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COMPOSITORES HOMENAGEADOS

Egberto GismontiMarisa Rezende

– ANAIS –V FMCB

20 A 24 DE MARÇO DE 2018

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EDITORIAL

COORDENAÇÃO GERAL

Dra. Thais Lopes Nicolau

EXECUÇÃO E CAPTAÇÃO

Sintonize Produtora Cultural

DIREÇÃO ARTÍSTICA

Dra. Thais Lopes Nicolau

DIREÇÃO EXECUTIVA

Douglas Lopes Nicolau

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO

Fernanda Marcondes

Gisele Bueno

Hudson Valverde

Izabelle Alvares

Larissa Gaspar

Maria Teresa Mazetto

Wellington Andreoli

Willian Quennehen

FINANCEIRO

Conceição Lopes Colombini

EDITORAÇÃO

Dr. Guilherme Sauerbronn

DIAGRAMAÇÃO

Izabelle Alvares

COMITÊ CIENTÍFICO

Dra. Cristina Gerling (UFRGS/RS)

Dr. Daniel Luis Barreiro (UFU/MG)

Dr. Fernando Rocha (UFMG/MG)

Dr. Ivan Vilela (USP/SP)

Dr. Liduino Pitombeira (UFRJ/RJ)

Dr. Pedro Huff (UFPE/PE)

Dr. Luiz Costa - Lima Neto (UNIRIO/RJ)

Dra. Thaís Nicolau (Coordenadora) / (UDESC/SC)

Dr. Zé Alexandre Carvalho (Unicamp/SP)

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Festival de Música Contemporânea Brasileira (FMCB)

(VOLUME V. : 2018, Campinas, SP)

Anais [recurso eletrônico]: Egberto Gismonti e Marisa Rezende | V Festival de Música Contemporânea Brasileira | 20 a 24 de março, Campinas, SP, FMCB, 2018

Modo de acesso: disponível onlineISSN: 2526-5784

CATALOGAÇÃO: BIBLIOTECA NACIONAL

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................................................07

EGBERTO GISMONTI & MARISA REZENDE

CONCERTO DE ABERTURA V FESTIVAL DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA 2018

Quarteto Radamés Gnattali & convidados ..............................................................................................................08

CONCERTO DE ENCERRAMENTO V FESTIVAL DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA 2018

Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, Regência: Victor Hugo Toro ......................................10

EGBERTO GISMONTIAPRESENTAÇÕES ARTÍSTICAS

O BRASIL DE EGBERTO GISMONTI: PEÇAS PARA VIOLÃO SOLO

Eddy Andrade da Silva ..............................................................................................................................................................12

COMUNICAÇÕES ORAIS

DO ENSAIO AO PALCO: A “GRAMÁTICA” DE MÁRIO DE ANDRADE EM EGBERTO GISMONTI

Renato Sousa Porto Gilioli ...................................................................................................................................................13

MESA-REDONDA

AS ESCOLHAS ESTÉTICO-MUSICAIS DE EGBERTO GISMONTI A PARTIR DA PEÇA “FORRÓ”: BRASILIDADE, VANGUARDA E SACRALIDADE

Paulo Tiné .......................................................................................................................................................................................32

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MARISA REZENDEAPRESENTAÇÕES ARTÍSTICAS

PONDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO INTERPRETATIVA

DA PEÇA CONTRASTES DE MARISA REZENDE

Tatiana Dumas Macedo e Nadge Breide ...................................................................................................................49

COMUNICAÇÕES ORAIS

MUTAÇÕES E CONTRASTES EM DUAS PEÇAS

PARA PIANO DE MARISA REZENDE

Tadeu Moraes Taffarello ........................................................................................................................................................57

RESSONÂNCIAS E MIRAGEM EM CASA E MYTHS & VISIONS:

DOIS RECITAIS DE PIANO/PERFORMANCES INTERDISCIPLINARES

Késia Decoté .................................................................................................................................................................................69

RECITAL COMENTADO

RECITAL COMENTADO – MARISA REZENDE

Quinteto Pierrot & convidados .......................................................................................................................................79

VÍDEOS ..........................................................................................................................................................................................80

CRÉDITOS ..................................................................................................................................................................................81

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APRESENTAÇÃO

No ano em que completou cinco anos de história, o Festival de Música Contemporânea Bra-sileira homenageou Egberto Gismonti e Marisa Rezende, dois grandes nomes da música brasileira. A quinta edição do FMCB foi realizada de 20 a 24 de março e teve como palco de suas atividades a sala Umuarama do Instituto CPFL, o Instituto de Artes da Unicamp, o Teatro Municipal José de Castro Mendes e o Centro Infantil Boldrini. Ao todo, o Festival contou com 133 participantes de 13 universidades, incluindo músicos convidados e pesquisadores, com uma programação que incluiu bate-papo, recitais comentados e concerto de encerramento com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas.

Durante os cinco dias consecutivos de atividades gratuitas, o festival contou com a presen-ça de mais de duas mil pessoas e alcançou mais de 30 mil em mídias digitais. Na programação diversa e aberta ao público, foram realizados recitais, mesas-redondas e concertos que visitaram as obras dos homenageados, uma mostra musical no Centro Infantil Boldrini e apresentações de trabalhos acadêmicos com análises sobre suas peças e estilos, unindo a pesquisa à performance.

O Festival é um encontro internacional de estudiosos da música brasileira, que a cada edi-ção homenageia dois compositores brasileiros vivos que se destacam no cenário musical do país. Uma proposta que promove um maior reconhecimento a quem se dedica à produção musical, além de difundir as contribuições virtuosas de seus trabalhos.

O Concerto de Abertura ocorreu no dia 21 de março no Instituto CPFL, com um bate--papo com os homenageados. Na sequência, dois recitais comentados por eles foram realiza-dos nos dias 22 e 23 de março no Teatro Municipal de Campinas “José de Castro Mendes”. Estas atividades serviram como uma oportunidade de ouvi-los falar sobre suas próprias obras. O bate-papo permitiu ao público fazer perguntas diretamente aos compositores e os recitais comentados tornaram possível saber mais sobre o processo de criação, além de trazer detalhes sobre as influências que os inspiraram.

No Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foram realizadas as atividades relacionadas às pesquisas acadêmicas, com apresentação dos projetos selecionados pelo Comitê Científico. Dos 50 trabalhos inscritos no V FMCB, foram selecionados 14 projetos voltados às obras de Egberto Gismonti e de Marisa Rezende.

Outra atividade de destaque foi a mesa-redonda em que convidados e especialistas deba-teram sobre os homenageados, passando pela vida e obra deles. Nesta atividade, o público pode interagir com os especialistas e fazer perguntas sobre os temas discutidos.

No concerto de encerramento, no dia 24 de março, no Teatro Municipal “José de Castro Mendes”, com a participação especial da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, os ho-menageados retornaram à cena e falaram brevemente sobre as obras que foram executadas no concerto, com um preâmbulo conceitual.

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CONCERTO DE ABERTURAV FESTIVAL DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

Homenagem a Marisa Rezende

Preludiando Marisa Rezende (1944 - )

Hugo Pilger, violoncelo

Vórtice Marisa Rezende (1944 - )

Quarteto Radamés GnattaliCarla Rincón, violino

Andréia Carizzi, violinoMarco Catto, viola

Hugo Pilger, violoncelo

Cismas Marisa Rezende (1944 - )

Quarteto Radamés GnattaliCarla Rincón, violino

Andréia Carizzi, violinoMarco Catto, viola

Hugo Pilger, violoncelo

Thais Nicolau, piano

Homenagem a Egberto Gismonti

Lundu Egberto Gismonti (1963 - )

Dança dos escravos Egberto Gismonti (1963 - )

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Ciclo (2017) Marisa Rezende (1944 - )

Cássia Carrascoza, flautaLuís Afonso Montanha, clarinete

Martin Tuksa, violinoLars Hoefs, violonceloLídia Bazarian, piano

Ginga (1994) Marisa Rezende (1944 - )

Cássia Carrascoza, flautaLuís Afonso Montanha, clarinete

Martin Tuksa, violinoLars Hoefs, violoncelo

Donizetti Fonseca, trombone Lídia Bazarian, pianoFlávia Vieira, regente

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CONCERTO DE ENCERRAMENTO ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL DE CAMPINAS V FESTIVAL DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

Obras de Marisa Rezende

Fragmentos Marisa Rezende (1944 - )

Orquestra Sinfônica Municipal de CampinasRegente: Victor Hugo Toro

Vereda Marisa Rezende (1944 - )

Orquestra Sinfônica Municipal de CampinasRegente: Victor Hugo Toro

Obras de Egberto Gismonti

Sertão Veredas Egberto Gismonti (1944 - )

Orquestra Sinfônica Municipal de CampinasRegente: Victor Hugo Toro

Strawa no Sertão Egberto Gismonti (1944 - )

Orquestra Sinfônica Municipal de CampinasRegente: Victor Hugo Toro

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APRESENTAÇÕES ARTÍSTICAS

O BRASIL DE EGBERTO GISMONTI: PEÇAS PARA VIOLÃO SOLO

Eddy Andrade da Silva

Universidade Estadual de Campinas – [email protected]

Choro (1981) Egberto Gismonti (1947)

Eddy Andrade, Violão Solo

Maracatu (1978) Egberto Gismonti (1947)

Eddy Andrade, Violão Solo

Frevo (1978) Egberto Gismonti (1947)

Eddy Andrade, Violão Solo

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COMUNICAÇÕES ORAIS

DO ENSAIO AO PALCO: A “GRAMÁTICA” MUSICAL DE MÁRIO DE ANDRADE EM EGBERTO GISMONTI

Renato de Sousa Porto Gilioli

Consultoria Legislativa – Câmara dos Deputados – [email protected]; [email protected]

Resumo: Este trabalho averigua em que aspectos o processo composicional e a per-formance de Egberto Gismonti se fundamentam na “gramática” musical brasileira defendida por Mário de Andrade. Efetua-se análise teórica das propostas de Mário de Andrade, cotejando-as com entrevista e elementos da criação artística de Egberto Gismonti. Constata-se que Gismonti utiliza sistematicamente, entre outros, notas re-batidas na descendente, síncopas, elementos da modinha, intervalos de terça (e sexta) e preocupa-se com uma orquestração brasileira.

Palavras-chave: Estética da mestiçagem. “Gramática” musical brasileira. Egberto Gis-monti. Mário de Andrade. Composição e performance.

From Rehearsal to the Stage: Mario de Andrade’s Musical “Grammar” in Egberto Gismonti’s Music

Abstract: This work analyzes in what extent Egberto Gismonti’s composicional pro-cess and performance are underpinned in the Brazilian musical “grammar” advocated by [Brazilian musicologist] Mário de Andrade. It proceeds to an examination of Mário de Andrade’s proposals, which are collated with an Egberto Gismonti’ interview and aspects of his artistic creation. As a result, the study points out that Gismonti sistema-tically uses, for instance, descending rebounded notes, syncopes, modinha’s structures, third intervals (and its inversions), and “Brazilian orchestration”.

Keywords: Aesthetics of metizaje (mixture). Brazilian musical “gramar”. Egberto Gismonti. Mário de Andrade. Composition and performance.

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1. INTRODUÇÃO

A literatura musical de Mário de Andrade vai muito além de seu próprio tempo. Parte subs-tancial de suas pesquisas destinou-se a recolher elementos que possibilitassem a constituição de uma “gramática” da música brasileira, aplicável à elaboração musical erudita por parte dos compositores pátrios. É comum observar a influência dos seus trabalhos de coleta folclórica e de reflexão sobre esse material em artistas que tiveram contato pessoal com o musicólogo ou que foram seus contemporâneos.

O objetivo deste trabalho é analisar ideias e elementos da obra de Egberto Gismonti para verificar em que aspectos seu processo composicional e sua criação artística se fundamentam nos esforços de Mário de Andrade em estabelecer e sistematizar uma “gramática” musical bra-sileira. Essa “gramática” pode ser identificada no conjunto da literatura musical andradiana, com especial ênfase no Ensaio sobre a música brasileira, em “O samba rural paulista” (Aspectos da música brasileira) e em Melodias registradas por meios não mecânicos (ALVARENGA, 1946), cuja “Coleção Mário de Andrade” representava a continuidade do esforço do Ensaio sobre a música brasileira.

2. ESTÉTICA DA MESTIÇAGEM EM MÁRIO DE ANDRADE

No Ensaio, Mário de Andrade considerava que a arte nacionalista de qualquer país “em que a cultura aparece de emprestado” (ANDRADE, 1972 [1928]: 43), passaria por três fases até o desen-volvimento pleno. A primeira seria da tese nacional, a segunda do sentimento nacional e a terceira da inconsciência nacional. Só na última arte culta e sentimento individual do povo coincidiriam. Na sua época, o Brasil estaria na fase “primitivista” ainda, quando são estabelecidos os parâmetros teóricos da música erudita nacionalista e na qual o próprio musicólogo teria papel relevante, como missio-nário capaz de contribuir para a construção da cultura (musical, mas não somente) da Nação.

Como estaria a “Música Brasileira” hoje? Qual “fase” que Mário de Andrade identificaria no atual desenvolvimento de nossa arte erudita? No Ensaio sobre a música brasileira, o musicólogo considerava a incorporação da música contemporânea na arte nacional como algo provável. No entanto, salientava que essa contribuição não faria parte do processo de dar tintas mais nacio-nalistas à “Música Brasileira”: apenas seria mais uma ponte entre o “tipicamente brasileiro” e a música “universal”. Defendia que não bastava adotar elementos da música contemporânea para o Brasil ter expressão musical moderna: continuaria sendo necessário buscar e aplicar nossa “gra-mática” musical específica.

Gismonti segue tais princípios. Embora tenha estudado na França música contemporânea e utilize elementos dela em suas composições, não abandona (muito pelo contrário) o princípio de se basear sistematicamente em uma “gramática” musical brasileira. O uso das notas rebatidas, a preferência por melodias descendentes e a adoção da síncopa revela um esforço permanente e sistemático, na criação artística e na improvisação, de colocar em prática uma expressão artística caracteristicamente nacional.

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A “gramática” da literatura de Mário de Andrade tem como substrato a noção de miscigena-ção estética, a qual é um dos fundamentos dos processos artísticos — tanto na composição quan-to na performance — de Gismonti. Para efetuar a análise ora proposta, serão utilizadas partituras presentes no disco ALMA (1987, “Frevo”, “Loro” e “Maracatu”), bem como transcrições livres de fragmentos de “Amor proibido” e “Amazônia I” e “Zabumba” (CASA DAS ANDORINHAS, 1992), de “7 anéis” (INFÂNCIA, 1990), de “A pedrinha cai” e “Strawa no sertão” (MEETING POINT, 1997), de “Lundu” (DANÇA DOS ESCRAVOS, 1989), além de referências a “Música de sobrevivência” (MEETING POINT, 1997). Textos dos encartes e depoimento dado a este Autor em 2004 (não publicado até o presente) são outras fontes de pesquisa.

Esses materiais são cotejados com as reflexões de Mário de Andrade sobre sua concepção de o que seria fazer música brasileira segundo um padrão nacionalista, capaz de criar uma expres-são musical erudita própria e distinta das escolas advindas de outros países e culturas. Trata-se de apontar como foram aplicados parâmetros melódicos e rítmicos “tipicamente brasileiros” – segundo o musicólogo – em Gismonti.

Mário de Andrade mantinha-se o mais atualizado possível com os debates existentes nas ciências humanas, embora estas ainda fossem um campo científico embrionário no Brasil e sua apropriação fosse fundamentalmente a de um autodidata. Um dos autores que fazia parte de seu regime de leituras era Gilberto Freyre, que defendia o mito das “três raças” (portugueses, africa-nos e ameríndios) e sua progressiva amálgama, a qual formaria um povo cuja expressão plena tornaria orgânica a identidade nacional.

Desde cedo, Mário de Andrade aproximava-se desse horizonte mental: “Nós temos de constituir nossa sub-raça brasileira, com caracteres, tendências, arte e tradição nossas, se quiser-mos viver dentro da América e pesarmos no concerto das nações” (ANDRADE, 1923: 3). A tese é similar a outras existentes desde Euclides da Cunha, segundo a qual se estaria formando uma “sub-raça” no País, produto miscigenado das diferentes raças — não apenas no plano biológico, mas também no cultural.

Apesar de se fundamentarem em teorias de pronunciado teor racista, conforme diversos trabalhos científicos mais recentes já apontaram, autores como Gilberto Freyre e Euclides da Cunha inscreviam-se no rol das discussões consideradas mais “avançadas” da época. Mesmo Mário de Andrade tendo superado diversas limitações das ciências humanas de seu tempo, cer-tos paradigmas eram ainda demasiadamente arraigados para que fosse possível esboçar rupturas nesse aspecto.

Entre seus questionamentos, Mário de Andrade denunciou o preconceito reinante contra a cultura oral, criticou a repressão policial às manifestações da religiosidade afro, reclamou da exo-tização do brasileiro e de sua música, e estabeleceu a importante distinção entre tradições móveis (orais) e imóveis (registradas por uma escrita normatizada). Adiantou discussões relevantes sobre música erudita e popular (o trânsito entre esses saberes aparece, por exemplo, nas discussões acerca das modinhas) e tematizou o debate oralidade versus escrita (ressaltando a importância

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da preservação e registro das manifestações derivadas da primeira). Contudo, fazia a apologia da “música artística” (erudita) como manifestação mais “sofisticada”, “elevada”, “civilizada” de cultura. Hierarquizava, mesmo que em menor grau do que contemporâneos seus, as produções culturais dos diversos povos presentes no território brasileiro.

Em 1923, discursando aos formandos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, tratava, como “tipos” racialmente diferenciados, “bandeirantes”, “seringueiros” (indígenas) e “gaú-chos” (afro-ameríndios). Em comum, eram todos não brancos e eram, em grande medida, adapta-ções regionais do “sertanejo” de Euclides da Cunha e de outros autores ideologicamente próximos.

Embora reconhecesse um “problema” racial no Brasil, Mário, mesmo no fim de sua vida, supunha não existir uma “linha de cor” no país: “Não é possível negar: havia um problema negro na sociedade brasileira tanto da Colônia como do Império, muito embora não atingisse a infâmia duma linha de cor. Não era linha, era tinha” (ANDRADE, 1999 [1944]:225). Considerava que, du-rante a Colônia e o Império, era possível observar suposta “condescendência” e “maleabilidade” dos senhores para com seus escravos. É, indiscutivelmente, o mito do “bom senhor”: ainda que essa narrativa fosse destinada a preservar as relações sociais de poder e do regime, o modernista acreditava que a violência das relações sociorraciais era “atenuada” no Brasil. A suposta facilidade de o senhor “se intimizar e relacionar com o povo” vai ao encontro da ideia de Gilberto Freyre de que o português teria se tropicalizado em função do clima e desenvolvido tolerância presumivel-mente maior para com a escravaria, “aceitando” inclusive a miscigenação:

Cândido Inácio da Silva [autor de modinhas] era de qualquer forma uma aristocracia. E um colonial também. Dizem que para a aristocracia é mais fácil […] se intimizar e relacionar com o povo do que o capitalismo burguês. Aos coloniais que eram senhores, já Antonil aconselhava condescendência com os brinquedos tradicionais da gente escrava. Cândido Inácio da Silva, com seu lundu, parece representar essa maleabilidade maior do nobre e essa condescendência astuta do senhor colonial (ANDRADE, 1999: 218-219).

Outra limitação típica do pensamento da época, também presente em Mário de Andra-de, é a construção ideológica do “mito das três raças” formadoras da nacionalidade brasileira. Para Mário, a música erudita brasileira deveria amalgamar características das “três raças” e formar uma expressão artística nova, verdadeiramente nacional. Esta concepção é tributária da “receita” de nation building pregada desde o século XIX na Europa: povo racialmente uniforme, território unificado e língua comum. Poderíamos acrescentar: uma música, uma pintura etc., enfim, uma cultura nacional.

Mário de Andrade tentava aplicar essa concepção de construção de nação ao Brasil: as “três raças” não deviam aparecer isoladas na música e na cultura, mas misturadas em uma entidade, forma, expressão comum. Por isso, protestava contra quem tentava construir simbolicamente o “caráter brasileiro” exclusivamente a partir de “indianismos”, “negrismos” ou “portuguesismos” (ou “europeísmos”): “nós não temos que reagir contra Portugal, temos é de não nos importarmos

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com ele. […] E reagir contra isso endeusando bororo ou banto é cair num unilateralismo tão anti-brasileiro como a lírica de Glauco Velásquez” (ANDRADE, 1972: 28).

A condição de uniformidade racial necessária à constituição de uma Nação já estaria su-postamente dada no Brasil em função da miscigenação biológica, que teria formado (ou estaria formando) entre nós uma “sub-raça”, produto novo das “três” originárias: “[…] somos uma gente de sub-raça, indeterminada ainda, mas que se afasta da gente lusitana — a ela se aparentando já mais pelo aspecto geral humano que por uma descendência tradicional e hereditária de pais e filhos” (ANDRADE, 1923: 3).

Se as bases “étnicas” do Brasil já estavam supostamente estabelecidas, faltava ainda uma cultura nacional:

Até há pouco a música artística brasileira viveu divorciada da nossa entidade racial. Isso tinha mesmo que suceder. A nação brasileira é anterior à nossa raça. A própria música po-pular da Monarquia não apresenta uma fusão satisfatória. Os elementos que a vinham formando se lembravam das bandas de além, muito puros ainda. Eram portugueses e africa-nos. Inda não eram brasileiros não. […] Era fatal: os artistas duma raça indecisa se tornaram indecisos que nem ela (ANDRADE, 1972: 13; grifos do original).

