Corpo na escola

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Ano XVIII boletim 04 - Abril de 2008

O corpo na escola

SUMRIO

O CORPO NA ESCOLAPROPOSTA PEDAGGICA ...................................................................................................03 La Tiriba

PGM 1: A ESCOLA, A DISCIPLINARIZAO DOS CORPOS E AS PRTICAS PEDAGGICAS .......................................................................................................................................... 14 Walter Kohan

PGM 2: EDUCAO DE CORPO INTEIRO......................................................................... 19 Daniela Guimares

PGM 3: ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLA: AS PERSPECTIVAS......................... 28 Alexandra Pena, Isabel C. Boga Borges, Leonor Pio Borges

PGM 4: EDUCAO E VIVNCIA DO ESPAO: DILOGOS ENTRE A ARQUITETURA E A PEDAGOGIA.....................................................40 La Tiriba

PGM 5 : O CORPO NA ESCOLA: EXPERINCIAS ALTERNATIVAS ............................ 52 Adrianne Ogda Guedes

O CORPO NA ESCOLA

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PROPOSTA PEDAGGICA

O CORPO NA ESCOLALa Tiriba1

Entre os sculos XVII e XIX ganha fora a idia de uma separao entre mente e corpo, uma das bases sobre a qual se fundou uma cincia e uma civilizao que hipervalorizaram a racionalidade e o trabalho, em detrimento de outros caminhos de conhecer e modos de viver, buscando suprimir todas as outras formas de conhecimento relacionadas existncia carnal dos seres humanos: os sentimentos, a imaginao, a intuio, o conhecimento sensual, a experincia. O objetivo desta srie o de debater e questionar uma lgica de funcionamento escolar ainda orientada pelo pressuposto de que Penso, logo existo, mxima do pensamento racionalista, que inspira e define, ainda nos dias de hoje, propostas pedaggicas e rotinas escolares.

(...) Em todos os espaos, chama a ateno a formalidade, o vazio de referncias infantis, no h objetos, brinquedos, desenhos das crianas... A organizao semelhante a das escolas de ensino fundamental: pequenas carteiras enfileiradas, mesa de professora ao lado do quadro-negro... Num prdio reformado, de pintura brilhante, limpeza caprichada, crianas de trs para quatro anos assistem, enfileiradas em pequenas e coloridas carteiras escolares individuais, a uma professora que se esmera em explicar-lhes noo de conjunto. O que mais impressiona o formidvel empenho e a delicadeza da professora em sua inteno de ensinar conceitos matemticos, ali no quadro-negro... As crianas, desconfortveis e desengonadas nas carteiras, apenas repetiam suas palavras: Quantos elementos tm aqui? Treeees.......!!! Depois desta atividade, exerccios no papel. Na sala ao lado, crianas bem menores, algumas ainda bebs de 1 ano e pouco, cercadas por todos os lados das mesmas carteiras coloridas. Do lado de fora, no ptio da escola, um colorido parque infantil, que as crianas desfrutavam por um perodo diminuto em relao ao longo tempo em que permaneciam na creche. L fora, depois da cerca, os campos, as rvores, os animais, o sol, as nuvens o vento... (Observaes feitas em escola infantil da rea rural de um municpio do Rio de Janeiro - 21/05/01).

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A cena inslita, mas to comum nas escolas brasileiras, a expresso de uma concepo de educao e de escola que, alm de no fazer conexes entre conhecimento e vida, est voltada para processos de transmisso/apropriao de conhecimentos via razo, que necessita, portanto, de mentes atentas e corpos paralisados. Pois no necessrio mais do que ateno mental para observar, refletir e compreender as regras de uma realidade que entendida como racionalmente organizada. Em outras palavras, o modo de funcionamento descolado do mundo natural indica que as prticas pedaggicas das instituies escolares esto definidas, geralmente, pelas concepes ontolgica, epistemolgica e antropolgica que estruturam o paradigma moderno, compondo uma idia de que as leis da realidade poderiam ser apreendidas por um ser cuja principal atividade a racional (Plastino, 1994). Em conseqncia, fica secundarizado tudo que extrapola esta dimenso: as brincadeiras, as sensaes corporais, o devaneio.... Mas isto no s: a reproduo deste modo de funcionamento se faz com o controle do corpo.

Denominada por Foucault (1987) como instituio de seqestro, a escola e outras instituies, como os presdios, os hospcios e os quartis, visavam controlar no apenas o tempo dos indivduos, mas tambm seus corpos, extraindo deles o mximo de tempo e de foras. De maneira discreta, mas permanente, as formas de organizao espacial e os regimes disciplinares conjugam controle de movimentos e de horrios, rituais de higiene, regularizao da alimentao, etc. Assim, historicamente, a escola assume a tarefa de higienizar o corpo, isto form-lo, corrigi-lo, qualific-lo, fazendo dele um ente capaz de trabalhar.

