvido à medida que os ensaios se

repetiam, e eu procurava interrompê-los para lhes dar indicações e fazer as correções

necessárias. Depois de um tempo, Lucas adquiriu o tom que eu queria. Restava Setaro, que

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foi o mais complicado. Por não ser um ator profissional, ele se sentia inseguro a todo

momento, e tive que dirigi-lo nos mínimos detalhes: pedia que começasse a falar olhando

para frente, depois se virasse para o lado em tal momento etc. Nas cenas de maior emoção,

em que pediam uma grande concentração da parte dele, tivemos que repetir muitas vezes. E

à medida em que íamos repetindo, Setaro ia dando à interpretação um novo frescor. Embora

estivesse muito inseguro, e depois de um tempo muito cansado, ele foi se acostumando ao

papel. No fim do dia, já dava sugestões sobre gestos do seu personagem, entonação etc.

Terminada a base, começamos a filmar o mesmo diálogo inicial em contraplanos.

Os atores já estavam mais à vontade, e o resultado foi muito melhor. Cortávamos apenas

quando algum detalhe incomodava a mim ou o diretor de fotografia, como o bigode

despenteado de Setaro ou quando o vento bagunçava demais os cabelos de Lucas.

Chamávamos logo o maquiador, que resolvia rapidamente o problema. Com folhas de

isopor, procurávamos diminuir o efeito do sol, mas muitas vezes tínhamos de interromper

as cenas por causa de um novo brilho provocado nos atores.

A fotografia, por causa do tempo que perdemos, ganhou um tom estourado no

fundo, algo que eu não gostei muito. Estava bonito, mas não se adequava aos tons suaves

que eu havia imaginado. Mas o diretor de fotografia disse que não havia o que fazer, pois o

sol estava muito forte, ainda que fosse de manhã cedo. O jeito era tentar resolver o

problema na montagem, utilizando os recursos de correção de cor.

Ás dez horas, terminamos de filmar. A luz já estava forte demais para a fotografia

prevista. Levei os atores para descansar em Villas, já que só voltaríamos a filmar às 16h. O

resto da equipe ficou no set, e o diretor de fotografia aproveitou para fazer algumas

imagens da paisagem.

As filmagens prosseguiram sem maiores problemas à tarde. Utilizamos a grua e o

travelling, e percebi o quanto demora para montar esses equipamentos. Não fazia idéia que

perderíamos tanto tempo de um plano para outro. Se mudar a câmera com o tripé de um

local para outro já custava tempo, montar um travelling ou uma grua era muito pior. A

equipe procurava agilizar o processo, mas era muito custoso. Não contava com isso.

No fim do dia, as questões do tempo e do mal planejamento acabaram interferindo

severamente nas filmagens. Eu havia programado para filmar o fim do diálogo à tardinha,

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deixando as cenas que faltavam para filmar no dia seguinte. Queria que o céu escurecesse

com eles, sinalizando o fim de tudo.

Acontece que começamos o diálogo à tardinha, e enquanto o travelling estava sendo

montado, anoiteceu. Imprevistos acontecem, e é difícil imaginar que na ficção, em que

tanto tempo é gasto na pré-produção, com roteiro detalhado, ensaios, locações etc, ainda

exista a imprevisibilidade. Claro que imaginei que coisas assim poderiam acontecer, mas

não nessa proporção, não a ponto de alterar tanto o filme. A chuva, por exemplo, ocorreu

rapidamente em alguns momentos, e atrasaram um pouco as filmagens. Também mais de

uma vez o enquadramento e a fotografia estavam ótimos, os atores à vontade no papel, e de

repente irrompia um barulho ensurdecedor. Era o pedreiro da casa ao lado. Ou até mesmo

pescadores, que próximos ao set, conversavam alto enquanto manejavam sua rede. Fatores

como barulhos externos, anoitecer antes do tempo, a chuva, tudo pode interferir de maneira

inesperada, e é difícil imaginar o que vai acontecer. Mas o trabalho da produção é

justamente minimizar esses possíveis problemas.

Mas o fato de ter anoitecido antes do tempo era grave, e não havia como voltar

atrás. Não era como um simples barulho externo em que uma boa conversa com o pedreiro

resolvia o problema. Além de provocar um grande erro de continuidade, a escuridão da

noite não era o clima que eu havia previsto para o final. Não sabia o que fazer. Para piorar,

ninguém havia trazido a iluminação adequada para a noite, porque não havíamos planejado

filmar nesse horário. E também seria impossível fazer isso no dia seguinte, já que teríamos

que fazer as internas da casa com Setaro, e o ator jovem tinha um compromisso inadiável,

como já havia me dito.

