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Centralidade da Obra de Thompson na Rediscussão do Populismo Marco M. Pestana Caminhos da História, Vassouras, v. 7, Edição Especial, p. 131-140, 2011 131 A Centralidade da Obra de Thompson na Rediscussão do Populismo Marco M. Pestana Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFF (PPGH/UFF) e bolsista do CNPq. Professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) [email protected] Resumo: O artigo tem por objetivo discutir aspectos da recepção e assimilação da obra do historiador inglês Edward Palmer Thompson pelos historiadores brasileiros do trabalho. Para tal, será abordada a utilização de alguns dos conceitos de Thompson (como “experiência” e “domínio da lei”) por um grupo de historiadores que conduziram seus estudos de pós-graduação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A elucidação das formas pelas quais esses conceitos foram por eles apropriados se fará a partir da análise de sua intervenção coesa no debate sobre o conceito de “populismo”, a fim de apontar os avanços e limites da abordagem proposta pelo grupo de historiadores da Unicamp. Tal enfoque ganha especial relevância se considerarmos que o debate sobre o “populismo” foi retomado em fins da década de 1980 e se afirmou nos vinte anos subsequentes como objeto de uma das mais profícuas polêmicas da historiografia brasileira do trabalho, envolvendo historiadores das mais variadas orientações teóricas e políticas. Palavras-chave: Historiografia brasileira. Populismo. E.P. Thompson. Abstract: This article aims to discuss some aspects of the reception and assimilation of the work of English historian Edward Palmer Thompson by Brazilian labour historians. In order to accomplish that goal, it will focus on the use of some of Thompson’s concepts (such as “experience” and “rule of law”) by a group of historians who have conducted their post-graduation studies at the Universidade Federal de Campinas (Unicamp). Their appropriation of these ideas will be illustrated by the analysis of their cohesive intervention in the debate on the concept of “populism”, so that it becomes possible to evaluate the limitations and the gains in the selected Unicamp historians’ approach. Such focus becomes particularly relevant if we consider that the debate on “populism” was revived at the end of the 1980s and has asserted itself in the following twenty years as one of the most fruitful controversies in Brazilian labour historiography, engaging historians with many different theoretical and political standpoints. Keywords: Brazilain historiography. Populism. E.P. Thompson.

Centralidade Da Obra de Thompson na rediscussão do Populismo

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Aborda os elemementos presentes na proposta del historiador E. P. Thompson como "experiência" e "domínio da lei" para desenvolver o debate sobre op "populismo"

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  • Centralidade da Obra de Thompson na Rediscusso do PopulismoMarco M. Pestana

    Caminhos da Histria, Vassouras, v. 7, Edio Especial, p. 131-140, 2011131

    A Centralidade da Obra de Thompson na Rediscusso do Populismo

    Marco M. PestanaMestrando do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFF

    (PPGH/UFF) e bolsista do CNPq. Professor do Instituto Nacional de Educao de Surdos (INES)

    [email protected]

    Resumo: O artigo tem por objetivo discutir aspectos da recepo e assimilao da obra do historiador ingls Edward Palmer Thompson pelos historiadores brasileiros do trabalho. Para tal, ser abordada a utilizao de alguns dos conceitos de Thompson (como experincia e domnio da lei) por um grupo de historiadores que conduziram seus estudos de ps-graduao na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A elucidao das formas pelas quais esses conceitos foram por eles apropriados se far a partir da anlise de sua interveno coesa no debate sobre o conceito de populismo, a fim de apontar os avanos e limites da abordagem proposta pelo grupo de historiadores da Unicamp. Tal enfoque ganha especial relevncia se considerarmos que o debate sobre o populismo foi retomado em fins da dcada de 1980 e se afirmou nos vinte anos subsequentes como objeto de uma das mais profcuas polmicas da historiografia brasileira do trabalho, envolvendo historiadores das mais variadas orientaes tericas e polticas.

    Palavras-chave: Historiografia brasileira. Populismo. E.P. Thompson.

