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Afro-Ásia ISSN: 0002-0591 [email protected] Universidade Federal da Bahia Brasil Vainfas, Ronaldo SEFARDISMO AFRICANO NO SÉCULO XVII Afro-Ásia, núm. 47, 2013, pp. 399-406 Universidade Federal da Bahia Bahía, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77026210010 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Afro-Ásia

ISSN: 0002-0591

[email protected]

Universidade Federal da Bahia

Brasil

Vainfas, Ronaldo

SEFARDISMO AFRICANO NO SÉCULO XVII

Afro-Ásia, núm. 47, 2013, pp. 399-406

Universidade Federal da Bahia

Bahía, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77026210010

Como citar este artigo

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Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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RESENHAS

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SEFARDISMO AFRICANO NO SÉCULO XVII

MARK, Peter & HORTA, José da Silva. The Forgotten Diaspora: JewishCommuninities in West Africa and the Making of the Atlantic World.Nova York: Cambridge University Press, 2011. 262 p.

A diáspora esquecida é o título, emportuguês, deste livro de Peter Marke José da Silva Horta. O primeiro éprofessor de História da Arte naWesleyan University (Connecticut),dedicado aos estudos sobre identida-des culturais na Senegâmbia no perí-odo pré-colonial que, na linguagemdos africanistas, se refere ao períododa expansão marítima europeia entreos séculos XVI e XVIII. José da Sil-va Horta é professor na Universida-de de Lisboa, onde atua nas áreas deHistória da África e História da Ex-pansão e, como seu colega Mark, de-dica-se aos estudos sobre a os conta-tos econômicos e culturais entre osportugueses e os povos da “Guiné doCabo Verde”, uma estreita faixa lito-rânea entre o Cabo Verde e o rioSaloum, ao norte da Gâmbia atual.

O tema do livro é muito original,sob todos os pontos de vista, porquese arrisca a estudar as comunidadesjudaicas de origem ibérica, com des-

taque para a portuguesa, em regiãode grande importância para o comér-cio atlântico como era a Senegâmbia.Comércio não só de escravos, mas deoutras mercadorias valiosas, a exem-plo do marfim e das peles.

O título do livro é, portanto, exa-to, pois esta diáspora sefardita esta-va mesmo esquecida, para não dizerdesconhecida, entre os estudiosos dascomunidades sefarditas espalhadaspelo mundo, a partir dos séculos XVe XVI. Bastaria citar, para comprová-lo, o grande livro de Jonathan Israel,Diasporas Within a Diaspora (2002),composto de 18 estudos sobre as co-munidades sefarditas em regiões devários continentes: nas cidades itali-anas, como Veneza e Ferrara; nas ci-dades do império turco-otomano,como Salonica e Esmirna; na Améri-ca espanhola, desde o Rio da Prata àNova Espanha (México); no Brasilholandês; na França, a exemplo deBordeaux; no norte europeu, com

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destaque para Londres, Hamburgo e,principalmente, Amsterdã. JonathanIsrael não deixa a África de lado, poisdedica um estudo à importante comu-nidade sefardita estabelecida no Mar-rocos. Mas é o único caso africanoestudado no livro.

A presença de cristãos-novos oude judeus assumidos na África sub-saariana estava carente, sem dúvida,de um estudo monográfico. Até o li-vro de Mark e Horta, nosso conheci-mento se limitava a informaçõespontuais e difusas. O livro de Albertoda Costa e Silva, A manilha e olibambo (2007), para citar um africa-nista brasileiro, oferece boas informa-ções sobre o papel dos sefarditas deorigem portuguesa no tráfico africa-no de escravos. O mesmo vale para oclássico Os holandeses no Brasil e nacosta africana, de Klaas Ratelband,traduzida para o português somenteem 2003, com revisão crítica do his-toriador angolano Carlos Pacheco.