O diretor de fotografia estava nervoso, agitado, e disse que a escuridão no fundo era

total, e não queria fazer a fotografia sem a iluminação correta. Clima de tensão.

Discutíamos. Ele pedia mais um dia de filmagem. Eu, com o orçamento estourado, dizia

que isso seria impossível. Filmamos à noite o que restava. O clima era tenso, e eu apenas

conferia a fotografia e dava algumas indicações aos atores. Mas estava descontente, pois a

luz estava provocando um brilho exagerado no rosto dos atores. O diretor de fotografia,

mal-humorado, me dizia rispidamente que não havia o que fazer. Filmamos assim mesmo.

Seria mais um problema que tentaria resolver na montagem.

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O clima de tensão no fim do dia ainda se agravou devido aos problemas de

produção que tivemos. Eu, com o orçamento apertado, ao invés de contratar uma produtora

profissional, convidei uma amiga minha. Primeiro, por imaginar que não haveria tantos

problemas, e que ela poderia dar conta de tudo. E ela, inexperiente e sem muito iniciativa,

acabou prejudicando involuntariamente o trabalho. De todos os problemas que isso trouxe,

o mais grave foi o clima ruim que depois de algum tempo se instalou na equipe. Embora ela

tenha se esforçado, os problemas que a produção teria que resolver não eram resolvidos, e

isso prejudicou o trabalho de todos, descontentando a todos. A uma certa altura, a equipe

inteira me culpava por não ter contratado uma produtora profissional para assumir o filme.

E eu, depois de um tempo, acabei silenciosamente concordando com eles. Aqui vale a

máxima de que o barato, às vezes, pode sair muito caro. No dia seguinte, por exemplo, ela

esquecera de coisas fundamentais, como o pijama de Setaro, as chaves da casa, as frutas...E

corríamos para pedir ao motorista que buscasse as coisas, e mais gasolina era consumida. E

o orçamento, diante de tantos imprevistos, só aumentava. Para completar, no fim da tarde

estourou a lâmpada. E o motorista teve que ir até Salvador pegar outra, que custava nada

menos que 700 reais.

Á noite, ao chegar em casa, estávamos todos exaustos e impacientes. O clima era

péssimo, e eu sabia que havia contribuído para isso, mesmo sem querer.

Depois de um tempo, assistimos a uma parte das imagens captadas no monitor, e

gostamos do resultado, apesar de fazer algumas ressalvas. Setaro e Lucas também se

interessaram em assistir, e gostaram. Apesar de tudo, foi bom perceber que já havíamos

filmado uma boa parte, ainda que não tivesse ficado exatamente da maneira que eu

esperava. Mas eu sabia, de antemão, que atingir por completo os objetivos do diretor é

tarefa quase impossível. Ainda mais com apenas dois dias e sem uma produção adequada.

Depois de conferirmos as imagens, eu e a produtora examinamos cuidadosamente a

programação das filmagens para ver o que ainda havia para ser feito. Ordenamos tudo,

dessa vez se baseando melhor no tempo que gastam a instalação e a mudança de lugar dos

equipamentos. Agora, já com uma certa experiência, após acompanhar um dia inteiro de

filmagens, já sabíamos o ritmo em que caminhavam as coisas. E mais uma vez, fomos

dormir tarde e exaustos.

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No dia seguinte, mais uma vez, acordamos bem cedo, às 3:30h da manhã. Dessa

vez, estávamos mais cansados ainda, pois agora eram duas noites praticamente sem dormir.

As poucas horas de sono atrapalharam o andamento das coisas, pois todos estavam

mais impacientes. Com o roteiro técnico nas mãos, com as cenas bem definidas de acordo

com os movimentos de câmera para otimizar o tempo, recomeçamos a trabalhar. Dessa vez,

as filmagens correram mais rápido. Deu para fazer tudo o que queríamos, pois agora as

coisas estavam mais bem organizadas, os membros da equipe mais conscientes do seu

papel, e eu já me sentia mais à vontade como diretora. Já havia me familiarizado mais com

os termos usuais que se utilizam nos filmagens, tais como “vai, câmera”, “ação”, comuns

antes de fazer um take, ou o famoso “corta”, além de “valeu”, para indicar se aquela

tomada ficou boa. Também estava mais a par da complexidade do processo, e conseguia me

concentrar melhor e observar coisas que até então passavam despercebidas na tela do

monitor. No segundo dia, parecia que eu havia aguçado o meu olhar. Estava mais exigente

quanto à fotografia, por saber melhor o que eu poderia conseguir com os equipamentos e os

profissionais que eu tinha. Sabia o que podia esperar da equipe.

