Bioética AULA 1

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    1/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    2/39

    BIOÉTICA

    A G

    São Luís

    2014

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    3/39

    U E MNúcleo de Tecnologias para Educação - UemaNetCampus Universitário Paulo VI - São Luís - MAFone-fax: (98) 2106-8970 / 2106-8974http://www.uema.brhttp://www.uemanet.uema.br

    C A0800-280-2731http://ava.uemanet.uema.bre-mail: [email protected]

    Proibida a reprodução desta publicação, no todo ou em parte, sema prévia autorização desta instituição.

    Governadora do Estado do MaranhãoR S M

    Reitor da uemaP . J A S O

    Vice-reitor da UemaP . G P C

    Pró-reitor de AdministraçãoP . W C S ’

    Pró-reitora de Extensão e Assuntos EstudantisP ª. V L M F

    Pró-reitora de GraduaçãoP ª. M A G C

    Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduaçãoP . P C G

    Pró-reitor de PlanejamentoP . A P S

    Diretora do Centro de Educação, Ciências Exatas e Naturais - CECENP ª. A A

    EdiçãoU E M - UEMAN T E - U N

    Coordenadora do UemaNetPROFª. I M R S S

    Coordenadora de Designer EducacionalPROFª. I M R S S

    Coordenadora do Curso de Filoso a, a distânciaP ª. L A A B

    Professor ConteudistaA G

    Revisora de LinguagemL F L

    DiagramadoresJ J C AL M S ST L M

    Designers Grá cosA AH FR S C

    Responsável pela Impressão Grá caC C P

    Gurgel, AyalaBioética / Ayala Gurgel. - São Luís: UemaNet, 2012. 2a. rev.

    atualizada (2014).

    131 p.

    ISBN: 978-85-63683-46-5

    1. Bioética. 2. Ensino a distância I. Título.

    CDU: 171

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    4/39

    ÍCONES

    Orientação para estudo

    Ao longo deste fascículo serão encontrados alguns ícones utilizadospara facilitar a comunicação com voc .

    Saiba o que cada um signi ca.

    ATIVIDADES ATENÇÃO SAIBA MAIS

    PENSE GLOSSÁRIO REFERÊNCIAS

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    5/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    6/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    7/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    8/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições

    PLANO DE ENSINO

    DISCIPLINA: BioéticaCarga horária: 60 horas

    EMENTAOrigem e evolução da Bioética. Filoso a, Deontologia Médica eÉtica Aplicada. As diferentes concepções da Bioética. O princípioda sacralidade da vida e princípio da qualidade da vida. Bioética dassituações cotidianas: exclusão, cidadania, solidariedade e compromissosocial; bioética das situações limites ou de fronteira; questões denascimento, da vida, da morte e do morrer. Bioética e plurarismo moral.

    OBJETIVOS

    GeralDemonstrar compreensão do instrumental teórico-metodológicobioeticista.

    Específicos• Identi car os eventos que originaram a Bioética e as formaçõesconceituais iniciais desse movimento;

    • Tipi car os paradigmas, enfoques, vertentes e valoraçõesclassi catórias das narrativas bioeticistas;

    • Conceituar os princípios bioeticistas e suas propriedades por meioda aplicação a casos selecionados;

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    9/39

    • Analisar questões losó cas que fazem interfaces com as questõesbioeticistas.

    CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

    UNIDADE 1ORIGEM, EVOLUÇÃO E DEFINIÇÕES DE BIOÉTIC

    UNIDADE 2DIFERENTES CONCEPÇÕES E PARADIGMAS DE B

    UNIDADE 3PRINCÍPIOS DE BIOÉTICA E SITUAÇÕES COTIDIA

    UNIDADE 4BIOÉTICA, PLURALISMO MORAL E QUESTÕES DE

    METODOLOGIA

    O desenvolvimento e a avaliação da disciplina serão realizados deacordo com as diretrizes e orientações para a Educação a Distância.

    AVALIAÇÃO

    A avaliação se dará em função dos objetivos propostos, levando emconsideração: a leitura dos textos sugeridos, o desenvolvimento dasatividades propostas, as anotações e os questionamentos levantadose a participação nas discussões nos momentos presenciais.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    10/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições

    Caro estudante,

    Seja bem-vindo ao curso de Bioética.

    Como iremos perceber, Bioética deveria ser uma palavra usada sempreno plural, tantos são os seus signi cados, usos e abordagens. Talveztenhamos que falar dela como um movimento diverso e difuso, cujauma das interfaces é com a Filoso a. Talvez tenhamos que tratá-la comoalgo em construção. Algo que ainda não dominamos completamente,mas que já tem uma função social muito importante para a construçãodo saber e das condutas morais no trato com as questões inerentesaos avanços cientí cos, especialmente aquelas que envolvem a

    manipulação de organismos vivos.Este curso está direcionado para alunos de Filoso a ou pessoas que,de algum modo, estão envolvidas com a Filoso a, mas não se limitam aquestões losó cas. Pois, como se sabe, as questões examinadas pelaBioética são patrimônio da humanidade, debatidas por todas as áreas. Nãohá como separar Bioética e multidisciplinaridade, interdisciplinaridade ediversidade cultural, jurídica, moral e religiosa. Todos os saberes estãoconvidados a discutir as questões que examinaremos. Somos todos

    atingidos por elas, conscientes ou não disso.Nessa perspectiva, com o objetivo de compreender como osbioeticistas operam suas análises e chegam às suas conclusões, estecurso irá trabalhar em duas linhas, uma mais hitórico-conceitual, naqual introduziremos o debate acerca da diversidade de modelos deBioética, e outra mais pragmática, na qual os conceitos, princípios eparadigmas de Bioética serão desa ados pela realidade dos problemasassociados aos diversos desenvolvimentos técnico-cientí cos.

    APRESENTAÇÃO

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    11/39

    Nem sempre encontraremos respostas para as questões aqui levantadas.Isso é normal em Bioética. Algumas dessas questões estão ainda nonível de elaboração. Outras, terão respostas con itantes e sem soluçãoconsensual. Isso também é normal em Bioética. Contrário à normatividadetradicional, Bioética não tem respostas morais prontas e acabadas. Não

    tem imperativos categóricos (apesar da proposta de Jahr), mandamentos,leis ou regras inalienáveis (apesar da evocação de algumas “regras deouro”). Ela tem mais questões, diretrizes, apelos e interfaces dialogais doque qualquer outra forma de regulação do comportamento.

    É normal que ao longo do curso quemos, em alguns momentos,confusos e nos sintamos carentes de mais informações. É normaltambém que encontremos certas di culdades para manejar termostécnicos de outras áreas. Contudo, isso não deve nos desestimular.