Mário de Andrade apresentava-se como missionário, elaborador de axiomas para que os artistas criassem uma escola musical nacionalista. Para o musicólogo, até então teriam ocorrido tentativas esporádicas e isoladas (Alberto Nepomuceno, Alexandre Levy e outros), mas os com-positores ainda não fundamentavam seus processos de criação na amálgama sistemática das três matrizes culturais (“raciais”) do brasileiro. É nesse sentido que criticava os ditos nacionalismos “equivocados”, que valorizavam as tradições de apenas uma das “raças” formadoras do Brasil.

Afirmações isoladas das culturas das matrizes das “raças” formadoras do Brasil representa-riam um passado extinto ou em extinção:

Na festa brasileira colonial, ou já nacional do Primeiro Império, o branco e o negro eram compartimentos estanques na realização das suas artes. Abundavam desde muito, desde sempre, as músicas negras, as danças negras com cantorias negras, os reis fictícios negros com seus cerimoniais de muita cantoria e dançados, e provavelmente magias também […]. Porém nada disso se amalgamava na festa do branco […]. A prova mais impressionante dessa não fusão do folclore negro no do branco […] está [em] […] Memórias de um sargento de milícias” (ANDRADE, 1999: 223).

Por essa razão, “o maxixe dos salões de dança e o samba, usado apenas pelas classes mais ínfimas do interior do país, não podem representar o anseio coletivo da alma nacional: seria isso a dignificação do caipira e do dançarino, […] mui honrados, […] mas que não sintetizam todo o Brasil” (ANDRADE, 1923: 6).

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Mário dedicou-se a fazer amplo levantamento do folclore brasileiro para compor um pano-rama das manifestações musicais tipicamente nacionais. Analisou criticamente esses materiais para estabelecer uma “gramática” de nossa música, com a finalidade de alimentar as criações dos compositores brasileiros. Somente a partir dessa “gramática” seria possível criar uma escola na qual os procedimentos composicionais dos artistas brasileiros se tornassem genuinamente nacionais, representando expressão característica da “sub-raça” brasileira. A isso, denominamos estética da miscigenação.

Mesmo com as limitações ideológicas e de horizonte mental de sua época, o autor de Ma-cunaíma percebeu um fenômeno essencial em suas pesquisas de campo: havia, no Brasil, mani-festações artístico-culturais comuns, com variações regionais. Certas melodias, temas e ritmos eram bastante similares em regiões distantes do País, a ponto de serem identificáveis como pro-duto dos mesmos saberes coletivos populares.

No encarte de MEETING POINT (1997), encontra-se notável reescrita dessas concepções de Mário de Andrade no texto explicativo que acompanha a faixa “Música de sobrevivência”, ela-borada a partir de duas canções folclóricas — uma das quais a melodia “Pagode”, registrada por Mário de Andrade em Cataguases (MG) e constante no 1º volume de Melodias registradas por meios não mecânicos (ALVARENGA, 1946: 43):

Ficção musical que conta uma das histórias brasileiras. Revela o encontro dos estrangeiros entre si e com os índios, desde o descobrimento do Brasil aos dias atuais. Na abertura, a música mostra o desentendimento entre os estrangeiros (Europeus e Africanos) e os Índios brasileiros. Pouco a pouco todos encontram sentimentos comuns e decidem des-cobrir e autorrevelar-se ao solo brasileiro. Nesta viagem eles espalham e semeiam suas lembranças, maneiras e costumes que se misturam durante os últimos 500 anos para se transformar não somente na cultura brasileira, mas na prova de que esta mistura (miscige-nação) juntou, cruzou, uniu, entremeou, confundiu-se, aliviou e possibilitou a nossa sobre-vivência pacífica (GISMONTI, 1997).

A Introdução da música consiste exatamente na chegada e no “desentendimento” entre as três matrizes “raciais”. Ocorre mistura progressiva dos três estoques até surgir a “cultura brasileira”, mistura-miscigenação (evocando o caráter cultural-racial de Mário de Andrade) que teria possi-bilitado “nossa sobrevivência pacífica” (nossa “tolerância”, “democracia conciliatória”, em palavras do musicólogo).

O texto é profundamente convergente com as análises de Mário de Andrade mencionadas. Gismonti esteve “lendo o Mário [de Andrade] que nem maluco nesses últimos 15, 20 anos” (Gis-monti, 2004). Antes de seu contato com a literatura musical do modernista (e particularmente na década de 1970), as músicas de Egberto não utilizavam sistematicamente elementos da “gramá-tica” musical brasileira proposta por Mário, sendo uma combinação de elementos do mainstream da MPB brasileira com música erudita (contemporânea), tintas de jazz, rock e outros gêneros.

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Na melodia “Pagode”, Mário de Andrade apresentava a seguinte observação:

Quanto a estes arpejos, eles são bem frequentes na melódica instrumental rural do Brasil. Se observe os arpejamentos de Cananéa (p. 37) de Fortaleza (p. 42) da quadrilha de Marajó (p. 44), da “Vacariana” gaúcha (p. 46) do meu Ensaio [sobre a música brasileira]. Infelizmente esses documentos não coincidem bem como o “Pagode” no arabesco do arpejo. Outros exemplos conheço porém, nordestinos, em que surge exatamente a fórmula presente (Má-rio de Andrade in ALVARENGA, 1946: 44).

“Pagode” pode ter sido escolhida por Gismonti para estruturar a composição “Música de sobrevivência” por Mário de Andrade identificar que a fórmula de arpejos de “Pagode” era similar à de arpejos no folclore de diversas regiões do país. O estilo representaria a ideia de miscigenação racial-cultural das manifestações populares brasileiras. A uniformidade dos arpejos derivada da miscigenação é antecedida, na Introdução de “Música de Sobrevivência”, por melodias “desen-contradas”, trombones “conflitantes”, ritmos irregulares, os quais representam o período em que as matrizes do povo brasileiro ainda não teriam se miscigenado. A “desordem” inicial é substituída pela “ordem” e “harmonia” durante a maior parte da música, sugerindo a convivência harmônica dos regionalismos brasileiros. Em comum, está implícito o propósito de sobrevivência (título) da música brasileira, da Nação, de seu povo e de sua cultura.

No mesmo disco, há outra faixa baseada diretamente na melodia “A pedrinha vai” da “Co-leção Mário de Andrade” (Alvarenga, 1946). Trata-se da faixa “A pedrinha cai”, assim descrita no encarte de MEETING POINT: “canto popular dos carregadores de pedras (pedreiros) que traba-lhavam nas regiões sul e sudeste do Brasil em construções diversas (estradas, canais etc.) a partir do séc. XVIII” (1997).

“A pedrinha cai” abriga característica que Mário de Andrade identificou como padrão da estética nacionalista miscigenada: a melodia vai “caindo”, com notas em sequência descendente do agudo para o grave. Das duas versões coletadas por Mário em Melodias registradas por meios não mecânicos, Egberto utiliza a nº II do ponto de vista melódico e aplica o recurso da alternância Solo-Coro indicada no nº I (ao utilizar cordas e metais, além de alturas diferentes, delimita bem as partes “solo” e a “coro”).

A diferença principal é a mudança de compasso binário (presente na coleta original de Má-rio) para quaternário (Egberto) e a substituição das semínimas, colcheias e semicolcheias por tercinas de colcheias. A divisão em semicolcheias mantém-se no piano. O ritmo é produzido, nos primeiros compassos, com as cordas dando o primeiro tempo e um xilofone ou similar tocando a segunda nota, em contratempo.

A Coleção Mário de Andrade presente em Melodias… (ALVARENGA, 1946) é continuidade do esforço realizado no Ensaio (ANDRADE, 1972), como várias vezes fica explicitado nas notas das melodias coletadas. A opção de Gismonti pela melodia da versão II de “A pedrinha vai” (Má-rio) pode ter sido orientada pelas discussões do Ensaio, pois uma das constatações de Mário

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de Andrade é a frequência de melodias folclóricas que preferem utilizar intervalos próximos (ANDRADE, 1972: 46-49).

Na versão II, quase todos intervalos não excedem a terças, salvo um único de quinta no úl-timo compasso. Simultaneamente, a opção pelo arranjo orquestral, imitando a alternância entre solista e coro, também pode ter sido orientada por leituras tais como “O samba rural paulista” (ANDRADE, 1975), reflexão que aponta o canto responsorial como uma das características cen-trais do samba rural. A escolha da versão II por Gismonti pode, também, ter sido influenciada por Mário considerá-la mais rica melodicamente.

Na entrevista com Gismonti, o compositor salientou a leitura e o apreço pelo álbum Melo-dias registradas por meios não mecânicos, a ponto de levar o multi-instrumentista a adquirir cópia (manuscrita/datilografada) do “boneco” do segundo volume de músicas prometido por Oneyda Alvarenga na introdução à obra:

Folclore, como diria Mário de Andrade [é, sobretudo, uma boa ideia]. E eu o conheço mui-to, facilitado inclusive pelas Secretarias de Cultura, quando eu lá cheguei, há 20 anos atrás, com o Melodias registradas por meios não mecânicos (do qual foram feitos 500 volumes, só). É prometido um segundo [volume] pelo Mário, Oneyda [Alvarenga] etc.: “Esse lançamento é comemorativo da Secretaria etc… e o segundo”, diz Mário, “está por vir”. E, passados anos depois de eu ver esse troço, apareceu nas minhas mãos […]. Um dia eu fui à Secretaria [da Cultura de São Paulo] e tive uma conversa com não me lembro quem […]. Eu acabei dizen-do que tinha o livro [o primeiro volume] […] Eu disse para o(a) Secretário(a) à época: “tenho uma encadernação única”:

Melo-

dias resgist-

radas por meios nã-

o-mecân-

icos

É genial isso! Risos… Você tem um livro desse quilate […] parece o Livro das ignorãça do Manel [Manoel de Barros]… risos… Então, por isso eu saí lá do almoxarifado com 600 pá-ginas, que foram fotocopiadas, uma pequena parte manuscrita, e outra datilografada pela ‘Manuela’, como o Mário chamava a maquininha de escrever dele. Eu reconheço porque há uns 3 ou 4 caracteres que “trepam”. Então é ela mesmo… (GISMONTI, 2004).

A relevância do álbum e do que viria a ser sua continuação fica bastante evidente, sugerindo que Egberto os adotou como fonte vital para sua criação artística, colocando em prática o plano que Mário idealizara décadas antes, de que as coletas deveriam servir para orientar o processo composicional dos artistas brasileiros.

Egberto Gismonti ressaltou, na ocasião: “minha música está cada vez mais afunilada: minha música agora tem 2% de improviso. Nos anos 70 tinha 10%. Agora tem 2%… Porque cada vez

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mais eu descubro que a palavra é a mesma” (GISMONTI, 2004). Embora não chame de “gra-mática”, Egberto usa o termo “palavra” (“cada vez mais eu descubro que a palavra é a mesma”), sugerindo a afirmação da existência de discurso/narrativa musical com padrões bem definidos. Essa narrativa não pode ser subvertida por improvisações desmesuradas: “conversar — eu estou conversando com você —; agora, tocando não: tocando é para a Música. E não é negócio de jazz, de ego-trip não! Não é nada disso” (GISMONTI, 2004). O artesanato (técnicas e modos de se trabalhar a matéria-prima som, na conceituação de Mário de Andrade) da música brasileira não permitiria criação individualista excessiva, com risco de se perder o caráter nacional das obras. As obras teriam como verdadeira finalidade a Música (e não o artista):

Quando Academia de dança (1974) ganhou Disco de Ouro, quando Trem caipira (1985) ga-nhou Disco de Ouro, eu dei uma balançada… Graças aos céus, eu sabia que não era eu: era a música, e eu não sou a música. A música é muito melhor do que eu. É claro… Se eu achar que eu sou música, vou virar Elvis Presley, Janis Joplin, Jimmy Hendrix… Aliás, o Tom Jobim falava essa frase completa, com mais nomes. Sentado lá numa churrascaria, dizem para ele: “Você acaba de ganhar pela segunda vez o prêmio de compositor mais executado do mundo!” Sabia disso? Isso aconteceu três vezes em 4 anos… E num dos anos que ele ga-nhou, foi quando Thriller, do Michael Jackson, fazia parte da lista… risos… Quer dizer: nem o Thriller foi mais ouvido do que as músicas do Tom… Aí o Tom dizia assim: “Não, você está enganado. Eu não! Eu não ganhei nada não! Ganhou aquela música, eu não!” E ele estava certo (GISMONTI, 2004).

A ideia de que a música estava acima do artista era muito presente em Mário. Em caso de extremo individualismo por parte do artista, “a obra de arte quase desaparece ante essa desmedi-da inflação e imposição do eu. […] São escravos da determinação contemporânea de que é preciso pesquisar […]. Hoje, o objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o artista. E não poderá haver maior engano” (ANDRADE, 1963: 32).

Se Egberto passou a considerar que o improviso não pode ser desmesurado, não se pode abandoná-lo para que se respeite a lógica da música folclórica: Mário descreve a improvisação como característica relevante do samba rural paulista e de outras manifestações. Entretanto, tra-zê-la para o cenário erudito da época do musicólogo talvez não fosse possível. Esse fenômeno pôde concretizar-se mais tarde com Gismonti.

Diferentemente de Mário, o multi-instrumentista não hierarquiza rigidamente erudito e não erudito. Para Mário, a música folclórica era entendida como mais “primitiva”, enquanto a erudita se-ria a única em que haveria, supostamente, “abstração” e “sofisticação”. Por sua vez, Gismonti salienta que o folclore mostra sua sofisticação exatamente por ser produzido por pessoas que não tiveram educação musical formal. Com isso, saber erudito e popular são valorizados por suas características intrínsecas, não sendo comparáveis, diferentemente da concepção da época do musicólogo.

Em suma, Egberto equilibra escola nacionalista, eruditismo, fonte folclórica e preservação da improvisação no processo composicional e performático. As partituras de ALMA (1987) indicam com

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precisão a melodia, mas somente as principais, pois nem todas as partes são transcritas. No entanto, há significativa liberdade ao acompanhamento da mão esquerda, aberta à improvisação (baseada em variações em sua performance). Especificamente em “Frevo”, tem-se “Improvisar quantas vezes queira”, estando o improviso não apenas no plano imaterial, mas também grafado na partitura.

Egberto afirma que, a partir da leitura do modernista, “foi levado a essa conclusão de que enquanto o folclore não se transforma numa grande ideia… não tem valia” (Gismonti, 2004). O único problema identificado implicitamente pelo multi-instrumentista reside no fato de que o saber popular não é reconhecido socialmente em seu valor. A necessidade de dar um tratamento de “régua e compasso” a esse saber (eruditizá-lo) advém unicamente da necessidade dessa valo-rização para a sociedade.

No Ensaio sobre a música brasileira, Mário identificou como problema a existência de poucos registros e álbuns das tradições populares e a ausência de parâmetros, contextualizações e refle-xões sobre esses parcos materiais:

Nós conhecemos algumas zonas. Sobretudo a carioca por causa do maxixe impresso e por causa da predominância expansiva da Corte sobre os Estados. Da Bahia também e do nordeste inda a gente conhece algumas coisas. E no geral por intermédio da Corte. Do resto: praticamente nada […]. Luciano Gallet está demonstrando já uma orientação menos regionalista e bem mais inteligente […] Melodias populares brasileiras (ed. Wehrs e Cia. Rio), porém os trabalhos dele são de ordem positivamente artística, requerendo do cantor e do acompanhador cultura que ultrapassa a meia-força. E requer o mesmo dos ouvintes. Se muitos desses trabalhos são magníficos e se a obra folclórica de L. Gallet enriquece a produção artística nacional, é incontestável que não apresenta possibilidade de expansão e suficiência de documentos pra se tornar crítica e prática. Do que estamos carecendo imediatamente é dum harmonizador simples mas crítico também, capaz de se cingir à manifestação popular e representá-la com integridade e eficiência (ANDRADE, 1972: 21).

O Ensaio propunha que se cumprissem ao menos duas tarefas: grafar com exatidão maior as canções (evitando o que era interpretado como “deformações” urbanizadas do folclore) e ca-talogar os principais processos e regras de composição utilizados na arte popular. Ao detectar elementos em comum no folclore musical pelo País, o musicólogo logo concluía por seu “cará-ter nacional generalizado” (ANDRADE, 1972: 24), expressão cultural da “sub-raça” miscigenada brasileira: “A música popular brasileira é a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação da nossa raça até agora” (ibidem).

Alertava os compositores de que a síncopa caracteristicamente negra não seria a única ex-pressão do nacionalismo musical brasileiro. Rejeitava, assim, a predominância da matriz “racial” africana sobre as demais do “povo brasileiro”: “o artista não deve ser nem exclusivista nem uni-lateral. Se a gente aceita como um brasileiro só o excessivo característico cai num exotismo que é exótico até para nós […]. O característico excessivo é defeituoso apenas quando virado em nor-ma única de criação ou crítica” (ANDRADE, 1972: 27). Lembrava que a síncopa apareceria tam-

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bém em outras “raças”, não apenas entre os negros, destacando a ocorrência do fenômeno na música portuguesa.

No entanto, Mário nem sequer se questionava se a própria “síncopa portuguesa” seria, ela própria, de origem africana, influência da secular escravaria negra de Lisboa, de Évora, de outras grandes cidades e da região sul do país (TINHORÃO, 1988). Mesmo que não pudesse obter res-posta em função dos dados de sua época, nem sequer pensou em hipótese que contrariasse seu constructo do mito das “três raças” e da estética da miscigenação cultural delas. Sem a “síncopa portuguesa”, talvez ficasse difícil caracterizar a força da matriz “racial” portuguesa na miscigenada música brasileira.

Seguindo os passos de Mário de Andrade, a matriz portuguesa aparece em diversos mo-mentos em Egberto, consolidando a miscigenação cultural brasileira em seu processo composi-cional e performático. Além de utilizar fórmulas das modinhas, há títulos autoexplicativos, como “Memória e fado” (DANÇA DOS ESCRAVOS, 1988). Em sentido similar, Gismonti considera que os repentistas brasileiros se originaram nos “bobos da corte que atravessaram o Atlântico” (GISMONTI, 2004), leitura que pretende reforçar a relevância da matriz folclórica europeia para a formação da cultura brasileira.

Essa noção é tributária do desejo de Mário de Andrade buscar matrizes europeias relevantes na cultura popular brasileira, sem o que não seria viável construir ideologicamente uma estética da miscigenação para o País. Se deixarmos de lado a “síncopa portuguesa” de Mário de Andra-de, sobra quase que somente a “modinha” como influência significativa da Europa no constructo teórico-prático de sua estética da miscigenação. No entanto, até mesmo a modinha já se tinha transformando tanto no contexto brasileiro novecentista que mais se aproximava de manifesta-ções culturais negras do que dos fragmentos de europeísmo sobreviventes na cultura nacional.

Tanto isso ocorreu que o próprio Mário reconhecia o “desnivelamento” da modinha (apro-priação desta forma, por ele considerada erudita, pelo “povo”) e a intensa circulação entre músicas europeia imperial e popular: “O que foi essa pandemia como valor musical? O maior mistifório de elementos desconexos. Influências de toda casta, vagos apelos raciais, algumas coisas boas, um poder de ruins e péssimas, plágios, adaptações, invenções adoráveis, apenas conjugados num ideal comum: a doçura” (ANDRADE, 1930: 5). O musicólogo “precisava” valorizar desproporcio-nalmente a matriz portuguesa como uma espécie de “coeficiente civilizacional” para a cultura brasileira adquirir status equiparado ao das culturas “avançadas” da Europa:

[…] é pela ponte lusitana que a nossa musicalidade se tradicionaliza e se justifica na cul-tura europeia. Isso é um bem vasto. É o que evita que a música brasileira se resuma à curiosidade esporádica e exótica do tamelang javanês, do canto achanti e outros atrativos deliciosos mas passageiros de exposição universal (ANDRADE, 1972: 29; os grifos não são do original).

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A diversidade de matrizes musicais e sua combinação, defendida pelo musicólogo, encon-tra-se também na obra de Egberto Gismonti. A variação de ritmos, formas, temas, construções melódicas se destacam em sua criação artística. No entanto, essa característica delineou-se des-de meados dos anos 1980, quando se aproximou da literatura musical de Mário de Andrade. Identificaremos a utilização dos vários aspectos da “gramática” musical andradiana em algumas das composições de Gismonti.

3. DO ENSAIO PARA O PALCO

Desde meados da década de 1980 — em especial em ALMA (1987), DANÇA DOS ESCRAVOS (1989), INFÂNCIA (1991), CASA DAS ANDORINHAS (1992) e MEETING POINT (1997) —, Egberto passa a utilizar de maneira sistemática o rebote de notas na melodia, preferencialmente descendente. Embora o rebote de notas já aparecesse ocasionalmente nos anos 1970, somente mais de dez anos mais tarde esse procedimento composicional tornou-se regular e cada vez mais intenso.

