AYERBE, Luis Fernando. O Ocidente e o Resto. In_A América Latina e o Caribe Na Cultura Do Imperio (Capítulo)

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pós-colonialidade

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  • Para Nestor, Lia,Graciana e GastonPara Jane, Julia,Sandro, Mario eMarcosPara Maruca.

    florAyerbe, Luis Fernando. Apresentao. O Ocidente e o "Resto". A Amrica Latina e o Caribe na cultura do Imperio. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires, Argentina. Programa de Becas CLACSO-ASDI. 2003. ISBN: 950-9231-85-1.

  • 11

    O fim da Unio Sovitica, alm do significado poltico mais evidente daderrota frente aos Estados Unidos, teve importantes desdobramentosno campo do debate intelectual sobre os caminhos de desenvolvimentoempreendidos pelas diversas sociedades ao longo da histria.

    Para alguns autores, a vitria dos Estados Unidos no representou apenaso fim de um perodo caracterizado pela bipolaridade nas relaesinternacionais, mas o reconhecimento inquestionvel da superioridade doOcidente, civilizao responsvel pela inveno de um modelo poltico eeconmico que se mostrou historicamente insupervel na gerao de riqueza,prosperidade e liberdade: o Capitalismo Democrtico e Liberal, ponto dechegada da histria universal1.

    No debate conservador sobre a caracterizao da ordem mundial ps-Guerra Fria, ganham destaque anlises culturalistas2, que comparam astrajetrias de sucesso e insucesso de pases, regies e grupos tnicos na longae sinuosa caminhada rumo universalizao do modo de vida ocidental3.

    Conforme pretendemos mostrar neste livro, histria, poltica e ideologiatornam-se dimenses complementares dessas abordagens, preocupadas coma construo de tipologias sobre os modelos de desenvolvimento, valores eatitudes4 que tornaram possvel o sucesso dos pases do capitalismo avanado,dando sustento terico formulao de estratgias de insero global para asperiferias subdesenvolvidas.

    Essa perspectiva tambm est presente na atuao internacional dosEstados Unidos. Para os governos eleitos aps o fim da Guerra Fria, a polticaexterna do pas est a servio da promoo de princpios de convivnciahumana considerados universais: a democracia representativa, a economia demercado e o imprio da lei. Esses seriam os pilares fundamentais daconsolidao de uma ordem mundial pautada pela paz e pela prosperidade,alm de um marco de referncia na caracterizao dos seus aliados e inimigos.

    Apresentao

    A antiga diviso do mundo em dois blocos depoder, Leste e Oeste, j no existe. Hoje, o grande

    desafio e ameaa o abismo em matria deriqueza e sade que separa ricos e pobres. Esseabismo freqentemente descrito em termos deNorte e Sul, porque a diviso geogrfica; mas

    uma indicao mais correta seria o Ocidente e oResto, porque a diviso tambm histrica

    David Landes (1998)

  • O vis culturalista perpassa as administraes de Bill Clinton e George W.Bush, e ganha forte nitidez a partir de 11 de setembro de 2001. Os atentadosem Washington e Nova York consolidam internamente as posies favorveis entronizao dos Estados Unidos como principais responsveis pelavigilncia e punio dos inimigos da ordem, j no como guardies domundo livre, mas como protetores das fronteiras que separam acivilizao da barbrie.

    Tendo esse contexto global como marco de referncia, nossa anlise seconcentrar nas relaes interamericanas. O ponto de partida a percepoda Amrica Latina e do Caribe no debate recente sobre o Interesse Nacionaldos Estados Unidos, dando destaque s abordagens centradas nos aspectosestratgicos associados afirmao da herana cultural ocidental, quecolocam em questo a existncia de uma identidade latino-americana,apostando num processo de disseminao dos valores promotores do sucessoao norte do hemisfrio.

    Essa ltima perspectiva assume contornos bastante ntidos a partir daconvergncia da maioria dos governos da regio na implantao daschamadas reformas liberalizantes, que se consolidam nas ltimas dcadas dosculo XX, e nos acordos para a criao da rea de Livre-Comrcio dasAmricas (ALCA) em 2005.

    A partir da caracterizao da abordagem hegemnica, estabeleceremosum contraponto com algumas posies que se apresentam como crticas danova ordem, pautadas pela busca de alternativas capazes de recuperar eexpressar perspectivas e interesses atualmente subalternos.

    O livro est dividido em trs captulos, estruturados de maneira similar:uma apresentao das posies abordadas, buscando expor de formailustrativa os principais argumentos, incluindo a reproduo de partesrelevantes das fontes documentais e bibliogrficas selecionadas, seguida deuma anlise dos temas tratados. Na seo final do terceiro captulo, sosistematizadas as concluses do trabalho.

    O captulo 1 discute os pontos de convergncia entre as abordagens deintelectuais que caracterizam o fim da Guerra Fria como momento que explicita avitria do Capitalismo Liberal, considerado o principal expoente da superioridadeda civilizao ocidental, e as anlises de instituies que buscam a interlocuocom o governo dos Estados Unidos, tendo em vista influenciar processos detomada de decises. A partir da discusso mais ampla sobre os significadosculturais da Nova Ordem Mundial, so analisadas as diversas caracterizaes dainsero latino-americana e caribenha na dicotomia O Ocidente e o Resto.

    O captulo 2 estabelece uma comparao entre as abordagensapresentadas no primeiro captulo e a poltica externa dos Estados Unidos, apartir da anlise de documentos governamentais. A seo final apresenta umbalano crtico da perspectiva do centro hegemnico.

    O captulo 3 faz um contraponto em relao s abordagens anteriores,analisando autores e instituies que colocam em questo a hegemonia norte-

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • americana e o chamado pensamento nico, detendo-se nos argumentos queassociam a construo de alternativas com o resgate de identidades de carterregional, social e tnica.

    O captulo comea com uma sntese dos aspectos que consideramoscentrais na concepo que orienta a poltica externa dos Estados Unidos, queserve como parmetro de contraste com a anlise das posturas que colocamem questo a Nova Ordem, orientando a organizao das sees. A escolha deautores buscou incorporar, alm da representatividade intelectual em relaoaos temas definidos, vnculos institucionais com centros de pesquisa,organizaes e eventos em que a busca de perspectivas a partir da AmricaLatina e do Caribe est no centro da pauta.

    Nas consideraes finais, procurou-se resgatar as principais proposiesresultantes dessas anlises, destacando as possibilidades de convergncia naconstruo de caminhos diferentes.

    Este livro apresenta os resultados do projeto A Amrica Latina e o Caribena Nova Ordem Mundial: um territrio sem utopia?, financiado pelo Programade Bolsas do Conselho Latino-Americano de Cincias Sociais (CLACSO) e daAgncia Sueca para o Desenvolvimento Internacional (Asdi), nos marcos doconcurso Culturas e identidades na Amrica Latina e no Caribe.

    Tendo em vista o foco da pesquisa, centrado na sistematizao deposies favorveis e crticas da atual ordem hegemnica em torno dapercepo da identidade latino-americana e caribenha, a anlise dos autorese instituies selecionados teve como principal preocupao odimensionamento da sua racionalidade. No buscamos fazer uma crtica dospressupostos tericos do pensamento conservador, ou determinar critrios deincluso e excluso de autores no campo dos verdadeiros opositores dosistema, mas colocar em relevo a adequao de sentido entre os argumentosesgrimidos pelas diversas abordagens, os interesses envolvidos e as posturaspolticas decorrentes.

    Vivemos um processo de transio, tanto na postura da nica superpotncia,como dos setores negativamente afetados pela hierarquia mundial do poder. Sebem do lado dos Estados Unidos h um projeto cristalizado, no campo oposto, odescontentamento generalizado ainda no produziu sua alternativa sistmica.Entre os fatores que explicam essa diversidade de situaes, nossa anlisecolocou em primeiro plano as habilidades desenvolvidas pelo Imprio noexerccio do poder, dando destaque quela que consideramos particularmentedesafiadora: a capacidade de tornar difusas ou explcitas dependendo dosinteresses em jogo as fronteiras com o Resto, favorecendo a ampliao das suasalianas e o isolamento dos seus adversrios.

    * * *

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    LUIS FERNANDO AYERBE

  • Considero um privilgio ter tido acesso generosa bolsa do ProgramaCLACSO-Asdi, especialmente levando em considerao as restries pelasquais passa o financiamento da pesquisa na Amrica Latina e no Caribe, o quetorna cada vez mais importante a continuidade e ampliao desse tipo deiniciativa. Agradeo s duas instituies por essa oportunidade.

    Agradeo tambm aos colegas do CLACSO, especialmente Atilio Boron,Secretrio Executivo, e Bettina Levy e Natalia Gianatelli, do ProgramaRegional de Bolsas, pelo apoio recebido em todas as etapas do trabalho.

    A Werner Ackermann, antigo Diretor de FLACSO-Brasil, Ayrton Fausto,atual Diretor, e Ricardo Ribeiro, tambm colega da UNESP, que avalizaramo projeto junto CLACSO.

    Ao Departamento de Economia da minha universidade, que me concedeuafastamento das atividades docentes durante o primeiro semestre de 2001.

    Aos professores, pesquisadores e alunos do GEICD, pelo rico epermanente intercmbio de idias e experincias.

    A Assuno Cristvo, que revisou cuidadosamente a primeira verso dolivro.

    Ao parecerista annimo(a) convidado pelo CLACSO para avaliar orelatrio final, cujas observaes crticas foram de grande auxlio nesta novareviso.

    minha querida famlia brasileira e argentina, sempre presente nosmomentos fundamentais.

    Aos espritos amigos, que me mantm em sintonia com o desafioinesgotvel de honrar a vida.

    Muito obrigado.

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • H istoriadores de diversas vertentes coincidem em situar na RevoluoIndustrial a consolidao do processo de ruptura estrutural nas tra-jetrias de desenvolvimento da Europa, especialmente Inglaterra, edo resto do mundo5. Apesar de reconhecerem a relevncia desse aspecto,alguns autores conservadores identificam condicionantes de significado maisprofundo, que se situam no campo da cultura.

    Tomando como principal parmetro de referncia o caso da China,civilizao com um padro invejvel de realizaes econmicas, cientficas emilitares, e aparentemente melhor preparada para um salto qualitativo no seudesenvolvimento do que as principais potncias europias, sua decadncia apresentada como exemplo paradigmtico da bifurcao de caminhos entre oOcidente e o Resto. As diferentes posturas na abertura em relao ao mundo, livre iniciativa e ao pluralismo poltico, seriam os grandes fatores de contraste6.

    Na tradio ocidental, a atitude imperial de permanente conquista denovos mercados e territrios impulsiona a descoberta cientfica comaplicaes nas comunicaes, na indstria e na guerra e contribui para aformao de uma elite empreendedora capaz de formular estratgias deexpanso de alcance mundial. A imposio de limites ao poder da monarquia,com dois marcos importantes na Inglaterra com a Carta Magna de 1215 e arevoluo de 1689, inaugura um processo de demarcao de espaos polticose de direitos garantidos por escrito, abrindo possibilidades ilimitadas para aampliao da liberdade, dependendo apenas da capacidade criadora eorganizativa da sociedade civil. O fortalecimento das cidades europias comoreas protegidas contra o poder dos senhores feudais proporciona um climapropcio ao empreendimento e livre iniciativa.

