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7/26/2019 Audiovisual Na Cena Teatral - Felipe de Paula Souza e Karoline Vital Goes
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AUDIOVISUAL NA CENA TEATRAL: PENSAMENTOS A PARTIR DOESPETÁCULO LENDAS DA LAGOA ENCANTADA
Felipe de Paula Souza1 Karoline Vital Góes 2
Resumo: A Companhia Boi da Cara Preta, originária do núcleo infanto-juvenil doTeatro Popular de Ilhéus, estreou o espetáculo Lendas da Lagoa Encantada. Contando ahistória da comunidade do distrito de Ilhéus, que se une às lendas e mitos da Lagoacontra a invasão do “bicho Mondrongo” que vem da Europa para destruir a natureza, oespetáculo se vale da linguagem audiovisual em sua cena. O presente artigo busca,
portanto, realizar reflexões a partir da construção narrativa do espetáculo pautada na
constante presença das projeções.
Palavras-chave: Espaço cênico, audiovisual, teatro, contemporaneidade.
INTRODUÇÃO
No dia 16 de março de 2012, a Companhia Boi da Cara Preta, originária do
núcleo infanto-juvenil do Teatro Popular de Ilhéus, estreou o espetáculo Lendas da
Lagoa Encantada. Contando a história da união da comunidade do distrito de Ilhéus,com as lendas e mitos da Lagoa contra a invasão do “bicho Mondrongo” que vem da
Europa para destruir a natureza. Formado por um grupo de jovens atores que se dedicam
à retomada das manifestações e elementos da identidade cultural da região cacaueira, o
espetáculo musical busca promover a relação do povo com seu ambiente cotidiano.
Com texto de Romualdo Lisboa, músicas de Elielton Cabeça e direção de Tânia
Barbosa, o espetáculo se vale da linguagem audiovisual em sua cena. O presente artigo
busca, portanto, realizar reflexões a partir da construção narrativa do espetáculo pautadana constante presença das projeções.
O Teatro Popular de Ilhéus foi criado em 1995, fundado pelo ator e diretor Équio
Reis. Nesses 18 anos, foram dezenas de montagens e intervenções artísticas nas
comunidades ilheenses. Desde o início, as manifestações da cultura popular sempre
estiveram inseridas na tentativa de retomar a própria identidade cultural e o teatro
1 Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia. [email protected] Coordenadora de Comunicação do Teatro Popular de Ilhéus. [email protected]
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O TPI e a Cia Boi da Cara Preta têm produzido um teatro engajado, dialógico
com a realidade contemporânea. A realidade do povo sul-baiano, a economia local, suas
características ambientais são parte da base de produção da obra do grupo. Um teatro
conectado com a sociedade, com o momento vivido.
E essa realidade contemporânea tem trazido aos indivíduos novidades
tecnológicas, desta forma o teatro contemporâneo tem sido habitualmente marcado pela
presença de evoluções em seu espaço cênico. Não apenas as técnicas puramente teatrais
têm sido desenvolvidas, mas equipamentos eletrônicos têm sido integrantes frequentes
das novas montagens de diversas companhias. E o audiovisual, nesta realidade, se
apresenta como um significativo elemento narrativo. Seja como ilustração, cenário,
pontuação das cenas e suas viradas ou mesmo ampliando a realidade encenada no palco
– caso de Lendas da Lagoa Encantada – o audiovisual se faz cada vez mais presente.
LENDAS E CONTEXTO AMBIENTAL SUL BAIANO
Em 2007, o sul da Bahia passou a dispor em sua agenda de debates cotidianos, o
processo de implantação do Porto Sul. Empreendimento integrante do Planejamento
Estratégico do Estado da Bahia, o Porto a ser construído em Ilhéus, corresponde ao
extremo leste da Ferrovia de Integração Oeste-Leste. A ideia é integrar as regiões
produtivas do oeste da Bahia com o mar.