Também percebi que é necessário muita concentração, e atenção voltada para várias

coisas ao mesmo tempo. É preciso prestar atenção no som, nos movimentos de câmera, na

atuação dos atores, na fotografia, e ainda atentar para detalhes como se o microfone entrou

dentro de quadro, se alguém se mexeu e fez sombra etc. Tudo ao mesmo tempo. O diretor

trabalha com muitos e diferentes fatores, que representam um conjunto de artes que

compõem um filme. Isso vai desde a fotografia até a interpretação dos atores, passando pela

música e o ritmo da montagem. É preciso uma boa formação intelectual e uma cultura

considerável, adquirida através de muita leitura, muitos filmes e contato com outras formas

de arte. Para mim, foi fundamental ler muitos livros, assistir a peças e, acima de tudo,

muitos filmes, pois um filme se faz a partir do diálogo travado com todos os outros. Sendo

assim, esse tipo de formação do diretor é fundamental na realização de um bom filme. “[O

diretor] Deve ter uma cultura literária, musical e dramática elevada, pois tudo servirá como

referência em sua criação, mas também para poder escolher a melhor trilha sonora e a

melhor forma de extrair a dramaticidade desejada de seus atores.”2

2 ibidem

25

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Na verdade, toda essa noção que tenho sobre o papel do diretor e sua formação

artística e intelectual não deixa de pertencer a uma concepção mais “européia”, no sentido

de eu me identificar mais com o modo de produção cinematográfico vigente em boa parte

da Europa. E aí entra a influência recebida pelos livros de cinema que li, o tipo de filme que

costumo assistir, as aulas da Facom, os cursos de extensão etc. Toda a minha formação foi

construída a partir da noção de que um filme é uma obra de arte, e seu diretor, o criador que

usa o cinema como meio de expressão. “O diretor tem, portanto, seguindo o raciocínio

europeu, a responsabilidade do projeto.(...) No cinema em que o diretor é o autor, ele é o

responsável pelo filme e pelo resultado, e deve zelar para que ambos confluam

harmonicamente, segundo sua estética.” 3

Num projeto de um filme, são muitos os fatores que o compõem, como som,

enquadramento, fotografia, atuações etc, e quando qualquer detalhe foge do esperado, é

necessário refazer tudo. É claro que, com mais experiência e uma equipe afinada, os

problemas teriam uma dimensão menor; mas ainda assim seriam muitos, e é necessário

muita resistência física e paciência para resolvê-los. Por isso é tão cansativo. Mas não

menos prazeroso.

Depois de muito suor, chegamos à Salvador para filmar as últimas seqüências na

casa. Logo percebi que não conseguiria o efeito esperado nas imagens. Primeiramente, por

que seria impossível colocar o travelling ali dentro; não havia espaço, e os donos da casa

jamais permitiriam. E segundo, por que Setaro, inesperadamente, nos avisou que tinha um

compromisso inadiável no fim da tarde. Resumindo, o fim da filmagem foi o momento

mais estressante de todos. Não tínhamos tempo, nem espaço. E muito menos disposição,

depois de tanto trabalho sem parar para descansar e praticamente sem dormir. E sem o

travelling, o máximo que fizemos foi colocar uma grua no quarto para filmar as cenas de

Setaro acordando, e após isso a grua foi montada do lado de fora da casa, para pegar um

plano exterior dela. E só.

Para completar, os donos da casa não ajudaram muito. Assustados com a

quantidade de gente e equipamentos, permaneceram em casa, e faziam barulho,

desconcentravam a equipe etc.

3 ibidem

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As filmagens prosseguiram com muita rapidez e pouca paciência. Por causa disso,

algumas cenas tiveram a fotografia prejudicada, pela falta de tempo e cansaço de todos. No

fim de tudo, a fotografia, o enquadramento ou a atuação de Setaro muitas vezes não me

satisfizeram muito, mas eu sabia que não havia mais condições de refazê-las. Conseguir um

resultado razoável já foi uma glória diante das condições que tínhamos.