    Abstract: This article aims to discuss some aspects of the reception and assimilation of the work of English historian Edward Palmer Thompson by Brazilian labour historians. In order to accomplish that goal, it will focus on the use of some of Thompsons concepts (such as experience and rule of law) by a group of historians who have conducted their post-graduation studies at the Universidade Federal de Campinas (Unicamp). Their appropriation of these ideas will be illustrated by the analysis of their cohesive intervention in the debate on the concept of populism, so that it becomes possible to evaluate the limitations and the gains in the selected Unicamp historians approach. Such focus becomes particularly relevant if we consider that the debate on populism was revived at the end of the 1980s and has asserted itself in the following twenty years as one of the most fruitful controversies in Brazilian labour historiography, engaging historians with many different theoretical and political standpoints.

    Keywords: Brazilain historiography. Populism. E.P. Thompson.

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    Introduo

    Os balanos da trajetria da historiografia brasileira desde os anos 1980 tm sido unnimes em asseverar a influncia da obra do historiador ingls Edward Thompson sobre seus rumos nas ltimas trs dcadas. Se o impacto de suas pesquisas pode ser sentido em diversas reas de nossa historiografia, o mesmo foi particularmente forte na histria social do trabalho.

    Esse artigo tem por objetivo contribuir para a avaliao dessa recepo da obra thompsoniana pelos historiadores brasileiros do trabalho. Mais especificamente, se debrua sobre a forma como um grupo determinado de historiadores tem se utilizado de sua obra para intervir no debate, reavivado a partir da interveno de Angela de Castro Gomes1, acerca do conceito de populismo. O grupo, composto por Alexandre Fortes, Antonio Negro, Fernando da Silva, Hlio da Costa e Paulo Fontes, que teve como propulsor de sua colaborao intelectual a convivncia como discentes da Unicamp, tem se dedicado ao estudo sistemtico dos textos de Thompson2 e se valido de seus conceitos para intervir de forma homognea na querela historiogrfica mencionada. Para compreender o sentido de sua posio nessa contenda, tomar-se- como objeto prioritrio da anlise a coletnea Na luta por direitos3, que veio a lume em 1999, com textos desses autores. O recurso aos conceitos de Thompson para requalificar o populismo

    Para que se torne inteligvel, a apropriao dos conceitos de Thompson pelos historiadores selecionados precisa, necessariamente, partir de uma compreenso dos problemas e questionamentos que a motivaram. Nesse sentido, nota-se que quatro dos cinco artigos por eles assinados na coletnea Na luta por direitos se iniciam com balanos da produo pretrita acerca dos trabalhadores urbanos do pas, apontando suas insuficincias. O trecho abaixo, de Hlio da Costa, anuncia de forma sinttica o fulcro das abordagens que os autores pretendem superar:

    A partir da dcada de 60, a classe operria foi descoberta pela academia. (...) O ncleo central dessas anlises diz respeito noo de heteronomia da classe operria no ps-30, que aparece destituda de condies e de capacidade de formular projetos e estabelecer prticas de luta fora dos parmetros definidos pelo Estado4.

    1 GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005. A edio original da obra data de 1988.

    2 Evidncias disso so o grupo de estudos que os mencionados autores iniciaram em 1991 e a publicao de artigos dedicados anlise de aspectos da obra de Thompson por Alexandre Fortes e Antonio Negro. O grupo de estudos citado em FORTES, Alexandre. Mirades por toda a eternidade. A atualidade de E. P. Thompson. In: Tempo Social. Vol.18, no 1, So Paulo, julho de 2006. p.197. As referncias completas dos artigos mencionados podem ser consultadas na bibliografia listada ao final desse texto.

    3 FORTES, Alexandre [et al.]. Na luta por direitos. Estudos recentes em histria social do trabalho. Campinas: Unicamp, 1999.

    4 COSTA, Hlio da. Trabalhadores, sindicatos e suas lutas em So Paulo (1943-1953). In: FORTES, Alexandre [et al.]. Na luta por direitos. Campinas: Unicamp, 1999. p.89.

