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ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS ESCOLA DO LEGISLATIVO Projeto de pesquisa: A transposição do rio São Francisco: uma análise histórica e socioambiental Processo Fapemig n.: EDT-1822/03 RELATÓRIO FINAL Equipe de pesquisa: Márcio Roberto Alves dos Santos – coordenador Maria Beatriz Gontijo dos Santos Maria Elisabete Gontijo dos Santos Mônica Ângela de Azevedo Meyer Belo Horizonte Julho de 2006

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ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS

ESCOLA DO LEGISLATIVO

Projeto de pesquisa: A transposição do rio São Francisco: uma análise histórica e

socioambiental

Processo Fapemig n.: EDT-1822/03

RELATÓRIO FINAL

Equipe de pesquisa:

Márcio Roberto Alves dos Santos – coordenador

Maria Beatriz Gontijo dos Santos

Maria Elisabete Gontijo dos Santos

Mônica Ângela de Azevedo Meyer

Belo Horizonte

Julho de 2006

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SUMÁRIO

Apresentação.............................................................................................................................. 4

Introdução.................................................................................................................................. 6

Metodologia............................................................................................................................. 10

O projeto de transposição no contexto das intervenções técnicas no vale do São Francisco...16

A recepção das políticas públicas para o vale e a participação popular no médio superior São

Francisco.................................................................................................................................. 51

A percepção socioambiental da população residente no médio superior São Francisco......... 86

A relação da população com as águas do rio São Francisco.................................................. 151

Conclusões............................................................................................................................. 183

Referências............................................................................................................................. 189

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Resumo

A pesquisa partiu de dois enfoques centrais para situar o projeto de transposição de parte das

águas do São Francisco para as regiões semi-áridas do Nordeste. O enfoque histórico permitiu

analisar a transposição como um dos grandes projetos de intervenção técnica no vale do rio.

Essa intervenção se instala a partir dos estudos e projetos elaborados em meados do século

XIX, para a introdução da navegação a vapor ao longo do rio e dos seus maiores afluentes, e

se consolida no século seguinte, com a implantação das usinas hidrelétricas e dos seus

reservatórios ao longo do São Francisco. A transposição, se realizada, se colocaria em linha

com esses macroimpactos impostos ao perfil natural do rio, consolidando a abordagem técnica

e o controle tecnológico do vale do São Francisco. O enfoque socioambiental do projeto, por

seu turno, baseou-se nos resultados da pesquisa de campo realizada no trecho médio superior

São Francisco (Pirapora a Manga) para traçar um perfil da relação entre a população

ribeirinha e o rio, mediada pelos usos, percepções e representações dos corpos d’água da

região. Foi investigada a percepção que essa população tem das alterações ambientais sofridas

pelo rio; as suas relações de intimidade com os corpos d’água; a sua percepção de

pertencimento à bacia; e a forma como as políticas públicas que envolvem o vale, em especial

o projeto de transposição, são recebidas pelos ribeirinhos.

Palavras-chave: Rio São Francisco, projeto de transposição, percepção socioambiental,

intervenção tecnológica, participação política.

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Apresentação

Este texto constitui o relatório de finalização do projeto de pesquisa A transposição do rio

São Francisco: uma análise histórica e socioambiental, desenvolvido no âmbito do Núcleo

de Estudos e Pesquisas da Escola do Legislativo da Assembléia Legislativa do Estado de

Minas Gerais, entre março de 2005 e julho de 2006, com apoio financeiro da Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – Fapemig.

O auxílio financeiro concedido pela Fapemig ao projeto se deu a partir da sua aprovação nos

termos do Edital n. 08/2003, daquela fundação, destinado à seleção de projetos de pesquisa

voltados para o apoio à recuperação e proteção da bacia do rio São Francisco. O Termo de

Outorga e Aceitação de Auxílio foi assinado entre a fundação e a Assembléia Legislativa em

12 de maio de 2004, tendo como interveniente a Escola do Legislativo e coordenador o

pesquisador Márcio Roberto Alves dos Santos. Devido a dificuldades na forma contábil de

repasse dos recursos, esses só foram disponibilizados pela fundação em março de 2005,

quando se iniciaram efetivamente as atividades do projeto.

O projeto contou ainda, na fase da pesquisa de campo, com o apoio operacional da

Coordenação Geral das Promotorias de Justiça de Defesa do Rio São Francisco do Ministério

Público Estadual.

Além desses apoios, que foram decisivos na consecução da pesquisa, devemos agradecer aos

servidores da Escola do Legislativo, pelo empenho no suporte administrativo, burocrático e

operacional ao projeto; aos técnicos e agentes públicos envolvidos com a bacia do São

Francisco, que gentilmente nos receberam em seus locais de trabalho e colocaram à nossa

disposição informações e dados relevantes para a pesquisa; e aos servidores da Biblioteca da

Assembléia Legislativa, que se desdobraram em esforços para conseguir fontes bibliográficas

raras e importantes para o estudo.

Durante a pesquisa de campo, que gerou grande parte do material consolidado neste relatório,

fomos amavelmente recebidos por moradores e profissionais que atuam nos municípios

mineiros de Manga, Januária, Pirapora, Buritizeiro, Jaíba e Várzea da Palma. Por meio de

entrevistas gravadas, essas pessoas colocaram à nossa disposição valiosas informações, dados,

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impressões e opiniões, que formaram o núcleo do trabalho de campo. A elas devemos,

portanto, o nosso maior agradecimento.

Márcio Santos

Coordenador do projeto

Julho de 2006

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Introdução

Colocado na agenda de intenções do governo federal ainda na década de 80, o projeto de

transposição de parte das águas do rio São Francisco para as regiões semi-áridas do Nordeste

Setentrional foi trazido, nos últimos três anos, para o centro do debate nacional sobre as

políticas públicas de desenvolvimento socioeconômico. Incluída com destaque no Plano

Plurianual do governo federal, que tem destinado para o projeto expressivas verbas

orçamentárias, a transposição, se realizada, representará a maior obra de engenharia iniciada

na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República.

Em que pesem as alegadas intenções sociais do projeto – “levar água a quem tem sede” –,

freqüentemente incluídas na defesa apaixonada que dele tem feito o presidente da República,

a proposta de se desviar água do São Francisco para o interior do Nordeste é polêmica. Sobre

ela pairam críticas de diversos setores da sociedade, que incidem tanto sobre questões técnicas

e operacionais do projeto quanto sobre os prováveis impactos ambientais e sociais e, mais,

sobre o seu significado político. Como pano de fundo dessas críticas, permanece a “suspeita”

de que se trate de mais um megaempreendimento de engenharia posto como solução

tecnológica para problemas sociais e, como tal, de mais uma iniciativa governamental que

mobiliza recursos vultosos, traz pouco retorno social e provoca graves danos ambientais.

O projeto de transposição pode ser abordado a partir de diversos ângulos de análise. A

preocupação que norteou a apresentação deste projeto de pesquisa ao Núcleo de Estudos e

Pesquisas da Escola do Legislativo e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas

Gerais centrou-se em dois enfoques conceituais. Por um lado, objetivamos traçar um quadro

da percepção ambiental e do grau de informação e participação das populações ribeirinhas nas

decisões de políticas públicas que envolvem a bacia, em especial o próprio projeto de

transposição. Esse enfoque partiu de uma constatação muito simples: a de que a população

potencialmente afetada pela transposição, residente no vale do rio São Francisco, tem sido

pouco ouvida sobre o projeto. Veremos, ao longo deste relatório, que esse ângulo de

abordagem foi aprofundado durante a execução da pesquisa, tendo se tornado o que pode ser

chamado um estudo, de caráter ainda introdutório, da relação entre o homem e o meio no

médio São Francisco, tendo como elementos de mediação os corpos d’água das regiões

banhadas pelo rio e seus afluentes.

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Por outro lado, buscamos, a partir de um olhar retrospectivo, situar o projeto de transposição

no contexto das grandes intervenções técnicas no vale do São Francisco. Essa perspectiva

histórica permitiu entender o projeto não somente a partir das razões e controvérsias

contemporâneas, mas também como expressão de uma abordagem técnica do vale do rio,

cujas raízes estão em estudos e projetos idealizados ainda em meados do século XIX. A

transposição pode ser vista, assim, não como projeto isolado e intenção pessoal de um ou de

outro governante, mas no contexto maior de uma lógica instrumental e utilitária que se aplica

sobre o vale do rio.

Esses dois enfoques centrais foram problematizados e desenvolvidos ao longo da pesquisa,

resultando num conjunto considerável de análises, reflexões e abordagens, reunidas neste

relatório. Seguimos, na distribuição dos temas e tópicos de análise que compõem o texto, os

critérios da inclinação pessoal e da formação acadêmica de cada pesquisador. Por isso os

capítulos do relatório foram elaborados individualmente e são assinados; isto é, formam um

conjunto integrado e se complementam mutuamente, mas são também expressão das

preocupações e pontos de vista pessoais de cada pesquisador.

A equipe de pesquisa foi integrada pelas seguintes pessoas:

Márcio Santos – Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Escola do Legislativo da

Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Licenciado em Filosofia e mestre em

História. Coordenador do projeto.

Maria Beatriz Gontijo dos Santos – Ex-consultora da Assembléia Legislativa do Estado de

Minas Gerais. Bacharel em Letras e mestre em Lingüística.

Maria Elisabete Gontijo dos Santos – Ex-consultora da Assembléia Legislativa do Estado de

Minas Gerais. Socióloga e especialista em Temas Ambientais.

Mônica Ângela de Azevedo Meyer – Professora da Universidade Federal de Minas Gerais.

Bióloga, mestre em Educação e doutora em Ciências Sociais.

No primeiro capítulo do relatório, a cargo do coordenador do projeto, foi explorada a

perspectiva histórica delineada acima. Tentou-se uma primeira abordagem, macroscópica e

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retrospectiva, das intervenções técnicas no vale do São Francisco. A relação entre o homem e

o meio no vale foi estudada, portanto, a partir das grandes ações governamentais e privadas

implantadas ao longo do São Francisco, tendo se destacado, em recortes temporais sucessivos,

três grandes momentos: os estudos realizados para a implantação da navegação a vapor, a

construção das usinas hidrelétricas e dos seus respectivos reservatórios e o próprio projeto de

transposição. Nesse capítulo foram utilizadas prioritariamente fontes documentais,

bibliográficas e disponíveis em meio eletrônico.

O segundo, terceiro e quarto capítulos são constituídos por textos que exploraram em

profundidade as notas de campo. A abordagem se torna microscópica; isto é, tenta-se, por

meio das notas que resultaram de entrevistas e impressões pessoais gravadas em campo, um

olhar que aponte e investigue os grandes temas a partir da percepção singular das pessoas

entrevistadas.

No segundo capítulo, elaborado pela pesquisadora Beatriz Gontijo, o enfoque foi sobre o

comportamento político dos entrevistados, para aferir o nível de informação sobre as políticas

públicas que envolvem a região, especialmente sobre o projeto de transposição, bem como as

formas de participação ou de compromisso de ação voltadas para a preservação da bacia.

Utilizando recursos da lingüística, a pesquisadora traçou uma análise do discurso dos

entrevistados, buscando extrair, a partir daí, conclusões sobre a sua atitude política diante dos

problemas socioambientais da bacia.

Segue-se a análise empreendida pela pesquisadora Elisabete Gontijo, centrada na percepção

da população ribeirinha sobre as alterações socioambientais ocorridas no vale do São

Francisco. A autora realizou um jogo temporal entre passado, presente e futuro, buscando

responder, a partir da percepção das pessoas entrevistadas, a três perguntas fundamentais: (1)

como era o rio?; (2) como está o rio hoje?; e (3) como será o rio amanhã?. A memória das

paisagens antigas do rio e o seu cotejo com a configuração presente do vale foram

instrumentos analíticos privilegiados no desenvolvimento do tema.

No terceiro capítulo a pesquisadora Mônica Meyer investigou, a partir das entrevistas, as

relações de intimidade com os corpos d’água e a percepção de pertencimento da população

ribeirinha à bacia hidrográfica do São Francisco. Os múltiplos usos e significados do rio para

essa população foram estudados por meio de categorias que aprofundaram o nível

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microscópico da análise. Partindo das relações subjetivas que os entrevistados têm com os

corpos d’água, a autora traçou um quadro do que o rio representa para as pessoas que habitam

as suas margens.

No capítulo conclusivo buscou-se alinhavar os resultados da pesquisa de campo e dos estudos

bibliográficos e documentais realizados, discutindo-se, a partir deles, a concepção de política

pública e de desenvolvimento socioeconômico que sustenta o projeto de transposição do

governo federal.

O relatório incluiu ainda gráficos, reproduções de mapas antigos, um mapa esquemático e

diversas imagens fotográficas, coletadas durante o trabalho de campo.

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Metodologia

1 Seminários internos

Durante todo o período de execução do projeto foram organizados seminários internos da

equipe de pesquisa. Esses encontros, de duração e periodicidade variadas, objetivaram a

discussão de tópicos de interesse da pesquisa; a análise conjunta de textos técnicos e

acadêmicos; a troca de informações, impressões e dados; a assistência conjunta de

documentários e programas de entrevistas; a formatação do trabalho de campo; e a tomada de

decisões administrativas e operacionais. Todos os encontros foram realizados nas

dependências da Escola do Legislativo.

2 Pesquisa bibliográfica, documental, eletrônica e de mídia

A pesquisa de fontes bibliográficas, documentais, disponíveis em meio eletrônico e de mídia,

ocorrida durante todo o período de execução do projeto, incluiu a coleta dos seguintes

materiais:

• Livros

• Catálogos

• Artigos técnicos

• Matérias de jornal e de revista

• CD-ROMs

• Gravações em vídeo de documentários e programas de entrevistas

• Informações e dados disponíveis on line

3 Participação em eventos e contatos externos

Os integrantes da equipe participaram, como ouvintes, de eventos voltados para a discussão

do projeto de transposição. Entre eles, podem ser citadas consultas públicas convocadas pelo

Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, debates públicos organizados pela

Assembléia Legislativa de Minas Gerais e reunião de promotores e outros agentes públicos,

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realizada pela Promotoria de Defesa da Bacia do São Francisco do Ministério Público

Estadual.

Foram ainda realizados contatos, em Belo Horizonte, com técnicos de instituições públicas

que desenvolvem projetos voltados para a bacia do São Francisco. Entre essas instituições,

podem ser citados o Instituto Estadual de Florestas – IEF, a Empresa de Assistência Técnica e

Extensão Rural do Estado de Minas Gerais – Emater-MG e a Promotoria de Defesa da Bacia

do São Francisco do Ministério Público Estadual.

4 Pesquisa de campo

4.1 Abrangência

A pesquisa de campo constituiu o núcleo do trabalho realizado. Como foi ressaltado, as notas

coletadas em campo forneceram a base para a elaboração de três capítulos deste relatório. Elas

resultaram de viagem de pesquisa realizada em 2005, quando foram visitados os municípios

são-franciscanos de Manga, Januária, Pirapora, Buritizeiro e Várzea da Palma, bem como ao

município de Jaíba, localizado no vale do rio Verde Grande. Participaram da viagem os

pesquisadores Márcio Santos, Mônica Meyer e Elisabete Gontijo.

Além das sedes dos municípios citados,1 foram visitados os seguintes lugares: Brejo de São

Caetano, Ingazeira e Reserva da Fazenda Ressaca, em Manga; Parque Nacional Cavernas do

Peruaçu, Poçõezinhos e Pandeiros, em Januária; Chapadão das Gerais e Paredão de Minas, em

Buritizeiro; e Mocambinho, em Jaíba. Foram percorridos trechos dos rios São Francisco,

Carinhanha, Verde Grande, Peruaçu, Japoré, Pandeiros e do Sono e do córrego Alegre. Foram

visitadas lagoas marginais, ilhas fluviais e veredas.

A equipe de pesquisa esteve ainda em lugares ligados a questões de saúde pública,

saneamento básico e meio ambiente, como estações de tratamento de água, estações de

tratamento de esgoto, lagoas de decantação de esgoto, sistemas de captação de água, sistemas

de irrigação (pivôs), estações de piscicultura, carvoarias, locais de despejo de esgoto, lixões,

charcos e corpos d’água secos (córregos e veredas secas).

1 A sede do município de Várzea da Palma não foi visitada.

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4.2 Gravação de entrevistas com pessoas que têm relação intensa com o rio

Durante as visitas foram realizadas entrevistas com pessoas que residem, trabalham ou

interagem de alguma forma com o rio São Francisco ou com os seus afluentes, subafluentes e

demais corpos d’água locais. A escolha dos entrevistados foi aleatória, tendo como critérios

apenas a interação com o rio ou com os seus formadores e a idade acima de 16 anos. Os locais

de realização das entrevistas foram os mais diversos, incluindo residências, locais de trabalho,

lugares públicos (ruas, praças) e terrenos abertos (ilhas fluviais, reservas ecológicas, áreas

agrícolas).

A maior parte das entrevistas consistiu em 15 a 20 minutos de diálogo entre o entrevistador e

o entrevistado, no qual esse era estimulado a comentar a situação dos corpos d’água locais e a

sua relação com eles. No início da conversação era solicitado ao entrevistado que informasse

o seu nome completo, a sua idade e a sua ocupação. Ainda que seguisse um roteiro pré-

definido de perguntas, esse diálogo pautava-se mais pelas respostas do entrevistado do que

pelo esquema prévio do entrevistador. Na grande maioria das vezes, a entrevista assumiu as

características de uma conversação livre, balizada pelas perguntas roteirizadas, mesmo porque

tratava-se de coletar, além de informações objetivas, impressões pessoais e subjetivas sobre o

tema.

Quando o teor das respostas do entrevistado revelava um grau intenso de interação com os

corpos d’água ou uma longa vivência social ou cultural da região pesquisada, o roteiro

comum era substituído por um questionário mais extenso, gerando entrevistas mais longas. A

escolha dessas pessoas era uma decisão pessoal e imediata do pesquisador e pautava-se tão-

somente pelos citados critérios da interação e vivência. Responderam a esse questionário

pessoas das mais diversas faixas etárias, níveis socioeconômicos e graus de escolaridade.

Nestes casos os diálogos duraram mais de 60 minutos, tendo sido, em algumas situações,

previamente agendados com os entrevistados.

Segue abaixo o questionário aplicado nessas entrevistas mais longas:

Projeto São Francisco - Questionário para pesquisa de campo

Dados preliminares

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Informar nome, sexo, idade, ocupação, escolaridade, tempo de residência no

lugar, se participa de alguma organização pública ou privada.

Grau de intimidade/uso dos recursos hídricos da bacia

Qual é a sua relação com o rio São Francisco?

De onde vem a água que você utiliza em casa?

Para onde vai a água usada?

E o esgoto?

E o lixo?

Relação de pertencimento à bacia

De onde vem o rio São Francisco?

Para onde vai o rio?

De onde vêm as águas que formam o rio?

Grau de percepção das alterações socioambientais ocorridas no rio e nos seus

afluentes

Lembra-se de alguma alteração ocorrida no rio São Francisco?

Como era o rio antes dessa alteração?

Como vê a situação ambiental do rio hoje?

Como vê o futuro do rio?

Grau de informação sobre as políticas públicas para a bacia - projeto de

transposição

Já ouviu falar da transposição do São Francisco? O que acha da idéia?

Grau de participação social e política nas questões da bacia

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Participou ou participa de alguma organização, grupo de trabalho ou projeto social

ligado ao rio São Francisco ou a seus afluentes?

Participou ou participa de alguma audiência pública, campanha ou reunião voltada

para os problemas do rio e dos seus afluentes?

4.3 Gravação de entrevistas com membros do poder público municipal e integrantes de

organizações não governamentais

Um segundo grupo de entrevistados foi formado por membros do poder público municipal –

prefeito ou vice-prefeito, secretários da área de meio ambiente ou agricultura e presidente ou

vice-presidente da Câmara Municipal. Nessas entrevistas, na maior parte das vezes ocorridas

nos gabinetes ou salas de trabalho dos entrevistados, não foi seguido um roteiro prévio ou

aplicado o questionário. Esse grupo de entrevistas visou obter informações sobre os

problemas socioambientais relacionados à bacia no município e as soluções encaminhadas.

Além disso, foi solicitado, em especial nas entrevistas com prefeitos, que os entrevistados

tecessem comentários mais longos sobre a transposição, justificando a sua posição favorável

ou contrária ao projeto.

Foram também ouvidos integrantes de organizações não governamentais, que incluíram tanto

entidades estruturadas formalmente, como sindicatos, quanto movimentos ambientais, sociais,

ou culturais de formação espontânea. Uma seleção prévia dessas organizações foi realizada a

partir do cadastro de entidades da Gerência de Projetos Institucionais da Assembléia

Legislativa, tendo se priorizado aquelas cuja atuação está relacionada à bacia, tais como

sindicatos de trabalhadores rurais, sindicatos de produtores rurais e colônias de pescadores.

4.4 Gravação de observações e impressões pessoais

Além das entrevistas, os pesquisadores registraram em fitas cassete um expressivo conjunto

de observações, informações, dados e impressões pessoais. A utilização do minigravador

permitiu que os registros fossem mais numerosos, mais diretos e mais fidedignos do que se

tivessem sido feitos por escrito. Comumente as notas escritas são feitas depois de transcorrido

o dia de trabalho de campo, o que pode gerar dúvidas e equívocos no registro. A gravação em

cassete, por outro lado, realizada in loco, fornece um conteúdo de informações mais denso e

preciso.

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4.5 Fotografia

Foram fotografados, pelos pesquisadores, paisagens, situações, pessoas, formações vegetais,

embarcações, estabelecimentos, lavouras e diversos outros elementos sociais, culturais e

naturais que interessaram ao projeto. A fotografia é um registro documental de imagens que

enriqueceram a abordagem da pesquisa, ilustrando os textos produzidos.

4.6 Tratamento dos dados

Foram realizadas 88 entrevistas, nas quais os tópicos de interesse do projeto, esquematizados

no questionário, foram explorados em profundidade. Juntamente com as notas pessoais, esse

material possibilitou um tratamento qualitativo do tema. A área de abrangência da pesquisa,

que englobou todo o médio superior São Francisco, formado pelo trecho do rio entre Pirapora

e Manga, reforçou a relevância dos dados coletados. Deve-se registrar, por outro lado, que o

número de entrevistas realizadas e o formato dos diálogos não permitem um tratamento

quantitativo do tema, que não estava entre os objetivos do projeto.

As entrevistas e notas pessoais, gravadas em fitas cassete, foram transcritas e impressas. As

notas de campo assim geradas constituíram três volumes impressos, com um total de 661

páginas. Esse material foi lido por cada pesquisador e tematizado ou indexado de acordo com

a sua área de trabalho no projeto. Foram utilizadas nessa indexação as palavras-chave

intimidade, pertencimento, alteração, uso, informação e participação, que identificam o

conteúdo da pesquisa como um todo.

As fotografias obtidas em filmes negativos e diapositivos (cromos) foram digitalizadas,

passando a formar, juntamente com as fotografias obtidas diretamente por meio digital, o

acervo de imagens do projeto. Esse acervo foi identificado, classificado e legendado,

encontrando-se sob a guarda do coordenador do projeto. Parte das fotografias foi reproduzida

neste relatório.

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O projeto de transposição no contexto das intervenções técnicas no vale do São

Francisco

Márcio Santos

1 A navegação a vapor como primeira abordagem técnica do vale do rio

O projeto contemporâneo de transposição de parte das águas do rio São Francisco para

as regiões semi-áridas do Nordeste Setentrional não é um fato isolado, uma iniciativa

que se explica apenas no presente; pelo contrário, está conectado a um passado de um

século e meio de intervenções técnicas nos vales do rio e dos seus principais afluentes.

A idéia-força que norteia a exposição que aqui faço é a de que, a partir de meados do

século XIX, começa a se instalar o que pode ser denominado uma abordagem técnica

do vale do rio São Francisco, que se acentuará nas décadas seguintes e ganhará, no

século XX, o caráter de um controle tecnológico sobre o vale do rio. Essa abordagem

técnica configura um momento de transição fundamental na ocupação e na utilização do

rio e dos seus afluentes. Nos seus primórdios o esforço de conhecimento e de

“correção” – o termo é coevo dos primeiros estudos técnicos sobre o vale – do rio

centrou-se na navegação. Foi a partir da função viária do São Francisco e dos seus

maiores afluentes que se estabeleceu sobre o vale um novo olhar.

Para entender a emergência da abordagem técnica do vale, retrocederei, portanto, à sua

primeira manifestação, representada pelos estudos e projetos elaborados, em meados do

século XIX, para se implantar no rio e nos seus maiores afluentes uma nova forma de

navegação.

Pelo menos desde o século XVII o São Francisco era percorrido, especialmente no seu

trecho médio, entre a cachoeira de Pirapora e Juazeiro, por embarcações rudimentares,

algumas delas inspiradas nas suas congêneres indígenas. Quando realizou a sua viagem

de exploração dos trechos médio e baixo do rio, na década de 50 do século XIX, o

engenheiro alemão Henrique Halfeld encontrou diversas dessas embarcações: canoas

feitas de um tronco só, preferencialmente das madeiras tamboril, vinhático e cedro,

medindo mais de 20 metros de comprimento por pouco mais de um metro de largura;

ajoujos, que consistiam na união de duas ou três dessas canoas, por meio de paus roliços

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amarrados com tiras de couro cru; e barcas, também de madeira, de tamanhos diversos,

de 13 a 23 metros de comprimento, de 2,6 a 3,5 metros de largura e de 0,8 a 1,3 metro

de profundidade. O próprio Halfeld viajou num ajoujo. A documentação histórica

mostra que já cerca de dois séculos antes da sua viagem o trecho médio do rio era

constantemente navegado por canoas como as descritas, no fabrico das quais se

aproveitavam as madeiras extraídas da mata atlântica que cobria parte do que viriam a

ser as Minas Gerais. Essas canoas desciam o rio das Velhas e, a partir da sua foz,

passavam ao São Francisco, chegando até a cachoeira de Paulo Afonso. O percurso

podia ser coberto em apenas quinze dias e aproveitava a suavidade, brevidade e baixo

custo da viagem fluvial, evitando-se assim o difícil e oneroso transporte terrestre.2

Por séculos, portanto, vinham sendo essas as embarcações que circulavam pelo São

Francisco. A navegação tradicional baseava-se nas forças naturais – correnteza, vento –

e no trabalho humano de pilotos e remadores, que guiavam e impeliam as embarcações

por meio de remos e varas (varejões). Os materiais empregados no fabrico eram os que

se podiam obter diretamente da natureza e da atividade pecuária estabelecida nas

margens do rio: madeiras nativas e couros, estes últimos utilizados tanto para unir os

paus como para improvisar cobertas para a proteção da carga. Essas rústicas cobertas

para mercadorias e suprimentos podiam ser feitas também de capim ou de palha de

coqueiro. As técnicas de navegação estavam, da mesma forma, indissoluvelmente

ligadas às condições naturais: descer ou subir o rio nessas embarcações rústicas

dependia do que hoje chamamos o regime dos cursos de água, um conjunto de variações

hidrográficas determinadas pelo clima.

Podemos aplicar a esse sistema de navegação a definição dada por Milton Santos para

as atividades humanas desenvolvidas num meio exclusivamente natural:

Quando tudo era meio natural, o homem escolhia da natureza aquelas suas partes ou aspectos considerados fundamentais ao exercício da vida, valorizando, diferentemente, segundo os lugares e as culturas, essas condições naturais que constituíam a base material da existência do grupo.

Esse meio natural generalizado era utilizado pelo homem sem grandes transformações. As técnicas e o trabalho se casavam com as dádivas da natureza, com a qual se relacionavam sem outra mediação.

2 Informação sobre as Minas do Brasil, [1705?]. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v. LVII, p. 159-186, 1935.

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[...]

Nesse período os sistemas técnicos não tinham existência autônoma. Sua simbiose com a natureza era total [...] e, podemos dizer, talvez, que o possibilismo da criação mergulhava no determinismo do funcionamento. [...]. A harmonia socioespacial assim estabelecida era, desse modo, respeitosa da natureza herdada, no processo de criação de uma nova natureza. Produzindo-a, a sociedade territorial produzia, também, uma série de comportamentos, cuja razão é a preservação e a continuidade do meio de vida. Exemplo disso são, entre outros, o pousio, a rotação de terras, a agricultura itinerante, que constituem, ao mesmo tempo, regras sociais e regras territoriais, tendentes a conciliar o uso e a “conservação” da natureza: para que ela possa ser outra vez, utilizada. Esses sistemas técnicos sem objetos técnicos não eram, pois, agressivos, pelo fato de serem indissolúveis em relação à Natureza que, em sua operação, ajudavam a reconstituir.3

Um recorte temporal, coincidente com a viagem de Henrique Halfeld, nos mostra que a

utilização do rio e dos seus afluentes no sistema viário tinha, até esse momento, esse

caráter simbiótico com os elementos naturais. A navegação tradicional, baseada nas

forças e nos ritmos da natureza, constituía um sistema técnico sem objetos técnicos –

isto é, uma atividade organizada segundo determinados procedimentos, que se exerciam

exclusivamente sobre objetos naturais, não técnicos.

Será exatamente a viagem de exploração empreendida por Halfeld da cachoeira de

Pirapora à foz do rio, entre 1852 e 1854, o esforço pioneiro de inaugurar a abordagem

técnica do vale do São Francisco. O objetivo explícito do empreendimento, contratado

pelo governo imperial, foi o de

dar conhecimento do estado em que se acha a navegação sobre as águas do rio de São Francisco e seus confluentes; das circunstâncias que a favorecem; dos obstáculos que a dificultam ou totalmente impedem; a designação dos projetos e meios que julgo dever-se aplicar ou que se oferecem para efetuar-se o melhoramento do mesmo rio, e a descrição do seu curso.4

Havia, portanto, que descrever o curso do rio com vistas a sugerir projetos e meios para

se fazer o seu melhoramento, com vistas a favorecer a navegação. É notável que a

terminologia utilizada enfeixe uma abordagem radicalmente distinta do que se tinha até

então. O objetivo da viagem era a coleta minuciosa de informações e dados que

fornecessem elementos técnicos para aprimorar a utilização do rio e dos seus afluentes

como vias de circulação. Esse aprimoramento significaria, na realidade, uma

transformação decisiva no vale do rio, que ocorreria nas décadas seguintes, representada

3 Milton Santos. A natureza do espaço..., p. 235-236.4 Henrique Halfeld. Atlas e relatório..., p. 1.

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pela implantação da navegação a vapor. “Favorecer a navegação”, portanto, significava

trazer uma novidade técnica – a força motora das embarcações baseada num mecanismo

movido a vapor – que possibilitasse superar a dependência exclusiva dos elementos

naturais e do trabalho humano que caracterizava a navegação tradicional.

Diferentemente do sistema secularmente utilizado na navegação pelo rio, que

aproveitava a experiência da população autóctone, inclusive indígena, a navegação a

vapor constituía uma inovação científica trazida da Europa Ocidental e dos Estados

Unidos, sociedades nas quais a primeira fase da Revolução Industrial se realizara com

base na força a vapor, aplicada às máquinas fabris, às locomotivas e aos navios.

Representava, portanto, a integração do interior brasileiro ao sistema de propulsão de

embarcações utilizado pelas sociedades economicamente mais vigorosas do planeta.

Estava em curso a implantação, no vale do São Francisco, do que Milton Santos chama

meio técnico ou maquínico:

O período técnico vê a emergência do espaço mecanizado. Os objetos que formam o meio não são, apenas, objetos culturais; eles são culturais e técnicos, ao mesmo tempo. [...]. As áreas, os espaços, as regiões, os países passam a se distinguir em função da extensão e da densidade da substituição, neles, dos objetos naturais e dos objetos culturais, por objetos técnicos.

Os objetos técnicos, maquínicos, juntam à razão natural sua própria razão, uma lógica instrumental que desafia as lógicas naturais, criando, nos lugares atingidos, mistos ou híbridos conflitivos. Os objetos técnicos e o espaço maquinizado são lócus de ações “superiores”, graças à sua superposição triunfante às forças naturais.5

O relatório de Halfeld ocupa, como projeto pioneiro de um novo meio técnico, um lugar

privilegiado na análise desse período de transição do vale do São Francisco. Elaborado

com o rigor metodológico típico da ciência moderna, o relatório reporta as observações

feitas pelo pesquisador légua a légua, mencionando acidentes naturais, construções

humanas, dados numéricos relativos a distâncias, profundidades, larguras, alturas,

quantitativos populacionais. Como observou Antonio Rocha Penteado, Halfeld

percorreu as 382 léguas entre Pirapora e a foz do rio, anotando

tudo o que se referia às suas margens, à localização de fazendas e sítios, à desembocadura de afluentes, à profundidade e largura do rio e de seu talvegue, à constituição geológica do leito e das margens, às condições de

5 Milton Santos, op. cit., p. 236-237.

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navegabilidade, ao regime do rio, aos pequenos portos fluviais, à vegetação dos barrancos, às matas que recobriam as margens mais altas, aos bancos de areia, às coroas, às plantações, às pequenas cidades, vilas e arraiais, aos tipos de embarcações e seus tripulantes [...]6

Mas constitui o relatório, principalmente, um precioso conjunto de sugestões técnicas de

alteração do perfil do rio. Preocupado com o objetivo principal da sua missão, Halfeld

sugeriu diversas obras de engenharia, das quais dependeria a viabilização do rio como

canal para a circulação de embarcações a vapor. Entre essas obras, estariam a

desobstrução de trechos encachoeirados, a construção de eclusas, a abertura de canais, a

correção de trechos de curso acidentado, a remoção de pedras e o melhoramento de

portos. Além disso, Halfeld preocupou-se com o policiamento das margens do rio, de

forma a compelir os moradores ribeirinhos a manter “limpos de mato” os barrancos

marginais e a evitar que os paus derrubados fossem jogados nas águas, o que constituía

um perigo para as embarcações; com a seleção, nos lugares ribeirinhos, de pilotos

hábeis na navegação pelo rio; e com o suprimento de combustível para a navegação. As

principais obras de engenharia tiveram o custo cuidadosamente estimado, a partir do

que pôde o pesquisador apresentar, no final do seu texto, um resumo contábil geral dos

melhoramentos sugeridos entre Pirapora e o oceano.

Incluídas no relatório, as minuciosas cartas topográficas dos trechos percorridos, com

indicação de afluentes, povoações, ilhas, terrenos marginais, constituem um

levantamento hidrográfico pioneiro do médio e baixo São Francisco. Um perfil

longitudinal do rio, plantas da cachoeira de Paulo Afonso e do afluente rio Grande e

duas gravuras completam o relatório de Halfeld.

6 Penteado. Apresentação. In: Henrique Halfeld. op. cit.

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Figura 1 - Carta topográfica de trechos dos rios São Francisco e das Velhas no Relatório de Henrique Halfeld.

Figura 2 - Perfil longitudinal do rio São Francisco, entre o afluente Xingó e o oceano, no Relatório de Henrique Halfeld.Fonte: Henrique G. F. Halfeld. Atlas e relatório... 2.ed. São Paulo: Empresa das Artes, 1994. Edição fac-similada.

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Nos anos e décadas seguintes à viagem de Halfeld outros estudiosos empreenderam

pesquisas similares ao longo do rio e do seu mais caudaloso afluente. Em 1862 o

francês Emmanuel Liais desceu o rio das Velhas de Sabará à foz e daí subiu o São

Francisco até a barra do Paraopeba, do que resultou relatório publicado em 1865.7 Seis

anos depois o engenheiro Carlos Krauss examinou o rio entre o porto de Piranhas e a

cachoeira de Sobradinho, de navegabilidade difícil ou impossível em alguns trechos, em

razão da cachoeira de Paulo Afonso e da própria cachoeira de Sobradinho. Em 1879 o

engenheiro norte-americano William Milnor Roberts fez o percurso inverso ao de

Halfeld, isto é, da foz do rio a Pirapora, investigando as condições de navegabilidade. O

engenheiro Benjamim Franklin de Albuquerque Lima examinou, em 1881, o rio das

Velhas entre a localidade de Macaúbas e a sua foz.

O pesquisador Fernando da Matta Machado estudou os relatórios dessas jornadas de

investigação da navegabilidade a vapor pelo rio São Francisco e pelo rio das Velhas e

teceu os seguintes comentários sobre as conclusões de Halfeld, Krauss e Roberts:

O relatório de Halfeld teve sem dúvida muita importância para o conhecimento do São Francisco, porque foi o primeiro estudo a tratar do rio nos seus aspectos globais e particulares. Entretanto, ao constatar a navegabilidade franca para navios a vapor apenas no trecho Pirapora a Juazeiro sem apresentar alternativa de transporte, financeiramente viável, até o mar, estava comunicado impasse que exigia futura solução, isto porque a navegação do São Francisco somente fazia sentido comercial se os produtos pudessem ser transportados até o litoral do país e dali distribuídos para os centros consumidores nacionais ou europeus. Como em 1858 a construção de estradas de ferro no Brasil estava apenas iniciando e tinha ainda desenvolvimento inexpressivo, a conexão do São Francisco com o mar parecia inviável a médio prazo através de meios então modernos de transporte, vale dizer, navios a vapor ou trem. Por isso, a manifestação de Halfeld de a construção de um canal lateral de Boa Vista a Pão de Açúcar ser excessivamente cara desincentivou as iniciativas governamentais e privadas de levarem a efeito a navegação por vapores, porque era opinião geral que o tráfego apenas hinterlândico fosse economicamente inviável. As conclusões de Krauss e Roberts, em 1869 e 1880, vieram trazer novo alento a todos aqueles que se interessavam pela navegação a vapor do São Francisco. O governo imperial não poderia conceder incentivos financeiros a empresas particulares para navegar o rio sem o apoio em justificação técnica de profissional habilitado. Era, portanto, indispensável que engenheiro competente garantisse que a navegação fluvial são-franciscana podia ser realizada mediante custos suportáveis pelas finanças públicas. Ora, foram exatamente as conclusões de Krauss e Roberts que permitiram ao governo

7 Liais, E. Hydrographie du haut san francisco et du rio das velhas. Paris: Garnier, 1865. Essa obra não foi consultada para o presente estudo.

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central fazer, anos depois, avultadas despesas na desobstrução do rio, conceder a subvenção de 90.000$ a uma empresa privada pelo tráfego efetivo e estabelecer as condições para a navegação. Sintetizando, podemos afirmar que em William Milnor Roberts está a verdadeira base ideológica para o incentivo e concretização da navegação a vapor do rio São Francisco. Esta base ideológica foi indispensável para que governantes, parlamentares e empresários privados tornassem realidade a navegação são-franciscana e permeou o pensamento de vários historiadores do rio São Francisco.8

A navegação a vapor tardaria a se tornar realidade no vale do São Francisco. Em 1870 e

1871 ocorre a jornada de Francisco Manoel Álvares de Araújo, que Matta Machado

considera ter inaugurado a navegação a vapor no rio São Francisco.9 O objetivo era

conduzir o vapor Saldanha Marinho do porto da Jaguara, no rio das Velhas, ao São

Francisco, explorando não só este, mas também os seus afluentes Paracatu e Grande. O

Saldanha Marinho era um vapor de 28 metros de comprimento por sete metros de boca,

com potência de 25 cavalos-vapor. A maior parte da estrutura era de ferro. O sistema

motor era constituído de uma caldeira, um cilindro, uma bomba e um injetor com 57

tubos. A velocidade média, a favor da correnteza, era de 22 quilômetros por hora e,

subindo o rio, de 14 quilômetros por hora. Segundo Álvares de Araújo, quando o vapor

passou à sua responsabilidade era uma embarcação constituída somente do casco e da

máquina, sem cômodos ou cobertas, razão pela qual foi improvisada uma cobertura

provisória de algodão trançado. Essa primeira viagem a vapor pelo São Francisco,

realizada numa embarcação destituída de quaisquer comodidades ou recursos que não

os estritamente necessários à sua locomoção, foi reportada pelo explorador num extenso

relatório elaborado no ano seguinte ao do término da jornada.10

Álvares de Araújo partiu da Quinta do Sumidouro (hoje no município de Pedro

Leopoldo/MG) e desceu o rio das Velhas até a sua foz. Daí seguiu pelo São Francisco

de Guaicuí (Várzea da Palma/MG) até Boa Vista (Santa Maria da Boa Vista/PE).

Percorreu, portanto, a maior parte da extensão navegável do rio das Velhas e todo o

médio São Francisco. A viagem requereu cuidados especiais, tendo o explorador

aguardado a chegada de chuvas, que encheriam o rio, em várias etapas da jornada.

8 Fernando da Matta Machado. Navegação do rio São Francisco, p. 76-77.9 Fernando da Matta Machado. op. cit., p. 117. É possível que o autor se refira especificamente à navegação a vapor organizada em trajetos regulares e com fins comerciais, pois é de se registrar que em 1859 D. Pedro II viajou de vapor do Rio de Janeiro às províncias do norte, tendo nessa jornada percorrido o rio São Francisco da foz até a cachoeira de Paulo Afonso. Essa viagem foi narrada em notas diárias feitas pelo imperador. Pedro II. Viagens pelo Brasil...10 Álvares de Araújo. Relatório da viagem de exploração... Revista do IHGB, v. 39, p. 76-155.

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Navegou-se sempre buscando o talvegue – a linha mais profunda no leito do rio – e

evitando-se bancos de areia, paus encalhados e áreas de baixa profundidade.

Ao longo da jornada Álvares de Araújo anotou os pontos que, no seu entender,

mereceriam obras de facilitação da navegação. Menos minucioso que Henrique Halfeld,

sugeriu apenas a desobstrução de alguns trechos do São Francisco e dos seus principais

afluentes (das Velhas, Paracatu, Urucuia, Corrente e Grande), bem como a remoção de

paus e a destruição de pedras. Para o explorador os trechos do São Francisco passíveis

de navegação a vapor eram de Pirapora a Boa Vista na estação das cheias, que perfazia

uma extensão de 1.493 quilômetros, e de Guaicuí a Riacho da Casa Nova (Casa

Nova/BA), correspondente a 1.270 quilômetros, na estação seca. O relatório traz ainda a

indicação de pontos de escala e de depósitos de lenha.

Álvares de Araújo fez sugestões gerais importantes, como a organização, pelo poder

público, de viagens regulares entre Guaicuí e Juazeiro; a conexão entre a hidrovia do

São Francisco e as estradas de ferro que levavam ao litoral; a organização do trabalho

de práticos e remadores. Diferentemente de Halfeld, que, numa avaliação realista,

previu que a vegetação marginal forneceria o combustível para os vapores por apenas

mais 20 anos, opinou que o suprimento de madeira de boa qualidade era praticamente

inesgotável. Citou, como exemplos, a aroeira, o angico, a jurema e a jurema preta.

Na perspectiva do século XIX a vegetação marginal – a mata ciliar, na denominação

contemporânea –, constituía um recurso a ser extraído e utilizado em larga escala. Ainda

que se preocupe com a preservação das árvores que não dificultem a navegação, para

evitar o assoreamento das margens e garantir sombra aos viajantes, Halfeld considera a

“mata quase impenetrável” que ladeava o São Francisco uma fonte óbvia de

combustível para a navegação, enquanto durassem as madeiras.11 Esgotada essa fonte, a

madeira necessária deveria ser trazida do litoral, transportada sobre as estradas de ferro

que partiriam de Pernambuco (Recife), de Maceió ou da Bahia (Recôncavo Baiano).

Álvares de Araújo, como vimos, foi além: “Entendo que durante séculos, ou antes

sempre haverá madeira de boa qualidade e em abundância para ser empregada nos

vapores”.12

11 Henrique Halfeld. op. cit., p. 54.12 Álvares de Araújo, op. cit., p. 249.

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A extração de lenha nos depósitos, ou portos, de lenha das margens do São Francisco

foi uma das grandes alterações provocadas pela navegação a vapor no perfil do vale. A

madeira, que na navegação tradicional era utilizada num ritmo lento e não agressivo,

passou a ser extraída em larga escala para alimentar os vapores. A riqueza da vegetação

marginal então existente permitia mesmo que, durante uma viagem, o suprimento de

madeira fosse recolhido diariamente, em portos relativamente próximos entre si, o que

evitava sobrecarregar a embarcação com lenha para mais de um dia. A prática de se

preferirem as madeiras mais resistentes, que queimavam por mais tempo, e mais

próximas das margens, para comodidade do transporte, levou à destruição de boa parte

da mata ciliar do São Francisco.

