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“25 de Abril: antologia poética”
Antologia Poética
1. “25 de Abril”, de Sophia de Mello Breyner Andresen
2. “Trova do Vento que passa”, de Manuel Alegre
3. “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso
4. “O que aquela noite me quis dar”, de José Jorge Letria
5. “Liberdade para Liberdade”, de José Augusto Seabra
6. “25 de Abril de 1974”, de João Pedro Mésseder
7. “25 de Abril”, de Maria Teresa Horta
8. “Menino do Bairro Negro”, de Zeca Afonso
9. “As Portas que Abril abriu”, de José Carlos Ary dos Santos
10. “Liberdade”, de Sérgio Godinho
11. “Abril”, de José Fanha
12. “Abril de Abril”, de Manuel Alegre
13. “Cantiga de Abril”, de Jorge de Sena
14. “Esta Gente”, de Sophia de Mello Breyner Andresen
15. “O Dia da Liberdade”, de José Jorge Letria
16. “A Cantiga é uma Arma”, de José Mário Branco
17. “Abril de sim Abril de não”, de Manuel Alegre
18. “ Menina dos Olhos tristes”, de Zeca Afonso
19. “Cantata da Paz”, de Sophia de Mello Breyner Andresen
20. “Portugal Ressuscitado”, de José Carlos Ary dos Santos
21. “Liberdade”, de Miguel Torga, in Diário XII
22. “Chamava-se Catarina”, de António Vicente campinas, interpretado
por Zeca Afonso
23. “Livre”, de Carlos de Oliveira, in O nosso amargo cancioneiro
“25 de Abril: antologia poética”
24. “Liberdade”, de Fernando Macias
25. “E Depois do Adeus”, de José Niza, interpretado por Paulo de Carvalho
26. “As mãos”, de Manuel Alegre, in O Canto e as Armas
27. “Ser livre é querer ir e ter um rumo”, de Armindo Rodrigues
28. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, Soneto de Luí de
Camões, interpretado por José Mário Branco
29. “Cantiga para os que partem”, de Rosália Castro
30. “Somos Livres”, de Ermelinda Duarte
31. “Maria Faia” de Zeca Afonso
32. ”Juventude”, de João Apolinário, Francisco Fanhais e Luís Cília
33. “Eu sou português aqui”, de José Fanha
34. “Explicação do país de Abril”, de Manuel Alegre
35. “As minhas mãos”, de Michael Pereira
36. “Tanto Mar”, de Chico Buarque
37. ”Salgueiro Maia”, de Manuel Alegre
38. “A Salgueiro Maia”, de Sophia de Mello Breyner Andresen
39. “Eu vi este povo a lutar”, de José Mário Branco
40. “Os medos”, de José Cutileiro
41. “Revolução”, de Sophia de Mello Breyner Andresen
42. “Soneto Perfeito da caminhada Imperfeita”, de Sidónio Muralha
43. “Mulheres de Abril”, de Maria Teresa Horta
44. “Elefante de Abril”, de Carlos Pinhão
“25 de Abril: antologia poética”
“25 de Abril: antologia poética”
Notas introdutórias
O 25 de Abril na Poesia Portuguesa
Ao longo dos anos, especialmente no período compreendido entre os
fins da década de 30 e as vésperas do 25 de Abril, foi-se definindo, entre nós,
uma tradição de poesia de resistência, de oposição ao Estado Novo. Para a
formação de tal tradição contribuíram poetas oriundos de diferentes
quadrantes, embora com relevo para aqueles que escreviam entre as
preocupações maiores da sua poética o empenhamento cívico e social. De
forma mais velada ou mais aberta, a lírica resistente afirmava-se enquanto
poesia combativa, de denúncia da iniquidade do regime, do seu aparelho
repressivo, pondo sempre em primeiro plano a liberdade de que se via
privada. A sua voz foi, durante décadas, lamento, protesto, acusação,
imprecação, ora animada pela esperança, ora abatida pelo desânimo.
Apelo à mudança, à transformação, procurou captar a adesão, a
atenção dos que a liam, dos que nela, muitas vezes, buscavam ânimo para o
combate em que estavam igualmente empenhados.
(…) Com a democracia e o desaparecimento de todo o tipo de
limitação sensória, a poesia portuguesa abre-se desinibidamente a novos
caminhos e vem mesmo entrar num dos seus períodos mais florescentes e
de mais fecunda diversidade.
Texto de Fernando J. B. Martinho (adaptado), in “Revista Camões”, 25 de Abril, a
Revolução dos Cravos
“25 de Abril: antologia poética”
"Memória de um tempo em que a POESIA também CANTAVA”,
por José Jorge Letria
“(...) Se alguns intérpretes eram também criadores das melodias que
cantavam, outros havia que recorriam, regularmente, à obra de POETAS (...).
Assim, a canção, com o seu carácter simples e eminentemente
itinerante, converteu-se num poderoso veículo de difusão da palavra dos
POETAS (...).