As notas rebatidas, principalmente descendentes, aparecem de forma bastante clara em “Loro” (ALMA, 1987), como nos compassos 4, 6, 8, 10, 14, 16, 18, 19 20, 23-28 e 31-36. Também se identifica, afora a fórmula de compasso (2/4, comum no folclore coletado por Mário), a utilização, nos compassos 2-9 e 16-19 da não acentuação do primeiro tempo de um compasso seguida de acentuação masculina no seguinte. Essas construções melódicas são características relevantes do que seria a “gramática” musical nacional: “As formas melódicas são mais difíceis de especificar que as rítmicas ou harmônicas, não tem dúvida. Mas existem porém e não é possível mais imagi-nar um compositor que não seja um erudito da arte dele” (ANDRADE, 1972: 44).

Um dos principais recursos das composições e da improvisação egbertiana é o rebote me-lódico, destacado como constância brasileira por Mário: “dessas progressões melódicas e arabes-cos torturados possuímos uma coleção vastíssima [que] emprega a simples gradação descenden-te com sons rebatidos […] Outra observação importante é que a nossa melódica afeiçoa as frases descendentes” (ANDRADE, 1972: 46-47).

Em “Maracatu” (ALMA, 1987), observa-se a proeminência da rítmica sincopada semicol-cheia-colcheia-semicolcheia na mão esquerda do piano. Ao mesmo tempo, a mão direita faz a marcação em colcheias, em conjunto que simula duas percussões afro fazendo a marcação rítmi-ca. Na mão esquerda, utilizam-se terças, com o compasso 10 em melodia descendente. O título (“Maracatu”) remete às tradições bantas. Acrescenta-se a isso a melodia, que apresenta quase todos os saltos intervalares em uma faixa que não excede terças (salvo um salto descendente de sexta no 6º compasso), havendo notas rebatidas também nos terceiro e quarto compassos.

Como já foi apontado anteriormente, Mário de Andrade evitava considerar a síncopa brasi-leira de origem exclusivamente negra: “é possível que a síncopa, mais provavelmente importada de Portugal que da África, tenha ajudado a formação da fantasia rítmica do brasileiro” (ANDRA-DE, 1972: 32). No entanto, a síncopa negra é profusamente descrita em “O samba rural paulista” e no Ensaio: na roda “Sambalelê” (ANDRADE, 1972: 85), nos batuques “Dança do caroço” e “Cará”

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(idem: 92), em fandangos (idem: 95, 96, 98), no coco “Vapor do seu Tertulino” (idem: 119), em “Toada” (idem: 133) e especialmente no Martelo “Esperança” (idem: 138) e no lundu “Gosto da negra” (idem: 143).

Embora as síncopas de “Maracatu” (E. Gismonti) sejam constantes (e não distribuídas em primeiro tempo sincopado e segundo em colcheias, como é o mais comum nas canções coleta-das por Mário), as colcheias da mão direita fazem o contraponto rítmico que evita que a fórmula sincopada se torne cansativa. Além disso, há uma parte B não transcrita na partitura, com melodia exclusiva na mão esquerda, lenta, acompanhada dos permanentes Fás sustenidos oitavados da mão direita, o que contribui para evitar um possível excesso de repetição das síncopas da parte A. Ainda sobre as síncopas:

Isso é uma riqueza com possibilidades enormes de aproveitamento. Se o compositor bra-sileiro pode empregar a síncopa, constância nossa, pode principalmente empregar movi-mentos melódicos aparentemente sincopados, porém desprovidos de acento, respeitosos da prosódia, ou musicalmente fantasistas, livres de remelexo maxixeiro, movimento enfim inteiramente pra fora do compasso ou do ritmo em que a peça vai (ANDRADE, 1972: 37).

Esse contraste entre acompanhamento rítmico e melodia “livre”, “fantasista” parece ter sido seguido por Egberto em “Maracatu”. Corresponde, talvez, ao conselho de Mário: “o que carece pois é que o músico artista assunte bem a realidade da execução popular e a desenvolva. Mais uma feita lembro Villa-Lobos. É principalmente na obra dele que a gente encontra já uma variedade maior de sincopada” (ANDRADE, 1972: 37).

A música “Zabumba” (CASA DAS ANDORINHAS, 1992) traz as notas rebatidas descen-dentes como um de seus recursos importantes, aparecendo nos compassos 15, 23, 24, 31, 36, 37, 40-43, 45-48 e 50-52. Os intervalos de terça ou menores são constantemente utilizados na melodia do violão. O baixo executa melodias, característica adiante analisada em outras obras de Gismonti e que é indicação presente na literatura musical de Mário de Andrade. Em “Zabumba”, destaca-se também o uso de escala nordestina, com a alteração da sétima maior para menor, o uso da quarta aumentada ao invés da justa (em todas as sequências de acordes do violão e nos compassos 23 e 37) e a alteração da sexta de maior para menor nos compassos 45 a 47. Pode-se notar, ainda, no compasso 27, o modelo da típica síncopa brasileira conforme Mário caracterizava.

O rebote descendente empregado por Gismonti reaparece novamente em “7 anéis” (IN-FÂNCIA, 1991), acrescido do relevante recurso de dobrar a melodia rebatida descendente com terças (em excerto intermediário da mesma música, com a inversão das terças, ou seja, com sex-tas). Essa constância é salientada no Ensaio (ANDRADE, 1972: 46-47). No geral, Mário observa que as terças são um dos intervalos mais regulares na melódica brasileira, seja em sons simultâ-neos (acordes) ou em consecutivos (melodias) (idem: 47-48). Seguindo essas sistematizações, Egberto as emprega em profusão. “7 anéis” também tem característica apontada em “O samba rural paulista”:

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Quanto a início e final das melodias, observa-se que, se no início delas a anacruse é sis-temática (…), os finais são predominantemente masculinos (…).Tais processos parecem derivar da coreografia. Com efeito, o início em arsis facilita o princípio da movimentação coreográfica, isto é, erguer o pé pra dar o passo pra frente ou arrastá-lo pra dar o passa pra trás. A terminação masculina, por sua vez, acentua o apoio no chão, deixando o dançador em estabilidade (ANDRADE, 1975: 215-216).

Essa ocorrência se repete em várias músicas de Gismonti. Em “7 anéis” há, nos compassos 17-24, um “requebrado” (ANDRADE, 1972: 47), com saltos intervalares construídos em sexta (in-versões das constantes terças da “gramática” musical brasileira).

O trecho imediatamente anterior ao retorno à parte A de “7 anéis” utiliza-se de três repeti-ções de um mesmo compasso seguido de um motivo diferente no seguinte. Essa estrutura segue modelo constatado em “O samba rural paulista”:

[…] a quadratura melódica ficou silabicamente preenchida por esta quadra textual:

Arêia, arêia, arêeiá,

Arêia, arêia, arêeiá,

Arêia, arêia, arêeiá,

Tão tirando arêia do mar!

Este processo de repetição dum verso três vezes pra de um dístico formar uma quadra é frequentíssimo no blus e espirituais (ANDRADE, 1975: 202).

Mário explica que o “areêiá” ajusta o verso à melodia, que tem proeminência sobre a palavra. Egberto faz comentário similar: “Acabei descobrindo que os bobos da corte que atravessaram o Atlântico transformaram-se nos nossos repentistas. Eles têm obrigações métricas com a melodia e com a palavra. […] por vezes a palavra não rima e não cabe — e eles ajeitam para rimar e algumas… soam bem!” (GISMONTI, 2004).

Em relação à harmonia, Mário considerava que “a música artística [erudita] não pode se restringir aos processos harmônicos populares, pobres por demais. Tem que ser um desenvolvi-mento erudito deles. Ora, esse desenvolvimento coincidirá fatalmente com a harmonia europeia” (ANDRADE, 1972: 49). A harmonia era um dos poucos elementos supostamente “universais” para o musicólogo: “muito menos que raciais, certos processos de harmonização são individu-ais” (idem: 50). Gismonti respeita a harmonia popular, mas acresce graus e efetua inversões que tornam mais complexos os acordes, eruditizando sobremaneira tanto as composições quanto a performance.

Em “Amor proibido” (CASA DAS ANDORINHAS, 1992), o início da melodia remete aos quatro primeiros compassos de uma modinha sem título da “Coleção Mário de Andrade” (ALVA-

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RENGA, 1946: 59). Basta mudar a fórmula de compasso — mas Mário lembra que algumas can-ções podem sofrer alteração, na tradição popular, entre quaternário e ternário (ANDRADE, 1972: 35) —, descer um semitom e acrescentar três notas à modinha citada para chegarmos à primeira frase de “Amor proibido”.

Em “Amor proibido”, há características melódicas das modinhas apontadas no Ensaio, so-bretudo notas rebatidas descendentes do violão na parte B (compasso 18-29). “A melódica das nossas modinhas […] é torturadíssima e isso é constância. Na cantiga praceana o brasileiro gosta dos saltos melódicos audaciosos de sétima, de oitava […] e até de nona” (ANDRADE, 1972: 45). Intervalos bastante “audaciosos” aparecem em “Amor proibido” nos compassos 6, 8, 9, 10, 18, 19, 24, 25, 35, 37, 38 e 39.

“Amor proibido” emprega baixos melódicos, com destaque para os compassos 15-19 (além de acompanhar o movimento melódico do violão do 4 ao 12), quando a função melódica do vio-loncelo fica bastante evidente. Mário assim se refere ao processo: “os contracantos e variações temáticas superpostas empregadas pelos nossos flautistas seresteiros, os baixos melódicos do violão nas modinhas, a maneira de variar a linha melódica em certas peças, tudo isso desenvol-vido pode produzir sistemas raciais de conceber a polifonia” (ANDRADE, 1972: 52; os grifos não são do original).

O musicólogo ainda acrescenta: “Esse baixo se manifesta às vezes como melodia completa e independente, apenas concordando harmonicamente com a melodia da vox principalis” (AN-DRADE, 1972: 53). O baixo executor da melodia (em tercinas), mesmo que com outros instru-mentos orquestrais, ocorre igualmente em “A pedrinha cai” (MEETING POINT, 1997).

“Amor proibido” não restringe a “gramática” musical brasileira à sincopa:

Se de fato agora que é período de formação devemos empregar com frequência e abuso o elemento direto fornecido pelo folclore, carece que a gente não esqueça que música artística não é fenômeno popular, porém desenvolvimento deste. O compositor tem pra empregar não só o sincopado rico que o populário fornece como pode tirar ilações disso. E nesse caso a síncopa do povo se tornará uma fonte de riqueza. […]

A síncopa é uma das constâncias, porém não é constante nem imprescindível não. Pos-suímos milietas de documentos folclóricos em que não tem nem sombra do sincopado (ANDRADE, 1972: 37-38).

Outro caso em que a síncopa não aparece é em “Lundu” (DANÇA DOS ESCRAVOS, 1989). Essa música (e “Alegrinho”, do mesmo disco, com fórmulas rítmica e melódica similares), utiliza processos rítmicos (e fórmulas de compasso) diferentes do 2/4 e da síncopa. O compasso 6/8, correspondente composto ao 2/4, é uma entre outras constantes, embora menos frequente, do folclore negro. No Ensaio, há fórmulas rítmicas baseadas em compassos compostos no canto infantil “Higiene” (ANDRADE, 1972: 80), no acalanto “João Cambuête” (idem: 82, transcrito em 2/4, mas que poderia ser grafado em 6/8), em “Jabirá” (idem: 91, que poderia ser escrito em 6/8),

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o canto religioso “Coração santo” (idem: 103), o coco “Rochedo, sinhá” (idem: 120), a toada “Pae Cajuê” (idem: 128), a o coco “Meu barco é veleiro” (idem: 129), a toada de violeiro “Toada” (idem: 133). Pode-se mencionado também o canto de despedida de candomblé banto “Adeus, adeus” coletado por Camargo Guarnieri (ALVARENGA, 1946: 169).

“Lundu”, de autoria de E. Gismonti, ainda se destaca pelas notas rebatidas presentes do com-passo 194 ao 206. Fórmula idêntica é encontrada, no Ensaio, na roda “Padre Francisco” (ANDRADE, 1972: 84, compassos 10, 12 e 13), no samba “Subi pelo tronco” (idem: 90, dois primeiros compassos), na dança dramática “As taieras” (idem: 101), no coco “Capim da lagoa” (idem: 108), em “Vapor de seu Tertulino” (idem: 119), nos “Coros de cocos” 1, 2 e 3 (idem: 125), no refrão “Gavião peneirou” (idem: 126), em “Tatu é caboclo do sul” (idem: 131) e no lundu “Ma Malia” (idem: 143-4).

Em “Amazônia I” (CASA DAS ANDORINHAS, 1992), tem-se rítmica bastante sincopada, com uma espécie de multiplicação por dois da chamada “síncopa portuguesa” (caracterizada no Ensaio como duas colcheias no primeiro tempo do 2/4 e uma síncopa formada de semicolcheia--colcheia-semicolcheia no segundo tempo). Se, por um lado, “Amazônia I” tem desdobramen-to da “síncopa portuguesa”, a melodia é dividida em tercinas, tornando-a idêntica à fórmula de compasso composto (a dualidade entre binário simples e composto aparece em várias melodias coletadas pelo musicólogo). Além disso, as notas rebatidas a preferência pela descendente e a presença de frequentes terças salienta a presença da “gramática” musical brasileira andradiana em Gismonti.

O movimento ‘Zabumba’ da suíte “Strawa no sertão” (MEETING POINT, 1997) tem títulos que respeitam sugestão do modernista:

A mim me repugnava que suítes nossas fossem chamadas de “Suíte Brasileira”. Por que não “Fandango”, palavra perfeitamente nacional. Por que não “Maracatu” pra outro de conjunto mais solene? Por que não “Congado” que tantas feitas perde o seu ritual de dança dramáti-ca para revestir a forma da música pura coreográfica da suíte […]. Imagine-se, por exemplo, uma Suíte: 1 - Ponteio […]; 2 – Cateretê […]; 3 – Coco […]; 4 – Moda ou Modinha […]; 5 – Cururu […]; 6 – Dobrado […] (ANDRADE, 1972: 68-69).

Egberto fez “ponte” com a matriz europeia ao brincar com presença fictícia de Igor Stra-winski no sertão brasileiro e nomeou um movimento como “Zabumba” que, mesmo não sendo forma musical, é iniciativa que satisfaria a caracterização da brasilidade para Mário. Por sua vez, Gismonti não demonstra preconceito para com o maxixe (ao contrário do modernista), pois o outro movimento da suíte leva exatamente esse título.

Se nos títulos o multi-instrumentista aproxima-se das sugestões do Ensaio, segue os pro-cedimentos composicionais indicados décadas antes pelo crítico. As síncopas, em instrumentos diferentes, são acompanhadas de semicolcheias em notas rebatidas e movimentos melódicos des-cendentes. A melodia mais aguda do movimento “Zabumba” utiliza-se, no início, de acentuação anacrúsica no primeiro compasso e acentuação forte na primeira nota do segundo, fórmula que

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se repete até o compasso seguinte. Notas rebatidas também aparecem em profusão, para além da utilização dos “ousados” intervalos de oitava, como o musicólogo observava em muitas modinhas.

Gismonti busca, ainda, múltiplos aspectos da “gramática” musical de Mário de Andrade na orquestração tipicamente brasileira. O Ensaio ressalta que os instrumentos europeus, como as cordas, não são limitação para se expressar o caráter musical brasileiro:

Numa fazenda de zona que permaneceu especificamente caipira, tive ocasião de escutar uma orquestrinha de instrumentos feitos pelos próprios colonos. Dominavam no solo um violino e um violoncelo… bem nacionais. Eram instrumentos toscos, não tem dúvida, mas possuindo uma timbração curiosa meia nasal meia rachada, cujo caráter é fisiologicamente brasileiro (ANDRADE, 1972: 55).

Observe-se a afinidade das considerações anteriores com o excerto a seguir:

Quando os meus filhos ficaram comigo e eu tinha turnês que me obrigavam a ficar 6, 7 meses fora do Brasil viajando que nem um louco, fazendo 120, 130 apresentações por ano no mundo, eu só tive uma opção: ficar com os meus filhos. Eu não podia não ficar com os meus filhos. Passei 3, 4 meses desnorteado e me dei conta do seguinte: eu tenho que ficar com os meus filhos. Essa é uma função feminina que o homem não conhece: ficar. Como eles [os filhos] não ficam comigo — eles ficam uma boa parte [do tempo] na escola —, o resto do tempo eu tenho que me ocupar de preparar a casa, preparar a comida para eles, estudar deveres. E aí me sobra um tempo muito grande em que eu posso estudar orquestração brasileira, coisa que eu não conhecia direito. E, por conta daquelas tantas pesquisas que eu fiz sobre rabeca, hoje eu conheço cordas como ninguém… Eu estou te falando sério isso: eu escrevo cordas de uma maneira brasileira — em que o arco, a maneira de pensar as ligaduras etc. — parte do rabequeiro.

[…] Não é a lógica europeia. As notas são as mesmas, mas o arco força a expressão. […] Então, por causa dos meus filhos, eu estudei uma coisa que eu não estudaria, porque eu tive que ficar em casa (GISMONTI, 2004).

É notável como os termos utilizados por Egberto remetem diretamente a Mário de Andrade. A busca de uma “orquestração brasileira” o levou a salientar, na concepção de suas obras, técni-cas de arco específicas para conferir “caráter” brasileiro a tais instrumentos. Não à toa o uso do violoncelo é valorizado nos arranjos do multi-instrumentista. “Amor proibido” utiliza violoncelos (dois) acompanhando o violão. O toque no instrumento não chega a ser idêntico ao “anasalado” das rabecas, mas claramente não aplica técnica erudita tradicional, na qual o arco percute com mais leveza as cordas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gimonti aplica os vários processos composicionais sugeridos como tipicamente brasilei-ros por Mário: notas rebatidas na descendente, síncopas, influência da modinha, utilização de

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intervalos de terça (e sexta) e preocupação com uma orquestração brasileira, entre outros. Essas são algumas das aplicações práticas que Egberto Gismonti faz do que chamamos de estética da miscigenação de Mário de Andrade.

REFERÊNCIAS:

ALMA. Egberto Gismonti (compositor e intérprete). Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1987. Suporte: CD.

ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias registradas por meios não mecânicos. 1º volume. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, Departamento de Cultura, Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Mu-nicipal, 1946.

ANDRADE, Mário de. O artista e o artesão. O baile das quatro artes. São Paulo: Martins, 1963 [texto original: 1943].

_____. Cândido Inácio da Silva e o lundu. Latin American Music Review, University of Texas, v. 20, n. 2, p. 215-233, 1999 [1944].

_____. Discurso pronunciado pelo distinto professor Mário de Andrade […] aos alunos que concluíram seus cursos em 1922, realizada a 10 do corrente, no Salão do Conservatório Dramáti-co e Musical […]. Correio Paulistano, São Paulo, 9 mar. 1923.

_____. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 2ª ed., 1972 [1928].

_____. O samba rural paulista. In: ______. Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins, 2ª ed., 1975, p. 143-231.

_____. Prefácio. In: Álbum de modinhas imperiais. São Paulo: I. Ghirato/L. G. Miranda, 1930.

CASA DAS ANDORINHAS. Egberto Gismonti (compositor e intérprete). Rio de Janeiro: EMI--Odeon, 1992. Suporte: CD.

DANÇA DOS ESCRAVOS. Egberto Gismonti (compositor e intérprete). Oslo: ECM, 1989. Su-porte: CD.

GISMONTI, Egberto. Entrevista de Egberto Gismonti a Renato S. P. Gilioli em 4 de novembro de 2004. São Paulo, mimeo. [texto inédito], 2004. 30 p.

INFÂNCIA. Egberto Gismonti (compositor e intérprete). Oslo: ECM, 1991. Suporte: CD.

MEETING POINT. Egberto Gismonti (compositor e intérprete). Vilna: ECM, 1997. Suporte: CD.

TINHORÃO, José Ramos. Os negros em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa, Portugal: Ca-minho, 1988 (Coleção Universitária, v. 81).

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NOTAS

1. Na verdade, é o 3º volume (o segundo músicas), pois o 2º é um catálogo ilustrado: “O plano total do Arquivo Folclórico compreende a publicação dos seguintes materiais: 1) Melodias regis-tradas por meios não mecânicos, colhidas pela Discoteca Pública Municipal e a ela doadas; 2) Objetos pertencentes ao Museu Folclórico da Discoteca Pública Municipal (catálogo ilustrado); 3) Transcrições gráficas das melodias que a Discoteca Pública Municipal registrou em discos, em vários Estados” (ALVARENGA, 1946: 5).

2. Ver o “Canto do Joazeiro” (ANDRADE, 1972: 105), a “Toada do Chico Sôrro” (idem: 134) e os fandangos “Algodão”, “De manhã”, “2 fandangos da madrugada”, “Que moça bonita”, “Não canto por cantá” e “Vamo dançá” (idem: 95-98). “Chula da cachaça” (idem: 107) guarda similaridades estruturais com “7 anéis”.