    Ao contrário, o lósofo ao se deparar com di culdades dessa naturezasente-se em casa para ir além, investigar mais. A internet tem sidobastante amigável nessa tarefa e se mostrado importante fonte derecursos. Conversar com pessoas de outras áreas também ajudabastante. Livros e lmes sobre o assunto existem aos milhares. Só nãopode faltar disposição e interesse.

    Para facilitar o acesso ao instrumental teórico, conceitual,epistemológico, metodológico e pragmático de Bioética, o curso

    oferece a seguinte organização:Inicialmente, abordaremos Bioética em sua genealogia. Não para contaruma historinha, mas para relacionar os eventos importantes com osquais ela se relaciona e o porqu de diversos intelectuais, das maisdiversas áreas, terem consensualizado a importância de uma disciplinadessa natureza. Aqui, veremos que Bioética vem sendo formada aospoucos, como um movimento plural, por meio de cada coletivo ou depensadores isolados que tomaram para si as preocupações com as

    consequ ncias dos mais diversos desenvolvimentos técnico-cientí coscontemporâneos, especialmente aqueles que envolvem a manipulaçãode organismos vivos.

    Na segunda unidade, examinaremos como esse movimento tem sidocatalogado em diversos paradigmas, cada qual com uma propostadiferenciada. Veremos que Bioética está longe de ser um movimentohomog neo. Que sem a interface dialogal e dialógica, cada paradigmapode se isolar em suas propostas e não atingir seus objetivos. Que

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    12/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições

    essa pluralidade não é danosa, mas faz parte da própria lógica daorganização dos saberes e reguladores de comportamento dasociedade contemporânea. A diversidade que se apresenta dentrode Bioética é correlata à diversidade que se apresenta nos nossosprocessos de valoração sobre o mundo, portanto legítima.

    Na terceira unidade, intitulada “Bioética: princípios e aplicações”,introduziremos os estudos de caso. Não sem antes apresentarmos osprincípios que irão nortear as suas análises. Isso não signi ca uma adesãoao principialismo nem à casuística. Não temos a intenção de orientá-lo para nenhum princípio, enfoque, vertente ou valoração bioeticista.A decisão de como voc irá se posicionar dentro de Bioética é sua.Queremos apenas ajudá-lo nisso, oferecendo algumas ilustrações decomo os bioeticistas operam, o que será discutido na unidade seguinte.

    Na quarta unidade, Bioética: problemas e re exões, analisaremosduas questões bastante familiares do lósofo: o especismo e a mortedigna. À luz das re exões bioeticistas, essas questões dizem respeitoa duas perguntas: podemos dispor dos animais? Podemos dispor daforma de nossa morte? Ambas, portanto, são enfrentadas a partir doparadigma de que toda decisão tem um fundamento axiológico. Qualo fundamento que está por trás da (in)disposição dos outros animaispara a experimentação cientí ca e qual o que se encontra por trás das

    decisões em busca de uma forma digna de morte serão os norteadoresdessa unidade.

    Ao término de cada unidade oferecemos um conjunto de questões parafaz -lo pensar sobre o que foi estudado. É importante não ter pressa enão precisa se isolar para respond -las. Essas questões foram projetadaspara gerar um tipo de postura perante as informações aqui lançadas: umpensamento crítico, profundo e preciso, como são as questões bioeticistas.

    Este fascículo não esgotará todas as complexidades envolvidas emBioética. Ele é, antes de tudo, um convite para adentrar nessa maneirade pensar as questões que os diversos modelos de desenvolvimentotécnico-cientí cos nos lançam diariamente. Justamente por isso,paralelo a cada unidade, ofereceremos sugestões para aprofundar oassunto, bem como as refer ncias bibliográ cas e sítios da internet quepoderão ser úteis nessa tarefa.

    Bom estudo!

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    13/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    14/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições

    Em tempos de sensacionalismo falar em Bioética pode soar como maisum modismo. Mais uma onda que vem e vai, na vã tentativa de preenchera relatividade de sentido estabelecida com aquilo que se conhece naspalavras de Debord (1997) como “Sociedade do espetáculo”.

    Debord (1997) chama de “Sociedade do espetáculo” a nossa atualsociedade, pois ela transformou avida real em algo que precisa serreapresentado sob a forma de um modelo que se dá à imitação,que não basta ser , mas tem que aparecer como um produto queprecisa ser consumido. Por exemplo, uma camisa, que é umamera vestimenta, ganha um caráter fetichista e passa a valerpela imitação que ela é capaz de realizar: ser a imitação de umacamisa que determinada celebridade usou em uma festa. Ou acamisa de uma determinada marca. As pessoas passam a consumiressa camisa, primariamente, não porque precisam se agasalhar,mas porque precisam dar o seu show particular, uma exibição destatus, de participação no espetáculo geral. Os modelos, quantomais próximos do original mais caros, quanto mais distantes emais grosseiros, mais acessíveis às camadas menos favorecidas dasociedade. No entanto, a sociedade cria artefatos para que todos,de algum modo, partilhem da ilusão de que participam do mesmo

    espetáculo.

    Não há como negar que algumas formas de Bioética não passam de umshow, algo para inglês ver,ou, como diziam Cazuza e Frejat (2008), “umaideologia para viver”. Em razão disso, não vamos argumentar contra a ideiade que Bioética seja mais uma dessas coisas da “Sociedade do espetáculo”,a nal ela surgiu como discurso consolidado justamente nessa época (a pós-

    INTRODUÇÃO

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    15/39

    moderna), e, portanto, está relacionada diretamente às suas conjunturas.No entanto não vou aceitar que Bioética se resuma a isso. Há algo nosdiscursos que forjaram esse termo que o postulam para além do espetacularou do contemporâneo ,a nal, nem tudo que é coexistente a uma forma deorganização social está, necessariamente, subsumido à sua lógica.

    Digo isso porque postulo que a noção desociedade é apenas umaabstração racional de umarealidade muito mais complexa que comportainúmeras contradições, algumas das quais extemporâneas. Se tem sidoassim com tanta frequ ncia nos últimos séculos, por que seria diferenteagora? Por que justamente quando vivemos omodelo social que maisnega a exist ncia de modelos teríamos cessado nossas contradições?Certamente que não. Estamos, na verdade, exponenciando-as ao seulimite. Ao limite da evid ncia. E por ser tão evidente é que se parece tãoenigmática, pois, como já dizia Heidegger (1993), nada é mais obscurodo que o óbvio.

    Nessa perspectiva, o curso que apresentaremos sobre o que vem a serisso que se nomeia por Bioética será, prioritariamente, uma busca pelosentido ocultodesse termo, aquilo que pode resistir tanto ao instantecontemporâneo quanto à natureza do espetáculo; que sobrevive aosarroubos dos discursos mais in amados e eloquentes.