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    Ao complementar sua apresentao do problema enfrentado, Costa j nos permite antever o elemento do aparato thompsoniano que seria prioritariamente acionado para a superao do equvoco identificado, ao afirmar que a experincia concreta da classe operria ficou subsumida ideologia formal do populismo ou dos partidos de esquerda mais diretamente ligados a ela5.

    Em seu ensaio de polmica contra o althusserianismo, intitulado A misria da teoria, Thompson se props a superar o que enxergava como um modo idealista de pensamento, em que a subjetividade aparecia como mecanicamente determinada por fatores tidos como objetivos (em especial, a base econmica), acenando com a ideia de que haveria um termo ausente nessas formulaes. Essa lacuna, argumentou ento, poderia ser satisfatoriamente preenchida pelo conceito de experincia. Sobressai do conjunto do texto a compreenso da experincia como um elemento mediador entre o ser social e a conscincia social6. A experincia permitiria escapar s definies mecnicas do modo de interao do ser social com sua conscincia, na medida em que determinado tipo de insero nas relaes produtivas no implicaria, necessariamente, numa forma pr-determinada de conscincia. Ao contrrio, o elemento da experincia seria capaz de trazer tona a relevncia do desenvolvimento histrico especfico das sociedades, como um fator essencial para a justa compreenso dessa relao entre ser e conscincia7. De forma complementar, a experincia vista por Thompson como a vivncia de certas determinaes objetivas sobre o ser social, de acordo com certos valores e ideias, que esse apresenta no momento mesmo em que as experimenta. De acordo com essa segunda forma de enxergar o complexo relacional ser-conscincia-experincia, a conscincia entendida, tambm, como parte da prpria experincia8, isto , como um dos elementos que so experimentados pelos sujeitos sociais, e no mais apenas como um agente que atua post festum sobre esta.

    Em seu estudo sobre a classe trabalhadora inglesa, Thompson reafirmou sua compreenso de que as duas possibilidades de enxergar a relao dos trs elementos constituiriam um par complementar. Analisando a experincia (abarcando diversos aspectos da vida dos trabalhadores, como o trabalho, o lazer, o padro de consumo e as moradias9) que daria origem classe trabalhadora inglesa entendida como um agente social coletivo consciente de sua posio, de seus interesses e da oposio desses em relao aos interesses de outras classes, o autor constatou que somente a partir de um arcabouo anteriormente constitudo de valores e crenas, as mudanas decorrentes da Revoluo Industrial puderam ser vistas como uma experincia catastrfica 10.

    5 COSTA, Hlio da. Trabalhadores, sindicatos... Op. Cit.. p.91.

    6 THOMPSON, Edward P. A misria da teoria. Ou um planetrio de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p.182.

    7 As maneiras pelas quais qualquer gerao viva, em qualquer agora, manipula a experincia desafiam a previso e fogem a qualquer definio estreita da determinao. IDEM. Ibidem. p.189.

    8 Certamente no iremos supor que o ser est aqui, como uma materialidade grosseira da qual toda idealidade foi abstrada, e que a conscincia (como idealidade abstrata) est ali. Pois no podemos conceber nenhuma forma de ser social independentemente de seus conceitos e expectativas organizadores, nem poderia o ser social reproduzir-se por um nico dia sem o pensamento. IDEM. Ibidem. p.16.

    9 IDEM. A formao da classe operria inglesa. Vol.2. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

    10 IDEM. Ibidem. p.38.

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    Nos textos dos historiadores da Unicamp, o conceito thompsoniano de experincia aparece como ferramenta capaz de sustentar a crtica s interpretaes calcadas na noo de heteronomia. No plano sindical, o objetivo central foi demonstrar, com referncias s obras do cientista poltico Francisco Weffort, a improcedncia da interpretao de que as cpulas sindicais e partidrias comandariam, desde um ponto externo dinmica da base do movimento, os rumos tomados pelas instituies da classe. Suas pesquisas se concentraram em demonstrar a existncia de uma tradio de organizao em locais de trabalho no sindicalismo nacional, que teria sido decisiva na articulao dos movimentos paredistas no perodo entre 1945-64. Hlio da Costa sintetiza essa percepo ao afirmar que

    As organizaes nos locais de trabalho no foram um impulso ocasional ditado pela conjuntura do ps-guerra e reproduzido de maneira efmera em outros momentos. Elas fazem parte da experincia da classe trabalhadora desde as suas primeiras geraes e sobreviveram a formas diferenciadas de organizao sindical e partidria11.