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MESA-REDONDA

AS ESCOLHAS ESTÉTICO-MUSICAIS DE EGBERTO GISMONTI A PARTIR DA PEÇA “FORRÓ”: BRASILIDADE, VANGUARDA E SACRALIDADE

Paulo Tiné

UNICAMP-IA [email protected]

Resumo: O presente artigo realiza uma análise da peça “Forró” do compositor bra-sileiro Egberto Gismonti, gravada pela primeira vez pelo conjunto Egberto Gismonti Group em 1993 e lançada no álbum “Música de Sobrevivência” pelo selo ECM records. A análise aqui apresentada foi realizada através de um cotejamento da versão fono-gráfica com o manuscrito do autor para quarteto de violões. Entretanto, a gravação é sempre tomada como última referência. Tal análise não ficou presa apenas ao assim chamado nível neutro a partir da tríplice divisão da semiologia. Também foi investiga-do o nível poiético, procurando remontar as escolhas estéticas do compositor a partir da adaptação dos eixos propostos por Heloísa Buarque de Holanda, característicos da produção poéticas das décadas de 1960 e 1970 no Brasil. Tais eixos, acredita-se, permanecem presentes na obra do compositor pelo viés do projeto nacional-popular do CPC da década de 1960, presente na carreira do autor pelo uso sistemático de elementos e gêneros da música brasileira em geral. Também presente em sua obra é o viés da vanguarda, assimilada pelos estudos do compositor em Paris e no Brasil no início da década de 1970, encontradas e situadas em diferentes obras e álbuns de Gismonti. Chega-se, por fim, a um dos desdobramentos da contracultura, a saber, o fenômeno das “novas religiões” e “nova era”. Considera-se que a poética musical de Egberto Gismonti permanece em estado de fricção dentre as três vertentes apontadas, mas que se amar-ram e se justificam através de um modo de apreensão pessoal do autor.

Palavras-chave: Egberto Gismonti; música instrumental brasileira; música popular; forró.

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The aesthetic and musical choices of Egberto Gismonti in “Forro”: Brazilianness, avant-garde and sacredness

Abstract: This paper presents an analysis of the piece “Forro” composed by Egberto Gismonti, first recorded by “Egberto Gismonti Group” in 1993 and released in the album “Música de Sobrevivência” by the label ECM Records. The analysis presented here was conducted through a comparison of the audio version with the author’s ma-nuscript for guitar quartet. However, the recording is always taken as the ultimate refe-rence. Such analysis was not made only to the so-called neutral level from the threefold division of semiotics. Also the poietic level is investigated, trying to reassemble the composer´s aesthetic choices from the adaptation of the three axes proposed by He-loisa Buarque de Holanda, characteristic of poetic production of the 1960s and 1970s in Brazil. I believe that these axes are presents in the work of the composer by the bias of the national-popular project CPC-1960s, present in his music by systematic use of elements and genres of Brazilian music in general. Others elements presented in his work are the avant garde procedures, probably assimilated by the composer’s studies in Paris and Brazil in the early 1970s. They are located in different works and Gismonti albums. Finally, is found one of the countercultural developments, namely the phe-nomenon of “new religions” and “new era”. It is considered that the musical poetics of Egberto Gismonti remains in a state of friction among the three aspects mentioned, but that are bound and justified by way of the author’s personal apprehension.

Keywords: Egberto Gismonti; brazilian instrumental music; popular music; forró.

1. INTRODUÇÃO

Há certa altura do filme “Pra Frente Brasil” (1982) de Roberto Farias, um importante retrato dos “anos de chumbo” da história do Brasil pós-AI51, cuja trilha musical é composta por Egberto Gismonti, há a seguinte fala entre os personagens guerrilheiros:

- Esse é o Ivan, gente boa, atira pra cacete. Era do VPR, teve no Vale da Ribeira2 e conseguiu escapar (...). Soube que o Zé Gomes foi apanhado? O Edgar foi metralhado num posto de polícia rodoviário! O Jaime, lembra do Jaime? Tá numa boa em Paris fumando maconha. Virou hippie e fica tocando uma flautinha o dia inteiro. (FARIAS, 1982: 1hs, 29 seg.)

Trata-se de uma fala significativa, a meu ver, da passagem do paradigma da luta armada que RIDENTI (2014) chamou de “Romantismo Revolucionário”, cuja produção artística estava relacionada ao nacional-popular, para o que poderíamos denominar por estética do “desbunde”, a partir da incorporação da contracultura no Brasil, apontada por HOLANDA (1980). A autora descreve,

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tendo como referência a produção poética brasileira do período, os paradigmas estéticos ligados ao CPC3, aos manifestos poéticos de vanguardas do final da década de 19504 e, por fim, aquilo que denominou por “desbunde”, a partir dos poetas da década seguinte, em parte desencantados com os projetos utópicos da esquerda e também com as estéticas de vanguarda5. Acredito, então, que tais parâmetros seriam úteis no entendimento das linhas que envolvem a produção do autor abordado. Em primeiro lugar porque muitos dos poetas citados pela autora eram também letris-tas da então chamada MPB tropicalista e pós-tropicalista como Torquato Neto, Jorge Mautner, Cacaso, entre outros. Além disso, pode-se imaginar que tais correntes poéticas ligadas ao CPC, à vanguarda e ao “desbunde” andavam par a par com as musicais da Canção de Protesto, o do Manifesto Música Viva de 19636 e o Tropicalismo.

A presença da contracultura que se deu, em parte via tropicalismo no Brasil, trouxe, enfim, a presença de outras culturas, fenômeno que NEEDLEMAN (2009) chamou de “novas religiões” em sua obra publicada pela primeira vez em 1970, ou seja, em plena contemporaneidade com os acontecimentos californianos do período, embora se trate, em alguns casos, de tradições por vezes anteriores ao cristianismo e judaísmo, as “velhas” religiões. Diz respeito, portanto, à adoção que parte da juventude ocidental realizou, entre as décadas de 1960 e 1970, de diversas tradições e costumes religiosos e espirituais provenientes principalmente do oriente, como do Budismo em suas diversas linhas, práticas de Yoga e Sufis apontadas pelo autor. NEEDLEMAN realizou uma pesquisa de campo dentro de diversas comunidades alternativas da Califórnia (EUA) se in-dagando o que levaria os jovens da época para tais experiências e práticas, e também questionan-do porque as religiões tradicionais ocidentais (cristã e judaica) não seriam mais suficientes para amparar as angústias do homem contemporâneo de então.7

Nesse contexto o filme oficial do “Monterey Pop Festival” de 1967 (PENNEBAKER, 1968) parece ser representativo desse conjunto de fatores quando, no número de encerramento do fes-tival, apresenta um concerto de música clássica da Índia (no caso, especificamente do norte do país)8 realizado pelo citarista Ravi Shankar acompanhado pela tabla de Zakir Russein e por uma tamboura e sua executante9. Enquanto a improvisação característica se desdobra, as imagens apresentadas são as do público do show, bastante heterogêneo, alguns dançando, outros rezan-do, outros ouvindo (Jimmy Hendrix entre eles), outros tocando ao mesmo tempo para, apenas ao final da performance, quando a música já está suficientemente ritmada, os closes do filme se darem sobre os músicos. É claro que o interesse ocidental por manifestações culturais como es-tas é muito anterior ao fenômeno da contracultura, como, por exemplo, se pode ver através dos trabalhos dos musicólogos Harold Powers (1928-2007) e Alain Danielou (1907-1994). Entretan-to, o que parece diferenciar o interesse desse período por tais fenômenos é o fato de tais mani-festações se tornarem, até certo ponto, cultura de massa, ou cultura alternativa ligada a modos de produção capitalista, quer dizer, difundida em discos, filmes, programas de rádio e TV.

Tal fenômeno se desdobra, mais tarde, segundo DUARTE (2010), naquilo que se denomi-nou NOVA ERA, denominação mais presente a partir da década de 1980. Embora não se possa deixar de ver uma mercantilização de tais manifestações, foi naquela década que uma série de

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livros foram editados no sentido de se ver uma expansão de tais “culturas alternativas”. Obras como “O Autoconhecimento Através da Música” de Peter Hamel, “Música e Psique” de Robert J. Stewart, “Música e Simbolismo” de Roger Cotte10, “O Tao da Música” e por fim “Música Transpes-soal”, ambas de Carlos Daniel FREGTAMAN (1991), ilustram a tendência. Essa última apresenta depoimentos do próprio Gismonti a partir daquilo que o compositor considerou experiências ímpares na sua formação: uma participação em um ritual no Alto Xingu durante a década de 1970, outra em Nova Deli na Índia e, por fim, uma terceira ligada à tradição afro-brasileira da Umbanda e os orixás de origem nagô já nas décadas seguintes. Ainda que se trate de culturas absoluta-mente diversas, tais experiências parecem ser bastante típicas da pós-modernidade11 com uma espécie de miscelânea espiritual.12

2.EGBERTO GISMONTI: BRASILIDADE, SACRALIDADE E VANGUARDA

Dentro desse contexto e, acredito, relacionando-se com tais paradigmas, a arte de Egberto Gismonti se desenvolve a partir do final da década de 1960 e adentrando os anos das décadas posteriores. Embora não haja uma linearidade na produção de Egberto dentre os paradigmas apresentados, no sentido de uma filiação ao nacional popular para uma subsequente adesão às estéticas de vanguarda que culminaria em uma postura criativa despojada e cujo elemento sa-grado se infiltra a partir das experiências citadas, creio que tais parâmetros se encontravam em estado de fricção, partindo do conceito aplicado por PIEDADE (2005), entre as musicalidades do autor. Em primeiro lugar há uma mudança no aspecto visual do compositor: do bigode e cabelo curto da década de 1960 aos cabelos cumpridos e touca que adotaria a partir do álbum que se-ria, a meu ver, o ponto de virada em sua carreira: o “Dança das Cabeças” (1976) em parceria com o percussionista Naná Vasconcellos. Ponto de virada, não por ser o primeiro álbum de Egberto gravado no exterior13, mas por ser realizado no pelo prestigioso selo alemão ECM Records, além de ganhar o prêmio Grammy de 1978 com este álbum.14

Como colocado, tal progressão não se dá de forma linear. O 1º LP de Gismonti (1969) apresenta, entre diversas referências musicais, seu “afrosamba” Salvador. Inspirado em Baden Po-well, ainda que não se tratasse de um exemplo modelo de procedimento “cepecista” devido ao caráter lírico amoroso de suas letras, os “afrosambas” traziam claramente as musicalidades afro--baianas, a temática baseada na mitologia da Umbanda e Candomblé e seus ritmos e o modalis-mo característico apontados em outros estudos (TINÉ, 2009). Mas é, sobretudo a partir de uma relação mais forte com o referencial de Mário de Andrade15 e da gravação de um álbum dedicado à obra de Heitor Villa Lobos (1985), além da adoção de ritmos e gêneros característicos da mú-sica brasileira (baião, maracatu, samba, etc.) que Egberto mais se aproxima do nacionalismo e do nacional-popular.

Em relação às estéticas de vanguarda, sabe-se que Egberto estudou com o serialista Jean Barraqué (1928-1973) e a professora Nadia Boulanger (1887-1979) em Paris na época em que era chefe da orquestra da cantora e atriz francesa Marie Laforet (1936) entre o final dos 1960 e início

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da década seguinte e, no Brasil, com outra compositora de vanguarda Esther Scliar (1926-1978). Não que a presença musical de tais formadores seja claramente perceptível na sua obra. Entre-tanto Egberto, ao longo da carreira, deixou entre seus álbuns, obras que incorporam estéticas de vanguarda em meio a discos com canções e música instrumental como “Dança das Sombras” e “Variações sobre um tema de Leo Brower” (1973), “Palácio das Pinturas” (1978) e “A Pedrinha Cai” (1998), para citar alguns exemplos. Chega a ser instigante o fato de o autor inserir tais peças em discos que, teoricamente, foram produzidos para a indústria fonográfica (ODEON e EMI-ODE-ON na década de 1970) que tem o lucro como objetivo final, na medida em que, sabidamente, a música de vanguarda não é gravada comercialmente em larga escala, principalmente no Brasil.

Por fim, com o despojamento do “desbunde” advém, entro outros elementos, a improvi-sação que na maioria das vezes não trata de uma improvisação jazzística em estrito senso, ainda que essa não possa ser totalmente descartada. Ou seja, a contracultura, em última análise, trouxe, ao nível da cultura de massa, uma abertura para musicalidades [e visões de mundo oriundas] de outras culturas que não as da civilização judaico-cristã da era do capitalismo financeiro. A partir de depoimentos do compositor aponta-se para três experiências com o elemento “sagrado” ex-postas a partir de experiências pessoais do autor: o da cultura indígena do alto Xingu durante a referida década; a da cultura musical Hindu e, por fim, da cultura afro-brasileira da umbanda e candomblé. Nosso autor mergulhou, em um primeiro momento, na experiência com os Ywalapití deixando o seguinte depoimento que, por suas características, parece transparecer aquilo que Egberto acredita como sendo sua missão, ou a de sua arte.

Fui preparado e estudei toda a minha vida para ser músico, da melhor forma possível, den-tro da aprendizagem ocidental conhecida. (...) mas essa preparação no âmbito do esquema tradicional de ‘adquirir informação’ não nos qualifica para sermos músicos verdadeiros. Ás vezes até nos afasta do caminho da arte. (...) Em meu caminho, a flauta de um aprendiz de homem de conhecimento – Kulutá – representou uma conotação mais ampla que o es-tritamente instrumental. (...) Eu deveria ser um ‘cantador de espírito’ com meus próprios instrumentos, com o piano, os violões, as flautas, o sitar ou os computadores: meu estúdio de trabalho, uma Oca sagrada. Sapain me ajudou a ver o som. Mostrou-me a essência mate-rial da criação, o acesso ao espírito. Deu-me o impulso inicial que me levaria a outros estados de consciência. O resto era trabalho meu. Caraíba Cantador. (GISMONTI In: FREGTA-MANN, s/d, 44)

A experiência indígena parece fundamental para o entendimento da peça em questão, mas

as referências posteriores encontram-se distribuídas em músicas como “Raga” (1974), “Cego Aderaldo” (1979) nas quais elementos da música da Índia de fazem presentes, e, em discos mais recentes, as referências aos elementos da mitologia afro-brasileira como em “Orixas” (1995), “Carmem”16 (1993) e “Dança dos Escravos” (1989).

Resumindo, tais paradigmas - brasilidade-vanguarda-sacralidade - parecem balizar a poiesis do compositor, no sentido das suas motivações pessoais para a composição. O passo seguinte

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parece ainda mais complexo: como esse eixo ternário acontece em uma obra específica? Nes-se sentido passa-se para o nível imanente a partir da tripartição aplicada por NATTIEZ (2005), mesmo porque paira, segundo FUBINI (2008, 155), a dúvida da existência de uma análise nesse nível que possa “realmente prescindir do significado e conseguir encontrar as unidades ‘naturais’ que não estão comprometidas com a linguagem em que, histórica e culturalmente”, a música se manifesta em determinados contextos históricos e sociais.

3.DISTRIBUIÇÃO FORMAL DE FORRÓ

A peça “Forró” foi gravada, como colocado, pelo conjunto Egberto Gismonti Group em 1993 e lançada no álbum “Música de Sobrevivência” pelo selo ECM Records. A análise aqui apresen-tada foi realizada através de um cotejamento da versão fonográfica com o manuscrito do próprio autor para quarteto de violões (QUATERNAGLIA, 2000). Entretanto, a gravação é sempre toma-da como última referência.

• A disposição formal de “Forró” se dá da maneira abaixo. A primeira vez que o piano toca a parte I está desacompanhado, o que confere caráter de introdução:

• Seção A, dividida em três partes que acontecem do seguinte modo: //: I – II – III ://

• Seção B: série de acontecimentos encadeados rítmicos, harmônicos não temáticos (fragmentos melódicos). Recapitulação breve da Parte I da seção A.

• Improviso e Cadência: Improviso de piano sobre baixo pedal ostinato seguido de solo de violoncelo com algumas intervenções harmônicas

• Seção A: reexposição, parte I rubato à duas vozes seguido das partes II e III.

• Coda: ao fundo os músicos sopram garrafas e ganza que articulam o pulso, figura retira-da do improviso do piano, enquanto o autor improvisa à flauta de PVC17.

4. EXPOSIÇÃO DAS PARTES

A melodia da parte I da seção A é parcialmente construída com base na escala de RÉ bemol maior harmônica, escala utilizada pelo autor em outro trechos como em Infância e também por outros músicos ligados à ECM como o saxofonista norueguês Jan Garbarek e o violonista norte--americano Ralph Towner18. Após dois compassos baseados no acorde de Db(ad.9) há uma séria de modulações baseadas na cadência napolitana (-II V)19, cuja relação da melodia com a harmonia se dá com o uso de arpejos baseados nas TCS20, ou seja, nas tríades na camada superior. Obser-ve que tais tríades se dão duas vezes nos acordes dominantes – Mi bemol maior sob F#7 e RE maior sobre F7 – deixando a melodia flutuar sobre a 3ª do acorde e as extensões de 13ª maior e 9ª menor. Já a tríade de MI maior sobre A(ad.9) gera extensões de 7ª maior e 9ª, tendo a 5ª justa como nota pertencente ao acorde. Ao final da parte I, há um encadeamento paralelo de tríades

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em posição aberta do campo harmônico de Mi bemol maior (ou de Bb7, acorde do momento). A resolução tonal dessa sequência se dá sobre o acorde de Eb, o que indica a tonalidade de parti-da da parte II. Ou seja, a parte I se inicia na tonalidade de Ré bemol maior, mas termina na região da supertônica (S/T), ou seja, em Mi bemol maior.

Fig.1 Forro: seção A, parte I.

Já a parte II se inicia na tonalidade de Mi Bemol maior para terminar de volta a Ré bemol

maior, entretanto, como baixo pedal de um acorde alterado. Nessa passagem há uma digressão

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através dos acordes de Mi bemol menor. O acorde pivô para tal digressão é o Bb+ (Si bemol au-mentado) pois, por ser um acorde simétrico é facilmente interpretado e ouvido como um Gb+, ou seja, o -III (Mediante Bemol) da tonalidade homônima menor. Dois pontos devem ser ressal-tados: alguns arpejos sobrepostos como Cb sob Db gerando a tipologia sus e BØ sob Db, um acorde com 9ª menor e 13ª menor. Os números indicam os padrões de resolução melódica em cada acorde, trata-se, de fato de um ostinato modulante. Embora não seja uma constante aqui, a mão esquerda do Ab maior do 11º compasso executa uma sobreposição de quintas, procedimen-to muito usado pelo autor em outras obras como Infância e Palhaço. Há também a figura da mão esquerda cujos intervalos estão ressaltados no 2º e 4º tempos em relação aos acordes, cujo ritmo harmônico se dá a cada dois tempos.

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Fig.2 Forro: seção A, parte II.

Já a terceira parte da seção A oferece um novo ostinato. O primeiro acorde já apresenta a so-breposição de BØ sob C#, quer dizer, uma dominante com 9ª e 13ª menor. Entretanto, o arpejo re-alizado na mão direita é de Fo (FA diminuto “enarmonizando” de MI sustenido). Quando se somam as notas desses acordes têm-se o modo “alterado” da escala maior harmônica (III). Os próximos acordes, embora incompletos, fazem parte das tipologias dos modos mixolídio (ou mixo 11+ pois a quarta está faltando), tons inteiros e dom-dim. Resumindo, ocorre a seguinte ordem:

//:Bb7(9-) C#7(9-)13- ://: F#7(9) ://: E7(9)13 ://: E7(9) 13-://: D7 ://: D7 ://

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Fig.3 Forro: seção A, parte III.

Conforme apontado no plano formal da peça, após a exposição das partes I II e III, que se repetem, há uma última volta à parte I, passando-se então para a seção B, que poderíamos chamar aqui de elaboração. Muito embora, não se trate de um desenvolvimento propriamente dito, mas, sim, de uma série de eventos elaborados baseados em ostinatos e figuras rítmicas brasileiras, bem como em achados harmônicos próprios à música da primeira metade do séc. XX, principalmente do compositor Igor Stravinsky. Tal procedimento, o da elaboração na seção central com as caracte-rísticas apontadas, acontece também em obras como Infância e Sete Anéis, entretanto, não em suas

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versões originais, mas naquelas executadas no álbum da peça aqui estudada (GISMONTI, 1994) e no álbum anterior (GISMONTI, 1991). Tal fato mostra que o autor não realizou a composição com-pleta de uma vez, mas foi adicionando partes com o passar dos anos o que, a meu ver, aponta para o procedimento de um “rapsodismo” formal, ou seja, uma composição por colagens.

No primeiro ostinato da seção B, uma vez estabelecido, há uma série de frases executadas pelo grave do piano somado ao violoncelo e contrabaixo. A primeira e segunda frase tem como resultado o modo Mi mixolídio e, a terceira frase Dó# frígio. Tais modos pertencem ao mes-mo campo harmônico, por isso o ostinato no agudo permanece o mesmo para todas as frases. Observa-se que a sonoridade do último modo se dá mais em função do segundo ostinato que claramente ostenta o acorde de D(ad.9) que, com o Dó# no baixo, finda por resultar em na sono-ridade do modo referido.

Fig.4 Forro: seção B, 1º ostinato.

Após seis compassos com o segundo ostinato que se inicia ao final da figura 4, há uma seção com o uso dos chamados “poliacordes”, ou tríades sobre tríades: “Um poliacorde é a com-binação simultânea de dois os mais acordes de diferentes áreas harmônicas. Os segmentos de poliacorde são considerados como unidades acordais.” (PERSICHETTI, 1985, 137). Já o jazz tem, como exemplo, as chamadas tríades diatônicas sobre baixos não diatônicos. Ou seja, quando se classificam os poliacordes à luz das tríades não diatônicas, observa-se que muitos poliacordes poderiam cair também categoria das TCS (tríades na camada superior). Não é o caso aqui, pois

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trata-se de um Dó# sustenido maior sob Ré maior. Em seguida, outras tríades ocorrem que não pertencem à categoria das tríades não diatônicas por tratar-se da sétima no baixo (E/D# e Db/C). Então, mais uma vez, uma sensação de politonalidade se segue: o arpejo de Láb maior na melodia somado ao de Ré maior no baixo. Por fim uma sequência diatônica em Lá maior aberta em Drop 221.