    Mas, o que signi ca sentido oculto? Signi ca que há algo para além ouaquém daquilo que se nomeia como Bioética?Sentido oculto não nosremeteria à ideia de que Bioética é um evento demá fé? Ou mesmo quehá a necessidade de ritos iniciáticos associados a esse vocábulo? Ouainda que estaríamos lidando com uma conspiração tramada contra asci ncias, cujo termo seria apenas a sua forma pública de manifestação?Não é nessa direção que nos guiaremos. Neste curso,sentido oculto tem o mesmo signi cado de sentido ontológico , aquele que designaas propriedades de um termo cuja valência está para além de suasdelimitações consensuais.

    Esse sentido pode ser buscado em muitos lugares, de muitos modos.Vamos buscá-lo na suaserventia –ou seja, no uso que se faz dele –seguindo o método da axiologia formal, de clara inspiração na lógicailocucionária de Vanderveken (1990-1991; 2004). Isso porque asde nições mais comuns e as pesquisas mais recentes tendem a colocar

    Sentido oculto de Bioéticaé o seu sentido ontológico,aquele que subsisteàs diversas operaçõesaxiológicas que os bioeticistasparticulares fazem. Não é umsentido metafísico, no sentidode afastado da realidade,mas, ao contrário, é aquelesentido que está por trás dosigni cado, da val ncia, dapalavra cada vez que ela éusada.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    16/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições

    Bioética como um tipo deética, senão como parte integrante dosestudos morais contemporâneos, o que a torna uma especi cidadedos discursosaxiológicos mais gerais. E, como tal, ela ca submetida àsmesmas regras de qualquervaloração.

    Nessa ótica, umaoperação axiológica realizada por um bioeticista é, naverdade, a apropriação de regras gerais davaloração. Saber, portanto,como operamos as nossas valorações é de fundamental importânciapara decifrarmos asvalorações bioeticistas em particular.

    E sobre o qu operam as valorações bioeticistas? Elas operambasicamente sobre as mudanças, consequ ncias e promessas demudanças, no âmbito da organização da vida, ocorridas com as ci nciasnos últimos séculos.

    Isso porque, nos dois últimos séculos, mais especialmente nos últimostrinta ou quarenta anos, aconteceram coisas nas áreas da ci ncia e datecnologia que os maiores visionários não ousavam tirar do âmbito dacção. Falamos por celulares comprados em supermercados, usamosmicrochips com milhares de informações, estudamos pela internet,temos acesso a bibliotecas do mundo inteiro, baixamos lmes raros,temos carros cada vez mais velozes, água potável reciclada a partirde água salgada ou de esgotos, guerras com armas que possuem altaprecisão de ataque, transplantes de órgãos e clonagens de organismos,vírus capazes de destruir a humanidade em questão de meses. Algunsnomeiam isso de “avanços”, outros de “loucura”, outros ainda, os maisreligiosos, chamam de “sintomas do apocalipse”. Seja o que for, taiseventos afetam tanto a nossa vida que não é possível car apático aeles. Cedo ou tarde teremos que debater com alguém, em algum lugar,alguma questão perpassada por um desses eventos.

    Dentre essas mudanças, as que acontecem na área das ci nciasbiológicas e da saúde nos chamam ainda mais a nossa atenção: o homem,de criatura, se tornou criador. Ele desenvolveu ci ncia e tecnologia nosúltimos anos mais do que durante toda a história da humanidade. Sepor um lado aumentou a sua capacidade de se adaptar e sobreviverneste planeta, também aumentou o seu poder de destruição: a vidaperdeu a sua sacralidade e deixou de ser o último recanto sobre o qualnão se exercia o poder de destruição.

    Operação axiológica équalquer operação semânticaque implique uma valoração,

    como são os juízos de valorque fazemos sobre os estados

    de coisa. Por exemplo,quando digo “é bom que se

    fale a verdade em um tribunalpara evitar perjúrio”, isso

    é uma operação axiológicae o termo “é bom que” é o

    operador axiológico.

    Embora a vida em geral, eem particular a vida humana,

    nunca tenha sido devidamenterespeitada, já houve em

    muitas épocas concepçõeslosó cas, teológicas, políticas

    ou até mesmo cientí cas,que pregavam uma defesa

    irrevogável da vida, como umsacrossanto mistério intocável.

    Veja, por exemplo, a posturajusnaturalista de Thomas

    Hobbes, exposta em obrascomo Leviatã , ouDo Cidadão.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    17/39

    Nessa área, somos bombardeados com notícias provenientes de todasas diferentes partes do mundo, relatando (fora as que não são relatadas)a utilização de novos métodos investigativos, de novas técnicas, denovas e ci ncias, de mais e cácia de determinados métodos revistos,da descoberta de fármacos mais e cazes, da extensão de mais anos devida, do controle da degeneração de certas células, do retardamentodo envelhecimento, das novas combinações alimentícias, doconhecimento e controle de doenças até então silenciadas comosinônimo de morte certa, do conhecimento e manipulação dos átomose dos genes. O mundo, atônito, v o desenvolvimento de tudo isso semtempo para assimilar o que está a acontecer, tamanha é a velocidade ecomplexidade com a qual tudo isso se passa.

    Mal temos tempo para pensar sobre um acontecimento, já vemoutro e mais outros a demandarem da nossa capacidade cognitivae moral, respostas e posturas à altura e na rapidez que eles sedesenvolvem.

    Graças a essa rapidez, nossas posturas chegam a ser as maisantagônicas: de uma completa aceitação e aplauso ao desenvolvimentotecnocientí co, ao completo oposicionismo a uma prática que põe ohomem no lugar de Deus. Excessos à parte, essa é uma situação que

    precisa ser compreendida e vivenciada com a cautela que as questõesenvolvidas exigem. Não se trata mais de uma simples equaçãometodológica ou técnica para saber se funciona ou não. É mais queisso: a de saber quais as prováveis implicações presentes e futuraspara os envolvidos no processo, para a espécie e para o planeta comoum todo.

    Há dois argumentos em jogo que precisam ser analisados. Amboscompõem uma antilogia. Um de cada lado contradiz o outro. De umlado, o argumento que diz: “não é importante o que vai acontecer como planeta e a vida que nele habita”; do outro lado, a sua negação: “éimportante o que vai acontecer com o planeta e a vida que nele habita”.Se ainda não cou claro e su cientemente decidido o que vamos fazercom a vida deste planeta, é preciso então mais cautela.