    A partir dessa posio, os autores afirmam que os militantes comunistas e trabalhistas de base teriam uma vinculao com seus companheiros de trabalho to profunda quanto aquela que mantinham em relao aos partidos polticos de que eram membros. A consequncia direta dessa posio a afirmao de que a legitimidade conquistada por aqueles militantes perante o conjunto de suas categorias seria derivada fundamentalmente desse compartilhamento de experincias, em que as organizaes por locais de trabalho teriam papel fundamental, ao canalizar os descontentamentos e conflitos surgidos no ambiente de trabalho.

    Paulo Fontes, em seu estudo sobre a greve dos 400 mil, que unificou diversas categorias de trabalhadores paulistas em 1957, contribuiu para a composio deste quadro ao sustentar que os laos de solidariedade forjados na experincia comum, no interior das empresas e nos bairros operrios, e a ao de uma militncia poltico-sindical contriburam para o sucesso do movimento paredista12. Nessa formulao, a experincia dos trabalhadores tal como Thompson propusera no segundo volume de sua obra magna extrapola o espao da fbrica e das organizaes nos locais de trabalho, alcanando, tambm, os bairros em que os trabalhadores concentravam-se. Se, conforme fica explcito, a partilha de experincias nesses espaos vista como um fator decisivo para o sucesso de uma das principais greves do perodo aqui tratado, o autor vai alm, afirmando que a intensidade desses contatos variados era igualmente responsvel por fortalecer a posio das lideranas partidrias e sindicais em meio ao conjunto de trabalhadores13.

    A crtica dos historiadores da Unicamp s interpretaes que enxergam como baseadas na noo de heteronomia complementada pelo recurso a um segundo aspecto do pensamento de Thompson, que central para a sntese que produzem acerca da experincia

    11 COSTA, Hlio da. Trabalhadores, sindicatos... Op. Cit.. p.114.

    12 FONTES, Paulo. Centenas de estopins acesos ao mesmo tempo. A greve dos 400 mil, piquetes e a organizao dos trabalhadores em So Paulo (1957). In: FORTES, Alexandre [et al.]. Na luta... Op Cit. pp.168-169.

    13 IDEM. Ibidem. p.172.

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    dos trabalhadores brasileiros ao longo do perodo 1930-64, conforme fica expresso, por exemplo, no trecho a seguir:

    Se o desejo de cooptao levou diversos governos a estabelecerem relaes de reciprocidade com os trabalhadores, por outro lado sua legitimidade no dependia de operrios que esperassem do Estado o sol e a chuva. (...) os trabalhadores apropriaram-se das mensagens e discursos oficiais de maneira seletiva, de acordo com suas experincias e expectativas, operando deslocamentos em seus significados e propsitos originais. A experincia cotidianamente vivida nos locais de trabalho era o filtro pelo qual testavam a legitimidade de determinados princpios do iderios trabalhista. Ordenao jurdica da sociedade e legislao do trabalho no foram meras amarras diluidoras de sua ao, mas um elemento formador de sua cultura e experincias que ameaavam romper e ultrapassar a lgica de interdependncia entre governo e trabalhadores14 (itlico meu).

    Silva categrico ao afirmar a importncia dos elementos relativos lei e ao direito na experincia dos trabalhadores brasileiros ao longo do perodo populista, apontando que seu uso pelos trabalhadores teria ensejando choques e conquistas com a lgica poltica imposta pelo mecanismo de dominao vigente. Tambm nesse ponto o recurso ao arcabouo terico thompsoniano evidente, sendo o mesmo utilizado para superar equvocos que os historiadores da Unicamp enxergam nas interpretaes anteriores.