    No sistema chins, em que meios de produo e pessoas faziam parte dapropriedade do imperador, dificilmente algum tomaria a iniciativa deempreender um esforo adicional ao exigido, projetando uma produo de

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    Captulo I

    Cultura e hegemonia na Nova Ordem Mundial

    No mundo flui uma importante e promissoracorrente intelectual concentrada na cultura e nas

    mudanas culturais, que tm relevncia tantopara os pases pobres como para as minorias

    pobres dos pases ricos... Oferece uma visoimportante sobre a razo pela qual a alguns pases

    e grupos tnicos e religiosos se saram melhor doque a outros, no s em termos econmicos, como

    tambm com respeito consolidao dasinstituies democrticas e a justia social

    Lawrence Harrison (2000)

  • excedentes a serem aplicados em proveito de um futuro enriquecimentopessoal ou familiar. A auto-suficincia da elite chinesa, que influencia umapostura internacional isolacionista, um dos fatores desencadeadores doprocesso de decadncia. A confiana na superioridade inquestionvel einabalvel do seu modo de vida desestimula a curiosidade em relao ao queacontece no resto do mundo. Qual seria o interesse em empreender relaescom povos brbaros que nada tm a oferecer e tm tudo a ganhar com asrealizaes do Imprio do Meio7?

    Essas abordagens dos contrastes entre a ascenso do Ocidente e o declniodo Oriente tm um alcance muito maior do que a simples explicao depercursos histricos diferenciados. As mudanas impulsionadas pela RevoluoIndustrial, alm de criarem um abismo intransponvel entre a Europa e o resto,decretam a morte anunciada de qualquer modelo de desenvolvimento quecoloque estruturalmente o Estado como ator central da economia8.

    A partir do sculo XIX, o impulso colonizador europeu tender cada vezmais a associar a diviso internacional do trabalho com a racionalidadecapitalista, beneficiando-se das vantagens adquiridas na aplicao dainovao tecnolgica produo para o consumo civil e militar. Inicialmentecom a Inglaterra na vanguarda, cedendo passo posteriormente para osEstados Unidos, a evoluo do desenvolvimento mundial ser associada auma disputa permanente entre o Capitalismo Liberal e diversas variantes deestatismos (fascismos, militarismos, populismos, comunismos).

    Essa disputa se define na segunda metade do sculo XX, a partir daconsolidao de trs tendncias: 1) com a derrota do nazi-fascismo, aspotncias capitalistas assumem a democracia representativa como forma degoverno; 2) com o fim da Guerra Fria, encerra-se a etapa de conflitossistmicos com Estados no-capitalistas; 3) a globalizao da economiaacentua a expanso do mercado em detrimento do Estado, inclusive nospases governados por partidos comunistas.

    Configurada a vitria, a caracterizao dos lineamentos fundamentais domodo de vida vencedor passa a assumir maior destaque, transformando-se emmodelo de emulao.

    Tomando como exemplo a Inglaterra do sculo XIX, David Landesdelimita as caractersticas ideais do que seria a sociedade teoricamente maisbem preparada para alcanar o progresso material e o enriquecimento geral(1998: 241). Nessas caractersticas, inclui as capacidades de inovao,produo e adaptao para lidar com o desenvolvimento tecnolgico; atransmisso de conhecimentos pela educao; e escolhas na alocao dosrecursos humanos que valorizam a competio, o mrito e a iniciativa,proporcionando oportunidades de sucesso compatveis com a capacidadeempreendedora demonstrada.

    Esses padres envolvem certos corolrios: igualdade dos sexos(duplicando, por conseguinte, o p o o l de talento); nenhumadiscriminao na base de critrios irrelevantes (raa, sexo, religio etc.);

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • tambm uma preferncia pela racionalidade cientfica (meios-fim)sobre a magia e a superstio (irracionalidade) (Landes, 1998: 242).

    Algumas condies institucionais complementam favoravelmente ascaractersticas apontadas: garantias aos direitos de propriedade privada, liberdade pessoal contra qualquer forma de arbtrio, obedincia doscontratos e a um governo estvel, mais de leis do que de homens (op. cit.:242), sensvel s crticas e sugestes da opinio pblica, honesto eimpermevel aos privilgios, austero e eficiente nos gastos.

    Mesmo reconhecendo que no existem exemplos de sociedades em queestejam presentes todas as caractersticas apontadas, esse paradigma, noobstante, d destaque direo da histria ... e no se trata de umacoincidncia que a primeira nao industrial tenha sido a que mais cedo seaproximou dessa nova espcie de ordem social (op. cit: 243).

    A existncia de regras de jogo explcitas de competio poltica eeconmica, que expressam a legalidade construda pela sociedade organizadaatravs da sua representao institucional, condio estrutural de estmuloao empreendimento. Nesse contexto, o sucesso e o fracasso expressambasicamente a justa retribuio da competncia e do esforo na busca doreconhecimento9.

    Para Landes, a enumerao das caractersticas positivas do sistema inglsno significa desconhecimento dos problemas.

    A Inglaterra estava longe de ser perfeita. Tinha seus pobres. Conheceuabusos e privilgios, assim como o prazer da liberdade, distines declasse e de status, concentraes de riqueza e de poder, sinais depreferncia e de favoritismo. Mas tudo relativo e, em comparao comas populaes do outro lado do Canal, os ingleses eram livres eafortunados (1998: 245).

    A relativizao da pobreza, tomando como parmetro de referncia asubjetividade dos atores na percepo das suas condies de vida e acomparao com outras sociedades, um aspecto metodolgico central nacaracterizao de situaes de desigualdade e explorao por parte doculturalismo conservador. Para essa perspectiva, o principal fator a levar emconta a tendncia. A escravido, o colonialismo e demais experinciashistricas de dominao pela violncia representam, em termos de longadurao, momentos de uma trajetria evolutiva. Pode-se condenar o trfico deescravos patrocinado por potncias europias, mas essa prtica tambmestava presente em boa parte das culturas originais da Amrica, sia e frica.O dado relevante que coube Inglaterra, no sculo XIX, a iniciativa dequestionar o sistema escravista10.

    A histria dos primrdios da industrializao invariavelmente umacrnica de trabalho rduo por baixo salrio, para no falar emexplorao. Uso esta ltima palavra, no no sentido marxista de pagarao trabalho menos do que o seu produto (de que outro modo o capitalreceberia a sua recompensa?), mas no sentido significativo de obter

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    LUIS FERNANDO AYERBE

  • mo-de-obra compulsria de pessoas que no podem dizer no demulheres e crianas, escravos e semi-escravos (os involuntrios servosda gleba) (Landes, 1998: 427).

    O desenvolvimento do capitalismo traria consigo a substituio paulatinadas formas compulsrias de trabalho pela livre contratao de mo-de-obra,com base em critrios de competncia. Desta forma, em sociedades em quevigoram plenamente a economia de mercado e a democracia representativa, adenncia da explorao perde fundamento. Essa mesma perspectiva aplica-ses relaes internacionais. A globalizao otimiza a alocao dos recursos deacordo com as vantagens comparativas regionais, nacionais e locais.Existindo instituies multilaterais eficientes e confiveis na formulao eaplicao de padres globais de concorrncia, e um clima de convivnciainternacional baseado no respeito legalidade, as condies estariam dadaspara que os atores participantes do sistema adotem as polticas adequadas otimizao dos seus interesses.

    De acordo com essa perspectiva, em termos de tendncia, o mundocaminha nessa direo. Nas palavras de Lawrence Harrison, Marx estavaerrado, Weber estava certo:

    Marx interpretou o capitalismo no sculo dezenove como um processo noqual uns poucos afluentes exploravam muitos miserveis. Lnin estendeuesta interpretao para explicar por que alguns poucos pases eram ricos emuitos eram pobres: a afluncia nacional era o fruto do imperialismo .` Ospases pobres eram o proletariado` explorado das naes do mundo. ...Hoje, no h nenhuma ideologia que conteste seriamente o domnio epopularidade crescente do capitalismo democrtico como o melhormodelo capaz de ir ao encontro das aspiraes das pessoas para uma boavida, at mesmo em regies inexperientes como a Europa Oriental, fricaSub-saariana, e Amrica Latina (1992: 3-4).

    O contexto de referncia de Harrison o processo de liberalizao polticae econmica que atinge, a partir dos anos 1980, grande parte dos pases doTerceiro Mundo, com especial destaque para a Amrica Latina e o Caribe,estendendo-se, posteriormente, aos antigos pases do bloco sovitico. Comoconseqncia, estariam sendo criadas as condies institucionais para adisseminao dos valores do capitalismo liberal escala global.

    Ronald Inglehart e Marita Carballo, com base nos resultados da PesquisaMundial de Valores11, adotam perspectiva similar de Harrison.

    A Pesquisa Mundial de Valores foi projetada para testar a hiptese de queo desenvolvimento econmico conduz a mudanas especficas,funcionalmente relacionadas com mudanas nos valores e sistemas decrenas em grande escala. Ns no assumimos que todos os elementos decultura mudaro, conduzindo a uma cultura global uniforme.... Mas certasculturas e mudanas polticas parecem realmente estar logicamenteassociadas com a dinmica de um processo de modernizao que envolveurbanizao, industrializao, especializao profissional, e a expanso

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • generalizada da alfabetizao. Isto implica que o desenvolvimentoeconmico, a mudana cultural, e a mudana poltica acontecem de formavinculada, em padres coerentes e, at certo ponto, previsveis(1997: 35).

    A pesquisa sobre mudana de valores assume como referncia metodolgicaa teoria da modernizao, no entanto, Inglehart faz uma demarcao dediferenas em relao a algumas abordagens vinculadas a essa perspectiva,questionando quatro pontos: 1) a linearidade da mudana, no sentido dasanlises do fim da histria; 2) os determinismos econmico e cultural dastradies marxista e weberiana; 3) o etnocentrismo que associa modernizaocom ocidentalizao; 4) o vnculo entre democracia e modernizao, relativizadoquando se consideram as experincias do fascismo e do comunismo.

    Nesse ltimo aspecto, Inglehart destaca a emergncia de uma nova fase, aps-modernizao, na qual a democracia torna-se um componenteimprescindvel do progresso econmico.

    Nas sociedades industriais avanadas a direo predominante dodesenvolvimento mudou nas ltimas dcadas, girando da modernizaopara a ps-modernizao. Essa nova trajetria reduz a importncia daracionalidade funcional caracterstica da sociedade industrial e aumentaa importncia da auto-expresso e da qualidade de vida. medida em quese propagam os valores ps-modernos aumenta a probabilidade de que seproduzam varias mudanas societrias, desde a igualdade de direitospara as mulheres at a criao de instituies polticas democrticas e adiminuio dos regimes socialistas de estado (1998: 426).