Figura 3 – Desenho de Spix e Martius, retratando uma lagoa marginal do rio São Francisco e a exuberante vegetação em torno, no trecho pesquisado neste estudo. Assim descreveram os autores esta imagem: “Lagoa de aves, à margem do Rio São Francisco, perto da fazenda Capão. Figura do estado natural primitivo: o reino das aves em pleno gozo de suas tendências nativas. Na floresta que contorna a água, pulsando de vida, vêem-se muitos cipós de plantas cissóides, a embaúba, a palmeira macaúba e o grande caniço de flecha”.Fonte: Spix, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil : 1817-1820. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981. v. 2, p. 77.

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Há poucos dados quantitativos a respeito, mas Matta Machado cita uma cifra

impressionante, sem todavia atentar para o que ela representa quanto à devastação.

Segundo os dados coligidos pelo autor, no ano de 1895 gastaram-se 1.116.946 achas de

lenha como combustível. Cada uma dessas achas media um metro de comprimento e 8 a

12 centímetros de diâmetro.13 É praticamente impossível inferir-se, a partir daí, quantas

árvores teriam sido abatidas no ano, mas o dado, mesmo se considerado isoladamente,

não deixa dúvida quanto à extensão da destruição da mata ciliar para a alimentação dos

vapores.

O jornalista Carlos Lacerda viajou pelo São Francisco em 1937 e constatou que “o gasto

de lenha nessa navegação é uma entrega permanente de todas as matas ribeirinhas, já

em grande parte devastadas”. Segundo Lacerda, uma viagem de navio entre Pirapora e

Juazeiro, no período das águas, implicaria no consumo de 21.500 achas, ou 119 metros

cúbicos de lenha. No sentido oposto, contra a corrente, o gasto seria de 44.300 achas, ou

246 metros cúbicos. O jornalista calculou a média de consumo de lenha em viagens por

esse trecho, o mais navegado do rio, em 16 achas por quilômetro na descida do rio e em

32 achas por quilômetro na subida. No período seco do ano o consumo poderia chegar

ao dobro dessas cifras, devido à energia necessária para retirar o vapor dos constantes

encalhes.14 Em outro trecho do seu relato o autor aborda a devastação vegetal provocada

pela navegação a vapor do ponto de vista da subsistência dos barranqueiros:

A lenha... poderíamos considerar “produtiva” essa atividade devastadora? É uma das fontes principais do sustento dos ribeirinhos. “Barranqueiros” existem que só vivem do que vendem aos vapores. Estes encostam no barranco, recebem as achas e o comandante paga à vista. O preço, calculado em metros cúbicos, varia de 2$500 a 4$ por unidade. Nada mais há a fazer do que cortar, torar as florestas restantes, as capoeiras, as moitas, e entregar à boca ardente do navio o seu alimento indispensável. Depois, esperar a maleita, adormecer a maleita, esperá-la de novo...15

À alimentação dos vapores se somou a utilização de lenha como combustível de

pequenas usinas de geração de energia elétrica, instaladas em cidades ribeirinhas.

13 Fernando da Matta Machado. op. cit., p. 253.14 Carlos Lacerda. Desafio e promessa, p. 123. Carlos Lacerda passou 28 dias viajando entre Pirapora e Juazeiro. Estava então com 23 anos de idade e apenas iniciava a atividade política que o tornaria célebre. Da sua viagem resultou esse interessante texto, baseado em observações diretas, dados estatísticos e documentos históricos, escrito em 1939, pouco utilizado nas pesquisas sobre o vale do São Francisco.15 Idem, p. 64.

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Entre 1883 e 1896, ainda de acordo com Matta Machado, foram desobstruídas diversas

cachoeiras do São Francisco.16 A navegação a vapor se estenderia por muitas décadas,

chegando até a segunda metade do século XX. Os vapores de carga, que levavam

mercadorias, e os chamados gaiolas, que transportavam principalmente passageiros,

singravam regularmente as águas do São Francisco. Cidades ribeirinhas tornaram-se

importantes portos fluviais.

Mônica Meyer

Figura 4 – Vapor Benjamim Guimarães retratado em pintura do artista Frank, na praça de Itacarambi

A decadência da atividade veio com a emergência do transporte rodoviário, que reduziu

drasticamente a opção pelo transporte fluvial e relegou a segundo plano o transporte

ferroviário.

16 Fernando da Matta Machado. op. cit., p. 288.

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A navegação a vapor representou a primeira grande intervenção técnica na configuração

natural do São Francisco. Projetos foram elaborados e obras foram executadas com o

propósito de se fazer o que preconizava o engenheiro Halfeld em meados do século

XIX: a “correção completa do Rio de S. Francisco, desde a cachoeira de Pirapora até o

mar”.17 Corrigir o curso do rio, por meio da aplicação de um conjunto de técnicas

científicas de engenharia e de navegação, tornou-se um imperativo nas ações

governamentais voltadas para o vale do São Francisco. Veremos que essa abordagem

corretiva e utilitária do rio se intensificará no século seguinte, abrindo o caminho para

drásticas alterações antrópicas da paisagem do vale.

2 As usinas hidrelétricas e o controle tecnológico do vale do rio

A primeira usina hidrelétrica instalada no vale do São Francisco foi também a primeira

hidrelétrica da região Nordeste: trata-se da Usina de Angiquinho, construída em 1912

no meio de um paredão de granito, ao lado da cachoeira de Paulo Afonso, em área que

hoje integra o município alagoano de Delmiro Gouveia. Tratou-se de uma ação pioneira

e independente do industrial alagoano Delmiro Gouveia, que inicialmente buscava

alimentar de energia elétrica a sua fábrica de linhas de costura, instalada a 23

quilômetros da usina. O empresário obteve do governo alagoano a concessão para

captar o potencial hidrelétrico da cachoeira de Paulo Afonso e produzir eletricidade, que

passou a abastecer a localidade de Pedra (hoje Delmiro Gouveia). A usina continha três

turbinas a uma altura de 42 metros, com tensão de 3.000 volts.18

O impulso inicial para a construção do complexo hidrelétrico de Paulo Afonso partiu de

Apolônio Salles, ministro da Agricultura do primeiro governo de Getúlio Vargas.

Inspirado na proposta de integração regional do Tennessee Valley Authority, nos

Estados Unidos, que visitou em 1944, Salles propôs um projeto similar para o rio São

Francisco. O projeto seria executado numa área demarcada por um círculo de 450

quilômetros em torno da cachoeira de Paulo Afonso e englobaria oito estados.

Em 1945 o governo federal instituiu a Companhia Hidrelétrica do São Francisco –

Chesf. Em 1949 iniciou-se a construção da usina de Paulo Afonso I, que demandou a

17 Henrique Halfeld. op. cit., p. 57.18 Semira Adler Vainsencher. Paulo Afonso.

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instalação de uma barragem móvel no braço principal do rio, problema de engenharia de

difícil solução. A nova usina entrou em operação em 1955, com 180 mil quilowatts,

produzidos por duas máquinas geradoras, ligadas às linhas tronco Norte, para Recife, e

tronco Sul, para Salvador. Foram assinados, ainda, contratos para o fornecimento de

energia elétrica para as cidades de João Pessoa, Campina Grande, Aracaju, Garanhuns,

Pesqueira, Goiana, Itabaiana, Riachuelo e Maruim, bem como para oito empresas

privadas. As linhas de transmissão, com a estrutura construída ainda em madeira,

percorriam 860 quilômetros.19

A usina Paulo Afonso II foi edificada entre os anos de 1963 e 1968; entre 1969 e 1970,

Paulo Afonso III era concluída e, em 1971, suas duas primeiras unidades começavam a

funcionar. O conjunto das três usinas passou a constituir o maior complexo energético

do país, responsável, durante 30 anos, pela quase totalidade do fornecimento de energia

elétrica para a região Nordeste. As três usinas foram instaladas em cavernas

independentes, aproveitando-se o forte desnível natural criado pela cachoeira. Paulo

Afonso IV, por seu turno, foi construída na margem do canyon do São Francisco,

aproveitando-se as excepcionais condições topográficas da área para a geração de

energia, a possibilidade de captação de água no reservatório da Usina Apolonio Sales e

a garantia de vazão proporcionada pela represa de Sobradinho. A casa de máquinas da

usina foi instalada numa caverna escavada a 55 metros de profundidade, com 210

metros de extensão e 24 metros de largura, o que representou expressiva obra de

engenharia na área de usinas subterrâneas. Paulo Afonso IV entrou em operação em

1979. Hoje o Complexo de Paulo Afonso, formado pelas usinas Paulo Afonso I, II, III,

IV e Apolonio Sales, em Moxotó, produz um total de 4 milhões e 280 mil quilowatts de

energia, potência gerada por meio do desnível natural de 80 metros do rio São

Francisco.20

O início do funcionamento da Barragem de Sobradinho, ocorrido em 1979, possibilitou

o controle do curso do rio e do fornecimento de água para as usinas a jusante dela. A

represa garantiu uma vazão mínima de 2.060 metros cúbicos por segundo,

correspondentes a 74% da média anual do rio São Francisco no seu trecho em

Sobradinho. A eclusa de navegação passou a permitir a ultrapassagem do rio num

19 Idem, ibidem.20 Idem, ibidem.

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trecho de desnível máximo de 32,5 metros. O lago gerado pela barragem tem 320

quilômetros de extensão e 4.214 quilômetros quadrados de espelho d’água. As seis

unidades geradoras da configuração final da usina garantem uma potência instalada de

1.050 megawatts.

O enchimento da represa da Usina de Xingó ocorreu em 1994. A usina tem hoje seis

unidades geradoras, que proporcionam uma potência instalada de 3.000 megawatts.

O reservatório da Usina de Moxotó − hoje chamada Apolonio Sales em homenagem ao

idealizador da Chesf − foi construído para possibilitar, em caráter permanente, a

regularização da vazão do rio. A usina foi equipada com quatro unidades geradoras, que

totalizam uma potência instalada de 440 megawatts.

A Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga, originalmente denominada Itaparica, foi

implantada 50 quilômetros a montante de Paulo Afonso, vizinha à Cachoeira de

Itaparica. A geração de energia pela usina iniciou-se em 1988. Hoje, as seis unidades

geradoras totalizam uma potência instalada de 1.500 megawatts.

Todo o complexo hidrelétrico constituído pelas Usinas de Paulo Afonso, Sobradinho,

Xingó, Apolonio Sales e Luiz Gonzaga é controlado pela Chesf, sociedade de economia

mista que tem como acionista majoritário o governo federal, através das Centrais

Elétricas Brasileiras – Eletrobras.

A operação da Usina Hidrelétrica de Três Marias, no médio São Francisco, em Minas

Gerais, sob a responsabilidade da Companhia Energética de Minas Gerais, iniciou-se

em 1962. Na época de sua construção, que constituiu grande desafio tecnológico, Três

Marias estava entre as maiores barragens de terra do mundo. A barragem tem 3,25

quilômetros de extensão e altura máxima de 56,9 metros. O reservatório tem 1.040

quilômetros quadrados de espelho d'água e permite o armazenamento de 15,278 bilhões

de metros cúbicos de água.

As seis unidades geradoras garantem uma potência instalada de 396 megawatts,

produção energética que é a mais baixa dentre as usinas hidrelétricas construídas ao

longo do rio São Francisco. Com efeito, mais do que a geração de energia elétrica, a

30

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construção da barragem de Três Marias objetivou controlar as cheias periódicas do rio e

os longos períodos de estiagem, além de melhorar as condições de navegação do São

Francisco e permitir a instalação de projetos de irrigação.

Márcio Santos

Figura 5 – Lago de Três Marias na região de Morada Nova de Minas

As nove usinas hidrelétricas implantadas, a partir da década de 40, no curso do rio São

Francisco, intensificaram a crescente dependência brasileira da energia elétrica gerada

pela força das águas. O gráfico abaixo mostra que a expansão da geração de energia

total no país foi sempre acompanhada, pari passu, por expansão proporcional na

geração de energia hidrelétrica; isto é, especialmente a partir da década de 50, definiu-

se, em detrimento de outras fontes energéticas, que a fonte de energia por excelência no

país seria a gerada pelas usinas hidrelétricas.

31

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Gráfico 1 - Evolução da potência instalada no Brasil

0

10.000.000

20.000.000

30.000.000

40.000.000

50.000.000

60.000.000

1901 1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1985 1990

Ano

Potê

ncia

inst

alad

a (K

W)..

...

Energia total Energia hidrelétrica

Fonte: Gráfico confeccionado a partir de dados fornecidos por Arnaldo C. Müller. Hidrelétricas, meio ambiente e desenvolvimento. São Paulo: Makron Books, 1995. Os dados do autor foram retirados de: Ministério da Infra-Estrutura. Cadastro Nacional de Usinas. Sistema de Informações Empresariais do Setor de Energia Elétrica – Siese. Rio de Janeiro: Eletrobras, 1991.

A construção da represa de Sobradinho e o conseqüente alagamento da vasta área hoje

ocupada pelo lago artificial levou ao desaparecimento de cinco núcleos urbanos baianos

de porte médio e à transferência dos seus moradores para novas sedes, construídas nas

margens do reservatório. Em 1974, foram inundadas as antigas cidades de Casa Nova,

Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé e o antigo distrito de Sobradinho, então pertencente

ao município de Juazeiro. Doze mil famílias, ou cerca de 70 mil pessoas, foram

deslocadas em razão do alagamento.

Também a represa de Itaparica, construída para abastecer a Usina Hidrelétrica de Luiz

Gonzaga, provocou grande deslocamento populacional. Segundo dados da Chesf, cerca

32

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de 50 mil moradores foram retirados das áreas inundadas, localizadas em municípios

baianos e pernambucanos, e reassentados em novas cidades e em projetos de irrigação.

Ao contrário do lago de Sobradinho, cuja construção exigiu o alagamento de centros

urbanos, o enchimento do reservatório de Três Marias inundou apenas áreas rurais e

naturais, como propriedades agrícolas, pastagens e campos.

A destruição de núcleos urbanos e áreas rurais e o deslocamento de seus moradores para

outras regiões, provocados pela construção de represas para as usinas hidrelétricas, têm

sido muito discutidos na atualidade. O processo de transferência das populações

ribeirinhas envolve aspectos socioculturais complexos, relacionados com a fixação do

ser humano ao seu local de origem e com o vazio de identidade que marca os novos

lugares destinados para os reassentados. O habitante dessas novas áreas, ainda que leve

consigo os seus bens materiais, deixa para trás um universo de referências culturais, que

só faziam sentido no espaço físico que foi alagado.

A implantação do reservatório provoca uma completa desarticulação dos sistemas

sociais, econômicos e culturais que caracterizavam a existência das populações

desalojadas da área de inundação. Territórios habitados por populações tradicionais,

áreas indígenas e sítios arqueológicos e históricos são submersos pela represa, levando

consigo a expressão material do secular patrimônio cultural das comunidades

removidas.

Impactos ambientais de grande envergadura são também uma conseqüência da

construção do reservatório que alimentará a usina hidrelétrica. O engenheiro Arnaldo

Carlos Muller examinou detidamente diversos desses impactos naturais, analisando a

sua abrangência e condição de reversibilidade.21 Os tópicos citados abaixo constituem

uma síntese da análise do pesquisador.

1. A transformação abrupta de um ecossistema fluvial, de águas rápidas, em lacustre, de

águas lênticas, gera intensos desequilíbrios físicos, químicos e biológicos no rio

represado. Podem ocorrer, no novo ambiente, fenômenos como redução da temperatura,

retenção de material sólido, proliferação de algas e aumento da salinidade.

21 Arnaldo Müller. Hidrelétricas..., p. 126-268.

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2. A elevação do nível das águas, na formação do reservatório, exerce enorme pressão

sobre as nascentes artesianas situadas nas margens e no fundo dos rios represados.

Novas nascentes podem aparecer, formando lagos e pântanos nas vizinhanças do

reservatório. Pode ainda ocorrer a contaminação dos veios aqüíferos subterrâneos por

elementos poluentes que são dispersados pela pressão do reservatório.

3. A construção do reservatório pode provocar alterações climáticas na temperatura,

umidade relativa, insolação, evaporação e ventos.

4. A retenção dos cursos de água pode provocar efeitos adversos sobre os processos

naturais de erosão, carreamento e assoreamento. A deposição de partículas ocasiona a

precipitação de componentes químicos que normalmente encontram-se em suspensão,

interferindo na qualidade das águas.

5. O afogamento da vegetação situada na bacia hidráulica reduz sensivelmente a

qualidade das águas, levando a uma reversão do processo evolutivo natural. A vida, nos

primeiros anos de existência do reservatório, deixa de existir nos corpos de água por ele

afetados.

6. Ocorre a esterilização das margens do reservatório, formadas por superfícies

geológica e biologicamente não preparadas para os ritmos de seca e inundação

temporária característicos da linha da costa de uma represa. Observam-se processos de

erosão e assoreamento, de lixiviação e de compactação, fatores que complicam a

recuperação dos ambientes lacustres. A recuperação natural das margens implicará na

formação inicial de vegetação típica de várzeas e baixios.

7. As obras de construção do reservatório e da usina hidrelétrica exigem a exploração de

áreas próximas, utilizadas como reservas de material para a barragem. A área explorada,

geralmente com equipamentos pesados, estará, depois de concluída a obra, com os solos

compactados, impossibilitando a regeneração natural, pouco permeáveis e propensos a

formar bacias de estagnação de água.

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8. A proliferação de plantas aquáticas na superfície do reservatório pode produzir graves

danos à saúde da população ribeirinha, favorecendo o desenvolvimento de mosquitos e

caramujos na região.

9. O salvamento e a realocação da fauna desalojada pelo reservatório é controverso. Há

uma corrente de especialistas que aponta os dramáticos impactos provocados pela

realocação desses animais nas novas áreas onde são soltos.

10. A transformação de um ambiente lótico num ambiente lêntico provoca

desequilíbrios na fauna aquática. As espécies que dependem de águas movimentadas

tendem a ter suas populações reduzidas. E mesmo as espécies aptas à vida em águas

lentas serão afetadas, pois a operação do reservatório afeta os ninhos dos peixes,

impedindo a formação de abrigos essenciais para a sua reprodução. Segundo Müller, “a

oscilação operacional dos reservatórios é, na verdade, um dos mais importantes

obstáculos ao desenvolvimento dos estoques pesqueiros das populações lênticas;

também é o impacto de mais difícil atenuação, se desejamos manter normal a população

hidrelétrica”.22 O autor explica o impacto da construção da represa sobre os peixes de

piracema:

Entre os peixes que preferem os ambientes de águas correntes destacam-se os de piracema, como o dourado, o curimbatá e o pacu. O processo reprodutivo desses peixes é ativado por fatores ambientais característicos. As espécies brasileiras de piracema são potamódromas, ou seja, desenvolvem todo o seu ciclo vital no próprio corpo do rio, diferenciando-se das espécies anádromas ou catádromas, que têm fases do seu ciclo em águas salobras, ou que não reproduzem senão nas cabeceiras dos rios onde nasceram, como alguns salmões de rios do hemisfério norte.

A piracema é comandada pelos processos físico-químicos relacionados com a elevação do nível das águas, em épocas de fotoperíodo mais prolongado e com temperaturas mais elevadas, que induziriam os cardumes a um processo reofílico (de nadar contra a corrente das águas). No rio Paraná isso ocorre entre novembro e fevereiro. O esforço de deslocamento dos peixes queima suas gorduras, ativando mecanismos hormonais complexos e preparando-os para a reprodução. Quando a maturação se completa, freqüentemente nas proximidades de saltos ou corredeiras que os peixes tentaram galgar, o início da desova atrai um grupo de machos igualmente maduros que então expelem o seu esperma. No caso dos dourados, podemos reconhecer a piracema pela agitação que os casais provocam na superfície das águas com suas nadadeiras.

Os óvulos fecundados passam por um fenômeno higroscópico que os mantêm a uma pequena profundidade abaixo da superfície e são levados com a corrente d’água, adentrando as lagoas marginais que, com as cheias, estão

22 Idem, p. 249.

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ligadas ao rio. A larva eclode e se desenvolve no ambiente tranqüilo e fértil dessas lagoas até outro período de cheia, quando os jovens retornam ao rio.

As represas constituem-se em obstáculos que diminuem o espaço da migração reprodutiva e mais: amortecendo os picos das cheias dos rios, reduzem tanto a ativação reofílica como os alagamentos cíclicos das lagoas marginais. As espécies de piracema de jusante das represas chegam até as usinas e acabam queimando suas gorduras e reproduzindo-se próximo aos canais de fuga. Já os peixes de piracema que vivem a montante da barragem terão que percorrer os rios tributários para a sua reprodução, descendo os óvulos até as águas calmas dos reservatórios, que então abrigarão as formas juvenis daqueles peixes.23

A implantação dos reservatórios e das usinas hidrelétricas ao longo do São Francisco

constitui, assim, intervenção técnica com graves e, na maioria dos casos, irreversíveis

impactos sobre os ecossistemas formadores do vale do rio. À pressão sobre os

elementos naturais juntam-se os efeitos socioculturais, igualmente irreparáveis, sobre as

populações ribeirinhas desalojadas para a instalação dos empreendimentos. A partir da

década de 40 do século XX consolida-se, possibilitada pelas inovações tecnológicas e

pelas soluções de engenharia, a abordagem instrumental do rio, abrindo caminho para a

transformação do meio natural são-franciscano num meio técnico.

3 O projeto de transposição

Na linha de análise proposta neste estudo, a transposição de parte das águas do São

Francisco para as regiões semi-áridas do Nordeste seria, se realizada, uma das mais

contundentes intervenções técnicas na paisagem do vale do São Francisco.

Representaria, juntamente com as usinas hidrelétricas implantadas ao longo do rio na

segunda metade do século XX, mais uma prótese no território são-franciscano. Se o

século XIX assistiu ao abate, em larga escala, do arvoredo marginal para a alimentação

dos vapores e o século seguinte viu as radicais alterações impostas ao regime do rio pela

construção das grandes usinas hidrelétricas, o século XXI presenciaria o impacto

provocado pelo desvio de milhões de metros cúbicos de água do São Francisco para as

distantes regiões interiores de quatro estados nordestinos. Na lógica instrumental, a

transposição representaria o supremo esforço de corrigir o perfil do rio, tornando-o,

pela cessão de parte do seu volume hídrico, um instrumento útil para as populações do

semi-árido.

23 Idem, ibidem.

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A idéia de se levar parte das águas do São Francisco para a região do semi-árido não é

nova. Desde as suas primeiras manifestações, ainda no século XIX, ela buscou

responder a um dos mais graves problemas sociais do interior do país: as secas

periódicas que assolam o Nordeste.

O historiador Marco Antonio Villa, depois de estudar as principais secas ocorridas na

região nos séculos XIX e XX, estima que elas tenham provocado a morte de três

milhões de brasileiros entre 1825 e 1983. Para o pesquisador, as tentativas de solução –

criação de açudes, projetos de irrigação, reforma agrária, projetos de colonização, apoio

aos pequenos e médios produtores rurais, diversificação de culturas e implantação da

lavoura seca – malograram, permanecendo o semi-árido como uma região

“aparentemente sem História, dada a permanência e imutabilidade dos problemas”.24

As secas do século XIX, reportadas por Villa a partir de extensa pesquisa em jornais da

época, produziram efeitos devastadores. Destruição de lavouras; migração de centenas

de milhares de retirantes para as cidades; venda e prostituição de mulheres;

antropofagia; corrupção e desvio na distribuição da ajuda oficial; estado abjeto dos

abarracamentos construídos pelo governo para abrigar as vítimas. A seca de 1877

produziu mais de dois milhões de flagelados, sendo 700 mil no Ceará, 500 mil na Bahia,

400 mil na Paraíba, 200 mil em Pernambuco, 150 mil no Piauí, 117 mil no Rio Grande

do Norte, 50 mil em Alagoas e 30 mil em Sergipe.25

Entre os séculos XIX e XX ocorreram 50 anos secos no Nordeste; ou seja, há uma

probabilidade de cerca de 25% de ocorrer uma seca na região em qualquer ano. Na

atualidade o chamado Polígono das Secas, que abrange o semi-árido e o agreste

nordestinos, é habitado por aproximadamente 28 milhões de pessoas, englobando mais

de 90% da área dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.26

A construção de um sistema que levasse água do rio São Francisco ao interior

nordestino, especialmente ao Ceará, figurou desde as primeiras décadas do século XIX

entre as medidas sugeridas para resolver o problema da seca. Segundo Villa, o primeiro

a defender a idéia teria sido o ouvidor do Crato, José Raimundo de Passos Barbosa, em 24 Marco Antonio Villa. Vida e morte no sertão, p. 252.25 Idem, p. 61.26 Ministério da Integração Nacional. Relatório de Impacto Ambiental, p. 2-1 a 2-2.

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1818. Em 1847 o projeto foi publicamente defendido pelo intendente do Crato e

deputado provincial Marcos Antônio de Macedo.27

No seu relatório, de 1858, o engenheiro Halfeld menciona o intendente Macedo para

introduzir a idéia da transposição, da qual faz veemente defesa:

À esquerda desta fica a ilha da Quixaba, do Imbuzeiro, a Ilha Grande, a das Garças, da Lontra, e a do Icó. É neste ponto, onde pessoas ilustradas, particularmente o Dr. Marcos Antonio de Macedo, julgam que será possível tirar e conduzir-se do Rio de S. Francisco um canal em direção para o riacho dos Porcos, e canalizar-se este até a sua confluência com o riacho Salgado, e este até a sua embocadura no rio Jaguaribe, e finalmente deste rio até a sua foz no mar. O projeto é gigantesco, porém se for possível conseguir-se a sua execução, terá o benéfico resultado de incalculável transcendência para as províncias do Ceará, Pernambuco, Piauí, Goiás e particularmente para a província do Ceará, que de primeira mão receberá o benefício da fácil comunicação comercial do mar para o interior do império e vice-versa, e aproveitaria as águas do Rio de S. Francisco para a irrigação das suas terras, como meio mais certo e eficaz de providenciar contra o horrível flagelo das grandes secas que lá, quase anualmente, põem em consternação grande parte dos habitantes daquela província; mas também a comunicação direta do mar para o Vale do Rio de S. Francisco, e dos seus tributários seria o maior impulso a fim de acordar a indústria, que em profundo letargo jaz naquelas regiões, e de promover a felicidade dos seus habitantes.

No final dessas considerações Halfeld informa que apresenta, junto ao seu relatório, o

original de uma carta e de uma planta do projeto que lhe foram encaminhadas por

Macedo.28

Em 1859 uma missão científica realizada no Ceará, organizada pelo Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, recomendou a melhoria dos meios de transporte e

armazenamento de água na região, incluindo entre as sugestões a construção de 30

açudes e a abertura de um canal ligando o rio São Francisco ao rio Jaguaribe.29

Em 1907 Euclides da Cunha sugeriu diversas medidas de combate à seca, incluindo

entre elas a “derivação” das águas do São Francisco para as bacias do Jaguaribe e do

Piauí:

Então, poderão concorrer, recíprocos nas suas influências variáveis, os vários recursos que em geral se sugerem isolados: a açudada largamente disseminada, já pelo abarreirar dos vales apropriados, já pela reconstrução

27 Marco Antonio Villa. op. cit., p. 36-37.28 Esses documentos não foram publicados na edição do relatório consultada para este estudo.29 Ministério da Integração Nacional. op. cit., p. 2-19.

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dos lanços de montanhas que a erosão secular das torrentes escancelou em boqueirões, o que vale por uma restauração parcial da terra; a arborização em vasta escala com os tipos vegetais que, a exemplo do juazeiro, mais se afeiçoem à rudeza climática das paragens; as estradas de ferro de traçados adrede dispostos ao deslocamento rápido das gentes flageladas; os poços artesianos, nos pontos em que a estrutura granítica do solo não apresentar dificuldades insuperáveis; e até mesmo uma provável derivação das águas do S. Francisco, para os tributários superiores do Jaguaribe e do Piauí, levando perpetuamente à natureza torturada do norte os alentos e a vida da natureza maravilhosa do sul...

É, por certo, um programa estonteador; mas único, improrrogável, urgente.30

Para o escritor, que era também engenheiro, essa “campanha formidável contra o

deserto” deveria ser precedida de estudos topográficos, hipsométricos, meteorológicos,

da natureza do solo, da vegetação e de um plano estratégico de engenharia.

As sucessivas secas do início do século XX (1900, 1902, 1907-1908) colocaram

definitivamente a necessidade da intervenção do poder público para fazer face ao

desafio permanente da falta de água para a população do semi-árido. Em 1909 é criada a

Inspetoria de Obras Contra as Secas, que contratou especialistas estrangeiros para

realizar os primeiros estudos de águas subterrâneas no Nordeste e fez elaborar, em

1913, um mapa do imaginado canal entre o São Francisco e o Jaguaribe, sendo Cabrobó

o ponto de captação de água.31 No entanto, a baixa capacidade de geração de energia

elétrica, necessária para acionar as bombas para a condução das águas, inviabilizou o

projeto.

Somente na década de 80 a idéia da transposição voltaria novamente à tona, propiciada

pela energia elétrica gerada com a operação das usinas hidrelétricas da Chesf e a

duplicação da vazão do São Francisco a jusante da barragem de Sobradinho. Segundo

os autores do Estudo de Impacto Ambiental do projeto de transposição, a partir de então

“criaram-se as condições técnicas para uma transferência de volumes do rio São

Francisco para os rios intermitentes do Nordeste Setentrional”.32

Entre 1982 e 1985 um projeto de derivação de águas do São Francisco para a região

semi-árida do Nordeste foi elaborado pelo Departamento Nacional de Obras e

Saneamento, em parceria com o United States Bureau of Reclamation. No entanto, uma

30 Euclydes da Cunha. Contrastes e confrontos, p. 78-79.31 Ministério da Integração Nacional. op. cit., p. 2-19.32 Idem, ibidem.

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enorme mortandade de peixes no rio alertou os responsáveis para o fato de que a

poluição industrial das águas do São Francisco chegara a tal nível que a transposição

significaria levar água contaminada para rios e açudes nordestinos. Apenas em 1994, no

governo Itamar Franco, o projeto seria retomado, por ação do ministro da Integração

Nacional, Aluízio Alves (potiguar), e do ministro do Planejamento, Beni Veras

(cearense). A oposição do ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero (paulista), tornou

impraticável a execução do projeto. Entre 1996 e 1998, Fernando Henrique Cardoso,

que nos anos anteriores se mostrara em dúvida sobre o projeto, abraçou a idéia. Em

2001, não obstante, o governo federal foi obrigado a abandonar a idéia, em virtude da

crise de fornecimento de energia elétrica que gerou o apagão.

Luiz Inácio Lula da Silva, que no passado se mostrara cauteloso em relação à

transposição, tornou-a, depois de eleito, um dos destaques do Plano Plurianual do

governo federal. O ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes (cearense), passou a

gerenciar o projeto, para o que foi duplicado o orçamento do ministério por ele

coordenado.

Entre 1985 e 2005 o projeto foi sucessivamente alterado em dois pontos fundamentais.

A captação de água, que era de 300 metros cúbicos por segundo (15% da vazão do rio)

em 1985, baixou para 150 metros cúbicos por segundo (7,5% da vazão) em 1994, 48

metros cúbicos por segundo (2,4% da vazão) em 2000 e 26 metros cúbicos por segundo

(1,3% da vazão) em 2005. E a revitalização do rio, que não fora incluída nos projetos

anteriores, passou a integrar o projeto de 2005. Certamente essas alterações buscaram

responder à crescente oposição ao projeto, motivada por razões socioambientais que

ganharam maior vulto a partir da década de 90, com o avanço da consciência ambiental.

O projeto de transposição do governo Luiz Inácio Lula da Silva prevê a construção de

dois sistemas independentes de obras hidráulicas – canais, estações de bombeamento de

água, pequenos reservatórios intermediários e usinas hidrelétricas de auto-suprimento –,

denominados Eixo Norte e Eixo Leste. Esses sistemas captariam água no rio São

Francisco, entre as barragens de Sobradinho, na Bahia, e Itaparica, em Pernambuco, e a

levariam para açudes construídos nos rios intermitentes do semi-árido, interligando-os

indiretamente com o reservatório de Sobradinho. O Eixo Norte teria 402 quilômetros de

extensão e captaria 66,7% da água fornecida; o Eixo Leste se estenderia por 220

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quilômetros e seria responsável por 33,3% da água. Segundo os autores do Estudo de

Impacto Ambiental do projeto de transposição, a água captada e transportada seria

utilizada para fins múltiplos, numa área habitada atualmente por cerca de 12 milhões de

pessoas, correspondentes a aproximadamente 45% da população do Polígono das Secas.

Dessa população, cerca de sete milhões de pessoas residem nas bacias receptoras e

representariam, portanto, a parcela populacional diretamente beneficiada pela obra. As

bacias diretamente favorecidas seriam as dos rios Jaguaribe, no Ceará; Piranhas-Açu, na

Paraíba e Rio Grande do Norte; Apodi, no Rio Grande do Norte; Paraíba, na Paraíba; e

Moxotó, Terra Nova e Brígida, na bacia do São Francisco, em Pernambuco. Também

municípios situados fora dessas bacias, mas interligados com a rede hídrica regional,

seriam beneficiados. Entre esses estariam municípios situados no Agreste

Pernambucano e na Região Metropolitana de Fortaleza.33 A previsão de investimento

total no projeto é de 4,5 bilhões de reais.

33 Idem, p. 1-1.

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Figura 6 - Esquema do projeto de transposição

Fonte: Ministério da Integração Nacional. Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Relatório de Impacto Ambiental. Julho de 2004. www.integracao.gov.br

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O projeto vem sofrendo forte oposição de diversos setores da sociedade e do poder

público, que incluem os governos dos estados banhados pelo São Francisco, o Comitê

da Bacia Hidrográfica do São Francisco, organizações não governamentais, cientistas e

pesquisadores, veículos de comunicação e religiosos, como o frei Luiz Flávio Cappio,

bispo de Barra (BA), que em 2005 passou dez dias em greve de fome em protesto contra

a transposição. Faço abaixo uma síntese dos principais pontos de tensão apontados no

projeto.

1. Custo da energia elétrica necessária para a operação do sistema de bombeamento

Após a construção da estrutura de funcionamento da transposição, sob a

responsabilidade do governo federal, os custos da operação do sistema serão repassados

para os estados beneficiados, podendo chegar a 127 milhões de reais em 2025. Esse

custo será cobrado dos usuários da água doada, provocando majorações de tarifas que

podem aumentar em cinco ou seis vezes o valor da água atualmente praticado na região

receptora. Uma das maiores críticas ao projeto incide exatamente sobre a necessidade de

geração de energia elétrica suficiente para elevar as águas do São Francisco a alturas

que chegam a 300 metros.

2. Região beneficiada

Críticos do projeto como João Abner Guimarães Júnior, doutor em recursos hídricos,

professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membro do Fórum

Permanente de Defesa do Rio São Francisco, afirmam que a água chegaria a regiões

muito distantes dos locais mais secos do Nordeste, onde os problemas causados pela

falta de água são mais preocupantes. O envio da água para apenas alguns dos maiores

reservatórios da região, como o de Castanhão, no Ceará, os de Engenheiro Armando

Ribeiro Gonçalves e de Santa Cruz, no Rio Grande do Norte, e os de Boqueirão e de

Engenheiro Ávidos, na Paraíba, significariam, segundo Guimarães, “chover no

molhado”. As conclusões de um estudo coordenado pelo pesquisador na UFRN são

cabais: o empreendimento levará água para onde ela já existe em abundância; o custo

será proibitivo para a irrigação e as regiões mais secas do Rio Grande do Norte não

serão atendidas.

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Em visita à região beneficiada, o repórter Bernardino Furtado, do jornal “Estado de

Minas”, encontrou casos como o do rio Açu, no Rio Grande do Norte, onde “não há

sinal de miséria na paisagem. O que se vê são bombas de exploração de petróleo e

criatórios de camarão”. Segundo Furtado,

Nada melhor do que uma visita ao Vale do Rio Açu, no Rio Grande do Norte, para derrubar o argumento de que a transposição do rio São Francisco vai levar água para uma população sedenta e miserável. A começar pela onipresença dos “cavalinhos”, como são chamadas pela população local as bombas de petróleo da Petrobras. [...] Os cavalinhos estão nas margens do rio, no meio das plantações de banana irrigadas e nas imediações dos vastos tanques de criação de camarão. É o maior campo terrestre de óleo e gás da Petrobras no Brasil e está em expansão.34

3. Distribuição da água captada

Os críticos do projeto apontam o fato de que a água doada não chegará à população

pobre, que dela necessita para o abastecimento doméstico, permanecendo nas mãos de

grandes produtores, que a utilizarão para a irrigação de lavouras de produtos de

exportação. Ao chegar aos açudes, administrados pelas prefeituras, a água passará a ser

distribuída de acordo com interesses políticos e econômicos, gerando conflitos na região

receptora. Essa distribuição desigual estaria relacionada à secular estrutura política do

interior nordestino, baseada no poder de chefes políticos locais e regionais.

4. Volume de água captada

A previsão é que, nos anos de estiagem, sejam captados pelo menos 26 metros cúbicos

de água por segundo. No entanto, a autorização concedida pela Agência Nacional das

Águas, em 22/9/2005, possibilita que, em casos excepcionais, seja permitida a captação

da vazão máxima diária de 114 metros cúbicos por segundo, desde que a barragem de

Sobradinho esteja com pelo menos 94% do seu volume preenchido. Além dessa

excepcionalidade, a agência contemplou a possibilidade de uma captação média diária

de 87,9 metros cúbicos por segundo, destinada a outros usos da água e a ser bombeada

eventualmente. Segundo os críticos, essas possibilidades abertas pelas autorizações da

ANA deixam brechas para que o volume captado seja maior do que o previsto e tenha

destinação não estabelecida no projeto original.

34 Bernardino Furtado. A verdade sobre a transposição : Fartura. Estado de Minas, 21 nov. 2004, p. 14.

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Além disso, não haverá como evitar significativa perda de água por evaporação, durante

o transporte pelos extensos canais. O volume de água que deixaria o São Francisco não

seria o mesmo que chegaria à região receptora, o que representaria um desperdício

irreparável na operação do sistema.

5. Revitalização e qualidade da água captada

A diferença entre as verbas orçamentárias alocadas para a transposição e para a

revitalização da bacia do São Francisco constitui, segundo os críticos, um dos mais

graves pontos de tensão do projeto. O programa de revitalização da bacia do rio, que

inclui ações voltadas para o reflorestamento de áreas críticas, a construção de barragens

em rios afluentes, a melhoria da calha navegável do trecho médio, o tratamento de

esgotos das cidades e vilas ribeirinhas, o controle da irrigação e a educação ambiental,

teve, no Plano Plurianual 2004-2007 do governo federal, previstos investimentos de

96,2 milhões de reais. O projeto de transposição, por seu turno, foi contemplado com

624 milhões de reais, prevendo-se, como foi informado anteriormente, investimentos

totais de 4,5 bilhões de reais.

Um dos argumentos mais fortes contra o projeto reside no fato de que se pretende tirar

água de um rio combalido pela degradação ambiental. O despejo constante de esgotos

domésticos e industriais no rio e nos seus principais afluentes gerou um rio de águas

sujas, com vários trechos poluídos. Sem um abrangente programa de saneamento básico

na bacia, será essa a água que chegará ao semi-árido.

6. Impactos ambientais na região receptora

São imprevisíveis as conseqüências ambientais, para a região receptora, da interligação

da bacia hidrográfica do São Francisco com a rede hídrica do semi-árido. A distribuição

das espécies animais e vegetais pode ser afetada; podem ocorrer problemas de

salinização e espécies daninhas do São Francisco, como a piranha, a pirambeba e o

candiru, podem ser introduzidas nos rios receptores.

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O próprio Estudo de Impacto Ambiental preparado para o projeto identifica e analisa

alguns desses potenciais impactos negativos sobre a região receptora: modificação da

composição e redução da biodiversidade das comunidades biológicas aquáticas nativas

das bacias receptoras; perda e fragmentação de cerca de 430 hectares de áreas com

vegetação nativa e de habitats de fauna terrestre; risco de introdução de espécies de

peixes potencialmente daninhas ao homem nas bacias receptoras; interferência sobre a

pesca nos açudes receptores; modificação do regime fluvial das drenagens receptoras.35

7. Outorgas de água

Levantamentos realizados pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco indicam

que, do total de 360 metros cúbicos de água por segundo que podem ser retirados do rio,

335 metros cúbicos já estão outorgados. Para a transposição restariam, portanto,

somente 25 metros cúbicos, e não os 60 metros cúbicos, em média, demandados pelo

projeto. Essas outorgas de uso de água constituem documentos protegidos legalmente,

com longos períodos de vigência (15 a 20 anos) e não são facilmente revogadas.

Portanto, os 25 metros cúbicos por segundo disponíveis seriam suficientes apenas para

suprir a demanda nos anos de estiagem – os 26 metros cúbicos previstos – e não para

fornecer volumes mais altos de captação, como prevê o projeto. O sistema funcionaria,

assim, com alocação de 100% da vazão efetivamente disponível.

8. Situação do alto e médio São Francisco

Segundo alerta José Aparecido Gomes Rodrigues, coordenador geral das promotorias de

justiça de defesa do rio São Francisco, o Estudo de Impacto Ambiental do projeto de

transposição “não contempla os impactos verificados no Alto e Médio São Francisco,

que contribuem com cerca de 95% das vazões ofertadas na bacia, o que evidencia uma

visão simplista e despreocupada com parte fundamental do empreendimento, que é

justamente a bacia doadora. O tema da revitalização sequer conta com projeto suficiente

a atender o avançado estado de degradação da bacia”.36

35 Ministério da Integração Nacional, op. cit., p. 11-8 a 11-108.36 José Aparecido Gomes Rodrigues. Aspectos legais da transposição. Jornal Manuelzão, mar. 2005, p. 3.

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Na perspectiva da abordagem aqui desenvolvida, a efetivação da transposição

provocaria alterações irreversíveis na paisagem socioambiental do vale do rio, que

consolidariam a transformação do meio natural são-franciscano num meio técnico. A

implantação de próteses tecnológicas, constituídas pelos diversos elementos maquínicos

que formariam o sistema hidráulico, elétrico e mecânico da transposição, reforça a

abordagem do rio como mera calha de condução de água, em detrimento de uma

perspectiva que o considere sistema vivo e integrado, sensível a alterações impostas

pela ação antrópica, que interferem nos seus múltiplos elementos formadores.

O ponto de vista do rio-calha foi bem expresso na fala de um dos engenheiros

contratados como consultores do projeto, cujo nome omito, num debate público sobre a

transposição, ocorrido na Assembléia Legislativa de Minas Gerais em 21/10/2003:

É claro que a morte das nascentes, em função da não-proteção das margens e da retirada da mata ciliar, altera o regime e faz com que alguns cursos sumam. Aliás, o próprio nome “cílio” já significa proteção da água e da nascente. Em termos de balanço global, a calha principal do rio onde as águas fluem não muda, até que um estudo demonstre isso. Mas até o momento não o conhecemos. De repente, se houvesse, seria interessante encaminhá-lo, pois nos interessa até do ponto científico.37

Essa perspectiva desintegrada da bacia, que não percebe as inúmeras relações existentes

entre os seus elementos formadores, não se restringe à análise do meio natural. Ela

também omite a complexa e frágil rede de relações estabelecidas entre esse meio natural

e as populações tradicionais que sucessivamente vêm habitando o vale do rio. Como

alerta a pesquisadora Renata Andrade,

Os estudos do GEF e o “novo” Projeto de Transposição do São Francisco revelam “imaginários ambientais” que vêm apagando as relações de uso e ocupação entre comunidades tradicionais e o rio e seu território anfíbio. Afinal, muitas dessas várzeas e ilhas foram e ainda são ocupadas por povos indígenas e pescadores-lavradores de origem africana há mais de quinhentos anos. Esses estudos vêm omitindo os conflitos entre essas comunidades e os outros usuários sobre o uso das águas e da ocupação de seu território ao longo do São Francisco no passado e no presente. Esses “imaginários ambientais” tentam limitar o tipo de reivindicações epistemológicas, políticas e territoriais que essas comunidades tradicionais podem e poderão fazer sobre o Rio São Francisco no presente e no futuro.

A marginalização dos varzeiros e dos pescadores artesanais nas políticas de recursos hídricos não é um resultado somente de como a natureza (do rio, neste caso) tem sido concebida por estudos técnicos. Esse processo de marginalização é também facilitado através de instrumentos legais e políticos, utilizados a favor do poder coercivo do Estado e das grandes

37 Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Notas taquigráficas..., p. 59-60. Grifos meus.