Quer isto dizer que não se pode dissociar o papel dos cantores de
intervenção, inspirado, de algum modo, na estética das canções de
intervenção, do património POÉTICO representado por alguns dos nossos
maiores autores contemporâneos. (...)
Refira-se, por outro lado, que o próprio Zeca Afonso, embora nunca se
tenha assumido publicamente como um poeta, tem, na sua obra, numerosos
textos que, por direito, deveriam figurar numa boa antologia da nossa
POESIA CONTEMPORÂNEA. (...)”
"Canções com História"
Cada canção, todas as canções têm uma história. É como uma
espécie de bilhete de identidade: quem as criou, onde nasceram, quem as
cantou, onde, quando e porquê. (...)
Muitas canções têm História, mas, também muitos poemas,
feitos canção, criaram histórias que vale a pena cantar e contar.
É disto exemplo, o soneto de Luís de Camões, interpretado por José
Mário Branco e música de Jean Sommer.
“25 de Abril: antologia poética”
1
25 de Abril
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"
“25 de Abril: antologia poética”
2
Trova do Vento que Passa
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio - é tudo o que tem quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo.
Vi meu poema na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem
“25 de Abril: antologia poética”
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir (Portugal à flor das águas) vi minha trova florir (verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Manuel Alegre, in "Praça da Canção"
“25 de Abril: antologia poética”
3
Grândola, vila morena
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade.
Zeca Afonso, 1971
“25 de Abril: antologia poética”
4
O QUE AQUELA NOITE ME QUIS DAR
Eu não estava em casa nessa noite, filho,
nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados
que rumavam às rádios e aos quartéis, engalanados
de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite ia
dar, o que a nossa liberdade prometia ser.
E tu, filho, tinhas a idade rumorejante
desse Abril embalado por uma canção do Zeca.
Como posso eu explicar-te tudo aquilo
que tu nasceste para aprender, para viver?
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, no meu dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância e
pouco ou nada sabia do mistério desse mês
capaz de transformar em assombro as nossas vidas.
Sim, sou eu neste retrato antigo,
a receber em festa os exilados, os que chegavam
com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão
bordada a sangue e espuma no capote das nocturnas caminhadas.
Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem
do primeiro de muitos dias em que o tempo
deixou de contar, em que os relógios se
tornaram corolas de paixão e riso
na lapela larga da alegria desta pátria.
Eu não estava em casa nessa noite, filho,
estava a afinar o coração pelo tom
das mais belas melodias que alguém pode aprender para
dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.
José Jorge Letria, dezembro de 1998
“25 de Abril: antologia poética”
5
LIBERDADE PARA A LIBERDADE
"Poesia, liberdade livre"
(Rimbaud)
Embebeda de rua a liberdade
livre: e serás livre, livre, livre
de andar pelos telhados da cidade
como um poeta a voar num bateau ivre
derrubando as bastilhas sem idade
que Abril abriu ao povo livre, livre
por dentro de ser livre em liberdade.
José Augusto Seabra
“25 de Abril: antologia poética”
6
25 de ABRIL DE 1974
Há dias em que os dentes se descerram
deixa o sangue de correr pelas avenidas
Há dias em que a morte se protege
da fúria desse sangue redivivo
Há dias que nascem sem um nome
e é preciso baptizá-los sem demora com um nome de flor ou de miragem
Há dias em que o sol muda de casa
para bairros silenciados da cidade
Há dias que se tingem de vermelho
com risos e palavras inauditas
Há dias em que as praças se levantam
num tumulto de gestos com sentido
Há dias que se enchem de ambição
civil mas nua como um eco
Há dias em que o silêncio se cala
e uma voz ergue um canto nunca ouvido.
João Pedro Mésseder
“25 de Abril: antologia poética”
7
25 de Abril
Deixo que a palavra
tão incerta
teça
a liberdade a meio
deste Abril
para que a memória em Portugal não esqueça
tomando da flor
o cravo na matriz
teimando que a paixão
a tudo vença
dizendo não àquilo
que não quis.
Maria Teresa Horta
“25 de Abril: antologia poética”
8
Menino do bairro negro
Olha o sol que vai nascendo Anda ver o mar
Os meninos vão correndo Ver o sol chegar
Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz
Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Virá também
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção.
Zeca Afonso
“25 de Abril: antologia poética”
9
As Portas que Abril abriu
Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra. Onde entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras
um povo se debruçava como um vime de tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza. Era uma vez um país onde o pão era contado onde quem tinha a raiz tinha o fruto arrecadado onde quem tinha o dinheiro tinha o operário algemado onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado onde tossia o mineiro em Aljustrel ajustado onde morria primeiro quem nascia desgraçado.