    De acordo com Inglehart, no capitalismo avanado, a crescenteprosperidade e a percepo de segurana econmica contribuem para adisseminao de valores ps-materialistas, que deslocam o eixo daspreocupaes existenciais da acumulao de riqueza para a qualidade de vida.Neste processo, perde relevncia a agenda poltica da sociedade industrial,centrada no conflito econmico:

    Os conflitos econmicos compartilham cada vez mais a cena comnovas questes que uma gerao atrs quase no eram relevantes: naatualidade, a proteo ao meio-ambiente, o aborto, os conflitos tnicos,a questo da mulher e a emancipao dos gays e das lsbicas soassuntos candentes, enquanto que o ncleo do programa marxista, anacionalizao da indstria, passou para o esquecimento (1998: 435).

    Isso tem implicaes na caracterizao da dicotomia esquerda-direita. Oautor considera que est havendo uma inverso nas bases sociais que sustentamcada postura. Os movimentos associados insegurana material, quequestionam a propriedade dos meios de produo e a distribuio da renda,tendem a dar sustento nova direita, enquanto os da agenda ps-materialista,centrados na autonomia dos estilos de vida, fortalecem a nova esquerda:

    Historicamente, o apoio esquerda encontrava-se na classetrabalhadora, enquanto que a direita obtinha seu apoio principalmentedas classes mdia e alta. Hoje em dia o apoio esquerda procede cada vez

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    LUIS FERNANDO AYERBE

  • mais de ps-materialistas de classe mdia, enquanto a nova direita obtmseu apoio de segmentos menos seguros da classe trabalhadora. A novadiviso ope as foras culturalmente conservadoras e xenfobasapoiadas principalmente pelos materialistas aos movimentos e partidosorientados mudana que se preocupam com questes culturais e degnero e da proteo do meio-ambiente desproporcionalmentefomentadas pelos ps-materialistas (Inglehart,1998: 435).

    Num artigo posterior, que apresenta os resultados da verso 1995 dapesquisa, Inglehart desenvolve de forma mais conclusiva a tese que relacionainsegurana material e atitudes autoritrias:

    Em poltica, a insegurana conduz xenofobia, necessidade delideranas fortes e decididas e deferncia para a autoridade. Destaforma, a Grande Depresso deu impulso poltica xenofbica eautoritria em muitas sociedades ao redor do mundo. A sensao desegurana bsica tem os efeitos opostos. Valores ps-modernosenfatizam a auto-expresso em vez da deferncia autoridade e sotolerantes com outros grupos e at mesmo consideram as coisasexticas e a diversidade cultural como estimulantes e interessantes, noameaadoras (2000: 223).

    O otimismo com a tendncia favorvel disseminao de valores ps-modernos no elimina as preocupaes com a permanncia de culturasresistentes ao progresso em diversas partes do chamado Terceiro Mundo. Paraa abordagem da modernizao, nas sociedades em que a sobrevivnciarepresenta a principal preocupao da maioria das pessoas, a continuadafrustrao em termos de desenvolvimento econmico pode contribuir parafortalecer comportamentos tradicionais. Considerando que a ampliao doabismo entre a riqueza e a pobreza uma das tendncias da atual realidadesobre a qual existe bastante consenso1 2, na perspectiva culturalista doestablishment conservador, as percepes sobre os fatores responsveis pelasdisparidades sero influenciadas fundamentalmente pelos valorespredominantes em cada sociedade.

    Edward Luttwak1 3 um dos autores que expe com maior clareza essaposio. Para ele, no processo de retirada do Estado das atividadeseconmicas, a privatizao, a desregulamentao e a globalizao representamas trs principais foras motoras do turbocapitalismo, denominao que utilizapara caracterizar o processo de acelerao do ritmo de transformaoestrutural do capitalismo, que adquire especial visibilidade no setor financeiro.O turbocapitalismo pode ou no acelerar o crescimento econmico, mas suastrs foras motoras aceleram o crescimento das finanas ... atividadesbancrias de todos os tipos e mercados de aes crescem com muito maisrapidez do que a economia real de fazendas, fbricas e lojas (2001: 29).

    Embora convicto do significado historicamente progressivo do processode destruio criadora promovido pelo turbocapitalismo, Luttwak reconheceque sua disseminao pelo mundo tende a aumentar a polarizao entreganhadores e perdedores. Isso se deve principalmente ao fato de que a

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • importao desse modelo de desenvolvimento, genuinamente estadunidense,no pode ser incompleta, devendo incorporar dois elementos que socomponentes essenciais do seu sucesso nos Estados Unidos: o sistema legal dopas e a forte influncia dos valores calvinistas.

    Em relao ao primeiro aspecto, destaca o acesso dos pobres assistncialegal na defesa contra abusos originrios do poder econmico e o empenhodo governo de fazer cumprir as leis que limitam o comportamento dosnegcios privados em favor do bem pblico (Luttwak, 2001: 26). Issocontribui para contrabalanar efeitos sociais negativos presentes em todoprocesso que combine acirramento da concorrncia com desregulamentaodos mercados.

    No plano dos valores que favorecem comportamentos compatveis com adisseminao do turbocapitalismo nos Estados Unidos, Luttwak identificatrs regras calvinistas que se aplicam, respectivamente, aos vencedores notopo da pirmide social, ao conjunto dos trabalhadores, independentementeda diversidade de situaes econmicas, e aos perdedores no calvinistas,que rejeitam a tica do sistema.

    A regra nmero um valoriza o comportamento puritano da elite econmica,no qual a no dissociao entre a busca sistemtica da riqueza e a virtude vemacompanhada de dois imperativos ticos de forte impacto: 1) o no desfrutepleno da riqueza, mas, ao contrrio, a persistncia no trabalho duro parat o r n a r-se ainda mais rica, abstendo-se de lazer e diverses sexuais de seus paresno calvinistas da Europa, Amrica Latina ou Sudeste da sia (Luttwak, 2001:38); 2) tendo em vista que o sucesso nos negcios um resultado do esforo edo sacrifcio individual, com a beno divina, a riqueza decorrente no deve sertransferida automaticamente aos descendentes sem que fossem capazes dedemonstrar as mesmas virtudes do empreendedor original. O resultado dessapostura a preocupao dos ricos em utilizar boa parte da sua fortuna nofinanciamento de instituies de bem pblico nas reas de educao, cincia,sade e demais setores considerados essenciais disseminao e permannciados valores fundamentais da sociedade norte-americana.

    O efeito global da Regra Nmero Um legitimar, moral e socialmente,o acmulo de riqueza. O efeito ulterior reduzir fortemente a inveja e,assim, sua expresso poltica ou mesmo violenta. Por que os pobresdeveriam invejar os que enriquecem, se estes nem desfrutam dessariqueza nem a mantm toda para suas famlias? (op. cit.: 41).

    A regra nmero dois explica por que a maioria dos pobres aceita seudestino e no se revolta contra o sistema: O fracasso no o resultado deinfortnios ou injustias, mas de desfavor divino. Assim como a habilidade dese tornar muito rico est prxima santidade, a inabilidade de faz-lo estperto do pecado (idem).

    Um desdobramento dessa postura a impossibilidade histrica deconstituio de um partido socialista com forte insero entre os trabalhadores,como aconteceu na Europa. Neste caso, o autor ressalta a peculiaridade de um

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    LUIS FERNANDO AYERBE

  • sistema poltico em que no h expresso organizada dos perdedores enquantotais. A vergonha de reconhecer-se como fracassado impe uma barreira noexplcita construo de opes e viabilizao de candidaturas que seidentifiquem abertamente com os que no conseguem vencer.

    No entanto, o comportamento acima descrito no generalizado; existemexcees, para as quais se aplica a regra nmero trs:

    aqueles que no aceitam a Regra Nmero Dois, que no ficamparalisados pela culpa e tambm no tm condies de expressar seuressentimento legalmente, esto fadados a terminar atrs das grades. ... Sa tristemente empobrecida e catica Federao russa tem uma proporoto grande de cidados na priso quanto os ricos e bem governadosEstados Unidos - 1,8 milho na ltima contagem (op. cit.: 42-43).

    Para Luttwak, h uma lgica de interconexo entre as trs regras,constituindo o que ele denomina sistema calvinista, no qual os vencedoresdiminuem a inveja pela auto-restrio, a maior parte dos perdedores culpasomente a si mesmos por seu destino, e ambos do cobertura para suasfrustraes, exigindo a punio severa dos perdedores rebeldes (op. cit.: 45).

    O processo de implantao do turbocapitalismo nos outros pases implicaem custos de adaptao, cujo principal resultado o aumento da concentraoda riqueza e o conseqente aprofundamento da polarizao entre ganhadorese perdedores. Embora o autor reconhea o alto preo que est sendo pago pelamaioria dos setores sociais e por pases que no conseguem uma inseropositiva no novo sistema, no h como se contrapor a ele, o que colocaclaramente um impasse a ser resolvido, frente ao qual no se vislumbrampropostas concretas de carter abrangente1 4. Nesse sentido, alerta para osproblemas decorrentes da sua importao incompleta, incorporando apenas adimenso econmica (privatizao + desregulamentao + globalizao), semconsiderar que os sistemas legal e calvinista so tambm componentesfundamentais, cuja ausncia tende a acentuar os efeitos sociais e polticosd e s a g r e g a d o r e s .

    Para o autor, os dois pases onde mais avanou o turbocapitalismo naAmrica Latina so Argentina e Chile, seguidos da Bolvia, Peru e Equador.Hoje, as economias deles so consideradas de livre mercado, ao lado das deCosta Rica e do Panam, que nunca foram estatistas (op. cit.: 312).

    No caso da Argentina, alguns comportamentos dos seus trabalhadoresseriam um forte indicador da importao incompleta do sistema. Em debatesobre as feies polticas e culturais da Nova Ordem Mundial aps a guerra deKosovo, promovido pelo jornal P r o s p e c t, Edward Luttwak e FrancisFukuyama estabelecem um dilogo que ilustra bem o ponto em discusso:

    Luttwak ... fora dos Estados Unidos, no h um esprito calvinista quefaa os perdedores se sentirem culpados no sistema competitivo darwinista.Em outros pases, os perdedores sentem raiva, no culpa, e o menos queisso pode acarretar um desastre da poltica fiscal. Os perdedores nodestrem o sistema, mas com certeza podem causar distores.

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • Fukuyama Mas no isso que est acontecendo na sia. Ostailandeses esto sancionando novas leis de regulao bancria; os sul-coreanos esto adotando a transparncia e assim por diante.

    Luttwak verdade, e algo semelhante ao calvinismo est agindo porl. Mas na Argentina, por exemplo, quando as pessoas so despedidas,elas no ganham peso como os americanos15 nem se culpam pelo fato;elas simplesmente vo s ruas. O modelo age de forma muito diferenteem lugares diferentes (Cooper, 2000: 8-9).