Nesse momento, alguns problemas que já existiam se agravaram. O maior deles

foram alguns desentendimentos com o diretor de fotografia. Sempre preocupado em fazer

belas imagens, ele muitas vezes me sugeria cores e enquadramentos que não condiziam

com o espírito daquela cena. Por exemplo, ele chegou a sugerir objetos para compor o

gabinete da casa que não tinham nada a ver com a construção psicológica do personagem,

apenas para “dar um colorido bonito” às imagens. Embora eu houvesse lhe enviado com

muita antecedência o roteiro técnico, percebi que ele não o conhecia bem. A verdade é que

eu conhecia o meu roteiro como ninguém ali, e sabia como cada cena deveria ser. Mas o

diretor de fotografia, por achar que estava lidando com uma iniciante, pensou que poderia

conduzir as filmagens e definir tudo o que quisesse com o meu consentimento. Ledo

engano. Embora nossas opiniões vez por outra coincidissem, discordamos muitas vezes, e

no fim, embora quase sempre prevalecesse a minha opinião enquanto diretora, o clima entre

nós ficou ruim. Isso atrapalhou as filmagens e, a meu ver, prejudicou um pouco o filme.

A desafinação da equipe, que tem um papel fundamental no processo, se refletiu em

todos os aspectos do filme. O fato do diretor de fotografia não ter lido bem o roteiro, ou não

ter sido capaz de entendê-lo, do operador de som não ter conferido bem os equipamentos,

da produtora ter esquecido tantos detalhes importantes, acabaram por prejudicar o filme.

Não houve o comprometimento necessário de alguns membros do grupo. È claro que eu

não poderia esperar deles o mesmo comprometimento que eu tive. Mas isso chegou ao

limite do aceitável.

Claro que eu também tive minha parcela de culpa. Primeiro, por ter escolhido a cada

um deles, dos quais muitos eu não me arrependo. Depois de tudo, percebi o quanto é

fundamental um bom entrosamento do diretor com a equipe, e o quão importante ele é. O

diretor é o alicerce de tudo. E eu, estressada com tanta coisa, acabei contribuindo para

estressar a todos. Precisava ter mantido o controle em alguns momentos. Mais uma vez, foi

falta de experiência.

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Depois de tantos obstáculos, problemas e discussões, sobrevivemos ao final das

filmagens. Foi um alívio perceber que, apesar de tudo, conseguimos. Gostamos do

resultado, e no final, estávamos satisfeitos ao fim da jornada. Agora era só esperar para

começar a montagem. Era ver para crer.

Depois das Filmagens

Chegava, enfim, a última fase do processo: a montagem. A primeira coisa que o

operador fez foi copiar uma fita VHS para mim, com todo o material bruto, para que eu

fizesse a decupagem, ou seja, anotasse as seqüências e os trechos de seqüência que iriam

entrar no filme. Havia duas horas de fita, o que me rendeu dois dias para concluir essa

parte. Mas apesar de tudo, sabia que isso facilitaria o trabalho da montagem.

Ao examinar cuidadosamente o material bruto, percebi o quanto o filme se

modificou desde a concepção do roteiro técnico. Devido a problemas inúmeros,

principalmente a falta de tempo, muitos movimentos de câmera e planos foram

modificados. Muitas vezes, eu havia optado no roteiro por um travelling, mas armá-lo

naquele local demoraria tanto e seria tão custoso, que era melhor optar por uma panorâmica

ou um plano fixo. Em alguns casos, essas mudanças funcionaram tão bem ou até melhor do

que eu havia definido no roteiro técnico; em outros casos, não. Muitas vezes aconteceu de o

diretor de fotografia sugerir enquadramentos e movimentos de câmera que funcionavam

melhor do que o plano que eu havia idealizado. E assim, a cada nova seqüência, o filme se

renovava, pois eu criei espaço para que todos dessem vazão à sua criação, me dando

sugestões e contribuindo para modificá-lo. Um filme é, antes de tudo, um trabalho de

equipe, em que cada membro possui um papel fundamental, sendo capaz de alavancar ou

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até mesmo acabar com a qualidade do trabalho. E todas aquelas pessoas, trabalhando e

convivendo juntas, a todo momento imprimiram um novo olhar sobre as idéias que eu tive.

Tudo isso modificou o filme que eu havia visualizado no roteiro técnico, alterando muito o

material bruto, como pude conferir na fita.

Feita a decupagem, tive que esperar alguns dias até que o operador arrumasse tempo

para começarmos. Achei que, com o roteiro nas mãos, a montagem correria rápido e sem

maiores problemas. Engano meu.

Começamos a montagem, eu e o operador. Como ele trabalhava com edição de

vídeos institucionais, não tinha muita noção de como a montagem do filme iria ser feita.

Passamos as imagens escolhidas para dentro do computador e marcamos com André

Setaro para fazer o off na cabine de locução da produtora de vídeo. Foi um longo trabalho,

que rendeu uma tarde inteira. Para dar o tom que eu procurava ao texto, Setaro teve que

repetir infinitas vezes o mesmo trecho, até que eu estivesse satisfeita. Ao fim de tudo, ele

me confidenciou, ao deixar a cabine: “mas isso aqui é uma tortura chinesa!”, sorriu.