Era uma vez um país
de tal maneira explorado pelos consórcios fabris pelo mando acumulado pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado pelo dobrar da cerviz pelo trabalho amarrado que até hoje já se diz
que nos tempos do passado se chamava esse país
Portugal suicidado.
Ali nas vinhas sobredos vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre de comer a sua terra.
Um povo que era levado para Angola nos porões um povo que era tratado como a arma dos patrões um povo que era obrigado a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado nunca fere os seus irmãos. Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo alguém que lhe queria bem um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança feita de força e vontade era ainda uma criança mas já era a liberdade. Era já uma promessa era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração. Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado muitos homens na prisão. Esses que tinham lutado
a defender um irmão esses que tinham passado o horror da solidão esses que tinham jurado sobre uma côdea de pão
“25 de Abril: antologia poética”
ver o povo libertado do terror da opressão. Não tinham armas é certo mas tinham toda a razão quando um homem morre perto tem de haver distanciação uma pistola guardada nas dobras da sua opção
uma bala disparada contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.
Quem o fez era soldado homem novo capitão
mas também tinha a seu lado muitos homens na prisão. Posta a semente do cravo começou a floração
do capitão ao soldado do soldado ao capitão.
Foi então que o povo armado percebeu qual a razão porque o povo despojado lhe punha as armas na mão. Pois também ele humilhado em sua própria grandeza era soldado forçado contra a pátria portuguesa. Era preso e exilado
e no seu próprio país muitas vezes estrangulado pelos generais senis. Capitão que não comanda não pode ficar calado
é o povo que lhe manda ser capitão revoltado é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país do ventre duma chaimite. Porque a força bem empregue contra a posição contrária nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!
Foi então que Abril abriu as portas da claridade e a nossa gente invadiu a sua própria cidade. Disse a primeira palavra na madrugada serena um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena. E então por vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras desceram homens sem medo marujos soldados «páras» que não queriam o degredo dum povo que se separa. E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam era a hora da verdade
para as hienas que mandavam a hora da claridade
para os sóis que despontavam e a hora da vontade
para os homens que lutavam. Em idas vindas esperas encontros esquinas e praças não se pouparam as feras arrancaram-se as mordaças e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão e uma pedra de lua
no lugar do coração. Dizia soldado amigo meu camarada e irmão este povo está contigo
“25 de Abril: antologia poética”
nascemos do mesmo chão trazemos a mesma chama temos a mesma ração dormimos na mesma cama comendo do mesmo pão. Camarada e meu amigo soldadinho ou capitão este povo está contigo
a malta dá-te razão. Foi esta força sem tiros de antes quebrar que torcer esta ausência de suspiros esta fúria de viver este mar de vozes livres sempre a crescer a crescer que das espingardas fez livros para aprendermos a ler que dos canhões fez enxadas para lavrarmos a terra e das balas disparadas apenas o fim da guerra. Foi esta força viril de antes quebrar que torcer que em vinte e cinco de Abril f ez Portugal renascer. E em Lisboa capital dos novos mestres de Aviz o povo de Portugal deu o poder a quem quis. Mesmo que tenha passado às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado saiu das nossas entranhas. Saiu das vinhas sobredos vales
socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras onde um povo se curvava como um vime de
tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza.
E se esse poder um dia o quiser roubar alguém não fica na burguesia volta à barriga da mãe. Volta à barriga da terra que em boa hora o pariu agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu. Essas portas que em Caxias se escancararam de vez essas janelas vazias
que se encheram outra vez e essas celas tão frias tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias todo o povo português. Agora que já floriu
a esperança na nossa terra as portas que Abril abriu nunca mais ninguém as cerra. Contra tudo o que era velho levantado como um punho em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho. Quando o povo desfilou nas ruas em procissão de novo se processou
a própria revolução. Mas eram olhos as balas abraços punhais e lanças enamoradas as alas dos soldados e crianças. E o grito que foi ouvido tantas vezes repetido dizia que o povo unido jamais seria vencido. Contra tudo o que era velho levantado como um punho em Maio surgiu vermelho o cravo do mês de Junho. E então operários mineiros
“25 de Abril: antologia poética”
pescadores e ganhões marçanos e carpinteiros empregados dos balcões mulheres a dias pedreiros reformados sem pensões dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões souberam que o seu dinheiro era presa dos patrões.
A seu lado também estavam jornalistas que escreviam actores que se desdobravam cientistas que aprendiam poetas que estrebuchavam cantores que não se vendiam mas enquanto estes lutavam é certo que não sentiam
a fome com que apertavam os cintos dos que os ouviam. Porém cantar é ternura escrever constrói liberdade e não há coisa mais pura do que dizer a verdade.
E uns e outros irmanados na mesma luta de ideais ambos sectores explorados ficaram partes iguais. Entanto não descansavam entre pragas e perjúrios agulhas que se espetavam silêncios boatos murmúrios risinhos que se calavam palácios contra tugúrios fortunas que levantavam promessas de maus augúrios os que em vida se enterravam por serem falsos e espúrios maiorais da minoria
que diziam silenciosa e que em silêncio fazia a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo e com ordenados régios o alvor do socialismo e o fim dos privilégios.