    De acordo com essa perspectiva, apesar dos riscos envolvidos nadisseminao do turbocapitalismo, no h possibilidade de que os perdedoresse tornem agentes da destruio do sistema. Ampliando a anlise para oconjunto de autores abordados nesta seo, o ponto consensual que noexistem alternativas estruturais ao sistema. No entanto, a ascenso dosvalores tradicionais nos pases em que a modernizao econmica noavana, junto ao surgimento e disseminao de movimentos fundamentalistascapazes de atingir as imensas platias globais de perdedores, so percebidoscomo fontes de conflito caractersticas da Nova Ordem. A anlise dessapercepo ser o objeto das prximas sees.

    Cultura e interesse nacional nos Estados Unidos

    O reconhecimento da supremacia poltica, econmica e militar do Ocidentecomo realidade inquestionvel da Nova Ordem Mundial, abre espao para umprocesso de debates nos Estados Unidos que tem como eixos a caracterizaoda nova etapa e a formulao de uma estratgia internacional adequada. Asubstituio do paradigma da Guerra Fria nas relaes exteriores do pas requeruma redefinio dos interesses nacionais, desafios e ameaas a enfrentar.

    Uma iniciativa relevante nesse sentido, pela capacidade de desenvolveruma abordagem de grande impacto nos debates sobre o tema, foi o projetoThe Changing Security Environment and American National Interests,coordenado por Samuel Huntington junto ao John M. Olin Institute forStrategic Studies da Universidade de Harvard, para onde convergiramfuncionrios dos governos do perodo Reagan a George W. Bush, acadmicosde diversas instituies de prestgio, e nomes expressivos da comunidadeintelectual16.

    Para Huntington, as principais fontes de conflito na ordem emconfigurao no sero polticas, ideolgicas ou econmicas, elas viro daslinhas que separam as diversas culturas e civilizaes: ocidental, confuciana,japonesa, islmica, hindu, eslava ortodoxa, latino-americana e africana17.

    Nesse novo contexto, a afirmao de identidades adquire especialrelevncia. No caso dos Estados Unidos,

    as tentativas de definio do interesse nacional pressupem umaconcordncia quanto natureza do pas cujos interesses devem ser

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    LUIS FERNANDO AYERBE

  • definidos. O interesse nacional decorre da identidade nacional.Precisamos saber quem somos antes de podermos saber quais so osnossos interesses (1997[a]: 12).

    No entanto, como o mesmo autor reconhece, ns s sabemos quemsomos quando sabemos quem no somos e, muitas vezes, quando sabemoscontra quem estamos (1997[b]: 20).

    Para Huntington, os dois pilares que do sustento identidade dosEstados Unidos, a cultura e o credo, estariam enfrentando um processo defragilizao.

    a cultura` compreende os valores e as instituies dos primeiroscolonos ... Essa cultura inclua ... a lngua inglesa e as tradies relativastanto ao relacionamento entre a Igreja e o Estado como ao lugar doindivduo na sociedade.... O segundo componente da identidadeamericana foi um conjunto de idias e princpios universais, expressosnos documentos fundadores escritos pelos primeiros lderesamericanos: liberdade, igualdade, democracia, constitucionalismo,liberalismo, governo limitado e iniciativa privada (1997[a]: 12).

    Com o fim da Guerra Fria, desaparece o outro que encarnava a negaodos princpios do Credo e justificava a necessidade de uma postura nacionalcoesa e militante. As transformaes demogrficas, com novas ondasmigratrias predominantemente de populao de origem hispnica e asitica,influenciam mudanas raciais, religiosas e tnicas que podem colocarobstculos tradicional capacidade do pas de assimilar outras culturas.Nessa perspectiva, a afirmao da identidade requer uma nova demarcaodas fronteiras em relao aos outros.

    Essa tarefa tem dimenses internacionais e domsticas. O mundo dascivilizaes um campo de muitas incertezas, no qual a ao dos atoresresponde a diversos tipos de racionalidades, muito mais complexas do que algica bipolar da Guerra Fria. Conhecer-se e conhecer os outros exige cautela.Na poltica externa, Huntington recomenda uma postura nointervencionista. Os Estados Unidos devem reconhecer os espaoscivilizacionais e os seus respectivos Estados-ncleos, evitando o envolvimentonos conflitos internos das outras civilizaes.

    A sobrevivncia do Ocidente depende de os norte-americanosreafirmarem sua identidade ocidental e de os ocidentais aceitarem quesua civilizao singular e no universal, e se unirem para renov-la epreserv-la diante de desafios por parte das sociedades no-ocidentais.Evitar uma guerra global das civilizaes depende de os lideresmundiais aceitarem a natureza multicivilizacional da poltica mundiale cooperarem para mant-la (1997[b]: 19).

    Na rea domstica, alm dos efeitos da imigrao j apontados,Huntington d destaque postura de intelectuais e movimentos sociais que,em nome do multiculturalismo, atacam a filiao dos Estados Unidos aoOcidente e defendem programas de cotas no acesso ao emprego e educao,

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • apoiando-se em critrios que favorecem grupos que se consideramhistoricamente discriminados pela elite branca, anglo-saxnica e protestante(WASP).

    Em vez de tentar identificar os Estados Unidos com outra civilizao,porm, eles desejam criar um pas de muitas civilizaes, o que equivalea dizer um pas que no pertence a nenhuma civilizao e que carece deum ncleo cultural. ... Uns Estados Unidos multicivilizacionais nosero os Estados Unidos, e sim as Naes Unidas. Os multiculturalistastambm contestaram um elemento fundamental do Credo norte-americano, ao substituir os direitos dos indivduos pelos direitos dosgrupos, definidos sobretudo em termos de raa, etnia, sexo epreferncia sexual (1997[b]: 389-90).

    Complementando a proposta de uma postura de retrao internacionalpara os Estados Unidos, o autor defende polticas internas que limitem aimigrao, e a criao de programas de americanizao capazes de promovermaiores laos de identificao dos imigrantes com a identidade nacional(1997[a]: 19).

    Analisando a insero internacional dos Estados Unidos aps o fim daGuerra Fria, Huntington identifica trs etapas: 1) um breve momentounipolar, tipificado na ao unilateral na Guerra do Golfo, 2) um sistemaunimultipolar em andamento, que prepara a transio para uma 3) etapamultipolar. Nessa perspectiva, faz referncia caracterizao de ZbigniewBrzezinski (1998), dos Estados Unidos como primeira e ltima superpotnciaglobal, num mundo que transita entre uma ordem centrada nos Estados-nao e um futuro ainda incerto, em que a influncia de atores globais sercada vez mais decisiva18.

    Para Huntington, existe uma contradio entre o atual sistemaunimultipolar e a poltica externa adotada a partir do governo Clinton, quemantm caractersticas tpicas da unipolaridade, numa postura imperialistaque provoca a insatisfao dos aliados tradicionais e estimula a solidariedadeentre os adversrios. Apesar de extensa, dada a representatividade do autor,vale a pena reproduzir o perfil que traa dessa poltica:

    Nos ltimos anos os Estados Unidos tm, entre outras coisas, tentado,ou ao menos do a impresso de estar tentando, mais ou menos deforma unilateral, fazer o seguinte: pressionar outros pases a adotaremvalores e prticas norte-americanas no que diz respeito aos direitoshumanos e democracia; evitar que outros pases adquiram capacidademilitar que possa constituir um desafio superioridade de seu arsenalde armas convencionais; impor o cumprimento de suas prprias leisfora de seu territrio a outras sociedades; atribuir classificaes aospases de acordo com seu grau de aceitao aos padres norte-americanos no que concerne a direitos humanos, drogas, terrorismo,proliferao de armas nucleares e de msseis ou, mais recentemente,liberdade de religio; aplicar sanes aos pases que no atendam taispadres; promover os interesses empresariais norte-americanos sob a

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  • bandeira do livre comrcio e da abertura de mercados; influenciar aspolticas do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacionalsegundo esses mesmos interesses corporativos; intervir em conflitoslocais de pouco interesse direto para o pas; impor a outros pases aadoo de polticas econmicas e sociais que beneficiaro os interesseseconmicos norte-americanos; promover a venda de armas para oexterior ao mesmo tempo procurando evitar vendas de naturezasemelhante por parte de outros pases (2000: 15).

    O Estado frente aos atores globais

    A perda do outro apresentada por Huntington como um dos fatoresque tenderiam a fragilizar a coeso cultural dos Estados Unidos. Nestesentido, conforme salienta Michael Desch, pesquisador do John M. OlinInstitute, a Guerra Fria representava o tipo perfeito de ameaa: nunca setransformou numa grande guerra apesar da ao policial coreana, a guerrado Vietn e numerosas crises mas era sria o bastante para ser um fator deunificao (1995: 25).

    Para Desch, o grau de coeso dos Estados e a abrangncia da sua atuaoesto diretamente relacionados com as ameaas externas sua sobrevivncia.O confronto com ambientes hostis contribuiu para a formao de Estadosfortes e coesos na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. A situao inversaexplicaria em grande parte a fraqueza dos Estados da maioria dos pases doTerceiro Mundo, cujas principais ameaas tm origem interna. Os Estados doTerceiro Mundo geralmente caracterizam-se por terem governos fracos, poucocontrole efetivo da economia, um baixo nvel de institucionalidade poltica einstabilidade poltica crnica (1995: 10). Neste caso, a exceo correspondejustamente queles que enfrentam permanentes desafios externos, comoIsrael, Cuba, Coria e China.

    O fim da ameaa perfeita afeta o sistema estatal, mas, para Desch, issono representa seu questionamento, mas a emergncia de aspectosproblemticos num contexto de menores tenses internacionais. Nos Estadosmais consolidados do capitalismo avanado, poder haver uma reduo nascompetncias e na liberdade de ao. Naqueles cuja existncia justificava-seessencialmente pelas presses externas do alinhamento bipolar, ou que tmuma composio populacional multitnica, e que enfrentam, na maioria dasvezes, problemas crnicos de subdesenvolvimento, as mudanas poderoinfluenciar situaes conflitivas com possibilidades de desencadear o colapsoou a desintegrao.

    O ambiente externo de ameaa decrescente reduzir a coeso interna deestados que enfrentam profundas divises. Isto conduzir alguns deles desintegrao violenta ou ao seu engajamento em guerras diversivaspara manterem sua frgil unidade, o que poderia ser uma fonteimportante de instabilidade internacional futura (Desch, 1995: 41).

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • Michael Lind, Editor Executivo da revista The National Interest e membrodo Comit Assessor do projeto coordenado por Huntington, analisa aspossibilidades de interlocuo dos Estados com a multiplicidade de atores queinteragem nos espaos nacionais na era global. Para ele, o mundo transita deuma ordem bipolar para uma multipolar, na qual preocupaes com lucroseconmicos relativos em parte suprimidas por razes estratgicas durante aGuerra Fria esto crescendo, tanto nos Estados Unidos como na Europa eJapo (1993: p. 1). Lind acredita na continuidade dos Estados-nao comoatores privilegiados das relaes internacionais. A transferncia de poder eautoridade para atores no-estatais de natureza subnacional e supranacionalno estrutural, mas circunstancial, como parte de um processo de transioe conseqente reestruturao do Estado.