Havia gostado do resultado do off, já que trabalhamos duro. Ele logo foi

armazenado no computador, num programa em que trabalharíamos a montagem do som.

No dia seguinte, começamos a montar as imagens. Já sabia mais ou menos o que iria

entrar ou não, mas foi muito mais difícil do que imaginava. Já havia feito edições na Facom

com os documentários que realizei, tinha uma boa noção sobre isso, e sabia de antemão que

não é fácil combinar os planos entre si. Mas na ficção a coisa me pareceu, pelo menos a

princípio, mais difícil. No momento em que comecei a inserir as imagens dos contraplanos

dentro das imagens da base, percebi o quão complexo isso pode ser. Um mínimo gesto ou

movimento dos atores pode impedir que o plano escolhido não se encaixe com o seguinte.

Acontecia de eu ter dois planos maravilhosos, com excelentes atuações, que se adequavam

perfeitamente ao que eu esperava, mas que não combinavam. O jeito foi inserir imagens

que não me agradavam tanto assim, mas que se encaixavam melhor uma com a outra.

A essa altura, percebi o quanto fez falta contratar um continuísta. Na época das

filmagens, imaginei que poderíamos, eu e o diretor de fotografia, dar conta desses detalhes.

Mas depois eu vi que os detalhes eram muitos, e que isso seria impossível.

Os erros de continuidade não eram grandes, mas os que existiam poderiam

prejudicar a qualidade do filme. Um exemplo é a parte em que Lucas recebe a nota das

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mãos de Setaro. Num plano da base, ele a segura com apenas uma mão. Na continuação,

num primeiro plano, ele já está com as duas mãos sobre a nota, examinando-a. Estava

criado o problema. Foi difícil montar essa parte sem que desse erro de continuidade.

Tivemos que procurar na fita outra imagem que não a que eu havia escolhido, para que se

encaixasse com o plano seguinte.

E assim fomos montando o filme. Foram necessários cinco dias para terminarmos,

além dos efeitos de finalização, como correções de cor e brilho. O montador trabalhou com

precisão para que as cenas tivessem o mínimo possível de erros de continuidade na

fotografia. Como filmamos de manhã e à tarde, o sol estava posicionado em diferentes

momentos, dando diferentes tons de luz. Claro que era essa a intenção, mostrar a passagem

do tempo através das diferentes posições do sol. Mas em alguns momentos, aconteceu de

filmarmos uma sequência pela manhã e a continuação pela tarde, para agilizar o trabalho de

transportar os equipamentos. Mas isso acabou por dar alguns pequenos erros de

continuidade, que depois de feitas as correções na montagem, praticamente resolveu o

problema. O maior deles foi quando iniciamos uma cena de tardinha, e a finalizamos à

noite. O jeito foi intercalá-la com o pôr-do-sol, para indicar a passagem de tempo. Mas

como o filme é todo construído e montado em diferentes instantes e momentos do dia, isso

não prejudicou muito.

As correções de cor e brilho também contribuíram para chegarmos à fotografia

suave que eu queria. A luz estourada em alguns pontos do quadro foi reduzida, as cores

vibrantes ganharam tons sóbrios. Gostei especialmente de trabalhar nessas correções, e,

passo a passo, ver o meu filme se modificar. Foi quase como manejar pincéis numa grande

tela de pintura. Congelávamos a cena, e logo começávamos a testar tons de verde para a

vegetação, alterar o tom do fundo, diminuir o brilho etc. Claro que não foi possível mudar

tudo que eu gostaria, os programas de computador ainda não chegaram a esse ponto. Eu

queria, por exemplo, que o fundo black da noite ficasse menos escuro, e que os atores

ficassem com menos brilho no rosto nessa sequência, mas isso não foi possível fazer. O

jeito foi aceitar, já que não havia iluminação adequada na hora das filmagens, pois não

estava programado para filmarmos à noite.

Também durante a montagem, descobri vários problemas que passaram

despercebidos na hora da filmagem. Quando fui assistir às imagens montadas, percebi que

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alguns planos deveriam ser mais demorados, outros mais curtos, que em alguns momentos

deveria haver um tempo maior de silêncio...É que aconteceu de a cena estar exatamente do

jeito que eu gostaria, mas, quando fomos conferi-la, havia um grave problema de som que o

operador de áudio não tinha percebido. Ou ainda havia um grande drop out na fita, no meio

da seqüência; ou o diretor de fotografia havia feito um movimento de câmera no fim do

plano ou desligado-a antes do tempo. Isso tudo também modificou o resultado final.