Foi então se bem vos lembro que sucedeu a vindima quando pisámos Setembro a verdade veio acima.
E foi um mosto tão forte que sabia tanto a Abril que nem o medo da morte nos fez voltar ao redil.
Ali ficámos de pé juntos soldados e povo para mostrarmos como é que se faz um país novo. Ali dissemos não passa! E a reacção não passou. Quem já viveu a desgraça odeia a quem desgraçou. Foi a força do Outono mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono de que o povo estava à espera. Foi a força dos mineiros pescadores e ganhões operários e carpinteiros empregados dos balcões mulheres a dias pedreiros reformados sem pensões dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro a quem não queria patrões.
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão é que acabaram os bodos — cumpriu-se a revolução. Porém em quintas vivendas palácios e palacetes os generais com prebendas
“25 de Abril: antologia poética”
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos para caçarem veados
os que davam dois estalos na cara dos empregados os que tinham bons amigos no consórcio dos sabões e coçavam os umbigos como quem coça os galões os generais subalternos que aceitavam os patrões os generais inimigos
os generais garanhões teciam teias de aranha e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha com os próprios cagalhões. Com generais desta apanha já não há revoluções.
Por isso o onze de Março foi um baile de Tartufos uma alternância de terços entre ricaços e bufos. E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado o preço de já não estar Portugal suicidado.
Fugiram como cobardes e para terras de Espanha os que faziam alardes
dos combates em campanha. E aqui ficaram de pé capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram que um animal racional opõe àqueles que o firam consciência nacional.
Os tais homens que souberam fazer a revolução
porque na guerra entenderam o que era a libertação.
Os que viram claramente e com os cinco sentidos morrer tanta tanta gente que todos ficaram vivos.
Os tais homens feitos de aço temperado com a tristeza que envolveram num abraço toda a história portuguesa. Essa história tão bonita
e depois tão maltratada por quem herdou a desdita da história colonizada.
Dai ao povo o que é do povo pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo nos poemas de Camões! Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada para levar a ternura
à distância imaginada. Foi este lado da história que os capitães descobriram que ficará na memória
das naus que de Abril partiram das naves que transportaram o nosso abraço profundo aos povos que agora deram novos países ao mundo.
Por saberem como é ficaram de pedra e cal capitães que na Guiné descobriram Portugal. E em sua pátria fizeram o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver: Bancos seguros petróleos que ficarão a render
ao invés dos monopólios
“25 de Abril: antologia poética”
para o trabalho crescer. Guindastes portos navios e outras coisas para erguer antenas centrais e fios dum país que vai nascer. Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer pensar que somos um rio que vai dar onde quiser pensar que somos um mar que nunca mais tem fronteiras e havemos de navegar de muitíssimas maneiras. No Minho com pés de linho no Alentejo com pão no Ribatejo com vinho na Beira com requeijão e trocando agora as voltas ao vira da produção no Alentejo bolotas no Algarve maçapão vindimas no Alto Douro tomates em Azeitão azeite da cor do ouro que é verde ao pé do Fundão e fica amarelo puro nos campos do Baleizão. Quando a terra for do povo o povo deita-lhe a mão! É isto a reforma agrária em sua própria expressão: a maneira mais primária de que nós temos um quinhão da semente proletária da nossa revolução. Quem a fez era soldado homem novo capitão mas também tinha a seu lado muitos homens na prisão. De tudo o que Abril abriu ainda pouco se disse um menino que sorriu
uma porta que se abrisse um fruto que se expandiu um pão que se repartisse um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse e entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu ainda pouco se disse e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse. Só nos faltava que os cães viessem ferrar o dente na carne dos capitães
que se arriscaram na frente. Na frente de todos nós povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas agiotas do lazer latifundiários machistas balofos verbos de encher e outras coisas em istas que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas o povo deu o poder!
E se esse poder um dia o quiser roubar alguém não fica na burguesia volta à barriga da mãe! Volta à barriga da terra que em boa hora o pariu agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu!
José Carlos Ary dos Santos
“25 de Abril: antologia poética”
10
Liberdade
Viemos com o peso do passado e da semente
esperar tantos anos torna tudo mais urgente e
a sede de uma espera só se ataca na torrente e
a sede de uma espera só se ataca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
só se pode querer tudo quanto não se teve nada
só se quer a vida cheia quem teve vida parada
só se quer a vida cheia quem teve vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
a paz o pão
habitação
saúde educação
só há liberdade a sério quando houver
liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir.
Sérgio Godinho
Canções de Sérgio Godinho Assírio e Alvim
“25 de Abril: antologia poética”
11
Abril
Havia uma lua de prata e sangue em cada mão.