    O laboratório e o cientista não são mais compreendidos comoisolados do resto da sociedade, cujas pesquisas cam à merc

    Trata-se de uma contradiçãoentre ideias de um mesmodiscurso, ou de contradiçõesentre as partes ou os passosde um livro ou obra literária.Quando há uma antilogia,somente um dos lados podeter razão, mas não é fácildecidir qual.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    18/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições

    única e exclusivamente de sua consci ncia (ou da consci ncia dasagências fomentadoras ). Seja com a literatura, seja com a loso aou a ci ncia responsável, desde o século XIX que temos re exões(algumas bastante severas) sobre os limites da prática cientí ca(metódica e tecnologicamente). Assim, a denúncia representada pelairresponsabilidade doDr. Jekyll, ou da arrogância do Dr. Frankenstein,mais as re exões de Weber (1993), Marx (1973) e Nietzsche (2006),colocam a ci ncia no seu devido posto: como uma instituição socialdevotada a um modelo de sociedade.

    No caso do Dr. Victor Frankenstein (não confundir: quem é Frankensteiné o médico, não a criatura, que sequer tem um nome), da obra deMary ShelleyFrankenstein ou o moderno Prometeu,ele pretendia criarum meio que desse ao homem uma vida imortal ou longeva, livre dedoenças e fadigas. O resultado foi uma criatura dócil e inteligente, masque, graças à ignorância dos homens, acabou se tornando uma criaturaassassina e fugitiva.

    No mundo contemporâneo, especialmente no nal do século XX einício do século XXI, essa discussão tem tomado cada vez mais fôlego,cujo destaque são as contribuições de Bioética e do Biodireito.

    No século XX, Jonas (1990), entre outros, procurou reatar a cisão feitaem meados do século XIX que rompera loso a e ci ncia. Para esseautor, a re exão losó ca sobre a ética tinha que urgentemente fazerparte da mentalidade do homem tecnológico. Sem tal re exão essehomem poderia muito bem não só desorganizar a vida deste planeta,como também mudar radicalmente os fundamentos da vida, de criar edestruir a si mesmo. Uma consequ ncia não desejável é que a ci nciase tornaria elitista e, mais que antes, a qualidade de vida se tornaria umstatus discriminatório, fazendo com que todos os avanços políticos,toda a tradição democrática, toda a luta por justiça e isonomia entreos povos e as pessoas estivesse prontamente decidida como umahipótese falida.

    Pensemos a respeito:

    Informações e poder concentrados nas mãos de poucas pessoas nãoseria a fórmula perfeita da mais fria e e ciente (sem deixar de serdolorosa) forma de holocausto mundial? Quem poderia impedir que

    São órgãos públicos, privados

    ou de economia mista quenanciam as pesquisas. CNPqe CAPES são exemplos de

    ag ncias públicas de fomento.

    Dr Jekyll e Mr. Hyde dizrespeito aos personagensliterários criados por Louis

    Stevenson na obra O EstranhoCaso do Dr. Jekyll e Mr Hyder (às vezes traduzida comoOMédico e o Monstro). O Dr.

    Jekyll queria isolar a maldadedo homem para poder destruí-

    la, contudo, acabou criandoum monstro mais poderoso do

    que ele.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    19/39

    pessoas inescrupulosas lançassem mão de informações privilegiadaspara ns eug nicos? Quem poderia impedir que se lançasse mão deinformações sobre as probabilidades de uma pessoa vir a desenvolverdeterminada doença no futuro devido a uma falha em seu códigogenético, para usá-las contra essa mesma pessoa? Quem poderia

    impedir que grupos religiosos mais radicais não utilizassem informaçõeseugenistas com ns de eliminação racial, ou que cientistas militares nãolançassem mão desses conhecimentos com o intuito de produzir armascada vez mais letais e genocidas? Pode parecer desesperador, mas háainda a hipótese de uma seleção geneticamente induzida, mudandocompletamente o per l da vida humana no planeta, ou talvez, da vidaem geral.

    Às vezes esse discurso pode parecer uma barreira a mais enfrentadapela ci ncia e pela tecnologia. Não bastassem as di culdades inerentesà pesquisa cientí ca, a falta de incentivos scais e apoio nanceiro, oamparo e remuneração ao pesquisador, a socialização das informações,além da formação e capacitação pro ssional, da defasagem esucateamento dessa área; agora essa de moralizar e controlar apesquisa cientí ca. No entanto, não se trata propriamente de ser umobstáculo ao exercício da pesquisa cientí ca.Trata-se, antes de tudo,de decidir responsavelmente por modelos aceitáveis de pesquisascientí cas .

    Ou melhor, trata-se de contextualizar as mais diversas produçõescientí cas e as suas serventias, uma vez que não há a pesquisa cientí ca,a ci ncia ou a tecnologia, como se houvesse um único modelo ou ummodelo dominante. O trabalho que começou com a literatura no séculoXIX (cuja temática é recorrente ao longo da história da humanidade) etomou fôlego com as teses de Kuhn (1973) denunciam a diversidadedos modelos e métodos cientí cos. Não há a Ci ncia, há ci ncias. Háas mais diferentes tecnologias a serviço dos mais diferentes interessese modelos de sociedade. É justamente isso que a re exão losó carecente traz sobre as ci ncias, sob a tutela de Bioética. Assim, não se tratade ser um obstáculo contra o desenvolvimento da pesquisa cientí ca,mas, uma vez que se decida o modelo de sociedade que queremos e omodelo de homem que nela habitará, podemos questionar as práticase princípios cientí cos que com esses se ajustam.

    Voc acha que toda equalquer pesquisa cientí ca éválida? Que qualquer modelode ci ncia deve ser aceito pelasociedade?

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    20/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições

    O século XX, preocupado com essa questão, em especial apósacontecimentos históricos de proporções monstruosas que faz de obrascomo O estranho caso do Dr. Jekill e Mr. Hyder e Frankenstein pareceremcontos infantis, resolveu pensar ética e cienti camente os limites daprática cientí ca. Apareceu, portanto, Bioética. Essa é, justamente, a

    matéria sobre a qual trataremos neste curso.

    HEIDEGGER, M.Ser e Tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

    HOBBES, T.Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2010.

    ______.Do Cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2010.

    JONAS, H.Il Principio Responsabilità. Un’etica per la civiltà tecnológica.Turim: Einaudi Editore, 1990.

    KUHN, T.The structure of scienti c theories . Illinois: University ofIllinois Press, Ed. F. Suppe, 1973.

    MARX, K.Elementos fundamentales para la crítica de la economíapolítica. 8. ed. Grundrisse. Ciudad de México: Siglo XXI, 1973. v.2.

    NIETZSCHE, F. W.A genealogia da moral. São Paulo: Editora Escala,2006.

    SHELLEY, M.Frankenstein ou o moderno Prometeu . São Paulo: MartinClaret, 2001.

    STEVENSON, R. L.O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyder. Rio dejaneiro: Newton Compton Brasil, 1996.

    WEBER, M. A “objetividade” do conhecimento na ci ncia social e na

    ci ncia política. In: _________.Metodologia das Ciências Sociais. 2. ed.São Paulo: Cortez Editora, 1993, p.107-154, v. 1.