Nos dois livros citados, à guisa deexemplo, as informações sobre a pre-sença dos cristãos-novos e judeusportugueses, embora preciosas, limi-tam-se a indicar a participação delesno tráfico de escravos e suas impor-tantes conexões com alguns centrosnevrálgicos do capitalismo comerci-al na Época Moderna: as ligaçõescom Lisboa, Madri, Sevilha, Amster-dã, sem falar nos portos coloniais dasAméricas portuguesa (Recife, Salva-dor, Rio de Janeiro) e espanhola (VeraCruz, Lima, Cartagena, BuenosAires). A elasticidade das redes co-merciais sefarditas, espalhadas pelos

sete mares e pelos quatro cantos domundo já é assunto bem estudado econhecido. Seu papel na configura-ção dos negócios marítimos a partirdo século XVI também já foi salien-tado, inclusive insinuado (não maisque isso) por Fernand Braudel, na suaobra-prima, O Mediterrâneo e o mun-do mediterrânico na época de FilipeII (1949).

Nenhum estudo, porém, se dedi-cou a iluminar as comunidadessefarditas da África sub-saariana nes-ta época. Reside nisto, portanto, oprimeiro grande mérito da obra deMark e Horta. Uma obra que oferececonhecimento novo, lastreada emfontes mal conhecidas ou inéditas.Esta a grande contribuição de qual-quer livro de história, muito mais doque em tentar provar teorias ou in-ventar conceitos.

Nossos autores não descuidam,porém, das armadilhas conceituais ouvocabulares inerentes a qualquer es-tudo historiográfico. Longe disso, acomeçar pelos conceitos-chave de co-munidade e diáspora. O primeiro re-ferenciado ao grupo específico dossefarditas em termos de identidadesociocultural, crenças e relaçõesparentais. O segundo relacionado àdispersão de indivíduos ou famíliaspelos vários continentes do globo, emparte por causa da perseguição dasinquisições ibéricas contra os conver-sos, em parte motivada pelo alarga-mento das oportunidades econômicasque a expansão comercial alinhava nohorizonte. Os sefarditas integrariam,assim, uma “comunidade moral”,

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alicerçada em uma trading diaspora,conceito originalmente proposto porAbner Cohen em Cultural Strategiesin the Organization of TradingDiasporas (1971).

A necessidade de definiçõesvocabulares vai além das noções decomunidade e diáspora. Isto porquefalar em sefarditas é dizer muito pou-co e os autores estão cientes disso. Osefardismo, vertente ibérica do juda-ísmo europeu, conheceu mutaçõesimportantes a partir do século XV. NaEspanha isto ocorreu desde as conver-sões “voluntárias”, no final do séculoXIV, passando pela criação do SantoOfício, em 1478, e culminando com aexpulsão dos judeus pelos Reis Cató-licos, em 1492. Em Portugal, ondenunca houve “tradição marrana” até ofinal do século XV, o processo teveinício em 1496, com o decreto de con-versão forçada de d. Manuel, comple-mentado pelo estabelecimento da In-quisição, em 1536. O descompassoentre Espanha e Portugal no tocante àcronologia das perseguições aos ju-deus, aos movimentos de conversão(espontânea ou forçada) e à implanta-ção dos respectivos tribunais do San-to Ofício, teve papel decisivo na con-figuração do sefardismo, entre os sé-culos XV e XVII, com forte repercus-são nas diásporas.

Além disso, cristãos-novos,criptojudeus e judeus não eram sinô-nimos. O cristão-novo, ou converso,tanto podia acalentar, no foro íntimo,a sua ancestralidade judaica, e mes-mo praticar certos ritos “mosaicos”,como integrar-se, de peito aberto, no

mundo católico. Uns se mantiveramapegados à “lei de Moisés”, outrosbuscaram a “lei de Cristo” e até in-gressaram no clero. O criptojudeu,por sua vez, era aquele que, nãoobstante convertido ao catolicismo,mantinha-se apegado ao judaísmo,mesmo se restrito ao âmbito domés-tico, limitado a guardar as festas ju-daicas, os ritos funerários e os tabusdietéticos. Criptojudeu é o que, nalinguagem inquisitorial, caracteriza-va o judaizante, suspeito de cometera heresia judaica. Enfim, judeu, nes-se contexto, é o cristão-novo apóstata,o que renega o catolicismo, buscan-do terras onde o judaísmo é tolerado.Trata-se aqui do judeu público, sinô-nimo do cristão-novo renegado. A“comunidade moral” da trading di-áspora era, portanto, heterogênea emsua composição, por assim dizer, an-tropológica. Isto vale para Europa,Oriente, Américas, Áfricas.