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indústrias, lobbies e investidores com interesse de expandir seus negócios na região. Assim, devem-se discutir os conceitos de modernidade e progresso, cultura e natureza, imperialismo, localismo e globalização, que têm se infundido profundamente nas velhas e novas instituições do governo que atuam hoje na região. Ao observar uma série de falhas cognitivas e deslocamentos discursivos por parte dessas instituições [...], pode-se evidenciar a omissão institucional que evita olhar e reconhecer a presença física e política das comunidades tradicionais que aí vivem. Essas falhas e esquecimentos não são inocentes; elas justificam os interesses políticos e territoriais da elite brasileira, ligada a uma elite global, no território tradicionalmente ocupado, por exemplo, por descendentes de índios e negros pescadores e varzeiros no Rio São Francisco e em outros rios brasileiros.38

Uma abordagem integrada das relações entre homem e meio natural recupera

igualmente a complexidade da existência das populações habitantes do semi-árido.

Estudiosos e analistas do projeto de transposição têm ressaltado o fato de que podemos

estar diante de mais uma solução de engenharia hidráulica para um problema cuja raiz

está nas formas de ocupação e uso da natureza no interior nordestino. Para Marco

Antônio Tavares Coelho,

ao invés de se “combater” as secas com soluções de engenharia hidráulica, deve-se desenvolver uma política de convivência com o semi-árido. [...] O projeto baseia-se na tese falsa de que a escassez de água na região impede a sobrevivência em condições dignas das populações. É falsa porque não responsabiliza a estrutura social, econômica e política pelo atraso e pela miséria no Nordeste.39

Por outro lado – e esta é uma das contradições mais graves do projeto de transposição –,

vive-se pobremente e sem água a poucos quilômetros das margens do São Francisco. O

regime hídrico, que torna secos os pequenos corpos de água da bacia em boa parte do

ano; a degradação ambiental, que acelera drasticamente esse efeito; a carência de

recursos das populações e municipalidades locais para realizar pequenas obras de

abastecimento de água são, entre outras, razões para esse paradoxo.

A pobreza das comunidades ribeirinhas, observável por quem viaja pelo rio, é

confirmada pelos dados estatísticos governamentais. A média dos índices de

desenvolvimento humano (IDH-M) dos municípios ribeirinhos − 0,648 − situa-se

significativamente abaixo da média nacional − 0,699.

38 Renata Andrade. Um povo esquecido... ComCiência, 10 fev. 2005.39 Marco A. T. Coelho. Projeto beneficia privilegiados. Folha de São Paulo, 9 out. 2005. Especial, p. 6.

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IDH-M − Média entre os valores do Índice Municipal de Desenvolvimento Humano para cada categoria.

Fonte: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Dados de 2000. www.pnud.org.br

Como observou Henrique Halfeld – o mesmo Halfeld que é um dos primeiros técnicos a

defender a transposição –, ainda no século XIX, a proximidade do rio não é garantia de

fartura de água:

Já mencionei que todos os rios e riachos, que nestas paragens entram para o Rio de S. Francisco são, na maior parte do ano, secos e só dão água durante a estação chuvosa; assim também acontece com o rio do Xingó. Todavia aparece em alguns lugares, água no fundo deste riacho, abrindo-se neles cacimbas nas areias ou no cascalho; começando a cavar como acabei de observar, no fundo do leito do Xingó, junta-se imediatamente o gado da vizinhança à roda da pessoa ocupada com o referido trabalho observando-o aflito de partilhar do efeito!

O rio está próximo nestas paragens, porém os alcantilados e escarpados barrancos de suas margens, não oferecem descida pra aqueles pobres animais, os quais estavam em extrema magreza de pele e osso somente, e cambaleando para semelhantes bebedouros. Falou um dos engenheiros ao serviço da província da Bahia, de abrir em semelhantes paragens fontes artesianas, porém seria trabalho e despesa perdida, pela razão de ser o terreno

49

Gráfico 2 - IDH-M médio dos municípios banhados pelo Rio São Francisco, agrupados por estado, e dos municípios brasileiros

0,520,540,560,580,6

0,620,640,660,680,7

0,72

IDH-M

Municípios ribeirinhos deSergipeMunicípios ribeirinhos deAlagoasMunicípios ribeirinhos daBahiaMunicípios ribeirinhos dePernam bucoMunicípios ribeirinhos deMinas GeraisConjunto dos m unicípiosribeirinhosConjunto dos m unicípiosbrasile iros

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primitivo, que não as pode produzir, e ainda que na profundidade do poço feito nesta expectativa, por acaso se achasse água, nunca ela havia de subir sem meios artificialmente aplicados, como bombas, etc.40

Corpos de água secos em boa parte do ano; gado abatido pela sede; necessidade de se

cavarem cacimbas para achar água; soluções como a construção de poços artesianos

inviabilizadas por insuficiência técnica: dir-se-ia que o pesquisador percorria e descrevia uma

paisagem do semi-árido. Como observou a equipe de pesquisa que produziu este estudo,

pouco mudou quanto à insuficiência de água no vale do São Francisco. Conseguir água limpa

a poucos quilômetros das margens continua a ser uma empreitada difícil, onerosa e

freqüentemente mal sucedida. Corpos de água cujo consumo humano foi inviabilizado pela

poluição doméstica e industrial; alto custo, para as populações ribeirinhas pobres, dos

recursos técnicos para conduzir a água até os povoados; extinção de inúmeros corpos de água

pela degradação ambiental são fatores que se juntam para produzir, a curta distância das

margens de um dos maiores rios brasileiros, cenas que parecem imutáveis. Ainda hoje se pode

acompanhar, como o fez a equipe de pesquisa, a mulher que faz dezenas de vezes o mesmo

percurso acidentado entre a escola rural e a beira do rio para trazer água em panelas; o menino

que aciona inutilmente o sistema de bombeamento de água para a comunidade; o jovem que

circula sem receio por um pântano mal cheiroso, que outrora, antes de ser abatido pela

degradação, fora um curso de água corrente; o carroceiro que vive de retirar água do rio e

vendê-la em baldes; e, finalmente, a cena quase idêntica à que presenciou Halfeld um século e

meio atrás, formada por bovinos enfraquecidos agrupados nas proximidades de um poço de

água estagnada.

40 Henrique Halfeld. op. cit., p. 45.

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A recepção das políticas públicas para o vale e a participação popular no médio

superior São Francisco

Maria Beatriz Gontijo dos Santos

Introdução

O objetivo específico deste capítulo é avaliar a percepção e o comportamento político-

ambiental das populações dos municípios mineiros do Médio São Francisco, levando-se

em conta o nível de informação sobre as políticas públicas que envolvem a região, com

destaque para o projeto de transposição do governo federal, e as formas de participação

ou compromisso de ação em atividades voltadas para a recuperação e conservação do

rio.

As fontes utilizadas são os textos contendo as transcrições das entrevistas gravadas, em

fita cassete, feitas pelos pesquisadores, com a população local.

O público pesquisado

Foram selecionadas pessoas formadoras de opinião ou que têm uma relação de

proximidade com o rio, com idade acima de 16 anos, moradores nos municípios

visitados, que se encontravam nos locais visitados ou que ocupam cargos públicos no

município visitado. Foram realizadas 88 entrevistas, que formam o seguinte universo de

entrevistados, classificados por ocupação:

Agente da sociedade civil (sindicatos, associações, colônias de pescadores, etc.) – 7

Agente político (prefeitos e vereadores) – 8

Aposentado ou “encostado” – 5

Balseiro – 1

Carroceiro – 1

Carvoeiro – 3

Comerciante – 2

Dona de casa – 3

Empresário – 3

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Estudante – 2

Funcionário de serviços de água e esgoto, inclusive Copasa – 8

Lavrador – 2

Lavrador vazanteiro – 3

Lixeiro – 2

Pequeno empresário (bares, pequenos restaurantes, etc.) – 4

Pescador profissional – 11

Policial militar – 1

Produtor de peixe – 1

Produtor rural – 7

Professor – 3

Servente escolar e auxiliar em escola – 2

Servidor público, inclusive cargos de confiança (secretários e diretores), exceto dos

serviços de água e esgoto – 9

Taxista – 1

Técnico agrícola – 2

Técnico ambiental – 1

Técnico em agropecuária – 1

Técnico florestal – 1

Tratorista – 2

Ocupação não identificada – 9

Um breve tratamento estatístico

Faremos uma rápida análise quantitativa para se ter uma noção da percepção dos

entrevistados sobre os quatro fatores básicos da investigação: o nível de informação

sobre os problemas ambientais da bacia do rio; a participação em ações em prol da

preservação da bacia; o nível de informação e a opinião sobre o projeto de transposição.

Responderam ao questionário 88 pessoas.

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Fatores Quesitos Pessoas

entrevistadas

% do total de

88 pessoas

entrevistadasInformação sobre os

problemas

ambientais

É informado 60 68Não é informado 6 7Dado não fornecido 22 -

Participação em

ações em prol da

bacia

Participa 34 39Não participa 30 34Dado não fornecido 24 -

Informação sobre o

projeto de

transposição

É informado 53 60

Não é informado 11 13

Dado não fornecido 24 -

Opinião sobre o

projeto de

transposição

É favorável sem

restrições

9 10

É favorável, desde

que acompanhado da

revitalização da bacia

11 13

É contrário 28 31Não tem opinião

formada

5 6

Não se aplica 35 40

A seguir, apresentamos os resultados mais relevantes da análise.

Quanto ao fator Informação, a grande maioria tem consciência da degradação ambiental

do Rio e da região (68%). O nível de informação sobre o projeto é apenas um pouco

menor, 53 pessoas, ou seja, 60% dos entrevistados, já o conheciam. O fator Informação

merece dois destaques: primeiro, entre aqueles que conhecem os problemas ambientais,

apenas 11% não conhecem o projeto da transposição; segundo, todos aqueles que não

têm conhecimento sobre os problemas ambientais nunca ouviram falar da transposição.

O fator Participação em atividades em defesa da recuperação e da conservação do meio

ambiente da região mostrou-se razoavelmente alto: 34 pessoas responderam

afirmativamente, ou quase 40% dos entrevistados. Esse resultado, em parte, já era

esperado, porque no processo de seleção do perfil dos entrevistados entre os traços

escolhidos estão “representantes da sociedade civil” e “agentes políticos”. Mas ainda

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assim, o resultado mostrou surpresas interessantes porque a relação entre

“representantes da sociedade civil” e “agentes políticos” e participação política não se

mostrou absoluta. Esses dois grupos somam 24 entrevistados, dos quais 10 responderam

que não participam; entre esses estão dois vereadores, sendo um deles também

presidente de uma associação de vazanteiros.

Quanto à opinião sobre o projeto de transposição, chama a atenção o pequeno número

de entrevistados que o apóiam de forma irrestrita - apenas 10% do universo pesquisado.

Aqueles que o apóiam desde que seja implantado também um programa de revitalização

da bacia somam 11 pessoas (13%). Portanto, o projeto é aceito por apenas 23% (20

entrevistados) do universo pesquisado. Mesmo quando é feito o recorte incluindo

apenas os entrevistados que o conhecem, a percentagem não chega nem a 40 % . Por

outro lado, aqueles que são contra somam 31% do total. E entre os que conhecem o

projeto de transposição, mais da metade (52%,) não o aprovam, categoricamente.

Deve-se também apontar que alguns reclamaram da falta de informações técnicas para

poderem dar uma opinião, o que demonstra falhas na divulgação.

Como esta pesquisa tem por finalidade fazer uma análise qualitativa, os dados são

considerados apenas uma indicação das tendências responsivas. Não foram levados em

conta os dados socioeconômicos dos entrevistados e nem foram feitos recortes sobre

outras categorias como gênero, idade e escolaridade.

Análise dos textos

Fundamentos teóricos e metodológicos

O trabalho de análise dos textos das transcrições está embasado na análise de discurso

da escola francesa, uma disciplina da lingüística que estuda as relações entre a

linguagem e a sociedade. O seu objeto de estudo é o discurso como o enunciado de um

sujeito concreto, em condição de intersubjetividade, demarcado pela situação espacial e

temporal, e determinado, em parte, pela ideologia. Portanto, o discurso é um objeto

histórico e social construído no ato da enunciação e não um conjunto de enunciados

dispersos e apócrifos, como os exemplos encontrados nas gramáticas normativas. A

finalidade da análise é revelar o sentido do discurso, considerando que o enunciado não

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se encontra fora do contexto, mas na relação que se estabelece no momento do ato

discursivo. Desse modo, é necessário estabelecer a relação entre o enunciado e as suas

condições de produção para se alcançar ou revelar o sentido do discurso. Esse método

de análise lingüística exige uma leitura em movimentos para dentro e para fora do texto,

a fim de se tomar conhecimento da situação lingüística e da situação sociotemporal do

enunciado, o que obriga o analista de discurso a fazer uso de conhecimentos lingüísticos

e não lingüísticos. Essa é uma das razões porque a análise do discurso da escola

francesa mantém relações próximas com outras áreas das ciências humanas, como

história, sociologia e psicanálise.

Ao levantar as condições de produção do discurso, toma-se conhecimento das condições

lingüísticas e extralingüísticas dos enunciados, como os traços do sujeito enunciador, o

interlocutor, o tempo e o espaço sócio-históricos, as formações discursivas presentes, o

vocabulário utilizado. Do entrelaçamento dos fatores sociais com os fatores lingüísticos

é que surge o sentido do discurso.

O método da análise consistiu de uma leitura inicial, em que foram extraídos os trechos

que remetem aos temas centrais de cada área temática. Os trechos selecionados foram

indexados com as palavras-chave da área temática a que se referiam. Essa indexação

permitiu que a análise de cada trecho fosse feita dentro do texto integral, ou seja, em

um movimento que permitia ao pesquisador entrar no texto indexado referente à sua

área temática, e, ao mesmo tempo, voltar-se para os trechos fora da área textual que

continham o seu tema de estudo. O traço importante dessa metodologia é que a

interpretação dos enunciados é assegurada pela manutenção do co-texto, que são as

seqüências verbais encontradas antes ou depois da unidade a interpretar. Em outras

palavras, cada volume foi interpretado como um único texto em que todas as partes

eram consideradas importantes, mesmo que não tivessem uma relação direta com o

trecho analisado.

Para a análise qualitativa, serão considerados apenas os textos dos entrevistados que se

pronunciaram sobre as questões levantadas no roteiro da entrevista de campo. Assim, do

universo de 88 entrevistas, serão consideradas 66 entrevistas.

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Procura-se avaliar, por meio da análise dos discursos (o que diz e como diz) dos

entrevistados, o seu comportamento político-ambiental, considerando apenas formas de

participação e o nível de informação sobre as condições ambientais e as políticas

públicas que envolvem a região do Médio São Francisco, em Minas Gerais.

No fator “nível de informação” do público pesquisado, levou-se em conta,

indiferentemente, a informação recebida através da mídia e aquela adquirida por meio

de contatos sociais, como em reuniões de associações ou repassadas por agentes

públicos. Também foram consideradas importantes as observações empíricas de cada

um.

Enfim, o estudo limitou-se aos aspectos relacionados com o modo de percepção, de

ação e participação política dos entrevistados. Como foi dito acima, os dados referentes

a categorias de gênero, idade, escolaridade e condições socioeconômicas não foram

considerados, o que significa que, para os termos da análise, os entrevistados foram

considerados apenas em sua condição de cidadão.

Para a avaliação do comportamento político-ambiental do grupo entrevistado, os

conteúdos dos textos foram distribuídos em três grandes temas: o nível da informação e

a percepção sobre questões ambientais, a participação política e as propostas dos

entrevistados. Os temas principais foram divididos em tópicos inter-relacionados.

Além disso, foi acrescentado um tópico contendo uma análise de textos, que segue a

abordagem da escola francesa de análise do discurso, com objetivo de buscar o sentido

do discurso presente na fala dos cidadãos.

Nesta parte do estudo, serão analisadas somente as entrevistas daqueles que

responderam às perguntas sobre os três temas básicos da pesquisa.

O estudo segue o roteiro abaixo descrito:

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I – O nível da informação e a percepção sobre questões ambientais

1. o nível da informação do entrevistado sobre o projeto do Governo Federal de

transposição do rio; e sua posição favorável ou contrária;

2. a percepção dos problemas ambientais na região e suas conseqüências;

3. a percepção dos sujeitos causadores dos problemas ambientais;

4. a identificação e denominação dos agentes responsáveis pelos problemas ambientais;

5. a identificação e denominação dos órgãos e entidades envolvidos com o meio

ambiente na região;

6. a percepção das ações governamentais voltadas para o Rio.

II - As formas de participação na conservação e recuperação do Rio

1. as ações efetivas realizadas em defesa e recuperação do Rio;

2. as estratégias de mobilização popular;

3. as iniciativas particulares;

4. os instrumentos de participação da sociedade utilizados ou existentes na comunidade:

denúncias, audiências públicas, conselhos municipais, promotorias, etc.;

5. o nível de preparação das comunidades para assumirem, individual e coletivamente,

responsabilidades sobre as questões ambientais e de desenvolvimento.

III – As propostas

1. a disposição de trabalhar pelo Rio;

2. as propostas para recuperação da bacia;

3. as perspectivas para o Rio.

IV – Uma análise do discurso

V – Considerações finais

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I – O Nível da informação e a percepção sobre questões ambientais

1. Qual o conhecimento do entrevistado sobre o projeto do Governo Federal de

transposição do Rio. Sua posição favorável ou contrária

Em nenhuma entrevista houve qualquer reação de entusiasmo ou de confiança no

projeto de transposição do Rio. Ao contrário, existe uma desconfiança dos objetivos do

projeto, aliada a um temor de suas conseqüências. Alguns consideram que o projeto não

passa de jogo político-eleitoral, outros vêem interesses econômicos envolvendo grandes

fazendeiros e empresas no Nordeste. Quanto às possíveis conseqüências ambientais,

existe um forte temor de ocorrerem grandes desastres ambientais na região. A grande

maioria dos que são contrários acham que as águas do Rio vão baixar e até secar.

Os fatores que surgem como definidores da posição do entrevistado em relação ao

projeto de transposição do Rio São Francisco são: em primeiro lugar, o grau de acesso

às informações sobre o projeto; em segundo, o nível de envolvimento com as questões

ambientais; e em terceiro, o nível de envolvimento com as questões sociais.

Quando o entrevistado tem acesso a informações sobre os objetivos e as possíveis

conseqüências do projeto, ou quando tem forte envolvimento com as questões de meio

ambiente, ele se posiciona de forma contrária. Como nos exemplos:

“porque vai levar a água pra lá, e o povo ali ficará sem água; a água transplantada será

usada por grandes fazendeiros para irrigação de grandes plantações” (v. 2, p. 118);

“sabemos que os irmãos do Nordeste têm dificuldades, mas ... é tirar a roupa de um nu

para vestir o outro, porque o Rio vai baixar a água e vai secar.” (v. 2, p. 130).

Por outro lado, quando o entrevistado tem poucas informações, ou quando tem forte

envolvimento com questões sociais, o posicionamento é favorável à transposição. Como

nos exemplos:

58

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“Tem muitas pessoas passando por privação d’água... Nós estamos passando por

dificuldade de água. Tem lugar que é pior. Nós todos somos cidadãos de Deus. Então

nós temos esse direito, ao menos da água.” (v. 2, pp. 138-139).

Entrevistado: “Não vai atingir a nossa cidade aqui? Eu acho que vai, não vai?”

Entrevistadora: “O que o senhor acha disso?”

Entrevistado: “Moça, aí é o tal problema. Tem gente necessitando da água e nós com

abundância de água, não é? Então, eu concordo, eu acho que é certo, porque se é para

servir à humanidade, eu concordo em levar a água.” (v. 1, p. 3).

Quando acontece o envolvimento com questões sociais e ecológicas ao mesmo tempo, o

entrevistado costuma balancear as duas situações e sugerir que a transposição seja

realizada após a implantação de um programa de revitalização do Rio.

As justificativas para as posições podem ser resumidas da seguinte forma:

A favor: “devemos ajudar os menos favorecidos, mesmo que não tenhamos o

suficiente”;

Contra: “O Rio vai secar”.

2. A percepção dos problemas ambientais na região e das suas conseqüências

Segundo os dados da pesquisa de campo, é grande o número de pessoas entrevistadas

que têm consciência da degradação ambiental do sistema hídrico do Rio, e de toda a

região em que vivem. Além da consciência da degradação, o nível de conhecimento do

sistema ecológico também é bastante grande. Todos os entrevistados sabem de onde

vem a água limpa – rios ou poços, e para onde vai a água suja – para os rios. Quase

todos sabem onde nasce e para onde vai o Rio. Todos salientam a importância dos

afluentes e das nascentes na própria existência do Rio. As veredas, os ribeirões e riachos

chegam a ser tratados com intimidade e afeto.

Apesar de todos os problemas, em geral, os rios são também lembrados como lugar de

lazer e de descanso. As lavadeiras sempre falam com alegria do seu trabalho, não

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reclamam se têm que caminhar alguns quilômetros para chegar na beira do rio. Para

elas, o momento de lavar a roupa no rio é, mais do que um trabalho, um momento de

rara descontração e divertimento.

Elisabete Gontijo

Figura 7 – Lavadeiras no rio São Francisco, em Pirapora

Os problemas mais citados em relação às águas são: o assoreamento dos leitos dos rios,

a diminuição do volume das chuvas, a diminuição do volume de água nos cursos

d’água, a diminuição da quantidade de peixes, a mortandade de peixes, o lixo jogado

nos cursos d’água, o esgoto, o desbarrancamento das margens, desmatamento do topo

dos morros, das matas ciliares e das matas de veredas, a falta de preservação das

margens, os pivôs que puxam água para as grandes lavouras, e a surpreendente falta de

água nas pequenas comunidades.

“As lagoas secaram. Estão tirando água das barragens para a lavoura e a água faltou ali

também, já não tem mais lavoura.” (v. 1, p. 63)

“O desaparecimento das lagoas...” (v. 1, p. 121)

“A sujeira está demais.” (v. 1, p. 23)

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“O peixe minguou muito. As barragens fizeram minguar o peixe.” (v. 1, p. 61)

Na percepção dos moradores, o assoreamento dos rios é a causa mais evidente ou mais

saliente dos desastres ambientais. Geralmente é a primeira a ser citada: os montes de

areia estão à vista de todos. É só chegar à beira do Rio São Francisco, que qualquer um

pode ver as águas correndo a uma enorme distância das margens, as praias formadas

pelo areal acumulado, as ilhas surgidas no meio de seu leito, os diques naturais. As

pessoas não se conformam. Entretanto, uma boa parte dos entrevistados sabe que o

assoreamento não é causa, e sim conseqüência das atividades econômicas realizadas de

forma destrutiva comuns na região, como a produção de carvão de mata nativa, o

reflorestamento de eucalipto, a criação de gado, e a irrigação por meio de poderosos

pivôs.

“A criação de gado, os cascos dos animais causam desbarrancamento e assoreamento do

rio” (v. 1, p. 67)

“Tiram água do rio ilegalmente.” (v. 1, p. 71)

“Má exploração, falta de orientação em relação ao rio e desmatamento das margens.

Secaram as nascentes e as veredas.” (v. 1, p. 119)

Os abusos dos empreendedores que causam a degradação ambiental, combinados com a

precária fiscalização, geram sensações de abandono e revolta.

“Não tem ninguém para zelar, para cuidar da natureza, todo mundo só quer aproveitar,

gigolar a natureza.” (v. 1, p. 120)

Impressiona também a quantidade de rios, ribeirões, riachos, córregos, veredas e lagoas

que secaram. Todos os entrevistados lembram de alguns que conheceram e que não

existem mais, ou que correm só na época das águas, ou viraram brejos.

Algumas causas importantes do assoreamento dos rios foram pouco lembradas, como a

extração de areia e as estradas que “carreiam toneladas de terra para os rios” e cortam os

cursos das águas, causando a extinção de nascentes e afluentes.

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“Os assoreamentos causados pelas estradas.” (v. 2, p. 105)

A extração de areia só foi comentada uma vez, por um entrevistado que não a considera

prejudicial (v. 2, pp. 88 e 101).

Em relação à terra, os problemas mais citados são o reflorestamento de eucalipto, a

produção do carvão, o destino do lixo, principalmente os plásticos, pelas cidades e pelos

rios, e a capina química, usada na região de Pirapora e Buritizeiro. O reflorestamento

de eucalipto e, em menor quantidade, o de pínus, surge como o grande responsável por

quase tudo de ruim que aconteceu nos últimos 30 anos. Em tudo ou quase tudo, a sua

presença é sentida: no desmatamento que ele causou, nas águas assoreadas, nos bichos

que não existem mais, no cheiro que espanta até os passarinhos, no fato de não gerar

empregos e de concentrar renda, na completa ausência dos empresários responsáveis. E

depois disso tudo, vieram as grandes monoculturas de soja e café que funcionam quase

nos mesmos termos que o reflorestamento.

“As florestas, as matas estão acabando. Então através das matas que estão acabando, os

passarinhos também vão sumindo, caçando outro local para viver, onde tem mais mata.

Então tem pouco passarinho.” (v. 1, p. 37)

A produção de carvão de mata nativa é também sempre responsabilizada pelo

desmatamento.

“As carvoarias estão acabando com as matas. O inverno, o tempo das chuvas fica mais

curto ainda. Quem atrai a chuva são as matas, então afeta o rio.” (v. 1, p. 37)

No entanto, a sua importância como meio de subsistência da população rural mais pobre

faz com que seja tratada até com certa complacência. No discurso, quase todos são,

aparentemente, contra o carvão e o desmatamento. Os poucos que se declaram a favor

da produção carvoeira sempre se baseiam no fato de ela ser o único meio de vida dos

pobres. Como afirma a moradora de Poçõezinhos, uma pequena comunidade que vive

de carvão:

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“As pessoas, tem hora, que mexem com carvoeira. Elas mexem com um forninho,

porque, também, se eles não mexer com isso, eles já tinham morrido de fome!... Tem

uns que mexem com um forninho... Outros mexem com outros. Mexe mesmo é com

carvão. Nós só mexemos é com isso mesmo. (v. 2, p. 137)

Nesse trecho é possível detectar pontos importantes para se identificar a percepção do

morador local sobre a conservação ambiental e a sua própria sobrevivência; por isso,

receberá uma análise específica no item “Análise Discursiva”.

Em Pirapora e Buritizeiro existem alguns problemas que são específicos da região: a

garimpagem que joga mercúrio nas águas, e a capina química, ou uso indiscriminado de

herbicidas às margens dos rios.

Elisabete Gontijo

Figura 8 - Garimpo de diamante nas proximidades do rio do Sono, no povoado de Paredão de Minas, em Buritizeiro

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“Os agricultores, produtores rurais, ao lado do rio, estão fazendo a capina. A capina

química, e faz bem ao lado do rio. E aí, quando chove, a enxurrada vem, e joga esses

produtos químicos no rio, e acontece poluição.” (v. 3, p. 30)

Entre todos os problemas ambientais e sociais que assolam a região, talvez o mais

surpreendente seja a falta de água, que acontece de forma generalizada nas pequenas

comunidades. A degradação das nascentes, a poluição de rios, e a morte de um número

incalculável de veredas e pequenos cursos d’água estão causando a desertificação da

região.

“Pois é, porque aquele sertão lá não é fácil não, é difícil ter água. Os pequeno passa por

muito aflito por falta de água.” (v. 3, p. 76)

3. A percepção dos sujeitos causadores dos problemas ambientais

Os agentes causadores da devastação ambiental não são facilmente identificados. Em

geral usam frases com sujeito indefinido, ou com termos genéricos para o sujeito, como:

desbarrancam, desmatam, o pessoal, as pessoas:

“O pessoal da beira da lagoa ficam jogando esgoto (v. 1, p. 2)”.

“Devido ao abuso das pessoas em degradar os barrancos, não respeitar a natureza, o

ribeirinho puxa água ilegal” (v. 1, p. 11).”

“Camaradas puxa água do rio, acabaram com tudo” (v. 1, p. 20)”.

“Mas o povo não tem compreensão, não ajuda também. Eles mesmos jogam, o pessoal

joga o lixo na beira do rio” (v. 1, p. 34).

“É uma questão meio difícil de controlar, porque o povo não ajuda (v. 1, p. 34).”

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“Eles jogam plástico no meio do quintal, aí vem o redemoinho e sempre o redemoinho

carrega para o meio da cidade. E então é desse jeito. A limpeza todo dia nós fazemos,

mas o povo não ajuda.” (v. 1, p. 37)

Os exemplos acima mostram a dificuldade que muitos têm de identificar as causas e os

responsáveis pela degradação ambiental. Nesses casos, os primeiros a serem lembrados

são aqueles que estão mais próximos, que estão à vista de todos e são conhecidos por

todos: os mais pobres e os mais fracos:

“a população não ajuda, tem gente que joga o lixo sem estar no horário, no rio, em

qualquer lugar” (v. 1, p. 118)

“A agricultura familiar que tá querendo plantar quase dentro do rio.” (v. 1, p. 65)

“Pequenos fazendeiros que invadem o rio.” (v., 1, p. 71)

Os pequenos fazendeiros que criam gado na beira dos rios: “A criação de gado, os

cascos dos animais causam desbarrancamento e assoreamento do rio.” (v. 1, p. 67)

“Os assentamentos. São pessoas sem cultura nenhuma de preservação do meio

ambiente, desmatam, queimam as margens do rio. Se não tiver uma fiscalização em

cima desse pessoal, o rio nosso está a um passo de ser destruído.” (v. 1, p. 111)

“O povo está invadindo, degradando.” (v. 1, p. 121)

“O êxodo rural causa problemas porque as pessoas saem da roça e vão morar em favelas

na beira do rio nas cidades, e plantam nas vazantes do rio.” (v. 2, p. 103)

“A carvoaria é culpada pelo desmatamento.” (v. 1, p. 67)

Já outros entrevistadores conseguem ir além da observação empírica, ao identificar e

nomear processos econômicos ou políticos como as causas fundamentais que levaram a

esta situação social e ambiental:

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“A busca desenfreada do lucro dos grandes latifundiários.” (v. 1, p. 120)

“A culpa é dos políticos.” (v. 2, p. 107)

4. A identificação e denominação dos sujeitos causadores dos problemas ambientais

Nos relatos sobre a degradação e poluição, muitas vezes, o falante não se sente à

vontade para expressar os nomes dos causadores, mesmo sabendo quais são. Na

situação anterior, investigou-se a percepção sobre os causadores. Nesta, é investigada a

capacidade de nomeá-los. É comum o entrevistado saber de quem se trata, mas não diz,

explicitamente, um nome próprio que identifique um sujeito determinado. Esse

comportamento lingüístico pode indicar uma recusa em denunciar, por constrangimento,

temor ou fidelidade, aqueles que transgridem as normas de preservação ambiental.

Como não se sente à vontade para expressar os nomes dos envolvidos em problemas

ambientais, o entrevistado recorre a expedientes gramaticais como o emprego de termos

genéricos como “as pessoas” ou “a firma”, “ o reflorestamento”, na função de sujeito,

ou o emprego de frases com o pronome “eles” e outras com sujeito indeterminado,

como nos exemplos abaixo:

“Eu sou contra carvão, carvoeira, eu sou contra essa reserva que eles têm aí de

eucalipto, que é uma aberração, que eles tem aí.” (v. 2, p. 115)

“Eles fazem reunião e pede para lavar a roupa no rio. Mas o rio é muito longe.” (v. 2, p.

135)

“Nosso município acabou depois que começou a fazer esses reflorestamentos. Plantou

eucalipto, depois que cortou a mata nativa, de natureza cortou, e plantou eucalipto e

deixou aí.” (v. 2, p. 115)

“Invadiram uma área de 2370 hectares, da Fazenda da Beirada que era uma área de

reserva ambiental e biológica. Esse pessoal já teve um mandado, que já foi cumprido, já

tiraram eles de lá, a Polícia veio e despejaram eles.” (v. 1, p. 46)

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“Esses empreiteiros que vieram de Curvelo, que vieram de... Essas firmas que vieram,

de reflorestamento, elas dizimaram as florestas de cerrado de Januária. Plantar?... não

sei o quê. Esse pessoal que veio de Curvelo, de Sete Lagoas aí. Dizimaram as nascentes

do São Francisco”. (v. 2, p. 92)

A não identificação do sujeito causador de impactos no ambiente é mais comum nas

entrevistas gravadas em Manga e Januária. Em Pirapora e Buritizeiro, os entrevistados

já pronunciam com mais freqüência os nomes dos prováveis responsáveis. Essa

mudança de comportamento pode ser explicada pelo fato de Pirapora ser a cidade mais

desenvolvida da região. Sua economia é mais diversificada, e as atividades principais

são indústria, comércio e turismo, enquanto que nas outras cidades o agronegócio é

quase a única atividade econômica. Pode-se dizer que Pirapora tem uma população mais

urbana, com mais condições de participar da vida política. Conseqüentemente, os

moradores do município sentem-se mais à vontade para denunciar.

“Eu tô falando o seguinte, a contaminação desse curso d’água aqui provocado pela

indústria, provavelmente a Santo Antônio, a gente não tem certeza, ela gera um

problema ambiental.” (v. 3, p. 27)

“Aqui no São Francisco, agora mesmo, nós formamos uma comissão de vereadores, e

fomos até Três Marias, por causa da mortandade dos peixes. E descobrimos que no Rio

Abaeté, que também é um afluente do Rio São Francisco, lá estava fazendo a capina

química em grande escala. E nós, até hoje, não conseguimos identificar se essa

mortandade de peixe, está vindo é da capina química, ou se está vindo é da Companhia

Mineira de Metais. Da CMM, que é uma empresa, que fica em Três Marias, que ela

produz zinco e ácido sulfúrico em alta escala.” (v. 3, p. 30)

“A nascente do Formoso hoje está morta. Agora o quê? Há dois anos atrás, chegou uma

firma aqui, denominada de GM. Essa firma, agora nos dias de hoje (há dois anos, foi

ontem) ela simplesmente não respeitou nada. Desmatou até mata, só faltou derrubar os

pés de Buritis. Enquanto não atolava, tava desmatando.” (v. 3, p. 84)

5. A identificação e denominação dos órgãos e entidades envolvidas com o meio

ambiente na região

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Quanto à identificação dos sujeitos envolvidos nas questões ambientais de sua região, os

entrevistados apresentam dificuldades em reconhecer e denominar os órgãos e as

entidades, tanto quanto ao nível de governo (federal, estadual, municipal), quanto no

tocante às competências de cada um. Como bem demonstra o seguinte diálogo:

Entrevistado: “Porque hoje em dia falam que o negócio é reflorestar, mas não é. Ai de

nós se não fosse a Florestal, porque se não existisse a Florestal não tinha mais peixe no

rio igual ao que tem. Com toda a fiscalização da florestal está sendo pouco.”

Entrevistadora: “Quem é essa Florestal?”

Entrevistado: “É o Ibama, não é?” (v. 1, p. 15)

É comum, como foi dito acima, o emprego de frase com sujeito indeterminado,

demonstrando o desconhecimento de quem é a ação do fato relatado, como na frase:

“Eles vieram tentar cavar um poço artesiano aqui, e disse que nessa região aqui eles não

escavariam, porque poderia pegar veia da água contaminada.” (v. 2, p. 136)

Parece haver uma certa superposição de competências entre os órgãos que tratam da

questão ambiental, confundindo os cidadãos. Como fica demonstrado no exemplo

acima, em que o entrevistado sabe que veio alguém furar um poço para a comunidade,

mas não consegue citar o nome de algum órgão. Em outros casos, a expressão “meio

ambiente” é usada em referência a qualquer órgão que trata do assunto:

“O pessoal do Meio Ambiente.”

“Tem o Meio Ambiente aí.”

“Ela é protegida pelo Meio Ambiente federal.” (v. 2, p. 76)

“Comuniquei ao pessoal do meio ambiente e IEF e polícia ambiental.” (v. 2, p. 116)

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“O pessoal do meio ambiente, Ibama, deve correr mais atrás de projetos.” (v. 2, p. 191)

Como bem mostram os exemplos acima, os órgãos mais citados nas situações

envolvendo questões ambientais são Ibama, Instituto Estadual de Florestas e a Polícia,

nas suas variantes.

Mônica Meyer Márcio Santos

Figura 9 – Técnico do Instituto Estadual de Florestas acompanha a equipe de pesquisa no Chapadão dos Gerais, em Buritizeiro

Figura 10 - Placa da Área de Proteção Ambiental da Bacia do Rio Pandeiros, em Januária

Os entrevistados empregam genericamente o termo “governo” para se referir ao Poder

Executivo de qualquer um dos três níveis – municipal, estadual ou federal, ou a

qualquer órgão governamental como ministérios, secretarias, diretorias, polícias militar,

federal ou florestal, institutos que atuam na área ambiental como Ibama ou IEF.

Entre os termos mais empregados, chama a atenção a altíssima freqüência de “Governo

Federal”. Parece que, na percepção dos entrevistados, a expressão “Governo Federal”

simboliza o centro do poder, de onde saem todas as decisões e onde estão as

competências de todas as áreas de atuação governamental, sobre quem cai a

responsabilidade pelos problemas e soluções tanto da área ambiental, quanto de outras

como as citadas: hídrica, florestal, agricultura, assim como emprego, saúde, educação,

energia, estrada, policiamento, fiscalização, etc. Essa desmedida competência atribuída

ao Governo Federal faz sombra às atribuições das prefeituras, que não são percebidas

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como capazes de resolverem os graves problemas ambientais, já que não são muito

citadas, apesar dos problemas estarem dentro dos próprios municípios. Raramente

também são expressos os termos “Governo Estadual”, que é representado por seus

órgãos ou empresas, como IEF, Copasa, Igam, e outros.

A seguir estão relacionados os governos, órgãos, autoridades, programas

governamentais e empresas nomeados:

Governo Federal, União, Ibama, ANA – Agência Nacional das Águas, IEF – Instituto

Estadual de Florestas, Polícia Florestal, Emater, Codevasf, Igam, Copam de Montes

Claros, Copasa (várias), Marinha Brasileira, Cemig, Comitê Provisório do São

Francisco (3), Sudenor, Secretaria Municipal de Saúde de Manga, Câmara Municipal de

Manga, Promotoria Pública (3), Polícia Militar – Agrupamento do Meio Ambiente de

Manga, Cemig, Ministério Público, Iter, Ministério da Integração Nacional, Banco

Mundial, Caíque (3), Conselho do Meio Ambiente de Januária (Codema), Comissão

Parlamentar do Meio Ambiente da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, Ministério

Público de Pirapora, Funasa, Ministério da Integração, Ministério da Saúde, Ministério

do Meio Ambiente, Exército Brasileiro, e o Codema - Conselho do Meio Ambiente já

extinto.

A lista das autoridades mais citadas não está ordenada pelo número de vezes que

apareceram: Presidente Lula, ex-ministro Ciro Gomes, ex-presidente Fernando

Henrique, João Lima, prefeito de Januária (1); deputado federal Fernando Diniz (2),

Senadora Heloisa Helena, José Carlos de Carvalho, secretário do Meio Ambiente de

Minas Gerais , Haroldo Bandeira, ex- prefeito de Manga, Edílio Farias, secretário da

Administração de Januária.

Outras referências institucionais feitas pelos entrevistados foram: a) programas

governamentais: Pronaf, Projeto de Revitalização do São Francisco (v. 3, p. 22); b)

entidades parceiras de campanhas: Sesc, O Boticário; c) empresas citadas como

agressoras do meio ambiente: CMM - Companhia Mineira de Metais, Plantar, GM,

Hotel Canoeiros, Lucape.

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Concluindo, as instituições mais citadas e reconhecidas pela atuação na área ambiental

foram o Ibama, em seguida o IEF, e a Polícia, e as suas variações: Florestal, Ambiental,

Militar, Rodoviária Federal.

“Comuniquei ao pessoal do meio ambiente e IEF e Policia Ambiental.” (v. 2, p. 116)

“O pessoal do meio ambiente, IBAMA, deve correr mais atrás de projetos.” (v. 2, p.

191)

6. A percepção das ações governamentais voltadas para o Rio

Além da complexa distribuição de competências entre os órgãos e instituições que

tratam do meio ambiente, outro entrave para a defesa ambiental na região são os

problemas administrativos porque passam os órgãos de fiscalização. A conhecida falta

de verbas e de pessoal é estímulo para aqueles empreendedores cujas atividades causam

impactos ambientais negativos. A combinação dos abusos desses empreendimentos

com a precária fiscalização gera sensações de abandono, de revolta ou de desânimo.

“Não tem ninguém para zelar, para cuidar da natureza, todo mundo só quer aproveitar,

gigolar a natureza.” (v. 1, p. 120)

Alguns chegam a criticar com veemência a deficiência da fiscalização e creditam a

culpa aos próprios funcionários dos órgãos.

“Se nós tivéssemos... se nós, os pescadores da colônia, tivéssemos condições, nós

trabalharíamos muito mais do que o pessoal que ganha para cuidar do meio ambiente.”

(v. 2, p. 114)

É possível detectar no discurso dos entrevistados, em alguns momentos, uma

estupefação diante de fatos que ocorrem e que não são tratados, pelas autoridades, com

a seriedade e o rigor que merecem.

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“E, a gente vê acontecendo coisas e coisas no nosso município, e a polícia presente, e a

gente não entende porque que continua acontecendo, mas é verdade, continua

acontecendo.” (v. 3, p. 85)

A “sensação de injustiça” perpassa várias entrevistas, ao se referirem à fiscalização e

punição efetuadas pelos órgãos públicos competentes, que penalizam os pequenos e

pobres e desconhecem ou aliviam os ricos e poderosos.

“Por que, lá no Ibama é assim, quando está na época da piracema, tem gente pescando

ele toma a rede. Ao invés dele ajudar a gente, mostrar a lagoa para a gente, ajudar a

colocar no rio, evitar de tomar a rede, tarrafa da gente prejudicando. Em vez de ajudar,

ele está destruindo a gente. E não está ajudando o meio ambiente.” (v. 1, p. 108)

“Vai o pequeno produtor querer tirar a água do rio aqui, para tirar dez hectares, para

você ver a burocracia! Só daqui dez anos, para tirar tem que ter uma licença ambiental.”

(v. 3, p. 60)

As ações governamentais são reconhecidas por outros, que, inclusive, gostariam que

fossem mais constantes e mais presentes.

“Ai de nós se não fosse a Florestal, porque se não existisse a Florestal não tinha mais

peixe no rio igual ao que tem. Com toda a fiscalização da Florestal, está sendo pouco.”

(v. 1, p. 21)

Entrevistadora: “Algum projeto de apoio ou de melhoria das condições econômicas pro

pequeno produtor? Tem algum projeto especial sobre isso?”

Entrevistado: “O Pronaf tem dinheiro pra tudo inclusive pra cursos e mais cursos,

dinheiro pra todos os segmentos da atividade rural.” (v. 3, p. 84)

“O IEF tem feito um trabalho grandioso na bacia do rio Pandeiros. Eu não sei se você

sabe, o Pântano do rio Pandeiros é o maior berçário de peixes do São Francisco. Ele está

sofrendo também com assoreamento.” (v. 2, p. 105)

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É evidente o forte conflito entre os interesses entre três grupos – ambientalistas,

empresários e as pessoas mais pobres que vivem e trabalham pela sobrevivência. Nesta

luta, os pequenos produtores são os que mais sofrem entre a força do capital e a política

ambiental. Por exemplo, o presidente da Associação dos Vazanteiros de Januária não vê

com bons olhos a causa ambientalista. Os vazanteiros plantam nas coroas do Rio, em

área de preservação ambiental, mas segundo ele, a cultura nas ilhas não causa

degradação ambiental. Se esses produtores saírem das coroas do meio do rio, eles não

têm para onde ir.

O poder governamental muitas vezes é visto como favorecedor das grandes empresas. O

trecho abaixo é um relato precioso, por ser sucinto e verdadeiro, da história da

implantação do reflorestamento de eucalipto, que é, sem dúvida, o causador dos grandes

desastres ambientais do Norte de Minas:

“É, na época que eu trabalhei pra essa empresa, tinha alguns sitiantezinhos, pessoas,

posseiros, pequenos fazendeirozinhos, muito pequenos, tipo quase posseiro. O cerrado

era, na época, era terra do Governo, do INCRA. E eles repassavam pros empresários pra

plantar eucalipto e plantar pinheiro, que era uma maneira de aquela madeira ser

aproveitada pra fazer papel, material de escola, no causo, madeira pra lápis e outras

coisas. Então, o Governo incentivou a plantar o eucalipto e o pinho. Então, os

empresários foram e plantaram.” (v. 3, p. 123)

A situação de fraqueza política dos municípios fica também evidente no texto abaixo,

em que o entrevistado, de Buritizeiro, conta o modo das relações entre as grandes

empresas que vieram de fora e o município pobre e desaparelhado.