    VANDERVEKEN, D.Meaning and Speech Acts (2 tomos). Cambridge:University Press, 1990-1991.

    ______. Success, Satisfaction and Truth in the Logic of Speech Acts andFormal Semantics. In: DAVIS, S; GILLAN, B. (eds)Semantics A Reader.Oxford: University Press, 2004.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    21/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    22/39

    Unidade

    1

    OBJETIVO DESTA UNIDADE:

    Identi car os eventos que originaram a Bioética e as

    formações conceituais iniciais desse movimento.

    BIOÉTICA: genealogia e definições

    As bases históricas da Bioética

    Bioética não aparece como uma forma unívoca ouhomog nea para pensar os desa os da práticacientí ca. Antes, faz parte do espírito de uma época(cujo ápice é a década de 1970) orientado peloholismo responsável e crítico.

    Nesse espírito, a questão da manipulaçãoda vida passa a ser contemplada a partir devariados ângulos: bio-técnico-cientí co,

    político, econômico, social, jurídico, moral,multidisciplinar, multicultural, humano, críticoe, sobretudo, competente (não pan etário).

    O Brasil também tem participado dessasdiscussões. E, tal como as demais nações, aquitambém t m se pactuado critérios e princípiospara nortear as pesquisas envolvendo sereshumanos, embora ainda se aguarde por

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    23/39Curso de Bioética2

    decisões políticas mais seguras, como a criação de um conselho nacionalde Bioética , de políticas emancipatórias, da implementação de câmarasde decisão e controle social da população nos hospitais etc.

    Rothman (1991), ao tentar pontuar os eventos mais importantes que

    deram origem ao movimento da Bioética, acabou criando uma tend nciaentre os estudiosos do assunto. Clotet (2003) segue essa tend ncia eenumera um grupo importante de sete classes de mudanças que justi camo surgimento da Bioética, bem como sua expansão pelo mundo:

    Avanços científicos

    O progresso das ci ncias biológicas e biomédicas, segundo Rothman (1991),altera os processos da Medicina tradicional. Alguns desses eventos são:

    • A descoberta da estrutura helicoide do DNA em 1953, por J Watsone F. Crick, que permitiu, posteriormente, o seu mapeamento e aassociação de diversas qualidades fenotípicas a essa estrutura;

    • A construção do primeiro gene por via sintética, em 1970, por H. G.

    Khorana, o que abre a possibilidade de manipulação, para os maisdiversos ns, e correção na organização genética de um organismo;

    • A prática de reanimação-ressuscitação, a DNR (do-not-resuscitate-orders) e a CPR (cardiopulmonary resuscitation), cuja questãocentral é o poder de decidir reanimar ou desistir de prolongar a vidapor meios arti ciais;

    • A descoberta da máquina de hemodiálise, em 1961, por BeldingScribner;

    • O primeiro transplante de coração, em 1967, realizado por ChristianBarnard, o que evocou não somente o conceito de morte encefálica(note-se, o transplante foi realizado antes da de nição de morteencefálica), bem como a possibilidade de realização de transplantesde órgãos complexos;

    • O nascimento do primeiro beb fecundado in vitro e congelado,em 1978, noOldham Public Hospital, Londres, por Robert Edwards ePatrick Steptoe, entre outras.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    24/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições 23

    Estes avanços t m produzido uma alteração na postura dos pro ssionais dasáreas biomédicas, como também no comportamento do público assistido.

    Cidadania militante

    A socialização do atendimento médico e a questão da cidadanialigada diretamente a uma consci ncia de luta por garantias individuaist m produzido conquistas e ganhos nas formas da organização edistribuição dos recursos e benefícios das áreas biomédicas.

    O médico deixou de ser um produto privativo das elites e passou aser um pro ssional do Estado. Assim, para Clotet (2003, p.17), a “[...]imagem do médico que conhecia o paciente e cuidava dele anos a o,já não é mais comum. Novos padrões de conduta presidem as relaçõese decisões na medicina contemporânea”.

    Essas alterações de caráter e na forma de abordar os interessesindividuais e coletivos, especialmente nos países capitalistas centrais,é produto de muitas lutas sociais e não podem ser ignoradas nagenealogia da Bioética.

    Medicalização da vida

    Há uma aproximação da sociedade com a prática médica. Ou melhor,uma justaposição entre vida, morte e Medicina, de modo que, comoexpôs Clotet (2003, p.17), “[...] existem especialidades médicas paraas diversas etapas da vida: neonatologia, pediatria, clínica médica,obstetrícia, geriatria”, entre outras.

    Se antes a vida social tinha outros centros de refer ncia, como porexemplo, o domicílio ou a igreja (pois as pessoas nasciam em casa eali eram tratadas quando adoeciam, bem como morriam em casa,geralmente assistidas por um sacerdote e cercada de parentes eamigos), ela foi transferida para o hospital, sob a tutela médica (hoje, amaioria das pessoas nascem, são cuidadas quando adoecem e morremnos hospitais. Essa morte geralmente é afastada da família e amigos ecuidada por desconhecidos).

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    25/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    26/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    27/39Curso de Bioética6

    Justamente por essa ampla participação, bem como pela representaçãode usuários, tais comit s diferem dos comit s e tribunais de éticatradicionais, cuja composição dominante, quando não exclusivamente,é escolhida entre os pares. Os comit s de ética t m uma forteaproximação com o “princípio da alteridade” de Emanuel Levinás, de

    onde se oriunda a clara exig ncia da participação do usuário para a suaformação.

    A primeira manifestação o cial brasileira data de 1988, quandofoi promulgada pelo Conselho Nacional de Saúde a Resolução01/88, cando praticamente inoperante até a sua substituiçãopela Resolução 196/96, do mesmo conselho. Dessa resolução em

    diante, Bioética despontou em todo o território nacional como umverdadeiro movimento social, abrangendo tanto as instituiçõespúblicas e privadas, quanto os indivíduos.

    Ganham destaque nesse movimento, os Comitês de Ética emPesquisa, os Comitês de Bioética, os Comitês de Ética Hospitalar ,além dos Comitês de Bioética ligados a laboratórios, empresas,conselhos pro ssionais e associações, bem como a implementaçãode disciplinas e cursos de Bioética para a população.

    Os Comit s de Ética em Pesquisa estão ligados em rede dentrodo sistema CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa). Asinformações sobre composição e funcionamento desses comit spodem ser encontradas no sítio o cial da CONEP: http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html (acessado em14/06/2012).