O livro de Mark e Horta se con-centra, como disse, em uma regiãoespecífica da costa ocidental africa-na, a Senegâmbia, ou Petite Côte,como a chamariam os franceses noséculo XIX, em particular os portosde Rufisque, de Porto d’Ale e deJoala. Os três portos pertenciam areinos autônomos que se haviam des-membrado do Império Jalofo, entreo meado do século XVI e o início doXVII. Englobavam populações dosgrupos jalofo, fulani ou jola, serere emandinga. Rufisque, chamado pelosportugueses de “Rio Fresco”, locali-zado na península de Cabo Verde,pertencia ao reino de Cayor. Porto

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d’Ale, ao sul de Rufisque, estava sobcontrole do rei de Bawol. Joala, en-fim, situada à sudoeste de Dacar, eragovernado pelo soberano de Sine ouSiin. O litoral senegalês havia sidoparcialmente islamizado desde o sé-culo XI, com a expansão almorávida.As elites dirigentes daqueles reinos,no limiar da expansão europeia, eramseguramente muçulmanas.

As fontes inquisitoriais são a basedocumental do livro, pois contêm de-núncias, processos e outros documen-tos relacionados à vida de cristãos-novos ou judeus portugueses residen-tes naqueles portos. Mark e Horta des-cobriram papéis do Santo Ofício atéentão inexplorados pelos estudiosos dotribunal português. Mas o livro tam-bém utiliza fontes de outro tipo, comorelatos de viagens e documentaçãocartorária. Vale citar, entre os viajan-tes, a compilação de Avelino Teixeirada Horta, As viagens do bispo d. FreiVitoriano Portuense à Guiné e a cris-tianização dos Reis de Bissau, obrapublicada em 1974. O mesmo valepara a compilação de Paul Hair et al.,Barbot on Guinea, publicada em 1992.No caso da documentação cartorial,valeram-se das fontes depositadas noGemeente Archief, em Amsterdã, quedetalham, em muitos casos, as ativi-dades comerciais dos judeus portugue-ses na África. A importância deste úl-timo arquivo confirma, por si só, opapel chave da comunidade judaicaestabelecida na Holanda para o funci-onamento das redes sefarditas no co-mércio mundial, a partir do séculoXVII.

A matéria é distribuída em seiscapítulos muito bem concebidos. Oprimeiro trata das origens das comu-nidades sefarditas na Petite Côte, bemcomo suas conexões com os judeusportugueses de Amsterdã, todos mer-cadores de grosso trato. O segundo tra-ta da identidade construída pelossefarditas e de suas relações com osdemais grupos que viviam na região.O terceiro examina a relação entre osmercadores judeus e as autoridadesmuçulmanas que, na maioria das ve-zes, apoiaram os sefarditas e, mais queisso, procuraram defendê-los das in-vestidas do Santo Ofício português. Oquarto trata das atividades comerciais:circuitos, valores, rotas, mercadorias.O quinto trata do comércio do marfime de armas brancas, como espadas eadagas, incursionando também na his-tória da arte, em particular naestatuária. O sexto particulariza o pa-pel dos mercadores judeus de Portod’Ale e Joala no comércio atlântico,examina o percurso de retorno de vá-rios judeus para Amsterdã e realiza umbalanço do legado sefardita na Guiné.