Era Abril.
Havia um vento
que empurrava o nosso olhar e um momento de água clara a escorrer pelo rosto das mães cansadas.
Era Abril
que descia aos tropeções pelas ladeiras da cidade.
Abril tingindo de perfume os hospitais
e colando um verso branco em cada farda.
Era Abril o mês imprescindível que trazia um sonho de bagos de romã
e o ar a saber a framboesas.
Abril um mês de flores concretas
colocadas na espoleta do desejo flores pesadas de seiva e cânticos azuis um mês de flores um mês.
“25 de Abril: antologia poética”
Havia barcos a voltar de parte nenhuma
em Abril e homens que escavavam a terra em busca da vertical.
Ardiam as palavras
Nesse mês e foram vistos dicionários a voar e mulheres que se despiam abraçando
a pele das oliveiras.
Era Abril que veio e que partiu.
Abril
a deixar sementes prateadas germinando longamente no olhar dos meninos por haver.
José Fanha, Lisboa, Portugal (Do livro ainda inédito "Tempo azul")
“25 de Abril: antologia poética”
12
Abril de Abril
Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
Manuel Alegre, in 30 Anos de Poesia Publicações Dom Quixote
“25 de Abril: antologia poética”
13
CANTIGA DE ABRIL
Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
«Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade»
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinquenta anos reinaram neste pais, e conta de tantos danos, de tantos crimes e enganos, chegava até à raiz. Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha. Tantos morreram sem ver o dia do despertar!
Tantos sem poder saber com que letras escrever, com que palavras gritar! Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha. Essa paz de cemitério toda prisão ou censura,
e o poder feito galdério. sem limite e sem cautério, todo embófia e sinecura. Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.
Qual a cor da liberdade? É verde. verde e vermelha.
Essas guerras de além-mar gastando as armas e a gente, esse morrer e matar
sem sinal de se acabar por politica demente. Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esse perder-se no mundo o
nome de Portugal, essa
amargura sem fundo, só
miséria sem segundo, só
desespero fatal. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinquenta anos durou esta eternidade, numa sombra de gusanos e em negócios de ciganos, entre mentira e maldade. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha.
Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás: estala
enfim altiva e nua, com
força que não recua, a
verdade mais veraz. Qual a
cor da liberdade? É verde, verde e vermelha.
Jorge de Sena
“25 de Abril: antologia poética”
14
Esta gente
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova E
recomeço a busca De
um país liberto De uma vida limpa E de um tempo justo.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"
“25 de Abril: antologia poética”
15
O Dia da Liberdade
25 de Abril
Este dia é um canteiro
com flores todo o ano
e veleiros lá ao largo
navegando a todo o pano.
E assim se lembra outro dia febril
que em tempos mudou a história
numa madrugada de Abril,
quando os meninos de hoje
ainda não tinham nascido
e a nossa liberdade
era um fruto prometido,
tantas vezes proibido,
que tinha o sabor secreto
da esperança e do afecto
e dos amigos todos juntos
debaixo do mesmo tecto.
José Jorge Letria in O livro dos dias (AMBAR)
“25 de Abril: antologia poética”
16
A cantiga é uma arma
A cantiga é uma arma e eu não sabia
tudo depende da bala e da pontaria
tudo depende da raiva e da alegria
a cantiga é uma arma de pontaria
há quem cante por interesse há quem cante por cantar há quem faça profissão de combater a cantar
e há quem cante de pantufas para não perder o lugar
O faduncho choradinho de tabernas e salões semeia só desalento misticismo e ilusões canto mole em letra dura nunca fez revoluções
a cantiga é uma arma Contra a burguesia tudo depende da bala e da pontaria
tudo depende da raiva e da alegria
a cantiga é uma arma de pontaria
Se tu cantas a reboque não vale a pena cantar se vais à frente demais bem te podes engasgar
a cantiga só é arma quando a luta acompanhar
Uma arma eficiente fabricada com cuidado
deve ter um mecanismo bem perfeito e oleado e o canto com uma arma deve ser bem fabricado
a cantiga é uma arma (Contra quem camaradas?) Contra a burguesia tudo depende da bala e da pontaria
tudo depende da raiva e da alegria
a cantiga é uma arma de pontaria!
Compositor: José Mário Branco Interpretação: GAC – Grupo de Acção Cultural 1975
“25 de Abril: antologia poética”
17
Abril de Sim Abril de Não
Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora eu vi
Abril em festa e Abril lamento Abril
como quem ri como quem chora.
Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir e
como tudo o mais contradição.
Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.
Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.
Manuel Alegre 30 Anos de Poesia
Publicações Dom Quixote
“25 de Abril: antologia poética”
18
Menina Dos Olhos Tristes
Menina dos olhos tristes
o que tanto a faz chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Vamos senhor pensativo
olhe o cachimbo a apagar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Senhora de olhos cansados
porque a fatiga o tear
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Anda bem triste um amigo
uma carta o fez chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
A lua que é viajante
é que nos pode informar o soldadinho já volta está mesmo quase a chegar
Vem numa caixa de pinho
do outro lado do mar
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar.