    No capitalismo avanado, Lind visualiza a convergncia em torno de umanova modalidade, o Estado catalisador,

    O Estado catalisador aquele que busca suas metas confiando menosem seus prprios recursos do que agindo como um elemento dominanteem coalizes de outros estados, instituies transnacionais, e grupos dosetor privado, enquanto retm sua identidade distintiva e suas prpriasmetas. Como um catalisador, este tipo de Estado aquele que busca seri n d i s p e n s v e l ao sucesso ou direo de determinadas coalizesestratgicas enquanto permanece independente dos elementos dacoalizo, quer sejam governos, empresas, ou at mesmo populaesestrangeiras e domsticas19 (1993: 21).

    Para Lind, essa forma de Estado tem maiores chances de sucesso a curtoprazo nos Estados Unidos, dadas as virtudes do liberalismo anglo-americanoem relao s tradies mais intervencionistas do Japo, do leste da sia e daSocial Democracia europia. Em relao aos ex-pases socialistas e ao mundoem desenvolvimento, o diagnstico difere.

    Esses pases, que no podem aspirar num futuro prximo a serem Estadoscatalisadores tecnolgico-intensivos e inovadores, tm menos probabilidadesde se tornarem democracias liberais capitalistas do que verses do Estadodesenvolvimentista, no qual elites semiautnomas de segurana e setoreseconmicos protegidos pelo Estado mantm uma coexistncia difcil com aselites mais liberais, orientadas para o mercado, sob o guarda-chuva dademocracia plebiscitria ou do pretorianismo (1993: 2).

    Nos casos do Estado catalisador e do Estado desenvolvimentista, o autorvisualiza uma tendncia ao fortalecimento de formas no liberais de gesto,influenciadas pelo incremento da concorrncia global em todos os nveis. Nospases mais vulnerveis, a variante Desenvolvimentista apresenta-se comoalternativa de sobrevivncia do Estado-Nao; no capitalismo avanado, avariante Catalisadora transfere poder para elites tecnocrticas, com maioragilidade e autonomia para articular os interesses do Estado e do mercado.

    Tanto nos Estados catalisadores e desenvolvimentistas, versesnacionalistas, populistas e comunitrias de democracia podem

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  • prevalecer sobre verses individualistas e liberais. O futuro, que muitosacreditam que pertencer ao capitalismo e democracia, pode pertencerao capitalismo no-liberal e democracia no-liberal2 0 (Lind, 1993: 46).

    Tanto para Desch como para Lind, o centro das atenes sobre os desafiosda competio global se dirige avaliao da capacidade de ao dos Estados.Esse vis politicista, tambm presente em boa parte dos estudos das novasagendas de segurana, de conflito e de governabilidade, sustenta-se emargumentos consistentes, que analisamos a seguir.

    Apesar da diversidade de diagnsticos entre os intelectuais orgnicos doestablishment sobre a nova estrutura das relaes internacionais, existe umpressuposto comum: o poder representa uma categoria chave para entender ocomportamento dos Estados-nao, considerados os atores centrais de umambiente global anrquico21.

    Nessa perspectiva, a globalizao apresentada como fenmeno cujaprincipal tendncia a crescente autonomia dos atores privados em relaoaos Estados. Isso, no entanto, est longe de ser considerado um fator dequestionamento da hegemonia do modo de vida ocidental, ao contrrio,verifica-se o seu fortalecimento. Conforme destaca Thierry de Montbrial(2000), diretor do Instituto Francs de Relaes Internacionais (IFRI), na suainterveno no encontro de Tquio da Comisso Trilateral22:

    A globalizao a tendncia, para um nmero crescente de atores, deconsiderar o mundo inteiro como seu tabuleiro de xadrez, ou teatro deoperaes, usando o termo militar. Este claramente o caso paramuitos agentes econmicos e para muitas organizaes no-governamentais. (E, a propsito, todos os manifestantes em Seattle queso contra a globalizao so atores da globalizao). Este um dosparadoxos da situao. Muitos assuntos so globais por sua natureza,como os assuntos ambientais e o crime transnacional. E todos nssabemos que a globalizao vem acompanhada da importnciacrescente da sociedade civil, um conceito Ocidental23.

    Zalmay Khalilzad, da Rand Corporation, assessor para temas desegurana nacional do presidente George W. Bush24, argumenta na mesmadireo. Ao mesmo tempo em que refora a idia de autonomia do processode globalizao, destaca os benefcios obtidos pelos Estados Unidos.

    A prosperidade dos Estados Unidos no perodo do ps-guerra, eespecialmente nos ltimos 20 anos, foi subscrita pelo fenmeno maisamplo da globalizao. Globalizao, neste contexto, refere-se idia deque fluxos crescentes atravs das fronteiras de bens, dinheiro,tecnologia, pessoas, informao e idias esto criandoprogressivamente uma nica e integrada economia global. claro quea consolidao desse mercado global implica ainda num longocaminho, mas as tendncias nessa direo so claras. O governo dosEstados Unidos no criou o fenmeno de globalizao, nem ele omotor principal da integrao econmica. A globalizao o trabalho

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • de uma numerosa e no coordenada multido de atores privadosatravs do mundo (2000: 9-10).

    A ltima frase de Khalilzad sintetiza a questo central da abordagem emdiscusso: a realidade global diz respeito basicamente a atores privados,movidos por inmeras agendas, favorveis ou crticas ordem hegemnica,que interagem por meio de redes, sem controle centralizado, mas partilhando(explicita ou implicitamente) valores ocidentais de competio baseados nopluralismo, liberdade de expresso e respeito da legalidade.

    Esse aspecto destacado em estudo da Rand Corporation sobre aemergncia das Guerras em Rede (Netwars), fenmeno consideradocaracterstico da era da informao, que inclui, entre as modalidadesprincipais, o terrorismo, o crime organizado e os movimentos sociais. O focoda anlise o levantamento Zapatista no Mxico, associado terceiramodalidade. A inusitada projeo internacional de um movimento de razesindgenas, localizado numa regio marginal do pas, atribuda ao deredes globais de Organizaes No Governamentais (ONGs).

    Sem (as ONGs), o EZLN provavelmente teria se estabelecido numaforma ou organizao e comportamento mais parecida com ainsurreio clssica ou conflito tnico. Realmente, a capacidade doEZLN e do movimento Zapatista como um todo de montar operaes deinformao, uma caracterstica essencial das guerras sociais em rede,dependeu fortemente da atrao das ONGs para a causa do EZLN, e dahabilidade das ONGs para impressionar a mdia e usar fax, e-mail, eoutros sistemas de telecomunicaes para espalharem-se pelomundo(Ronfeldt et al., 1998: 26).

    No nos deteremos aqui na discusso sobre os significados polticos domovimento zapatista, um dos temas a serem abordados no captulo 3. Oestudo da Rand chama a ateno para dois aspectos centrais das questes emdebate nesta seo: 1) a atribuio s ONGs de um papel legitimador dosprincpios ocidentais de convivncia internacional, como agentes daconstruo de uma sociedade civil global; 2) a necessidade deredimensionamento do Estado, incorporando capacidades de interlocuocom os atores privados emergentes.

    Em relao ao primeiro aspecto, os autores destacam a desvinculao daluta dos zapatistas da ao poltica tradicional, que coloca como alvo centrala conquista do poder, com a conseqente valorizao da organizaopartidria como meio mais eficaz. Apesar da natureza esquerdista atribudaao movimento, reconhece-se que a mensagem contra o neoliberalismo tem nasociedade civil seu interlocutor privilegiado, buscando ampliar aconscientizao e a mobilizao em favor da mudana social no Mxico,atraindo a ateno global para uma cruzada de alcance universal, capaz deunificar o conjunto dos excludos e descontentes25. Nesse sentido, o papelmoderador das ONGs considerado crucial na delimitao do raio de aodesse e de outros movimentos crticos do status quo:

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  • Algumas das ONGs ativistas eram mais radicais e militantes que outras,e algumas estavam mais afetadas por velhas ideologias do que outras.Mas, em conjunto, a maioria concordava basicamente em que noestavam interessados em obter poder poltico ou ajudar outros atores aobter poder. Ao invs disso, eles quiseram promover uma forma dedemocracia na qual os atores da sociedade civil seriam fortes o bastantepara contrabalanarem o Estado e os atores do mercado e poderiamrepresentar papis centrais na tomada de decises em polticas pblicasque afetam a sociedade civil. Essa instncia ideolgica relativamentenova, um subproduto da revoluo da informao, apenas estavaemergindo na vspera da insurreio do movimento EZLN, mas nspresumimos que teve mpeto suficiente entre os ativistas para ajudar adar coerncia efervescncia que se precipitaria no Mxico, buscandoajudar a pacificar como tambm a proteger o EZLN (op. cit.: 36).

    Independentemente do reconhecimento do significado essencialmentedemocrtico e pluralista da ao das ONGs em relao aos movimentossociais de natureza pacfica, o estudo centra-se na emergncia de umfenmeno caracterizado como blico, que inclui, conforme apontamos, oterrorismo e o crime organizado, frente aos quais, cabe ao Estado desenvolverpolticas de preveno e de conteno.

    Para Ronfeldt et al., as n e t w a r s colocam em ao redes descentralizadas quemuitas vezes bloqueiam a capacidade de resposta das instituiesgovernamentais responsveis pela manuteno da ordem, baseadas numaestrutura hierrquica. Seu enfrentamento requer uma organizao equivalente.

    Isso leva a lutas de redes contra redes realmente, a hierarquiagovernamental pode ter que organizar suas prprias redes paraprevalecer contra redes adversrias... A melhoria da coordenao e dacooperao civil-militar, entre servios, e intramilitar, tornam-se tarefasessenciais (op. cit.: 79-80).

    Numa perspectiva similar adotada pelo estudo da Rand, o relatrio doprojeto Globalization and National Security, coordenado pelo Institute ofNational Strategic Studies da National Defense University, do Departamentoda Defesa, apresenta desenvolvimentos importantes em relao delimitaodas esferas de atuao do Estado e do Mercado:

    O sistema global emergente est corroendo rapidamente as velhasfronteiras entre assuntos estrangeiros e domsticos, como tambmentre economia e segurana nacional Apesar do poder dos mercados,o papel do governo continua crucial. Realmente, um clima pacfico desegurana deve ser criado em primeiro lugar na maioria das regiesantes que a globalizao possa assumir caminhos que tragamprosperidade econmica, democracia, e a construo de umacomunidade multilateral. A criao de tal clima de segurana ,primeiramente, o trabalho da diplomacia, da poltica externa, e doplanejamento da defesa no o trabalho dos mercados, do comrcio,e das finanas (INSS, 2001).