A obra traz novidades que refinamnosso conhecimento, quer sobre adiáspora sefardita na Época Moder-na, quer sobre o funcionamento docapitalismo comercial no séculoXVII. Destaca-se, porém, a contribui-ção dos autores para o estudo dos“negócios africanos” na costa sene-galesa naquele tempo. O estudo dossefarditas funciona, portanto, não sócomo objeto em si mesmo, senãocomo janela para se compreender ascomplexas relações entre soberanos

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e chefias dos reinos da Petite Côte eos comerciantes europeus e africanos.Mercadores de variegada procedên-cia e confissão religiosa: judeus, ca-tólicos, protestantes e muçulmanos,vindos da Europa, do Magreb ou deoutras regiões africanas. Vale ressal-tar, a propósito, o primeiro apêndiceda obra, no qual encontramos preci-osas listas nominativas. A primeiraoferece uma personalia de cerca dequarenta nomes de comerciantes ju-deus atuantes em Porto d’Ale e Joala,seus parentes e parceiros cristãos-no-vos, desde 1606 até 1635. A segundaapresenta uma lista dos residentes na-queles portos na fase inicial da pre-sença sefardita, conforme o relato deJoão Mendes (1612): oito viviam emJoala e nove em Porto d’Ale. A tercei-ra oferece dez nomes de comerciantesespecializados no comércio de espa-das e adagas, que compravam as ar-mas em Lisboa (dos “espadeiros” ou“barbeiros de espadas”) para vendê-las na costa guineense. Nunca serádemais realçar o valor dessas listaspara futuros pesquisadores das redessefarditas ou do comércio na costasenegalesa durante o século XVII.

O estudo também contribui pararelativizar o papel dos mercadoresjudeus no tráfico de escravos, semchegar, obviamente, a desmerecê-lo.O balanço dos negócios sefarditas naregião, no período estudado, compro-va que a atuação dos judeus no tráfi-co foi marginal, se comparada a seuengajamento em outros negócios.Mas os autores cuidam de advertirque a Petite Côte não era a principal

área da costa guineense engajada notráfico negreiro.

Em todo caso, a importância dafeitoria portuguesa de Cacheu, fun-dada em 1588, na atual Guiné-Bissau,poderia sugerir um peso maior dosjudeus e cristãos novos no tráfico deescravos. Os autores reconhecem aimportância de Cacheu para os sefar-ditas, sobretudo como lugar de pas-sagem e de comércio eventual de ou-tras mercadorias, nem tanto como lo-cal de residência. Terá sido em razãode ter se estabelecido em Cacheu umvicariato com foro inquisitorial? Pos-sivelmente. Na feitoria de São Jorgeda Mina, ou Elmina, porém, a pre-sença dos sefarditas é bem conheci-da. Isto não contraria a interpretaçãodos autores, pois Elmina ficava naCosta do Ouro, atual Gana, e não naPetite Côte. Além disso, a feitoria foitomada pelos holandeses em 1637 e,como é sabido, os batavos eram tole-rantes com os judeus.

O que dizer, porém, do forte deBezeguiche, na ilha Goréia, localiza-do defronte a Dacar e muito próximaa Rufisqui, na Petite Côte, onde haviaimportante comunidade sefardita? Alio tráfico de escravos assumiu enormeimportância desde cedo. Nossos auto-res esclarecem, porém, que houve per-seguição aos judeus, não somente naGoréia, como em Cacheu, por voltade 1629, por ocasião da expediçãocomandada pelo governador João Pe-reira Corte Real. Foi neste ano que a“sinagoga” de Rufisqui foi fechada.

Seja como for, os sefarditas pu-deram respirar com alguma tranqui-

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lidade na Petite Côte, porque os anfi-triões muçulmanos lhes deram efici-ente proteção. No Marrocos não foidiferente, bem como no império oto-mano, que era turco, mas tambémislâmico. No caso africano, as chefi-as muçulmanas abrigavam mercado-res estrangeiros por tradição, fossemafricanos de outras partes, fossemjudeus. No caso dos últimos, isto foiainda reforçado pelo sentimento an-ticatólico. A rejeição dos sefarditas àsimagens e rituais católicos favoreceua aproximação entre os dois gruposconfessionais. Aproximação seme-lhante ocorreu, aliás, na própriaHolanda, entre judeus e calvinistas,unidos na crítica ao “papismo” e à“idolatria” católica.