Zeca Afonso
“25 de Abril: antologia poética”
19
CANTATA DA PAZ
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
Sophia de Mello Breyner Andresen
“25 de Abril: antologia poética”
20
Portugal Ressuscitado
Depois da fome, da guerra
da prisão e da tortura
vi abrir-se a minha terra
como um cravo de ternura.
Vi nas ruas da cidade o
coração do meu povo
gaivota da liberdade
voando num Tejo novo.
Agora o povo unido nunca
mais será vencido nunca mais
será vencido Vi nas bocas vi
nos olhos nos braços nas
mãos acesas cravos
vermelhos aos molhos rosas
livres portuguesas.
Vi as portas da prisão
abertas de par em par
vi passar a procissão
do meu país a cantar.
Agora o povo unido
nunca mais será vencido
nunca mais será vencido
Nunca mais nos curvaremos
às armas da repressão
somos a força que temos a
pulsar no coração.
Enquanto nos mantivermos
todos juntos lado a lado
somos a glória de sermos
Portugal ressuscitado.
Agora o povo unido
nunca mais será vencido
nunca mais será vencido.
José Carlos Ary dos Santos
“25 de Abril: antologia poética”
21
Liberdade
Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade
omnipotente Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz
crescia De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
Miguel Torga
“25 de Abril: antologia poética”
22
CHAMAVA-SE CATARINA Cantar Alentejano (em memória de uma camponesa assassinada)
Chamava-se Catarina, O Alentejo a viu nascer; Serranas viram-na em vida,
Baleizão a viu morrer.
Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr;
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou.
Acalma o furor campina,
Que o teu pranto não findou!
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou.
Aquela pomba tão branca
Todos a querem p'ra si,
O Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti!
Aquela andorinha negra
Bate as asas p'ra voar;
O Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar!
Letra: António Vicente Campinas
Interpretado por Zeca Afonso
“25 de Abril: antologia poética”
23
Livre
Não há machado que corte
A raiz ao pensamento
Não há morte para o vento
Não há morte
Se ao morrer o coração
Morresse a luz que lhe é querida
Sem razão seria a vida
Sem razão
Nada apaga a luz que vive
Num amor num pensamento
Porque é livre como o vento
Porque é livre.
Carlos de Oliveira, “O nosso amargo cancioneiro”
“25 de Abril: antologia poética”
24
Liberdade
Era ainda a voz da juventude
quando a liberdade entrou
pelo canto da boca
As mãos acariciavam o sonho
enquanto o cheiro cinzento das grades
evadia os ideais
Hoje
em busca da palavra
o novo Abril amotina-
se na memória
Informada
pelo preço do não ser
arde agora
a palavra
traída
sem ousar... falar!
Fernando Macias
“25 de Abril: antologia poética”
25
E depois do adeus
Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz.
Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar E perder
Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci
E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Teu lugar a mais
Tua ausência em mim
Tua paz
Que perdi
Minha dor que aprendi
De novo vieste em flor
Te desfolhei...
E depois do amor
E depois de nós
O adeus
O ficarmos sós.
Letra de José Niza
Interpretado por: Paulo de Carvalho
“25 de Abril: antologia poética”
26
As mãos
Com mãos se faz a paz se faz a guerra
Com mãos tudo se faz e se desfaz
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedra estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Manuel Alegre, in “O Canto e as Armas”
“25 de Abril: antologia poética”
27
Ser livre é querer ir e ter um rumo
Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar
gritar gritar
e só de pensar ir ir
e chegar ao fim.
Armindo Rodrigues (1904 - 1993)
“25 de Abril: antologia poética”
28
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos" Interpretado por José Mário Branco
Música de Jean Sommer
“25 de Abril: antologia poética”
29
Cantiga para os que partem
Este parte, aquele parte e todos, todos se vão
oh terra ficas sem homens
que possam cortar teu pão
Tens em troca, órfãos e órfãs
e campos de solidão
e mães que não têm filhos
filhos que não têm pais.
Corações que tens e sofrem
longas ausências mortais
viúvas de vivos-mortos
que ninguém consolará.
Versos: Rosália de Castro Música: José Niza
Interpretação: António Bernardino
“25 de Abril: antologia poética”
30
Somos Livres
Ontem apenas
fomos a voz sufocada
dum povo a dizer não quero;
fomos os bobos-do-rei
mastigando desespero.
Ontem apenas
fomos o povo a chorar
na sarjeta dos que, à força,
ultrajaram e venderam esta
terra, hoje nossa.
Uma gaivota voava, voava,
assas de vento, coração
de mar.
Como ela, somos livres,
somos livres de voar.