“O município, o município só tem perdido. Porque, primeiro a devastação, segundo que

o município é carente e tem um controle muito pequeno sobre essas empresas. O que é

produzido sai quase tudo com nota de outros municípios e a coisa passa por aí.” (v. 3, p.

84)

Mesmo quando tratam de problemas ambientais, os discursos dos entrevistados são

sempre atravessados por questões socioeconômicas. A falta de boas condições de vida

se entremeia nos desastres ambientais e nas condições políticas, de tal forma que se tece

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uma rede de ausências, de excessos, de faltas. São as faltas de empregos, de água, de

dinheiro, de recursos, de perspectivas entremeadas aos excessos de reflorestamento,

poluição, assoreamento, agrotóxicos venenosos, latifúndios, formigas, e às ausências de

fiscalização, de financiamento, de terras para plantar, de apoio tecnológico, de

educação, de atividades econômicas lucrativas. Esse quadro está presente no discurso de

quase todos os entrevistados.

“A coisa mais maravilhosa para nós aqui é o rio São Francisco. Nem todo mundo sabe

agradecer a vantagem que tem o rio. O rio é fantástico. A pessoa que mora na beira do

rio São Francisco é uma pessoa esperta, não é rico, mas está de barriga cheia. É uma

beleza. Falta à gente recurso, falta, por exemplo, sentido... Às vezes, a gente tem

vontade de fazer um trabalho... Agora com esse governo até melhorou, tem outras obras

por aí. No tempo do governo do Fernando Henrique não se conseguia nada, ele falava,

falava, falava, mas era só na televisão.” (v. 1, p. 41)

“O cara, às vezes, coloca um projeto na beira de um Japuré, aí de mil hectares, ele quer

saber se o pivô dele vai ser alimentado, ele tá pouco ligando. Ele quer é produzir. É

lógico que um projeto de irrigação vai gerar emprego. Mas tinha que ser uma coisa mais

criteriosa para não deixar o pequeno na mão. O nativo quer pescar, banhar, quer ter água

para ele. O rico quando chega para cá nem bebe água do rio, abre um poço artesiano,

alguma coisa.” (v. 1, p. 84)

“Hoje, nós acreditamos que a ferida maior nossa, são três feridas: os processos erosivos,

o êxodo rural, e a omissão do Governo Federal quanto aos programas e projetos

voltados para o São Francisco.” (v. 2, p. 105)

II - As formas de participação na conservação e recuperação do Rio

As formas de participação na conservação e recuperação do rio englobam:

1. as ações efetivas realizadas em defesa e recuperação do rio;

2. as estratégias de mobilização popular;

3. as iniciativas particulares;

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4. os instrumentos de participação da sociedade utilizados ou existentes na comunidade:

denúncias, audiências públicas, conselhos municipais, promotoria, etc.;

5. o nível de preparação das comunidades para assumirem, individual e coletivamente,

responsabilidades sobre as questões ambientais e de desenvolvimento.

Para a avaliação do comportamento político ambiental, foram levantadas as formas de

participação da população em atividades locais voltadas para a recuperação e

conservação. Elas surpreenderam pela criatividade e independência em relação a órgãos

públicos e organizações de fora dos municípios, e também pela variedade de formas

encontradas: participação em organizações não-governamentais, em entidades não-

ambientalistas como sindicatos, escolas, associações comunitárias, conselhos

comunitários, no MST; em campanhas de educação e de conscientização ambiental; em

reuniões com representantes de órgãos públicos; em trabalhos voluntários de

preservação ambiental, como a limpeza de rio, o salvamento de peixes encalhados nas

lagoas marginais, a plantação de árvores, a catação de lixo.

Também foram relatadas ações voluntárias e individuais, desligadas de qualquer

instituição ou movimento. Dois entrevistados agem individualmente na limpeza e

conservação do Rio e dois outros em salvamento de peixes:

“O lixo aqui, como nós não temos quem pega... ou por parte de prefeitura... Como eles

não vêm pegar, eu mesmo é que cuido de fazer a limpeza, pago com recurso próprio, e

ponho no meu carro, e levo para o lixão. Às vezes, saio daqui, como toda a segunda-

feira, e vou para Januária, eu ponho o lixo, desse material descartável no meu carro,

ensaco e levo para Januária.” (v. 2, p. 146)

“Aí eu mais pai, nós vimos uma lagoa. Estava secando, e peixe estava morrendo; e

chegando lá, pegamos os peixes e colocamos nos baldes e soltamos no rio. Surubim,

curimatá, tava morrendo tudo. Por que elas apodrecem, por que a água começa a

esquentar, e aí vai morrendo, não vai agüentando o calor do sol. A água esquenta, aí vai

apodrecendo tudo na lagoa.” (v. 1, p. 108)

“... quando as lagoas secam, que muitas lagoas secam, os peixes não dão conta de

voltar. Então ficam que nem essas aqui: elas vão secar. Então a gente tem que pegar das

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lagoas e jogar no rio. Mês de outubro, isso aqui está seco. Aqui seca tudo. Eu e os

meninos e a mulher, vem aqui pra juntar os peixinhos e jogar no rio. Por que se deixar

aqui morre. Quando não tira, o urubu come, a garça vem e come. Então tem que tirar.”

(v. 1, p. 110)

O nível de organização das comunidades já oferece condições para organizar

campanhas e movimentos de grande porte na região. E, portanto, com mais força para

enfrentar os interesses dos responsáveis pela degradação ambiental. Além disso, alguns

líderes conseguem movimentar toda uma cidade ou região. Como é o caso de Sônia,

uma grande agitadora cultural-ambiental do Sesc de Januária, que promove as mais

diversas ações, como:

“... durante todo o ano a gente trabalha essa questão da preservação. Agora mesmo nós

estamos com o projeto na praia com saquinhos de lixo, alertando a questão da

conservação do rio. A conservação da praia é lenta. A gente tem uma preocupação com

o barraqueiro, aquele que viva na barraca. Então, a gente tá com o projeto “Vamos

invadir a praia”. Distribuímos tarefas de limpeza da praia, 100 picolés para o pessoal.

A gente envolve várias pessoas, como o tenente do tiro de guerra, que vai entrar com a

gente na campanha de limpeza do rio, solicitando as pessoas para não jogar lixo no rio,

nem na praia. A gente está fazendo as coisas voltadas tanto para a parte educacional

como social e cultural.” (v. 2, p. 47)

A Colônia de Pescadores de Manga e de Januária promovem, anualmente, a campanha

de limpeza do Rio São Francisco. São dezenas de barcos que saem de Manga, em

direção à Januária, fazendo a limpeza do Rio São Francisco.

“No ano atrasado nós fizemos, não, a Câmara dos Vereadores..., nós fizemos um

mutirão de limpeza do rio. Mobilizamos uma multidão muito grande e fizemos uma

limpeza e tiramos quase 2 toneladas de lixo, aí da margem do Rio. Então, volta e meia a

gente faz assim. Mobiliza escola, foi a escola com o PG e a Polícia, o Exército daqui de

Januária e parece que o Lions também participou desse trabalho, e volta e meia quando

pode a gente faz assim.” (v. 2, p. 52)

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Entre grupos e associações, a mais criativa é o Complexo Industrial de Extrativismo do

Pandeiros, uma ONG extrativista, voltada para a preservação do meio ambiente, que

tem o objetivo de implantar, no Pandeiros, unidades de industrialização do extrativismo

sustentado.

As associações e movimentos encontrados nos textos são:

Movimento dos Sem-Terra (MST)

Sindicatos de Pescadores

Sindicato dos Produtores Rurais de Manga

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Manga

Associação Para Terra 3 (Manga)

Conselho do Desenvolvimento Comunitário do Brejo de São Caetano

Amigos da Escola (amiga da escola)

Colônia de Pescadores de Manga

Complexo Industrial de Extrativismo do Pandeiros (Januária)

Associação de Vazanteiros do Rio São Francisco de Januária

Colônia de Pescadores de Januária.

Associação Comunitária do Espírito Santo – Poçõezinhos (Januária)

Associação Comunitária Unidos de Pandeiros (Januária)

Associação Rural Comunitária do Desenvolvimento de Pandeiros (Januária)

Associação do Janelão em Pandeiros (Januária)

Os instrumentos de participação da sociedade local, como denúncias, audiências

públicas, conselhos municipais, foram muito pouco citados. O que indica que ou eles

não existem ou não são eficientes. A Promotoria Pública recebeu várias citações.

Quando existem, os instrumentos de denúncia são utilizados.

“A primeira providência nossa foi comunicar à Linha Verde do Ibama o que estava

ocorrendo, e pedimos à atendente, que nos atendeu, que transcrevesse o ocorrido lá no

Rio do Sono.” (v. 3, p. 108)

A decepção ficou por conta do Poder Legislativo: as Câmaras de Vereadores não

participam de movimento, não criam leis ou programas ambientalistas; alguns

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vereadores trabalham unicamente em suas bases; e o único deputado citado como

participante foi Gil Pereira.

III – As propostas

1. A disposição de trabalhar pelo Rio

A disposição para alterar comportamentos com o objetivo de conservar e recuperar as

condições ambientais da região parece estar relacionada com as condições econômicas

dos entrevistados. Se o indivíduo não ganha para o seu sustento e de sua família, se não

existem outras opções de rendimento, não lhe é possível tentar salvar o ambiente.

Portanto, alguns entrevistados não se mostraram dispostos a trabalhar por essa causa,

sem que as suas condições de vida fossem favorecidas.

Assim, por exemplo, em um povoado como Poçõezinhos, que fica ao norte de Januária,

onde a atividade econômica se resume ao carvoejamento, somente com a apresentação

de formas alternativas será possível o envolvimento da comunidade. A explicação é

simples e banal: a população precisa sobreviver e se a produção de carvão for proibida

no lugar por causar prejuízos ao meio ambiente, ela morrerá de fome ou será obrigada a

emigrar para a cidade, já que, segundo um morador, as atividades principais do povoado

de Pandeiros são “a exploração de carvão, a aposentadoria, e também funcionário

público e professor.” (v. 2, p. 171)

2. As propostas para a recuperação da bacia

As propostas para a solução dos problemas da comunidade, da região ou do próprio Rio

seguem a mesma linha da relação do entrevistado para com o meio ambiente. Algumas

seguem o padrão ambientalista. Entretanto, percebe-se que o discurso dominante é que

as soluções têm que considerar tanto o aspecto ambiental quanto o aspecto

socioeconômico. Entre as do primeiro tipo, encontram-se: recuperar os afluentes,

recuperar o Rio, reflorestar a beira do Rio, recuperar as margens e a área de

amortecimento de 100 metros da beira, não jogar lixo, recuperar as veredas e os açudes,

fazer trabalho de conscientização e planejar as captações de água.

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Entre as propostas de enfoque social e ambiental, podemos destacar:

“Ajudar os ribeirinhos, o governo ajudar os ribeirinhos.” (v. 1, p. 11)

“Financiamento do produtor rural para preservar.” (v. 1, p. 111)

“Fazer os pescadores trabalharem como fiscais, plantarem mudas.” (v. 1, p. 12)

Em geral, as propostas de recuperação baseiam-se na ação governamental, e não na ação

particular e local dos cidadãos. Algumas têm o caráter de política assistencialista, no

sentido de ajudar de alguma forma a população ribeirinha.

3. As perspectivas para o Rio

Em relação às perspectivas para o Rio São Francisco, a posição quase unânime dos

entrevistados é que se não forem tomadas medidas urgentes que promovam a

recuperação das condições ambientais da bacia, o Rio São Francisco secará,

inapelavelmente.

“A continuar assim, o rio morrerá.” (v. 1, p. 8)

“A tendência do rio é só secar.” (v. 1, p. 23)

“A tendência da água é diminuir.” (v. 1, p. 28)

.

“O futuro do rio é, se não cuidar, ninguém sabe quando vem, ele morre.” (v. 1, p. 49)

“Daqui uns anos, o rio São Francisco vai ficar buraco de água, assim, um aqui, outro

mais longe.” (v. 1, p. 63)

“Do jeito que eu estou vendo, cada dia que passa, nós vemos que o fluxo de água do

São Francisco, a gente pode observar a olho nu, que está diminuindo. A tendência, do

jeito que está, é que no futuro, os afluentes vão secar.” (v. 3, p. 35)

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“O rio não é nosso, é dos nossos netos e vai ser dos filhos dos netos dos netos nossos.

Esse é o futuro dele. Nós que estamos vivendo agora temos que proteger e ajudar para

que ele não seque, não deixar ter mais assoreamento, não deixar roçar as margens dele,

não fazer desmatamento a mais de 500 metros dele, esse é o futuro dele.” (v. 2, p. 74)

“Se continuar, se a fiscalização continuar, pode ser que venha a recuperar. Se não, ele

vai acabar de secar.” (v. 2, p. 150)

IV - Uma análise do discurso

Este tópico é um demonstrativo do funcionamento do método e dos pressupostos

teóricos que embasaram este estudo, a análise do discurso da escola francesa. Faremos

uma análise detalhada de dois trechos, que consideramos bastante significativos para a

leitura das entrevistas.

Seguindo o método proposto, levantamos as condições de produção do discurso, que

englobam o sujeito enunciador, o enunciante – a pessoa a quem se dirige, o lugar e o

tempo histórico. No primeiro trecho, o sujeito enunciador é um vazanteiro, agricultor

das vazantes do rio, morador de Januária. Como é o presidente do Sindicato dos

Vazanteiros, deve estar acostumado a debates públicos. O sujeito enunciador do

segundo trecho é uma senhora que vive em uma comunidade bastante pobre,

Poçõezinhos, onde as pessoas vivem da produção de carvão de mata nativa, que é ilegal.

Os enunciados expressos pelos sujeitos são dirigidos a um enunciante estranho, vindo

de outra cidade, estudado e pertencente a uma classe bem mais alta do que a deles. O

diálogo acontece nos lugares de morada dos sujeitos enunciadores, portanto, eles podem

se sentir confortáveis e seguros. A entrevista aconteceu em junho de 2005, época em

que o projeto de transposição do São Francisco era objeto de intensos debates, e, ao

mesmo tempo, o Ministério do Meio Ambiente fortalecia as políticas ambientalistas.

Revelar o sentido do discurso é descobrir “o que ele diz”. Para alcançar este objetivo, a

análise tratará de duas questões básicas: a primeira é revelar “como o discurso diz o que

diz”, e a segunda, desvelar “porque o discurso diz o que diz”. É o que faremos a seguir.

Em algumas situações, quando o entrevistado é questionado sobre a existência de

alguma atividade danosa ao meio ambiente, a sua reação inicial é negar a existência da

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atividade. Isso acontece quando sabe que se trata de atividade ilegal e/ou incorreta, e

percebe na fala do entrevistador uma tendência a reprovação. O entrevistado, ao notar a

posição do entrevistador, conclui que a atividade em questão não é socialmente

desejável, sente-se, então, pressionado e responde negativamente à pergunta. A

tendência do entrevistado em concordar com o socialmente desejável, e não com os seus

valores e comportamentos, é conhecida como “aquiescence bias”.

No exemplo abaixo, ao ser perguntado sobre sua atividade de agricultor vazanteiro, o

entrevistado percebe a posição do entrevistador sobre a defesa do meio ambiente.

Assim, tenta mostrar que não age fora do padrão ambiental do entrevistador. Por três

vezes, diante da pergunta, a sua primeira reação é negar, logo adiante tem que se

desmentir, e concordar com o entrevistador. E acaba revelando o que não queria.

Diálogo entre o vazanteiro e o entrevistador sobre o sistema de plantio nas ilhas do Rio:

Entrevistador: “Então as culturas aqui são todas ao natural, elas não tem irrigação, não

tem adubo?”

Entrevistado: “Não têm nada. A não ser... Bate algum veneno, por exemplo, ouro verde.

Vez que algum passa na folha do feijão pra evitar o inseto. No mais é nada! É natural...

Qualquer desses produtos que você pegar, nada tem agrotóxico, não tem nada. Tudo

normal.”

Entrevistador: “Não tem irrigação?”

Entrevistado: “Não. Irrigação, tem os equipamentos... Só que nós não estamos usando

por enquanto.”

Entrevistador: “O que está acontecendo?”

Entrevistado: “O que está acontecendo é uma precipitação de um funcionário da Feam,

que está locado no IEF. Está fazendo um abaixo-assinado pra poder tirar os vazanteiros

das ilhas... Ele está alegando que os processos erosivos está sendo provocado pelos

vazanteiros. Só que os vazanteiros, aonde eles estão trabalhando não tem barranco, né!”

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Entrevistador: “Esse abaixo-assinado seria para transformar numa área de proteção

ambiental?”

Entrevistado: “É, esse abaixo-assinado é, repetindo o que eu falei, é... uma precipitação

da parte dele... porque...”

Entrevistador: “O objetivo é transformar aqui numa área de proteção ambiental?”

Entrevistado: “É. Ele alega isso, mas aqui já é uma área de proteção ambiental.” (v. 2, p.

128)

A leitura que se faz do diálogo é que tanto o veneno quanto a irrigação são utilizados no

plantio nas ilhas do Rio, ainda que o entrevistado tente minimizar a freqüência de

utilização dos dois recursos. A dificuldade que sente em contar que as ilhas estão em

uma área de preservação ambiental mostra o tamanho do desconforto em que se

encontra, e não que ele é um mentiroso. Essa é a estratégia discursiva adotada para se

defender das ameaças de desocupação das ilhas. A sua luta para continuar nas ilhas

continua, porque ele e os seus não têm para onde ir. Se forem obrigados a sair, o único

futuro será engrossar as favelas das cidades.

A mesma situação surge, quando a moradora de Poçõezinhos é perguntada sobre o que

as pessoas do povoado fazem para viver, qual a atividade econômica:

Entrevistador: “O que as pessoas fazem?”

Entrevistada: “As pessoas, tem hora, que mexem com carvoeira. Elas mexem com um

forninho, porque, também, se eles não mexer com isso, eles já tinham morrido de

fome!... Tem uns que mexem com um forninho... Outros mexem com outros. Mexe

mesmo é com carvão. Nós só mexemos é com isso mesmo.” (v. 2, p. 137)

A resposta começa com tentativas de subestimar a importância e a freqüência da

atividade no povoado. Mas, logo vem a forte alegação de que se não trabalhar com

carvão morre de fome. Em seguida, volta à estratégia inicial de subestimação. Até que,

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no final, decide-se a falar o que sente, que é a verdade, e surge a poderosa assertiva:

“Mexe mesmo é com carvão”. Para reforçar sua posição e demonstrar que não está mais

receosa da opinião do entrevistador, reafirma: “Nós mexemos é com isso mesmo”. Com

essa fala, ela assume a prática do carvoejamento, não apenas a sua, mas de toda a

comunidade. E ainda que essa atividade possa ser, socialmente, considerada

condenável, ilegal ou incorreta, ninguém está disposto a deixar de viver, a largar mão da

vida por causa disso. Na verdade, produzir carvão é a única forma que encontram para

sobreviver.

Como ficou demonstrado, os textos acima são suportes para um mesmo discurso, mas

enunciados de forma diferente pelos dois sujeitos. É esse discurso que move a fala dos

entrevistados que deve ser ouvido. Que discurso move a fala do morador da beira do

Rio? O que ele diz? Por que ele diz? Talvez seja possível resumir em uma frase o dito

no não dito: “nós, moradores da beira do Rio, vivemos aqui, e aqui sobreviveremos”.

Isso é uma forma de dizer que as necessidades e os anseios das populações locais devem

ser sempre considerados, no planejamento de ações e projetos de revitalização e

conservação do vale do rio São Francisco.

Considerações finais

Na percepção dos entrevistados, as atividades socioeconômicas consideradas mais

prejudiciais ao meio ambiente, segundo os tipos são: as extrativistas como

carvoejamento, as agropecuárias como reflorestamento, agricultura de monocultura, a

pecuária extensiva, e, para poucos, até a agricultura de subsistência. É interessante notar

que a população local tem uma percepção da agricultura como uma grande vilã, o que

muito raramente acontece. Normalmente, ela não é considerada depredadora, por ser

produtora de alimentos. Entre as atividades de infra-estrutura degradantes foram

mencionadas apenas as hidrelétricas e, apenas uma vez, as estradas de rodagem.

O lixo é considerado a principal causa da poluição dos rios. O esgoto não é considerado

um grande poluidor, talvez porque na maioria das casas é utilizado o sistema de fossas,

que escondem os dejetos.

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O assoreamento é o principal causador da degradação, secagem e morte dos rios; todos

são unânimes nesta afirmação. Ainda que possam apresentar mais de uma explicação

para a diminuição do volume de água dos rios, o assoreamento está sempre presente. As

outras são a diminuição das chuvas, o desmatamento das matas ciliares, e a extinção de

nascentes.

É importante ressaltar que, em nenhuma localidade, os problemas ambientais foram

considerados os problemas mais sérios da comunidade. Muitas vezes, os problemas

socioeconômicos são temas mais salientes, por serem considerados mais fundamentais

para a sobrevivência. Mesmo quando fazem expectativas negativas sobre o futuro do

Rio, os moradores não percebem suas vidas incluídas no desastre por vir. Sentem muito

pelo Rio e por todo o ambiente, mas a morte do Rio não significa a sua morte, ou da

comunidade. Parece que a relação da possibilidade da existência com as condições

ambientais não é percebida como fundamental para a vida. Em alguns está clara a

percepção de que as alterações fazem parte da natureza, que está sempre mudando, e os

moradores vão sobreviver, independentemente dos rumos que a natureza tomar.

“Porque mudou, porque muda.” (v. 1, p. 23)

Pode-se dizer que o nível da percepção da seriedade dos problemas ambientais está

bastante alto e, com raras exceções, os entrevistados mostraram-se conscientes dos

problemas causados pela degradação ambiental. A consciência, em geral, é formada

menos pelas informações transmitidas pela mídia ou repassadas por especialistas, do

que pela convivência com os problemas e da própria vivência dentro do espaço

demarcado e determinado pelas águas que formam o grande Rio.

É importante destacar que, em nenhuma entrevista, as questões ambientais foram

consideradas mais importantes ou prioritárias em relação às socioeconômicas. Alguns

entrevistados chegam até considerar que as condições humanas devem ser tratadas ou

resolvidas ainda que causem problemas ambientais. Mas, para a maioria dos

entrevistados, as questões ambientais devem ser tratadas de forma integrada às

socioeconômicas, com a inclusão fundamental da população local como a parceira

principal dos empreendimentos tanto na responsabilidade pela implementação e

conservação, quanto no usufruto dos resultados.

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Assim, o sentido do discurso dos entrevistados segue em direção contrária ao discurso

autoritário e tecnocrata que sustenta as políticas tradicionais de intervenção de cima

para baixo empreendidas tanto pelos governos passados quanto pelo atual. Ao

contrário, ele aponta como fator fundamental do desenvolvimento sustentado do vale do

Rio São Francisco a participação ativa e construtiva da população.

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A percepção socioambiental da população residente no médio superior São

Francisco

Maria Elisabete Gontijo dos Santos

Introdução

Esse texto trata da análise da percepção da população local sobre as alterações ocorridas

no rio São Francisco, seus principais problemas e a identificação dos agentes

causadores. Quanto às alterações, levantamos as referências apontadas pelos

entrevistados em relação à memória que têm do rio São Francisco e seus afluentes

durante o tempo em que viveram na região.

A análise tem por objetivo recompor alguns aspectos das paisagens locais, que foram

profundamente alteradas pela ação antrópica nos últimos 50 anos. Pretende-se, dessa

forma, levantar informações sobre os aspectos físicos dos corpos d’água, como volume

e limpidez, as formas como eram utilizados e seus significados para a população

ribeirinha.

Outro aspecto tratado refere-se à identificação, na perspectiva da população local, dos

agentes causadores dessas transformações e como elas afetaram as suas vidas. Seus

posicionamentos diante das questões atuais também foram analisados. E, finalmente,

qual a perspectiva de sobrevivência dos rios, lagoas, veredas, ribeirões e demais corpos

d’água presentes na bacia do São Francisco nas áreas em que vivem.

Ao longo do texto foram citadas as iniciais dos nomes dos entrevistados cujos

depoimentos foram utilizados, bem como, seguindo-se a essa informação, o volume e a

página das notas de campo de onde foi extraída cada citação.

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1 MEMÓRIA: Memória da população entrevistada sobre o estado anterior do rio

São Francisco e de outros corpos d’água adjacentes.

Essa categoria levanta os principais aspectos da memória que o entrevistado tem da

forma como os corpos d’água da região se apresentavam em um período anterior. Esse

período varia de acordo com o tempo de vivência do entrevistado no lugar.

Há uma grande concordância entre os entrevistados sobre a memória que guardam da

região em períodos anteriores. Com pouquíssimas exceções, observou-se que há entre

os entrevistados um entendimento de que o rio e seus afluentes sofreram profundas

alterações, e que hoje é muito diferente do que era antes. As suas lembranças se referem

a períodos distantes de suas vidas na região; esses períodos variam conforme a idade e o

tempo de vivência no local. As perguntas referentes à memória que o entrevistado tem

do rio eram abertas e permitiam que o mesmo se expressasse de forma espontânea.

Pelas respostas obtidas, percebe-se que as pessoas têm boas lembranças dos rios, dos

peixes e da vida ribeirinha em outro tempo. Geralmente, identificam esse tempo como

uma época da fartura de peixes e produtos agrícolas que plantavam e consumiam. Há

referências a um tempo de movimento, de alegria e de riqueza para a cidade e seus

entornos. Independentemente da condição social ou da idade, os entrevistados guardam

boas memórias dos rios.

Mônica Meyer Mônica Meyer

Figuras 11 e 12 – As pinturas de Frank, na praça de Itacarambi, expressam a memória de um rio limpo e farto de peixes

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Com exceção do desmatamento das margens do São Francisco, já existente em períodos

anteriores, nenhum entrevistado fez referências a dificuldades passadas ou utilizou

termos negativos em suas memórias. Expressaram, pelo contrário, saudades e

preocupação com o estado de degradação que os corpos d’água apresentam no presente.

Mesmo nas condições atuais, muitos ainda encontram um grande prazer em poder

desfrutar de sua vida próximo do rio São Francisco.

Foram citadas a existência de grandes áreas de matas com diversas espécies de animais;

a chuva em abundância que caia em épocas anteriores; e o transporte fluvial.

Quase todos os entrevistados são nascidos na região, alguns são originários de cidades

são-franciscanas da Bahia, como Malhada e Remanso. Há poucos casos de nascidos em

diferentes regiões de Minas e um nascido no estado do Rio de Janeiro. Quase todos

mostraram uma grande interação com a região e com o rio, principalmente os que

residem em suas proximidades. Os moradores das chapadas apresentaram maior

interação com o cerrado do que com os rios. Entre os entrevistados há fazendeiros e

também ocupantes de cargos públicos que são produtores rurais. Entre os que trabalham

diretamente com o rio há pescadores profissionais, pequenos produtores rurais que

ocupam os lameiros, também chamados vazanteiros, lancheiros e balseiros. Todos eles

desenvolvem atividades profissionais relacionadas direta ou indiretamente com o rio

São Francisco ou com algum afluente da região. Há um policial militar de destacamento

ambiental, professoras que moram e atuam em áreas ribeirinhas, e funcionários dos

serviços de abastecimentos de água locais e de órgãos estaduais da área ambiental. Nas

áreas de chapadas, foram entrevistados um fazendeiro, a proprietária de um pequeno

comércio, uma meeira, empregados de fazendas, carvoeiros e uma garimpeira.

As lembranças citadas se referem, basicamente, a cinco temas: o grande volume das

águas; a qualidade das águas; a riqueza em peixes; a vegetação exuberante e a riqueza

da fauna. Outros temas lembrados foram as chuvas abundantes; a navegação a vapor e

as festas e outras manifestações culturais.

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1.1 O volume das águas

Há unanimidade quanto ao fato de que rio São Francisco apresentava um volume de

água muito maior em tempos anteriores da vida dos entrevistados. Ele era mais largo,

mais fundo: “Nessa época do ano, o rio estava bem mais alto, hoje o rio está baixo.”

(JM) (I). E essa perda é relativamente recente. Um jovem sitiante, nascido em Januária,

e criado a vida toda em Manga, possui um sítio na Manga Velha (que deixou para os

irmãos porque é muito pequeno) e hoje está no movimento dos sem terra, afirmou:

“Na frente do porto de Manga, no meio do rio, hoje, dá pé. Quando era menino

atravessava o rio nadando e nunca consegui pé em nenhum lugar perto do rio. Quando

era menino, pescava com o pai e não existiam essas praias. Tinha uma praia ali embaixo

e essa praia aqui não existia, essa praia aqui é nova, tem uns seis ou sete anos que ela

existe... Então, o rio, eu acho que está morrendo aos pouquinhos...” (FM) (I)

Os afluentes do São Francisco na região de Manga, como Calindó, Japoré, o Verde e o

Grande, em suas lembranças, eram todos rios perenes que corriam em vales férteis.

“O rio Calindó era um rio riquíssimo até 1981, era perene. A região do Japoré era de

terras férteis, eu mesmo produzia uma quantidade enorme de arroz ali, até exportava”

(HL) (I).

As grandes enchentes eram provas de que o rio São Francisco tinha mais água. “Depois

de 79, nunca mais o rio transbordou, foi a cheia maior que já vi. O rio era enorme na

largura, hoje não, está bem mais seco. Depois de 79, quando o rio baixou, mudou tudo,

a gente só reconhecia o lugar por causa das telhas que ficaram lá.” (E.S, 36) (I) Pirapora

foi praticamente inundada em sua área central.

Quando o rio enchia, atingia as casas dos ribeirinhos, que tinham suas casas e coisas

cobertas pela água, Eram chamados “flagelados”. Um depoente, engenheiro, viu as

enchentes de 1963, 74, 76, 89, 90 e 91. “Mas a maior foi a de 79: o São Francisco

emendou com o rio Verde. Uma água só.” (CR) (I). O rio, que hoje tem 400 metros de

largura, em Manga, teria ocupado uma área 36 vezes do que a da sua calha.

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Essa enchente é guardada na lembrança de muitos moradores de toda a região. Em

Januária, um entrevistado se expressou assim:

“A última enchente aconteceu em noventa e dois. Eu ainda me lembro, e tenho foto e

tudo. A gente pulando no rio. Aquela beleza! O rio cheio! Eu te garanto, eu assim,

aquela nostalgia, por que nunca mais viu! Já existem treze anos que o rio não sobe mais!

Para cobrir as ilhas”. (EA) (II, p. 87)

Esse volume de água foi confirmado por uma pessoa que trabalha no serviço de

medição em Manga. A marca que mais a impressionou foi registrada em 1979, que

chegou a 11,25 metros. Uma das mais baixas chegou a 0,60 metro, num ano que o

entrevistado não soube precisar. Segundo o informante, depois da construção da

barragem de Três Marias o rio não secou muito (DN) (I).

Os afluentes também eram rios com grandes volumes de água: ”Há anos atrás o rio

Carinhanha era fundo. Hoje se brincar atravessa o rio nadando” (AC) (I). Uma

moradora da comunidade do rio Pandeiros, em Januária, afirmou que no fundo de sua

casa existia uma “lagoa muito forte” que hoje não tem mais. E que esse rio era

diferente:

“Quando eu cheguei para aqui, ele era bem forte de água. Muito forte mesmo, que não

dava travessia! Hoje as pessoas já passam por ele sem risco algum... segundo o que o

povo me fala, ele era um rio bonito e forte, que não dava vau em canto nenhum.”. (MG)

(II,163)

Sobre a profundidade do rio São Francisco, um entrevistado de Januária afirmou:

“No ponto que eu pescava, na época devia dar aí uns 40, 50 metros de profundidade,

hoje a gente joga bola lá, é uma praia e tem uns colegas que perguntam: como é que

você marcou isso? Como é que você sabe disso? É porque na época eu marcava a Igreja

e o reservatório d’água e fazia esse o ponto, e media, hoje nesse ponto é uma praia. E

isso é uma mostra do que está acontecendo, que está acontecendo há 40, 50 anos atrás.”

(AF) (II,21)

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1.2 A qualidade das águas

A água do rio Japoré, afluente do São Francisco na região de Manga, era limpíssima.

Uma entrevistada ouviu uma pessoa dizer: “Olha! Minha mãe está com 102 anos!

Nasceu e viveu tomando água do Japoré, e está aí!”. (TA) (I)

“Antigamente, a água do Japoré era corrente, não tinha represa, também não tinha fedor,

a água não era parada. E, principalmente, não se falava nesse negócio de xistose.” (TA)

(I)

Se as águas dos rios eram potáveis, as dos poços que serviam as cidades não eram. Em

Manga, a água era de poço, de qualidade muito ruim, calcárea, vivia entupindo os

canos. Com a construção da estação de captação de água, há cerca de 10 anos, a

população passou a ser atendida com a água do São Francisco. Isso foi motivo de

grande alegria: “Quando mudou a água, a população soltava até foguete de tão boa que

a água era, de qualidade.” (J M) (I)

1.3 A pesca

O volume e o tamanho dos peixes pescados no São Francisco, em suas lagoas marginais

e afluentes levantam, talvez, as melhores lembranças. O rio era fundo e com muitos e

variados peixes: “Tinha surubim, abará, piranha, todo tipo de peixe. Era tanto que

quando pescava, não agüentava trazer para dentro de casa.” (P F) (I). A abundância

também foi relatada por uma professora nascida e criada numa ilha dentro do rio São

Francisco no município de Manga.

“Antes era fácil pescar, você ia na beira do rio e não ficava sem peixe. A facilidade de

antes, meu Deus do céu, sobrava peixe, a gente salgava o peixe.” (ES) (I)

Os moradores conheciam o processo de criação dos peixes nas lagoas:

“Toda hora que você ia lá (no rio), ele estava lá passando. Quando era época de cheia, o

rio enchia e entrava nesses matos e o peixe entrava lá, e quando era a vazante, o peixe

voltava para o rio e aí eles ficavam nesse trecho aqui.” (AS) (I)

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A abundância de peixes foi relatada por um migrante, que chegou em Januária em 1980

e lá fixou residência:

“Aí, aqui eu conheci essa família de pescador, eu ficava impressionado com o tanto de

peixe, que o povo comia peixe, aquele monte de peixe e eu ficava impressionado,

perguntava se não ia vender. Mas a cultura do ribeirinho é essa. Não (vendiam), eles

comiam e davam. Isso que eu achava bonito, o peixe era dado. Saia distribuindo para os

outros, aqui eles não vendem, não.” (SL) (II, 72)

Na enchente de 1979, apareceu muito peixe no São Francisco. Um morador de Manga

afirmou que tinha de parar de pescar “porque o barco não cabia de tanto peixe, de

surubim, dourado”. (HL). Essa mesma fartura aconteceu também em Januária. Segundo

um pescador, as águas do rio foram entrando pelas ruas, lotes, muros e quintais adentro

e com elas vinham também os peixes:

“As pessoas mostravam as marcas nas casas deles, aqui eu peguei uma curamatã de seis

quilos, aqui eu peguei um surubim, aqui meu quintal encheu e ficou um metro e meio de

água...” (SL) (II,79)

Uma questão muito citada se refere ao peso dos peixes. Há uns 30 anos era possível

pegar peixe de até 120quilos.(RM) (I). Os grandes peixes eram pescados mesmo em

lugares de muito movimento, como na cidade de Manga: “Antes você pegava, no cais,

50, 60 piau”. (CR, 53). Um pescado e produtor de peixe, em Januária, afirmou que há

uns oito, 10 anos: “Eu mesmo já peguei um de 72 quilos, tenho um retrato dele.” (SL)

(II,70)

1.4 O transporte fluvial

O rio São Francisco como via de transporte ainda é lembrado. Todo o transporte era

feito pelos vapores, que carregavam até 100 toneladas. Lanchas, balsas, barcos a remo

também circulavam pelo rio. Motores de popa, hoje comuns, não havia. Em Januária,

como em outros lugares, o movimento era grande e o ano todo:

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“Mudou e como mudou, o rio São Francisco, nessa época do ano (julho) em que você

está vendo essa ilha, era o maior movimento, contava 8, 10 vapores. Isso se você falar

ninguém acredita...” (AF) (II,21)

Outros já falaram em cerca de 30 vapores circulando pelo rio na época da construção de

Três Marias. (II, 51). Em Manga, todo o comércio era feito através desses barcos e

lanchas:

“Eles levavam os produtos nossos e traziam o que a gente precisava: o querosene, o sal,

o açúcar, o côco e levava os produtos nossos, que era o milho, a mamona, o algodão, o

feijão, o arroz que a gente produzia e até boiadas. Tinha uns vapores-gaiolas que

carregavam boi também...” (HL) (I,119).

Em Januária, o comércio incluía a famosa cachaça e madeiras da região. Como lembra

um morador:

“Eu cresci aqui. Pequenininho aprendi a nadar no rio, né. Ver aquela tradição. Na época

das águas, o rio subia. Ver os vapores, aquele tanto de vapor! O comércio era feito via

fluvial. Aí, vendia cachaça, vendia madeira, traziam de lá para cá sal, né.” (EA) (II,86)

A satisfação também era muita:

“Eu tenho uma filmagem, que foi feita em mil novecentos e sessenta, eu tinha doze anos

de idade... Se vê na filmagem eu dentro do rio são Francisco. E o rio corria numa

maravilha, nós tinha tudo! Hoje o rio São Francisco, de trinta anos pra cá, acabou o rio

são Francisco. Mas há trinta anos atrás. Era uma maravilha! Trinta anos atrás passava o

vapor, passava barcos grandes, grandes rebocadores que carregava as mercadorias...”

(MR) (II,116)

As estradas de rodagem e a ponte que cruza o rio em Januária não existiam. O

transporte de passageiro pelos chamados “gaiolas” era também feito regularmente pelo

rio. Como lembra um morador de Manga: “não existia carro nessa época. Para Pirapora,

quem pegava o vapor aqui, ia até marcado, tinha agência igual à agência de ônibus... Ali

você almoçava, dormia.” (PF) (I,29)

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Na década de 60, algumas jardineiras e jipes já circulavam, mas com dificuldades. O

meio de transporte confiável ainda era o vapor, que todos usavam:

“Descia no vapor para Januária para estudar, eram dois dias de viagem, era o único

transporte existente. Isso foi na década de 60. Não tinha ônibus regular, passava só jipe.

Depois, colocaram uma jardineira, era uma “epopéia” de Manga a Januária, atolava, era

uma confusão. Às vezes, levava três dias de ônibus. O rio era o vapor, o transporte

certo.” (CR)

Não era só o rio São Francisco que tinha vapor. No Paracatu, tinha um chamado

Paracatuzinho, que fazia o transporte de mercadorias e de gente pra região. Seu último

ancoradouro era em Santana da Caatinga. O Porto do Cavalo foi lembrado por uma

entrevistada: ”O navio chegava, apitava de longe, a gente corria tudo pra beira do rio.”

(N) (III,229)

Os rios como vias de transporte eram fonte de renda para os ribeirinhos, como afirmou

um antigo proprietário em Manga, já aposentado:

“Tinha um lancha, a Simpática, que transportava passageiros, para Manga, Lapa. Era a

mais bonita que tinha no rio. Levava romeiros até Bom Jesus da Lapa, na Bahia”. (DN)

(I,73)

Os ancoradouros também geravam rendas extras. Uma das entrevistadas é uma dona de

casa que ainda serve refeições para os ocupantes das embarcações que circulam pelo rio

São Francisco no tempo das águas. Está no mesmo ponto há muitos anos e negócio era

bom: “Há uns 10 anos a venda de refeições era muito boa, hoje está fraco”. (MA).

Pelo que informaram os entrevistados, toda a vida da região passava pelo rio. Um

morador de Januária foi criado dentro do próprio rio. Seu pai era capitão de uma lancha

que circulou 35 anos pelo rio São Francisco fazendo assistência social. Nela havia

extração dentária, atendimento médico, transporte de doentes, etc. (WA) (II, 50).

Segundo esse mesmo morador, por essa época já havia problemas de assoreamento que

provocavam o encalhamento de vapores:

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“Antigamente meu pai, quando eu era criança, já falava que o rio ia secar; via aí as

embarcações que viajavam, encalhavam muito. Então, já tinha esse problema de

assoreamento do rio, isso aí vem de anos.” (WA) (II, 50)

Os vapores começaram a encalhar no período da seca. Para esse entrevistado, a

construção da represa de Três Marias foi feita também para controlar as enchentes e

resolver esse problema.

O desmatamento das margens do São Francisco também era observado e lembrado:

“Um dos problemas desse desmatamento foram os próprios vapores, a caldeira era

movida à lenha e nós passava na margem e tinha vários lugares que tinha porto para

pegar lenha e tinha muita madeira cortada. Volta e meia, a gente encontrava balsa

descendo o rio de madeira, aquelas balsas imensas de toras de madeira descendo o rio.

A gente viu o desmatamento descontrolado". (WA) (II,56).

1.5 A chuva em abundância

Outra lembrança marcante entre os moradores na região são as chuvas, que em tempos

anteriores, teriam sido bem mais abundantes. “Parece que naquele tempo chovia mais. ”

(JM, 50). A chuva era tanta que impedia as tarefas das pessoas: “Quando entrava o mês

de outubro, virgem! nossa mãe! a gente não podia fazer nada por causa da chuva.” (PF)

(I), conforme afirmou um pescador profissional encostado, nascido em Manga, onde

sempre morou.

1.6 As matas e a fauna

Segundo os entrevistados, no município de Manga havia lagoas, cavernas, cachoeiras,

áreas alagadas onde proliferava um rica fauna. Mas muito já se perdeu: “Ainda existem

algumas, um bocado já desapareceu por causa da degradação.” (HL) (I,74)

Alguns locais foram citados pelos entrevistados:

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“Esse lugar chama Barra do Rio Verde... Era um pantanal muito grande... lá não era

para plantio de cana, era mais um pantanal, para peixe, capivara, e esses bichos do mato.

(AS) (I)

Na beira do rio existia muita madeira, que hoje não dá mais devido a ações remotas ou

relativamente próximas:

“Hoje a mata não é a mesma, plantaram um mato próprio para areia. O mato foi cortado

na época do vapor, e o pessoal que morava na margem mais próxima cortava pra

cozinhar.” (ES) (I).

(Na Fazenda Beirada) “acabou a mata toda, os jatobás que tinha lá, era uma reserva

muito rica em madeira, né... Ali era um habitat de anta, de capivara, de veados, hoje

acabou tudo, eles comeram tudo.” (HL) (I)

Esse tempo está relacionado a um tempo de fartura, como afirmou o morador de

Januária que foi criado em um barco que circulava pelo rio:

“Mas eu ainda conheci muito o rio no período que tinha muita fartura, já vi muito jacaré

na margem do rio, ainda vi muita manada de lontra, de capivara, muitas aves que hoje

não existe mais, o homem com a depredação acabou com isso. Mas ainda conheci esse

rio aí com muita fartura... tinha local que você contava assim mais de 100 capivaras,

jacarés na beira do rio, hoje acabou tudo” (WA) (II, 50, 56)

Pelo que informaram, o número de lagoas da região era enorme. Em um único projeto,

que construiu um dique para o rio Verde não invadir uma área de plantação, “secaram

muitas lagoas que tinham lá, 10, 15, 20 lagoas. Hoje, pra sobreviver lá tem abrir uma

cisterna onde havia uma lagoa. As lagoas eram alimentadas pelo rio Verde.” (HL) (I)

Muitas lagoas ainda existem. No município de Manga, há ainda três lagoas: Encantada,

Dourada e a Prata, que estão bastante conservadas, inclusive a fauna de suas margens.

Esse local foi transformado, recentemente, uma área de preservação ambiental. Pela

descrição desses locais, pode-se ter uma idéia do que eram as que foram destruídas:

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“É um paraíso isso aí, ainda tem onça... uma quantidade enorme de anta fica solto, mas

o pessoal invade e mata tudo.(...) O rio não transborda mais, mas no ano passado ele

encheu e lambeu o barranco, né? Essas lagoas todas pegaram, os sangradores todos

sangrou, saiu muito peixe de cativeiro, aí, saiu para o rio.” (HL) (I).