Mark e Horta sugerem, ainda, queos judeus luso-africanos, incluindoobviamente os mestiços, cultivaramalgum sincretismo religioso, favoreci-do, no caso, pela distância em relaçãoaos centros rigoristas do sefardismo naEuropa. Baseados na crônica de umfrancês, Nicolas Villault, Relation descostes d’Afrique appelées Guinée(1669), sugerem que certas oraçõesjudaicas que invocavam Abraão,Isaque e Jacó, possuíam alguma coisade paganismo. A meu ver, a evidênciadeste sincretismo é modesta para sus-tentar uma “interação religiosa” oufusão de crenças judaico-pagão. En-tre africanos adeptos de cultos pagãose portugueses católicos, sim, tal inte-ração é claramente comprovada. Aobra de John Thornton, Africa and theAfricans in the Making of the AtlanticWorld (1992) oferece provas inequí-

vocas da gênese de um “catolicismoafricano” no reino do Congo, que valetambém para Angola – regiões de po-vos bantos. Mas entre judeus e africa-nos pagãos, o presumido sincretismoprecisaria de evidências mais consis-tentes.

Outra controvérsia diz respeito ase houve ou não racismo dos sefarditasem relação aos mulatos e negros. Marke Horta tendem a confirmar a opiniãode Jonathan Schorsch, em Jews andBlacks in the Early Modern World(2004), para quem é possível verifi-car preconceitos raciais contra os ne-gros desde o início do século XVII.Schorsch rejeita, com razão, a ideia deque o racismo, no sentido moderno,seja resultado da Ilustração no séculoXVIII. Nossos autores sugerem, po-rém, que as atitudes dos judeus em facedos negros, em especial aos mestiçosou mulatos integrantes da comunida-de judaica, eram amiúde contraditó-rias, ora preconceituosas, ora toleran-tes. Os sefarditas que retornaram dePetite Côte para Amsterdã, segundoos autores, exprimiam uma opiniãobastante positiva em relação aos ju-deus de “pele escura”, ao menos naprimeira metade do século XVII. In-terpretação similar foi sustentada porTobias Green em “Amsterdam andthe African Atlantic” (2008), que des-creveu os sefarditas da Petite Côtecomo uma “comunidade aberta”, quefloresceu na África subsaariana emanteve forte ligação com seus anfi-triões africanos.

Mark e Horta são cautelosos nes-te ponto, reconhecendo que as restri-

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ções legais aos judeus “euro-africa-nos” impostas pela comunidadesefardita de Amsterdã datam, quan-do menos, da década de 1640. Osautores registram a discriminação,mas admitem que a simples existên-cia dessa legislação pode indicar apossível ascensão social dos judeus“euro-africanos” entre os sefarditas.Insistem, porém, no caráter erráticoe ambíguo das discriminações do con-selho judaico, a exemplo da autori-zação ou proibição do enterramentodos “judeus de cor” no cemitério deOuderkerk: em 1627, os judeus euro-africanos tinham que ser enterradosfora do cemitério; em 1647 esta in-terdição foi suspensa em relação aosmestiços de “judeus pretos com bran-cos”; em 1682, os judeus mulatosganharam uma área separada dentrodo próprio cemitério. O modo de dis-criminar muda ao longo do tempo,mas permanece algum tipo de discri-minação.

Trata-se de questão relevantíssi-ma, sem dúvida, mas penso que elanão pode ser analisada apenas emfunção dos judeus egressos da PetiteCôte, cujo peso na comunidade se-fardita era decerto menor do que osprovenientes de Portugal ou das co-munidades sefarditas mais antigas doMediterrâneo. No conjunto, baseadonas informações de Yosef Kaplan(Judíos Nuevos en Amsterdam, 1996),diria que, mais cedo do que tarde, ascongregações judaicas tenderam adiscriminar os judeus mulatos, o quesó fez aumentar após a unificaçãodelas na Talmud Torá, em 1639. Em

Jerusalém Colonial (2010), exami-nando as normas (askamot) da ZurIsrael aprovadas em 1648, constateiuma forte discriminação dos negrose mulatos. O regulamento proibia acircuncisão de escravos, mesmo queos senhores os libertassem. O proble-ma não residia na condição escrava,mas na cor negra ou na origem afri-cana.