    Necessidade de um paradigma moral

    A necessidade de um paradigma moral que possa ser compartilhado porpessoas de moralidades diferentes é outra base genealógica sobre aqual Clotet (2003, p.19) funda a Bioética. Para ele, existe uma exig nciamundial de se encontrar “[...] alguns princípios comuns para que seresolvam problemas também comuns, decorrentes do progresso dasci ncias biomédicas e da tecnologia cientí ca aplicada à saúde”.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    28/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições 27

    Essa base comum não pode ser como na ética tradicional, uma éticade máximas, do mesmo modo que também não pode ser aos moldesda ética analítica, que apenas examina os proferimentos morais sempropor decisões concretas. Por essa razão, e outras, Adela Cortinapropõe uma ética de mínimos.

    Cortina (2009) critica os excessos cometidos pela ética analítica, aoque ela chama de ética sem moral, e defende uma moral de mínimos,em contrapartida à moral de máximas, como a kantiana. Parte doprocedimentalismo e do discurso da ética, em defesa da racionalidadeno âmbito prático e o caráter universalista e dialógico da ética. Domesmo modo, defende que a racionalidade sozinha não fundamentaa ética. É preciso ter em conta as circunstâncias históricas e culturais

    que operam as valorações, bem como lutar por elas. A inserção davirtude como regra dos princípios seria a solução para não se cair emum principialismo vazio.

    Salvação da Ética

    Entende-se a “Salvação da Ética” como o crescente interesse da Ética

    para os temas que se referem à vida, à reprodução e à morte do serhumano.

    Para autores como Clotet (2003) e Cortina (2009),a ética analítica teriaafastado a ética losó ca da moral e, consequentemente, deixadode se preocupar com problemas concretos para se preocupar apenascom problemas de linguagem. Cortina (2009), a esse respeito, frisa,sobretudo, a salvação da Ética losó ca e da Ética teológica, uma vez

    que está bastante in uenciado pela obra de Walters, que relacionaTeologia e Bioética sob um paradigma cristão-católico. Esse tópicorealça uma dupla importância no universo das teorias: o da Ética sobreas práticas médicas e o das práticas médicas sobre a Ética.

    Voc acha que a éticaanalítica, de fato, afastou

    a ética losó ca da moral?Que a única preocupação daética analítica seja, de fato, a

    resolução de problemas dalinguagem moral?

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    29/39Curso de Bioética8

    As bases conceituais da Bioética

    Apesar de a origem do termo nos remeter ao trabalho de Fritz Jahr,ainda no início do século XX, as de nições mais utilizadas de Bioéticaforam, certamente, as elaboradas por Van Rensselaer Potter, Warren T.Reich e David Roy. Isso porque, quando foi fundado, em 1971, o InstitutoKennedy de Ética na Universidade de Georgetown pelo neonatologistaAndré Hellegers, como o primeiro Centro Nacional para a Literaturade Bioética e primeiro programa de pós-graduação em Bioética domundo, estava-se assumindo uma tradição discursiva que ditaria asregras conceituais do termo.

    Justamente por isso, tem sido bastante difícil para qualquer outraconcepção de Bioética manter-se, a não ser como uma vertenterevisionista ou apócrifa dessa tradição. Mesmo os países em que asexperi ncias de pesquisa e atentado à dignidade humana ou conviv nciaambiental são totalmente distintas das que deram suporte às re exõesdessa tradição são obrigados a se colocarem à sua disposição.

    Definição de Fritz Jahr

    Fritz Jahr apresentou em um artigo da revistaKosmos, em 1927, aproposta de um termo, Bio Ethik, como a necessidade emergente deobrigações éticas não apenas com o homem, mas com todos os seresvivos.

    De cunho religioso-franciscano e evidentemente não-especista, aproposta de uma atenção indiferenciada à vida reaparecerá entre

    bioeticistas católicos (como Leonardo Boff), com umantiespecismo moderado, e ateus (como Peter Singer), com um antiespecismo radical,dando forte respaldo às re exões antiespecistas de Jahr.

    O termo proposto por Jahr (1927) seria a reunião da palavraBio+Ethik,oriundas do alemão e se refere não a um conceito, no sentido clássico,mas a um imperativo, o que ele chamou deimperativo Bioético, sob aforma: “Respeita cada ser vivo em princípio como uma nalidade em sie trata-o como tal na medida do possível” (JAHR, 1927, p.2).

    É a postura losó ca,teológica e moral que elegeas qualidades de uma espécie(geralmente a espéciehumana) como critério parajulgar as demais espécies. O

    especismo tem como principaloponente o antiespecismo,mas também existe oespecismo moderado e o não-especismo.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    30/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições 29

    Nesse sentido, não só a ideia de Bioética como uma ética antiespecista,mas igualmente como ética deontológica, ou seja, baseada no princípiodas ações, são, portanto, credoras da elaboração de Jahr.

    Definições de Van Rensselaer Potter A primeira das de nições de Van Rensselaer Potter é consideradapor muitos autores como a própria inauguração da Bioética. Essade nição procura combinar os conhecimentos das ci ncias da vida(representados pela Biologia) com os conhecimentos humanísticos.

    Na intenção de Potter, Bioética não seria apenas uma re exão socialou uma crítica literária, mas uma ci ncia. Ci ncia essa preocupada comprioridades pro ssionais e ambientais para o que ele chamou de umasobrevivência aceitável.

    A sua primeira de nição apareceu em 1970, por ocasião da publicação deum artigo intituladoBioethics: the Science of Survive, quando escreveu:

    Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizaros dois componentes mais importantes para se atingiruma nova sabedoria, que é tão desesperadamentenecessária: o conhecimento biológico e valoreshumanos (POTTER, 1970, p.128).

    Contudo, o conceito que passou para a história, como o conceito deBioética potteriano, foi aquele publicado em 1971, por ocasião dolançamento de seu livro:Bioethics: the Bridge to the Future.

    A Bioética é a combinação da biologia comconhecimentos humanísticos diversos constituindouma ci ncia que estabelece um sistema de prioridadesmédicas e ambientais para a sobreviv ncia aceitável(POTTER, 1971, p.2).

    Essa de nição estaria sob a tutela da ética, como mais adiante elecoloca, e se deteria sobre temas ligados às ci ncias da vida. Assim,Bioética é também “[…] o ramo da ética que enfoca questões relativasà vida e à morte, propondo discussões sobre alguns temas, entre osquais prolongamento da vida, morrer com dignidade, eutanásia esuicídio assistido (POTTER, 1971, p.117).

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    31/39Curso de Bioética0

    Esse conceito, revisto e rea rmado pelo próprio Potter, em 1988, emseu livroGlobalBioethics. Building on the Leopold Legacy, consolidou-se como a de nição de Bioética mais usada pelos potteristas. Umacontribuição importante para essa difusão foi dada por André Hellegers,quando passou a utilizá-lo e divulgá-lo de modo institucional, “[...] parasigni car o novo campo de pesquisa biomédica” (CLOTET, 2003, p.33),com a criação, em 1971, doThe Joseph and Rose Kennedy Institute forthe Study of Human Reproduction and Bioethics, e, posteriormente, oKennedy Institute of Ethics.