O Chapadão dos Gerais, em Buritizeiro, é lembrado como um lugar que antes tinha

muita caça. Anta, onça, veados mateiro, gaieiro e campeiro são citados. Havia um certo

suzapara, animal que tinha mais chifre do que o gaieiro, mais troncudo. “O cerradão

tinha muita macaúba, um tipo de taboca, uma taboquinha do cerrado mestiço, então

aquilo ali era a casa, a morada das anta. Ali ela tinha tudo, tinha sombra, tinha

proteção...” (PC) (III, 191)

Embora a mata fosse abundante nos cerrados de Buritizeiro, um entrevistado de mais de

60 anos afirmou que, quando ele era menino, as pessoas não tinham nenhuma noção de

conservação: “Derrubava era com tudo, derrubava até as árvores dentro do córrego,

Ninguém tinha noção que ... a raiz da árvore protegia o barranco. A cultura era derrubar

tudo.” Não conseguiram derrubar tudo porque havia as limitações técnicas e

financeiras. Tudo se “fazia era aos poucos, naquela época era tudo no braço, não tinha

maquinário, não tinha o poder de devastação que tem hoje. Não existia o correntão. Só

isso.” (PC) (III,218)

1.7 Festas e outras manifestações

Embora menos citadas, as manifestações religiosas e culturais também guardam

algumas lembranças. Alguns registros foram feitos. De festas que não existem mais a

lendas e histórias que se encontram em processo de esquecimento.

“Antigamente, na festa do Divino, em Matias Cardoso, saía a barca, cheia de gente aqui

em Manga e ia pelo rio, iam vestidos de rei, príncipe, com banda de música, barca

enfeitada. Iam as famílias. E essas tradições, esses costumes se perderam.” (HL) (I)

A perda de lendas e casos relacionados ao rio também ocorre: “Já ouvi falar, não sei

contar. Têm os pescadores mais que sabem contar histórias de mãe d’água, cumpadre

d’água e eles juram de pé junto que viu e é verdade.” (ES) (I)

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Em Januária, uma ativista cultural procura recuperar reisados, pastorinhas, folias e

danças próprias da região que estão esquecidas. Uma dessas manifestações é a procissão

de São Pedro, que há mais de 50 anos não acontecia, conforme relatou:

“...os pescadores com o grupo dos temerosos fazia uma procissão de barco no dia de

São Pedro e depois fazia uma celebração, uma missa religiosa e dançavam danças

folclóricas ligadas aos temerosos.(...) a gente ficou muito distante do rio, o rio foi se

afastando da margem, foi secando e a gente foi perdendo aquela afeição que a gente

tinha pelo rio.” (SA) (II, 43)

Finalmente, é importante citar, entre outras memórias, as referências feitas sobre a

origem do nome da cidade de Manga. Segundo um dos entrevistados, engenheiro,

produtor rural e ocupante de cargo público, o nome de Manga não vem da fruta, mas

está ligado às atividades agropecuárias do vale do rio São Francisco. No local onde hoje

se situa a cidade, desembarcava o gado nas gaiolas para ir para o Nordeste. Nessa

movimentação, foram formadas mangas de pasto, havia os vaqueiros e o ajuntamento

do gado no porto de Manga. A cidade recebeu também os nomes de Manga do

Arpoador e Manga dos Cachorros, porque houve uma época que tinha muito cães no

local (CR) (I).

2 MUDANÇAS: Percepção da população da região sobre as alterações ocorridas e

o estado atual do rio São Francisco e outros corpos d’água adjacentes

Em um segundo momento, foi levantada a questão de que se houve, na percepção do

entrevistado, apresentada de forma espontânea, alterações significativas nos rios e no

ambiente em geral e quais foram elas no seu tempo de vivência na região.

Com poucas exceções, os entrevistados afirmaram que, ao longo de suas vidas, o rio

São Francisco e outros corpos d’água da região sofreram grandes transformações. Na

opinião de um entrevistado, essas foram tantas nos últimos anos que “se eu tivesse ido

para fora e voltado, agora eu não teria reconhecido o rio não. Esse rio passava era lá,

naquele barranco, as lanchas, os motor, passava tudo lá.” (JA) (II, 80).

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As alterações se referem, principalmente, (1) à perda de volume e assoreamento do São

Francisco; (2) ao secamento de afluentes e lagoas; (3) à diminuição do período chuvoso;

(4) à escassez dos peixes; (5) à falta d’água para consumo e irrigação; (6) à poluição das

águas; (7) ao extermínio das matas ciliares e outras da região; e (8) ao fim do transporte

fluvial.

2.1 As águas do São Francisco estão diminuindo, o rio está estreito, não enche as

lagoas, não transborda mais

As questões mais citadas se referem à diminuição drástica no volume das águas e ao

grande assoreamento observados tanto do rio São Francisco quanto em seus afluentes e

lagoas próximas. O problema é tão grave que um entrevistado teme que ocorra com o

São Francisco o que aconteceu com o rio Jequitinhonha: “na região de Três Marias tem

um trecho que a gente pode atravessar (o rio) a pé. Aí, a gente pensa no Jequitinhonha,

né? Porque, um dia, ele foi igual ao São Francisco e, hoje, nele tem locais que a gente

pode atravessar a pé.” (CN) (II,18)

O fato do rio já permitir sua travessia em alguns meses do ano é um elemento muito

forte para as observações feitas pela população que vive na região. Uma vazanteira de

Manga afirmou: “O rio está secando, o rio está morrendo, há anos atrás o rio era fundo.

Hoje se brincar atravessa o rio nadando. Tem lugar aí pra cima que o rio tá seco, seco,

seco mesmo! Dá pena, se continuar o rio vai morrer.” (AC) (I,170)

O assoreamento foi observado em detalhes por vários entrevistados, conforme explicou

uma moradora da comunidade de Brejo de São Caetano, em Manga: “Tem a enxurrada,

vai entrando muita areia no rio, a água vai diminuindo, vai acabando o leito normal”.

(TA) (I, 143). Esses processos de assoreamento são relativamente recentes e sua

evolução é acompanhada pela população local. Como mostrou um técnico da Copasa,

em Januária, que trabalha no local há 10 anos e tem como referência do nível de

assoreamento do rio um tubo de captação de água:

“É, o rio está tão assoreado que quando eu cheguei aqui, há dez anos atrás, eu tinha até

dificuldade de alcançar o tubo com a mão, eu tenho um 1.80m né? ... Hoje ele (o tubo)

está abaixo do terreno aqui, ele tá rente com o chão de tão assoreado.” (F) (II,70)

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Uma professora nascida e criada em Manga, pelo tempo que vive à beira do rio, acha

que ele está morrendo a cada dia. As margens e o nível estão abaixando. “A gente não

vê o rio cheio como era antes. Tem muita areia. Não tem mais peixe como antes. Cadê o

peixe?” (D) (I, 128).

O São Francisco, em Manga, está bem mais raso do que era antigamente. Na opinião de

outra entrevistada: “O rio mudou muito: era bem mais largo, essa praia não tinha, ela é

nova, devido a degradação que é muita.” Daqui um tempo, ela acha que vai ser

possível atravessar o rio a pé e que depois de 79 nunca mais o rio transbordou, foi a

cheia maior que viu (ES) (I).

Márcio Santos

Figura 13 – A redução do volume de água do rio São Francisco levou à formação de praias, como a que se localiza em frente a Manga

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Um morador de Januária afirmou: “esse barranco, há dez anos atrás, era lá onde tá

aquela praia. E o leito do rio passava lá, perto daqueles coqueiros lá. Pra você ver o

tanto que ele mudou aquela mata era o leito do rio São Francisco, aquele verde ali há

dez anos atrás era o canal do rio”. (AF) (II, 30)

Outro, dessa mesma cidade, afirmou: “quando eu vim para Januária, morar aqui, o leito

do rio era do outro lado, mais de 300 metros daquela ilha ali aí. O leito do rio mudou-se

para o lado de cá. (F) (II, 29)

Os entrevistados mostraram aos pesquisadores vários pontos de referência que indicam

assoreamentos, afastamentos e outras alterações das margens que preocupam a

população local: deslocamentos do ponto de ancoragem de balsas, poços artesianos que

estavam distantes e agora são invadidos pelas águas do rio, tubos e canos de captação de

água que estavam enterrados e hoje estão à mostra.

Alguns se assustam com o que vêem: “Eu tenho 24 anos de Copasa e eu nunca tinha

visto um rio virar ao contrário, o fundo dele (São Francisco) veio para cima.” Na época

da seca, o rio São Francisco apresenta o leito raso, com profundidade de 6 a 8 metros

apenas em uns 30 a 40 metros de largura, no mais “esses 500 metros de rio aí, o resto

tudo, você pode caminhar nele.” (F) (II)

Em Pirapora, o assoreamento é tão grande que nascem matas dentro do próprio rio. Para

manter a água fluindo para o reservatório da cidade, é necessária a limpeza anual do

canal para a retirada de vegetação (III, 12). Há alguns anos, o rio não tinha

assoreamento e nem vegetação.

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Elisabete Gontijo

Figura 14 – Área assoreada na margem do rio São Francisco, em Pirapora, é utilizada para a lavação de roupas

Além do São Francisco, alguns afluentes também apresentam áreas assoreadas, mesmo

os rios protegidos como o Pandeiros, em Januária. Um pequeno sitiante nascido e criado

às suas margens afirmou que na época da estiagem esse rio fica bem seco, é tão raso que

só cobre o pé e que aquelas partes fundas hoje estão muito assoreadas. Mas quando ele

era menino não era assim: “Quando eu era moleque tinha uns 13 anos a água cobria

uma pessoa de 2 metros hoje nesses lugares.” (GF) (II,192)

2.2 A morte de afluentes e lagoas

O processo de degradação das águas é tão intenso na região que mesmo grandes

afluentes do São Francisco, como o rio Verde e o Gorutuba, foram atingidos. Um dos

entrevistados afirmou que esses dois rios “acabaram.” (VF) (III,55)

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São tantos os exemplos de áreas alagadas, lagoas e rios que desapareceram ou se

encontram completamente degradados, que quase todos os entrevistados têm um caso

para contar. Situações que presenciaram antes e após a degradação:

“... a gente tem exemplo, aqui no município de Manga, de rios que eram, até então,

perenes e hoje estão secando. Eu mesmo tenho 3 glebas na margem do rio Calindó, que

era um rio riquíssimo até 1981. Hoje esse pequeno rio, ele já corta, então, seca tudo,

hoje não chega mais a desaguar no São Francisco..... Mas hoje, nesse mesmo lugar, não

produz um grão mais porque acabou a água, não tem mais essa riqueza.” (HL) (I)

Hoje no Calindó só correm as águas de chuva em três meses do ano. As terras do seu

vale são usadas apenas para pecuária, “elas perderam a maior utilidade que tinham que

era a produção de grãos. Até mesmo a agricultura familiar não produz quase mais nada

nesses locais, apenas a lavoura sequeira.” (HL) (I). Em Manga, além do Calindó, estão

secando também os rios Itacarambi e Japoré. Na opinião de um produtor rural que faz

irrigação com água desse rio, “se o Japoré não for recuperado urgentemente, vai sofrer

morte precoce.” (RM) (I)

A degradação desse rio é fato recente. Segundo um técnico da Copasa de Januária, “há

10 anos o Japoré era outro, tinha muito volume e hoje ele é um córrego que quando tem

água ela é bastante turva. Há muito desmate na região. E, sobre uma ponte que existe

sobre o rio, o entrevistado fez o seguinte comentário: ”tinha significado uma ponte

daquele tamanho e, hoje, já não tem.” (CN) (II, 19). Ele se lembra ainda do rio Impuera

que desaguava no rio São Francisco e hoje não existe mais.

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Mônica Meyer Mônica Meyer

Mônica Meyer Márcio Santos

Figuras 15 a 18 – Imagens do rio Japoré, afluente pela margem esquerda do São Francisco, em Brejo de São Caetano, povoado do município de Manga. Segundo moradores locais, o rio é foco de esquistossomose.

Um entrevistado de Januária, que também trabalha no serviço de abastecimento de água

desde o início da década de setenta, afirmou que já viu morrer de 6 a 8 rios e “é triste

você ver um rio morrendo, você não vê projeto para salvar o rio, você só vê projeto para

acabar com ele”. Cita, entre esses, o rio Poeira que “tinha uma vazãozinha pequena, em

torno de uns 300 (metros cúbicos) por segundo na época da seca, esse rio simplesmente

desapareceu. Tinha um rio, chamado Corgo da Caatinga, que também tinha uma vazão

boa, também desapareceu sem ninguém tomar providências, (...) o rio Pandeiros,

praticamente, não está mais fluindo igual fluía e por aí vai, porque eu não sei nome por

nome”. Da região do Urucuia até Januária, há cerca de 15 rios que já morreram.

Segundo o informante, até o rio Peruaçú, que tinha um volume “respeitável” hoje

também está morrendo e só não acabou porque sua área é protegida (AD) (II,20,27).

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Na região de Buritizeiro, o rio do Sono também está assoreando o Paracatu, que já foi

navegável e segundo um depoente, “hoje, em muitos pontos, a gente atravessa

arregaçando as calças”. O do Sono está muito assoreado, joga muita areia, e pau, e tudo.

O Paracatu era um rio profundo, hoje tem até praia (PC) (III, 239).

Elisabete Gontijo

Figura 19 – Moradora do povoado de Paredão de Minas, no município de Buritizeiro, lavando vasilhas no rio do Sono

Vários outros rios que secaram foram citados. Em Januária, um entrevistado afirmou:

“Conheço várias nascentes próximas ao rio que já secaram, na Quinta da Boa Vista

corria água o tempo todo, hoje é seco e vários outros lugares que eram afluentes.” (W)

(II, 55). Outro afirmou que “os nossos filhos nunca vão ver mais os rios encher”

novamente. Viu o rio dos Cochos, que nascia no Sumidouro, secar. E o rio Tejuco, o

riacho da Cruz e muitos outros afluentes do São Francisco na região que já secaram

(EA) (II, 88).

Nessa cidade também, na localidade de Poçõezinhos, uma entrevistada mostrou o local

por onde corria um córrego:

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“A gente está vendo só o lugar lá aonde que corria a água. Peixe, inclusive tinha gente

aqui que pescava lá. Pescava era de anzol, mas pescava. Ali no fundo daquela casa (...)

plantava bastante arroz... Agora era tempo das vazante, deles colherem. Colhia bastante

coisa. Aí depois foi secando, foi secando. (...) já tem uns quinze anos que secou. Mas

tinha água, a gente usava dessa água, era água limpa. Era o córrego Poções.” (MJ) (II)

Quase todos os entrevistados citaram nomes de cursos d’água que secaram ou se

tornaram intermitentes: o Mandim, hoje faz poeira dentro dele (II, 161); Macaúba, que

era muito forte, já secou; Capim Pubo; Alegre; Manguinhos (II) (162). Todos esses em

Januária.

O rio Formoso, em Buritizeiro, tinha um enorme pântano que acabou: “É, pântanos, (a

gente tinha que andar) quilômetros e quilômetros para poder conseguir uma passagem,

pra se passar a cavalo. Hoje, tá devastado. As empresas é, barrou a nascente de ponta a

ponta”. Fizeram barragens para lavoura de feijão, café, de grãos, de tomates, etc. “Hoje

sua nascente está morta.” (PC) (III, 83)

Elisabete Gontijo

Figura 20 – Trecho do rio Formoso, no Chapadão dos Gerais, no município de Buritizeiro

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Além dos rios e córregos, veredas e nascentes também estão secando. Um entrevistado

relatou que, no município de Miravânia, próximo de Manga, teriam secado mais de cem

nascentes e muitas veredas apresentam cortes, isto é, o volume da água é tão baixo que

ela não chega a fluir, vai formando pequenas poças ao longo do antigo leito (HL) (I).

Na região próxima ao parque do rio Pandeiros quase todas as veredas também estão

secas. Um guarda-parque afirmou que conheceu as veredas cheias “até com peixe, e

hoje não tem nada.” (AA) (II, 151). A situação está tão degradada que uma moradora da

localidade de Pandeiros afirmou que foram tantas as veredas que secaram que, hoje, ela

não conhece nenhuma que ainda esteja cheia, viva (MG) (II, 162).

Um pequeno produtor do parque Peruaçu, em Januária, explicou como se dá a morte das

veredas em sua região. Com a queima das veredas, as areias vão obstruindo o rio e “...

aí as areias vão vindo e vai assoreando o rio, o rio já está soterrando, num corre mais

um leito não, já é no chão já, desviou.” (GF) (II,193)

Em Buritizeiro, um entrevistado afirmou que com a morte de córregos e veredas, hoje o

município, que era considerado uma caixa d’água por causa do Chapadão, não tem dois

quintos da água que tinha antes (PC) (III, 110).

Um filho de vazanteiro, em Manga, afirmou que ele e o pai viram uma lagoa secando e

os peixes morrendo porque a lagoa não tem mais comunicação com o rio. Pegaram uns

balde, encheram-nos de peixes e os soltaram no rio. “As lagoas apodrecem porque a

água começa a esquentar com o calor do sol, aí vai apodrecendo tudo na lagoa” (R)

(I,156).

O relato de um entrevistado sobre o que aconteceu com o rio Poeira sintetiza a história

de muitos rios da região. Afluente do São Francisco, na região de Januária, o Poeira

hoje está quase seco e totalmente tomado por aguapés:

“Há uns 10 anos, isso aqui era corredeira, ponto pesqueiro, essa obra aqui é nova, foi

concluída na mesma época da obra da Covan. Barco pequeno navegava aí, isso aqui era

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uma beleza e a gente sente assim quase um pedaço seu indo embora. Não dá nem pra

você ver água, mas ainda tem um pouco de água aí embaixo. E isso aqui ás vezes dava

vontade ficar só olhando de tanta beleza que era isso aqui. (...)Essa parte aqui desmatou,

fez pastagem, matou os animais e, o que sobrou, procurou outra área para sobreviver.

Capivara, paca, até onça tinha na região, aquele veado catingueira aqui tinha muito

nessa região.” (MR) (II,29)

2.3 O tempo das águas encurtou

De 10 anos para cá, não só o rio tem piorado muito. As chuvas também estão bem mais

escassas. Hoje são três meses de chuva para nove de seca, antes o período das chuvas

era bem maior. Antigamente, chovia muito em setembro, agora as chuvas começam

“no final de novembro, dezembro, daí em diante” (V) (II, 126).

Essa escassez prejudica a produção agrícola, fundamental para a sobrevivência do

ribeirinho. O rio também se ressente da falta de chuva. Essa é a observação feita por um

pescador de 56 anos, morador de Manga:

“O rio está seco pela falta de chuva, seco, sem enchente no rio por causa das matas. O

rio Japoré acabou, para achar água nele tem que abrir um buraco. Quem faz chover é a

mata, com o negócio do carvão, acabaram com tudo. Os seis meses das águas são os três

de agora. Quem aproveitou para plantar nos três meses plantou, quem não aproveitou...”

(PF, 56).

A chuva escassa faz com que o nível do rio baixe muito no período das secas. No tempo

de chuvas é diferente: “o rio é muito bom quando vem a chuva, né! Quando vem a

chuva é uma maravilha. (...) Mas, quando chega no mês de agosto, ele está lá embaixo,

ta no caixão mesmo, e o caixão dele tem lugar que ele dá cinqüenta, cem metros de

largura, compreendeu?” (MF) (II, 126)

Tanto a agricultura familiar quanto a produção comercial agrícola também se ressentem

da incerteza das águas. Um médio produtor afirmou que a agricultura familiar ‘hoje não

produz quase mais nada, é só lavoura sequeira, e para nós, é muito incerto, porque as

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chuvas aqui, se em um ano é bem distribuída, então é bom para a lavoura, mas quando

não é morre tudo, acaba tudo.” (HL, 57) (120).

Segundo um representante dos poderes públicos de Manga, a falta de chuva é o grande

problema do rio:

“O rio é muito importante para nós e o que ele está precisando mesmo é de chuva,

porque, anos atrás, ele era fundo e hoje se torna raso. Depois da enchente de 79, ele

esvaziou muito, as praias abaixaram, desceram. Está precisando mesmo é de chuva”

(FA) (81).

A falta de chuva prejudica também o vazanteiro, que precisa do terreno úmido para seus

plantios. Um deles, que planta em uma ilha, em Januária, afirmou:

“Olha o contato que eu tenho com o rio não é igual ao do pescador. Mas em cima das

ilhas. O rio São Francisco, ele sofreu uma decadência muito grande... Inclusive, a gente

nunca perdeu, não havia perdido hortas e hoje já perde, né,... Por que quando chega

nessa época, naquelas áreas mais altas, a umidade foge, né. A umidade foge e o

mantimento cai, sente muito” (V) (I,114).

Para alguns, o rio mudou porque houve uma mudança climática. E hoje não tem mais

enchente. A última grande enchente, segundo moradores de Manga, teria ocorrido em

91, quando o rio quase inundou a cidade. A grande maioria afirma que a maior de todas

as enchentes de que se lembram foi a que ocorreu em 1979. De lá para cá, as águas

diminuíram, porque não chove mais como antigamente.

2.4 Os peixes são poucos e pequenos; há mortandade de peixes

Ao longo dos anos teria havido um expressivo declínio na quantidade e no tamanho dos

peixes pescados no rio São Francisco. Se, há uns 30 anos, era possível pegar peixe de

até 120 quilos, “hoje, mal se consegue um surubim de 20, estourando 30 quilos” (RM)

(I, 108).

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Outro pescador profissional confirmou que peixes grandes agora são raros. “Hoje para

pegar 30 quilos de peixe tem que se esfalfar mais que tudo. Só tem peixinho pequeno”

(PF) (I).

Na atualidade, “vida de pescador é sofrida: um dia pega, outro não pega. Na pescaria

tem que ter paciência”, conforme lamentou um pescador profissional. A melhor época

para pescar é de maio até setembro. Depois, com as chuvas, a pesca fica ruim, e o

pescador só volta a pescar quando o rio baixar de novo. Na época da piracema, ele tem

que ficar parado, não pode pescar. Mesmo com essas dificuldades, esse mesmo

pescador afirmou que gosta muito da pescaria e que está satisfeito com o serviço que faz

(CS) (I, 196).

Essa impressão ocorre até entre pescadores mais jovens. Um pescador profissional de

30 anos e que há 16 anos vem pescando no São Francisco, disse, que, em termos de

peixes, “lá na área que conhece tem vários pontos que tem peixe, mas tem outros que já

não tem, é muito vazio.” (HC) (I, 76). Há, portanto, um consenso entre aqueles que

vivem à beira do rio que a pesca diminuiu muito.

Quase todos os entrevistados se lembram do tempo que era possível pescar 50, 60 piaus,

enquanto hoje, “no meio do rio, pega uns dois, quando pega.”

A população consumidora também se lembra do tempo que comprar peixe era fácil e

barato. Hoje é difícil de obter e são mais caros, segundo uma moradora de Manga:

“Antes era bem mais fácil, você chegava na beira do rio, você não ficava sem peixe. O

pescador sempre tinha peixe fresquinho na hora. Hoje, não, a gente tem que

encomendar. E o pescador ainda fala ‘se eu pegar...” (ES) (I, 89).

Para o pescador profissional a situação piorou muito “porque hoje em dia, se pescador

for viver só da pesca está ruim demais, antes dava. Pescava e vendia mais barato mas

tinha todo dia na casa, hoje bate uma semana e não pega nada.” (JA) (I). Por isso, o

pescador usa as vazantes do rio para plantar, conforme explicou um membro da

diretoria da associação de vazanteiros de Januária:

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“Tem que plantar, o plantio é para eles comer. Se não, eles vão viver de que? Por que

vai para o rio pescar, chega lá no rio não pega um peixe, mas ele tem abóbora, tem o

melão, tem a melancia, tem o feijão de catador, daquele feijão de corda. Para ele comer”

(MR) (II, 120).

Outros, no entanto, acham que o peixe diminuiu de tamanho mas ainda tem bastante

peixe, o problema é outro: “O rio são Francisco está cheio de peixe. De cor e salteado, o

rio está cheio de peixe., portanto aquilo que eu falei: é a chuva, é a natureza.” (MR) (I,

116).

De fato, há centenas de pescadores em toda a região. Para a maioria, no entanto, “o

pescador só pesca para comer” (S) (I,46). E que, hoje, “ainda tem muito peixe, mas não

é na quantidade que havia na década de setenta, de oitenta. Mas o peixe ainda sustenta

as famílias que vivem na beira do rio” (HL) (I).

Mônica Meyer

Figura 21 – Pescador mostra curimatã, pescado no São Francisco, no porto de Manga

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Durante o período inicial das entrevistas, houve uma grande mortandade de peixes no

São Francisco, que foi relatada em todos os municípios visitados. Em Manga, essa

questão preocupava a todos, não apenas pescadores, mas a população em geral. Vários

afirmaram terem visto grandes peixes mortos passando rio abaixo. Um pescador

profissional relatou: “Tá morrendo surubim grande de 50, de 60, de 70 quilos. Acha

tudo morto no rio. É novidade! Nunca vi surubim morrer antes” (JP) (I, 166). Outro

pescador confirmou também ter visto peixe morto de 50 quilos morto e que esse tipo de

morte não existia antes (PF) (I).

Nesse município, todos queriam saber o motivo de tanta mortandade. Mas, até o final

das entrevistas, ninguém da região de Manga soube explicar. E não houve nenhuma

informação dos órgãos públicos sobre a natureza do problema.

Em Januária, muitos afirmaram que a morte desses peixes se devia ao vazamento de

uma lagoa de rejeitos químicos, localizada ao lado do rio, em Três Marias, conforme

tinham visto no telejornal. Esses rejeitos conteriam venenos pesados que se acumulam

no fundo do rio, exatamente onde vive o surubim. Conforme afirmou um pescador

profissional, o surubim “não anda em meio à água, ele só fica no chão, na terra. Ele só

sai à noite para alimentar, ele vai lá, alimenta e volta. Certo? Então ele (o veneno)

passou pelo fundo e matou” (MR) (I,117). Na avaliação do pescador, descendo mortos

pelo rio, passaram o equivalente a vinte e cinco mil quilos de peixe. Até no município

de São Francisco, peixes estavam morrendo pela ação dos venenos.

Um representante do poder público de Pirapora disse que essa mortandade pode ter sido

provocada por garimpo e capina química na região do rio Abaeté, afluente do São

Francisco na altura de Três Marias. A Companhia Mineira de Metais, em Três Marias,

que produz ácido sulfúrico e zinco em alta escala, também poderá ser responsabilizada.

Porém, até a realização da entrevista, não havia ainda uma confirmação das causas da

mortandade dos grandes peixes (EP) (III, 31).

2.5 Falta de água

Esse é um dos problemas mais sérios das localidades rurais visitadas, próximas ao rio

São Francisco ou a seus afluentes. Brejo de São Caetano, em Manga; Poçõezinho, em

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Januária; e Paredão, em Buritizeiro, são comunidades que possuem sistemas de

distribuição de água originada de poços ou de rios próximos; porém, o volume é

pequeno e a água não recebe qualquer tratamento.

Essa falta de água, comparada com períodos anteriores, é uma das alterações mais

significativas levantadas pelos entrevistados. Ela ocorre tanto para o consumo

doméstico como para a produção agrícola. A falta de água, conforme apontaram as

pessoas, pode ser devida às deficiências no serviço de abastecimento, aos problemas

com as bombas ou à falta de tratamento. Em outras situações, essa falta se deve à morte

de rios e lagoas em regiões que antes tinham boas aguadas.

Brejo de São Caetano é uma comunidade distante 18 quilômetros da sede do município

de Manga, habitada por cerca de cem famílias. Fica à margem do rio Japoré, afluente do

São Francisco, de onde é retirada a água para o abastecimento da comunidade. A bomba

joga água numa caixa de 13 mil litros e é distribuída para as caixas d’água domiciliares

sem qualquer tratamento. Para os entrevistados do local, essa “água é pouca. Abre (a

água) às 9 da manhã e as 9 e 30 já fechou”. Essa é a razão da falta de água no lugar.

Segundo a professora da escola local, muitas vezes a bomba quebra, o que força a

população a pegar água direto no rio. Nessa época, algumas pessoas vendem água. A

lata de 20 litros custa um real. Em sua casa, a água para cozinhar é coada e depois

guardada em potes. Ela pega a água na torneira, côa e coloca nos potes para cozinhar no

outro dia. A água para beber a professora tem que mandar vir de Manga, pois a que

existe no lugar é contaminada. Essa ela guarda em potes separados (TA, 58) (135).

A escola de Brejo de São Caetano fica a 100 metros do rio, mas não tem água e nem

caixa d’água. A servente da escola traz latas d’água na cabeça para o estabelecimento. E

a água que as crianças bebem não é tratada e nem filtrada, porque o filtro da escola não

está funcionando.

Já em Poçõezinhos, no município de Januária, a pouca água que vem da única bomba é

para uso bastante restrito. Com ela não se pode, por exemplo, fazer horta; é só para

consumo humano: “É banho, e louça e lavar roupa! E, assim mesmo, tem hora que eles

ainda brigam para não lavar a roupa... eles fazem reunião e pede para lavar a roupa no

rio. Mas o rio é muito longe!” (MJ) (II, 135). Ou seja, os responsáveis pela bomba que

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serve à comunidade desestimulam o uso da água por ela provida para a lavação de

roupa, recomendando que essa atividade cotidiana seja realizada exclusivamente no

próprio rio.

Uma funcionária da escola da comunidade de Pandeiros, também no município de

Januária, assim falou sobre o problema:

“É essa caixa que faz a distribuição (da água) pra todo este povoado. Inclusive, nesse

bairro, um dia, sim, e outro dia, não. Já em outro bairro, no lado mais baixo, todo o dia

tem água. E é a parte mais sofrida da região, da nossa comunidade, é a água. Por que

todo mundo briga por essa água. O dia que não tem, é uma tristeza né.” (MG) (II, 152)

Para algumas comunidades, o custo da água também é um problema: “Tem hora que

tem água, tem hora que não vem. E a água está chegando um pouco cara também. Tem

hora que uns fala de não pagar, tem hora que não paga, e está vindo com multa, e é esse

rolo” (MJ) (II, 134). Em alguns lugares, a prefeitura assume os custos da bomba e da

manutenção. Em outros, a comunidade tem que ratear essas despesas.

O problema da falta de água foi um dos únicos citados que indicam alguma melhoria na

condição de vida dos entrevistados nos últimos anos. Mesmo sendo hoje um problema

extremamente preocupante, antes, em alguns lugares, como em Poçõezinhos, era pior:

“Aqui, de primeiro, antes desse poço artesiano, nós vivia de água de cisterna. Água

muito poluída, água muito suja. Tinha hora que a gente deixava cessar, de um dia pra

outro, para beber. Tinha hora que pegava daqui mais de quilômetro, eu levava a água na

cabeça. Baldinho de água. Aí depois que veio o poço, começou a melhorar. Mas, assim

mesmo, ainda não está muito bom. Não está muito bom, não” (MJ) (II, 136).

A falta de água é também uma preocupação dos grandes produtores regionais. Segundo

um deles, “o problema é o descontrole no uso da água, pois a região é mais de pecuária

e não de agricultura, mas tem muitos irrigantes em projetos grandes, que dependem

exclusivamente da água do São Francisco e de outros rios. Próximo, no rio Japoré, tem

um projeto com 11 pivôs, para uma grande área irrigada, que já está tendo problema de

água. Há fazendas com assentamentos de reforma agrária que também estão com falta

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de água. Tem muitos empresários querendo vir para a região para praticar fruticultura e

outras culturas irrigadas, mas se não tiver água de sobra, isso não vai ser possível. A

pecuária também depende, em grande parte, da água do São Francisco, e na região tem

poucos poços artesianos, então, a dependência do rio é total” (RM) (I, 109). Esse

mesmo fazendeiro cita, ainda, a situação de Mocambinho, onde há uma captação para

irrigação que utiliza quase um terço das águas do rio São Francisco que passam no

local. Essas captações têm que ser bem planejadas para evitar o esgotamento do rio

(RM) (112).

Mônica Meyer

Mônica Meyer

Figura 22 - Servente da escola de Ingazeira, no município de Manga, desce ao rio São Francisco para buscar água

Figura 23 - Caixa d’água em Brejo de São Caetano, no município de Manga

2.6 A água está poluída

A água captada no rio São Francisco para distribuição nas sedes dos municípios

visitados é considerada farta e de qualidade. Ha estações de tratamento e redes de

distribuição nas áreas urbanas. Segundo um técnico de Januária, o rio, na região de

Manga e Januária, comporta a vazão do esgoto sem comprometer a fauna e a flora, que

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não sofrem de forma alguma. “O esgoto é um impactante, mas não é o mais

importante”. Há um somatório de fatores que está comprometendo o rio.” (C) (II, 23).

Esse não é, no entanto, o quadro relatado a respeito de muitos de seus afluentes e lagoas

adjacentes. Nesses, o nível de poluição e contaminação foi considerado muito alto pelos

entrevistados. Nas áreas rurais, além de a água ser pouca, ela é tida como poluída e

contaminada.

Uma situação impressionante acontece no perímetro urbano da cidade de Manga. Uma

lagoa natural recebe, a céu aberto, todo o esgoto do centro da cidade, o que inclui todas

as residências da área, um hospital, o mercado, uma padaria e outros estabelecimentos

comerciais. Segundo alguns informantes, a água da lagoa deveria ser tratada e depois

devolvida ao rio, mas não é o que acontece.

Essa situação existe desde a construção de um dique para conter enchentes. Com a

enchente de 1979, várias cidades localizadas às margens do São Francisco foram

inundadas. Para evitar que o rio as invadisse novamente, o governo federal, à época,

construiu obras de contenção contra as cheias em Pirapora, São Francisco, Januária e

outras cidades. Em Pirapora, a obra consistiu em um canal com comportas, que servia

de drenagem e para o controle do nível da água. Hoje, esse canal é utilizado como

esgoto.

Em Manga foi construído um dique. Essa construção impede que a lagoa tenha uma

comunicação natural com o rio. Como a lagoa é natural, no tempo das secas, nos meses

de agosto e setembro, a água diminui bastante. Há também uma comporta para permitir

que a água da lagoa entre em comunicação com as do rio. No entanto, ela também não

funciona mais. Para evitar que o nível da água abaixe muito, o que provoca um “mal

cheiro muito esquisito” a prefeitura tem que contratar uma draga para bombear água do

rio para a lagoa. Então, é necessário uma bomba com motor diesel e uma tubulação para

repor a água na lagoa (HL) (I, 73).

Embora não receba resíduos químicos, essa água é imprópria para o consumo humano,

apresentando um forte cheiro, principalmente no período das secas. Segundo um

entrevistado, essas péssimas condições não impedem o povo do lugar de beber da sua

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água. (M) (I, 76). Nela também são encontrados peixes, garças, mergulhões e outros

pássaros.

Mônica Meyer Márcio Santos

Figura 24 - Lagoa utilizada para lançamento de esgoto, localizada nas proximidades do mercado central de Manga

Figura 25 – Despejo de esgoto no rio São Francisco, em Manga

Em todas as cidades visitadas, o esgoto é lançado diretamente no São Francisco. Em

Pirapora está em construção uma estação de tratamento. Enquanto nas outras cidades o

principal esgoto é doméstico, em Pirapora há um grande volume de esgoto industrial,

principalmente de empresas que produzem ligas de alumínio e tecelagem. Segundo

alguns informantes, essas empresas do distrito industrial têm estação própria de

tratamento. No entanto, há problemas em pelo menos um afluente do São Francisco: o

córrego Sambaibinha, que está “praticamente morto devido ao desmatamento e à

poluição” (DM) (III, 53). Segundo denúncias, ele estaria recebendo descarga de

resíduos químicos das empresas de tecelagem próximas ao seu curso. A sua água fica

“azul marinha, praticamente preta (...) e por cima da água, fica uma camada espessa de

resíduos químicos” (D) (III, 26). Antes de desaguar no São Francisco, as águas do

Sambaibinha são utilizadas pela comunidade de Pernambuco, e essa água poluída

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quando “atinge as roças do pessoal, mata toda a plantação”. Isso gerou um prejuízo para

os moradores no início de 2005 (D) (III, 27).

Afluentes do São Francisco também foram citados pelos entrevistados:

”O rio Verde Grande hoje é esgoto e deságua no rio. Quando a gente conversa com

colegas que pescam em determinados pontos, eles dizem que é um rio que dá pena,

quando a gente vai na região depois de Matias Cardoso, você vê que a área é toda

desmatada, que a região se complementa no rio, o rio assoreou todo, o rio ta imundo,

mas ele resiste, está lá dando a sua contribuição para o rio São Francisco e essa é a

tendência de todos os afluentes.” (CN) (II, 19).

Como é notório, o rio das Velhas é considerado o mais poluído da bacia do São

Francisco. Nas palavras de um entrevistado de Pirapora, “esse rio das Velhas aqui, eu

não sei como que peixe tolera essa água... dizem que estão tratando, mas não está

chegando ao conhecimento da gente não”. Além disso, disse que bebe a água do São

Francisco a qualquer hora, “mas a do rio das Velhas, só em caso de vida ou morte” (D)

(III, 148).

Nas comunidades rurais, os problemas com a poluição também são muitos.

Principalmente com as fontes utilizadas para a distribuição da água para consumo

humano, que não recebem qualquer tratamento. Segundo um vereador de Manga, “água

usada pela comunidade de Brejo de São Caetano é imprópria para o consumo, tem um

alto índice de coliformes fecais” (AR) (I) e não é tratada.

Segundo a professora da escola dessa localidade, a população usa água do Japoré, mas

essa não é uma água boa, porque “está contaminada com esquistossomose. Tem

caramujo no rio. As autoridades sabem disso, vem gente aqui faz pesquisa, sabe que a

água é imprópria para consumo. Mas parece que elas não têm interesse” (MA) (I).

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Nessa comunidade há também uma represa cuja água fica parada, “fica como um

pântano, a água não tem carreira, fica morta. Tem lugar que chega a feder... Se tivesse

água corrente não teria essas coisas, não”. (TA) (151)

Mesmo com essas dificuldades, os moradores não deixam de usar a água do Japoré. Na

casa da professora, ela tem “horta, frutas, galinha, porco, pato, peru, para tudo é a água

do Japoré” (TA) (I, 150). A grande questão é que não há outra água no local para uso da

comunidade, apenas essa. “Eu trago minha água de beber de Manga, mas não é todo

mundo que pode fazer isso”, afirma.

Há casos de pessoas que morrem de “barriga d’água”. Segundo a professora, é difícil

conscientizar a população, apesar da sua escola estar sempre fazendo um trabalho nesse

sentido. “Mas só falar do problema, se a gente não tem a solução, também não

resolve”. Diante de tanta dificuldade, ela desabafa: “Então, nós não estamos nem aí para

a xistose, nem aí! Nós não podemos dar um jeito, tanto faz essa situação.” (TA) (I, 137).

Mas ela informou que em Poçãozinhos tem bastante gente com esquistossomose.

Segundo uma entrevistada da região de Januária, há lugares ainda piores:

“Eu fui lá mesmo no Buriti Grosso, lá na terra da Varginha. Eu vi parente minha que

estava lá em um sofrimento horroroso..., e aquilo ali não achei certo. Ela tirava água de

um poço lá, que esse poço tem quase dezessete metros! (...) E a água é suja. Uma água,

assim meia misturada com terra. A gente não tinha nem coragem para beber daquela

água, coloca num filtro e a água nem filtra no filtro. Então eu acho isso, que é uma coisa

errada que nós todos somos cidadãs de Deus. Então nós temos esse direito, ao menos na

água.” (MJ) (I, 139)

O córrego Alegre é um afluente do rio Pandeiros que está bastante poluído, por que sua

água está praticamente parada, corre só em alguns pontos, formando um brejo. Virou

um brejão com muito mosquito em volta. As suas margens apresentam muito pisoteio

de animal. E, segundo informações de moradores da região, a água desse córrego,

apesar de contaminada, ainda é utilizada quando falta no poço que a distribui para a

comunidade (MJ) (II, 142).

119

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Mas em outros lugares ainda é possível encontrar uma água boa: “O rio Pandeiros, por

incrível que pareça, com todo esse trabalho que as pessoas fazem de desmatar as

margens dele, ainda é um rio de água pura” (AA) (II, 153).

O Carinhanha, afluente do São Francisco, também. Uma família, que mora à sua beira,

para beber usa “a água do rio que é limpinha. E não tem gosto de cloro”. Todos gostam

de banhar no rio, onde também as roupas e as vasilhas da família são lavadas. A

satisfação de viverem daquela água é expressa em termos de alegria e prazer: “o rio tem

lugares maravilhosos, a água é boa, maravilha” (ES) (I).

O município de Pirapora apresenta um problema diferenciado em relação à poluição. As

três indústrias metálicas, de ferro-silício, situadas no distrito industrial às margens do

rio São Francisco, emitem partículas sólidas na atmosfera. Não há filtros nessas

indústrias, o que foi motivo de reclamação de entrevistados da cidade: “Não tem filtro e

o mais grave é que estão duplicando a capacidade de produção, sem antes colocar filtro

nessa produção que já existe” (D) (III, 28). A poluição do ar é tão intensa que já está

comprometendo a saúde da população do bairro operário vizinho das fábricas (D) (III,

53).

Elisabete Gontijo

Figura 26 - Poluição atmosférica no Distrito Industrial de Pirapora

120

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2.7 As matas e os bichos acabaram

A população entrevistada demonstrou uma grande preocupação com o fim das matas

ciliares e com o processo em geral de desmatamento que vem ocorrendo na região nas

últimas décadas. Um entrevistado de 34 anos, que trabalha como lixeiro, em Manga,

mostrou como o desmatamento interfere na cadeia ecológica:

“Passarinho tinha muitos, mas muitos acabaram, também foram diminuindo cada vez

mais. As florestas, as matas, estão acabando, então, (...) os passarinho também vão

sumindo, caçando outro local para viver, onde tem mais mata, então (aqui) tem pouco

passarinho. (...) acabando as matas, o inverno, as chuvas ficam mais curtos ainda. Eu

acho que quem atrai a chuva são as matas, as florestas (...) Então, vai afetando o rio por

isso” (RS) (I, 37).

Outros, em suas observações, fizeram uma clara relação entre a falta das matas e o

assoreamento. Como afirmou um morador de Manga com 50 anos:

“Antes, o rio era bem mais largo e mais fundo, houve o desmatamento que acabou com

as laterais do rio. Hoje quase não ‘toma pé, por causa da profundidade. O banco de areia

toma conta do rio. O rio está correndo o risco de morrer. Se não cuidar, o rio vai morrer,

ninguém sabe quando” (JM) (I).

Um balseiro, que faz esse trabalho há 13 anos, disse que na época da chuva, no lugar

onde trabalha, o rio sobre de 3,5 a 5 metros. Mas, na seca, tem muita areia e não tem

como navegar. Por isso, “a beira do São Francisco tem que ser mais cuidada, a margem

do rio” (M) (I, 75).

Um lavrador de 57 anos também demonstrou, em suas palavras, a relação que observa

entre as matas, rio e os peixes:

“Hoje, do jeito que está, peixe nenhum aparece na beira do rio (...) então é só criar

florestas (...) porque quando desmata, aí a água foge mais... Se tiver um lugar aqui na

mata, que tenha lagoa, devido àquela mata que está ali, a lagoa permanece com água por

121

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mais tempo. Mas depois de derrubar aquelas árvores todinhas ali em volta, acaba tudo.”

(AS) (I, 63)

O assoreamento também é claramente explicado por ele nos seguintes termos:

“Porque antes, na beira do rio, existia muita madeira e hoje é onde as terras estão só

caindo e o rio aterrando. Daqui a alguns anos, o rio São Francisco vai ficar buraco de

água, assim, um aqui, outro mais longe, porque vão destruindo as matas de um lado e de

outro e acaba o homem ficando só com aquilo lá.” (AS) (I, 63)

O efeito do desmatamento das veredas sobre o assoreamento do rio também é observado

pela população local. Em Januária, um entrevistado afirmou: que não é só o São

Francisco que vai comendo as matas e os barrancos: “tem muito banco de areia e isso

vem das veredas desmatadas e vem da chuva” (SM) (II, 70).

Muitas vezes o olhar do visitante não percebe que, em alguns pontos, apenas uma faixa

estreita na margem dos rios ainda contém matas. “Tem mata nativa, mas se o senhor

olhou direitinho, já acabou, uê? Tá toda assoreada, tá toda rala, aquele mato ralim.

Quando o senhor, há seis, dez anos atrás o senhor via mata lá. Hoje o senhor não vê

mais!” (MR) (II, 115). Até no rio Pandeiros, que está numa área protegida, a mata ciliar

é rala. Quem a vê da margem do rio tem a impressão que é uma área preservada,

exuberante e bela. “Mas se você andar cem metros aqui, aí já está cortando na margem

do rio.” (AA) (II)

Na opinião de um técnico, que há nove anos trabalha na companhia de água de Januária,

essa situação é a mesma em toda a região:

“Hoje o rio realmente não tem mata ciliar, se você passar de ônibus você enxerga

alguma mata, mas se você ver de cima você enxerga 20, 10 metros de uma vegetação

rústica, mesmo o homem tentando, ele não vai tirar ela dali, são capins que chamam de

carrasco, chamam de pinheiros... Mas mata (mesmo) são poucos os pontos que a gente

pode encontrar (...) tem algumas reservas particulares, algumas APAs mas é muito,

muito pouco significativo” (CN) (II, 15).