Fig.5 Forro: seção B, Poliacordes.

Observa-se que os ostinatos apresentados na figura 5 oscilam entre as fundamentais Mi e Ré, ou seja, o -III e o -II da tonalidade. Após uma breve recapitulação da seção A através da parte I

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há a seção do improviso do piano sobre o ostinato pedal. Por fim, ocorre uma cadência executada pelo violoncelo com algumas intervenções harmônicas.

Fig.6 Forro: cadência de violoncelo.

A cadência começa com um arpejo de um poliacorde: BbØ sob Eb+7M(9), de sonoridade bastante atonal. Após a segunda frase que delineia um MI maior há a inclusão de um acorde por quintas de A7M(9)11+. O próximo acorde tem sonoridade advinda da escala octatônica: Ab9+/C. Por fim o último acorde, de difícil classificação22 parece pertencer à escala de Lá bemol maior harmônica, embora a nota Mi bemol esteja ausente.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do ponto de vista formal observa-se que, apesar de se tratar simplesmente de um grande ABA com uma cadência inserida antes da reexposição final, do ponto de vista da constituição interna das partes, há, como observado, um desenvolvimento da seção B por ostinatos de repeti-ção. Não deixa de ser intrigante tal semelhança de procedimentos com os dos nacionalistas da 1ª metade do séc. XX esse procedimento composicional rapsódico,

O nome ‘rapsódia’ sugere uma improvisação. [...] A excelência de uma improvisação assen-ta-se mais em seu inspirado imediatismo e vivacidade do que em sua elaboração. É claro,

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a diferença entre uma composição escrita e improvisada é a velocidade de produção [...] Assim, sob condições apropriadas, uma improvisação pode ter a profundidade de elabo-ração de uma composição cuidadosamente trabalhada. Geralmente, uma improvisação irá apegar-se a seu tema mais pelo exercício da imaginação e emoção do que, propriamente, das faculdades estritamente intelectuais. Haverá uma abundância de temas e idéias con-trastantes cujo efeito total se adquire por meio de rica modulação e regiões remotas. A conexão entre temas de natureza tão diferenciadas e o controle da tendência centrífuga da harmonia são, em geral, obtidos de maneira casual, por meio de ‘pontes’ e, inclusive, justaposições abruptas. (SCHOENBERG, 2004, 108)

Ainda que se pese a definição de improvisação como uma composição com velocidade de elaboração, o termo rapsodismo parece conveniente para descrever alguns processos formais adotados pelo autor em outras obras que parecem clarificar o método de composição emprega-do. Por exemplo, a peça “7 Anéis” gravada nos álbuns Feixe de Luz (EMI-ODEON, 1988) e Infância (ECM, 1991). Este último tem a mesma formação do disco abordado. Na primeira gravação não há a presença da seção central em ostinato baseada no modo frígio que é enxertada na segunda versão. O mesmo vale para as diferenças entre as versões de “Infância” do mencionado Alma e a do disco de título homônimo à obra na qual uma seção baseada em poliacordes é enxertada até chegar a um ponto culminante sob uma convenção rítmica em tutti. De maneira semelhante ao “Forró”, há uma cadência, desta vez do contrabaixo, que antecede a reexposição.

Do ponto de vista harmônico observou-se o uso de elementos tonais, mas de um tona-lismo já jazzístico pelo uso livre de extensões e das mencionadas TCS, por exemplo, somadas a procedimentos característicos da música clássica da primeira metade do século XX, como os poliacordes e a politonalidade. A esse ponto, somado às considerações sobre a forma, converge a mencionada vanguarda. Entretanto, trata-se de uma possibilidade interpretativa a partir da esté-tica do autor – quiçá da música popular em geral, na medida em que, aceitando-se o parâmetro de Stravinsky, esse último foi associado à restauração neo-clássica em contraposição à posição “progressista” de Schoenberg, ou seja, dentro de um viés conservador, ainda que as posteriores abordagens do próprio autor em relação à música de Webern e o famoso texto de P. Boulez te-nham buscado redefinir o olhar adorniano anterior.23

O título da peça, para falar da brasilidade, faz menção à festa popular de origem nordes-tina cujo termo, segundo CASCUDO (2000), seria uma abreviação de “forrobodó”. FERNAN-DES (2012) define Forró como “uma dança brasileira acompanhada por música ao vivo de uma série de subgêneros como o baião, xote, arrasta-pé, e forró.24

Iniciou no Nordeste por volta do século XIX, mas se espalhou por todo o país a partir da intensa migração da população do nordeste para os estados do sudeste iniciada na década de 1930, e por ter se tornado um fenômeno de massa no final da década de 1940. (...) Os instrumentos podem ser os pífanos, rabecas ou os oito baixos (sanfona). Ao final dos anos de 1940 foi levado ao plano da cultura de massa peço cantos, compositor e acordeonista nordestino Luiz Gonzaga (1912-1989) que inseriu letras no Forró, substituiu a sanfona pelo

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acordeão e criou um trio para tocar sua música formado por triângulo, zabumba e acor-deão. (...) Outra referência chave na história do Forró é Jackson do Pandeiro (1919-1982). (FERNANDES: 2012, 1-3)

Apesar dessa referência no título da peça à cultura nordestina apontada acima, poucos ele-mentos musicais confirmam essa presença, a não ser o baixo da parte II da seção A, que dobra a primeira nota grave do piano após a pausa de semicolcheia e, em seguida, dobra junto ao vio-loncelo a figura da colcheia pontuada e semicolcheia perfazendo, assim, uma mistura das células do maracatu e baião (baixo da seção B). Entretanto, o uso final do instrumento da flauta PVC pode ser uma alusão à flauta jakuí ao final da peça com o ostinato que remonta à cultura indígena apresentada na introdução do artigo, pode, em última análise, remeter a uma possível origem do pífano25 nordestino, muito usado nas bandas de cabaçais espalhadas pelo nordeste.

Os índios Xingu do Amazonas, (...), também criam certa ‘irrealidade’ que impulsiona uma relação objetiva com música. (...) As suas flautas-taquaras sonorizam o universo real e coti-diano, o mundo pessoal. Mas eles têm uma flauta, (...), chamada Jacuí, que representa o espíri-to, um mundo não palpável nem manifesto.(...) O Jacuí, flauta sagrada dos Xingu, é de madeira e não de bambu como as demais. São peças de madeira escavadas, que produzem certas escalas determinadas, (...), convocam o espírito sagrado, transformam-se nele ou o contêm. (FREGTMANN; GISMONTI: 1991, 27)

Esse último ponto tocou a sacralidade. Pesquisas futuras podem conferir, a partir de inves-tigações etno-musicológicas, a precisão ou não dos dados apresentados pelo compositor em relação aos elementos indígenas. Entretanto, somado aos processos harmônicos e formais e às características brasileiras apresentadas, acredito que a obra apresenta, em suas propriedades in-trínsecas, uma invenção pessoal por parte do compositor sobre o sagrado, a vanguarda e a bra-silidade. Poderia, neste caso, desenvolver a hipótese de que tais vertentes possam ser tomadas como tópicas na obra do autor em estudos futuros.

REFERÊNCIAS:

ADORNO, T. Filosofia da Nova Música. Trad. M. França. São Paulo: Ed. Perspectiva, 3ª Ed., 2007.BOULEZ, P. Apontamentos de aprendiz. Trad. S. Moutinho, C. Pagano e L. Bazarian. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995.CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ed. Global, 2000.DUARTE, Joelma P. A Contracultura e seus desdobramentos: novas experimentações e religiosidade new age. Tese de doutorado. Juiz de Fora: UFJF, 2010.FERNANDES, Adriana. Forró: the Constituition of a Genre in Performance. Revista Karpa, 5.1 – 5.2, 2012.FREGTMAN, Carlos Daniel; GISMONTI, Egberto. Musica transpessoal: uma cartografia holistica da arte, da ciencia e do misticismo. São Paulo, SP: Cultrix, 1991.FUBINI, Eurico. Estética da Música. Lisboa, Edições 70, 2008.

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HOLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de viagem cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1992, 3a Edição.NATTIEZ, Jean Jacques. O Combate entre Cronos e Orfeu – Ensaios de Semiologia Musical Aplicada. Trad. Luiz Paulo Sampaio. São Paulo: Via Lettera, 2005.NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1977.NEEDLEMAN, Jacob. The New Religions. New York: Penguin group, 2009.PERSICHETTI, Vicente. Harmonia del siglo XX. Trad. Alicia Santos. Madrid: Real Musical, 1985. PIEDADE, Acácio. Jazz, Música Brasileira e Fricções de Musicalidades. Revista Opus, vol. 11, Dez. 2005._______________. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, músicalida-des e tópicas. Revista Per Musi. Belo Horizonte: n23, 2011, p.103-112.RIDENTI. Em busca do povo brasileiro. São Paulo: Ed. Da UNESP, 2ª edição, 2014.SCHOENBERG, A.. Funções Estruturais da Harmonia. Trad. E. Seincmann. São Paulo: Via Lettere, 2004: 198.Discografia:GISMONTI, E. Música de Sobrevivência. (CD) ECM, 1993.___________. Infância. (CD) ECM, 1991,___________. Egberto Gismonti. (LP/CD) Odeon/Carmo, 1973.___________. Nó Caipira. (LP/CD) EMI/CARMO, 1978.QUATERNAGLIA. Forrobodó. (CD) Carmo, 2000.SOBRENOME, Prenome(s) do Autor;

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APRESENTAÇÕES ARTÍSTICAS

PONDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO INTERPRETATIVA DA PEÇA CONTRASTES DE MARISA REZENDE

Tatiana Dumas MacedoUFRJ – [email protected]

Nadge BreideUFRJ – [email protected]

Resumo: Este artigo visa ponderar sobre a construção interpretativa da peça Contrastes de Marisa Rezende. Para tal expuseram-se considerações sobre interpretação musical, ausência de uma tradição interpretativa na música contemporânea brasileira para pia-no e textura musical. Abordaram-se algumas características de Marisa Rezende, como pianista e compositora, enfatizando a utilização da manipulação de densidades em seu ideário sonoro, como técnica composicional empregada na peça Contrastes (2001) e o emprego meticuloso do pedal como elemento composicional da obra em questão. O referencial teórico respalda-se nas considerações e nos preceitos de Leonard Meyer (2000), Heinrich Neuhaus (2010), Nestor Canclini (2000), entre outros referenciais.

Palavras-chave: Rezende, Marisa. Contrastes. Música contemporânea brasileira. In-terpretação musical. Construção interpretativa.

Ponderings on the Interpretative Construction of the Piece Contrastes by Marisa Rezende

Abstract: This article aims to reflect upon the interpretative construction of the piece Contrastes by Marisa Rezende. For this purpose, considerations were made about mu-sical interpretation, and the absence of an interpretive tradition in contemporary Bra-zilian music for piano and musical texture. Some of Marisa Rezende’s characteristics, as a pianist and composer, were also discussed, emphasizing the use of density manip-ulation in her sonic ideas, the compositional technique utilized in the piece Contrastes

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(2001), as well as the meticulous use of the pedal as a compositional element in the interpretative construction of the work being discussed. The theoretical framework is based on Leonard Meyer’s (2000), Heinrich Neuhaus’s (2010), and Nestor Canclini’s (2000) considerations and precepts, among others.

Keywords: Rezende, Marisa. Contrastes. Contemporary Brazilian music. Musical in-terpretation. Interpretative construction.

1. APRECIAÇÃO INTERPRETATIVA

Na pluralidade de tendências vigentes na música brasileira contemporânea, surgem múltiplos aspectos a serem considerados no que tange a construção interpretativa de uma obra. Dentre eles, salienta-se a ausência de uma tradição interpretativa, visto que das incontáveis obras escritas para piano, no século XXI, poucas são as que se encontram incorporadas ao repertório de um intérprete.

Ao se entender a interpretação como um meio pelo qual processos formais e estéticos de uma obra musical são evidenciados em suas especificidades, não se pode deixar de abordar aspectos significativos à sua transmissão. Além das implicações contextuais que direcionam a concepção e perfazem a realização musical, o entendimento e a aplicabilida-de dos elementos de ordem pianística mostram-se fundamentais a sua elaboração (MA-CEDO & BREIDE, 2013:116).

A obtenção do discernimento, por parte do intérprete, entre técnica e mecanismo mos-tra-se para isso necessária. Independente de esse aspecto se determinar relevante ou não na atividade prática, ele afeta de maneira significativa o desenvolvimento da construção interpre-tativa. O mecanismo, aspecto físico da técnica pianística, destina-se à precisão de ataques, à resistência, à agilidade, ao controle na coordenação dos movimentos demandados por um trecho específico ou por uma peça musical. A técnica incide sobre uma noção complexa na interpretação, a qual engloba áreas da execução pianística tais como: ritmo, fraseado, dinâmica, toques pianísticos, pedal, dedilhado, compreensão estética, escolha do movimento apropriado à anatomia do intérprete e ao estilo da obra em questão. Assim, a técnica, ao condensar a soma de todos os meios que o intérprete possui para realizar sua intenção musical, encontra-se lar-gamente vinculada ao aspecto musical e à personalidade do executante. Neste estudo, a isto se denomina ação pianística.

Tobias Matthay (1982) e José Alberto Salgado e Silva (2005) explicam que a técnica pianís-tica é o acúmulo e a aplicação de recursos físicos e cognitivos para o fazer musical, ou seja, a aqui-sição da técnica implica induzir e executar uma associação entre a intenção musical e os meios de seu cumprimento prático, quer nas gradações de intensidade quer nas de tempo, visto que uma obra musical encerra seu veículo de expressão no movimento sonoro. Independente da corrente estilística, Leonard Meyer (2000) adverte ser inviável rotular concepções e interpretações como

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definitivas ou finais.

Heinrich Neuhaus (2010) pondera que os elementos de dinâmica, embora proporcionem expressão e plasticidade à interpretação, quando grafados em um texto musical, mostram-se in-suficientes para indicar o conjunto de nuances sonoras oferecido pelo instrumento atual. Consi-dera que, em cada plano sonoro de pp, p, mf, f, ff, cabe ao intérprete construir os diversos graus de nuances solicitados no texto, por meio de diferentes impulsos, ataques e apoios os quais fazem parte dos subsídios inerentes a ação pianística. Visto que,

dentre os múltiplos aspectos da ação pianística na interpretação de uma obra musical, observa-se que o aumento/diminuição gradativos/abruptos do volume sonoro concentra--se na capacidade de o intérprete justapor, na execução, sons de diferentes intensidades e durações (MACEDO & BREIDE, 2013:117)

por meio de amplo conhecimento e significativo grau de refinamento artístico. No caso da música contemporânea, há diversificadas maneiras de realizar sonoramente de-

mandas composicionais, mesmo aquelas pouco ortodoxas, dentre as quais as mudanças rítmicas, métricas e texturais significativas. Referindo-se a este aspecto Nestor Garcia Canclini (2000) ex-plica que a abertura de vias não convencionais de produção, interpretação e comunicação da arte, no século XX, proporcionou considerável diversificação de tendências em relação ao passado. No mesmo século, a liberdade econômica e política ofertou ampla difusão de técnicas artísticas, nas quais vários sujeitos atuam, juntos ou separados, produzindo vários feitos de maneira recor-rente. Observa-se nisso que o emprego de novos contextos harmônicos, acoplados a diversas combinações sonoras e recursos de forma não usual, explodem em novas tendências estilísticas. Tal aspecto evidencia-se na pluralidade de correntes estilísticas da época atual, as quais recor-rem ao emprego superlativo de complexidades técnicas, sonoras e expressivas, tanto aquelas que adotam a escrita convencional como as que demandam do intérprete a decodificação dos sinais gráficos, característicos de cada compositor.

Assim sendo, considera-se que a interpretação excede à elucidação dos elementos de uma par-titura, visto que a apreensão e o domínio da ação pianística atuam sobremaneira como elementos fundamentais e imprescindíveis à construção interpretativa, qualquer que seja a corrente estilística.

Por isso, entende-se que as peças de estética contemporânea brasileira, ao possuírem uma ação pianística dotada de amplo refinamento artístico, aquele que boa parcela dos intérpretes de-dica ao estudo do repertório tradicional, clarificam as infinitas possibilidades ofertadas pela mú-sica brasileira para piano de compositores como Almeida Prado, Marisa Rezende, Marlos Nobre e Ronaldo Miranda. O amplo grau de refinamento artístico demandado por esses compositores em obras para piano solo conduziu, após breve análise, à escolha da peça Contrastes da compo-sitora brasileira Marisa Rezende, escrita em 2001. Esta obra, por apresentar características mar-cantes de uma ação pianística complexa, mostra-se representativa como composição destinada ao universo da música brasileira para piano solo. Salientam-se a ampla e significativa atuação de

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Marisa Rezende como pianista, seu vasto repertório e seu amplo conhecimento idiomático do instrumento. Tal vivência, bem como a excelência de sua formação pianístico-musical, transpare-ce na construção formal de suas peças, nas quais o timbre e a sonoridade atuam como elementos estruturais e expressivos. Estas características encontram-se evidenciadas na obra em questão, ao se apresentar como uma composição de textura, sons e efeitos repleta de nuances.

A textura, conforme explica Jan LaRue (2009), por ser resultante da interação de todos os parâmetros musicais a serem acoplados à ação pianística, efetiva-se por meio das escolhas de movimentos físicos, toques pianísticos, impulsos e ataques que, mediante o estímulo da escrita do compositor, resultam na sonoridade imaginada. A partir do momento em que a sonoridade é produzida e avaliada, a textura se define. Advém disto a importância do papel do intérprete, pois, conforme enfatiza Caio Senna Neto (2007), o intérprete torna-se responsável pela projeção dos elementos texturais.

Sobre a questão textural, Don Michael Randel (1996) explica que se trata de um proce-dimento usual na composição, desde a Idade Média. Contudo, apenas a partir do século XX, devido ao colapso do sistema tonal, tornou-se significativa na técnica composicional em que as construções das melodias e das progressões harmônicas passaram a ser elaboradas descontinu-adamente em forma de colagens. À vista disso, a percepção de boa parcela da música da segunda metade do século XX e do início do século XXI passa a acontecer por meio dos blocos sonoros e pela maneira como se relacionam ou se transformam no decorrer da composição.

Em Contrastes (2001), em acordo com o título da peça, Marisa Rezende, suscita situações de contrastes sonoros, ao manipular os parâmetros musicais a seguir mencionados. Senna Neto (2007) esclarece que a compositora constrói a peça por meio de materiais fragmentados em configurações texturais que não se repetem como em uma improvisação. Esse tipo de organi-zação fragmentada, de desorganização organizada é muito comum, a exemplo de Stravinsky, em obras de vários compositores dos séculos XX e XXI.

Mudanças abruptas de agógica, dinâmica e registro, bem como transposições e variações do mesmo motivo harmônico, que se reorganizam como as peças de um caleidoscópio, efetivam os recursos construtivos estruturais da peça. O elemento inicial da obra é constituído por uma tríade menor com uma 9ª acrescentada (Fig.1, c.1), denominado por Senna Neto (2007) de elemento C. A linha melódica, da mão esquerda (Fig.1, c.2-3), é organizada sobre esse mesmo elemento C transposto uma 3ª M. abaixo, com dinâmica oposta. O elemento C apresenta-se transposto uma 4ª J. abaixo e contrastante ritmicamente, no compasso 7 (Fig.1). A “sonoridade triádica é então substituída por outra baseada em quintas superpostas” (SENNA, 2007, p.111).

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Figura 1 – (c. 1-3 e c.7)

No exemplo da Figura 2 (c.9-12), percebe-se que a compositora emprega a técnica compo-sicional de manipulação de densidades, devido aos aumentos na tensão textural e na complexi-dade rítmica, corroborados pelo adensamento da dinâmica.

Figura 2 – (c. 9-12)

O pedal também exerce função de elemento composicional na construção interpretativa da obra de Marisa Rezende, não sendo utilizado apenas como um recurso de prolongamento do som. A fim de obter a textura demandada pela compositora, deve-se ter extrema atenção e acui-dade auditiva para a escolha e o desenvolvimento dos elementos que perfazem a ação pianística, os quais fornecerão a sonoridade solicitada pelo grafismo da obra, atribuindo fidedignidade à execução instrumental. Embora, segundo William Newman (1986), o uso do pedal esteja rela-cionado ao ato da performance e sua manipulação sofra influências de acordo com a acústica da sala e as possibilidades mecânicas do instrumento, a compositora ressalta (comunicação pessoal, 2011) que, conforme o viés cultural do intérprete, o gosto e a vivência, o uso do pedal apresenta-se diferenciado, definindo assim o intérprete. Tendo isso em vista, para a peça em questão, Marisa

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Rezende optou por escrever detalhadamente a utilização do pedal, a fim de tentar ser o mais ex-plícita possível sobre seu ideário sonoro e angariar ou suprimir efeitos específicos de ressonância. Tal aspecto é desvelado na Figura 3, c.66-69.

Figura 3 – (c. 66-69)

Referente às características idiomáticas empregadas pela compositora na peça Contrastes (2001), depara-se (Fig.4, c.37-41) com necessárias escolhas alusivas aos toques pianísticos que poderão ser aplicados para evidenciar a sonoridade demandada, no trecho, pela compositora.