(...) A ordenao por fileira, no sculo XVII. Comea a definir a grande forma de repartio dos indivduos na ordem escolar: filas de alunos nas salas, nos corredores, nos ptios; (...) determinando lugares individuais (a organizao de um espao serial) tornou possvel o controle de cada um e o trabalho simultneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo e da aprendizagem. Fez funcionar o espao como uma mquina de ensinar, mas tambm de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (Foucault, 1987, p. 126).

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As filas que se formam para levar as crianas de um espao a outro, os tempos de espera em que permanecem encostadas s paredes, a falta de conforto das salas, as regras que so impostas nos refeitrios, os tempos previamente definidos para defecar: tudo isto remete idia de fabricao de uma retrica corporal, mas tambm de uma retrica do esprito, pois, dcil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeioado (Foucault, 1987, p.118).

Tendo como referncia a concepo espinosiana de que a vivncia do que bom e do que mau constitui dois tipos humanos, que vivem, aprendem e incorporam distintos modos de sentir e viver a vida (como potncia ou como impotncia), consideramos que esta perspectiva (de controle do corpo) est na contramo de um projeto de educao pautado numa tica da alegria e do cuidado, na medida em que favorece a constituio de um tipo humano que fraco, impotente (Espinosa,1983; Deleuze, 2002).

Se somos capazes de produzir histria e cultura, como produzir um cotidiano que se paute pela vivncia do que bom, que alegra e, que frente vida, nos faz mais potentes? Como favorecer encontros que compem? E como evitar os maus encontros, que decompem, produzem tristezas? Se estas so sempre expresses da nossa impotncia, como trabalhar no sentido de um cotidiano em que, diria Espinosa, as paixes alegres se sobreponham s paixes tristes?

Uma resposta possvel : acreditando nos desejos das crianas, apostando em sua capacidade de escolha, possibilitando contato permanente com o mundo natural, brincadeiras, livre movimento do corpo. Entretanto, evidente a distncia da realidade escolar em relao a esta crena e a este movimento a favor do prazer, da potncia. Onde esto as origens deste modo de funcionamento?

Educao, escola e divrcio entre natureza e cultura, corpo e mente

Desde a Revoluo Industrial, (que inaugurou a reproduo em srie de bens materiais) e, depois, a Revoluo Francesa (que superou o feudalismo e props o mercado como eixo da

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vida social) a funo social da escola vem sendo a de ensinar s novas geraes a lgica sob a qual o sistema capitalista-urbano-industrial-patriarcal se estrutura.

No contexto de uma ordem capitalstica em que o sentido principal do trabalho social a produo e a acumulao de bens, a escola est ainda organizada de acordo com o pressuposto de que a razo pode decifrar a lgica interna da natureza. Isto explica que o objetivo fundamental do trabalho escolar seja o de desenvolver plenamente em seus alunos a capacidade racional para a compreenso e a submisso da natureza aos interesses do mercado, desprezando ou secundarizando outros caminhos de abordagem da realidade material e imaterial. Assim, alguns conceitos/idias/sentimentos/vises de mundo constitutivos dos ideais da modernidade orientam concepes e prticas escolares em nosso tempo. Primeiramente, uma crena na razo como salvo-conduto para enfrentar os ritmos da natureza, que so tomados como obstculos para um esprito conhecedor, pesquisador, desvendador de todos os mistrios da vida, que seria capaz, inclusive, de determinar os rumos da histria. H, em conseqncia, supervalorizao do intelecto e desprezo pelo corpo. Esta uma decorrncia da lgica dual que, separando seres humanos de natureza, afirma a racionalidade como processo superior, em oposio natureza, identificada com o corpo humano.

No corao da lgica paradigmtica est uma idia de superioridade em relao natureza: a faculdade da razo no apenas coloca o Homem acima dos animais, como, por sua qualidade, superior a qualquer outra espcie. Decorre da que o pensamento seja considerado a atividade humana mais importante, que a cultura se apresente como a caracterstica peculiar do homem, pela qual se distingue como um ser especial, diferente dos animais e das coisas e, portanto, acima deles. Nesta perspectiva, a ordem natural seria inferior ordem cultural, tudo O que relativo a este plano se sobrepe. Assim, a cultura antropocntrica fragmenta o que uno: separa os humanos da natureza, a razo da emoo, definindo uma oposio hierrquica entre as partes, uma das quais sempre considerada como superior e sempre progride mediante a subordinao a outra (Mies e Shiva, 1997). Assim, a natureza aparece subordinada aos homens, a mulher ao homem, o consumo produo, o local ao global, a emoo razo, o corpo mente.