    Se tomarmos como exemplo as obras de Francisco Weffort, um dos interlocutores fundamentais dos historiadores da Unicamp, veremos que a legislao, enfocada especialmente a partir de sua dimenso sindical, emerge como um elemento decisivo para a produo e reproduo do atrelamento da classe trabalhadora nacional ao Estado e, portanto, s classes dominantes, a partir da progressiva acomodao dos militantes organizados em partidos polticos estrutura sindical.15. Sua anlise completada pela apreciao do decreto no 9.070, editado por Eurico Dutra, em 1946, que vigeu at o final do perodo em questo e limitou o exerccio do direito de greve16. Por fim, at mesmo a legislao trabalhista apontada como um fator a reforar a subordinao dos trabalhadores ao Estado, seja pela mediao da figura de Getlio Vargas como presidente, ou por uma relao mais direta com o aparato estatal (especialmente o Ministrio do Trabalho e a Justia do Trabalho), responsvel pela aplicao das disposies desta legislao17.

    14 SILVA, Fernando Teixeira da. Direitos, poltica e trabalho no Porto de Santos. In: FORTES, Alexandre [et al.]. Na luta... Op Cit. p.80.

    15 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945-64. In: Revista de Cultura Contempornea, ano 1, n. 1, julho/1978, pp.7-14 (1 parte); In: Revista de Cultura Contempornea, ano 1, n. 2, janeiro/1979, pp.3-12 (2 parte); In: Revista de Cultura e Poltica, So Paulo, ano 1, n. 1, agosto/1979, pp.11-18 (3 parte).

    16 IDEM. Ibidem. (3 parte).

    17 Apesar disso, Weffort reconhece que se tratou de um processo ambguo, na medida em que a construo da legislao trabalhista implicaria no reconhecimento da cidadania da massa trabalhadora. IDEM. O populismo na poltica brasileira. In: __________. O populismo na poltica brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. pp.82-83.

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    A perspectiva de Thompson , ento, reivindicada pelos historiadores da Unicamp para sustentar teoricamente a posio de que a mediao das relaes sociais pela forma jurdica possibilita conquistas significativas dos setores subalternos. Alexandre Fortes, no artigo intitulado O direito na obra de E. P. Thompson18, foi, dentre eles, quem melhor sintetizou a posio do historiador ingls em relao lei e ao direito. Tomando o item O domnio da lei, presente no livro Senhores e caadores, como central para sua argumentao, Fortes, assim como Thompson, parte da considerao da lei e do direito como instrumentos de dominao, para, em seguida, acompanhar as especificidades das formas de subordinao aliceradas nestes instrumentos em relao a outras, concluindo com a observao das mltiplas formas de luta e resistncia construdas pelos dominados a partir da institucionalidade jurdica e/ou com base em noes de justia e direitos. a nfase conferida s possibilidades de resistncia, bem como sua positivao, que afastam sua posio daquela sustentada por Weffort em seus trabalhos.

    Uma das consequncias mais diretas dessa tomada de posio terica a forma de se analisar o processo poltico brasileiro no perodo 1945-64, sintetizada por Fernando da Silva:

    A aspirao por direitos, a existncia de instituies como a Justia do Trabalho e a interveno pessoal de autoridades governamentais, e do prprio presidente da Repblica, tornaram-se instrumentos eficazes para subordinar o poder privado ao domnio da lei19.

    A conceituao desse processo como de subordinao do patronato ao domnio da lei invertendo a proposio de Weffort , pela ao conjunta dos trabalhadores e do Estado (numa relao mediada pelas lideranas sindicais, especialmente os trabalhistas), no impede que Silva, buscando seguir os passos do historiador ingls, reconhea as contradies presentes em seu bojo. O mecanismo de mediao jurdica das relaes sociais teria, ento, cumprido o papel de garantir uma hegemonia de classe, sem, no entanto, suprimir os conflitos existentes20.