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  • A partir dessa delimitao de esferas de atuao, o relatrio aponta linhasde ao prioritrias na redefinio de estratgias governamentais:

    A era global requer um processo de tomada de decises do governo dosEstados Unidos que seja dinmico, flexvel e integrado, adaptado Era daInformao e capaz de responder depressa a crises externas em rpidomovimento ... Polticos e planejadores militares precisam estar maisatentos a aspectos histricos, tecnolgicos, culturais, religiosos, ambientais,e demais assuntos mundiais que tero pela frente. Mais pessoas com perciaem reas pouco convencionais deveriam ser contratadas e utilizadas emposies convencionais. Atores no governamentais de todas as reasdeveriam ser consultados rotineiramente pelos diplomatas e planejadoresmilitares (op. cit.).

    Conforme analisaremos no prximo captulo, a emergncia de novasformas de terrorismo, especialmente a partir dos atentados de 1998 contra asembaixadas dos Estados Unidos no Qunia e na Tanznia, desencadeiam umprocesso de reestruturao do servio exterior, orientado por uma concepoorganizacional que segue de perto as recomendaes das instituiesvinculadas defesa acima abordadas.

    Como se pode perceber, o reconhecimento da globalizao comotendncia inerente ao capitalismo, que fortalece principalmente a capacidadede ao do setor privado, no redunda na perda de perspectiva em relao relevncia do Estado. Nesse sentido, h uma continuidade, sob novas bases,do processo desencadeado pela Guerra Fria, na qual a poltica externa deportas abertas dos Estados Unidos representou um fator adicional deimpulso expanso do mercado. O objetivo da derrota do comunismoincorporava uma forte presso pr-abertura econmica sobre os pasesdependentes de ajuda externa, chancelada pelas instituies multilaterais decrdito criadas em Bretton Woods (FMI e Banco Mundial)2 6.

    A crescente autonomia do setor privado para definir estratgias globais queno levam em conta os eventuais impactos negativos das decises de investimentonos Estados-nao (incluindo os Estados Unidos) uma conseqncia previsveldo processo acima descrito. Nesse contexto, o desafio maior na formulao deuma agenda de segurana no econmico, mas poltico, por trs razes bsicas:1) h convergncia de interesse nas questes fundamentais entre o setor estatal eo setor privado; 2) no mundo ps-Guerra Fria, considera-se superada a antigacontrovrsia sobre a importncia do mercado e da livre iniciativa na gerao deriqueza e prosperidade; a competio global est instalada e a questo maisrelevante a conquista de novas parcelas de mercado, seja pela expanso doconsumo ou pela expulso de concorrentes; 3) no h como competir nessecampo com o capital global, que detm os principais recursos de poder.

    O desafio poltico passa pela capacitao do Estado para defender osinteresses nacionais num contexto em que a origem das turbulncias se afastoubastante do eixo capitalismo-comunismo. Na raiz do vis politicista das anlisesapresentadas, est a crescente preocupao com novas fontes de conflito queembora no coloquem em questo o sistema, podem afetar a governabilidade.

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  • Parte importante das crticas de Huntington poltica externa dosEstados Unidos se dirige aos efeitos contraproducentes, para a posiointernacional do pas, da ao integrada entre o governo, o setor privado e osorganismos multilaterais. A imposio de modelos econmicos, que, em nomeda liberdade de mercado, promovem basicamente a maximizao dos lucrosdas empresas norte-americanas no exterior, pode ter conseqncias danosasnos pases e regies com menor capacidade de adaptao competio global.

    Essa postura marca uma diferenciao explcita entre os idelogos domercado e da segurana. Na reunio de Tquio da Comisso Trilateral, HenryKissinger (2000) coloca o acento nessa questo, mostrando as diferenas dementalidade e de interpretaes da realidade mundial entre as trs geraesque dirigem o pas desde a Segunda Guerra. A primeira, no comando noperodo da Guerra Fria, em processo de retirada, era uma gerao que nosentia nenhuma ambivalncia sobre o uso do poder americano e que, emgeral, acredita que tenha sido usado para propsitos construtivos e benficos.A que est atualmente no comando, marcada pela crise de confiana da guerrade Vietn, acredita em aqueles assuntos no relacionados com o exerccio dopoder americano, ou separados dele tanto quanto possvel, como o meio-ambiente ou os direitos humanos. Eles tm a tendncia, que me espanta, dese desculpar frente naes estrangeiras por nossa conduta prvia27. Agerao Internet, cuja influncia decorre do seu vinculo direto com o setorprivado, assume o discurso ideolgico da globalizao,

    Eles acreditam... que a globalizao resolve todos os problemas e, ento, sevoc tem um mundo globalizado perfeito, ele ser automaticamentepacfico... Assim, deve-se lidar com uma classe poltica que nacional e nomuito reflexiva na poltica externa, e com uma classe econmica que globalem sua perspectiva, mas que no entende as relaes polticas (op. cit.).

    Para Kissinger, o desencontro entre as diversas perspectivas (e geraes)pode ter repercusses problemticas no processo decisrio do Estado e nasrelaes internacionais do pas. Nessa direo, a anlise de Huntingtonapresenta uma racionalidade estratgica de longo alcance que nos pareceextremamente relevante, como veremos a seguir.

    Sintetizando os pontos convergentes entre os autores abordados nas seesanteriores sobre a caracterizao da Nova Ordem Mundial, quatro aspectos sedestacam: 1) a derrota do principal inimigo do capitalismo, promotor de umsistema econmico que questionava a propriedade privada dos meios de produo;2) a disseminao global da lgica do mercado e da democracia representativa; 3)o controle das instituies econmicas multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC)pelos pases do capitalismo avanado; 4) a conquista da superioridade militar porparte da OTAN. A partir do reconhecimento dessa situao, o consenso apontapara a necessidade de manuteno do s t a t u s atingido e o dissenso se concentra nadefinio da poltica externa mais adequada para os Estados Unidos.

    Para Huntington, na ausncia de uma superpotncia inimiga do sistema,os apoios incondicionais e a noo de guardio do mundo livre perdemsignificado. Os assuntos mundiais ganham outra dimenso, perdas e danos na

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • concorrncia por mercados, ou situaes de desequilbrio poltico geradoras deconflitos regionais, deixam de ser vistas com lentes ideolgicas. Nessecontexto, assumir perspectivas missionrias pode levar a ltima superpotnciaa um processo de isolamento. A administrao da hegemonia exige umcuidadoso trabalho de gerao de novas alianas e tratamento negociado dasdivergncias, buscando amenizar ou, no melhor dos casos, eliminar o carterantagnico das contradies, o que torna contraproducentes as posturasarrogantes e intervencionistas. Aps as vitrias da Guerra Fria, no h nadadecisivo a ser conquistado. Numa perspectiva histrica de longa durao, onovo desafio evitar o destino do Imprio Romano2 8. Isso explica sua grandepreocupao com a fragilizao dos pilares de sustentao da identidade dosEstados Unidos, que ameaariam a continuidade da nao.

    com base nessa percepo que critica explicitamente a abordagem dofim da histria, tpica da tradio imperial do Ocidente, que prescreve aoresto do mundo modos universais de convvio humano, ao mesmo tempo emque estimula internamente um clima intelectual propcio acomodao nodesfrute da vitria e perda de vigilncia em relao aos inimigos.

    Os novos desafios segurana nacional

    Paralelamente constatao do carter irreversvel da globalizao e dosseus efeitos positivos na economia dos Estados Unidos, comea a tomar corponas anlises sobre a segurana nacional a preocupao com os fatores dedesagregao, junto com os seus provveis desdobramentos polticos. Doisexemplos nessa direo so o Strategic Assessment 1999, do Institute for NationalStrategic Studies (INSS), e o Bipartisan Report to the President Elect on ForeignPolicy and National Security, elaborado no ano de 2000 pela Rand Corporation.

    De acordo com o relatrio do INSS, fortemente influenciado pelas crisesfinanceiras na sia (1997), Rssia (1998) e Brasil (1998-99),

    a globalizao econmica amplamente consistente com a seguranainternacional dos Estados Unidos e com os interesses da sua polticaexterna. Facilita a integrao, promove a abertura, encoraja a reformainstitucional e nutre a nascente sociedade civil internacional. Mas oschoques associados globalizao abrupta, especialmente aos fluxosfinanceiros de curto prazo, podem exacerbar problemas polticos esociais, fomentar a instabilidade, incitar o antiamericanismo e alargarbrechas internas e entre pases (Frost, 1999: 19).

    O relatrio da Rand, preparado no processo prvio s eleiespresidenciais de 2000, com o objetivo de apresentar nova administrao osdesafios associados com as relaes exteriores e a segurana nacional, apontapara a necessidade dos Estados Unidos assumirem a iniciativa poltica nosassuntos mundiais, num contexto em que comea a solidificar-se ummovimento crtico dos efeitos negativos da globalizao, de forte contedoanti-norteamericano:

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  • O ressentimento com a globalizao est em alta e est produzindoantiamericanismo, porque Washington considerado como seuarquiteto e beneficirio. O momento adequado para construir umconsenso em relao ao desenho do papel dos Estados Unidos nomundo. Tal desenho guiaria a nao e daria a ela um propsito em suapoltica externa. Sem tal propsito, seria difcil fixar prioridades(Carlucci et al., 2000: 3-4).

    As crescentes manifestaes antiglobalizao que acompanham osencontros dos organismos multilaterais e os fruns de debate das elitesorgnicas do capitalismo liberal ascendem o estado de alerta sobre o retorno,com novas bandeiras, da agitao poltica dos anos 1960-70, quando a maioriados movimentos, independentemente da agenda contracultura, revoluosocial, discriminao racial e sexual, pacifismo assumia como palavra deordem comum a denncia do imperialismo norte-americano.

    Diferentemente de Huntington, que prega a retrao dos Estados Unidos napoltica internacional, os dois documentos citados defendem uma postura ativa,de engajamento global (INSS) e de liderana global seletiva (Rand). Emambos os casos, h uma posio cautelosa em relao ao unilateralismo, dando-se nfase necessidade do suporte multilateral para enfrentar os novos desafios.

    Na perspectiva do INSS, a segurana, a prosperidade econmica e ademocracia compem as trs metas da estratgia de engajamento. A primeiraexige capacidade para lidar com as diversas modalidades de conflitos polticos;a segunda est associada ao aprofundamento da liberalizao comercialconsiderado como principal fator de integrao econmica mundial e garantia de acesso s fontes de energia; a terceira complementa a segunda noprocesso global de convergncia em favor dos valores Ocidentais:

    A democracia liberal e o capitalismo de mercado permanecem como osvalores dominantes do Ocidente, e sua expanso a principal esperanapara um sculo 21 pacfico.... Muitas culturas no aceitam os valoresOcidentais nem se beneficiam das condies subjacentes que permitemque estes valores se desenvolvam. Em muitos lugares, o autoritarismopersiste, mesmo na ausncia de uma racionalidade que o impulsione.Alguns temem que o estatismo em estado cru, o nacionalismo abusivo,o fascismo corporativista e culturas antiocidentais estejam ganhandofora (Kugler, 1999: 2).