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Onde nasceu esta dupla fragmentao, marcante na trajetria do pensamento ocidental? Na viso de Nietzsche (2000), j no momento de surgimento do pensamento filosfico cientfico, na Grcia, algo de essencial se perdeu na relao dos humanos com a natureza e no equilbrio entre afetivo e cognitivo.

Para Nietzsche, a tradio filosfica ocidental inaugura um afastamento em relao natureza, que nefasto para os humanos, na medida em que provoca um desequilbrio patolgico entre corpo e mente, razo e emoo. Na sua viso, algo de essencial se perdeu quando, a partir de Scrates, os gregos comeam a se afastar dos rituais a Dionsio, o deus da msica e da embriaguez, e passam a privilegiar Apolo, o deus da racionalidade argumentativa, do conhecimento cientfico, da lgica. Dionsio o deus que no habita o Olimpo, mas a natureza. Representa a fora vital, a alegria, o excesso, enquanto Apolo, o deus severo, representa a ordem, a norma, o equilbrio. Para Nietzsche, a histria da tradio filosfica a histria do predomnio do esprito apolneo sobre o esprito dionisaco (Marcondes, 1997, p.243), ou seja, a histria do predomnio da razo sobre o desejo. A decadncia e a fraqueza da cultura ocidental teriam sua origem neste predomnio da racionalidade sobre a imaginao, as emoes, as sensaes, que o filsofo define como foras afirmativas da vida. Em sua viso, esta distoro teria sido reforada por elementos trazidos posteriormente pelo cristianismo, como a culpa, o pecado, a submisso, o sacrifcio.

O conceito de corpo (do latim, corpus) vem se transmutando ao longo da histria do Ocidente. Durante a poca moderna, a discusso sobre o que se convencionou chamar de problema da relao entre alma e corpo manteve algumas das concepes antigas e medievais. Mas o desenvolvimento da cincia, em especial da fsica, em moldes mecanicistas, trouxe a noo de corpo material, radicalmente separado da alma.

Descartes (1596-1650) o expoente desta distino entre a substncia ou coisa extensa (res extensa) e substncia ou a coisa pensante (res cogitans). Para o pensamento cartesiano, o corpo material ope-se ao esprito, alma, ao pensamento, na medida em que estes seriam indivisveis, enquanto que o corpo/ a matria seriam divisveis (Japiassu e Marcondes, 1996).

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Na contramo da concepo cartesiana em que a mente domina o corpo e as paixes, e tem o poder de explicar todas as funes corporais de modo puramente mecnico Espinosa (1632-1677), ao invs de perguntar o que um corpo, ao invs de buscar uma definio, interroga: o que pode um corpo? Ao fazer esta pergunta, fere a lgica descrita por Descartes, segundo a qual todas as funes corporais podem ser explicadas, medidas, quantificadas. Para Espinosa, estamos fechados nos limites corpreos, mas podemos fugir sempre, graas fora que nos impulsiona para alm. Assim, no haveria hierarquia entre corpo e alma, h uma fora inconsciente no esprito, assim como h uma potncia insuspeita no corpo (Barros e Passos, 2000, p. 3).

Entretanto, ao assumir a funo de formar as novas geraes para a reproduo do modelo urbano-industrial, a instituio escolar ignorou concepes que no fragmentam nem subordinam o corpo mente. Ao contrrio, optou por uma viso que, ao hipervalorizar o ego e o intelecto, nega a verdade do corpo. De fato, temos sentido as conseqncias de um cotidiano regido por uma rotina de esforos mentais e inflexibilidade fsica. As doenas se manifestam, so resultado de um modo de funcionamento da sociedade, da fbrica, da escola, da instituio familiar, de cada um de ns que alienado em relao a muitas das mais elementares necessidades fsicas, como respirar profundamente, alimentar-se sadiamente, dormir bem, relaxar.

O corpo humano mais do que um portador do texto mental

Numa sociedade marcada por controle e racionalidade, os movimentos de liberdade e expressividade das crianas assustam os adultos. Amarrados ao imprio do relgio, ao tempo da produo, estamos aprisionados aos prprios esquemas, ou melhor, aos limites que nos foram impostos, na vida escolar, na famlia, no trabalho. Tendo aprendido a engolir os desejos, so estes mesmos esquemas que necessitamos reproduzir, atravs das normas que pretendemos impor s crianas, modelando os gestos e, simultaneamente, aquietando o esprito. Pois, corpo e esprito no esto separados, o que ao no corpo , necessariamente, ao na alma (Espinosa,1983).

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H, em todos os lugares, como que a obsesso do controle, que perpassa todos os nossos comportamentos adultos com relao criana; precisamos sentir-nos donos da situao, ter presentes todas as alternativas que a criana poder escolher, porque s assim nos sentiremos seguros. A liberdade da criana a nossa insegurana, enquanto educadores, pais ou simples adultos, e, em nome da criana, buscamos a nossa tranqilidade, impondolhes at os caminhos da imaginao (Lima, 1989, p.11).