Figura 4 – (c. 37-41)

Nos compassos 37 ao 41 (...). A mão esquerda sustenta a nota mais grave da peça, o lá -2, com auxílio do pedal contínuo desde a metade do compasso 38, e, ao final do compasso 41, executa o mesmo arpejo do compasso 36, com movimento circular, posição alongada, contudo, com toque legato artificial e dinâmica f. A mão direita, realizará as quatro pri-meiras notas do compasso 37, com movimento circular, toque legato, posição alongada. A última nota desse compasso e as quatro primeiras do compasso 38 serão executadas por movimento vertical, toque staccato de antebraço, posição curvada dos dedos; e, as quatro últimas, por movimento circular, posição alongada, toque legato. O compasso 39 será exe-cutado da mesma forma que o início do compasso 38. No compasso 40, as duas primeiras notas apresentam o sinal de tenuto e serão executadas por movimento vertical e toque apoiado, posição curvada. As duas notas seguintes, por apresentarem o sinal de marcato e a indicação de dinâmica ff, serão, então, realizadas com gesto retirado e movimento glissé. Aqui, também, deve-se estar atento a realização do ff em proporção ao p antecedente. O compasso 41, da mesma forma que o anterior, apresenta as duas primeiras notas com indi-cação de tenuto, e serão realizadas do mesmo modo. As duas últimas, no entanto, apresen-tam apenas a indicação de acento, sendo, então, efetuadas com movimento vertical, toque apoiado, posição curvada. (MACEDO, 2011:76).

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2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A peça Contrastes (2001), elaborada sobre um único elemento que perfaz diferentes textu-ras, exige diferentes nuances sonoras. Considerando que, na construção interpretativa, elementos dos estilos do passado interagem na contemporaneidade de modo inusitado e reelaborado e que, conectados, refletem a expressão artística de uma época, conclui-se que o intérprete atu-al deve estar familiarizado com as diferentes linguagens musicais e seus subsídios pianísticos, construídos ao longo dos séculos e delineados por exigências particulares de articulação, tempo e equilíbrio sonoro.

Estas considerações levam a acreditar que boa parte do desinteresse por obras pianísti-cas de estética contemporânea brasileira pode ser atribuída à falta de seriedade com que alguns intérpretes encaram seu planejamento interpretativo. Tal aspecto abre margem a execuções de inadequados níveis pianístico e artístico dessas obras, pois, ao não serem realizadas em sua ple-nitude de criação, consequentemente, caem no desinteresse do público e dos intérpretes. Ou-trossim, o médio conhecimento pianístico ou a falta dele por parte de compositores corrobora sobremaneira esse desinteresse, visto que obras não idiomáticas comprometem sua realização e, por conseguinte, sua apreciação.

O profundo conhecimento do instrumento, por meio de obras do repertório de concer-to pelo compositor, mostra-se, portanto, fundamental à contemporaneidade na composição de música brasileira destinada ao piano, visto que a intimidade com os movimentos intrínsecos à ação pianística fornece precisão e eficácia, ainda que aplicados à realização de ruídos, pois a qua-lidade de um efeito sonoro está diretamente relacionada à atitude que o produz. A escrita da obra Contrastes (2001) ratifica esta consideração, ao se apresentar idiomática ao instrumento para o qual foi destinada e por explorar, com requinte, os recursos que o piano atual oferece.

Reitera-se que o intérprete deve atentar para que sua formação se efetive sem negligenciar ou pré-conceituar aspectos relevantes que a tradição oferece, bem como expressões artísticas da própria época. A absorção indiscriminada do conhecimento fornecerá respaldo crítico à convi-vência entre diferentes linguagens musicais, sejam elas pertinentes ao passado ou ao presente, pois cada uma contém a expressão artística que deverá ser interpretada ou reinterpretada em suas especificidades.

REFERÊNCIAS:

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MACEDO, Tatiana Dumas & BREIDE, Nadge. Contrastes de Marisa Rezende: texturas e toques pianísticos. Interfaces, Rio de Janeiro, 19, n.18 (janeiro-junho), p.116-123, 2013.

MACEDO, Tatiana Dumas. Contrastes de Marisa Rezende: um estudo dos toques pianísticos na mú-sica contemporânea brasileira. 95f.. Dissertação (Mestrado em Música). UFRJ. Rio de Janeiro, 2011.

MATTHAY, Tobias. The visible and invisible in pianoforte technique. London: Oxford University Press, 1982.

MEYER, Leonard B. El estilo em la musica: teoria musical, historia e ideologia. Madrid: Ediciones Pirámide, 2000.

NEUHAUS, Heinrich. The art of piano playing. London: Kahn & Averill, 2010.

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RANDEL, Don Michael. The new Harvard dictionary of music. Cambridge: Harvard University Press, 1996.

REZENDE, Marisa. Comunicações pessoais. Entrevista de Tatiana Dumas Macedo em set. 2010-jun. 2011. Rio de Janeiro. Gravação digital. Botafogo.

______. Contrastes. Rio de Janeiro: Edição da autora, 2001. 1 partitura (5 p.). Piano.

SENNA NETO, Caio Nelson de. Textura musical: forma e metáfora. 165 f.. Tese (Doutorado em Música). UNIRIO. Rio de Janeiro, 2007.

SILVA, José Alberto Salgado e. Construindo a profissão musical – uma etnografia entre estudan-tes universitários e música. Tese (Doutorado em Música). UNIRIO. Rio de Janeiro, 2005.

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COMUNICAÇÕES ORAIS

MUTAÇÕES E CONTRASTES EM DUAS PEÇAS PARA PIANO DE MARISA REZENDE

Tadeu Moraes Taffarello

Universidade Estadual de Campinas – [email protected]

Resumo: A dupla formação como pianista e compositora de Marisa Rezende auxiliou na criação de peças idiomáticas para piano. É o caso de Contrastes (piano solo, 2001) e Mutações (versão para piano a quatro mãos, 2002) nas quais elementos de transforma-ções e diferenciações ocorrem. Como conclusão, perceberemos que, a partir do uso de um número reduzido de conjuntos de classes de notas, ambas as peças apresentam gradações dessas duas possibilidades composicionais que se apresentam não como opostos, mas sim como complementares.

Palavras-chave: Marisa Rezende. Contrastes. Mutações. Piano.

Mutations and Contrasts in Two Piano Pieces by Marisa Rezende

Abstract: The double formation as pianist and composer of Marisa Rezende helped her in the creation of idiomatic piano pieces. This is the case of Contrastes (solo piano, 2001) and Mutações (four hands piano version, 2002) in which transformations and differentiations elements occur. As a conclusion, we will realize that, from the use of a reduced number of pitch-class sets, both pieces present gradations of these two compositional possibilities that present themselves not as opposites, but as comple-mentary ones.

Keywords: Marisa Rezende. Contrasts. Mutations. Piano

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1. MARISA REZENDE: PIANISTA E COMPOSITORA

Marisa Rezende é uma pianista e compositora carioca que trabalhou fortemente em prol da criação e divulgação da música contemporânea no Brasil. Nascida no Rio de Janeiro em 1944, teve contato desde cedo com a música. Sua mãe estudara piano na infância e adolescência, en-quanto seu pai tocava samba e marchinhas de carnaval (NEIVA, 2006: 177). Iniciou seus estudos em piano ainda criança com a professora Marieta de Saules. Em 1961, concluiu o nível médio de piano na Academia de Música Lorenzo Fernández (MACEDO: 2011, 24). Tendo obtido um desenvolvimento técnico-artístico de excelência ao piano, tem atuado, desde então, em recitais solo, como concertista e em formações camerísticas em diversas oportunidades.

Em conjunto aos estudos de piano, dedicou-se também à composição. Por questões familiares, a sua formação como compositora foi feita em instituições e períodos distintos. Os estudos formais na disciplina tiveram início quando ingressou, em 1962, no curso de composição pela Universida-de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Logo após, entretanto, a pianista e compositora casou-se e se mudou para os Estados Unidos da América (EUA) para acompanhar o seu marido, que realizaria o mestrado no país. Em um curto período, suas duas primeiras filhas nasceram, o que fez com que ela praticamente parasse de estudar música. No retorno ao Brasil, em 1967, Marisa retomou o curso da UFRJ. Sua terceira filha nasceu em 1968, o que a fez mais uma vez diminuir o seu ritmo de estudos. Um pouco após, em 1972, a família se mudou para Recife-PE. Marisa concluiu o curso de composição musical pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) no ano de 1974, tendo, entretanto, estu-dado de maneira bastante independente, desenvolvendo, assim, uma linguagem composicional livre e particular. Após concluir a sua graduação, a família retornou aos EUA onde Marisa obteve, em 1976, o grau de mestre em piano pela University of California (UC). Em conjunto com as aulas do mestrado, cursou, por conta própria, as disciplinas de composição da mesma universidade.

Após retornar ao Brasil, começou a sua carreira como pesquisadora e professora universi-tária, inicialmente na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), entre os anos de 1977 e 1978, e, posteriormente, na UFPE, de 1978 a 1987. No ano de 1982, voltou aos EUA para cursar o doutorado também pela UC. Em 1985 obteve o título de doutora em composição musical e, em seu terceiro retorno ao Brasil, foi aprovada em um concurso público para trabalhar na UFRJ, onde permaneceu de 1987 a 2002, ano de sua aposentadoria. Durante o seu período de atuação como docente e pesquisadora frente à UFRJ, auxiliou na fundação, em 1988, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós- Graduação em Música (ANPPOM); em 1989, do Grupo Música Nova-RJ, respon-sável por diversas estreias do repertório nacional e no qual atua como compositora e intérprete; e, em 1992, do Laboratório de Música e Tecnologia (LaMuT) ao lado de Rodolfo Caesar. Auxiliou também na formação de diversos compositores engajados com a música brasileira atual, tendo orientado o mestrado de Pauxy Gentil-Nunes, Roberto Victório, Edson Zampronha, Caio Senna, Alfredo Barros, Alexandre Eisenberg, Alexandre Schubert e José Orlando Alves, dentre outros.

Por sua dupla formação e atuação como pianista e compositora, suas peças escritas para o instrumento piano ganham, no conjunto de sua obra, uma importância significativa e um

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desenvolvimento idiomático. Dentre elas, escritas em seu período final de atuação junto à UFRJ, as peças Contrastes (2001, para piano solo) e Mutações (2002, 2ª versão, para piano a quatro mãos), con-forme os próprios nomes dizem, apresentam, respectivamente, estratégias de rupturas e transforma-ções em seus desenvolvimentos composicionais, unidas a um idiomatismo da performance pianística.

2. CONTRASTES

Contrastes, para piano solo, foi composta no ano de 200126. A peça manipula os parâmetros musicais de maneira a produzir formas abruptas e diversificadas de materiais sonoros. Ou seja, algo que é bastante frequente na peça é uma constante modificação, com a textura dificilmente sendo mantida por mais de alguns poucos compassos, o que traz bastante variedade à peça.

Em relação às alturas, Contrastes utiliza um conjunto de classe de quatro notas que é trans-posto e variado ao longo de toda a peça. Em sua forma normal [10, 0, 1, 5], este conjunto pode ser entendido como um acorde menor acrescido de uma 2M27 em relação à fundamental (Ex. 1). É o conjunto 4-14 identificado por Allen Forte (STRAUS: 2013, 202).

Exemplo 1: Conjunto de classes de notas [10, 0, 1, 5] utilizado em Contrastes, de Marisa Rezende.

Para Caio Senna (2007), as três principais configurações deste conjunto são as que apare-cem logo nos compassos iniciais (1-3 e 7) da peça. Cada uma das três configurações apresenta já em si uma característica própria em relação ao modo de ataque, dinâmica e caráter. Em sua pri-meira aparição, na mão direita do piano (Ex. 2, destacado com um círculo verde), tem um caráter mais contemplativo, em dinâmica p, uso de ressonâncias e articulação tenuto. Alguns dos inter-valos que serão importantes melódica e harmonicamente já aparecem, como o semitom entre as notas Dó e Réb e os intervalos de 4 e 5J entre Sib-Fá e Fá-Dó. Esse conjunto de classe notas que aparece logo no primeiro compasso vem acompanhado de repetições e figuras rítmicas acresci-das de pontos de ampliação da duração das notas. No terceiro compasso, há um encurtamento da figura melódica, com a exclusão de uma das colcheias pontuadas e, no quarto compasso, a nota Fá passa a ser tocada na início do compasso.

A partir do segundo compasso, na mão esquerda (Ex. 2, destacado com uma estrela amarela), ocorre o conjunto de classe de notas transposto uma 3M abaixo (T8), com as notas rearranjadas e enarmonizadas. Pelo fato de as duas primeiras configurações serem tocadas ao mesmo tempo, é bastante perceptível o contraste entre as vozes28. A duração das figuras rítmicas é mais longa, a dinâmica em ff e a articulação com acentos e staccati. A nota Mib do compasso 3, apesar de não pertencer ao conjunto transposto, é uma 4J abaixo do Láb. Percebe-se, portanto, a estratégia de utilizar os intervalos possíveis do próprio conjunto no intuito de criar “bifurcações” de alturas.

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Exemplo 2: Conjuntos de classe de notas (T0) e (T8) nos compassos iniciais (1-3) de Contrastes, de Marisa Rezende.

No compasso 7 há a terceira configuração. Dessa vez, as notas são redistribuídas de modo que o intervalo de 5J ganhe destaque (Ex. 3, destacado com um quadrado vermelho). O conjunto de classe de notas está também transposto, dessa vez uma 4J composta abaixo da configuração inicial (T7). A diferença em relação aos compassos iniciais é marcada pelo caráter ascendente, na região grave do instrumento, articulação em staccato com ligadura e dinâmica mf. A partir da nota mais aguda, outros intervalos de 5J e 2m são tocados, o que reforça a estratégia de de bifurcação e revela, a partir daí, a possibilidade de utilização de apenas algumas das notas do conjunto, ao invés do conjunto inteiro.

Exemplo 3: Compasso 7 (M.D.) de Contrastes, de Marisa Rezende.

Nos compassos 9 e 10, além do retorno do conjunto de classes de notas sem transposição (T0), este passa também a ser utilizado harmonicamente, ou seja, com as notas soando ao mesmo tempo (Ex. 4). Em relação ao caráter, este trecho lembra bastante o inicial, porém mais curto, em dinâmica mp, com duração de apenas 1 1/2 compassos e sobre uma nota Si natural no grave com dobramento em oitava que não estava presente no início.

Exemplo 4: Compassos 9-10 de Contrastes, de Marisa Rezende.

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Esse retorno aos materiais originais, com modificações em relação ao caráter, articulações, ritmo, regiões da tessitura, saltos e uso ou não de harmonias ocorre outras vezes ao longo da peça, concentrando-se, sobretudo, em seu final. Cada vez que retorna, ocorre de uma maneira diversa, com uma modificação característica, reforçando o caráter de contrastes a partir do uso de um mesmo conjunto de classe de notas (Ex. 5). Essa característica motivou o pesquisador Caio Senna a pensar a peça como uma forma “caleidoscópica”, pois

“o movimento circular faz com que os mesmos materiais se agrupem de maneiras diversas, nunca retornando exatamente à configuração original, embora, por vezes, possam ocorrer estruturas semelhantes” (SENNA NETO: 2007, p. 112).

Exemplo 5: Variedade sonora de um mesmo conjunto de classe de notas em três transposições e configurações distintas em Contrastes, de Marisa Rezende.

Conforme é possível perceber no exemplo anterior, as três configurações iniciais do con-junto de classe de notas são trabalhadas ao longo da peça de maneira a produzir variedades de

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possibilidades sonoras. A primeira, destacada no Ex. 5 por um círculo verde, por exemplo, ocorre com modificação no registro e no ritmo no comp. 19; em um processo de rarefação no comp. 54; e com saltos intervalares sobre acordes com sobreposição de intervalos de 5J no trecho final da peça, entre os compassos 66-67.

A segunda configuração, destacada no Ex. 5 por uma estrela amarela, é modificada nos com-passos 28-30 por uma figura melódica também sobre acordes com sobreposição de intervalos de quintas. Um exemplo bastante significativo é o que ocorre entre os compassos 58-61, nos quais há, inicialmente, a sobreposição da primeira, com dobramento de 5J, e segunda configura-ções, seguidas pela terceira que é sustentada por meio de ressonâncias e fermata.

A terceira configuração, por sua vez, é destacada no Ex. 5 por um quadrado vermelho e tam-bém aparece no comp. 13 em fusas; e nos comp. 56-57 em quiálteras com ressonâncias.

Contrastes se apresenta, dessa forma, como uma peça na qual a variedade de possibilidades de construções melódicas, harmônicas, rítmicas, de texturas, de caráter, de articulações, de an-damentos, de regiões do piano e de ressonâncias é trabalhada com bastante velocidade (pouca permanência) a partir de um único conjunto de classe de notas, suas transposições, bifurcações e usos parciais, o que causa, na peça, uma unidade estrutural e, ao mesmo tempo, uma grande riqueza de resultados sonoros diversificados.

3. MUTAÇÕES

A versão a quatro mãos da peça Mutações foi escrita em 200229 tendo como base a versão original para dois pianos, de 1991. A peça trabalha um processo de acumulação e adensamento de materiais melódicos diatônicos, transformando-se de uma melodia espacializada em um contra-ponto ritmicamente mais livre e, posteriormente, em uma métrica mais precisa e marcada. A própria compositora escreve sobre a peça, afirmando que “uma única linha melódica gerava toda a obra, mas são as manipulações às quais ela é exposta que constroem o discurso”. (REZENDE: 2007, 78)

Assim como Contrastes que utilizava um número limitado de conjunto de classes de notas em relação às alturas, Mutações utiliza apenas dois conjuntos, equivalentes às escalas tonais de Fá m natural e Mi M, o que exclui a nota Ré natural (Ex. 6). Na classificação de Forte, ambos são o conjunto 7-35 (STRAUS: 2013, 203). Cada um dos dois conjuntos utilizados possui quatro clas-ses de notas particulares e três classes de notas em comum com o outro conjunto.

Exemplo 6: Conjunto de classes de notas utilizados em Mutações, de Marisa Rezende. As notas com preenchimento (pretas) são particulares a cada um dos conjuntos; as sem preenchimento (brancas), são classes de notas comuns aos dois conjuntos. A nota Ré natural é ausente nos dois conjuntos.

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Apesar da utilização de dois conjuntos de classes de notas equivalentes a escalas tonais, a peça não soa realmente tonal, pela ausência de relações harmônicas que criem polarizações e resoluções. É o que Straus considera como coleção referencial diatônica (STRAUS: 2013, 108). A peça utiliza clusters diatônicos e uso mais livre de figuras melódicas naquilo que a compositora afirma ser um pandiatonicismo30 [sic] consciente (REZENDE: 2007, 90).

De uma maneira geral, a peça baseia-se em um processo de acumulação e adensamentos melódicos e harmônicos que ocorrem em paralelo com a aceleração metronômica, com um cres-cendo de intensidade dinâmica e com uma ampliação da tessitura do instrumento. Esse processo de aumento da atividade, entretanto, não é linear, havendo ao menos três retomadas nas quais há um certo retorno a um grau menor de atividade, porém já com mais ação do que ocorrera ante-riormente. Metaforicamente, é como se fossem “ondas” de acúmulos e adensamentos, seguidos por uma coda que confronta com mais intensidade e rapidez os dois conjuntos de classes de notas utilizados (Gráfico 1).

Gráfico 1: Processo de acumulação e adensamento por “ondas” em Mutações, de Marisa Rezende. A abscissa (x) indica o número de compasso de ocorrência, enquanto a ordenada (y), a intensidade da atividade musical.

Dessa maneira, a primeira parte do processo, que vai do compasso 1 ao 28, inicia-se com um cluster diatônico com a utilização do conjunto de classe de notas similar à escala de Fá menor na-tural, na região central. Na sequência, uma melodia espacializada31 entre os dois executantes vai, aos poucos, se transformando em um contraponto a duas vozes mais livre. Essa passagem ocorre em paralelo à ampliação da tessitura do instrumento que, inicialmente é limitada à região central e vai, aos poucos, expandindo-se. Ritmicamente, no início, há uma certa flexibilização do pulso com uma dualidade entre colcheias simples e pontuadas. Vai, aos poucos, acelerando e ganhando tessitura, intensidade, densidade (passando a duas e, depois, quatro vozes) e fixando-se ritmica-mente na figura da colcheia simples, que passa a ser sentida como o pulso. No compasso 28 há um rallentando e uma fermata (Ex. 7) indicando a primeira suspensão no processo de acumulação.

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Exemplo 7: Compasso 1-4 e 26-29 de Mutações, de Marisa Rezende. Percebe-se a primeira etapa de acúmulo e adensamento melódicos.

A segunda parte do processo (comp. 29-69) se inicia com um contraste nas alturas, passan-do subitamente a uma dinâmica ff em um cluster diatônico utilizando o conjunto de classes de notas similar à escala de Mi M (Ex. 7, último compasso).

Essa segunda parte do processo (Ex. 8) ganha destaque pelo uso de uma imitação entre as vozes dos dois executantes, pelo início do uso de dobramentos de oitavas entre as partes de um mesmo executante e pelo uso rítmico mais próximo a uma métrica bastante marcada (estriada), em oposição ao início da primeira parte que era bastante livre. A figura da colcheia continua sen-do utilizada como base rítmica, porém, sobretudo a partir do compasso 48, passa a ser sentida mais como subdivisão de métricas mistas ou compostas do que como o pulso em si, como ocor-ria na primeira parte do processo. A utilização de notas em staccato e dinâmica p cria também um destaque para o trecho, pois o diferencia do que vinha ocorrendo desde o início da peça, onde havia sonoridades em legato e mais livres. Em relação à expansão da tessitura, há, pela primeira vez, o uso das claves de Sol oitava acima e de Fá oitava abaixo32.