122

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Quanto aos animais, um entrevistado que trabalha como tratorista, há 16 anos, na região

de Buritizeiro, no desmatamento de áreas para plantio ou gado, afirmou que “aqui é

muito difícil ver bicho. Aqui não aparece, não. Eu, pelo menos, nunca vi” (208).

2.8 O transporte fluvial não existe mais

Hoje navegação é praticamente impossível. O uso do rio como via de transporte não

ocorre mais. Com exceção de pequenos barcos e lanchas de pescadores todo o

transporte é feito por vias terrestres. Há barcos para passeio usados pelas pessoas que

têm ranchos na beira do rio ou pequenas canoas utilizadas por poucos trabalhadores

locais.

Para os entrevistados, o fim do transporte fluvial está ligado ao assoreamento do rio:

“O São Francisco era uma grande hidrovia, hoje não tem mais jeito, o rio assoreou

muito. Só temos pequenos barcos e lanchas para lazer ou transporte até Carinhanha.

Aqueles barcos que carregavam até 100 toneladas não têm jeito de navegar, só se

recuperarem o canal” (HL) (I, 125).

No município de Manga não há ponte sobre o rio. Assim, quem vai a Matias Cardoso

tem que atravessar o rio de balsa ou na lanchinha. A balsa, com capacidade de até 100

toneladas, funciona 24 horas por dia, e faz a travessia de 20 em 20 minutos. Para o

município de Carinhanha, na Bahia, há duas lanchas por dia; uma sobe, a outra desce o

rio. Para se fazer a travessia em Manga, foi necessário abrir o canal do rio para dar

passagem para a embarcação, porque já não estava dando mais para a balsa navegar

(HC) (I, 77).

Na opinião de um pescador profissional aposentado e que, hoje, tem uma lancha para

transporte de passageiros, acabou tudo. O rio vive seco. Acabou a navegação e tudo

mais porque o leito é seco. “Cadê? Acabou o rebocador, o vapor não existe mais, aquela

lancha grande que tinha para carregar frete, acabou tudo”. Hoje em dia existem só as

carretas e os ônibus. Mas “atualmente tudo é difícil” (PF) (I, 29).

123

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Além do fim do transporte pelo rio, outras alterações ocorreram. Os barcos a remo com

carrancas não existem mais. Segundo um entrevistado, quase 80% dos pescadores usam

mesmo é o motor a óleo em seus barcos. O comércio ribeirinho também se ressentiu.

Como afirmou a dona de casa que serve refeições em uma barranca do rio:

“Há uns 10 anos a venda de refeições era muito boa, hoje está fraco. O pessoal circula

menos pelo rio, agora é mais pelo alto, de ônibus, de carro” (MA) (I) .

Os que acham que nada mudou...

Mas há os que acham que tudo está normal. É o caso de uma trabalhadora rural de

Manga. Ela planta em um pedaço de terra na ilha do Corcúlio há 14 anos. Nascida e

criada na roça. Está em Manga desde 1990, e segundo ela, “quando chegou aqui já era

desse jeito” (JN, 50).

Outro entrevistado, pescador desde criança, com 34 anos, com carteira profissional há

13, perguntado como está a situação dos peixes nos últimos anos, respondeu: “Falam

que diminuiu muito, mas mesmo que diminuiu a gente pega ainda. Pega bastante.” Para

ele, para quem vive da pesca, “ está normal... está sempre normal”. Não expressou

também nenhuma opinião sobre a situação geral do rio, a mata, o assoreamento, a

ocupação das margens etc. (JN, 34) (82).

3 POR QUE MUDOU?: Percepção da população sobre os fatores que provocaram

as alterações apontadas

Nessa terceira fase da análise procuramos inferir, a partir das respostas dos

entrevistados, quais os agentes, fatores ou pessoas que provocaram ou que ainda

estariam provocando as alterações indicadas por eles. Com esses dados, podemos

apontar o nível de informação que a população tem sobre as origens da degradação

ambiental do São Francisco e demais corpos d’água de sua região.

As respostas a esses questionamentos podem ser classificadas em dois tipos: (i)

genéricos, quando não há identificação dos agentes; e (ii) específicos, quando o

124

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entrevistado indicou agentes físicos, econômicos, pessoas ou grupos sociais que, de uma

maneira ou de outra, contribuem ou provocam diretamente a degradação.

3.1 Causas genéricas

A ausência do sujeito

Pelas respostas, observou-se que, na maioria dos casos, esses agentes não são

claramente identificados. Em geral, os entrevistados usam frases com sujeito indefinido,

com ou sem a presença do termo referente ao sujeito. Eles se referem a termos como

“pessoas”, “pessoal”, “camaradas”, “povo”, “eles”. São inúmeros os exemplos dessas

indicações. No caso da sujeira do rio e das águas em geral: “o pessoal da beira da lagoa

ficam jogando esgoto” (I, 2); “o povo não tem compreensão, não ajuda também. Eles

mesmos jogam, o pessoal joga o lixo na beira do rio” (I, 34); “a população não ajuda,

tem gente que joga o lixo sem estar no horário. No rio, em qualquer lugar” (I, 118);

“Eles jogam plástico no meio do quintal, aí vem o redemoinho e sempre o redemoinho

carrega para o meio da cidade” (I, 37).

Um vazanteiro, que está fazendo por conta própria o reflorestamento de quase 30

quilômetros de margem do rio Carinhanha, reclama nesses mesmos termos da

dificuldade que encontra no plantio das árvores: “Eu planto o povo ranca, eu planto o

povo ranca” (JP) (I, 162).

Essa generalização ocorreu com moradores de todos os municípios, independentemente

de idade ou condição social, e na indicação da causa de variados problemas ambientais.

Nos assoreamentos: “devido ao abuso das pessoas em degradar os barrancos, não

respeitar a natureza (I, 11); “desbarrancam” (I, 2); “desmatam” (I, 20).

Nas queimadas: “de vez em quando eles põem fogo na fazenda Ressaca e sei lá se é um

fogo criminoso, quando aparece fogo aqui ele dura meses e mais meses queimando...”

(I, 203); “ o povo sempre coloca fogo nas matas, sempre há um toco de cigarro, sempre

acontece de pegar fogo nas matas, por causa disso...”. Um morador de Manga afirmou

que ele mesmo já plantou muita árvore na margem do rio São Francisco “mas o pessoal

botou fogo, queimou parte do bosque; isso é vandalismo” (I, 118).

125

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No uso irregular da água: “camarada puxa água do rio; acabaram com tudo” (I, 20). E

no extermínio de animais: “Ainda tem lagoas aqui perto. Encantada, Dourada e Prata...

Lá é um paraíso, ainda tem onça, uma quantidade enorme de anta, tudo solto, mas o

pessoal invade e mata tudo”. (I, 121).

Na ocupação de áreas preservadas: “foi criada uma área de reserva ambiental e

biológica de 10 mil e tantos hectares, que é para conservar a lagoa Encantada, a lagoa

Dourada e lagoa da Prata. Mas o governo (só) assinou o decreto, até hoje não se

resolveu, as terras estão aí, largadas, o povo invadindo, degradando...” (I, 121)

Mônica Meyer

Figura 27 - Lagoa da Prata (lagoa marginal do São Francisco) na reserva da Fazenda Ressaca, em Manga

Na produção do carvão: “O povo compra terra só por causa do carvão, não é para

lavoura” (I, 121). Segundo outro, do pouco de mata que ainda resta em Manga “estão

tirando desordenadamente.” (I)

126

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Segundo alguns entrevistados, o que leva o “povo” a depredar o ambiente é a falta de

informação e consciência. Uma funcionária pública de Januária assim se expressou

sobre a questão:

“O povo não tem conhecimento do que é uma queimada, está se prejudicando, e eles

não sabem que estão se prejudicando, ficam achando que é só dinheiro a vida e não é só

dinheiro (...) não sabem que poluição mata, ele não sabe que a natureza e o homem são

naturezas vivas, que o homem faz parte do meio-ambiente, que o homem é responsável

pelo desequilíbrio ecológico, que este vem em conseqüência das queimadas e da

poluição, ele não sabe que o responsável é ele” (SA) (II, 37).

Mas ela também anda um pouco desconfiada dos resultados da educação para a

promoção da consciência ecológica. Acha que isso também não tem funcionado porque

as pessoas continuam “fazendo queimada, jogam lata, vidro, garrafa de plástico no rio,

apesar de ter feito muita campanha contra isso o povo ainda não está conscientizado (...)

Então, é por isso, que o rio está se acabando, o rio está secando, o rio está diminuindo

mesmo o volume” (SA) (II, 37).

Como o grande desmatamento ocorreu há tempos, a população que vive atualmente na

região não deve ser responsabilizada pelo desmatamento. Assim afirmou um morador

de Manga:

“A única coisa do rio é que tem areia demais, tá precisando afundar o rio, o

assoreamento é grande demais. Nós não temos culpa não, o desmatamento foi há vinte

anos atrás. Na área que eu mexo, eu vejo que o florestamento está começando a

desenvolver mais, de novo” (HC) (I, 77).

O comportamento e a cultura da degradação

Alguns entrevistados utilizaram termos relacionados ao ser e à condição humanos,

como “o homem”, “ninguém”, “a natureza”. Não haveria, segundo esses, grupos,

pessoas ou fatores específicos responsáveis pela degradação dos rios. O que há é uma

cultura, um comportamento voltado para a exploração desenfreada da natureza: “Isso foi

porque o homem viu riqueza” (HL) (I, 119); “porque mudou, porque muda” (PF) (I,

127

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23). “O assoreamento aterrou o rio, onde o homem mexeu houve assoreamento e não

consegue voltar para trás” (II, 70).

Um entrevistado de Buritizeiro afirmou que, antigamente, não acabaram com tudo

devido às limitações financeiras e técnicas da época. E que, hoje, o sentimento das

pessoas em relação à natureza é o mesmo de antes: “A mesma coisa. A cultura é a

mesma. Hoje a cultura vem do passado. Muito raramente aparece um, hoje,

interessado... Mesmo com toda a propaganda, com as conseqüências da devastação,

mesmo assim, nego não tá nem aí, não. O ser humano pensa o hoje, o amanhã não

interessa”.

A falta de uma ação voltada para a proteção da natureza também contribui porque: “Não

tem ninguém para zelar, para cuidar da natureza, todo mundo só quer aproveitar, gigolar

a natureza” (I, 120).

3.2 Agentes físicos, econômicos e sociais de mudança

Praticamente todos os entrevistados indicaram explicitamente um fator ou elemento

que, na sua perspectiva, provocam ou provocaram uma ou mais das alterações

atualmente apresentadas pelo rio São Francisco e seus afluentes.

O desmatamento generalizado

Entre os agentes físicos, os entrevistados apontaram o desmatamento do topo dos

morros, das matas ciliares e das veredas. A chuva que encurtou também provoca

problemas ambientais (I, 20). Eles fazem claramente a relação entre esses fatores e o

estado atual do rio e sua região:

“As florestas, as matas estão acabando, então, através das matas que estão acabando, os

passarinhos também vão sumindo, caçando outro local para viver, onde tem mais mata.

Então tem pouco passarinho... As carvoarias estão acabando com as matas... No

inverno, o tempo das chuvas fica mais curto ainda. Quem atrai a chuva são as matas,

então afeta o rio.” (RS) (I, 37)

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O assoreamento é o grande responsável pela condição do rio, e ele é provocado pelo

desmatamento em geral. Um produtor rural afirmou que, na verdade, a água do rio não

diminuiu e não existe esse “terrorismo” de falar que o São Francisco está acabando. O

problema é que ele está sendo assoreado, porque as pessoas degradam os barrancos do

rio, não respeitam a natureza, desmatam a mata de topo, a mata ciliar e a mata das

veredas (HL) (I, 119).

Um pescador profissional, de 40 anos, que participa da campanha de limpeza do lixo do

rio São Francisco, promovido pela colônia de pescadores, explicou o processo do

assoreamento. Esse ocorre devido ao desmatamento que “vai levando a terra pra dentro

do rio”, depois, quando o rio enche, ele mesmo desbarranca suas margens desmatadas.

Com o desmate e o fogo “aí vai desbarrancando e vai só enchendo o rio de entulho. E

vai, e vai, vai...” (I).

Há um fato interessante na avaliação de alguns entrevistados sobre as causas da

degradação provocada pelos desmatamentos. Dois entrevistados trabalham diretamente

com a produção de carvão em grande escala. E ambos demonstraram conhecer os

efeitos dos processos de desmatamento sobre os rios e as águas em geral.

Irrigação, pecuária e outros processos agrícolas

A forma de exploração da água é, também, segundo eles, um fator que prejudica o rio.

Pois, tem muita gente que puxa água por pivô para os campos, para jogar nas roças. Em

alguns municípios esse problema é mais relevante, como em Manga, cuja região tem

muita irrigação a base de pivôs instalados no rio. Segundo um técnico local, há uma

“retirada absurda de água do rio para irrigar absurdamente, descontrolado, o

descontrole, todo mundo fazendo o que bem entende” (AF) (II, 22).

Além da indicação da irrigação enquanto processo agrícola, alguns grupos sociais são

identificados em situações específicas. Na opinião de um pescador profissional, dono de

uma pequena lancha, nascido em Malhada, BA, e residente em Manga há mais de 30

anos, no passado, o rio São Francisco não era muito explorado. Mas, hoje, há tantos

pivôs espalhados pelas fazendas da região que ele não sabe precisar quantos são. Então,

“não tem como ele agüentar não, por causa disso aí”. E quem tem terra “é grande

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produtor. Grande mesmo”. Porque “se fosse só um ou dois pivôs, não, aqui é espalhado

disso ai. É vários, vários. Por isso o rio tá desse jeito aí. Acabou com tudo.” (CS) (I,

192)

Outro entrevistado afirmou que o problema é a falta de controle no uso de irrigação.

Para ele, é a retirada ilegal da água das barragens para a lavoura que provoca o

esgotamento da água em sua região... Por isso, há locais onde antes havia grande

produção mas, hoje, o plantio acabou por falta d’água. Um entrevistado chegou a

mostrar um local onde haveria uma provável captação clandestina para molhar um

parque de produção (HL) (I, 63).

O projeto Jaíba, no município homônimo, foi citado como exemplo de uma irrigação

que provoca grandes impactos ambientais. Um técnico do serviço local de água de

Januária afirmou que o projeto consome um volume enorme de água: gasta por dia o

que a cidade de Januária consome em um mês. Além disso, ele gera riqueza apenas para

os latifundiários e empresas agrícolas existentes no local:

“O projeto Jaíba, hoje, eu não tenho certeza absoluta, mas sei que nem 50% do projeto

está ativo. E, lá, o que se produz e o que tem rentabilidade e que gera riqueza são dos

latifúndios, são grandes produtores de gado, de banana, alguns tipos de frutas e os

demais são lavradores que têm produção de hortigranjeiro, frutas e que vendem aqui em

Januária, Manga, Itacarambi na feira de finais-de-semana” (CN) (II, 17).

Os fazendeiros são responsabilizados também por alguns entrevistados por não

permitirem que as águas das lagoas voltem ao rio. Um engenheiro agrônomo,

representante dos próprios produtores rurais, afirmou que o problema está na má gestão

dos recursos hídricos. O fazendeiro não recebe uma orientação adequada de como usar

as águas dos rios sem prejudicá-lo. Isso ocorre, principalmente, naquelas regiões

pantanosas onde a água entra durante as cheias e o fazendeiro, para usar a água

depositada naquela vazante, fecha a sua comunicação com rio. Mas ele faz isso porque

“não é orientado pra retornar essa água para dentro do rio” (RM) (I, 111).

Essa questão é relatada por um pescador e produtor de peixe de Januária. Segundo ele,

apesar das lagoas serem legalmente protegidas, os fazendeiros, ao fecharem a

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comunicação delas com o rio, impedem o repovoamento dos peixes do São Francisco. O

entrevistado explica o processo:

“Mas, infelizmente, os grandes estão engolindo os pequenos. Os fazendeiros estão

fechando os sangradouros, não deixam a água e nem o peixe voltar para o rio. Esse é um

dos motivos da escassez de peixe nosso. O que acontece? Quando o rio enche e passa a

medida do barranco, que vai no sangrador, ele entra nas lagoas marginais, direita e

esquerda do São Francisco. Aí o que ele faz lá? Aí o outro peixe vai reproduzir na

época da Piracema e entra para reproduzir e ficar lá. Só que, na época que o rio vai

baixando, que ele podia voltar com os filhotinhos aí, o fazendeiro vai lá, alguns deles,

nem todos vão lá e fecha a comporta, fecha até com trator, aí o peixe não volta para o

rio.” (SL) (I)

Esse mesmo pescador quando perguntado por que o fazendeiro fecha a lagoa, não soube

dizer ao certo. Para ele, isso é meio incompreensível:

“... (O peixe) vai ficando lá, de alguma forma ele é usado, se pesca não sei, o que eu

acho interessante é que ele não solta o peixe, isso que é errado. (...) Segundo os órgãos

ambientais, e a gente sabe, eles fecham para alimentar o gado deles, mas haveria outro

jeito de segurar a água. Eu acho que segura para o peixe ficar lá.” (SL) (II, 75)

A morte de nascentes também seria de responsabilidade dos fazendeiros na região de

Januária. Um técnico morador dessa cidade assim explicou:

“As nascentes desses rios praticamente acabaram porque a maior parte nasce em

fazenda e qual a proposta do fazendeiro? Geralmente é reter a água, e quando ele vê que

o fluxo está acabando, que é uma coisa natural, ele vai tentar reter essas águas. E não

tem ninguém para ir lá e fazer com que essa nascente cresça e tenha o seu curso natural,

não tem ninguém preocupado com isso e aí vai só diminuindo e acabando” (AF) (II,

20).

Além do eucalipto, as monoculturas de soja e café praticamente tomaram conta de todo

o município de Buritizeiro. Esse processo agrícola acaba com a diversidade e o uso de

intensivo agrotóxico compromete a água “porque quando a chuva vem, e que lava, e

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leva os agrotóxicos para o rio” (DM) (III, 50). Em Pirapora, há também o projeto dos

“japoneses”, que compromete as águas do São Francisco. Trata-se de um projeto de

fruticultura irrigada com águas do São Francisco, onde são produzidas frutas como uva,

melão, mamão, goiaba, inclusive para exportação. Mas o uso intenso de agrotóxicos

estaria poluindo o rio (D) (III, 50).

O desmatamento próximo de nascentes é um outro grande problema de Buritizeiro,

onde ele é feito para o plantio de soja e café. Importantes córregos como o Formoso, o

Doce e Farias, que deságuam no São Francisco, estão assoreados. Muitos córregos já

secaram.

A pecuária praticada nas margens do rio é também, opinião de diversos entrevistados,

outro fator de destruição. A criação de gado na beira do barranco acaba com a mata

ciliar e provoca desbarrancamentos. Quando a criação desce para beber água, os cascos

dos animais vão desmoronando o barranco, o que, conseqüentemente, leva ao

assoreamento do rio (HL) (I, 70).

Na região de Ibiaí e de Januária, dizem que “cama do peixe virou cama de boi”.

Segundo um entrevistado, isso significa que “o rio vai assoreando e a gente vai vendo

mais gado deitando nas margens dele, o nosso medo é o assoreamento fazer cama pro

boi deitar...” (SL) (II, 76).

Já para um agente policial são os pescadores ilegais os responsáveis pela diminuição

dos peixes. Um fazendeiro de Manga acha que foi “a pesca predatória, essa rede de

passar, que acabou com o peixe” (CR) (I, 53).

Além da grande produção agrícola e dos grandes pecuaristas, para alguns, a agricultura

feita nas margens, ilhas e vazantes também estaria provocando degradação do rio. Essa

prática levaria ao desmatamento e à queima das matas ciliares, que deveriam estar

cobrindo os barrancos e impedindo o assoreamento: “o pessoal que planta na beira do

rio tá querendo plantar quase dentro do rio” (HL) (I, 65).

Em Januária, o representante da Associação de Vazanteiros faz a defesa desse sistema,

pois segundo ele não há levantamento ou diagnósticos provando que os processos

132

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erosivos do rio estariam sendo provocados pelos vazanteiros. Isto porque “os

vazanteiros, aonde eles estão trabalhando, não tem barranco, né! São culturas anuais, e

nós acreditamos que eles não estão promovendo degradação no ambiente.” (VR) (II,

128)

Outros admitem que o “ribeirinho puxa água ilegal”, mas que não é isso que está

acabando com o rio, o que prejudica é a falta de preservação nas margens do rio.

Segundo um morador de Januária, “o governo também tinha que ajudar os ribeirinhos

que moram na beira do rio, dando um incentivo, alguma coisa para ajudá-los” (FM) (I).

Segundo um técnico agrícola de Januária, a agricultura adotada na região não promove a

sustentabilidade das comunidades rurais. Pelo contrário, esse seria um modelo arcaico

de agricultura que degrada o meio ambiente:

“Eles plantam em uma área nesse ano, queimam toda a matéria orgânica, justamente no

preparo do solo, e no outro ano já estão mudando para outra área. Então é um processo

de contínua degradação... Então, as comunidades estão cada vez mais pobres e o meio

ambiente cada vez mais pobre.” (JE) (II, 102)

Segundo outros entrevistados, e a pobreza e falta de emprego na região estariam

levando algumas pessoas a agirem dessa maneira: “o desmatamento na vereda, que é

uma das coisas que não podia acontecer, mas o sertanejo faz aquilo por necessidade, não

faz com maldade, faz aquilo para plantar o feijão para colher e comer” (SL) (II, 76).

Para alguns fazendeiros entrevistados os assentamentos de reforma agrária também

degradam a região. Isto porque, segundo um deles, os assentados são “pessoas sem

cultura nenhuma de preservação do meio ambiente, desmatam, queimam as margens do

rio, se não tiver uma fiscalização em cima desse pessoal, o rio nosso está a um passo de

ser destruído” (HL) (I, 111).

Barragens, diques e outras obras

Na avaliação da população da região, as barragens no rio São Francisco provocaram

problemas no rio, apesar de reconhecerem alguns benefícios. Por isso, essas obras são

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vistas com desconfiança. Uma moradora de Januária afirmou que, depois que as

barragens foram construídas

“o rio ficou cada vez mais menorzinho, antigamente a gente tinha os problemas da

cheia, da seca, talvez essas construções tenham melhorado essa questão, mas o rio está

cada vez menor e temos a questão da navegação, a gente viajava de vapor até Petrolina,

hoje não consegue mais...” (SA) (II, 49)

Um entrevistado vê na construção da barragem de Sobradinho o maior problema do rio.

Para ele agora acabou tudo, depois “dela a tendência é só secar, nunca mais teve cheia”

(PF) (I, 23). Outro afirmou que o que segura a água do rio é a barragem do Sobradinho,

se não tivesse a barragem essa água tinha ido embora (JN) (I). Um engenheiro e

produtor rural explicou porque certas enchentes ocorreram na região:

“Aqui a barragem de Sobradinho não tem impacto nenhum, só tem pra frente da

barragem. O impacto maior aqui é de Três Marias: a Cemig segurou (em 1979) a

comporta para encher a barragem. Aí, a água não parou de subir, e de chover. Então, a

Cemig começou a soltar a água, a enchente veio porque o volume de água era muito

grande” (CR) (I, 98).

Para um vazanteiro, no entanto, as barragens a jusante do rio também tem efeito sobre

suas plantações:

“Quando abre as comportas de Mocambinho, a água aqui para nós ela desce, então, é aí

aonde as terras secam mais rápido. Quando fecha você vê... que o rio está enchendo.

Mas não é por que lá em Três Marias tá normal, só quando ele (Mocambinho) fecha as

comportas. Aí a água aumenta. Trazendo o prejuízo que a gente tem nas roças, mas é

isso aí” (VR) (II, 132).

Essas barragens, segundo um pescador de Manga, causam também a escassez dos

peixes: “De uns vinte anos pra cá, o peixe minguou muito... O peixe não sobe, ele fica

preso em algum lugar por aí. Eu alcancei essa época em que ele (o rio) tinha peixe

direito” (VA) (I, 61).

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As barragens prejudicam o peixamento dos afluentes do São Francisco. A falta de

escadas impede que os peixes subam os rios para desovarem. Esse é caso da barragem

do rio Pandeiros, onde funciona uma usina elétrica. Conforme narrou um comerciante

local, esse procedimento deixa dois terços do rio acima da barragem sem peixes. Essa

barragem:

“Ela não tem a escada não. O peixe vai até próximo da usina, desova e volta. Acima da

usina, da barragem, não tem peixe... pode considerar que lá em cima, na barragem,

praticamente não tem peixe” (AA) (II, 147).

A convivência da população local com essas obras exige, muitas vezes, uma vigilância e

atenção de sua parte. Um morador de Januária relatou que a barragem da Cemig, no rio

Pandeiros, freqüentemente dava uma descarga de areia e detritos tão forte que a água do

rio chegava a secar. Ele registrou essa agressão:

“Daí eu comecei a tirar fotografia e mandar para o IEF, e para a Promotoria Pública, e aí

eles reuniram com a Cemig e eles pararam. Atualmente o rio diminui, ele baixa até

setenta por cento, mas não seca totalmente” (AA) (II, 149).

Além das barragens, os diversos diques construídos na região também tiveram fortes

impactos, principalmente sobre afluentes e lagoas. O dique impede que a lagoa entre em

comunicação natural com o rio São Francisco. Na grande enchente de 1991, em Manga,

conforme afirmou uma autoridade local, o governo federal fez uma contenção do rio,

um barranco alto. Depois, a prefeitura local teve que subir o barranco em mais de um

metro, porque o rio continuou subindo. Esse dique impede que a lagoa do centro de

Manga entre em contato com o rio, por isso ela se tornou um esgoto ao ar livre.

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Mônica Meyer

Figura 28 - Dique de contenção de enchentes, construído após a grande enchente de 1979, em Manga

Um outro exemplo foi dado por um produtor rural. Trata-se de um projeto agrícola, nas

proximidades de Matias Cardoso, para o qual foi construído um dique para impedir que

as águas do rio Verde invadissem a área de plantio. Com essa obra, muitas lagoas

secaram: Conforme afirmou o entrevistado: “lá deve ter o quê? 10, 15, 20 lagoas que

acabou, secou. Hoje, pra sobreviver lá, abre uma cisterna onde havia uma lagoa”. As

lagoas eram alimentadas pelo rio Verde, então, o “dique contrariou a lei da natureza, as

lagoas simplesmente desapareceram.” (HL) (I, 121)

Os efeitos do fechamento de áreas alagadiças com o objetivo de viabilizar uma grande

produção de cana-de-açúcar para uma fábrica de álcool foram relatados por um

habitante de Manga da seguinte maneira:

“Esse lugar lá era lugar deles desovarem, porque quando era época de cheia, o rio

enchia e entrava nesses matos e o peixe entrava lá, e quando era a vazante, o peixe

voltava para o rio e aí eles ficavam nesse trecho aqui. Aí vieram uns camaradas muito

fortes e fizeram um aterro lá, e esse aterro tem umas duas léguas (...) aí tirou o rio, e os

homens entraram nesse lugar e aí eu acho que os peixes morreram (...) E aí foi onde os

peixes acabaram. Esse lugar chama Barra do Rio Verde. É um pantanal muito grande, aí

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eles fecharam com aterro do rio Grande ao rio Verde, e aí o rio não entrou nela mais.

Eles montaram lá uma fábrica de álcool, plantaram muita cana, meteram a faca lá, mas

depois estacionou, porque a terra lá não era para plantio da cana, ela era mais um

pantanal, para peixe, capivara, esses bichos do mato. E ele amassaram a terra com o

trator (...) Aí não teve como passar (...) para frente. Aí tornaram a arrancar tudo de

novo...” (VA) (I, 62)

O efeito de obras sobre alguns afluentes também é lembrado. Após a enchente de 1979,

em Januária, houve “uma mobilização do governo, na época, para tirar a água de dentro

de Januária, com medo de vir uma nova enchente. Aí, veio a construtora Covan para

fazer um dique em volta da cidade e esse dique na frente, aí.” (SL) (II, 79). O dique foi

construído em 1982, e, depois da sua construção a cidade ficou protegida. Segundo

outro informante: “em 82 e 92, se não tivesse o dique, o São Francisco teria invadido a

cidade” (AF) (I27).

Esse dique foi construído justamente para preservar a cidade de Januária das enchentes;

no entanto, ele deve um efeito arrasador sobre alguns rios da região. Segundo um

técnico do serviço de água da cidade, ele arrasou o rio Poeira e o rio Quebra-Cumbuca,

que desaguava no São Francisco, e está hoje completamente seco. O informante disse

que isso foi devido “ao serviço que a Copasa fez aqui, assim como esse e o rio Poeira

também dizimaram com a construção do sistema da Covan” (AF) (I, 27) Hoje, no local

por onde passava o Quebra-Cumbuca há uma ponte; sob a ponte, apenas areia. Em suas

margens secas há uma ocupação com moradias extremamente pobres. Em um ponto do

seu antigo leito “as pessoas estão tirando terra para construção e começou a minar água,

então acabou formando, ali, uma pequena lagoa” (AF) (I, 27).

As pequenas barragens nos afluentes para irrigação construídas “aleatoriamente, de

forma ilegal, com o objetivo de represamento do curso do rio” criam grandes impactos

que sequer foram avaliados adequadamente pelos órgãos ambientais (CA) (III, 92). Em

Buritizeiro, elas estão interferindo no curso de vários rios que nascem no Chapadão dos

Gerais, e há uma reclamação entre vários entrevistados na região sobre os barramentos

que vem sofrendo o rio Formoso, afluente do São Francisco.

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A construção de estradas sem considerar as condições ambientais do terreno também foi

lembrada por alguns entrevistados. Segundo um técnico de Januária, os assoreamentos

causados por estradas mal planejadas estão entre os maiores problemas da região. (JE)

(II, 105) O efeito dessa obras pode ser avaliado pelo que ocorre em um município da

região com cerca de 600 km de estrada de terra. Uma autoridade local explicou o

processo: “eu começo a "patrolar" tudo quanto é estrada, daí chega a chuva, aí começa a

descer as enxurradas, aquilo vai tudo para o leito do rio”. Hoje há soluções técnicas para

evitar o problema, mas são pouco utilizadas por falta de recursos (VF) (III, 62).

Em Buritizeiro, a equipe observou um córrego que está sendo assoreado por uma

estrada. Segundo um técnico do IEF, isso ocorre porque “no período chuvoso, as

enxurradas que caem, que correm a céu aberto pelas estradas, elas estão caindo

justamente em um afluente do rio Formoso, que é o Córrego das Almas... vão carreando

areia e causando o assoreamento” (CA) (III, 92).

Segundo informações obtidas na região de Manga, até a balsa contribui para o

assoreamento direto do rio. Durante as cheias, para facilitar o acesso da balsa à beira do

rio, caminhões de terra são trazidos para aterrar e aumentar a barranca onde a balsa

chega. Essa medida, de acordo com os entrevistados, é um “assoreamento direto, não é

aquele espontâneo, que vem da própria natureza” (I, 83).

Os agentes externos

Muitos agentes causadores da degradação são identificados como pessoas ou empresas

sem relação com a região, mas que possuem grande poder econômico. Em especial,

grandes produtores agrícolas, empresas que utilizam o carvão e as de reflorestamento.

Essa avaliação é feita inclusive por lideranças políticas regionais. Um político e

produtor rural da região de Manga utilizou o termo “latifúndio” para se referir àqueles

que vieram de fora e degradaram o município. Segundo ele, é o

“poder econômico que as pessoas possuem hoje, de chegar, adquirir grandes áreas de

terra de uma forma desenfreada, buscando só o lucro, então, a nossa região foi muito

prejudicada depois que chegou o latifundiário. Então, foi comprando as pequenas áreas,

as famílias foram saindo, e eles foram degradando o meio ambiente...” (HL) (I, 120)

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Esse “latifúndio” teria chegado primeiro com o gado, “pecuária muito forte”, e as

grandes lavouras. Depois vieram as irrigações de forma indisciplinada: “o cara, às

vezes, coloca um projeto na beira de um Japoré aí, de mil hectares. Ele quer saber é se o

pivô dele vai ser alimentado, ele tá pouco ligando, né?, pois quer é garantir a sua

produção”. Por outro lado, “o nativo quer pescar, banhar, ter água para ele. O rico

quando chega para cá, nem bebe água do rio, abre um poço artesiano” (HL) (I, 121).

As empresas de outras regiões do estado também são apontadas como beneficiárias do

carvão, que acaba com a mata nativa local. O carvão é produzido nos municípios da

região, mas não é utilizado pela gente do lugar. Ele sai de várias regiões do São

Francisco e “chega até Sete Lagoas, lá pra siderúrgica” (HL) (I, 68).

Quem depreda a reserva também não é gente da região: “o pessoal que gosta de caçar,

que vem na reserva, não é gente de Manga” (HL) (209?).

Os movimentos dos sem terra são também vistos como organizados por pessoas que não

são da região: “E corre o risco dos sem terra invadir isso daqui, se invadir acaba com

isso aqui da noite para o dia” (HL) (209).

Segundo um produtor de Manga, o ribeirinho que utiliza a beira do rio, ilhas e terrenos

de vazante é também um dos responsáveis pela degradação: “o pessoal que planta na

beira do rio tá querendo plantar quase dentro do rio” (HL) (I, 65). Outros admitem que o

“ribeirinho puxa água ilegal”, mas que não é isso que está acabando com o rio, o que

prejudica é a falta de preservação nas margens do rio: “O governo também tinha que

ajudar os ribeirinhos que moram na beira do rio, dando um incentivo, alguma coisa para

ajudá-los” (FM) (I).

O governo

A inércia, a incapacidade de fiscalizar ou a incompetência do governo também são

lembradas como agravantes da situação geral de degradação. Essa posição é comum

entre os entrevistados, independentemente de sua condição social, do seu nível de

atuação política ou se mantêm relação com o governo. Um representante do poder

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público em Januária foi enfático em sua crítica à forma como foi criado o parque do rio

Peruaçu.

“Aquele parque foi um equívoco que vocês nem imaginam, rapaz! Aquele parque foi

feito dentro de um gabinete, com um cara tecnocrata, que não entende nada de meio

ambiente. Preservou a parte de baixo do parque! Querendo até expulsar as famílias que

estão lá... A parte de baixo do parque! Tinha que ter preservado (era) o parque para

cima, aonde que é as nascentes do parque! (...)

O que nós pedimos foi a preservação disso aqui ó! Dessa nascente! Pessoal queima,

bota fogo para plantar. Isso aqui está secando!” (EP) (II, 86).

O governo federal é apontado como um dos responsáveis pela degradação ambiental, ao

lado de fatores físicos. Assim opinou um técnico em agropecuária de Januária:

“Hoje, nós acreditamos que (...) são três as feridas: os processos erosivos, o êxodo rural,

e a omissão do governo federal quanto aos programas e projetos voltados para o São

Francisco. A sociedade quer, os órgãos ambientais querem, mas o governo, até agora, só

está preocupando com a parte política da coisa” (JE) (II, 102).

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4 O CARVÃO ARRASADOR...

De todos os fatores apontados como causadores das alterações observadas no rio São

Francisco e seus afluentes, o que mais tem contribuído para a destruição, conforme a

opinião da maioria dos entrevistados, é a produção do carvão vegetal. O corte da mata

nativa como o plantio de monoculturas exóticas nas áreas cortadas causam efeitos

danosos. Independentemente da condição cultural ou social dos indivíduos da região, há

unanimidade na avaliação de que o carvão e as carvoarias são os grandes responsáveis

pelo desmatamento.

O grande desmatamento

Na região visitada, nas décadas de 70 e 80, principalmente, ocorreu o desmatamento de

enormes áreas de cerrado para o plantio de eucalipto, efetuado por grandes empresas e

empreiteiras. Além da própria planta, que não se adaptou à região, adotaram um sistema

de plantio que gerou grandes danos ambientais até hoje visíveis e persistentes. Por isso,

na interpretação de muitos entrevistados, o desmatamento e reflorestamento para carvão

“foram a maior degradação ambiental de Minas Gerais” (JE) (II, 102). Conforme

explica um técnico agrícola de Januária:

“Os processos erosivos, no caso da nossa região, eles foram promovidos, em sua maior

parte, pelas empresas de reflorestamento. Eles acreditavam que a chapada, o cerrado ele

poderia produzir, ter uma produção de eucalipto. Só de você olhar para uma árvore do

cerrado, você vai ver que ela é totalmente diferente do eucalipto. Se ela cresce tortuosa

daquele jeito, ela não tem objetivo de crescimento, ela cresce para proteger as raízes, do

excesso de sol! E, ela tem um ecossistema próprio dela!” (JE) (II, 102).

Para plantar o eucalipto tiveram que desmatar pelo sistema de correntões para

destruição da mata. Esse trabalho consistia no acoplamento de uma corrente de até 10

toneladas em dois tratores, por onde ela passa não deixava nada em pé. Conforme

explicou um entrevistado de Pirapora:

“Trabalhei com correntão, era um correntão de 80 metros de cumprimento... de 75 a

78... A gente ficava triste, vendo, hoje eu não tenho coragem de fazer... porque é uma

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destruição de toda espécie de animais (eles) saía correndo na frente das máquina, era

cutia, era veado, era tatu, era seriema, era tamanduá...saía correndo de medo... Não tinha

tamanho de árvore, qualquer tipo de árvore, ela ia e punha no chão mesmo. Quando a

corrente não derrubava, usava as lâminas da máquina pra derrubar...Depois, quebrava

tudo aqui...Naquela época, não tinha negócio de carvoaria, queimava a madeira lá, nem

aproveitava, queimava tudo.” (V) (III, 125)

Esse era o “desmatamento efetivo!”, o que acabava com tudo, não “respeitaram as

espécies que, jamais, você pode retirar do ambiente” (JE) (II, 102). Porém, em muitos

locais, como em Januária, o tipo de solo não era adequado à planta:

“Hoje não existe nem dez por cento mais! Um que o solo não deu condição de

desenvolvimento da planta, a formiga não deixou também. Eles não conseguiram

combater o eucalipto, ele tem uma atração muito grande para formiga” (JE) (II, 102).

Além disso, o eucalipto causa muito ressecamento da terra, tem lugar que não nasce

praticamente nada, que está deserto, porque com o processo de degradação, o solo se

torna muito arenoso (WA) (II, 51).

O resultado do reflorestamento na região foi tão avassalador que várias pessoas usaram

termos para se referir à situação que ficou depois de sua implantação como “acabou

tudo”, “deserto”, “hoje não tem nada”.

“Que, falar para o senhor, acabar... Foi acabar... Nosso município acabou, depois que

começou a fazer esses reflorestamentos. Planta de eucalipto, cortou mata nativa, de

natureza cortou e, plantou eucalipto e deixou aí. Eu sou contra carvão, carvoeira, eu sou

contra essa reserva que eles têm aí de eucalipto, que é uma aberração que eles tem aí.

Foram embora e deixaram o campo aí. Então eu acho que não devia fazer carvão, devia

ter outro meio, outro meio das siderúrgicas, manter ela lá sem usar o carvão da nossa

região” (JE) (II, 115).

Apesar de tudo, observa-se que a capacidade de resistência do cerrado foi

surpreendente. Ele estaria se recuperando em metade das áreas que já ocupou:

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“O nosso cerrado é (...) maravilhoso! Hoje nessas áreas de eucalipto, o cerrado voltou, e

sufocou o eucalipto, e recuperou, acreditamos, em cinqüenta por cento já ele recuperou.

Agora, só que, continuam pessoas com o desmatamento efetivo!” (JE) (II, 102).

No município de Buritizeiro, houve uma considerável recuperação de parte da

vegetação original de cerrado e até de algumas fontes de água. Mas como disse um

pequeno produtor da região: “tem algumas comunidades que, depois que o pessoal do

eucalipto foi embora, está recuperando, agora meu medo é que a soja venha e destrói o

que ficou” (DL) (III, 135). Segundo outro morador desse município, o cerrado

recupera, mas não totalmente, “muita coisa volta, mas é a longo prazo, trinta anos. Não

é trinta dias, não.” (PC) (III, 198)

Efetivamente, o processo de desmatamento de mata nativa não terminou ao longo

dessas décadas. O processo continua nas áreas restantes e restauradas, segundo afirmou

um entrevistado de Manga:

“Esta mata está acabando por causa das carvoarias, porque fazendo carvão aí derruba as

matas e não tem como fazer crescer de novo as matas até ficarem no ponto em que

estão, e isso demora muitos anos” (RS) (I, 37).

Em Buritizeiro, a produção do carvão de eucalipto era mais intensa há alguns anos, mas

continua. Hoje o que está preocupando a população local é o desmate em áreas de

vegetação nativa, próximas de veredas, e de cerrado, para o plantio de soja e café. Nas

margens da BR-365, é possível ver os grandes desmatamentos e plantações.

Segundo uma autoridade de Pirapora, toda a região tem problema com o carvão. Em

Pirapora essa questão não afeta tanto, pois no município praticamente não tem zona

rural. Mas essa é uma questão muito difícil de solucionar:

“Porque a siderúrgica sem o carvão, a siderúrgica pára. O estado pára de exportar.

Parando a siderúrgica, param as carvoeiras, daí causa problema social... Mas, em

conseqüência disso, estão degradando as matas e as florestas, e ninguém respeita mais

as áreas de preservação” (VF) (III, 57).

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Os efeitos do eucalipto

Se o eucalipto não se adaptou ao solo, grande parte da fauna nativa também não se

adaptou à nova planta: “os pássaros foram embora. E de eucalipto pássaro não gosta.

Eles foram embora, os bichos foram embora. Acabaram com tudo” (MR) (II, 115).

De todos os problemas, o assoreamento pode ter sido o efeito com maior impacto na

região, provocado pelo sistema de organização do plantio adotado pelas grandes

empresas, que se consistia em abertura de talhões ao longo da área de cultivo. O plantio

era dividido em quadras e a cada área de cem hectares era aberto um talhão, ou

carreador, para permitir a locomoção de caminhões e tratores na área. Conforme explica

um técnico de Januária, os talhões:

“eram traçados ali no mapa, e o que acontecia? Muitas vezes eram carreadores que

tinham uma declividade muito grande, em relação, em um solo que não tem estrutura

quase nenhuma, areia quartzosa, então... Agora você imagina! Você tem um

desmatamento! Você meter uma patrol, faz uma estrada numa areia quartzosa, numa

declividade de mais de sete a dez por cento, o que vai acontecer com o impacto da

chuva desse solo? Então, foi levado milhões e milhões de areia para dentro das veredas!

Secaram as veredas e secaram as nascentes. Tem areiões que eles não conseguem tirar

mais nunca” (JE) (II, 103).

Os efeitos ambientais desses sistemas foram os piores possíveis em todos os lugares.

Muitas nascentes do rio Pandeiros secaram, porque “dizimaram o lugar para plantar

eucalipto... o eucalipto não desenvolveu naquelas terras ruins lá. Era aquela floresta

nativa mesmo. Foram até na beira do rio. Aí vem a chuva, barrando, leva a enxurrada

para dentro do rio” (EA) (II, 91).

O carvão e as empresas

As empreiteiras que produziam o carvão não são da região do São Francisco. E isso é

citado por vários entrevistados:

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“Esses empreiteiros que vieram de Curvelo (...) A própria Plantar! Essas firmas que

vieram de reflorestamento, elas dizimaram as florestas de cerrado de Januária... Esse

pessoal que veio de Curvelo, de Sete Lagoas aí. Dizimaram as nascentes do São

Francisco; as nascentes de Pandeiro secaram em monte. Certo! Mas dizimaram mesmo,

para plantar eucalipto” (EA) (II, 91).