    Percebe-se, portanto, que as de nições de Potter, com o suporte ea orientação dados por Hellegers, apresentam Bioética como algodiferente da orientação deontológica de Jahr (1927). Não se tratade uma veri cação dos princípios de ação, mas das escolhas quefazemos para tornar o futuro suportável ou não, o que signi ca quesuas de nições coadunam com as éticas consequencialistas, para asquais são as consequ ncias das ações ou de princípios, o que deve serespecialmente observado nas escolhas morais.

    Igualmente se percebe certa tend ncia de superação do especismopotteriano. Se, inicialmente, a concepção de Bioética dele o aproximada defesa de uma sobreviv ncia humana, como aparece em 1970, isso

    é revisado até o ponto de ceder às intenções não-especistas, com aassunção de uma Bioética global, em 1988. Com essa noção de Bioéticaglobal, que considera tanto o ser humano como um todo quanto todasas espécies de vida deste planeta, Potter (1988) se afasta bastantedo que propôs em 1970, quando a preocupação era apenas com asobreviv ncia humana. Digamos, contudo, que ele não assume umapostura antiespecista, mas apenas a de um não-especismo, uma vezque ainda continua antropoc ntrico. O que ele faz, é apenas reconhecer

    que essa sobreviv ncia humana não depende exclusivamente dele,mas também da sobreviv ncia de outras espécies.

    Definições de Warren T. Reich

    A primeira de nição elaborada por Warren T. Reich, membro doKennedy Institute of Ethics, em 1978, é menos ousada que as de Potter(1970; 1971), haja visto que Reich (1978) não advoga um estatuto

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    32/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições 31

    cientí co para Bioética, se contentando em apresentá-la como um

    estudo sistemático. No entanto ele procura explicitar o caráter moral

    desse estudo, acrescentando-lhe o atributivovariedade metodológica.

    Ainda não fala de interdisciplinaridade como inerente a Bioética,

    mas apresenta-a como um cenário no qual esse estudo deverá se

    desenvolver. Intuitivamente Reich (1978) diferencia ética de moral e as

    reúne em Bioética. Essa de nição apareceu naEncyclopedia of Bioethics,

    nos seguintes termos: "Bioética é o estudo sistemático da conduta

    humana, no âmbito das ci ncias da vida e da saúde, examinada à luz

    de valores e de princípios éticos" (REICH, 1978, p.116), que depois foi

    revisada, em um artigo de 1995,‘The word bioethics: the struggle over

    its earlier meaning,para uma de nição mais de nitiva e usual entre os

    pesquisadores, compilada, inclusive na edição de 1995, daEnciclopédiade Bioética:

    Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais– incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas– das ci ncias da vida e atenção à saúde, utilizandouma variedade de metodologias éticas em um cenáriointerdisciplinar. âmbito das ci ncias da vida e da saúde,examinada à luz de valores e de princípios éticos(REICH, 1995, p.XXI).

    Evidentemente especista, ou, no mínimo, de um antropocentrismo

    radical, as de nições de Reich (1978, 1995) estão mais preocupadas

    com a eliminação do caráter epistemológico presente em Potter (1970;

    1971), ou seja, com a natureza de Bioética. A eliminação do caráter

    epistemológico (e sua substituição por uma re exão mais aberta) é

    apenas uma face do imperativo político com o qual Reich (1978, 1995)

    se depara: a vida acad mica. Essa vida acad mica está centrada nas

    subjetividades (ou nos egos) com os quais os moralistas se deparam, o

    que exige que seus discursos sejam direcionados para as suas condutas,

    fazendo dessa concepção de Bioética uma aproximação com a ética

    das virtudes, pois o foco é o caráter moral dos agentes.

    Outra aproximação da vida acad mica é a exig ncia da elaboração decertas sínteses intelectuais – uma in u ncia kantiana nas universidades,certamente, o que descamba para a visão enciclopedista. No entanto,

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    33/39Curso de Bioética2

    uma de nição enciclopédica não satisfaz a totalidade dos pesquisadores,em especial, porque novas questões e novos paradigmas aparecemconstantemente, desa ando as sínteses recém acabadas. Dentre osnovos desa os impostos à Enciclopédia estão aqueles abertos com após-modernidade, ou a revisão das éticas especistas.

    Definições de David Roy

    A de nição elaborada por David Roy, na verdade, faz parte de umatradição católica canadense de Bioética, revisionista da tradiçãoamericana, que envolve também nomes como Engelhardt (1991) eDurant (1995).

    Tal tradição, próxima da visão enciclopedista, também não tem apretensão de apresentar Bioética como uma ci ncia, mas como umestudo interdisciplinar , do mesmo modo que se mantém no horizonteda ética das virtudes, porque foca no caráter dos agentes.

    No entanto, diferente da visão de Reich (1978, 1995), ela acrescenta duaspropriedades essenciais à Bioética: a qualidade da interdisciplinaridade comoinerente à Bioética, o que não apareceu em Reich (1978, 1995), mas estava

    presente em Potter (1970; 1971), e o termoresponsável: a administraçãodeve ser responsável, que vai aparecer na de nição de 1988 de Potter.

    A máxima dessa tradição é que Bioética deve facilitar um consensoresponsável tornando a sobreviv ncia aceitável. Ou seja, mantém umfoco evidente no caráter dos agentes, mas assume perspectivas con-sequencialistas. No entanto seu consequencialismo é assumidamenteespecista, uma vez que, como Roy (1979) defendeu, Bioética deve es-tudar exatamente as condições exigidas para a administração da vidahumana. E por vida humana se compreende tanto o seu aspecto geral(a vida humana) quanto o seu aspecto particular (a pessoa humana).Ou seja, o que é importante nas elaborações de Bioética é a vida deuma determinada espécie.

    Na de nição de Roy (1979), esse especismo é justi cado graças àpreocupação com um rápido e complexo progresso do saberdastecnologias biomédicas. Assim cou a sua de nição:

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    34/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições 33

    A Bioética é o estudo interdisciplinar do conjuntodas condições exigidas para uma administraçãoresponsável da vida humana, ou da pessoa humana,tendo em vista os progressos rápidos e complexos dosaber e das tecnologias biomédicas (ROY, 1979, p.60).

    A essa justi cação Engelhardt (1991, p.19) acrescentou que Bioética“[...] funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumentopara a negociação pací ca das instituições morais”, ao que Durant(1995, p. 22) chamou de “[...] pesquisa de soluções para os con itos devalores no mundo da intervenção biomédica”. Ou seja, Bioética aparececomo uma mediação de con itos preocupada com a sobreviv ncia daespécie humana, o que é diferente de ser militante ou partidária doantiprogresso cientí co.