Além disso, outros problemas de ordem mais estrutural apareceram, e foram

solucionados. O maior deles foi com relação ao tempo em que se desenrolam as ações do

filme. Desde o início, quando o idealizei, queria um filme que fosse todo composto de

fragmentos de tempo, fragmentos de diálogo, contribuindo para a atmosfera de sonho e

sendo, assim, um filme sobre o tempo. Mas na hora em que o material foi editado na

seqüência que eu criei no roteiro, alguns planos não combinavam entre si. Especialmente

depois que, com a duração do filme muito longa, eu me vi obrigada a cortar algumas

seqüências. E foi muito duro e difícil para mim fazê-lo. Eram momentos importantes do

filme, cenas belas e bem feitas, mas que deixavam o trabalho muito longo, já estava com 18

minutos. Cortadas as seqüências menos importantes, alguns planos não se encaixavam.

Diálogos em que o velho e o jovem mudavam de assunto bruscamente, em diferentes

seqüências seguidas, causariam um grande estranhamento no espectador. É claro que eu

queria que esse estranhamento existisse, mas não nesse grau. Era um filme que se pretendia

autoral.

A única solução possível foi intercalar na montagem essas seqüências com fades. O

estranhamento desapareceu, mas o efeito não me agradava muito. Não sabia o que fazer.

No dia seguinte, levei o trabalho em fase de conclusão para o professor-orientador

José Francisco Serafim assistir. A montagem do áudio ainda não havia sido feita, mas

esperava que ele pudesse esclarecer algumas incertezas quanto à montagem das imagens.

Serafim fez algumas ressalvas. Atentou para as questões do áudio, que ainda não

havia sido mixado, e sentiu falta de uma trilha sonora, que já estava sendo providenciada.

Dentre tudo o que disse, o mais importante foi que ele também não havia gostado do efeito

dos fades. O que fazer?

Senti falta de assistir um filme. Quem sabe assim ele pudesse esclarecer alguma

coisa. Ás pressas, aluguei para rever Acossado, de Godard, e Hiroshima, Meu Amor, de

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Alain Resnais, dois filmes emblemáticos do cinema novo francês da década de 60, que

achei que poderiam ajudar no processo final da montagem, pelo ritmo lento e preciso em

que as ações se desenvolviam nas respectivas obras. A forma como trabalhavam o tempo de

maneira fragmentada me agradava, e talvez sugerissem uma boa solução.

Feito isso, anotei no papel algumas idéias, e, com a fita VHS da montagem, fui

compondo um novo filme em minha mente. Alterando aqui e ali, inserindo o áudio nas

seqüências seguintes, encaixando melhor os planos, finalizamos a montagem das imagens.

Apesar de tudo, mesmo tendo um olhar bastante crítico sobre o meu trabalho, havia

gostado da montagem das imagens, por achar que os planos combinavam bem, as correções

de cor melhoraram o material bruto...Agora faltava a montagem do som, que o operador de

áudio me garantiu que poderia ser feito em um só dia.

Mas qual! O áudio, que foi o próprio montador quem fez, estava repleto de

problemas. Havia momentos em que o som ambiente mudava bruscamente de um

contraplano para outro, devido aos sons do mato e insetos. A água, por exemplo, estava

com um som muito alto, devido aos barcos que passavam ao longe, e logo no plano

seguinte, não podíamos sequer ouvi-la. Eram muitos os erros de continuidade no som.

Além dos problemas do ambiente, ainda haviam outros como o barulho do

travelling que havia sido captado, as conversas dos pescadores, as batidas de martelo dos

pedreiros perto do set etc. Também em alguns momentos os atores falaram mais baixo do

que deveriam, em outros a voz foi captada mais alto etc. Para completar, em algumas

seqüências o operador de áudio não captou o som, imaginando que poderia inserir o som

ambiente depois. Isso acabou causando um grande problema, pois não havia som ambiente

suficiente para cobrir algumas seqüências, e repetir as ambiências provocava leves

solavancos no áudio. O trabalho foi duro. Seria necessário equalizar o som, deixando tudo

mais ou menos por igual, para não provocar muito estranhamento.

Ao invés de um dia, foram necessários três. Durante os dois primeiros dias, saímos

da produtora às três da manhã, pois era muita coisa, e para piorar a situação, o programa de

montagem do áudio deu problema. Etapas que já estavam resolvidas e montadas precisaram

ser remontadas, e o trabalho no final foi em dobro. Não imaginei que essa etapa pudesse ser

tão trabalhosa, muito menos o montador.