    A estratgia de Liderana Global Seletiva defendida no documento daRand, prope ao novo presidente o desenvolvimento de oito reas de trabalhoconjunto entre os Estados Unidos e seus aliados:

    ... integrando a Rssia e a China no sistema internacional atual efortalecendo relaes com a ndia; encorajando a transformao dosgrandes Estados que assumem crescente influncia, em membrosresponsveis da comunidade internacional; constrangendo os criadoresde problemas regionais; continuando a representar o papel depacificador; adaptando-se nova economia global e indo ao encontro

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • da agenda plena de problemas apresentada pela globalizao;promovendo a democracia e os valores humanos fundamentais;buscando a reduo de armas de destruio em massa (WMD) e msseisespecialmente os que esto nas mos de Estados hostis; e protegendoos Estados Unidos, suas foras e seus aliados das WMD e de ataquescom msseis (Carlucci et al., 2000: vii).

    Apesar das diferenas, a perspectiva de retrao (Huntington) e a deengajamento (INSS, Rand) partem do mesmo pressuposto: a convico dasuperioridade do modo de vida ocidental, ameaado pela ao afirmativa deculturas refratrias ao progresso.

    Na definio de polticas, as prescries se situam teoricamente no mesmocampo, o debate realista entre equilbrio de poder e hegemonia. ParaHuntington, o Estado deve exercer suas atribuies legais no mbito internopara fortalecer a cultura ocidental, promovendo a assimilao dos imigrantese combatendo o multiculturalismo. Na poltica externa, deve consolidar obloco ocidental, evitando interferir nos assuntos internos das outrascivilizaes. Num mundo que tende multipolaridade, a busca do equilbrio dopoder torna-se um objetivo indispensvel. A outra viso, que a predominantenos setores mais prximos do processo decisrio do Estado, parte da noo dehegemonia. Num mundo cada vez mais interdependente, basicamente emfuno da disseminao dos valores ocidentais, a governabilidade globaldepende da capacidade da nica superpotncia de garantir, com o apoio dosseus aliados, a continuidade do processo, projetando a reproduo do sistemanas regies que apresentam maiores resistncias.

    Nas percepes de ameaa definidas pelas duas posturas, o ressentimentoproduzido pelo fracasso apresenta-se como ncleo comum das motivaesatribudas aos movimentos com potencial desestabilizador da Nova Ordem.Essa caracterizao da cultura dos perdedores seus valores, atitudes e graude conflitividade ser objeto de anlise na prxima seo.

    Etnicidade e fundamentalismo

    Frente aos fatores estruturais que tendem a gerar fontes de conflito nomundo em desenvolvimento, os pesquisadores da Rand Jennifer MorrisonTaw e Bruce Hoffman destacam dois aspectos: o crescimento populacional ea migrao do campo para os centros urbanos29.

    Para eles, problemas de crescimento populacional, pobreza e fome noso novos para o mundo menos desenvolvido e tm sido ao longo da histriao sustentculo da guerra, da revoluo e da subverso (op. cit.: 225). Noentanto, a rpida transformao desses pases de agrrios em urbanos, trazconsigo uma grande variedade de complicaes, que tendem a gerar novassituaes conflituosas30.

    Os refugiados (que migram atravs das fronteiras internacionais) e aspessoas internamente deslocadas (que migram dentro de seus prprios

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  • pases), freqentemente mudam-se sem ajuda, e podem no sobreviver. Elespodem carregar doenas, ampliar ou criar novas favelas, e exacerbarpreconceitos raciais, religiosos e tnicos. Eles drenam os recursos limitadosdo governo anfitrio, local ou nacional, para servios sociais,desenvolvimento de infra-estrutura, e policiamento, criando freqentementeressentimentos que podem conduzir violncia (op. cit.: 226).

    Os conflitos internos aos Estados, embora no representem um fenmenonovo, tm adquirido enorme importncia no perodo recente, comrepercusses na poltica externa dos Estados Unidos. Entre 1989 e 1998,apenas sete, entre os 108 conflitos armados deflagrados no mundo, foram denatureza interestatal (Szayna, 2000: 1). Desde o fim da Guerra Fria, de acordocom dados de Ashley Tellis et al., cobrindo o perodo at 1997, as ForasArmadas dos Estados Unidos envolveram-se em 25 operaes de paz (1997: 2).

    H controvrsia entre os analistas da poltica externa norte-americanasobre a real necessidade de envolvimento em conflitos dessa natureza quandoacontecem em regies localizadas longe das fronteiras do pas, que nopossuem recursos naturais estratgicos ou investimentos importantes deempresas nacionais. o caso das chamadas operaes humanitriasempreendidas na Somlia, Ruanda e Burundi. A freqncia cada vez maiordesse tipo de situaes coloca como questo inevitvel a definio de critriosorientadores das decises de interveno31.

    No documento da Rand anteriormente citado (Carlucci et al., 2000),Richard Haass, Diretor de Planejamento de Polticas do Departamento deEstado na gesto Collin Powell, descarta a viabilidade de se formular umadoutrina com possibilidades de aplicao a todas as situaes; no entanto,aponta quatro condies em que o envolvimento humanitrio seriarecomendvel:

    (1) Se cresce o provvel ou efetivo custo humano de permanecerindiferente ou de limitar a resposta norte-americana a outrosinstrumentos polticos, especialmente quando se aproxima do genocdio;(2) se uma misso pode ser projetada para salvar vidas sem provocarbaixas americanas significativas; (3) se possvel contar com outrospases ou organizaes para ajudar financeiramente e militarmente; e (4)se outros interesses nacionais mais importantes no seriam danificadospela interveno ou pela no interveno (Haass, 2000: 168).

    Em relao ao processo de tomada de decises, a recomendao de Haass clara: A autorizao do Conselho de Segurana da ONU para administraruma interveno humanitria deveria ser julgada desejvel, mas noessencial (op. cit.: 168).

    Com o objetivo de compreender os processos que levam aodesencadeamento de conflitos intraestatais, facilitando uma ao de carterpreventivo, a Rand desenvolveu o projeto Ethnic Conflict and the Process ofState Breakdown, sob o patrocnio do staff de Inteligncia do Exrcito dosEstados Unidos.

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • De acordo com a anlise apresentada no relatrio final da pesquisa, umaspecto-chave na diferenciao entre os conflitos inter e intraestatais est naconduo do processo de resoluo. Diferentemente das guerrasinterestatais, onde a maioria delas termina em um acordo negociado, amaioria dos conflitos intraestatais termina com o extermnio, expulso ourendio completa de um dos lados (Szayna, 2000: 3).

    No caso dos conflitos comunitrios, em que a afirmao de identidadesrepresenta um dos fatores causais principais, as barreiras para estabelecerformas permanentes de convivncia multitnica num mesmo Estado tornam-se muitas vezes insuperveis.

    Para os autores, existem dois caminhos bsicos para a regulao deconflitos tnicos:

    (1) eliminando as diferenas (h quatro mtodos para realizar isto:genocdio, transferncia forada de populao, partio/seco, eintegrao/assimilao); (2) administrando as diferenas (novamente,quatro mtodos principais: controle hegemnico, arbitragem atravs deuma terceira parte, cantonizao/federalizao, e consrcio/podercompartilhado) (op. cit.: 2000: 4).

    Partindo do pressuposto de que toda ao social contm umaracionalidade, que leva em conta a adequao entre meios e fins, a pesquisaassume como premissa a factibilidade da preveno ou da resoluo deconflitos tnicos. A compreenso dos fins facilita o caminho da predio.

    O desvendamento de aspectos comuns presentes nos diversos processosde construo da etnicidade pode permitir a elaborao de modelos queajudem na caracterizao dos conflitos, conduzindo a um melhorplanejamento e execuo das intervenes.

    A pesquisa distingue trs abordagens principais de etnicidade. Uma delas a primordialista, para a qual as diferenas so um fenmeno natural,baseado em caractersticas biolgicas, raciais e culturais, definidas a priori doprocesso de socializao. A diversidade no percebida como problema,seno como condio normal da pluralidade prpria de todo agrupamentosocial. Nessa perspectiva, conflitos podem acontecer em situaes dedesigualdade na distribuio de poder e bem-estar que explicitem adiscriminao de setores com base em critrios tnicos. No entanto, aabordagem primordialista no coloca a violncia como aspecto significativodas relaes entre as diversas etnias.

    A segunda abordagem destacada a epifenomenalista, associadaprincipalmente com a tradio marxista, para a qual a base do conflito estnas desigualdades de classe, institucionalizadas em estruturas de poder quelegalizam relaes sociais de explorao. Comparativamente abordagemprimordialista, em que a etnicidade desempenha um papel relevante, aquisomente funciona como uma mscara que obscurece a identidade dealgumas formaes de classe que lutam pelo poder poltico ou econmico(Szayna, 2000: 21). Na perspectiva epifenomenalista, movimentos de classes

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  • subalternas, embandeirados em reivindicaes de natureza tnica, seriamcaractersticos de fases pr-polticas, em que a falsa conscincia fatorpredominante.

    A terceira abordagem, atributiva, que orienta metodologicamente apesquisa, tem como principal referncia terica a sociologia compreensiva deMax Weber, valorizando a poltica e a subjetividade na regulao da vidasocial.

    A poltica cria a etnicidade, que fora os indivduos a descobriremrecursos comuns em suas lutas pela sobrevivncia. O papel fundamentalda poltica implica na etnicidade como um fenmeno que s se tornareal por causa das construes subjetivas de indivduos sob certascircunstncias, e no porque ela existe a priori, como algumasolidariedade intrinsecamente permanente que liga um conjunto deindivduos no tempo e no espao (Szayna, 2000: 26).

    A opo por essa perspectiva no excludente em relao s outras; amaioria dos tericos sociais hoje admitiria que uma abordagem atributivaincorporando insights marxistas e weberianos seria o caminho mais frutferopara o entendimento do problema maior da excluso e da dominao nasociedade (Szayna, 2000: 30).

    O modelo elaborado pelos autores considera trs estgios na anlise de umconflito tnico. O primeiro tem como objetivo desvendar o potencialdesencadeador de violncia tnica das modalidades de fechamento3 2 e x i s t e n t e sem determinada sociedade. Nesse momento, a utilizao integrada decategorias weberianas e marxistas assume destaque. Alm dos fatoresintersubjetivos que explicam a dominao, examinam-se as relaes deproduo, as relaes entre a estrutura de classes e a distribuio da riqueza edo poder, e o papel do Estado na reproduo das relaes sociais dominantes.

    O segundo estgio procura entender o processo que pode transformarsituaes de descontentamento em conflitos abertos. Alteraes no equilbriode poder associadas ascenso ou declnio de determinados setores,ocasionadas por transformaes na forma de produo e de apropriao dariqueza ou por mudanas nas regras do jogo poltico, podem desencadearmanifestaes violentas (atentados e outras formas de agresso) por partedaqueles que se consideram perdedores. Contextos como esse podemconstituir um campo frtil para que empreendedores tnicos, capazes de darconduo e organicidade s mobilizaes, capitalizem politicamente asituao. A obteno de recursos e respaldo poltico pela criao de laos deapoio internos e externos completam o quadro da viabilizao do conflitotnico (Szayna, 2000: p. 52).