Uma papoila crescia,
crescia, grito vermelho
num campo qualquer.
Como ela somos livres,
somos livres de crescer.
Uma criança dizia, dizia
"quando for grande
não vou combater".
Como ela, somos livres,
somos livres de dizer.
Somos um povo que cerra
fileiras, parte à conquista do pão
e da paz.
Somos livres, somos livres,
não voltaremos atrás.
Letra e música de Ermelinda Duarte
“25 de Abril: antologia poética”
31
Maria Faia
Eu não sei como te chamas
Oh Maria Faia!
Nem que nome te hei-de eu pôr
Oh Maria Faia, oh Faia Maria!
Cravo não, que tu és rosa
Oh Maria Faia!
Rosa não, que tu és flor
Oh Maria Faia, oh Faia Maria!
Não te quero chamar cravo
Oh Maria Faia!
Que te estou a engrandecer,
Oh Maria Faia, oh Faia Maria!
Chamo-te antes espelho
Oh Maria Faia!
Onde espero de me ver
Oh Maria Faia, oh Faia Maria!
O meu amor abalou
Oh Maria Faia!
Deu-me uma linda despedida,
Oh Maria Faia, oh Faia Maria!
Abarcou-me a mão direita
Oh Maria Faia!
Adeus oh prenda querida
Oh Maria Faia, oh Faia Maria!
Letra e música de Zeca Afonso
“25 de Abril: antologia poética”
32
Juventude
É preciso avisar toda a gente
Dar notícia, informar, prevenir
Que por cada flor estrangulada
Há milhões de sementes a florir.
É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
Engrossando a verdade corrente
duma força que nada a detenha.
É preciso avisar toda a gente Que
há fogo no meio da floresta
E que os mortos apontam em frente
O caminho da esperança que resta.
É preciso avisar toda a gente
Transmitindo este morse de dores
É preciso, imperioso e urgente Mais
flores, mais flores, mais flores.
Versos: João Apolinário
Música: Francisco Fanhais Interpretação: Luís Cília
“25 de Abril: antologia poética”
33
Eu Sou Português Aqui
Eu sou português
aqui
em terra e fome talhado
feito de barro e carvão
rasgado pelo vento norte
amante certo da morte
no silêncio da agressão.
Eu sou português
aqui
mas nascido deste
lado do lado de cá da
vida do lado do
sofrimento da miséria
repetida do pé
descalço do vento.
Nasci
deste lado da cidade
nesta margem
no meio da tempestade
durante o reino do medo.
Sempre a apostar na viagem
quando os frutos amargavam
e o luar sabia a azedo.
Eu sou português
aqui
no teatro mentiroso
mas afinal verdadeiro
na finta fácil
no gozo
no sorriso doloroso
no gingar dum marinheiro.
Nasci
deste lado da ternura
do coração esfarrapado
eu sou filho da aventura
da anedota
do acaso
campeão do improviso, trago
as mão sujas do sangue que
empapa a terra que piso.
“25 de Abril: antologia poética”
Eu sou português Eu sou a festa
aqui inacabada
na brilhantina em que embrulho, quase ausente
do alto da minha esquina eu sou a briga
a conversa e a borrasca a luta antiga
eu sou filho do sarilho renovada
do gesto desmesurado ainda urgente.
nos cordéis do desenrasca.
Eu sou português
Nasci aqui
aqui o português sem mestre
no mês de Abril quando esqueci mas com jeito.
toda a saudade Eu sou português
e comecei a inventar aqui
em cada gesto e trago o mês de Abril
a liberdade. a voar
dentro do peito.
Nasci
aqui Eu sou português aqui!
ao pé do mar
duma garganta magoada no
cantar. José Fanha
“25 de Abril: antologia poética”
34
Explicação do País de Abril
País de Abril é o sítio do poema. Não fica nos terraços da saudade não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui tão perto que parece longe.
Tem pinheiros e mar tem rios tem muita gente e muita solidão dias de festa que são dias tristes às avessas é rua e sonho é dolorosa intimidade.
Não procurem nos livros que não vem nos livros País de Abril fica no ventre das manhãs fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência.
País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos viaja-se por dentro e tem caminhos veias - os carris infinitos dos comboios da vida.
País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho território de fruta no pomar das veias onde operários erguem as cidades do poema.
Não procurem na História que não vem na História. País de Abril fica no sol interior das uvas fica à distância de um só gesto os ventos dizem que basta apenas estender a mão.
País de Abril tem gente que não sabe ler os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos para falar aos homens do País de Abril.
Mais aprende que o mundo é do tamanho que os homens queiram que o mundo tenha: o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.
Manuel Alegre Praça da Canção
“25 de Abril: antologia poética”
35
As Minhas Mãos
As minhas mãos estão cansadas
De construir as estradas
Sem nunca nelas viajar
As minhas mãos estão doridas
Estão pobres e feridas
Mas nunca as vi roubar.