Exemplo 8: Compasso 32-34, 40-42 e 48-49 de Mutações, de Marisa Rezende.

Uma nova retomada ocorre a partir do compasso 70 com a indicação de andamento “Pouco menos movido”, logo após o rallentando do compasso 69. Ritmicamente, esta terceira parte do

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processo (comp. 70-91) passa a utilizar a figura da semicolcheia como base para subdivisões de métricas simples, sonoramente bem presentes e com aumento gradual da movimentação (acele-rando). A expansão da tessitura do piano é direcionada ao agudo, indicada pelo uso, no compasso 82, da clave de Sol duas oitavas acima (Ex. 9).

Exemplo 9: Compasso 69-70, 76-77 e 82-83 de Mutações, de Marisa Rezende.

A partir do compasso 92, após a fermata, ocorre o trecho de maior movimentação, com o uso mais extenso da tessitura, em andamento mais rápido e de maior intensidade dinâmica (Ex. 10). Ritmicamente, a semicolcheia continua sendo utilizada como subdivisão, agora de métricas mistas, porém há a sobreposição de métricas distintas entre os pianistas I e II, pois nem sempre coincidem ritmicamente entre si e/ou com a barra de compasso utilizada. É o que ocorre, por exemplo, entre os comp. 94-95, nos quais são utilizadas métricas ternárias mistas em ambos os pianos, porém com agrupamentos das subdivisões diferentes, indicadas pela união das hastes das figuras rítmicas. A sobreposição métrica é desfeita nos quatro últimos compassos do trecho (compassos 107-110), nos quais há o dobramentos em oitavas entre as partes dos dois pianistas. Esse trecho culmina em um cluster diatônico em dinâmica ff que marca também o início da Coda.

Início Coda

Exemplo 10: Compassos 92-95 e 108-111 de Mutações, de Marisa Rezende.

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Na Coda (comp. 111-131) ocorre com maior frequência e intensidade o contraste entre os dois conjuntos de classes de notas e algumas das características musicais desenvolvidas ao longo da peça, com a rápida oposição entre trechos mais livres, como no início da peça, e trechos mais rápidos e com métrica mais marcada. Entre os compassos 123-124, a nota Ré natural é tocada pela primeira e única vez na peça (Ex. 11), sendo esta ausente entre os dois conjuntos de classes de notas utilizados. Este trecho soa bastante próximo ao início da peça, assemelhando-se também a uma melodia espacializada entre os executantes.

Exemplo 11: Compassos 121-127 de Mutações, de Marisa Rezende.

Mutações, para piano a quatro mãos, é uma peça que apresenta um processo de transfor-mação que vai de uma melodia espacializada, passando por uma textura mais contrapontística a duas vozes, com ritmos mais independentes e em dinâmica p, sendo transformada por cres-cendos, acréscimos graduais de vozes e acelerandos, até atingir uma maior movimentação com dobramentos de oitavas entre os executantes, em uma métrica mais presente e marcada. Esse processo, entretanto, não ocorre linearmente, sendo em quatro etapas, com três retomadas nas quais há uma volta a um estado um pouco mais calmo, para, em seguida, intensificar um pouco mais a movimentação em relação à etapa anterior. Em relação às alturas, utiliza apenas dois con-juntos distintos de classes de notas que, quando tocados em sequência, produzem contrastes sonoros devido às oito classes de alturas distintas e pelo fato de serem tocados como clusters. A Coda é o trecho que se apresenta mais contrastante, com modificações a cada quatro ou cinco compassos de caráter, executante e conjunto de classe de notas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na dupla formação da pianista e compositora de Marisa Rezende, as peças Contrastes e Mutações são importantes na compreensão das técnicas composicionais trabalhadas em favor da uma escrita idiomática para o instrumento.

Um fato que une as peças é a opção pelo uso reduzido de conjuntos de classes de notas, sendo que Contrastes utiliza majoritariamente um mesmo conjunto de quatro notas, transposto e

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modificado, enquanto Mutações utiliza dois conjuntos equivalentes a duas escalas diatônicas, no que pode ser classificado por um pandiatonicismo [sic].

Estratégias composicionais de rupturas e transformações também estão presentes em am-bas as peças. Em Contrastes, a transformação se dá mais dentro dos vários resultados sonoros criados a partir das três configurações principais do único conjunto de classe de notas. Essas transformações ocorrem mais espaçadas na peça, o que acaba gerando pontos de reconheci-mento e, consequentemente, marcações macro-estruturais. Já as rupturas ocorrem em um ritmo rápido, com materiais musicais e resultados sonoros antagônicos frequentemente aparecendo o tempo todo. Ou seja, em Contrastes, as transformações ocorrem mais em uma perspectiva da macro-estruturação formal da peça, no âmbito das figuras musicais e de seus retornos, enquan-to as rupturas ocorrem em uma perspectiva de continuidade da peça, sendo marcante na peça como um todo.

Já Mutações, por sua vez, usa um processo mais gradual de transformações, com um proces-so em etapas de adensamento e acumulação de materiais musicais derivados da melodia inicial, no que pode ser classificado como uma estratégia mais contínua de modificações. As rupturas da peça, por outro lado, ocorrem sobretudo em pontos mais específicos, como nas passagens de um conjunto de classe de notas a outro e na Coda, o que auxilia na compreensão da macro-estrutura da peça como um todo.

Dessa maneira, percebe-se, nas peças estudadas, que a criação de um discurso musical que trabalha majoritariamente a ruptura, tal como em Contrastes, abarca também uma busca pelo desenvolvimento motívico característico de um processo de transformação e que, por outro lado, em uma peça que prima por um trabalho de modificação de um material melódico, como Muta-ções, há também elementos de contrastes, caracterizando, dessa maneira, uma gradação dessas duas possibilidades composicionais que, à princípio, poderiam ser consideradas como opostas, mas que, na realidade, se apresentam nas peças estudadas como complementares.

Espera-se, dessa maneira, contribuir para a compreensão da escrita composicional e para a divulgação da música de Marisa Rezende ao demonstrar uma possível análise de duas peças suas para seu principal instrumento, o piano.

REFERÊNCIAS:

MACEDO, Tatiana Dumas. Contrastes de Marisa Rezende: um estudo dos toques pianísticos na mú-sica contemporânea brasileira. Dissertação de mestrado em música. UNIRIO. Rio de Janeiro, 2011.

NEIVA, Tânia Mello. Cinco mulheres compositoras na música erudita brasileira contemporânea. Cam-pinas, 2006. 266 f. Dissertação (Mestrado em Música). Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.

REZENDE, M. Pensando a composição. In: FERRAZ, S (org). Notas. Atos. Gestos. Rio de Janeiro: Ed. 7Letras, 2007.

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SENNA NETO, Caio Nelson de. Textura musical: forma e metáfora. Tese de Doutorado em Músi-ca. 165p. UNIRIO . Rio de Janeiro, 2007.

SILVA, Dario Rodrigues. A obra pianística de Marisa Rezende: processo de construção da performance através da interação entre intérprete e compositora. Dissertação de mestrado em música. 113p. UFR-GS. Porto Alegre, 2015.

STRAUS, Joseph. Introdução à teoria pós-tonal. Tradução de Ricardo Mazzini BORDINI. São Pau-lo: Editora da Unesp/Salvador: EDUFBA, 2013.

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CASA E MYTHS & VISIONS: DOIS RECITAIS DE PIANO/PERFORMANCES INTERDISCIPLINARES

Késia Decoté Rodrigues

Oxford Brookes University – [email protected]

Resumo: Explorando o aspecto multimodal da experiência musical, os recitais de piano/performances interdisciplinares casa e myths & visions foram desenvolvidos, combinando elementos de teatro e dança com a performance musical. Esses projetos apresentaram duas obras da compositora Marisa Rezende em seus programas: en-quanto no projeto casa a obra “Ressonâncias” compôs um diálogo com os elementos interdisciplinares, no projeto myths & visions a obra “Miragem” informou o conceito visual para a performance. Comentários do público demonstraram que propostas in-terdisciplinares facilitaram a apreciação musical de públicos menos experientes com música de concerto.

Palavras-chave: Piano; Performance musical; Artes interdisciplinares

Title: Casa and myths & visions: two piano recitals/interdisciplinary performances

Abstract: Exploring the multimodal aspect of the music experience, the piano reci-tals/interdisciplinary performances casa and myths & visions were developed, combi-ning elements of theatre and dance with music performance. These projects featured two works by composer Marisa Rezende: while, in casa, “Ressonâncias” integrated a dialogue with the interdisciplinary elements, in myths & visons, “Miragem” inspired the visual concept of the performance. Audience feedback demonstrated that the interdis-ciplinary proposal was specially appreciated by audiences less experienced with clas-sical music.

Keywords: Piano; Music Performance; Interdisciplinary Arts

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1.MÚSICA COMO UMA EXPERIÊNCIA INTERDISCIPLINAR: INTRODUÇÃO/CONTEXTUALIZAÇÃO

Esta comunicação diz respeito a dois recitais de piano/performances de caráter interdisci-plinar – casa e myths & visions – os quais incluíram duas obras da compositora Marisa Rezende – Ressonâncias e Miragem, em seus repertórios. Esses recitais foram desenvolvidos como parte da minha pesquisa de doutorado em estratégias interdisciplinares para o recital de piano1.

Ao longo da história, música tem sido uma experiência essencialmente interdisciplinar, des-de a complementaridade entre som e elementos visuais em danças e rituais ancestrais, passando pelas tradições de ópera e ballet, até os visuais da cultura club contemporânea (DANIELS et al., 2010: 7). Entre “os parceiros mais irresistíveis” da música, Cook destaca o elemento textual atra-vés de letras [“it is the word that has become the most irrepressible parner of music”], em textos acom-panhando gravações, programas de rádio e notas de programas, por exemplo (COOK, 2004: 266). Por outro lado, Godøy ressalta a relação intrínseca entre imagens de movimentos corporais e a experiência musical, talvez como resultado da correspondência tradicional da produção de um som a uma ação corporal (GODØY, 2010: 55-56).

Entretanto, em meados século XIX, propostas de isolamento da experiência musical do seu aspecto multimodal2 ganharam força com a disseminação da ideia de “música absoluta”, e da elevação da música instrumental à condição de arte suprema (CRESSMAN, 2012: 102). Esses ideais vêm determinando até hoje o modo de apreciação musical geralmente praticado nas salas de concerto. Neste “ritual da sala de concerto”, os elementos visuais no palco – então entendidos como fatores de distração - são reduzidos ao mínimo, e se prescreve que a plateia permaneça silenciosa e o mais imóvel possível durante toda a performance (SMALL, 1987: 8-10).

Não obstante, pode-se observar que, mesmo nestes contextos relacionados aos ideais de música absoluta, os outros sentidos nunca foram totalmente excluídos da experiência musical. Cook destaca, por exemplo, a presença do elemento textual mesmo na prática de música “pura”, através das notas de programas, e também a importância do aspecto visual exemplificado pela predileção pelos assentos do lado esquerdo do auditório em concertos de piano (COOK, 2004: 265). De acordo com Cook, em tais situações o aspecto multimodal ainda existe, apesar de ter sido removido para a periferia da experiência musical (idem: 266).

No contexto da música de concerto contemporânea, pode-se observar uma crescente pro-dução de obras que deliberadamente exploram uma proposta interdisciplinar, por exemplo, atra-vés da combinação da performance musical com vídeo, iluminação, e/ou atuação teatral. Tais pro-postas vêm sendo exploradas em peças musicais que incluem o aspecto multimodal na própria composição musical, como nas peças Piano Hero I e II (2011/2013) do compositor belga Stefan

1 Documentação desses e de outros projetos integrantes da minha pesquisa de doutorado podem ser acessados em: https://kesiadecote.wordpress.com/phd-research/ 2 Nesse artigo, os termos interdisciplinar e multimodal estão sendo entendidos como sinônimos.

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Prins, escritas para piano, piano midi, vídeo pré-gravado e eletrônica ao vivo3, ou a peça Noturno após o vinho (2001) do compositor brasileiro Tim Rescala, que inclui instruções de atuação teatral para o pianista na própria partitura4. Outras propostas têm explorado a o aspecto interdisciplinar através da justaposição de elementos, como na Série MusicArt London, que promove recitais de piano combinados com outras artes, tais como exibições de artes plásticas e leituras de poesia5.

Nos recitais de piano/performances interdisciplinares abordados nessa comunicação - casa e myths & visions - a proposta interdisciplinar foi explorada através do entrelaçamento dos ele-mentos de outras disciplinas artísticas nas performances dos respectivos programas musicais. O projeto casa apresentou elementos de teatro, enquanto o projeto myths & visions investigou elementos de dança, combinados com a performance musical.

Esses projetos são parte integrante de uma pesquisa prática [practice-based research] na qual proponho desenvolver um conceito de recital de piano como uma forma artística em si. Nesta pro-posta, o recital de piano seria desenvolvido como um evento artístico em um todo, onde os variados elementos convergem para criar uma experiência artística mais abrangente e imersiva. Com fim de possibilitar este amalgamento dos diversos elementos constituintes do projeto, buscou-se a apli-cação de ideias do campo da dramaturgia durante o processo criativo, i.e., a aplicação de um olhar criterioso sobre a “tecelagem dos diferentes elementos da performance” (BARBA, 1985: 75).

Nas seções seguintes desta comunicação, os processos criativos dos projetos casa e myths & visions serão examinados e, em especial, serão traçadas reflexões sobre como as obras Ressonân-cias e Miragem contribuíram no desenvolvimento desses processos. Uma vez que essa pesquisa inclui o objetivo de trazer novas propostas para a experiência da música de concerto, conside-rações também serão traçadas sobre estas respostas do público. De igual modo, considerações serão feitas sobre a experiência do ponto de vista da pianista, abordando novos paradigmas e aprendizados para a prática de performance musical.

2. ESTUDO DE CASO: CASA – REFLECTIONS ON HOUSE & HOME

casa6 foi um recital de música contemporânea brasileira para piano e para piano de brin-quedo, que integrou elementos de teatro. O programa musical desse recital apresentou as obras: Tátil (da compositora Valéria Bonafé), Ressonâncias (Marisa Rezende), Nenhum nenhuma (Gusta-vo Penha), Ludvan ven Beethowig (Daniel Moreira), gosto de terra (Daniel Puig) e El Sueño... el vuelo (Silvia Berg). Esse projeto foi inspirado no livro “A poética do espaço” de Gaston Bachelard, o qual faz reflexões sobre os espaços da casa, e sobre como a vivência desses espaços vem a moldar a nossa percepção do mundo e influenciar nossas histórias de vida. A leitura desse livro inspirou reflexões sobre as minhas memórias das casas que vivi e como essas experiências vêm ressoando

3 Cf. http://www.stefanprins.be/eng/composesInstrument/comp_intro.html (Acesso em 24/04/2018)4 Cf. performance da obra pela pianista Maria Teresa Madeira: https://youtu.be/9I106FHRwOg (Acesso em 24/04/2018)5 Cf. website do projeto: http://musicart.london (Acesso em 24/04/2018)6 Vídeo com trechos da documentação da performance pode ser acessado em https://youtu.be/B079PzehSyk

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em minha trajetória pessoal e profissional. Por consequência, mostrou-se apropriado conferir um caráter autobiográfico ao projeto.

Nesse projeto não havia distinção entre espaço de palco e espaço de plateia, o que faz re-ferência a ideias da categoria “teatro imersivo”, onde o espectador é situado “dentro do universo da estória (...), tudo é ‘palco’ e o público é colocado lá junto com os atores” (ANDERSON, 2015). Foram utilizados vários pianos nessa performance: um piano de armário, um piano de cauda e dois pianos de brinquedo. Peças de mobília e objetos domésticos tais como guarda-roupa, caixi-nhas de música, caixas e gavetas, foram utilizados na composição do ambiente, os quais também faziam alusão a passagens do livro “A poética do espaço”. Não havia cadeiras para o público, isso com a intenção de incentivar a movimentação dos espectadores, uma vez que eles foram avisados que poderiam ficar à vontade para andar pelo espaço durante a performance.

A performance seguiu buscando uma ideia de “narratividade”, ou seja, buscou “evocar um roteiro narrativo na mente do espectador, sem necessariamente contar uma história específica” (RYAN 2004: 268). Para tal, eu desenvolvi o roteiro da performance refletindo sobre as fases da minha história pessoal, as minhas mudanças de casa desde a minha infância até o período de amadurecimento e desenvolvimento da minha carreira acadêmica e profissional. Porém, ao invés dessa referência autobiográfica ser apresentada explicitamente no produto final, ela foi apresen-tada de forma velada, sendo utilizada mais como uma inspiração para entremear os elementos e como um fio condutor para o desenrolar da performance.

2A. PROCESSO CRIATIVO - “RESSONÂNCIAS” NO CONTEXTO DO PROJETO CASA

Durante a minha leitura do livro “A poética do espaço” fui selecionando palavras-chave e citações que se destacaram em minhas reflexões. Essas palavras-chave e citações se tornaram inspiração para pesquisa do repertório musical, e também influenciaram a minha interpretação dessas peças. Por fim, a associação de cada palavra-chave a uma citação e a uma peça musical constituiu uma cena da performance.

Entre cada peça do programa eu realizei uma ação teatral, como por exemplo tocar caixi-nhas de música, tocar gravações de vozes e olhar fotos dos meus familiares, acender e apagar abajures. Também, eu me locomovia pelo espaço para tocar cada peça em um piano diferente da peça anterior, sendo que cada uma dessas ações e desses deslocamentos tinha um simbolismo dentro do contexto autobiográfico do projeto.

Por exemplo, a cena 2, “Ecos”, foi inspirada na passagem onde Bachelard diz que “a velha casa, para aqueles que sabem ouvir, é uma espécie de geometria de ecos” (BACHELARD, 1994: 60). Para compor essa cena, eu escolhi a peça “Ressonâncias”, a qual, segundo a própria compo-sitora Marisa Rezende, “foi escrita a partir da ideia de explorar a ressonância do piano através do uso do pedal (...) e tem o caráter de improviso” (REZENDE, 1990: 64).

Em relação ao aspecto autobiográfico, no meu imaginário eu relacionei essa cena às minhas lembranças de infância, a casa da família com as vozes dos meus familiares ecoando na minha

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memória, e o caráter de improviso como a liberdade da infância. A ação teatral que eu realizei nessa cena, antes de tocar a peça “Ressonâncias”, foi abrir o guarda-roupa, olhar fotos da minha família, e tocar uma gravação de vozes dos meus pais e irmãos a partir do meu telefone celular. Para finalizar essa ação e prosseguir tocando a peça “Ressonâncias” no piano de cauda, eu co-loquei o telefone celular dentro do piano ainda enquanto a gravação estava tocando, como que simbolizando como essas vozes ainda ecoam no meu dia-a-dia de musicista adulta.

Assim, de uma forma simbólica e reflexiva, foi traçado um diálogo entre o texto literário, o conteúdo autobiográfico, e o material musical.

Fig. 1. casa - ação teatral da cena “Ecos”. Foto: Stu Allsopp.

2B. RESULTADOS – COMENTÁRIOS DO PÚBLICO

Como parte da metodologia da pesquisa, comentários do público foram recolhidos através de questionários por escrito após a performance, e também por e-mail e em conversas informais posteriores. Alguns comentários demonstraram uma boa receptividade à proposta de mesclar elementos de literatura e teatro no recital de piano, assim como a ideia de sugerir um aspecto de narrativa no desenrolar da performance. Essas propostas foram bem recebidas principalmente por membros do público com menos experiência com música de concerto, por oferecer assim uma referência para a escuta. O impacto emocional foi também destacado nos comentários, po-dendo-se observar uma apropriação da temática pelo espectador, o qual se sentiu estimulado a tecer reflexões sobre suas próprias memórias de casa e de família:

“Ver as caixinhas de música, os pianos infantis, os abajures, sua atuação, ter as infor-mações no folheto, influenciou a maneira como experimentei o show e me ajudou a apreciar a música – porque promoveu o contexto necessário para isso” (membro do público, anônimo).

“Ao fim da performance eu senti como se estivesse em uma viagem, ao mesmo tempo uma viagem interna pelos espaços da casa, e pelas emoções que são associadas aos seus diferentes aspectos” (membro do público, anônimo).

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“Eu me senti um pouco nostálgica e meus pensamentos se voltaram para a casa da minha infância e a segurança dada pelos meus pais e pela casa” (membro do público, anônimo).

Em minhas reflexões enquanto autora do projeto, a experiência desse projeto levantou questões sobre a possibilidade de desenvolver uma proposta interdisciplinar que não depen-desse necessariamente de notas de programa, a fim de ser percebida como coerente quando da sua apreciação pelo público. Com essa consideração em mente, no próximo projeto eu procurei explorar um processo criativo mais independente de referências textuais, e mais focado nos ele-mentos emergentes da prática pianística em si.