Para um produtor rural de Januária, que também já produziu carvão, o fato da empresa

não ser do município não é bom, porque:

“o produtor, o cara que não é daqui, não. Ele chega. Por que tem uma empreiteira, que

tem um bocado de caminhão, tem um bocado de trator, e tal. Você sabe como é

empreiteira, né? Vive de carvão! E esse carvão, ele é destruidor, ele é um assassino

mesmo da natureza. O negócio dele é dinheiro. Ele destruiu uma cidade, ele passa para a

outra. Eu sou contra esse tipo assim de exploração gananciosa, soberba, parecendo que

o mundo vai acabar. Vai acabar de que jeito isso?” (EA) (II, 91)

Para esse produtor é possível explorar o carvão sem destruir a natureza. Preservando

uma quantidade mínima de árvores por hectare, não desmatando as descidas, as beiras

dos riachos, das nascentes. Ele acha que o “pequeno produtor” de carvão faz isso. Para

ele, o produtor local, quando tem consciência, “não é depredador, não”, porque

“o cara que é dono da fazenda dele, ele tem amor na fazenda dele! Você vai destruir a

sua casa? Um fazendeiro que ranca uma aroeira, é por que ele precisa daquela aroeira

para fazer um poste, colocar numa cerca e tal (...) Mas, o cara, quando ele vem de fora,

que é um empreiteiro, que arrenda um mato de um coitado aí. Ele sai levando tudo!”

(EA) (II, 91)

Apesar de todos os malefícios do plantio em larga escala, as empresas continuam

trabalhando, e legalmente, o que é lamentado pelos moradores locais:

“Infelizmente, infelizmente... as grandes empresas ainda conseguem licença para o

desmatamento. Nós temos um caso, aqui em Januária, de uma carvoeira dentro do nosso

maior cartão postal, se tratando das lagoas. A Lagoa Branca tem uma carvoeira, ao lado

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dela que assim, parte o coração da gente. Infelizmente a gente tem que falar isso” (JE)

(II, 98).

A produção atual

Com a manutenção do mercado do carvão vegetal, a produção continua em toda região.

Grandes empresas ainda permanecem na região ao lado de produtores locais. Segundo

informantes, há muito carvão vegetal ilegal vindo da Bahia. Há também a produção

“doméstica”, feita em algumas comunidades rurais. A mata nativa corresponderia a

cerca de 80% de toda a produção. Segundo um entrevistado, Januária é uma das regiões

que mais produz no Norte de Minas. Todo esse carvão seria extraído de mata nativa. Do

eucalipto se produz “pouquíssimo, se tiver acredito uns vinte por cento de eucalipto, o

resto é tudo nativa.” (AA) (II, 149)

A relevância regional do carvão é constatada pelo que representa em termos de

impostos. Ele é o grande responsável pela transferência do ICMS recebido pelo

município de Januária. Num total de dois milhões e setenta e nove mil reais, o carvão é

responsável por oitocentos e setenta e três mil e quatrocentos e três reais de

transferência de ICMS, correspondentes a 42% do montante (EA) (II, 94).

Segundo um político e produtor rural, o município de Manga já está praticamente

zerado em termos de vegetação nativa. Só existem mesmo as reservas legais das

fazendas. Mesmo nessas, “tem gente que já está usando as próprias reservas também,

esses 20%, que foram obrigados a ser de reserva, já estão também entrando nelas e

transformando tudo em carvão” (HL) (I, 67).

Além de Manga, as carvoarias já entraram no sul da Bahia, nos municípios de Juvenília,

Feira da Mata, Coco, Santa Maria da Vitória, Goribi, Bom Jesus da Lapa e outros (HL)

(I, 67).

A mata nativa é tão rara, que o carvão já não é mais problema para o município de

Manga, segundo afirmou uma autoridade local: “Na verdade, não temos mais problemas

com o carvão, já acabaram as matas. Tem um programa ecológico para plantio de

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árvores, mas é muito pequeno. Mas ainda tem algum (mata) e estão tirando

desordenadamente” (CR) (I).

Próximo de Manga há, segundo uma entrevistada, gente fazendo carvão. Um motorista

de um caminhão carregado de carvão lhe contou que esse carvão era “daqui mesmo, de

Maiúma” que fica a 30, 40 quilômetros de Manga. Para ela, até então “era sabido que

eles tiravam pra lá, não sabia que aqui pertinho da gente tinha” produção de carvão (I).

Para um produtor rural e representante do poder público em Januária, as pessoas em sua

região trabalham com carvão porque “O povo está quebrado. Tá quebrado, nêgo tem

atividade de quê? Carvão! Taca carvão! É questão financeira! Incentiva para ver se o

povo não faz. Tem dinheiro para tudo nesse país, até para mensalão! Não tem para

preservar o rio?" (EA) (II, 91).

Assim, a exploração de carvão continua por causa das fazendas que estão documentadas

e que ainda são de reflorestamento, como a Plantar, e são elas que estão produzindo

mais carvão. Mas existe também carvoeiro ilegal, “mas caiu noventa por cento o carvão

ilegal. Hoje quem está puxando o carvão, ta puxando legal, que a região está fiscalizada,

então não tem jeito.” (JG) (II, 172)

Na região do rio Pandeiros a produção de carvão continua em “alta escala”. Segundo

um entrevistado, antes do IEF ter intensificado a fiscalização, ele contava até 10

caminhões de carvão saindo todo dia da área do Pandeiros.

“(...) o Pandeiros... é um caos. Por causa dos carvoeiros né! O que os carvoeiros

desmataram na cabeceira do rio Pandeiros, fez carvão, plantaram! (...) E continuam

desmatando. Mesmo com a gente do IEF, em cima com a fiscalização, continua. Agora

está diminuindo muito, mas ainda continua.” (AA) (II, 149)

A produção “doméstica“ foi citada por vários entrevistados como necessária à

sobrevivência das pessoas que moram nas áreas rurais. Diante da falta de fontes de

geração de renda e emprego, há comunidades rurais na região que estão produzindo

carvão. São pequenos produtores extrativistas que utilizam a mata nativa para produzir

carvão em pequenos fornos domésticos, Mas eles não ganham nada, quem ganha é o

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“atravessador” (RC) (II, 66). Segundo um representante do poder público em Januária,

essa produção ocorre porque:

“O povo é pobre! Pobre, pobre... cada produtor lá tinha um forninho! Aí o IEF foi lá

derrubou... Quer dizer, tirou daquele coitado o pãozinho, que é migalha mesmo,

coisinha dele dar para o filho dele. E deu o que de condição para ele? Não deu nada! O

cara respirar aquela fumaça. O cara faz aquilo, não é por que gosta não! É por que ele

precisa sobreviver!” (EA) (II, 93).

Na verdade, o IEF começou a desenvolver na região do rio Pandeiros um programa de

geração de renda para essas comunidades, desvinculado da produção de carvão. Mas

alguns observam que os órgãos públicos deixam de fiscalizar algumas fazendas:

“Mas, os pequenos produtores estão desmatando assim, até meio escondidinho, às vezes

nem tem a autorização legal para fazer o desmate... Agora, os grandes produtores de

fora, igual aí a Fazenda Ouro Preto, eu sou vizinho lá, tá desmatando na beira do rio

para plantar capim! Agora os pequenos não podem plantar! Agora os grandes vêm e

plantam. Então essas medidas, tinha que tomar para todos, os grandes e os pequenos,

para fazer reunião para não desmatar...” (JG) (II, 168)

Para sobreviverem, os pobres da região têm no carvão uma das únicas oportunidades

para obterem uma renda.

“As pessoas, tem hora que mexem com carvoeira. Elas mexem com um forninho, por

que também, se eles não mexer com isso, eles já tinham morrido de fome! Eles não

tinham como eles sobreviver. Tem uns que mexem com um forninho, outros mexem

com outro, mexe mesmo é com carvão. Nós só mexemos é só com isso mesmo” (MJ)

(II).

Essa situação se estende por toda a área visitada de Buritizeiro a Manga. Como afirmou

uma autoridade de Pirapora e ex-prefeito de Lagoa dos Patos:

“Lá (em Lagoa dos Patos), o dia que fazia uma ação mais repressiva sobre o carvão, lá o

povo passava fome. Você via que tudo parava. Carregava lá, por semana, cinqüenta

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caminhões de carvão. Então, de fato, é outro problema seriíssimo que nós estamos

vivendo...” (VF) (III, 57).

Por isso, um representante do poder público e morador de uma comunidade rural de

Januária também assim se referiu à questão:

“Olha, essa história do carvão é muito bom para a nossa comunidade aqui. Porque traz

muito trabalho... para o pessoal pobre. Então, todo mundo recebe os seus pagamentos, e

vai para a cidade fazer as suas compras. Mas o rio Pandeiros e o rio São Francisco, hoje,

foram os mais prejudicados, não foi tanto pela classe pobre, foi pela classe rica que veio

de fora. De Sete Lagoas, de São Paulo, de Belo Horizonte. Plantou o eucalipto, não deu

direito, deixou virar mato de novo, então só deu essa erosão, jogou os areião dentro do

rio, que é o que está acontecendo. Mas o pobre deixa piorar um pouco, mas muito

pouco, por que eles trabalham apenas para sobreviver, para comer mesmo. Mais que

trabalha para defasar a beira do rio, pode ter algum problema, mas muito pouco.” (JG)

(II, 174)

O impacto do carvão na região toda é tão avassalador, que se percebe entre os

entrevistados uma perspectiva pessimista, não só com os efeitos, mas também com a

impossibilidade de alterar a situação. Isso pode ser visto no seguinte discurso de uma

moradora de Manga:

“porque nesse negócio do carvão a gente percebe que daqui a um tempo nós não vamos

ter mais árvore, sombra, nós não vamos ter mais nem animais (...) e o rio, coitado, daqui

um tempo vai desaparecer (...) Parece ser tão difícil, tão difícil de conscientizar, parece

estar tão vago, tão distante, ninguém quer saber, até você convencer. Então, é toda uma

caminhada, cada um tem que fazer a sua parte na verdade.” (ES) (I, 90)

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Mônica Meyer Elisabete Gontijo

Figura 29 - Trator em carvoaria no Chapadão dos Gerais, em Buritizeiro

Figura 30 - Lenha que será convertida em carvão, em carvoaria no Chapadão dos Gerais, em Buritizeiro

Mônica Meyer Mônica Meyer

Figura 31 - Forno de carvão e carvoeiro em carvoaria no Chapadão dos Gerais, em Buritizeiro

Figura 32 – Caminhão carregado de carvão é transportado por balsa entre Manga e Matias Cardoso

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A relação da população com as águas do rio São Francisco

Mônica Meyer

Única riqueza nossa é o rio que nós temos.

A intimidade e pertencimento à bacia do São Francisco criam relações orgânicas com o

rio. Uma pluralidade de usos e significados revela que o rio representa uma extensão da

casa; para alguns é a própria moradia e, para a maioria, “o rio é tudo”.

A observação atenta da utilidade prática e imediata demonstra uma estratigrafia hídrica

contextualizada com os fatores sociais, econômicos e culturais: lugar de lavar roupa,

lugar de lavar vasilhas, lugar de tomar banho, lugar da tomada de água, lugar para os

animais, lugar para as barcas, balsas, lanchinhas, lugar da pesca, lugar da praia, lugar da

navegação, lugar do esgoto.

Além dessa perspectiva, este capítulo apresenta uma análise da relação da população

com as águas do rio São Francisco através de seis categorias: rio-sujeito, cultura,

trabalho e conhecimento popular, pertencimento à bacia hidrográfica, usos do rio e

lazer.

1 Rio-sujeito

O conceito de pertencimento à bacia do Rio São Francisco ultrapassa os limites

geográficos; significa, especialmente, nascer e crescer junto com o rio. A maioria dos

entrevistados fez questão de frisar: “sou barranqueiro, nasci e me criei aqui na beira do

São Francisco”. Esta naturalidade determina uma relação de parentesco, de filiação e a

população está ligada umbilicalmente ao corpo d’água. O São Francisco é representado

como um rio-sujeito e a origem e riqueza da vida ultrapassam a concepção biológica

evolutiva para amalgamar relações sociais, econômicas e culturais.

“Eu nasci na beira do rio, numa ilha do rio. Eu lavava era no rio, a gente bebia (água)

era do rio, meu pai é pescador, então a gente vivia do rio. A relação é intima mesmo,

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porque eu nasci lá, aprendi a remar, a pescar muito cedo, a gente vinha para escola tinha

que atravessar o rio, era eu que trazia o barco com meus irmãos, escondia o remo, vinha

para a escola e na volta eu pegava.” (ESG, professora, 36 anos, v. 1, p. 87)

“Sou natural de Januária, nasci dentro do rio São Francisco, meu pai trabalhava na

lancha de assistência social adventista e nós nascemos no rio... Eu, praticamente, vivi a

minha vida dentro do rio e depois saí do interior para estudar fora, mas todas férias a

gente voltava” (WB, v. 2, p. 50)

As pessoas discorrem sobre a diversidade do rio em múltiplos aspectos: fonte de

subsistência, trabalho, transporte, aprendizado. Um rio-provedor, um rio-mestre que

acolhe, alimenta e ensina. Um rio-sujeito que transforma dia após dia. Ele gera, embala,

nutre, acompanha o crescimento das crianças. Desde a mais tenra idade, a relação de

pertencimento tece laços de cumplicidade e fraternidade com o São Francisco.

A representação humanizada do São Francisco é recorrente e reforça a idéia de rio-

sujeito. Em vários depoimentos aparece referência ao comportamento do rio com o

emprego de palavras que remetem à imagem do corpo humano. O rio tem um corpo

dágua com “boca” que “come”, “lambe”, “engole”, corre nas “veias” e “sangra”, “vira

ao contrário”. O rio tem “cabeceira”, “mata ciliar”, “adoece”, “encurta”, “encosta”. O

rio gera “filhotes” e tem “compadre”. O rio “fala” e “chora”.

“no último ano, ele encheu bem, lambeu o barranco.” (HB, v. 2, p. 122)

“o rio comeu o barranco... Eu tenho 24 anos de Copasa e eu nunca tinha visto um rio

virar ao contrário, o fundo dele veio para cima.” ( F, v. 2, p. 31)

“o rio São Francisco corre nas minhas veias e deságua no meu coração” (anônimo. v.

2, p. 44)

“isso aqui era uma beleza e a gente sente assim quase um pedaço seu indo embora.”

(A, v. 2, p. 29)

“Com a plantação de eucalipto nas nascentes dos meus filhotes, eles já não jogam tanta

água no meu leito”... E o velho Chico chorando fala: “Eu ainda não morri” (“Velho

Chico, suas alegrias e suas mágoas”, VM, v. 2, p. 37-38)

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Outra maneira de representação do rio-sujeito-corpo ocorre através de medições

constantes do nível de água. Registrar, com precisão técnica, o crescimento diário do

corpo hídrico é uma tarefa de intimidade, análoga ao acompanhamento do crescimento

infantil. Um representante da comunidade de Manga faz a medição do São Francisco há

33 anos e guarda de memória os índices mais expressivos. As marcas mais

impressionantes foram a enchente de 1979, quando o rio “cresceu” e atingiu “11,25 m”

e a mais baixa “que deu 0,60 m”.

“Esse ano (2005) deu 7,12 m acima do nível, né? E hoje (julho de 2005) o rio está com

1,67 m acima do nível... Esse ano está mais alto. De julho.” (DNJ, 73, v. 1, p. 126)

O volume de água do São Francisco serve também como indicativo da saúde do corpo

d’água: “não é uma boa fazer essa transposição agora, tem que recuperar a bacia

primeiro, investir mais em saneamento, na qualidade de vida do barranqueiro para

recuperar a saúde do rio, o rio está doente.” (HB, v. 1, p. 124)

Mesmo doente, o rio se mantém atraente. Final de semana ensolarado, as crianças

brincam de construir castelos com a areia do rio. O rio-brinquedo cabe nas mãos. A

manipulação modifica o rio tantas vezes quantas elas desejam, donas daquele torrão; a

brincadeira é construir, desmanchar, reconstruir. As águas levantam e derrubam o

castelo. Esses exercícios de aprendizado tecem e amalgamam intimidades com o São

Francisco. O rio é pequeno-grande, cabe na concha de muitas mãos. A vida das crianças

transforma-se em contato com a água e corre com o rio.

A metáfora do rio castelo de areia ganha proporção e dimensão. Os pais nasceram na

beira do São Francisco e, desde cedo, aprenderam a conhecer o rio. O rio-menino

transformou-se no rio-adulto e dá sinais agora de velho-chico.

“Todo ano que passa, eu acho que o rio está mudado. Está pior, não está melhor. A cada

dia que passa o rio está mais raso. Esta praia aqui, antes era ali, muda para lá, muda para

cá. Hoje na frente do porto de Manga você consegue ficar em pé. Quando eu era menino

eu atravessava o rio nadando e nunca consegui pé em nenhum lugar aqui perto do rio.

Hoje, você atravessa e chega no meio do rio consegue pé. Então eu acho que o rio São

Francisco, a cada dia que passa, só está piorando. Eu acho que se continuar desse jeito

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daqui a alguns anos, os meus netos não vão poder usufruir o que eu usufruí no São

Francisco. Porque quando eu era pequenininho era acostumado a ir para o São

Francisco pescar (...) com meu pai e não existiam essas praias. Tinha uma praia ali

embaixo e essa praia aqui não existia, essa praia aqui é nova, tem uns seis ou sete anos

que ela existe. Só tinha praia ali depois daquela ilha e a gente ia pescar. Então o rio eu

acho que está morrendo aos pouquinhos.” (FMA, v. 1, p. 8)

O São Francisco pertence a várias gerações e pela hereditariedade evidencia-se a

transitoriedade da passagem humana. O rio é singular e sua complexidade depende do

imbricamento de relações sócio-históricas com relações ecológicas. O passado, o

presente e o futuro se misturam e a perspectiva do amanhã depende desse emaranhado

de relações que os grupos sociais vão tecendo com as coleções de água. Usufruir o rio

representa outras possibilidades além do utilitário: fruição, deleite, gozo e prazer.

Aprender a respeitar o rio significa aprender a respeitar a si próprio e o outro, na

igualdade e na diferença.

A exploração do rio é reconhecida como “uso e abuso” e até fortemente como “gigolar a

natureza”. As citações “o homem usou e abusou de mim” (Velho Chico, suas alegrias

e suas mágoas, VLAM, v. 2, p. 37) e “todo mundo só quer aproveitar, gigolar a

natureza” (HB, v. 1, p. 120), se tomadas fora do contexto da entrevista, sugerem

relações de conflito entre homem e mulher. Um rio macho travestido em fêmea. Apesar

dos abusos da intimidade, o rio continua vivo, mas agonizante com o processo de

degradação.

“Não existe esse terrorismo de falar que o São Francisco está acabando. A água é a

mesma. Agora, o problema é que está sendo assoreado, não é? Devido ao abuso das

pessoas em degradar os barrancos do rio, não respeitar a natureza, desmatar a mata de

topo, a mata ciliar, a mata das veredas. É isso aí que está concorrendo para que o rio

perca a sua beleza, e perca a sua pujança como grande fornecedor de água para nós.”

(HB, v. 1, p. 3)

A concepção antropocêntrica utilitária associada aos adjetivos de belo e pujante

qualifica a jovialidade do corpo d’água e simultaneamente revela o oposto, degradado e

assoreado. No contexto do abuso, do desrespeito e da ignorância, a poluição e

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contaminação das águas se anunciam e acarretam uma série de conseqüências e

impactos. O rio doente denuncia as chagas e as mazelas sócio-ambientais.

“Tinha surubim, todo tipo de peixe. Hoje em dia tem, mas não é como antes. Era uma

coisa mais cheia, acabou tudo e a coisa foi encurtando, igual a nós mesmos, não é? Nós

encurtamos, as coisas todas encurtam, não é?” (PFN, 56, v. 1, p. 19)

A humanização do rio, igual a nós mesmos, reforça o binômio rio-sujeito. A vitalidade

do passado esgotou e manifesta sinais de degradação. Um rio que, sofrendo com tanta

exploração, teve que ser “encostado”. Entretanto esse “rio-sujeito encurtado” reserva

surpresas principalmente na época das praias, como veremos adiante.

O rio-sujeito cresce, encurta, torna a crescer. Esta dinâmica caracteriza o ciclo de vida

do rio marcado pelas cheias e pelas vazantes, correspondentes aos períodos chuvoso e

seco. Na época das chuvas, o rio enche e ocupa seus territórios. Na vazante, retorna à

calha. O movimento de ir e vir das águas alimenta as lagoas, enriquece a fauna e flora

aquática e nutre o solo. A ocupação indevida dos barrancos e beiradas de rio traz

transtornos sociais e demonstra desconhecimento ecológico do fluxo vital do rio.

Elisabete Gontijo Mônica Meyer

Figura 33 - Rio São Francisco visto a partir da margem esquerda, em Buritizeiro. Ao fundo, a cidade de Pirapora

Figura 34 - Travessia do rio São Francisco entre Manga e Matias Cardoso

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Márcio Santos Márcio Santos

Figura 35 - Margem do rio São Francisco, em Manga Figura 36 - Rio São Francisco entre Manga e Carinhanha

2 Cultura

O rio São Francisco corre nas minhas veias e deságua no meu coração.

A cultura popular faz a mediação com o rio. A pluralidade de manifestações, das mais

tradicionais às mais recentes, retratam o grau de proximidade e afastamento com o São

Francisco. O rio está povoado de seres naturais e sobrenaturais. Os personagens

encantados são representados pelo “compadre dágua”, mãe-d´água e minhocão. Apesar

da invasão de culturas exóticas eles ainda resistem no imaginário popular. O compadre

protege as águas e a pesca, a mãe d’água domina as correntezas e o minhocão, monstro

das águas, assusta a população ribeirinha.

“Os pescadores profissionais, os redeiros, falam que para pegar peixe tem que fazer um

pacto com o “compadre d'água”. O “compadre d'água” gosta muito de fumo e de

cachaça. Então, para você agradar ao “compadre d'água” a troco de uma boa pescaria,

você tem que trazer fumo e cachaça, e jogar dentro do rio. O “compadre d'água” é

pretinho, carequinha, segundo a lenda, fuma cachimbo. São muito interessantes essas

histórias porque isso permanece na memória, na cultura do povo.” (HB, v. 1)

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A carranca, figura lendária do São Francisco esculpida na madeira e fixada na proa das

barcas e dos vapores, desempenhou um papel importante no imaginário do

barranqueiro. “Os barqueiros antigos diziam que a carranca na proa da barca chorava

quando ia acontecer qualquer coisa com aquela canoa, aquele barco. Então, eles

preservavam aquela carranca porque ela avisava quando ia acontecer qualquer coisa

com a canoa.” (VM, v. 2, p. 35). Infelizmente a carranca não avisou sobre o

assoreamento do rio, que “encostou” as barcas e os vapores que navegaram muitos anos

pelas hidrovias do São Francisco. As carrancas mudaram de serventia, são peças

artesanais confeccionadas, em vários tamanhos, para enfeite e decoração.

A escritora Vera Matos resgata a cultura popular e descreve em prosa que “um dia me

contaram que o rio São Francisco é um rio encantado caboclo d’água, também chamado

compadre, o baixinho é cismado das águas do rio São Francisco é um homem

encantado. Aí o coro fala: ‘um dia me contaram que o rio São Francisco é um rio

encantado, a mãe d’água gerada das espumas, das águas é a princesa do seu castelo

encantando dominam as correntezas. Um dia me contaram que o rio São Francisco é um

rio encantado das profundezas do rio existe o minhocão, dás águas ele é o monstro,

quem o vê acelera o coração. Um dia me contaram que o rio São Francisco é um rio

encantado.’ Aí eu digo assim: ‘Um dia me contaram, acreditem se quiser’.” (VM, 68, v.

2, p. 38)

Independentemente da crença, a cultura popular faz a mediação com o rio. Mas

atualmente o pacto com o compadre tem sido de pouca valia. A importação cultural e a

chegada das drogas causaram impacto na juventude e as práticas tradicionais são

desconhecidas e/ou perderam valor. Os laços com o rio ficaram frouxos. Na tentativa de

resgatar e estreitar os valores culturais, o SESC de Januária tem feito uma ação efetiva.

“A gente percebe que quando o rio era mais forte na vida das pessoas elas eram mais

criativas também porque o grande inspirador dos nossos poetas é o rio, era o grande

inspirador, o orgulho, como se fosse o pai. Hoje as pessoas estão perdidas na

juventude por isso nós estamos fazendo o resgate da nossa cultura porque as crianças

estão voltadas mais para o rap, para a cultura vinda de fora e a droga. Cada vez mais

pobre intelectualmente.” (SA, v. 2, p. 49)

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Na abordagem cultural a referência ao rio-sujeito retorna com força. A figura do rio -

como se fosse pai - simboliza o incentivador das artes, provedor da criatividade. Os

filhos mais velhos da cidade sentem orgulho do rio, alimento para a criatividade e

expressão artística. As manifestações são múltiplas através de poemas, histórias, causos,

artesanato, esculturas e pinturas.

A praça da cidade de Itacarambi, decorada com as pinturas de Frank, lembra histórias

do rio. O artista popular retrata o vapor Benjamim Guimarães, a lanchinha e um

pescador do São Francisco. Os muros da avenida principal, arborizada com palmeiras

imperiais, reproduzem chavões, como se o discurso fosse suficiente para mudar as

atitudes da população “Itacarambi, cidade limpa e inteligente”, “Não jogue lixo nas

ruas”, “Não corte as árvores das beiras dos rios”. Em Itacarambi, o rio corre

silencioso/barulhento sob os olhares daquelas palmeiras exóticas.

Valdecir Guimarães Campos, artista popular regionalista, trocou sua cidade natal Sabará

por Januária, onde reside há 23 anos. Autodidata, representa a história da cidade e as

lendas em grandes painéis no muro do cais. O reconhecimento de sua pesquisa e

trabalho resultou em convite para oferecer uma oficina “Ensinando a pescar” , parceria

do Centro de Artesão com o Sesc.

Segundo o artista, a carga emotiva da pintura regionalista do rio São Francisco é fator

determinante na escolha dos temas e favorece a comercialização das obras. “Gosto

muito de mexer com a sensibilidade das pessoas, então por isso fica mais fácil a gente

fazer o comércio, gosto de mexer com a história porque a maioria do povo já viveu

aquela época. Eu gosto de lembrar, de voltar aquele passado, com isso fica mais fácil a

comercialização, eles vão se emocionar com certeza aí a comercialização é mais fácil.”

A pintura de temas do passado favorece a comercialização, o artista aprende sobre a

vida do rio, faz emergirem recordações entre os mais velhos e cumpre um papel

educativo importante na comunidade, principalmente entre os jovens. Para Valdecir

pintar o rio São Francisco significa “tudo, tudo que existe aqui na região é o São

Francisco, é pai, mãe, avó, tudo do barranqueiro.” Esta idéia unitária e global – tudo

– retorna o conceito de rio-sujeito como referência familiar e consangüínea. A

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existência do barranqueiro tem raízes no rio e o São Francisco representa uma

identidade coletiva.

O SESC de Januária desenvolve um projeto com o objetivo de resgatar a identidade do

homem com o rio São Francisco. Sônia Aquino, coordenadora do projeto, relata o

trabalho que vem sendo desenvolvido com a comunidade, que resultou no “Dia do

Santo do Rio”, uma parceria entre a igreja Católica, os franciscanos, as igrejas

carismáticas, pescadores, veleiros, caiaqueiros e praticantes de esportes aquáticos. O

projeto iniciou-se em 2001, durante as comemorações dos 500 anos do rio São

Francisco, e a cada ano novas manifestações acontecem na saída da procissão no dia 04

de outubro.

“No primeiro ano fizemos apenas uma passeata em defesa do rio São Francisco e demos

um abraço no rio São Francisco com a comunidade de Pedra de Maria das Cruzes e

Januária, em cima da ponte. Depois descemos em passeata pela cidade e fizemos uma

manifestação na praia do rio com cerca de mil tochas acesas iluminando as águas,

realizamos um show pirotécnico, show de viola com o grupo Viola Mineira. No

segundo ano, fomos procurados pela Igreja, que nem quis conversar com a gente no

primeiro ano sobre o projeto, aí houve interesse da Igreja em participar. Realizamos

uma missa em homenagem a São Francisco de Assis e ao rio. Depois descemos em

procissão. Tivemos o apoio do padre Néri que fez um levantamento dos afluentes do rio

que tinham morrido na nossa região. Criamos uma “procissão luminosa” e ao mesmo

tempo uma procissão ecológica, fazendo o obituário dos rios em algumas paradas. Na

primeira procissão tinha umas 300 pessoas, no segundo ano nós tivemos umas 2000

pessoas acompanhando essa procissão.” (SA, v. 2, p. 42)

As atitudes de abraçar, homenagear e fazer um obituário dos afluentes do rio retomam a

concepção de um rio-sujeito. A relação humanizada com o rio retrata um corpo dágua

impregnado de significados afetivos. O rio não é apenas recurso natural, como

mencionado anteriormente. Homenagear o São Francisco – rio e santo - simboliza o

reconhecimento de um ente querido, próximo e simultaneamente sagrado. Aqui as

manifestações populares têm um forte apelo emotivo, e traduzem uma relação religiosa.

As procissões luminosas e ecológicas re-ligam o barranqueiro ao rio. A religiosidade dá

profundidade à ação ao permitir à população re-tornar, re-ver, re-encontrar e se re-ligar

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ao leito do rio, berço da vida, ter uma outra atitude em relação ao São Francisco. O

evento acontece na praia, próximo ao rio, justamente para reaproximar a população do

rio e tocar o coração.

“A gente ficou muito distante do rio, o rio foi se afastando da margem, foi secando e a

gente foi perdendo aquela afeição que a gente tinha pelo rio. E foi uma guerra muito

grande na época porque um dos meus parceiros, que era a Prefeitura Municipal, não

queria deixar eu fazer a festa na margem do rio, na praia. Eles queriam que fizessem na

praça. Mas quem vai lá no rio? Ninguém vai lá mais e falei que a minha intenção era

justamente essa, levar o povo lá , porque eu quero é emocionar as pessoas, eu quero

tocar. Por isso, eu escolhi ‘o rio São Francisco corre nas minhas veias e deságua no meu

coração’ que copiei de alguém, não sei de quem....A intenção foi justamente essa, tocar

o coração do januarense e nós conseguimos porque no encontro, nas procissões todo

mundo se emociona, todo mundo chora, todo mundo entra na água, tira o sapato e há

um encontro, há uma emoção muito forte nesse momento. E foi evoluindo a festa, de

uma passeata virou procissão, entendeu? A procissão luminosa mesmo é essa do barco.”

(SA, v. 2, p. 43)

A realização da procissão, ao mesmo tempo que reaproxima a comunidade do rio,

resgata uma tradição popular. Segundo Sônia Aquino, a idéia surgiu ao consultar a obra

do folclorista Sau Martins. Ela encontrou o registro de uma procissão de pescadores que

existia há uns 50 anos atrás na região. A procissão saia de barco no dia de São Pedro,

havia celebração religiosa e danças folclóricas. A cultura entrelaçada à religiosidade

amplia o sentido da celebração, e a comunidade ao religar-se ao rio, estabelece novos

vínculos com os dois Franciscos- rio e santo.

“A gente percebe que essas ações tocam mais é o homem do rio, o pescador que vem

pro rio, ele que fica mais emocionado, ele se sente homenageado nessa festa. Eles estão

preocupados em fazer algo pelo rio e criaram o dia da limpeza do rio, o dia do santo. Aí

15 ou 20 dias antes da festa eles limpam o rio.” No primeiro ano foram só os pescadores

aqui do município. No outro ano já foi agregando os pescadores de Itacarambi, Manga,

Matias Cardoso. Eles fazem a limpeza do rio inclusive o dia do santo é assim também

em São Romão, São Francisco, Pedra de Maria que se encontram na praia. (SA, v. 2, p.

43)

160

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Outra manifestação religiosa que acontece à beira do rio é o batismo. Certos grupos

religiosos realizam o ritual de passagem dos fiéis nas águas do São Francisco. Em

Manga, há o clube de batizado, uma área delimitada, ao ar livre, localizada na margem

do rio.

3 Trabalho e conhecimento popular

A cultura e o trabalho fazem a mediação com a natureza. As artes e ofícios das

profissões se apresentam ao patrão-rio. O São Francisco determina o ritmo e o tempo de

trabalho. Lavadeiras, vazanteiros, balseiros e pescadores descrevem, em várias

situações, essa relação de corpo a corpo com o rio.

“Eu gosto de lavar roupa no rio porque a água vem em abundância, você lava mais

rápido, em vez de você ficar no tanque trocando e trocando de água, você vai no rio que

é muito mais rápido. Além de eu não pagar a água eu não pago energia, porque lá eu

tenho um tanquinho e a gente fica trabalhando lá e distrai a cabeça. Você encontra com

as outras, conversa, então você lava e nem percebe.” ( E, pedagoga, 36, v. 1, p. 92)

O trabalho da lavadeira na beira do rio é cíclico e acompanha as estações climáticas. O

volume e a turbidez das águas determinam relações de proximidade e distância. Aqui o

ritmo da natureza controla o ser humano. A lavação de roupa no rio, independente de

remuneração, tem vantagens econômicas, agilidade, distração e prazer.

“Toda semana eu lavo roupa aqui no rio. Eu lavo no sábado, mas como estou

trabalhando na roça aí venho antes do domingo. Faz economia na água, na luz, aqui não

precisa tanquinho. Eu estou com os dedos todos doendo, mas é assim mesmo, de puxar

enxada, (risos).” (MR, 52, lavadeira, v. 1, p. 13) “A cabeça da gente dentro de casa fica

muito preocupada com bastantes meninos e no rio, não, é só esse servicinho, lavou,

pronto, acabou. Em casa tem que fazer outras coisas, larga a roupa e vai fazer outro

serviço e ai atrasa muito a gente. É bom, distrai.” (MR, 52, v. 1, p. 16)

A relação do rio é atravessada pela questão de gênero. Mulheres e homens têm contato

constante com o rio, mas as percepções são distintas. Lavar roupa na beira do São

161

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Francisco significa um diálogo íntimo, um corpo a corpo com o rio e representa para a

mulher a chance de diluir as preocupações domésticas e distrair. O trabalho adquire um

caráter de encontro e cumplicidade com outras lavadeiras. A mulher não se sente só,

sente-se acolhida ao fazer a tarefa em grupo. Aliás esse fazer coletivo garante uma

segurança física.

A violência e as drogas causam medo e alterações comportamentais. As lavadeiras

dizem que “os rapazes vêm com arma, vêm para fumar droga e aí não dá para a gente

vir para cá. Quando a gente vem, tem que vir com bastante companheiras, porque

sozinha a gente não vem, porque a gente tem medo de ficar aqui.” (MR, 52)

Se a violência urbana se aproxima do rio ela afasta e amedronta as lavadeiras. Situação

oposta acontece às margens do rio Peruaçu, afluente do São Francisco. Como o rio corre

dentro do parque Peruaçu, aberto à visitação apenas com autorização do IBAMA, o

isolamento favorece uma natureza paradisíaca. Quem mora nas margens do Peruaçu

desfruta do rio prazerosamente e sem medo.

“Lavar a roupa lá é melhor. Sempre que eu to lá lavando roupa aparece os guaribas

(macacos) e ficam perto de mim. Distraio, fica olhando, muito melhor do que aqui em

casa. Também é sempre melhor, lá as crianças estão tomando banho, e eu gosto de ir pra

lá.” (JSLD, 30, dona-de-casa, v. 2, p. 183)

Outra relação de intimidade com o rio é a agricultura de subsistência dos vazanteiros.

Durante a vazante, que corresponde ao período seco, os lavradores plantam no lameiro –

“é quando o rio vaza, aí a gente vai cultiva a terra e planta, e colhe sem precisar de

“molha”. Alguns, inclusive, mudam com a família para morar no lameiro. O ciclo do rio

determina o tempo e o ritmo de trabalho.

“Nessa época agora (julho), o rio está baixo. De outubro até abril, quando ele enche, aí

cobre. Ele cobre aquelas terras, fica embaixo dágua. Quando é mês de abril já começa a

vazar, e aí está descobrindo aquela terra. Quando começa a pisar em cima, que ela

agüenta, nós começamos a plantar, plantar abóbora, plantar milho, plantar mandioca,

plantar feijão. Planta o milho E colhemos de tudo sem precisar ‘molha’, pelo menos na

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minha propriedade. Tem pessoas que moram lá na ilha e não conseguem nada, porque o

rio não lava.” (VAS, 57, lavrador, lameiro, v. 1, p. 60)

A descrição do lameiro demonstra que o vazanteiro conhece a dinâmica do rio. Durante

um período de seis meses ele vive no lameiro, ex-morada do rio. Nesta circunstância de

cumplicidade, o rio-sujeito é um corpo dágua que lambe e fertiliza a terra e o sujeito-rio

é o vazanteiro que passa ocupar as terras inundadas e descobertas do rio.

A terra adubada e molhada pelo rio é classificada como boa e nela a roça desenvolve

com amendoim, milho, mandioca, feijão, banana, arroz, abóbora, moranga. “Tem

‘molhado’ e a gente vai lá e planta naquele ‘molhado’. A outra lavoura também fica

cara, porque não tem custeio. Não dá para fazer grandes coisas, mas para a gente que

trabalha direitinho, não passa fome não.” (JNF, 59, pescador e lameiro, v. 1, p. 56)

Márcio Santos

Mônica Meyer

Figura 37 - Roça de feijão nas margens do rio Carinhanha (cultura de vazante)

Figura 38 - Vazanteira tecendo rede de pesca em ilha do rio Carinhanha

163

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Outro trabalho que permite um contato diário com o rio é o do balseiro, responsável

pelo transporte de cargas e de pessoas de uma margem a outra. As balsas operam

constantemente em intervalos de horários regulares entre Manga e Matias Cardoso,

entre Jaíba e Itacarambi. O exercício da profissão amplia a percepção e interpretação do

nível de profundidade e qualidade das águas fundamentais na navegação.

“Com o tempo ele tá ficando muito raso, muita areia e é difícil para a gente navegar

porque é muito raso, muita areia, quando chove e o rio enche fica bem melhor, a bacia

tem muita areia e não tem muito como navegar e também tem esse desmatamento de

floresta, acaba com a margem do rio” (v. 1, p. 75)

A proximidade e intimidade com o rio, desde a infância, exercita a aprendizagem sobre

a flora e fauna, em particular a ictiofauna. A observação atenta e cotidiana da dinâmica

da natureza do rio, dos modos de vida dos animais aquáticos e terrestres faz parte do

cotidiano das populações ribeirinhas, pescadores e barranqueiros.

Ao longo do Médio São Francisco há centenas de pescadores que vivem

exclusivamente do rio. A intimidade com o rio gera uma sincronicidade de ritmos e

tempos fundamental na pescaria. A crença no compadre d’água não é suficiente, o

pescador precisa conhecer, em detalhes, a vida dos animais. Esse conhecimento não se

adquire na escola e sim no exercício constante do fazer.

“Todos nós aqui sabemos do comportamento do surubim, é um peixe nobre do São

Francisco. E um peixe que também dá mais dinheiro para o pescador, pega peixe de 60

quilos. Há pouco tempo mesmo foi pego um de 68 quilos. O maior que eu vi pesava 82

quilos e eu mesmo já peguei um de 32 quilos. É uma emoção muito grande...”

“Para você pegar um peixe desse não é tão fácil, você tem que pesquisar, saber onde

ele mora... Aqui é morada de surubim, está vendo ali aquelas pedras, aquilo o surubim

acama. Eu sou pescador e tem certas coisas que a gente conta e tem gente que nem

acredita. Quando o peixe está naquele período, criando a ova, ele costuma deitar e ficar

muito tempo. Ele fica 2, 3 meses acamado. Quando ele levanta é porque deu piolho. O

peixe tem umas espécies de lesma grudado que o barranqueiro chama de piolho. Se tem

o piolho, o peixe vai sair pra comer. Ele tem uma área de domínio de uns 200 metros, e

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nessa saída dele, ele vem e coloca a cauda fora d’água e é a oportunidade do pescador

vir e pegar o peixe. O pescador pega ele de anzol ou de rede, peixe grande é cobiçado

por todo mundo...”

“O surubim come outros peixes, ele é predador, peixinho menor, curimatã, come outros,

os alevinos ainda, né? O peixe sai para comer normalmente no entardecer até dez horas

da noite. Aí ele some e volta a comer no outro dia cedo, no raiar do dia. Depois ele

desaparece.

A reprodução é na época da piracema. Ele desova no rio e nas lagoas, aquele período de

enchente, quando baixa fica muito peixe nas lagoas, o peixe grande volta para o rio e

enche de volta com os pequenos. Quando a lagoa começa a baixar o nível dela, porque

tem umas que secam, aquele peixe que está ali morre... O aguapé sai muito é na época

da enchente, né? Você vê que aqui em Manga quando o rio enche bem, que entra nos

pequenos rios, esses aguapés saem para o São Francisco.” (HB, v. 1, p. 122 e 123)

A pesquisa empírica do pescador é minuciosa e requer uma dose de paciência,

observação e reflexão, características peculiares da profissão. A vida do rio que

determina a jornada de trabalho, é o patrão, e a pressa não tem lugar na pescaria

artesanal.

“Paciência e convívio. Já conhece como é que é, como é que não é. Tem que ter

paciência, bastante paciência, porque pescaria não é uma coisa que a gente, aqui tipo um

outro serviço, profissão. A pescaria não, tem que ter paciência mesmo.” (C, v. 1, p. 191)

O conhecimento do calendário ecológico, aquele que marca os tempos da fauna e flora,

é fundamental. O respeito à piracema, época de reprodução, implica um rio mais

piscoso nos próximos anos. Desta forma, o barranqueiro interpreta o rio como uma

grande rede de relações, e precisa respeitá-las.

“Bom, quando dá mais peixe é no mês de maio, junho, agosto e setembro. Depois o rio

enche, fica ruim aqui. Daí é só quando o rio baixar de novo. (..) tanto é que a gente

recebe um seguro da Colônia. Quando passa quatro meses sem pescar, devido à

piracema, né? Não pesca, fica parado, época dos peixes desovar. Quatro meses a gente

fica parado, não pesca, né? (C, v. 1, p. 192)

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“A gente vem no começo de junho e quando for em novembro que é o período de chuva

a gente volta para Malhada, aí nós esperamos depois da piracema para começar a pescar

de novo. E volta no dia 15 de fevereiro.” (JS, pescador e lameiro, v. 1, p. 177)

O domínio do calendário da pesca e da cultura de vazante demonstra que o barranqueiro

sabe que “a vida do rio está na enchente, enche as lagoas, faz a desova do peixe e

quando o rio volta, o peixe volta. Tem 14 anos que o rio não enche mais. A vida é tão

ligada ao rio” (CRF, 53 anos, v. 1, p. 96).

Quando o entrevistado diz que “a cheia alimenta o rio e alimenta a nós todos” (PFN, 56,

v. 1, p. 22), significa que o rio-sujeito precisa de território para crescer, inundar e, como

provedor, alimentar as lagoas e terras, que no futuro alimentarão o rio. Entretanto, nem

sempre esses espaços são respeitados.

“Um lugar em que montaram uma fábrica de álcool? Esse lugar lá era lugar dos peixes

desovarem, porque quando é época da cheia do rio enchia e entrava nesses matos e o

peixe entrava lá, e quando era a vazante o peixe voltava para o rio e aí eles ficavam

nesse trecho aqui. Aí vieram uns camaradas muito fortes e fizeram um aterro lá, e esse

aterro tem umas duas léguas (...) tirou o rio, e os homens entraram nesse lugar e eu acho

que os peixes morreram (...). E aí foi onde os peixes acabaram. Esse lugar chama Barra

do Rio Verde. É um pantanal muito grande, e eles fecharam com aterro do rio Grande

ao rio Verde, e o rio não entrou nela mais. Eles montaram lá uma fábrica de álcool,

plantaram muita cana, meteram a faca lá, mas depois estacionou, porque a terra lá não

era para o plantio da cana, ela era mais um pantanal, para peixe, capivara, esses bichos

do mato. E eles amassaram a terra com o trator (...) Aí não teve como passar (...) para a

frente. Tornaram a arrancar tudo de novo e hoje virou outra (...) lá.” (VAS, v. 1, p. 63-

64)

A importância da enchente é vital, mas com o desmatamento, principalmente da mata

ciliar, a situação se transforma em calamidade. A força e velocidade das águas “come” o

rio. Ao navegar pelo médio São Francisco, podem-se observar várias marcas de

“mordidas da água” nas margens e barrancos. Além do impacto social direto das

enchentes, o rio sofre com o assoreamento, fica mais raso e os problemas se agravam

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ano após ano. A população, várias vezes, citou os problemas e causas do assoreamento

do rio.