Destinado ao escoamento de minério, localizado muito próximo a Área de
Preservação Ambiental da Lagoa Encantada e incrustrado numa região de Mata
Atlântica de grande biodiversidade, o Porto Sul foi o responsável pela geração de
grandes debates na região. As vertentes desenvolvimentistas defendem o Porto como
uma forma de repor as perdas da crise da lavoura cacaueira e as vertentes ambientalistas
alertam para os danos ambientais que o empreendimento pode trazer para a região. Neste contexto, a Cia Boi da Cara Preta inscreveu a proposta de montagem do
espetáculo no edital Manoel Lopes Pontes de apoio à montagem de espetáculo da
Fundação Cultural do Estado da Bahia em 2010 e foi contemplado.
UM TEATRO PARA O POVO
No final do século XVIII, na Europa, percebia-se uma incapacidade do teatro emdialogar com a população. O aristotelismo apontava para um teatro elitista, valorizando
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a monarquia. A partir da ascensão socioeconômica das burguesias, esse elitismo passa a
ser reorientado rumo a novas formas de expressão artística. Passam a serem
demandadas, então, relações diferenciadas com o público. Artistas e teóricos
debruçaram-se em apontar novos rumos para o teatro.
Com a Revolução Francesa, em 1789, passa a haver a seguinte perspectiva: a
arte teatral pode e deve ser colocada a disposição da propagação de ideias que sirvam às
causas do momento. A percepção da capacidade comunicativa do teatro cresce
consideravelmente. Roubine (2003, p. 127) diz que, nessa época, o teatro passa a ter
“tripla missão”: esclarecer (levar o espectador a tomar consciência), celebrar (dar a
conhecer grandes acontecimentos ou homens da nação) e estruturar (desenvolver a
identidade coletiva).
Mais adiante na história, em 1895, Maurice Pottecher cria, na França, o Teatro
do Povo. A proposta de pensar um teatro popular se desvia do grande repertório da arte
tradicional. Intelectuais como Anatole France e Emile Zola se engajaram na proposta
pressionando investimentos estatais sem obter sucesso nesse aspecto.
De toda mobilização, surgiram pontos doutrinários que apontam para o
funcionamento de um teatro verdadeiramente popular. A ideia deveria ser recusar a lei
do lucro, com aparelhamento profissional. Artistas e pessoal técnico deveriam ser
remunerados não pela bilheteria, mas mensalmente. Além disso, o teatro popular
deveria ter um empenho constante em buscar o seu público, evitando dialogar com ele
apenas ocasionalmente. O foco deveria ser sempre voltado para fixar o público, o
fidelizando através de estratégias diversas.
Por toda a Europa passam a existir tentativas de dialogar com uma visão de
teatro voltada para o povo. Roubine (2003, p.128) diz:
Essa reflexão teórica é materializada em práticas diversas. No maisdas vezes são experiências tentadas em condições precárias e queesbarram no problema do financiamento: Teatro Cívico (1897), Teatroda Cooperação das Idéias (1899), Teatro do Povo (1903) etc.
Todas essas iniciativas, em meio as suas particularidades positivas e negativas,
demonstraram a possibilidade de repensar a arte teatral. O mundo enfrentava mudanças
que o teatro deveria acompanhar. O repertório anterior era incapaz de dialogar com um
público desacostumado às tradições. Foi necessário desenvolver uma nova forma
dramatúrgica, um novo espaço para a ação teatral, uma nova linguagem. Um teatro
capaz de conter as ações de um povo.
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E esta é a maneira que o Teatro Popular de Ilhéus e a Cia Boi da Cara Preta têm
procurado desenvolver seus trabalhos. Encontrar meios de representar a realidade do
povo sul baiano, nordestino, brasileiro e falar sua linguagem. E, o mundo
contemporâneo apresenta novos desafios: como falar com um público vivente no “ethos
midiatizado” (SODRÉ, 2002)?
Segundo Cardoso (2010, p. 2),
A mídia referencia o homem que passa a usá-la para dar sustentação àcultura e, consequentemente à capacidade de compreender as coisas.Representa mais que linguagem, que tecnologia. É mais quesimplesmente equipamento que transmite ideologia. Hoje éinstrumento de direcionamento ou de criação de subjetividades nohomem. Subjetividades que surgem ou são moldadas e tornam-sedependentes, sedentas por informações e tecnologia.
Diante de tal realidade cabe aos produtores da arte teatral a questão: como se
relacionar com esse público?