    O terceiro estgio corresponde avaliao das capacidades de negociaoe barganha poltica do Estado e dos grupos organizados, permitindocaracterizar situaes de ameaa estrutural governabilidade.

    Em relao ao poder do Estado, so avaliadas trs dimenses:flexibilidade da estrutura institucional para responder politicamente s

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    O OCIDENTE E O RESTO

  • demandas, permitindo a abertura de espaos para acomodar a diversidade deinteresses; sade fiscal e acesso a financiamento, capazes de ampliar aspossibilidades de oferta de alternativas no processo de negociao; ecapacidade de utilizao da coero na eventualidade de se optar pelaresoluo violenta do conflito.

    Em relao capacidade dos grupos mobilizados, destacam-se:

    sua habilidade para adaptar-se vis vis com outras formaes sociaisconcorrentes, incluindo o Estado; sua habilidade para sustentar acampanha poltica pela ateno das suas demandas; e sua habilidade paramanter a coeso da identidade emergente do grupo (Szayna, 2000: 61).

    Apesar de incorporar no seu instrumental metodolgico categoriasmarxistas, utilizadas no mapeamento da base econmica das sociedadesanalisadas, a pesquisa no inclui entre os movimentos sociais com potencialdesestabilizador os de natureza anticapitalista. Isso decorre, na nossainterpretao, de dois fatores: um de natureza emprica, associado ao refluxodo socialismo, outro de natureza terica, relacionado com a utilizao doconceito de fechamento, determinante na caracterizao da desigualdadeque tende a motivar o conflito.

    Quando ocorre fechamento, explicitam-se formas de dominao,culturalmente construdas, com desdobramentos objetivos em termos deacesso diferenciado a bens e poder decisrio. O exerccio abusivo do poder emaes que tornam visvel a discriminao e a percepo de afinidades entresetores que se consideram vtimas dessas aes podem desencadear umprocesso de conflito.

    As premissas dessa abordagem so as mudanas objetivas quedesequilibram uma situao considerada estvel e a percepo subjetiva deperda de poder poltico e/ou econmico. O problema central est associado excluso, e a tarefa fortalecer ou recompor dependendo da gravidade dasituao a legitimidade do Estado e seu monoplio do uso da fora.

    Os conflitos classistas, cuja origem a tomada de conscincia em relaoa uma condio de explorao considerada intrnseca ao capitalismo,independentemente de situaes conjunturais mais ou menos crticas,apresentam especificidades que a abordagem atributiva no contempla.

    Em processos de radicalizao poltica, cuja motivao central oquestionamento da estrutura social, no h fundamentao racional para anegociao de condies permanentes de convvio entre classes dominantes esubalternas. A utilizao ou no de mtodos coercitivos por parte do Estadodepender do poder de mobilizao de movimentos cuja agenda antecipa,como desfecho inevitvel da conquista do poder, a excluso das antigas classesdominantes. No acervo do governo dos Estados Unidos existe evidnciahistrica, produo terica e experincia acumulada suficiente sobre asformas de resoluo desse tipo de conflito: no limite, deve-se impor a rendioincondicional, sem restrio na utilizao dos meios disponveis.

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  • O novo terrorismo

    Em comparao com o perodo da Guerra Fria, o atual panorama mundi-al percebido pelo establishment da segurana nacional como menos perigosoem termos de tenses de alcance global, o que no significa que esteja livre daviolncia organizada. Conforme salienta Ian Lesser, em estudo da Rand,

    as fontes de conflito frente s quais as instituies militares devemplanejar tornaram-se mais diversas e menos previsveis, ainda quemenos perigosas no pior dos casos.... Colocando em termos mais sim-ples, muitas das distines tradicionais entre cenrios esto sendo cor-rodas sob a presso de desafios inter-regionais de migrao e terroris-mo at o contnuo crescimento de sistemas de armas disponveis nomundo inteiro (Khalilzad e Lesser, 1998: 1-2).

    Os conflitos tpicos da era bipolar, apesar de manterem os setores respon-sveis pela poltica externa em permanente estado de alerta, no deixavam deapresentar aspectos vantajosos em relao ao contexto posterior. A lgicacusto-beneficio que predominava na esquerda favorecia o processo de anlisee preveno. Para as organizaes polticas e os governos do bloco sovitico,aes terroristas contra alvos civis eram consideradas contraproducentes naconquista do apoio da opinio pblica para as causas que defendiam.

    Referindo-se aos atentados contra o World Trade Center e o Pentgono desetembro de 2001, Lesser delineia as diferenas entre o que denomina velhoe novo terrorismo:

    Na poca do velho terrorismo, havia grupos conhecidos com propostaspolticas bem definidas. Geralmente assumiam seus atos. Os pases que ospatrocinavam no costumavam esconder o fato da comunidade interna-cional. Os grupos que melhor traduziram esse modelo foram o IRA (ExrcitoRepublicano Irlands), em sua poca urea, a Frente Popular para aLibertao da Palestina, as Brigadas Vermelhas ... Hoje, a situao comple-tamente diferente. Existem vrias formas de terrorismo... E os ataques aWashington e a Nova York so tpicos: enorme nmero de vtimas fatais,alvos simblicos, ataques suicidas e demora em assumir a autoria (2001: 14).

    No que se refere s motivaes, Lesser no atribui ao novo terrorismo umobjetivo poltico preciso. mais uma motivao contra o sistema. Nada a vercom a independncia de um pas ou com a inteno de fazer uma chantagempoltica especfica. uma expresso de fria. Por isso a ttica usada e as con-seqncias so diferentes (op. cit.).

    De acordo com dados do governo dos Estados Unidos, aps o fim da GuerraFria diminuiu o nmero de ataques terroristas. Entre 1981 e 1990, a mdiaanual de incidentes foi de 536, e entre 1991 e 2001, de 417. Em 2001, houve umareduo em relao ao ano anterior: 348 contra 426 (U.S.D.S., 2002). No entan-to, a mudana no perfil das organizaes que promovem aes dessa naturezanas quais motivaes religiosas comeam a assumir destaque e o maior aces-so a armas de destruio em massa, tendem a complicar o panorama.

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  • Para os analistas de segurana, a inspirao religiosa presente em algu-mas das manifestaes do novo terrorismo no deve ser atribuda s religiestradicionais, institucionalizadas e com presena mundial, mas aos cultos.Nessa variante, perdem importncia as justificativas terrenas para aes con-tra inimigos baseadas em crenas diferentes ou de vingana contra outros gru-pos tnicos e civilizaes por humilhaes sofridas no passado, independen-temente do tempo transcorrido. Conforme assinala Mark Kauppi,

    os extremistas religiosos diferem das organizaes seculares em que aaudincia que eles esto tentando impressionar Deus, ao invs de umsegmento do pblico. Conseqentemente, convices religiosassupostamente facilitam o engajamento em aes que causam altosnmeros de mortes quando o ato feito em nome de Deus, e suposta-mente com Sua bno33 (1998: 25).

    O relatrio do projeto do INSS Globalization and National Security chamaa ateno para esse problema, destacando os componentes de instabilidadeassociados ao processo de globalizao:

    Mais do que destruindo a religio, a globalizao est facilitando a expan-so de idias religiosas.... Boa parte da violncia que, s vezes, descritacomo religiosa, de fato provm de uma articulao poltica contra a global-izao por parte de instigadores que utilizam a religio para seus prpriosfins.... A politizao do Isl coloca um desafio particular neste aspecto, masno a nica. Uma articulao amplamente difundida est sendo constru-da contra valores e prticas ocidentais que so freqentemente percebidoscomo humilhantes, decadentes, indulgentes, e abusivos (INSS, 2001).

    No caso dos atentados de 11 de setembro de 2001, a invocao da religiocomo fonte inspiradora de uma ao terrorista dirige-se contra os EstadosUnidos, colocado como smbolo mximo da ameaa sobrevivncia do modode vida islmico. Para alguns analistas, cabe uma urgente reflexo sobre osfatores que influenciam esse dio manifesto contra o pas, profundamentearraigado em setores da juventude do mundo rabe. Conforme salienta JudithKipper, pesquisadora do Council on Foreign Relations34:

    Embora no haja absolutamente nenhuma justificativa possvel paraesses atos de terror, imperativo que os Estados Unidos, em nossoprprio interesse de segurana nacional, examinem o que que cria talfria abrasadora que conduz, principalmente os jovens, a ferirem osamericanos (2001)35.

    Na avaliao de Kipper, a ausncia de um ambiente pautado pelos valoresde convivncia caractersticos do modo de vida americano uma das fontesprincipais do radicalismo, sendo que parte da responsabilidade por essasituao cabe poltica externa dos Estados Unidos, voltada basicamente parainteresses econmicos e estratgicos.

    A separao entre os governos da regio e os jovens, que vem topoucas oportunidades, como tambm o que parece ser um conflitoisraelense-palestino no resolvido, projetou a imagem de uma Amrica

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  • ameaadora. Eles so criminosos, mas no nasceram assim. Eles soum produto do seu prprio ambiente, que no os expe a valores tofamiliares para os americanos, como apoiar a sociedade civil e respeitaros direitos humanos e a dignidade de todo indivduo. Eles percebemuma falta de sensibilidade, um materialismo e farisasmo na Amrica.Tudo isso tem uma influncia to profunda em suas vidas que no apenas inaceitvel, mas, para alguns, intolervel (op. cit.).

    Referindo-se s motivaes que estariam na base dos atentados,Huntington tambm destaca o vnculo entre a faixa etria de boa parte dosmilitantes fundamentalistas, seu nvel educacional e o ressentimento emrelao ao Ocidente:

    As pessoas envolvidas nos movimentos fundamentalistas, islmicos ououtros, com freqncia so pessoas com formao superior. A maioriadelas no se torna terroristas, claro. Mas esses jovens ambiciosos einteligentes aspiram empregar sua formao em uma economiamoderna, desenvolvida, e ficam frustrados com a falta de empregos,com a falta de oportunidades. Eles tambm so pressionados pelasforas da globalizao e o que consideram como imperialismo ocidentale dominao cultural. Obviamente eles se sentem atrados pela culturaocidental, mas tambm so repelidos por ela (Steinberger, 2001)36.

    No entanto, apesar desse reconhecimento das contradies presentes noprocesso de globalizao, Huntington, diferentemente de Kipper, no vpossibilidades de alterao do quadro a partir de uma mudana na posturados Estados Unidos. Para ele, o apoio a regimes democrticos que respeitemos direitos humanos pode resultar contraproducente:

    No mundo islmico h uma tendncia natural em resistir influnciado Ocidente, o que compreensvel dada a longa histria de conflitosentre o Isl e a civilizao ocidental. Obviamente, h grupos na maioriadas sociedades muulmanas que so favorveis democracia e aosdireitos humanos, e acho que devemos apoiar tais grupos. S que assimentramos nesta situao paradoxal: muitos dos grupos que lutam contraa represso nessas sociedades so fundamentalistas e antiamericanos.Ns vimos isso na A