    interessante notar que essa utilizao da noo de domnio da lei s possvel a partir de uma inverso do modo como Thompson enxergou o processo de sua construo na histria inglesa. Thompson bastante claro ao afirmar que, na Inglaterra, a forma legal se afirma como instrumento de proteo das liberdades individuais (com destaque para a propriedade) contra a ao do Estado absolutista. No sculo XVIII, quando assume a posio de lcus primordial de expresso das relaes entre as classes , tambm, por conta de seu uso pela fidalguia para multiplicao de seu prprio poder hegemnico21. certo, tambm, que os dominados encontraram possibilidades de luta nesse campo,

    18 FORTES, Alexandre. O direito na obra de E. P. Thompson. In: Histria Social. no 2, Campinas, 1995. pp.89-111.

    19 SILVA, Fernando Teixeira da. Direitos, poltica... Op. Cit.. p.62.

    20 IDEM. Ibidem. p.64.

    21 THOMPSON, Edward P. Senhores e caadores: a origem da lei negra. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. pp.353-355.

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    mas isso decorreu, em grande medida, do papel central do universo legal naquela forma especfica de dominao. Na transposio da categoria para a realidade brasileira pelos trabalhos aqui escrutinados, o domnio da lei adquire sentido diametralmente oposto, sendo concebido como arma dos trabalhadores contra o patronato.

    Na coletnea abordada, o autor a encarar mais incisivamente a materializao na atuao judicial dessa pressuposio terica Paulo Fontes, ao afirmar que o primeiro embate legal a ser travado pelos movimentos grevistas deveria ser em torno do reconhecimento de sua legalidade (em funo do carter restritivo do decreto 9.070, j mencionado). No exemplo comentado pelo autor, sobressai o modo como a primeira instncia a deliberar acerca desse tema estava sujeita s presses dos ocupantes dos mais altos cargos do Executivo, na medida em que o Ministro do Trabalho, Parsfal Barroso, foi o responsvel direto pela demisso do Delegado Regional do Trabalho que se recusara a declarar ilegais os primeiros movimentos da greve dos 400 mil22.

    Entretanto, seguindo a linha de seus companheiros, a preocupao fundamental do autor foi demonstrar a existncia de contradies na atuao da Justia, o que possibilitaria aos trabalhadores auferir alguns ganhos. Examinando o processo de arbitramento judicial do mesmo conflito, Fontes localizou deliberaes distintas por parte de diferentes instncias da Justia, conforme explicitou no trecho citado abaixo:

    suas divergncias [do TRT paulista] com o TST nesse episdio sugerem um papel bem mais complexo da Justia do Trabalho nesse perodo do que o de mero aparelho estatal a servio das classes dominantes, como caracterizado por grande parte da literatura23.

    Sem dvida, sua caracterizao da Justia traz a marca das preocupaes de Thompson, especialmente no que diz respeito necessidade de compreend-la como um campo de conflitos, e no mera ferramenta de imposio das vontades dos dominantes. Por outro lado, no deixa de ser significativo o fato de que, no caso aludido por Fontes, a instncia superior, o TST, tenha arbitrado em favor dos patres, anulando a deciso do TRT, mais favorvel aos trabalhadores.

    Concluso: o termo ausente

    Retomando a problemtica apresentada na introduo a esse texto, isso , a insero dos historiadores da Unicamp no debate sobre o populismo, afigura-se como essencial abrir essas consideraes finais afirmando que seus esforos no se dirigiram no sentido de descarta-lo, tendo se direcionado para uma tentativa de refinamento do conceito. Nesse intento, a partir da percepo da permeabilidade da lei, da justia e do direito a conflitos, toda a trajetria da classe trabalhadora urbana do Brasil no perodo entre 1945 e 1964 por eles sintetizada como uma luta pela obteno de direitos e o ttulo da coletnea, Na

    22 FONTES, Paulo. Centenas de estopins... Op. Cit.. p.154.

    23 IDEM. Ibidem. p.177 (nota 48).

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    luta por direitos, no , em absoluto, ocasional e, indo alm, pela prpria afirmao da forma jurdica como instncia reguladora das relaes sociais. Dessa interpretao, desponta a percepo de que o centro do papel histrico da classe trabalhadora seria a construo de uma cidadania efetiva no Brasil, o que teve profundas consequncias em sua assimilao de outros aspectos do pensamento thompsoniano.