CONTEMPORANEIDADE, AUDIOVISUAL E O TEATRO
Os tempos hodiernos se constituem em uma realidade onde a informação fluída,
em persistente mutação e construção é marca indissociável do período. Desta maneira, é
natural que, nessa realidade tão acelerada, o audiovisual seja um elemento significativo
das formas de fruição da informação.
Da mesma maneira que um ator desempenha suas atividades, os indivíduos pós-
modernos são demandados a ocupar múltiplos papéis em seu cotidiano. A
permeabilidade das fronteiras, a compactação das percepções de espaço e de tempo,
fazem com que a necessidade de objetividade, de agilidade, de rapidez, seja cada vez
mais demandada. O audiovisual, com sua linguagem direta, fluída, ágil, obtém, nessa
realidade, território fértil para sua propagação. Não há mais espaço para acontemplação, para o caminhar lentamente. Vive-se em meio a uma constante alteração
de norte, constante escolhas de novos caminhos.
Não obstante a linguagem audiovisual ser adequada aos acelerados tempos
hodiernos, o desenvolvimento tecnológico se encarrega de espalhar câmeras cada vez
mais compactas e financeiramente mais acessíveis. Em todos os cantos algum indivíduo
se converte em um potencial produtor de imagens. Crianças crescem aptas a ler e operar
essa nova linguagem desde a mais tenra idade.
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Onde fica então o teatro nessa realidade? Arte milenar, que demanda
contemplação. Não sem motivo, mesmo grupos de reconhecida qualidade técnica e
estética, são prodigiosos em propagar a dificuldade em construção de plateias. O
público está mais “acelerado”, apegado ao novo, ao moderno, ao digital. O audiovisual
pode, entre outras coisas, ser instrumento de religação do discurso teatral com seu
ouvinte.
Uma constatação do quão significativo pode ser a presença do audiovisual no
teatro vem da fala de Gallois (2004):
A vantagem essencial do audiovisual para a comunicação interculturalestá no impacto da imagem. A imagem impõe conceitos éticos,sentimentos, sensações que são universais, que transcendem adiversidade das culturas. Por serem atos de percepção, as imagens
aproximam.
O audiovisual em cena permite que os atores não apenas encenem, mas se
multipliquem, dialoguem com projeções, sejam transportados para cenários. O teatro
contemporâneo dialoga com o cinema, com o audiovisual, superando os conflitos
ideológicos da origem dessa relação. É deixado para trás o caráter depreciativo do
“teatro filmado”, bem descrito por Bazin (1991). Da junção de linguagens, não
necessariamente surge uma nova, mas possibilidades narrativas são multiplicadas.
O ESPETÁCULO
Lendas da Lagoa Encantada começa mostrando a população da localidade -
crianças, jovens e adultos - ansiosa com as notícias de que um trem passaria nas
imediações da Lagoa. Tal como a população ilheense real, os personagens surgem
divididos entre os otimistas e os temerosos com as novas.
Contudo, o espetáculo assume abertamente a argumentação ambiental. Anarrativa se volta para a proteção do ambiente natural, o discurso é de que, mais do que
desenvolver, todos precisam “se envolver”. O “bicho Mondrongo”, ser disforme,
imperialista, surge como inspirador de medo e aversão. O menino Sozí, protagonista
apegado ao meio-ambiente se junta às lendas da Lagoa – Mãe D’Água, Caipora, Mula-
sem-cabeça, Nego D’Água e Biatatá – para combater o invasor que vem para destruir a
natureza da Lagoa Encantada. No espetáculo, o público pode ter sua percepção das belezas naturais do
município – e sua consequente demanda de preservação – através de recurso
audiovisual. O espaço cênico é ampliado. Em determinado momento da narrativa, na
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primeira metade do espetáculo, o menino Sozí, indignado com aqueles moradores do
distrito da Lagoa que se animam com o suposto desenvolvimento trazido pelo trem,
discute, desafia a mãe e parte rumo à Lagoa. A partir deste momento, o ator Pablo
Lisboa – Sozí – sai de cena e a plateia passa a acompanhar o encontro de seu
personagem com uma das lendas e seus passeios entre matas e cachoeiras através de
imagens projetadas no fundo de cena. Todo o espaço cênico é tomado por imagens da
Lagoa Encantada real. Não apenas se reconstrói a natureza em cena, mas a plateia é
levada a mata, ao passeio de canoa pelas águas da Lagoa.