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Nesses dias, recebemos a trilha sonora para inserir no filme. Havia conversado antes

das filmagens com um músico, acostumado a fazer trilhas, e lhe mostrei o roteiro e pedi

alguma indicação sobre qual música poderia utilizar. Estava pensando em inserir alguma

música minimalista, no estilo Philip Glass, cheia de repetições, no cotidiano sempre igual

do personagem, ao passo em que ajudaria a dar ao filme um clima de sonho. A idéia era

sinalizar tanto o tempo que passa, quanto o tempo faz dos seus dias todos iguais. Para isso,

nada melhor do que a repetição, e a música minimalista, com suas diferentes passagens,

possuía diferentes elementos dramáticos, ainda que não saísse do mesmo tema. Perguntei o

que o músico achava. Ele adorou a idéia, achava que tinha tudo a ver com o clima que eu

queria dar ao filme, mas logo me avisou que, caso eu quisesse inscrever o filme em

festivais, utilizar uma música de Philip Glass poderia me dar problemas com direitos

autorais. Como era um músico talentoso, adorava o estilo minimalista e possuía

composições assim, pedi que fizesse uma trilha original para mim. E ele, por adorar Jorge

Luís Borges e ter gostado do roteiro, aceitou prontamente, e não me cobrou nada.

Assim que recebi a trilha, inseri nas imagens, e me agradou o resultado, por achar

que ela transmitia, juntamente com as imagens, a atmosfera de sonho e o recurso da

repetição, especialmente nas cenas do rio. Só foi difícil imaginar onde ela seria inserida.

Precisava ser no lugar certo. Achei que poderia ser em três momentos, que se iniciam a

cada vez que o velho acorda, e formam um novo ciclo. E assim eu fiz.

Depois de tudo feito, gravamos o resultado em DVD, para não perdermos a

qualidade do som e da imagem, e eu levei o resultado para casa. Quando lá cheguei,

encontrei outros problemas. O áudio estava ainda com alguns barulhos externos, e alguns

dos fades que foram feitos para emendar uma ambiência na outra estavam muito bruscos.

Voltei lá, e o montador não parecia mais disposto a refazer, e achava que o áudio estava

bom. Acostumado com montagens de áudio mais simples, de vídeos institucionais, o

montador estava impaciente, e achava que o áudio não possuía problemas graves.

Discutimos, e ao fim, venceu a minha persistência. Refizemos tudo mais uma vez,

dias antes do prazo de entrega à banca examinadora. Foi uma grande corrida contra o

tempo. Mas enfim, estava tudo pronto. O alívio foi grande. Mas a vontade de realizar outro

filme, essa foi muito maior. E me acompanha até hoje.

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Conclusão

Depois de passar pelas longas etapas da realização de um curta-metragem, além de

ter sistematizado uma memória sobre todas elas, nem é preciso dizer o quanto foi

trabalhoso – e oneroso também.

Desde o surgimento da idéia, seu amadurecimento, até o processo da escrita do

roteiro, pensando sempre a história como um todo, muita coisa aconteceu e modificou a

idéia inicial. O próprio roteiro sofreu inúmeras alterações, muitas delas dias antes das

filmagens, quando eu percebi que ainda faltava conhecer mais sobre os personagens e a

natureza da história.

Depois de transformar o roteiro literário em um roteiro técnico, conseguir os

equipamentos, encontrar os atores mais adequados para o papel, as locações, fazer os

ensaios e reunir a equipe, as filmagens e a montagem iriam mostrar que muita coisa ainda

poderia ser modificada a partir da idéia inicial. O projeto do filme foi, aos poucos, se

alterando e adquirindo vida própria, e sua forma final é o resultado da contribuição de

inúmeras pessoas, dentro e fora da equipe. A importância delas, principalmente no set de

filmagem, foi percebida principalmente após concluir o filme, quando vi que uma equipe

sem harmonia prejudica o resultado final, e que o diretor possui o papel de prover e

sustentar essa boa relação entre todos. Exaustivas e de enorme aprendizado, os dois dias na

Barra do Jacuípe significaram um marco em minha vida, no sentido de eu reafirmar o meu

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interesse pela direção de filmes de ficção e reunir conhecimento e uma boa experiência

enquanto estudante de comunicação.

Além das aulas de cinema, que muito influenciaram o meu gosto e a minha cultura

cinematográfica, a Facom me proporcionou uma sólida formação teórica, que me fez

refletir sobre o fazer cinematográfico e artístico, e estimulou a busca por outras leituras,

filmes e cultura em geral. Tudo isso me ajudou enormemente não só na confecção do

roteiro, mas em todas as outras etapas.