Por outro lado, o exclusivismoidentitário dos sefarditas de Amster-dã não dizia respeito apenas aos ju-deus “euro-africanos”. Estendia-se,talvez em maior escala, aos judeusprovenientes da Europa centro-orien-tal, os ashekenazim, a partir da déca-da de 1640. A legislação da TalmudTorá era duríssima com os judeus“polacos e tudescos”, do mesmomodo que o era com os mulatos. Oiberismo dos sefarditas e, mais queisto, sua insegurança identitária, poismuitos tinham sido criados no catoli-cismo e mal conheciam o judaísmo,são elementos essenciais para se com-preender a intolerância “racial” doconselho judaico (mahamad).

O aspecto mais polêmico do livroreside, porém, nada menos do que nasua tese central, ou seja, que nas co-munidades sefarditas da Petite Cotêerigiu-se uma comunidade judaicaobservante das tradições sefarditas(ainda que metamorfoseadas), abran-gendo a tradição oral, a observânciados ritos domésticos e, sobretudo,alguma estrutura sinagogal.

É verdade que Mark e Hortaapresentam dados inéditos sobre ofuncionamento de uma sinagoga em

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Joala, na casa de Diogo Vaz de Sousa,o velho, e de outra em Porto d’Ale,cujas cerimônias eram oficiadas pelorabino Jacob Peregrino. Informamsobre o papel de seu filho, ManuelPeregrino, que também atuou comomohel (circuncisador). Reúnem diver-sas evidências, extraídas sobretudodas fontes inquisitoriais, sobre a ob-servância de cerimônias, circunci-sões, orações etc. No entanto, nãochegou a existir nenhuma congrega-ção sefardita na Petite Côte, a exem-plo do que ocorreria no Brasil holan-dês, a partir de 1636, ou das comuni-dades judaicas do Caribe, na segun-da metade do século XVII.

As informações sobre as práticasjudaicas na costa senegalesa são, com-parativamente, muito escassas e nãoprovêm de fontes da própria comuni-dade, salvo lateralmente. Boa parte dasevidências lembra mais o criptojudaís-mo do que o sefardismo sinagogalestruturado em outras diásporas da mes-ma época. A documentação não deta-lha as festas, o uso do tallet e das tefillotpelos yahidim. Há menção a doze có-pias da Torá levadas à Petite Côte porJacob Peregrino, que nossos autores es-clarecem, a tempo, que não passavamde livros de orações, possivelmenteextraídas da Bíblia de Ferrara (em cas-telhano), como as usadas em Amsterdãou no Recife. Mas, à diferença dos do-cumentos sobre outras congregaçõessefarditas da época, quer judaicos, querinquisitoriais, não há detalhes sobre

elas. Também as considerações sobrea “colher de marfim” enquanto “pon-teiro” para a leitura da Torá, me pare-ceram especulativas. Os próprios auto-res questionam, a certa altura, se JacobPeregrino era mesmo um “rabino” ouum guia espiritual dos sefarditas resi-dentes na Petite Côte. De fato, não hádocumentos que o designem comohaham, senão como “rabbi” ou “dou-tor rabi”, o que faz muita diferença. Emresumo, o sefardismo da Petite Côteparece não ter se organizado instituci-onalmente, pois não há menção àsaskamot, quer em Joala, quer em Porod’Ale, muito menos em Rufisqui.

Em todo caso, as críticas que ve-nho de fazer em nada empalidecem ovalor da pesquisa e do livro que delaresultou. Os autores provam, isto sim,a existência de uma comunidade se-fardita na Petite Côte que ocupava, ameu ver, uma posição intermédia en-tre as congregações sefarditas deAmsterdã, Recife ou Hamburgo e ocriptojudaísmo típico do mundo ibé-rico vigiado pelo Santo Ofício.

Seja como for, se o melhor quepode oferecer um livro de história é aampliação do conhecimento sobre otema escolhido, a renovação do obje-to, o ineditismo das fontes e a ousadiadas interpretações, a obra de Mark eHorta cumpre à farta o seu papel. Umacontribuição inestimável à bibliogra-fia sobre o sefardismo, o capitalismocomercial e as sociedades da costasenegalesa no século XVII.

Ronaldo [email protected]

Universidade Federal Fluminense