    Dessas de nições saíram praticamente todas as tradições de Bioéticacom a qual convivemos hoje, desde aquelas mais analíticas às maismoralistas ou religiosas, cujo resultado signi ca que quando usamoso termo Bioética, não estamos pronunciando um termo unívoco. Sãomuitas as tend ncias contemporâneas para essa área de re exão.No entanto elas t m em comum algumas áreas de atuação, maisconhecidas comotópicos de abrangência, dentre os quais destacamos:

    • Experi ncias com células-tronco;

    • Clonagem;

    • Transplante;

    • Aborto;

    • Eutanásia;

    • Mistanásia;

    • Ortotanásia;

    • Alimentos transg nicos;

    • Reprodução Humana Assistida;

    • Responsabilidade cientí ca;

    • Consentimento;

    • Justiça;

    • Autonomia;

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    35/39

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    36/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições 35

    vivos, especialmente os humanos. Ela se projetava entre a classeintelectual que via, nesse modelo de desenvolvimento cientí co, umrisco potencialmente danoso e que deveria ser controlado.

    Ela germina, portanto, no âmbito das preocupações éticas e cientí cas,

    mas eclode como uma necessidade social especialmente após oseventos ocorridos nos campos de concentração nazistas, poloneses eamericanos. Do mesmo modo, se mantém como necessidade porquesuspeitam-se, com sérias evid ncias, que as práticas que sustentaramas ci ncias naqueles experimentos não desapareceram do mundo. Elassão, ainda, uma realidade em muitos países, e não somente em paísesdistantes e empobrecidos.

    Além disso, novas questões surgem. Questões para as quais asregulamentações de condutas atuais, éticas, religiosas e jurídicaspodem não ter respostas. Surgem em velocidade e complexidadeque nos desa am a pensá-las, renovadamente, em novos e múltiplosparadigmas. E, mesmo assim, pode ser que não encontremos respostasa todos os seus desa os.

    Bioética é, talvez, o tipo de desa o às regulamentações de condutaque mais traz perguntas que respostas. A propriedade dialogal,multidisciplinar, não é apenas uma ferramenta metodológica dessasnarrativas, mas uma necessidade epistemológica, sem a qual nenhumacompet ncia cognitiva isolada (a religião sozinha, a ética sozinha, odireito sozinho) dará conta.

    RESUMO

    É importante não esquecer que Bioética não é um movimentohomog neo, mas diversi cado e legitimamente divergente. Sua origemse liga, especialmente, às preocupações com as consequ ncias e osmodelos de desenvolvimentos técnico-cientí cos contemporâneosque manipulam organismos vivos ou interferem na sua forma deorganização.

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    37/39Curso de Bioética6

    Essa preocupação é legitimada pela exposição de experimentoscientí cos que foram realizados e causaram muito mal aos seusparticipantes, apesar das conquistas para a humanidade decorrentedeles, como aqueles feitos pelos nazistas e que foram denunciados noTribunal de Nuremberg. Mas também pela medicalização da vida e sua

    consequente expansão do poder médico sobre a população.

    Também é importante notar que Bioética não é um movimento demão única. Ele envolve diversos sujeitos, individuais e coletivos, ereúne conquistas (e perdas) de muitas lutas sociais em favor de maiorcontrole social das pesquisas, mais acesso aos seus resultados e,principalmente, mais assist ncia com qualidade à saúde e necessidadessociais das populações mais carentes.

    Além disso, há também aqueles que defendem a importância dedefender a vida do planeta, incluindo nisso a defesa da espéciehumana ou não. É a pol mica em torno da questão do especismo, quetrataremos mais a fundo em outra unidade.

    Bioética não tem uma única de nição, mas várias, desde as maisdesesperadoras àquelas que acreditam que Bioética é a salvaçãoda ética. Em meio a esses extremos, muitas outras operam com amultidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade econvidam a todas as áreas a pensar as questões Bioéticas porque é umsaber necessário, mas inacabado.

    Quais são os diversos contextos que originaram Bioética?

    Qual é a condição de possibilidade para que a questãode fundo de todas as propostas de Bioética passem pelaanálise do argumento que coloca em pauta a preocupaçãoou não com o futuro do planeta e das espécies atuais,especialmente a humana?

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    38/39Unidade 1 | Bioética: genealogia e denições 37

    Apesar de a origem do termo Bioética nos remeter aotrabalho de Fritz Jahr, ainda no início do século XX, asde nições mais utilizadas de Bioética foram, certamente,as elaboradas por Van Rensselaer Potter, Warren T. Reiche David Roy. Isso porque, quando foi fundado em 1971 o

    Instituto Kennedy de Ética na Universidade de Georgetownpelo neonatologista André Hellegers, como o primeiroCentro Nacional para a Literatura de Bioética e primeiroprograma de pós-graduação em Bioética do mundo, estava-se assumindo uma tradição discursiva que ditaria as regrasconceituais do termo. Quais são essas de nições?

    Qual a diferença principal entre as concepções de FritzJahr, Van Rensselaer Potter, Warren T. Reich e David Roy?

    CAZUZA; FREJAT. R.Ideologia. Disponível em: . Acesso em: 26 dez. 2008.

    CLOTET, J.Bioética: Uma aproximação. Porto Alegre: EDPUCRS, 2003.

    CORTINA, A.Ética mínima. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

    DURANT, G.A Bioética: natureza, princípios, objetivos. São Paulo:Paulus, 1995.

    ENGELHARDT, H.T.Manuale di Etica. Milano: Il Sagiatore, 1991.

    JAHR, F. Bio Ethik. Eine Umschau über die ethichen Beziehung desMeschen zu Tier und P anze.Kosmos. Sturttgart, n.24, 1927. p.2.

    POTTER, V.R. Bioethics, the Science of Survive, 1970.Perspectives inBiology and Medicine. v.14, 1970, p.127-153.

    ______.Bioethics. Bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice Hall,1971.

    4

  • 8/15/2019 Bioética AULA 1

    39/39

    ______Global Bioethics. Building on the Leopold Legacy. East Lansing:Michigan State University Press, 1988.

    REICH, W.T.Encyclopedia of Bioethics. New York: Free Press-Macmillan,1978.

    ______.Encyclopedia of Bioethics. 2nd ed. New York; MacMillan, 1995.

    ROTHMAN, D.Strangers at the Bedside: a history of how law andbioethics transformed medical decision making. New York: BasicBooks, 1991.

    ROY, D. La biomédicine aujourd’hui et l’homme de demain. Point dedépart et diretion de la bioéthique.Le Suplément. n.128, 1979, p.59-75.