Apesar dos problemas e contratempos presentes em todas as fases do processo, que

não foram poucos, ainda resta muita vontade de recomeçar. É claro que desejo que as

condições sejam outras, que a experiência me auxilie a não mais cometer os mesmos erros,

e que possua recursos financeiros mais administráveis para conceber um segundo filme.

Mas ainda que fossem as mesmas condições, com todos os problemas que uma produção

pode ter, eu repetiria a experiência.

Dentre todas as vantagens que uma experiência assim pode incluir, eu destacaria

sobretudo a transformação sobre o meu modo de perceber e sentir as coisas ao meu redor.

O exercício de olhar o mundo poeticamente, analisando os pormenores de cada lugar, cada

pessoa ou gesto, me auxiliou profundamente antes e após as filmagens. O “olhar poético”

ao qual me refiro, na vida corrida dos dias de hoje, é menos o prestar atenção em algo de

caráter extraordinário do que olhar com cuidado o óbvio, como observar uma velha árvore

que passa despercebida por nós todos os dias.

O trabalho sistemático com a imagem, nas filmagens e na montagem, modificaram

não só a minha maneira de ver o mundo, como a maneira de ver os filmes. Assisto-os

prestando atenção na combinação dos planos, atentando para cada movimento de câmera,

cada bela atuação. Tornou-se difícil se “desligar” e me deixar levar pela trama. Posso dizer

que hoje sou muito mais exigente, e percebi essa evolução gradual principalmente na etapa

da montagem do áudio. Enquanto acompanhava a primeira montagem do som, não

consegui ver tantos problemas assim. O montador, por sua vez, ia apontando-os para mim,

e a partir da segunda e da terceira montagem fui ouvindo coisas que até então passaram

quase despercebidas. Hoje, mesmo com o áudio pronto, ainda identifiquei alguns

problemas, que não possuem mais solução.

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Depois de tudo, parecia que havia apurado os meus sentidos. O mundo agora se

transformava diante de mim, e não conseguia mais percebê-lo da mesma maneira.

Com o filme em mãos, orgulhosa e com muitos quilos a menos, posso dizer que

valeu a pena. A esperança é de que Á Margem do Tempo ultrapasse as portas da Facom e

da academia, e adquira vida própria, aparecendo em festivais de cinema, e projetando meu

nome como uma diretora de futuro promissor. É claro que sei que o filme não irá agradar a

todos. Mas espero que as pessoas possam ver nesse trabalho, ao menos, alguns pontos

dignos de mérito.

Bibliografia

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BORGES, Jorge Luis. O livro de areia. 3 ed. Porto Alegre: Globo, 1978.

BORGES, J. L. Elogio da sombra: poemas. 3. ed. Porto Alegre: Globo, 1971.

BOBBIO, N. O tempo da memória: De senectute e outros escritos autobiográficos.

4. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CARRIÈRE, J C. A Linguagem Secreta do Cinema. 1. ed. São Paulo: Nova

Fronteira, 1995

DUARTE, R. Primeiro Traço: manual descomplicado de roteiro. Trabalho

apresentado como projeto experimental na Faculdade de Comunicação da Universidade

Federal da Bahia, Salvador, 2000

GRÜNEWALD, J. L. Um filme é um filme: o cinema de vanguarda dos anos 60. 1.

ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

LISPECTOR, C. Um Sopro de Vida: Pulsações. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1988

RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta. 10. ed. Porto Alegre: Globo, 1980.

ROCHA, G. O século do cinema. 1. ed. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme,

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SALLES, F. O Diretor. Disponível em:

< http://www.mnemocine.com.br/cinema/cinetecindex.htm> Acesso em: 20 mar.

2004

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TOLSTÓI, L. A Morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998

Ficha técnica

À Margem do Tempo (16min, digital, colorido, 2004)

Com André Setaro e Lucas Valadares

Roteiro e direção: Julia Lima

Produção: Ana Camila Esteves

Direção de fotografia e cinegrafista: Antônio Martins

Técnico de som: Edson Ribeiro

Trilha Sonora: Cacau Celuque

Mixagem Áudio: Jancy Souza

Edição: Edson Ribeiro

Eletricista e maquinista: Antônio “Onze Mil”

Assistente de produção: Amokashi

Equipamentos:

1 grua mini-gib

1 travelling

1 microfone boom

1 câmera D35 com tripé

1 monitor

1 praticável

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2 refletores Fresnel

1 máquina de fumaça

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