Estas mãos de cinco dedos
Sabem montes de segredos
Que nunca podem contar
Já pegaram numa espingarda
Já vestiram uma farda
Que as obrigou a lutar.
As minhas mãos libertadas
Deram às Forças Armadas
Muitos cravos encarnados
E se o País precisar
Cá estão para ajudar
Todos os necessitados.
As minhas mãos sem anéis
São pobres, mas são fiéis
E sabem o seu dever.
Já sofreram, é verdade,
Mas hoje têm liberdade,
E o direito de escolher!
Michael Pereira, Toronto, Canadá
“25 de Abril: antologia poética”
36
Tanto mar
Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Chico Buarque
Letra original, vetada pela censura, no Brasil. Gravação editada apenas em Portugal, em 1975
“25 de Abril: antologia poética”
37
Salgueiro Maia
Ficaste na pureza inicial
Do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
Havia em ti o herói que não se rende.
Outros jogaram o jogo viciado
Para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
Havia em ti o herói que não se integra.
Por isso ficarás como quem vem
Dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
Trazendo a espada e a flor da liberdade.
Manuel Alegre, in País de Abril Poema dedicado a Salgueiro Maia
“25 de Abril: antologia poética”
38
A SALGUEIRO MAIA
Aquele que na hora da vitória
respeitou o vencido
Aquele que deu tudo e não pediu a paga
Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite
Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com a sua ignorância ou vício
Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»
como antes dele mas também por ele Pessoa
disse.
Sophia de Mello Breyner Andresen
“25 de Abril: antologia poética”
39
EU VI ESTE POVO A LUTAR
Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar Sete rios de multidão
Que levavam História na mão
Sobre as águas calmas
Um vulcão de fogo
Toda a terra treme
Nas vozes deste povo
Mesmo no silêncio
Sabemos cantar
Povo por extenso
É unidade popular
Somos sete rios
Rios de certeza
Vamos lá cantando
No fragor da correnteza
Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar Sete rios de multidão
Que levavam História na mão
A fruta está podre
Já não se remenda
Só bem cozidinha
No lume da contenda
Nós queremos trabalho
E casa decente
E carne do talho
E pão para toda a gente
Ai, meus ricos filhos
Tantos nove meses
Saem do meu ventre
Para a pança dos burgueses
Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar
Sete rios de multidão
Que levavam História na mão
Alça meu menino
Vê se te arrebitas
Que este peixe podre
Só é bom para os parasitas
Só a nosso mando
É que há liberdade Vamos lá lutando P’ra mudar a sociedade
Bandeira vermelha
Bem alevantada
Ai minha senhora
Que linda desfilada
Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar
Sete rios de multidão
Que levavam História na mão.
Letra e música: José Mário Branco
“25 de Abril: antologia poética”
40
Os medos
É a medo que escrevo. A medo penso.
A medo sofro e empreendo e calo.
A medo peso os termos quando falo
A medo me renego, me convenço
A medo amo. A medo me pertenço.
A medo repouso no intervalo
De outros medos. A medo é que resvalo
O corpo escrutador, inquieto, tenso.
A medo durmo. A medo acordo. A medo
Invento. A medo passo, a medo fico.
A medo meço o pobre, meço o rico.
A medo guardo confissão, segredo.
Dúvida, fé. A medo. A medo tudo.
Que já me querem cego, surdo, mudo.
José Cutileiro, Os medos, in Versos da mão esquerda, 1961.
“25 de Abril: antologia poética”
41
Revolução
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta
Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação
Sophia de Mello Breyner Andresen,
Obra Poética, Caminho, Lisboa, 1991
“25 de Abril: antologia poética”
42
SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA
Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.
Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
Versos brandos...Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada, onde
cada poema é uma bandeira desfraldada e os
poetas são os próprios versos dos poemas.
Sidónio Muralha (1920 - 1982)
“25 de Abril: antologia poética”
43
Mulheres de Abril
Mulheres de Abril somos mãos unidas
certeza já acesa em todas nós
Juntas formamos
fileiras decididas
ninguém calará
a nossa voz
Mulheres de Abril somos mãos unidas
na construção operária do país
Nos ventres férteis
a vontade erguida
de um Portugal
que o povo quis
Mulheres de Abril, Maria Teresa Horta em Poesia Reunida, p. 450
“25 de Abril: antologia poética”
44
Elefante de Abril
A Revolução
teve uma
flor o cravo.
Não teve um animal e,
como tal, proponho o
elefante tão paciente e
sofredor durante tanto
ano
mas quando a paciência se
esgotou foi coisa de se ver
violento
eficaz
empolgante.
Depois, voltou a ser
lento bom rapaz
algo distante.
Mas, atenção
nunca se viu morrer um elefante!
Carlos Pinhão, Bichos de Abril, Editorial Caminho, Lisboa, 1977
“25 de Abril: antologia poética”