Águas, plantas e pessoas que compõem e habitam a área da Lagoa, trazem o
mundo real – e a reflexão – de maneira mais intensa, seguindo a lógica do teatro épico
brechtiano. Viradas de cena do espetáculo são pontuadas por projeções de imagens da
Lagoa Encantada e da mata ao seu redor. Nesses momentos, a banda musical em cena
executa temas melódicos, que remetem a um ambiente idílico, onírico. A Lagoa é, na
narrativa construída pela integração das artes, um espaço de sonho a ser preservado.
Essa integração de mídias, de discursos, de expressões artísticas, leva o
espectador no rumo oposto da catarse. A expressão é voltada para lembrá-lo que a
região é permeada pela Mata Atlântica e esta merece cuidados. As imagens reais, de
paisagens conhecidas, trazem o espectador teatral para a realidade. O papel das
tecnologias colabora não apenas para ornamentar a apresentação, mas sim, na verdade,
se constitui em um potencializador do discurso proferido.
Exemplo expressivo pode ser visto nas últimas ações do espetáculo. O elenco,
após concluir a encenação, se posiciona no centro do palco. O projetor é ligado e
surgem diversos moradores do distrito da Lagoa Encantada em depoimentos diversos
sobre sua realidade. Falam sobre sua vida, seus costumes e práticas, sobre a natureza
que os cerca e, principalmente, sobre a necessidade de preservação daquela área. Muito
mais intensa do que a fruição do discurso do personagem Sozí sobre a necessidade deenvolvimento ao invés do desenvolvimento é a oportunidade de ver moradores reais
falando sobre seu espaço e vida. O discurso de preservação ambiental é potencializado
pelas “vozes” vindas do vídeo. Não é mais o grupo, não são mais os artistas que dizem
ou cantam uma realidade catártica, é a vida real, explicitada pela arte. Os refletores são
direcionados para aquilo que merece atenção e cuidado. A natureza da região e seu
povo. A arte cumpre seu papel social.
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Roubine (2003, p. 77) falando sobre os pensamentos de Mercier 3 afirma sobre o
teatro popular:
Na plateia reúnem-se “todas as ordens de cidadãos”, e, durante arepresentação, os antagonismos sociopolíticos se diluem em uma
efusão coletiva. Com isso o teatro será o único lugar onde a Nação poderá tomar consciência de si mesma, onde, deixados de lado osinteresses privados e individuais, uma coletividade poderá refletir nos problemas que lhe dizem respeito.
A ideia, nesse sentido, passa a ser de uma arte engajada, envolvida, que se
posiciona diante de questões fundamentais para a sociedade. O vídeo multiplica, amplia,
não apenas o espaço cênico, não apenas a possibilidade criativa, mas também o
envolvimento. Estimula a ação e a mudança por onde passa, através de uma arte
vibrante e popular – que dialoga com as mais variadas esferas sociais, os mais variados públicos.
O audiovisual surge, portanto, como um elemento dinâmico, que colabora
ativamente para a totalidade do discurso proferido. Quebram-se as paredes no intuito de
inserir o espectador na cena. Significa falar, mostrar e trazer a realidade para dentro do
espaço cênico, do espaço de fruição da arte.
REFERÊNCIAS
BAZIN, A. O cinema. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
CARDOSO, Marcelo. Muniz Sodré: comunicação, afeto e razão. Revista Alterjor. Ano01, Volume 02, Edição 02. Julho – Dezembro de 2010.
GALLOIS, D. Antropólogos na mídia: comentários acerca de algumas experiências decomunicação intercultural. In: FELDMAN-BIANCO, Bela; LEITE, Miriam. (orgs.)
Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. 3 ed.
Campinas, SP: Papirus, 2004.ROUBINE, J-J. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEd., 2003.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho: Uma Teoria da Comunicação Linear e emRede. Petrópolis: Vozes, 2002.
3
Louis-Sébastien Mercier, escritor francês. Em 1773, publica o Ensaio sobre arte dramática,onde considera que o retorno aos escritores da Antiguidade clássica criavam uma estagnação poética, definindo algumas das características do que virá ser, posteriormente o teatroromântico.