“Quando o rio sobe o nível, é muita água e corre muito. O rio vai penetrando, vai

umedecendo e vai desmoronando, e essa água vem toda pra dentro do rio, o que provoca

assoreamento... A utilização do barranco para agricultura familiar afeta o rio. Eles usam

pra poder ter mais umidade, pra plantar batata, vai plantando ali uma horta, uma alface,

tudo pra vender. Mas não é certo, porque ele ta errado, ele ta querendo plantar quase

que dentro do rio. Então ta tirando a proteção do barranco, né, o que provoca o

desmoronamento... A fazenda Beirada construiu um porto pro gado beber e ficar. O

casco do gado está provocando esse desmoronamento dos barrancos. Um volume

altíssimo de terra, tanto que já assoreou a boca do Rio Verde, tanto que não existe mais

a boca do Rio Verde, lá só tem um banco de areia muito grande, não vê mais rio, não vê

mais nada. (HB, v.1, p. 65)

A população, que tem mais intimidade com o rio, conhece a vegetação da margem e

lista o alagadiço ou calumbi no mangue, juamerinho, mamona. O calumbi, como possui

espinho, impede o acesso ao rio, protege a margem, sendo considerado amigo do rio.

Entre as espécies arbóreas destacam o angico (em julho florido), tamboril, barriguda,

embaré, aroeira, umbuzeiro, cajuzeiro. A maioria ausente da margem, apenas um ou

outro exemplar isolado no barranco. O buriti, imponente palmeira das veredas, bioma

responsável por alimentar os afluentes da bacia do São Francisco, sofre com as

carvoarias e o agronegócio. Os entrevistados afirmam que o desmatamento vem de

longa data, antes mesmo dos vapores que eram alimentados com a madeira e lenha da

mata. Reconhecem que, além dos impactos da pecuária e da agricultura, a situação vem

se agravando com o carvoejamento. Durante a pesquisa de campo, visitamos uma

grande carvoaria no município de Buritizeiro. O número de fornos era impressionante e

a lenha do cerrado fumegava.

“O município de Manga já está praticamente zerado, não existe mais mata, só tem

mesmo as reservas das fazendas. Mas tem gente que já está usando as próprias reservas

também, esses 20% que foram obrigados a ser de reserva, já estão também entrando

nelas e transformando tudo em carvão. Agora eles entraram na Bahia, estão agora no

município de Juvenília, mais concentrado lá e estão com a Bahia, Feira da Mata, Cocos,

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Santa Maria da Vitória, Goribi, Bom Jesus da Lapa, ta vindo carvão dessa região

todinha do sul da Bahia passando por aqui. Na Bahia, você sabe, tudo lá é mais fácil. O

pessoal que extrai o carvão aqui em Minas eles não tem condições de documentar o

carvão, eles estão indo comprar as notas na Bahia, pra poder documentar e subir com os

carvão, né? Então sai documentado e chega até Sete Lagoas, lá pra siderúrgica. (HB,

v.1, p. 67-68)

A proximidade e a intimidade com o mundo entrelaçado do rio formado pelas águas,

terras e matas permitem ao barranqueiro ler a vida da comunidade antes mesmo de ler a

palavra. O saber não se resume à pesca e nem é exclusivo do pescador. Um dos

entrevistados, analfabeto e responsável pela limpeza urbana, faz a leitura do ambiente

demonstrando compreensão de noções ecológicas básicas.

“Passarinho tinha muitos, mas muitos acabaram também e foram diminuindo cada vez

mais. As florestas, as matas, estão acabando, então através das matas que estão

acabando, os passarinhos também vão sumindo, caçando outro local para viver, onde

tem mais mata, então tem pouco passarinho. Essa mata está acabando por causa das

carvoarias, porque fazendo carvão aí derruba as matas e não tem como fazer crescer de

novo. As matas até ficarem no ponto em que estão, isso demora muitos anos. Então, o

que está acabando com as matas são as carvoarias. Acabando as matas, o inverno, as

chuvas ficam mais curtas ainda. Eu acho que quem atrai a chuva são as matas, as

florestas. Então, vão acabando as matas e a chuva a cada dia que passa fica mais curta.

Então vai afetando o rio por isso”. (RS, v. 1, p. 37)

A rede frágil de ligações entre a mata e os passarinhos fica destruída com o

carvoejamento. O tempo e o ritmo de desmate é superior ao tempo biológico de

reposição de espécies nativas ou exóticas. Os índices pluviométricos diminuem, o rio

fica mais seco, sem as matas, mais assoreado, menos frutos e sementes para a fauna

aquática e terrestre, mais turbidez, menos fotossíntese, mais poluição, menos peixe.

Essa teia ecológica sustenta um sistema de integração e convivência. O depoimento

demonstra, ainda, a acuidade do observador quanto ao tempo e ciclo da natureza.

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Mônica Meyer

Mônica Meyer

Figura 39 - Fruto e semente de algodão de seda (popularmente conhecido como “cega os óios” ou “saco de boi”) na Reserva da Fazenda Ressaca, em Manga

Figura 40 - Espécime monumental de embaré na mata seca da Reserva da Fazenda Ressaca, em Manga

É interessante sublinhar que o grau de intimidade com o rio é um parâmetro importante

na sua defesa. Aqueles que estão distantes da vida do rio, sem vínculos de convivência e

por conseqüência sem estabelecer laços de cumplicidade, são os indivíduos que mais

afetam a dinâmica do rio. Um entrevistado diz “que não é o rigor da lei que vai fazer o

cara defender o rio. E a convicção de que aquele é um caminho para defender a sua

própria vida, porque assim que você fizer com que o cara pense que a vida dele depende

da vida do rio aí ele vai defender o rio...” (CRF, 53, v. 1, p. 104)

4 Pertencimento à bacia hidrográfica

A noção de pertencimento à Bacia Hidrográfica do São Francisco está presente nos

depoimentos dos entrevistados. Não existe um único rio, fragmentado e isolado. O rio

São Francisco é um conjunto de muitas nascentes e afluentes integrados que formam

uma grande bacia hidrográfica, ou seja, “o rio que colhe todas as águas.” (CNS, v. 2, p.

15)

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“Rio Japoré acabou. Se você procura água para beber, é obrigado a abrir um buraco

assim ó, para poder beber, cercar lá e usar uma vara para poder usar a água... A coisa foi

criando, criando, criando, e não teve cheia para desaguar no São Francisco.” (PFN, v. 1,

p. 23)

O conceito de bacia traduz a complexidade da rede hídrica em singularidade e

pluralidade, ou seja, um rio formado por vários rios. Um rio abastece e alimenta o outro.

Ao mesmo tempo, a metáfora de rede traz a imagem de malha coletora de muitas águas.

A intimidade do barranqueiro com o São Francisco se estende pela bacia hidrográfica.

Ele não identifica os problemas reduzidos ao rio; pelo contrário, incorpora a situação

ambiental dos afluentes e das lagoas.

“O rio São Francisco nasce lá na Serra da Mantiqueira, município São Roque de Minas

e aí vem passando por essas regiões... O São Francisco existe de Pirapora para cá, que é

o médio São Francisco a parte navegável, né? A gente sabe que Minas Gerais é a grande

bacia d’água. Então, por onde o rio passa ele vai colhendo as águas dos seus

afluentes, das suas bacias que estão altamente degradas. A gente tem exemplo aqui

no município, rios que até então eram perenes e hoje estão secando. Eu mesmo tenho 3

glebas na margem do rio Calindó que era um rio riquíssimo até 1981. Quando comprei

as primeiras terras lá o rio era perene, hoje já está perto de desaguar no São

Francisco...Isso não foi a natureza que provocou, fomos nós com o desmatamento que

foi provocando o assoreamento. O rio tinha a mesma água, a mesma nascente, porém a

água não chega mais a desaguar no São Francisco e aí eu estou citando o Calindó mas

tem vários outros no município vizinho de Miravânia. Pelo que a gente já sabe já

secaram lá cento e tantas nascentes, pequenos cortes nas veredas acabou tudo. Isso foi

porque o homem viu na riqueza, todo mundo correndo atrás do lucro para fazer o

carvão.” (HB,v. 1, p. 119)

“Rio Japoré ainda é perene e o Rio Calindó não é perene mais. Então se acontecer de a

gente conseguir voltar a fazer o Calindó perene vai estar ajudando o vale do Calindó,

porque o Calindó sendo perene, estando correndo, vai beneficiar todas aquelas famílias

que moram na margem dele e vai beneficiar o rio São Francisco também, porque vai

estar abastecendo o rio São Francisco com mais água.” (FMA, v. 1, p. 9)

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A idéia de pertencimento à Bacia Hidrográfica do São Francisco implica a necessidade

de cuidar e zelar dos mananciais, da flora e fauna. A perspectiva de tempo – no passado

era mais largo, no presente assoreado – sinaliza que os processos de degradação são

lentos/rápidos e exigem uma postura imediata para que o rio, no futuro, não se torne

uma calha vazia.

“Antes ele era bem mais largo e mais fundo, houve o desmatamento que acabou com as

laterais do rio (...) Então o banco de areia toma conta do rio. A preocupação é essa, com

o tempo, ninguém sabe quanto tempo, pode dar mais problema. Se não cuidar do rio

São Francisco...” (JMF)

“Daqui a uns anos, o rio São Francisco vai ficar buraco de água, assim, um aqui, outro

mais longe, porque vão destruindo as matas de um lado e de outro e acaba o homem

ficando só com aquilo lá.” (VAS, 57, lavrador, v. 1, p. 63)

O rio-sujeito não é exclusivo da coletividade, pertence a todos seres vivos. Apesar da

população conhecer a trama e o drama do rio e expressar a importância da revitalização

e do cuidado, as atitudes e ações populares ainda são pontuais e esporádicas.

Os funcionários da Copasa de Manga, por iniciativa própria, começam a arborizar o

barranco, para proteger a água e o rio – “nós mesmos, que estamos com a iniciativa de

arborizar tudinho isso aqui. Daqui a um tempo se não arborizar o barranco vai comer, aí

teremos de mudar daqui e aí vai prejudicar aqui e o rio também. O rio vai só enchendo

(...)” (JMF, 50, v. 1, p. 50)

Os pescadores anualmente fazem a limpeza do rio, que envolve municípios de Manga,

Itacarambi, Januária, Matias Cardoso, Pedras de Maria da Cruz. Organizados em

grupos, sobem o rio São Francisco em lanchas recolhendo o lixo. A coleta termina em

Januária durante a procissão do Dia do Santo. O lixo é recolhido, embalado,

transportado das lanchas para as carroças e transferido para o lixão de Januária.

Para a maioria, cuidar do rio se reduz a um discurso. Há uma atitude de espera para que

o outro faça algo pelo rio. Este comportamento tira o indivíduo de cena, de sua

responsabilidade com a coisa pública e as ações de zelar, por mais diferentes que sejam,

171

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precisam de periodicidade, dinamismo e compromisso permanente. Se por um lado é

relevante o movimento de limpeza anual do rio, por outro lado essa poderia ser uma

prática mais freqüente. O rio continua recebendo lixo, esgoto doméstico e industrial.

“Fica todo mundo só fazendo propaganda, fala-se em meio ambiente, fala-se em água,

todo mundo comemorando aquele dia nacional, mas passou aquele dia ninguém liga

mais. O dia da árvore todo mundo planta mas quem molhou para ela progredir, quer

dizer muita campanha bonita, as escolas saem no dia da árvore com as crianças mas a

que plantou ano passado não existe mais, não tem ninguém para zelar, para cuidar da

natureza, todo mundo só quer aproveitar, gigolar a natureza.” (HB, v. 1, p. 119)

“Aprendi a navegar e a pescar tudo aqui, o rio te oferece tudo aqui. Só que tem que

colocar alguma coisa para ele também, não é só tirar dele, para que ele tenha uma vida

mais longa. Eu quero que a minha filha tenha contato, ela pega, cheira, porque o peixe é

da natureza, para ela sentir a força da natureza. Ela fala que quer comer o olho do peixe,

eu falo que quem come o olho é sempre inteligente. Eu não quero é que a cama do peixe

vire no futuro a cama do boi, nós devemos cuidar muito do rio.” (SL, v. 2, p. 72)

5 Usos do rio

A intimidade com o rio foi muito marcada pelos vapores que subiam e desciam o São

Francisco em horários regulares. Por muito tempo foi praticamente o único meio de

transporte para as cidades à beira do São Francisco. As rodovias, quando existiam,

eram péssimas, a maioria estrada de terra, intransitável na época das chuvas. Ainda

hoje, há trechos sem pavimentação asfáltica, como de Januária a Manga. A balsa

continua a singrar as águas do rio, mas apenas de uma margem a outra. As chatas, tão

freqüentes até a chegada da represa de Sobradinho, no final da década de 70,

desapareceram de vez.

“Nós tínhamos aqui navegação que era a riqueza da nossa cidade, da nossa região, todo

o comércio era feito através do rio, os vapores, as lanchas, eles levavam os produtos

nossos e traziam o que a gente precisava, o querosene, o sal, o açúcar, o coco e levava

os produtos nossos que eram o milho, a mamona, o algodão, o feijão, o arroz que a

gente produzia e até boiadas, tinha uns vapores-gaiolas que carregavam boi também. A

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cidade tem esse nome é exatamente por causa do porto que tinha as mangas para colocar

os bois para poder embarcar nos vapores.” (HB, v. 1, p. 119)

O rio é uma estrada fluvial que deixou muitas recordações na população que viveu

intensamente o período dos vapores, meio de transporte regular pelo São Francisco até

final da década de 70. As lembranças amorosas, os namoros nos vapores povoam as

histórias, dando um significado singular ao rio-confidente.

“Era uma época interessantíssima que a gente ficava esperando as meninas baianas para

namorar, dois dias de viagem, daqui de Manga até Januária, no vapor, naquela época

que o rio ainda era navegável, então era o único transporte existente, não faz muito

tempo não, 1966, 1960, 1964.” (CRF, 53, v. 1, p. 95)

Apesar da saída de cena dos vapores, os barcos, lanchinhas e balsas fazem parte do

cotidiano. Um transporte-lotação de muita valia para a população das ilhas e para os

ribeirinhos. Durante o verão, também transportam as pessoas até as praias localizadas

nos bancos de areia do rio.

“Isso aqui é riqueza. Antigamente nós tínhamos água de poço. A qualidade da água era

uma vergonha, porque era calcárea demais, depois que mudou para água do rio São

Francisco , a população soltava até foguete de tão boa que a água era, de qualidade. A

água dá mais trabalho no tempo da chuva, mas a qualidade da água é de primeira.”

(JMF, 50, v. 1, p. 49)

A riqueza dos rios da bacia do São Francisco permite múltiplos usos da água. As

cidades pesquisadas são abastecidas com água do rio São Francisco, a maioria operada

pela Copasa, exceto Pirapora cujo abastecimento é de responsabilidade do município. A

captação de água no rio é central e urbana. A população presencia os pontos de tomada

de água através do sistema de bomba fixada em balsas à beira do rio. Em Pirapora, há

também a captação por gravidade e o ponto localiza-se ao lado das piscinas e duchas,

lugares bastante freqüentados pelos moradores e turistas. Desta forma, a população

estabelece uma relação de muita proximidade e intimidade com a água.

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A percepção da água pela comunidade contraria a classificação insípida e inodora,

dominante em materiais didáticos e apostilas técnicas. A água tem gosto e cheiro e a

população sabe diferenciar e degustar a riqueza do São Francisco. A Copasa, há dez

anos atrás, fazia o abastecimento de água em Manga através de poço artesiano. A

reclamação constante, por causa do gosto ruim de calcáreo e dos entupimentos na rede,

levou a empresa a trocar o sistema e fazer a captação, tratamento e distribuição com

água do São Francisco.

A água está presente intensamente na vida da comunidade e todos sabem que a origem é

o São Francisco e seus afluentes. A resposta unânime à pergunta “de onde vem a água

de sua casa?”, foi “do rio”. Em Belo Horizonte, contrariamente, a população desconhece

que mananciais abastecem a capital e respondem apenas que a água é “da Copasa”. O

distanciamento e desconhecimento da vida dos rios podem ser apontados como uma das

causas do descompromisso com as coleções de água.

Abundância e fartura fazem a mediação da população com a bacia do São Francisco. A

proximidade e a riqueza do rio não acarretam problema de abastecimento de água bruta,

aquela sem tratamento.

“Aqui, como a água é farta, tem um belo de um rio ali na sua frente, o povo usa à

vontade e o rio não reclama daquilo porque não dá para notar. Quer dizer você tira

aquele volume de água e o rio nem percebe.” (C, v. 2, p. 17)

Mas paradoxalmente a população vive com abundância e escassez de água. E a

qualidade da água em certos afluentes está contaminada e, mesmo sem tratamento, serve

à comunidade local. Às margens do rio São Francisco, na ilha da Ingazeira, a escola

rural localizada a cem metros do rio não tem água tratada e encanada.

A servente, com 43 anos de idade, desce o barranco alto e íngreme, diariamente, para

pegar água do rio. Na volta, carrega na cabeça uma panela de dez litros cheia de água

bruta do rio. O trajeto é feito várias vezes para cumprir os serviços de limpeza, cozinhar

a merenda e encher o filtro sem vela que está vazando. Ela faz a maioria das tarefas

domésticas à beira do rio, com sol e com chuva, na vazante e na enchente.

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A proximidade e intimidade com o rio revela as condições de vida precária de algumas

comunidades. Paradoxalmente, a escola, que só funciona no horário diurno, tem antena

parabólica e painel de energia solar, mas não há televisão, vídeo ou bomba dágua.

Outra situação de abundância/escassez é registrada no rio Japoré, afluente do São

Francisco, em Brejo de São Caetano, distrito de Manga. O pequeno e tradicional

vilarejo, berço da cidade, localiza-se a 18 quilômetros do São Francisco e a cerca de 200

metros do rio Japoré. A proximidade do curso d’água não garante água em qualidade e

quantidade. A única bomba a motor não dá conta de abastecer todas as moradias. A falta

de água em casa é uma constante e estreita os laços de intimidade com o rio Japoré. A

água de beber, cozinhar, lavar, banhar, plantar, vem do rio.

“Lá era um poço artesiano. Jogava a água nessa caixa, e distribuía para a população.

Mas a caixa tem um alto nível de teor de calcário, aí eles condenaram. Agora a gente

toma água de Japoré, que também não é uma água afetuosa não. Ela não serve para o

consumo. Água de Japoré é altamente perigosa também, não tem outro jeito de

tratamento. Aqui nós não temos tratamento. A bomba é colocada aí no Japoré... São

duas caixas, uma de três e outra de dez mil litros. É muito pouco. A água aqui falta

muito... Agora, na escola a água tem o dia todo. Porque na hora que liga a bomba, os

canos são os próprios canos que vão para a caixa. Enquanto está abastecendo a caixa, a

escola está sendo abastecida. À noite, se abrir uma torneira na escola, não tem água.”

(TAA, 58, professora, v. 1, p. 134)

Para solucionar a falta de água, a solução consiste em encher alguns tambores na beira

do Japoré e transportá-los por carroças. Muitos fazem a tarefa para ganhar um trocado e

a maioria das casas acaba sendo abastecida dessa forma.

“Pegamos nas carroças, nos tambores. Muita gente pega com as latas. É época que o

pessoal começa também a vender a lata d água. Pagar um real na lata d água de vinte

litros. Por um real. Se for para pegar aqui no rio é um e cinqüenta. Se for para pegar,

que tem um pouquinho lá no rio, que desce mais perto, aí é um real.” (TAA, 58,

professora, v. 1, p. 135)

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Para contornar a falta de tratamento de água do rio Japoré e “amenizar a situação” de

impacto na saúde, alguns moradores adotaram um processo caseiro de coar e guardar a

água em potes de barro. Apesar de rudimentar, o lodo da tubulação fica na peneira e os

demais sedimentos em suspensão decantam nos potes. A água coada, guardada e

tampada está em condições de uso, no dia seguinte, para a realização das tarefas

domésticas.

“A água chega aqui por volta de nove horas, nove e meia, aí a gente côa a água. Pega a

água aqui da torneira e côa direitinho por que nela costuma vir aquele lodo. A gente côa

direitinho, eu côo sempre a tarde. De manhã a hora que a água chega, côo, eu coloco no

depósito primeiro, depois eu passo para os potes. Para cozinhar no outro dia, em água

potável. Pelo menos para amenizar a situação. Lavo os potes, e encho direitinho para

poder cozinhar! Eu não gosto de pegar direto da torneira para botar na panela. Então,

aqui é querendo proteção para a gente. Em busca de uma proteção. Tem gente que

chega aqui, e até bebe dessa água por que, o fato dessa água ficar aí... Por que todo

mundo bebe é dessa água aí. Nós é que não bebemos, tomamos água é de Manga.”

(TAA, 58, professora, v. 1, p. 149)

O Rio Japoré não serve somente para abastecimento humano. A população reconhece a

sua importância para as plantas, hortas e criação doméstica.

“Na horta tem tomate, cenoura, couve, beterraba, coentro, cebolinha, alho, repolho,

alface, pimentão, pimenta cheirosa. A água que serve vem do Japoré. Aqui tenho

galinha, porco, peru, cachorro, muitos gatos e patos. Todos bebem a água do rio

Japoré!” (TAA, 58, professora, v. 1, p. 150)

A enseada do rio é o ponto de encontro e convivência de bichos, plantas e gente. A água

contaminada com fezes humanas é foco de transmissão da esquistossomose mansônica,

popularmente “xistosa”.

“Eles defecam por aí. Porque eles andam muito por aqui (rio Japoré), e aqui perto não

tem banheiro. Então, eles sentem necessidade, e defecam por aí mesmo. Apesar de que a

gente já fez conscientização. Já fez um trabalho, muito bem feito, na escola. Uma feira

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de ciência mas, infelizmente, não conseguimos ainda conscientizá-los”. (TAA, 58,

professora, v. 1, p. 136)

Como a potabilidade do Japoré está comprometida, algumas poucas famílias trazem

água de Manga, tratada pela Copasa, para beber.

“Quem não quer tomar água do riacho, que aqui são poucas as famílias que não

tomam... Depois que foi feita uma conscientização, depois que foi feito um trabalho

aqui pela secretaria da saúde aí eles tomaram medo e eu mesmo fui vítima de um

problema muito sério aqui, problema da xistosa, aí eu tomei medo. Então a gente manda

trazer água de Manga. A gente bota uns tambores, o vasilhame chega. Tem um rapaz

que leva leite, quando ele vem traz tambor de água. Mas não é todo mundo não, pode

se dizer que isso aí não chega nem a 1%. A maioria usa a água do Japoré...Nós não

temos uma água assim com abastecimento direto para a gente. Nós não temos fartura de

água.” (TAA, 58, professora, v. 1, p. 135)

Como não há fartura de água, o trabalho educativo na área de saúde fica comprometido.

A professora sabe das limitações do conteúdo escolar, em grande parte desvinculado do

contexto do rio e das condições coletivas de vida da comunidade.

“É difícil de você conscientizar. Nós não podemos fazer nada a não ser colocar na

mente da criança, colocar na mente das pessoas o problema, mas a solução nós não

temos. E, para que você falar tanto em problema se você não tem solução? Não tem

outra água! Então, isso também machuca a gente educador, sabe? Você está batendo

naquilo, falando e falando, e depois? E aí? Eu, por exemplo, agora em maio vai

completar seis anos que eu tomo a água de Manga. Mas por quê? Eu vou buscar a água

para trazer essa água. Você acha que todo mundo aqui tem condição de trazer água de

Manga? Então, chega um ponto que a gente fica sem solução. Às vezes até você deixa

de falar certas coisas para não... Às vezes a pessoa até sente revolta com a gente. Então,

infelizmente, a gente não tem pessoas capacitadas para resolver esse tipo de problema,

que é aqui o Japoré.” (TAA, 58, professora, v. 1, p. 136)

Apesar dos problemas de ordem sanitária, o rio Japoré cumpre um papel social e lúdico

fundamental na comunidade de Brejo de São Caetano. Os laços de intimidade se

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estreitam durante o verão. O calor abrasador “derrete” qualquer discurso sobre a

contaminação das águas, invisível aos olhos, e o banho de rio fica irresistível. Em

agosto, a movimentação é intensa na comunidade e adultos e crianças se esbaldam num

corpo a corpo com o rio.

“Quando chega a época do mês de agosto, que o sol tá quente, a juventude vem e limpa

isso aqui tudo. A gente junta, um dá frango, outro dá cerveja, outro dá a cachaça.

Fazemos aqui um mutirão sempre, e eles fazem e eles limpam tudo, para a gente poder

nadar aí na época do calor. Então, nós não estamos nem aí para a xistosa, nem aí! Nós

não podemos dar jeito, tanto faz essa situação. A água do poço também, quando foi

levar para fazer exame, além do calcário, também era contaminada com alguma coisa.

Ali tinha um poço que estava fornecendo para gente, foram fazer o exame. Não, não.

Não pode beber. Bom! Então a nossa é do Japoré mesmo!” (TAA, 58, professora, v. 1,

p. 137)

As comunidades próximas aos cursos d’água não têm, necessariamente, garantido o

acesso doméstico de água. Uma situação oposta à do rio Japoré acontece no rio Peruaçu,

também afluente do São Francisco, localizado no Parque Nacional do Peruaçu. O rio

Peruaçu corre com água cristalina por dentro de uma mata ciliar. Em julho é possível

ver os seixos no leito do rio. O lugar é muito bonito e a biodiversidade se destaca com

vários representantes da fauna e flora. O barulho de água constante e suave, a sombra

boa e fresca exalta a natureza como um paraíso dadivoso.

“Esse rio é a riqueza que tem aqui, né? Porque aqui só tem ele, onde o gado bebe, o

povo utiliza a água. Ele é muito importante aqui, eu acho que se não tivesse ele não

existiria essa comunidade, esse povoado. Ele é muito importante pra nós, aqui nem poço

artesiano tem.A gente tem uma bomba elétrica que puxa de lá e eu manuseio aqui na

casa”. (JSLD, 30, dona de casa, v. 2, p. 183)

A maioria da comunidade do Peruaçu não tem bomba hidráulica, e faz carreto de água

com uma carroça. Um tambor plástico de 50 litros serve para uma família beber e

cozinhar durante cinco dias. A carroça entra dentro do rio e enquanto o carroceiro

abastece o tambor, o burro se refresca e bebe água.

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6 Lazer

“A primeira lembrança que vem à minha mente, é a praia, lazer. A primeira lembrança

que vem é a praia, e o rio” (FMA, v. 1, p. 14)

As atividades de lazer representam proximidade e um corpo a corpo com o rio. As

recordações são espontâneas e retornam fortemente ao coração. O rio corpo d’água fica

impregnado na memória e tatuado no corpo humano. Fragmentos da infância retornam

associados às atividades de lazer, momentos de alegria e prazer.

No período da seca, mês de julho, quando o rio está mais vazio e corresponde ao verão

no São Francisco, a convivência com o rio se intensifica. As praias se tornam visíveis e

convidativas para banho, brincadeira e prática de modalidades esportivas. A praia

transforma-se em lugar de encontro, lazer e diversão.

A população aproveita e estreita os laços com o rio. A praia é ocupada com barracas de

comes e bebes, cadeiras e palanques. Dependendo da cidade, da topografia, do

movimento e volume do rio, o tipo de “acampamento” varia.

Mônica Meyer

Figura 41 - Crianças brincam em praia do rio São Francisco, em frente a Manga (município de Matias Cardoso)

Figura 42 - Lazer de fim de semana em praia do rio São Francisco, em Januária

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No corpo-a-corpo com as águas, um outro tipo de intimidade se instala. O rio-sujeito

apresenta sinais de vitalidade e as correntezas e os buracos, às vezes, engolem os

inexperientes. “A água é boa, maravilha! Só que às vezes tem morrido muita gente.

Você vai andando e parece que não tem nada, aí de repente o rio puxa, a areia puxa e

não tem como voltar principalmente quem não sabe nadar.” (ESG, 36, professora, v. 1,

p. 94). Desta forma, a água boa e maravilhosa apresenta o outro lado obscuro, perigoso,

o avesso do rio: suga, traga, puxa o camarada para o fundo.

.

Passada a temporada de praia, o lazer se reduz, mas a pesca esportiva continua.

“Quando eu tenho um tempinho assim, um final de semana, eu pego uma linhada, uma

vara eu vou na beira do rio fazer uma pescadinha, pegar um piauzinho, um

mandizinho.” (RS, v. 1, p. 37)

Para uma parcela da população o rio não representa lugar de lazer e sim de trabalho.

Pescadores, barraqueiros, balseiros e lancheiros freqüentam diariamente o rio por uma

questão exclusiva de sobrevivência. O rio é fonte de renda desses trabalhadores.

“Hoje nós estamos aqui no lazer, mas quando eu estou na minha terrinha, na beira do

rio, eu vou pescar. Às vezes eu vou fazer pesca esportiva, mas muitas pessoas que

moram na beira do rio usam do rio para sobreviver, para pescar, para vender o peixe,

comer o peixe, então muitas pessoas usam do rio para sobreviver e outras por esporte.”

(FMA, v. 1, p. 13)

7 Considerações finais

A metáfora rio-sujeito que caracteriza o rio São Francisco como um corpo d’água e lhe

atribui valores humanos, não o isenta de exploração, depredação e exaustão. A força,

pujança, beleza e riqueza vão se exaurindo devagar/depressa. O espelho d’água do rio

reflete a sociedade plural e desigual.

Os depoimentos mostram uma relação amorosa com o rio. O estado de deterioração não

mata o carinho e afeto com o velho Chico, e são elementos de mobilização e

organização da comunidade em prol da bacia do São Francisco. O rio faz parte da vida

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do barranqueiro. As águas e os seres, que ali têm morada, alimentam e constituem o

corpo de cada pessoa. O rio acompanha o desenvolvimento de cada um: nascer, crescer

e aprender.

O vale do São Francisco colhe a diversidade das águas e das pessoas e, impregnada de

significados, constrói a identidade de cada um: “não tem como separar a cidade do rio,

nasceram em função do rio e até hoje vivem em função do rio.” (CRGSF, v. 1, p. 96)

A idéia de proximidade e distância faz a mediação constante entre os dois sujeitos -

população e rio São Francisco. O processo cíclico, contínuo e dinâmico de cheias e

vazantes agrega, mobiliza e organiza atividades de trabalho, sobrevivência e lazer.

Manter a convivência com o rio significa preservar e principalmente lutar pela

revitalização.

“Para nós é uma riqueza em tudo por tudo. Isso aí é riqueza, é o prazer que nós

temos de amanhecer o dia e a gente levantar e ver a alegria, a beleza. Então, nós temos

que zelar, temos que nos interessar (mas infelizmente não todos, mas tem uns que têm

prazer). Temos que juntar todo o mundo e zelar porque isso aí é uma riqueza, foi com

grande amor que Deus deixou para nós esse rio, então nós temos que zelar. Como é

que nós vamos zelar? Nós temos de zelar.” (PFN, 56, v. 1, p. 32) “Minha filha vai lá

pegar um peixe, para alimentar, pegar uma água, tomar um banho na praia ou no rio,

muita coisa pode fazer. Isso aqui é aquela alegria, aquele amor, então, isso influi em

muita coisa. (...) é a beleza.” (PFN, 56, v. 1, p. 32)

“O rio para mim é uma fonte de riqueza, que mata a fome de muitas pessoas, é uma

fonte de lazer.” (FMA, v. 1, p. 13)

“A coisa mais maravilhosa para nós aqui é o rio São Francisco. Nem todo mundo sabe

agradecer a vantagem que tem o rio. O rio é fantástico. A pessoa que mora na beira

do rio São Francisco é uma pessoa esperta, não é rico, mas está de barriga cheia. É

uma beleza. Falta à gente recurso.” (JNF, 59, pescador e lameiro, v. 1, p. 58)

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“Economicamente o rio é muito importante pra nós porque nós temos aqui centenas

de pescadores que vivem exclusivamente da pesca e graças a Deus nós ainda temos

peixes.” (HB, v. 1, p. 84-85)

“Aí não tem nada para nós. Se nós não tivermos o rio aqui acabou o rio, não tem rio

para trabalhar não.” (VAS, 57, v. 1, p. 61)

“Olha, na região aqui eu trabalho há 15 anos e o rio São Francisco é significativo para a

população no sentido da própria lavoura, sobrevivência do morador ribeirinho e no

setor de pesca tem muitos pescadores profissionais.” (JW, cabo da polícia)

“O rio São Francisco é um rio que é um presente de Deus para todos nós, temos

também que saber respeitar leis ambientais e me parece que essa transposição está

sendo levada com muita pressa para poder surtir o efeito bonito que o governo quer.”

(HB, v. 1, p. 86)

Destacar as expressões “riqueza”, “prazer”, “alegria”, “beleza”, “coisa mais

maravilhosa e fantástica” é uma forma de traduzir os diversos sentimentos da população

em relação ao São Francisco e à bacia hidrográfica. Apesar da subjetividade de cada

uma delas, percebemos a relevância social, econômica e cultural que o rio tem na

estruturação da teia da vida. Se a princípio pensávamos que a população deu as costas

para o rio, a pesquisa revelou o quanto estávamos enganados. O rio é uma benção, um

presente, é a única riqueza que nós temos.

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Conclusões

Os resultados da pesquisa de campo, bibliográfica e documental, longamente analisados

nas páginas anteriores, mostram que o contato entre as populações ribeirinhas e os

corpos d’água, no vale do São Francisco, é permeado por uma relação de intimidade, na

qual o rio é elevado, para usar a expressiva terminologia de Mônica Meyer, à condição

de rio-sujeito. Os diversos usos do rio são estabelecidos a partir de uma relação afetiva

com os corpos d’água; estes são parte do cotidiano, da memória e da história pessoal de

cada entrevistado.

Ao mesmo tempo, essa mesma população é em parte alheia às condições ambientais do

vale. Como ressalta Beatriz Gontijo, as entrevistas mostram as pessoas mais

preocupadas com as suas condições socioeconômicas do que com a situação ambiental

da bacia. Ainda que tenha uma vivência direta dos problemas ambientais do vale, a

população ribeirinha assume uma perspectiva que poderíamos denominar precária do

seu próprio papel na preservação da bacia. “Mesmo quando fazem expectativas

negativas sobre o futuro do rio, os moradores não percebem suas vidas incluídas no

desastre por vir. Sentem muito pelo rio e por todo o ambiente, mas a morte do rio não

significa a sua morte, ou da comunidade”, escreve Beatriz Gontijo.

Parece haver, assim, na percepção socioambiental da população ribeirinha, um duplo

movimento de intimidade/alheamento, ou de aproximação/distanciamento, em relação

aos corpos d’água da bacia. Longe de constituir uma simples manifestação da vontade

individual e coletiva – “eu quero/não quero me preocupar” –, esse comportamento

híbrido e aparentemente ambíguo tem razões sócio-históricas profundas. Revela, no

nosso entender, a contradição estrutural entre, de um lado, a memória histórica da

importância do rio e dos seus afluentes, gravada numa população cujo contato com os

corpos d’água pertence à própria tradição do viver; e, de outro, a alienação, que avança

na contemporaneidade, em relação ao meio natural e ao lugar que o homem nele ocupa.

Se a tradição se encarrega de perpetuar percepções atávicas, ligadas a um tempo em que

ritmos e modos de viver estavam inextricavelmente presos aos próprios ritmos e modos

da natureza, a lógica instrumental e utilitária, característica da contemporaneidade, age

no sentido contrário, impondo a alienação do ribeirinho em relação ao meio em que

vive. Nenhuma outra imagem é tão poderosa como expressão dessa ambigüidade do que

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a lavadeira que gosta de exercer a sua atividade no rio, mas sente-se insegura de fazê-lo

sozinha, por temer os usuários de droga que freqüentam o mesmo local e podem ser

perigosos. Um comportamento secular, de intimidade e interação com as águas, é

modificado por uma tendência moderna, urbana e alienada em relação ao rio. Numa

ponta desse jogo complexo está a lavadeira, que reproduz uma atividade tradicional,

própria de uma comunidade que, num ritmo lento e não agressivo, aprendeu a usar o rio

e a conviver com ele. No outro extremo está o usuário de drogas, que mimetiza uma

prática típica dos grandes centros urbanos, trazendo para as margens de um grande rio

sertanejo um comportamento que sintomatiza o estado de adoecimento social das

metrópoles centrais e periféricas.

Esse esquema interpretativo se complica, todavia, quando consideramos que a

decantada tradição é filha de um passado que também agrediu em larga escala o rio e os

seus afluentes. O que terão representado, em devastação das áreas de mata atlântica,

cerrado e caatinga que ladeavam o rio, os extensos campos de criação bovina

estabelecidos no vale do São Francisco a partir de finais do século XVII? Poucos

registros restam a respeito, mas é fora de dúvida que a pecuária colonial eliminou largas

áreas de vegetação nativa para dar lugar a pastagens e inaugurou um problema que

ainda hoje é freqüente nos corpos d’água da região: o pisoteio das margens de rios,

ribeirões, riachos e veredas pelo gado bovino. A prática danosa do plantio de roças e da

criação de bovinos nas margens dos corpos d’água, apontada em algumas das

entrevistas coletadas em campo, é tão antiga quanto a instalação das primeiras unidades

econômicas no vale do São Francisco.

A navegação a vapor, que intensificou o comércio ao longo do rio e trouxe benefícios

econômicos para o vale, foi também, como se viu no texto de análise histórica, uma

ameaça à mata ciliar do São Francisco. Ela se instala não como continuação de uma

tradição de navegação fluvial, como poderia imaginar a tendência homogeneizadora de

quem olha do presente para as práticas passadas, mas como rompimento de um certo

equilíbrio no uso das reservas vegetais das margens do rio.

O presente, por seu turno, se traz a alienação e o distanciamento, é também fonte de

recursos econômicos e técnicos que podem promover a preservação dos biomas do vale

do rio. Se o passado somente podia oferecer a lenha como combustível para a

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navegação, a queimada como técnica de criação de terrenos agricultáveis, a criação à

beira-rio como forma de manutenção do gado bovino, o presente apresenta um conjunto

de alternativas econômicas e técnicas que podem contribuir para o desenvolvimento

sustentável do vale do rio.

Uma política de desenvolvimento socioeconômico que não esgote ou degrade o meio

natural do vale e que garanta a manutenção dos laços socioculturais das comunidades

são-franciscanas com o ambiente não tem sido, todavia, a tendência dos grandes

projetos governamentais implantados ao longo do São Francisco. As usinas hidrelétricas

do século XX possibilitaram o suprimento de energia para milhões de nordestinos, mas

foram também responsáveis pela consolidação de um vasto controle tecnológico sobre o

vale do rio – ao ponto de já se ter dito que o São Francisco, abaixo de Sobradinho,

tornou-se um “rio artificial” totalmente controlado pelo homem.

O papel dos imensos reservatórios construídos ao longo do rio nas alterações ambientais

sofridas pelo vale é lembrado, como pontuou Elisabete Gontijo, por alguns dos

entrevistados. A questão, não obstante, não é destacada, nessas entrevistas, na dimensão

que exigiria a extensão dos impactos ambientais provocados pelas grandes e médias

barragens. Seria esse mais um efeito da tendência apontada por Beatriz Gontijo: a

consciência ambiental da população ribeirinha está ligada à vivência imediata dos

problemas do meio. O impacto de uma usina hidrelétrica e de uma grande barragem,

ainda que mais significativo do que as alterações perceptíveis no dia a dia, permanece

um efeito distante e dificilmente mensurável pela população.

A transposição, se realizada, estaria entre esses megaimpactos sofridos pelo rio. É

surpreendente o baixo grau de informação da população ribeirinha do trecho pesquisado

sobre o projeto. As pessoas têm informações gerais sobre a iniciativa, mais ou menos

resumidas pelo chavão “é para levar água do São Francisco para o Nordeste”, mas

pouco ou nada sabem sobre a sua extensão, custo, áreas atingidas, áreas beneficiadas,

cronograma e, principalmente, sobre os prováveis impactos que terá sobre as regiões

ribeirinhas. A impressão geral que deixou o trabalho de campo, quanto a esse tópico, é a

de que o projeto de transposição, se intensamente debatido em eventos de especialistas,

programas de TV, matérias e artigos de jornais e revistas, é pouco conhecido e referido

no médio superior São Francisco.

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O paradoxo da falta de água a poucos quilômetros das margens do rio pode, não

obstante, revelar a fragilidade do projeto enquanto política pública de desenvolvimento

socioeconômico. Com efeito, partindo do nível microscópico – isto é, pequenas

comunidades do vale do São Francisco que experimentam freqüentemente a escassez de

água –, pode-se chegar a algumas inferências interessantes, que permitem estabelecer

uma discussão da concepção de política pública e de desenvolvimento socioeconômico

que norteia o projeto de transposição.

A falta de água nessas comunidades pode ser explicada a partir de três razões principais:

secamento de corpos d’água; poluição de corpos d’água; e inacessibilidade a recursos

técnicos.

O secamento e a poluição de corpos d’água constituem o reflexo, no plano

microscópico, da situação geral de degradação ambiental em que se encontra o vale do

São Francisco. A devastação das matas ciliares, o despejo de esgotos domésticos e

industriais, a utilização descontrolada da água para a irrigação e a destruição das

nascentes estão entre as principais razões para a morte dos pequenos cursos de água que

outrora serviam a comunidades isoladas do vale. Lugares como Brejo de São Caetano e

Poçõezinhos, que cresceram em razão das reservas de água oferecidas por rios e

córregos como o Japoré e o Alegre, entraram em lenta decadência quando os seus

mananciais foram abatidos. A água passa, então, a ser um recurso escasso, comprado na

distante sede do município ou coletada nos charcos e córregos poluídos em que se

transformaram os antigos mananciais.

A inacessibilidade a recursos técnicos, por seu turno, reflete a pobreza das populações

são-franciscanas. Água limpa existe a poucos quilômetros do povoado, mas faltam

recursos financeiros da comunidade para trazê-la para o lugar e distribuí-la entre os

moradores. Como notou Mônica Meyer em Ingazeira, a escola local é abastecida

somente pela água que a servente carrega em panelas. A reserva, que é o próprio rio São

Francisco, está a apenas 100 metros do lugar, mas faltam recursos financeiros para

bombear água dela até a escola.

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Essa dicotomia entre fartura e escassez de água ao longo do São Francisco constitui a

forma como o vale se situa numa sociedade estruturalmente desigual e excludente. Ela

coloca, a nosso ver, em xeque o projeto de transposição. Retirar água de um rio abatido

pela devastação ambiental, num vale habitado por uma população empobrecida, cujo

acesso à água é limitado e inconstante, representa, como já apontamos, uma das maiores

contradições do projeto.

Se voltarmos os olhos, por outro lado, para a região potencialmente beneficiada pela

transposição, encontraremos incoerências semelhantes. Uma visão simplista do semi-

árido leva o governo federal a supor que os problemas sociais da região explicam-se a

partir das secas periódicas que a assolam. A seca, nessa perspectiva, é um dano a ser

combatido. Desconsidera-se, assim, que a estiagem é parte do ritmo natural da região e

que, portanto, as “soluções” para o “problema” estariam mais na implantação de

economias e de recursos técnicos que permitissem a convivência com o fenômeno do

que na reversão dos seus efeitos climáticos.

Soluções criativas para problemas sociais, que implicassem em custos menores e em

menor impacto sobre ecossistemas e culturas, eram esperadas a partir da eleição de Luiz

Inácio Lula da Silva para a presidência da República. Mais do que uma plataforma

política, essas soluções integrariam uma nova concepção de desenvolvimento, na qual a

sustentabilidade seria um princípio fundamental. O projeto de transposição traz de volta,

pelo contrário, uma “solução” tecnológica viabilizada por um megaempreendimento de

engenharia, com preocupantes impactos sobre a região doadora e a região receptora,

baseada numa lógica que vê nos elementos naturais simples recursos a serem

explorados.

Neste estudo tentamos encetar uma abordagem histórica, que situe a transposição entre

as grandes intervenções humanas no vale do São Francisco, e socioambiental, que

reconstitua a relação entre o homem e os corpos d’água da bacia. A análise histórica

mostrou que a transposição, se realizada, significará a implantação de mais um conjunto

de próteses tecnológicas ao longo do São Francisco, responsáveis pela desfiguração do

seu perfil natural e pela conversão do vale num meio técnico. O ponto de vista

socioambiental, por seu turno, ao partir de pequenos elementos de abordagem – um

córrego, um povoado, uma escola rural... – reenfocou as políticas públicas para o vale,

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observando-as não do ponto de vista dos seus efeitos macroscópicos, mas das

implicações que têm para as pequenas e inúmeras comunidades são-franciscanas e para

os frágeis ecossistemas da bacia. Acreditamos ter, assim, realçado a importância de um

rio que não é mera calha de condução de água, mas a sede de uma complexa trama de

relações ecológicas, históricas e socioculturais.

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