3.ESTUDO DE CASO: MYTHS & VISIONS – A PIANO (& BODY) PERFORMANCE

O projeto myths & visions [mitos e visões]7 foi um recital de piano solo entremeado com ele-mentos de dança. O repertório musical apresentou apenas peças que requerem técnicas esten-didas de piano, o que possibilitou uma variedade maior de gestos corporais a serem explorados. As peças que compuseram o programa foram: The voice of Lir com clusters tonais, Aeolian harp para cordas do piano, The Banshee para cordas do piano (obras do compositor Henry Cowell), Bacchanale [para piano preparado], inside silence para piano preparado e piano de brinquedo (Sara Carvalho), Miragem (Marisa Rezende), e A flower para voz e piano fechado (John Cage).

O ponto de partida do processo criativo foi a fisicalidade da performance pianística em si, o inte-resse nos gestos inerentes à prática pianística. Durante o meu estudo das peças do repertório, eu bus-quei explorar o potencial coreográfico dos movimentos corporais que eu realizava ao piano, tais como movimentos de braço, torso, e também movimentos de pernas, quando a peça possibilitava que eu tocasse em pé. No desenrolar desse processo, foi também percebido o potencial coreográfico das transições entre as peças, uma vez que eu precisava me locomover de uma área do piano para outra para poder realizar as técnicas estendidas específicas de cada obra, e também para realizar ações de preparação do piano. Assim, esses momentos de conexão entre as peças do programa foram também coreografados8, o que resultou em uma fluidez da performance. Desse modo, a corporalidade em si se tornou a linha narrativa, o elemento de entrelaçamento do tecido da performance.

Adicionalmente, informações referenciais sobre as peças musicais, tais como títulos e fonte de inspiração para as composições, serviram como ponto de partida para exploração de elemen-tos visuais para composição das cenas das performances.

3A. “MIRAGEM” NO DESENVOLVIMENTO DOS CONCEITOS VISUAIS E GESTUAIS DO PROJETO MYTHS & VISIONS

A peça Miragem, da compositora Marisa Rezende, requer que a intérprete toque diretamen-te nas cordas com uma baqueta de feltro, às vezes simultaneamente ou alternando com a perfor-mance no teclado. De acordo com a compositora, Miragem explora distorções da sonoridade do

7 Vídeo com trechos da documentação da performance pode ser acessado em https://youtu.be/U4KpLmki2j4 8 No projeto myths & visions, eu tive a direção de movimento da coreógrafa Joëlle Pappas (Oxford, Inglaterra).

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piano quando tocados simultaneamente teclado e as baquetas nas cordas, “criando um jogo que parafraseia o título” (REZENDE, 2010: 12).

No projeto myths & visions, eu me inspirei nessa ideia de paráfrases para compor o conceito visual do momento da performance da peça “Miragem”. Dentro do programa do projeto, Miragem se encontra depois de uma peça que termina no piano de brinquedo, situado no outro lado do palco. Então, durante este deslocamento do piano de brinquedo para o piano de cauda, eu bus-quei chamar a atenção para a baqueta e para o interior do piano, através de gestos coreografados: depois de tocar a peça anterior no piano de brinquedo, eu peguei a baqueta do chão e estendi o braço até que a baqueta alcançasse o interior do piano, buscando uma qualidade gestual como se o piano estivesse exercendo uma atração gravitacional sobre a baqueta e também sobre o meu braço, por extensão. Nesse momento, passei a explorar o reflexo da baqueta no interior da tampa do instrumento.

Uma vez posicionada em frente ao teclado para a performance da peça, um foco de luz frontal foi acionado, a fim de projetar as sombras do piano e da minha imagem como pianista, na parede ao fundo do palco. Desta forma, o material da peça musical em si serviu também para gerar o conceito visual e o gestual coreográfico da performance, em diálogo com a interpretação musical.

Fig. 2. myths & visions -efeitos de sombras no momento da peça “Miragem”. Foto: Stu Allsopp.

3B. RESULTADOS – COMENTÁRIOS DO PÚBLICO

Comentários do público foram recolhidos ao final da performance através de questionário por escrito. Em especial, os comentários ressaltaram a percepção de uma fluência na performan-ce, como resultado dos gestos conectando as peças do programa. Foi comentado que, dessa forma, a “mágica” foi mantida por toda a duração da performance, sem a interrupção do estado contemplativo que as transições geralmente acarretam. Também foi destacado que os movimen-tos corporais foram percebidos como uma continuação do som, como uma ampliação da música através dos gestos coreográficos. Assim como no projeto anterior, a proposta interdisciplinar foi apreciada especialmente por membros do público menos experientes com música de concerto, em particular com música contemporânea, por oferecer uma maneira imaginativa de introduzir o material musical que poderia ter visto como mais desafiador à escuta.

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“Os movimentos corporais contribuíram bastante – outra dimensão que conectou os momentos que, de outra forma teriam quebrado o ‘clima’ da performance” (membro do público, anônimo).

“Foi mais do que música, foi sobre som... porque o som existe sempre, mas com os seus gestos, você o fez presente” (membro do público, anônimo).

“Eu não tive a impressão que você estava ‘dramatizando’, eu senti que você estava en-volvida com a música de uma forma mais abrangente” (membro do público, anônimo).

“Essa música foi novidade para mim. Os elementos ‘extra’ certamente me ajudaram a apre-ciar a música. Eu acho que sem eles eu teria estranhado a música. Mas, agora eu estou curiosa sobre os sons que podem ser obtidos do piano” (membro do público, anônimo).

4.CONSIDERAÇÕES DO PONTO-DE-VISTA DA PIANISTA

Esses projetos interdisciplinares trouxeram novos desafios para mim como pianista, por exemplo, em termos de estratégias de concentração, uma vez que a barreira entre palco e público foi eliminada, e assim outros fatores, tais como ter pessoas andando próximo ao piano, ou mes-mo mudanças na iluminação durante a performance, poderiam acarretar distração. Essas propos-tas também requereram treinamento adicional, como o estudo de elementos do campo do teatro tais como dramaturgia e iluminação, também treinamento em dança e expressão corporal, além do estudo de piano em si.

Porém, novas possibilidades também foram abertas: se por um lado os elementos interdis-ciplinares abriram um outro canal de expressão para minha prática artística, eles também vieram a influenciar a minha interpretação das peças por estimular imagens mentais durante o meu pro-cesso de estudo ao piano. Também, a proposta de fluidez das performances veio a influenciar o modo como eu construí a performance de cada peça dos repertórios e as apresentei no próprio momento dos recitais, uma vez que, agora, a finalização de cada obra carregaria o potencial de preparar o início da próxima do programa.

5.CONCLUSÃO

Essa comunicação abordou dois recitais de piano interdisciplinares por mim desenvolvidos e apresentados - casa e myths & visions - os quais incluíram, respectivamente, as obras “Ressonân-cias” e “Miragem” da compositora Marisa Rezende em seus programas.

O projeto casa foi inspirado no livro “A poética do espaço” de Gaston Bachelard, e apre-sentou um caráter autobiográfico, entrelaçando a performance musical com ações teatrais. A peça “Ressonâncias” veio a compor uma das cenas da performance, propondo um diálogo com a referência literária e com as minhas memórias pessoais. O projeto myths & visions integrou elementos

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de dança na performance musical e como elemento de transição entre as peças musicais, buscando uma fluidez na performance como um todo. Nesse contexto, a peça “Miragem” serviu de inspiração para a o desenvolvimento do conceito visual e coreográfico de uma das cenas, particularmente pela sugestão de imaginário do seu título e pela sua utilização de técnicas de piano estendidas.

Ambos os projetos obtiveram resultados positivos, em especial com o público menos expe-riente com música de concerto, sendo comentado que as propostas interdisciplinares ofereceram referências que vieram a ajudar a apreciação musical. Do ponto-de-vista da pianista-intérprete, pude perceber que, enquanto as propostas interdisciplinares trouxeram novos desafios em ter-mos de concentração e treinamento adicional, também me ofereceram novas perspectivas em termos de interpretação e possibilidades de expressão artística.

Esses projetos foram desenvolvidos como parte da minha pesquisa de doutorado em es-tratégias disciplinares para o recital de piano. Com essa pesquisa, almejo estar contribuindo para o campo da performance de música de concerto, oferecendo ideias para a inovação de formas de apresentações musicais - recitais de piano em particular - assim possibilitando o alcance de novas plateias e novas experiências para públicos já existentes. Acima de tudo, a pesquisa e os projetos abordados nessa comunicação partem da minha aspiração artística de oferecer con-textos para o compartilhamento de experiências únicas e significativas com o público – o qual almejo chamar de co-participantes. Assim, como afirmado pela compositora Marisa Rezende, onde houver um contexto que possibilite uma comunhão, um “respirar junto (...), acredito que possa haver uma troca significativa, algo que tenha impacto” (REZENDE, por correspondência/email pessoal, 2017).

Agradecimentos: CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil, pelo apoio a essa pesquisa de doutorado, e SARU, Sonic Arts Reseach Unit, Oxford Brookes University - UK, pelo apoio na realização dos projetos abordados nessa comunicação.

REFERÊNCIAS:

- Livros

BACHELARD, G., JOLAS, M. The Poetics of Space. Boston: Beacon Press, 1994.

DANIELS, D., NAUMANN S., THOBEN, J. (eds.). See This Sound: audiovisuology compendium; an interdisciplinary survey of audovisual culture. Köln: König, 2010.

COOK, Nicholas. Analysing Musical Multimedia. Reprinted. Oxford: Oxford University Press, 2004.

RYAN, Marie-Laure (Org.). Narrative across Media: the languages of storytelling. Frontiers of Narrative. Lincoln: University of Nebraska Press, 2004.

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- Capítulo de livro

SMALL, C.. Performance as Ritual: Sketch for an Enquiry into the True Nature of a Symphony Concert. In: WHITE, A. L. (Org.) Lost in Music: Culture, Style and the Musical Event. London: Rou-tledge, 1987. 6–32.

- Dissertação

CRESSMAN, D. M.. The Concert Hall as a Medium of Musical Culture: the technical mediation of listening in the 19th Century. Burnaby, B.C., 2012 [216 p.]. Tese (Doutorado em Comunicação), Simon Fraser University, 2012.

- Artigos em Periódicos

BARBA, E. The Nature of Dramaturgy: Describing Actions at Work. New Theatre Quarterly, 1 (v.), 01 (n.), 75-78 (p.), 1985. DOI:10.1017/S0266464X00001421.

GODØY, R. I.. Images of Sonic Objects. Organised Sound 15 (v.), 01 (n.), 54-62 (p.), 2010. https://doi.org/10.1017/S1355771809990264.

REZENDE, Marisa. Ressonâncias - a abordagem analítica vista comparativamente. Opus, Porto Alegre, v. 2 (v.), n. 2 (n.), 64-82 (p.), Junho 1990. 

- Partituras

REZENDE, Mariza. Ressonâncias, para piano solo. 1983 Rio de Janeiro, RioArte, 1996.

REZENDE, Marisa. Miragem, para piano solo. 2009 [arquivo pessoal]

- Entrevista

REZENDE, Marisa. Inquietação artística e zelo na composição. Entrevista de Dinara Pessoa. Revista Continente, 112 (n.), ano 10, Abril 2010. pp. 10-13. Disponível em <https://issuu.com/revis-tacontinente/docs/112_-_abr_10_-_brasilia> Acesso em 23/03/2018.

- Trabalho publicado online

ANDERSON, R.. What exactly is immersive, interactive, participatory or playing theatre, anyway? Playing at Plays (blog), 2015. Disponível em: <https://playingatplays.wordpress.com/2015/02/05/what- exac-tly-is-immersive-interactive-participatory-or-playing-theatre-anyway/> Acesso em 26/03/2016.

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RECITAL COMENTADO – MARISA REZENDEV FESTIVAL DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

Variações para flauta (1995) Marisa Rezende (1944 - )

Cássia Carrascoza, flauta

Ânima (2001) Marisa Rezende (1944 - )

Luís Afonso Montanha, clarineteLídia Bazarian, piano

Mutações (1995) Marisa Rezende (1944 - )

Lídia Bazarian, pianoThais Nicolau, piano

Sintagma (1998) Marisa Rezende (1944 - )

Cássia Carrascoza, flautaFernando Hashimoto, percussão

Thais Nicolau, piano

Volante (1990) Marisa Rezende (1944 - )

Cássia Carrascoza, flautaLuís Afonso Montanha, clarinete

Lars Hoefs, violonceloLídia Bazarian, piano

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VÍDEOS

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CRÉDITOSDireção Geral e Artística Thais Lopes Nicolau

Edição Guilherme Sauerbronn

Diagramação Izabelle Alvares

Comitê Científico Dra. Cristina Gerling [UFRGS]Dr. Daniel Barreiro [UFU]Dr. Fernando Rocha [UFMG]Dr. Ivan vilela [USP]Dr. José Alexandre Lopes Carvalho [Unicamp]Dr. Liduino Pitombeira [UFRJ]Dr. Luiz Costa Lima Neto [UNIRIO]Dra. Maria Bernadete Póvoas [UDESC] Dr. Pedro Huff [UFPE]Dra. Thais Nicolau (Coordenadora) [UDESC]

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Endnotes1 Este filme, realizado logo após a lei da anistia, apresenta com uma riqueza de detalhes e disfar-çada sob o gênero da ficção, alusões à operação Bandeirantes, à tortura de presos políticos e os modos operandi das organizações de guerrilha no Brasil.

2 Vanguarda Revolucionária Popular (VRP). Comandada pelo capitão Lamarca, o grupo teve um campo de treinamento secreto na região que foi cenário de guerrilha rural entre 1970 e 1971. Ver <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/em-fuga-pela-revolucao> Acesso em 10/06/14

3 “... a produção cultural, largamente controlada pela esquerda, estará nesse período pré e pós 64 marcada pelos temas do debate político. Seja ao nível da produção em traços populistas, seja em relação às vanguardas, os temas da modernização, da democratização , o nacionalismo e a ‘fé no povo’, estarão no centro das discussões, informando e delineando a necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética”. HOLANDA: 1992, 17.

4 “O concretismo – segundo o Plano Piloto para a poesia concreta (1958) – pretende então falar a linguagem de um novo tempo. (...) O poema/objeto do concretismo pretende comunicar ‘sua própria estrutura’: seu problema é o das funções e relações das palavras, relações que levam em conta uma organização ético-acústica do poema. Idem, ibidem, 39.

5 “Desconfiados dos mitos nacionalistas e do discurso militante do populismo, percebendo os impasses do processo cultural brasileiro e recebendo informações dos movimentos culturais e políticos da juventude que explodiam nos EUA e Europa – os hippies, o cinema de Godard, os Beatles, a canção de Bob Dylan -, esse grupo passa a desempenhar um papel fundamental não só para a música popular, mas também para toda a produção cultural da época, com consequências que vem até os nossos dias. Idem, 54.

6 “... em 1963 a revista ‘Invenção’ publica o manifesto ‘Por uma nova música brasileira’, no qual são explicitadas as orientações do grupo...” NEVES, 1977: 162.

7 Há que se considerar, entretanto, que a denominação “novas religiões” não é completamente cor-reta pois tratam-se de práticas esotéricas que, via de regra, vinculadas a religiões exotéricas, como no caso zen como ramificação do budismo ou do sufismo, prática ligada ao islã. Além disso, outros gru-pos não se encontram relacionados a religiões formais como o caso de Gurdjieff. Ainda assim acredito que, considerando a validade do estudo, pode se tomar e expressão chave do livro de forma relativa.

8 Sabidamente há Índia uma divisão entre práticas e instrumentos musicais característicos do sul e do norte da Índia.

9 Instrumento indiano cujo executante apenas toca cordas soltas que enfatizam um pedal sob o qual as improvisações, normalmente baseadas em modos (ragas) e ciclos rítmicos (talas), transcorrem.

10 Primeiras edições lançadas respectivamente em 1976, 1987 e 1988.

11 Ver HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós- Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, DP&A, 7. ed., 2003.

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12 A experiência xamânica, por assim dizer, não foi exclusiva do autor quando se lembra de nomes como o de Carlos Catanheda (1925-1998), à época autor de best-sellers nos quais descrevia suas experiências ligadas à tribo Yaqui (presente no México e EUA) a partir do uso de entorpecentes, outra característica importante da cultura hippie das décadas estudadas.

13 Tal como Orfeu Novo. França: MPS, 1970. Além da importante participação em Identy de Airto Moreira (EUA: CTI Records, 1975) no qual praticamente todas e arranjos músicas são seus.

14 Fato ocorrido dia 25/04/1978, como demonstra a matéria do dia seguinte no jornal FOLHA de SÃO PAULO, p.33, matéria sem autor aparente que não especifica a categoria na qual o músico foi premiado.

15 Egberto menciona a referência de Mário de Andrade em diversas entrevistas. Em uma das mais recentes revela ter doado ao acervo do Centro Cultural de São Paulo um exemplar perdido de Melodias Registradas por Meios não Mecânicos, composto de transcrições de melodias étnico brasileiras realizadas por Mário de Andrade. Ver <http://www.youtube.com/watch?v=45JM7ESfxUA > Acesso em 12/06/2014.

16 No programa ensaio, feito para a TV Cultura em 1992, o autor faz alusão à figura da Pomba--Gira aliada à personagem da ópera de Bizet.

17 Ver entrevista concedida a Rolando Boldrin em seu programa da TV Cultura “Senhor Brasil” <http://www.youtube.com/watch?v=SriK8-WnMAQ> Acesso em 15/06/2014.

18 Há uma seção de improvisação sobre essa escala na primeira faixa do disco DIS (ECM, 1976) de Jan Garbarek acompanhado por Ralph Towner.

19 Utilizo aqui o – ou + para indicar a alteração cromática do grau, ao modo de Walter Piston em sua obra sobre harmonia, no lugar das indicações b e #, que só tem validade para a tonalidade de Dó maior.

20 Chamada por Ian Guest em sua obra sobre arranjo por TES (Tríades na Estrutura Superior) também conhecidas por upper structure.

21 Posição aberta que parte de um 4-way-close (posição fechada específica) e faz cair sua 2ª nota oitava abaixo.

22 Arrisquei a classificação em Dbm7M(6)11+ pois a nota RE bemol é nota evitada no acorde de Ab, segundo a teoria da improvisação no jazz.

23 Ver ADORNO, T. (2007) e BOULEZ, P. Apontamentos de aprendiz. (1995) Cap. II: “Stravinski Permanece”.

24 (Tradução do autor) A autora faz distinção entre a dança e, por consequência a festa do Forró que engloba diversos ritmos derivados, entre eles o subgênero musical do forró.

25 (Tradução do autor) A autora faz distinção entre a dança e, por consequência a festa do Forró que engloba diversos ritmos derivados, entre eles o subgênero musical do forró. O termo pífaro se remete ao flautim cuja etimologia remonta ao alto alemão. Entretanto, o nome dado ao instru-mento pode ter sido dado pelos portugueses ao um instrumento de possível origem indígena.

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Egberto descreve a origem norueguesa da flauta usada na gravação, mas fazendo muitas aproxi-mações com a pífano nordestino na entrevista supracitada para o programa da TV Cultura.

26 A estreia da peça Contrastes ocorreu no mesmo ano de sua composição, 2001, tendo sido executada pela pianista Regina Martins na Sala Cecilia Meireles (RJ) durante a XIV Bienal de Música Contemporânea Brasileira. A peça foi gravada em CD em duas oportunidades: pela pró-pria Marisa Rezende em Marisa Rezende - música de câmara, lançado pelo LAMI/USP em 2003; e pela pianista Joana de Holanda em Piano Presente, lançado pelo selo SESC em 2013. A partitu-ra usada na análise encontra-se disponível no acervo CDMC do CIDDIC/Unicamp.

27 Os números correspondem ao dado quantitativo do intervalo, ou seja, 2 = segunda, 3 = terça etc. Já as letras correspondem à qualidade do intervalo, sendo M = maior, m = menor e J = justo.

28 Em sua abordagem da peça, Macedo destaca também as maneiras diversas de execução que os trechos requerem. Segundo a pesquisadora, na mão direita, para que não haja riscos de a nota falhar, o controle do toque deve se dar “por meio de um pequeno movimento, aludindo ao toque portato, só que legato, ou seja, com pequena projeção do cotovelo, mantendo o movimento circu-lar” (MACEDO: 2011, 65). Já para a mão esquerda, no trecho referido, a dinâmica ff e a sonoridade cantabile da melodia são obtidas pelo “gesto retirado, com movimento glissé” (MACEDO: 2011, 65). Interessante notar, em todo o trabalho da pesquisadora, a maneira pela qual o contraste na escrita musical resulta também em diferentes modos de execução pianística.

29 A estreia da versão a quatro mãos de Mutações ocorreu no ano de 2003 no Espaço Cultural Sérgio Porto (RJ) tendo como pianistas Valéria Bertoche e a própria Marisa Rezende. Esta versão, assim como a peça Contrastes, foi também gravada no CD Marisa Rezende – Música de Câmara realizado pelo LAMI/USP em 2003, desta vez com a compositora tocando junto à pianista Lídia Bazarian. A partitura utilizada na análise encontra-se disponível no acervo CDMC do CIDDIC/Unicamp.

30 Pandiatonicismo é um termo cunhado por Nicolas Slonimsky em seu Music Since 1900 para se referir ao uso livre de vários graus de uma escala diatônica em um mesmo acorde. O termo mais correto em português, entretanto, talvez seja pandiatonismo.

31 Essa espacialização é mais fortemente sentida na versão a dois pianos, onde é possível separar espacialmente as duas vozes.

32 Na notação de Marisa Rezende, a sobreposição de claves indica a quantidade de oitavas acima (clave de Sol) ou abaixo (clave de Fá).

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