    Com efeito, esse pano de fundo interpretativo ajuda a elucidar as razes pelas quais um dos elementos centrais nos trabalhos de Thompson est ausente das formulaes dos historiadores da Unicamp: a conscincia de classe. Para o historiador ingls, nas condies histricas do capitalismo, o conceito de classe s poderia ser utilizado para se referir a um coletivo dotado de explcita conscincia de classe24. Entretanto, apesar de abundarem, nos trabalhos examinados, as referncias percepo dos trabalhadores brasileiros do perodo populista como uma classe25, no h qualquer discusso explcita acerca de sua conscincia enquanto tal. Em muitos casos, os autores parecem evitar deliberadamente o emprego da expresso, recorrendo a diversas outras como substitutivas, tais como identidade coletiva, cultura poltica, esprito classista26, etc.

    A principal razo para essas opes parece residir no fato de que uma discusso aprofundada a partir de um ponto de vista compatvel com a obra de Thompson acerca da conscincia de classe dos trabalhadores urbanos brasileiros do perodo do populismo traria baila uma srie de questes (como a natureza do Estado e a relao entre a ideologia dos dominantes e os trabalhadores) que poderiam apontar dificuldades na sustentao terica da convivncia dos conceitos de classe e cidadania, que aliceram a posio dos historiadores da Unicamp. Resulta da o no enfrentamento de uma das questes fundamentais na abordagem de Weffort: a noo de que o impacto da ideologia dominante no perodo o nacionalismo em suas mltiplas variantes sobre os trabalhadores teria sido um dos fatores fundamentais para seu atrelamento ao Estado, entravando sua manifestao poltica como uma classe dotada de conscincia27. Na ausncia de uma resposta direta e articulada a essa proposio fundamental, o debate acerca do conceito de populismo no pode ser dado como encerrado.

    24 THOMPSON, Edward P. Algumas observaes sobre classe e falsa conscincia. In: _________. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, Unicamp, 2002. pp.272-273.

    25 Cf., por exemplo, FORTES, Alexandre. Revendo a legalizao... Op. Cit.. pp.22-23.; COSTA, Hlio da. Trabalhadores, sindicatos... Op. Cit.. pp.91; 113.; FONTES, Paulo. Centenas de estopins... Op. Cit.. pp.147-148.

    26 FORTES, Alexandre. Revendo a legalizao... Op. Cit.. pp.23; 37.; COSTA, Hlio da. Trabalhadores, sindicatos... Op. Cit.. p.115.

    27 Cf. WEFFORT, Francisco. Poltica de massas. In: __________. O populismo... Op. Cit. pp.37-40.

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    Referncias

    FORTES, Alexandre. O direito na obra de E. P. Thompson. In: Histria Social. no 2, Campinas, 1995. pp.89-111.

    ________________. Mirades por toda a eternidade. A atualidade de E. P. Thompson. In: Tempo Social. Vol.18, no 1, So Paulo, julho de 2006. pp.197-215.________________. et. al. Na luta por direitos. Estudos recentes em histria social do trabalho. Campinas: Unicamp, 1999.

    GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

    NEGRO, Antonio Luigi. Imperfeita ou refeita? O debate sobre o fazer-se da classe trabalhadora inglesa. In: Revista Brasileira de Histria. Vol.16, no 31/32, So Paulo, 1996. pp.40-61.

    THOMPSON, Edward P. A misria da teoria. Ou um planetrio de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

    ___________________. Senhores e caadores: a origem da lei negra. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

    ___________________. A formao da classe operria inglesa. Vol.2. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

    ___________________. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, Unicamp, 2002.

    WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945-64. In: Revista de Cultura Contempornea, ano 1, n. 1, julho/1978, pp.7-14 (1 parte); In: Revista de Cultura Contempornea, ano 1, n. 2, janeiro/1979, pp.3-12 (2 parte); In: Revista de Cultura e Poltica, So Paulo, ano 1, n. 1, agosto/1979, pp.11-18 (3 parte).

    _________________. O populismo na poltica brasileira. In: ________________. O populismo na poltica brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.