Mas o desejo conspira... Na viso do filsofo Charles Fourier (1772-1837), porque ele no tem outras alternativas, outros caminhos para satisfazer-se! Torna-se, assim, um subversivo permanente, que trabalha de maneira infatigvel na desorganizao da sociedade, desrespeitando todos os limites colocados pela legislao (Konder, 1998, p.17). Isto acontece por uma questo de sobrevivncia fsica e espiritual. O desejo persevera porque, oprimido, se manifesta como sintoma, como doena, do corpo e da alma, pois, toda paixo estrangulada produz uma contrapaixo to malfica quanto a paixo natural seria benfica (idem, p.19).

Alm de buscar uma compreenso sobre um estilo de educar que desconsidera as crianas em sua integralidade existencial, a srie O corpo na escola quer apresentar e refletir sobre prticas educacionais atentas s vontades do corpo; prticas que no aprisionam os movimentos, ao contrrio, ajudam as crianas a expressarem a dana de cada um, isto , o jeito de ser, que , em outros termos, a expresso de nossa psiqu, de nossa alma. Atravs da dana do corpo se mostra o interior de cada um (Robim, 1997, p. 1).

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Para danar a sua dana e construir uma dana coletiva (o estilo de ser de cada grupo) precisamos de espaos-ambientes (Lima, 1989), que favoream esta construo, que abram espaos (objetivos e subjetivos) para o corpo e o movimento. A escola precisa recuperar a liberdade de movimentos que a vida na cidade grande e seu respectivo modelo de funcionamento escolar restringiram, impedindo as mais simples e fundamentais manifestaes como correr, pular, saltar, etc.

(...) Tudo isto traz tambm uma reduo da confiana no prprio corpo e uma certa sensao de impotncia que difcil de erradicar, apesar de muitas vezes tentar-se compensar a criana dando-lhe maior estimulao de sua fantasia ou de sua inteligncia, atravs de tantos meios de que dispomos atualmente, conseguindo assim que o centro intelectual supra uma carncia que na verdade no pode cumprir porque corresponde a outros nveis de existncia (Palcos, 1998, p.2).

De acordo com Palcos (1998), a falta de liberdade de movimentos vai formando travas que impedem as crianas de fazer um crescimento harmnico. Como todo movimento se inicia ou deveria iniciar-se com um movimento reflexo, aqueles se perdem na medida em que estes ficam inibidos. As escolas, enquanto espaos de educao integral das crianas, devem constituir-se como ambientes que contribuam para evitar o surgimento de travas, ou mesmo eliminar as que j tiverem se instalado, contribuindo para construir ou mesmo recuperar a liberdade e a confiana no corpo. Esta uma das responsabilidades do educador que assume a educao integral das crianas, porque a confiana no prprio corpo est relacionada ao sentimento de confiana na vida.

Temas que sero abordados na srie O corpo na escola, que ser apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC de 14 a 18 de abril de 2008:PGM 1: A escola, a disciplinarizao dos corpos e as prticas pedaggicas

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Este primeiro programa apresentar e discutir a idia moderna de corpo como mquina e as suas influncias nas rotinas escolares, ainda em nossos dias. Abordar as concepes de corpo ao longo da histria, entre os gregos e, especialmente, em Descartes e Espinosa. E trar tambm os estudos de Foucault sobre o papel da escola na constituio da sociedade moderna, alm das idias da tradio filosfica racionalista e do romantismo sobre os cinco sentidos. A inteno a de fazer uma articulao deste conjunto de idias com as prticas educacionais cotidianas.

PGM 2: Educao de corpo inteiro

Este segundo programa ter como foco as contribuies atuais dos campos da pedagogia, da psicologia e da Educao Fsica, que, nos ltimos tempos, vm apresentando novas propostas comprometidas com uma educao de corpo inteiro. Sero debatidas as concepes de conhecimento e de prtica pedaggica informadas por tericos como Piaget, Vygostsky, Wallon, Maturana e Varela, Deleuze, e tambm propostas alternativas para uma educao que considera a escola como espao de educao integral, isto , como instituio que considere ritmos e interesses infantis, que permita s crianas e aos jovens aprenderem a identificar e a respeitar as vontades do corpo.

PGM 3: Aconchegando o corpo na escola: as perspectivas

Este terceiro programa tem o objetivo de discutir as rotinas que envolvem mais claramente os processos corporais (os tempos cotidianos para mexer, comer, dormir, danar, relaxar, correr, brincar), especialmente nas escolas de horrio integral. Assim, sero abordadas tanto as dinmicas de escolas de Ensino Fundamental, quanto de Educao Infantil, no que se refere s necessidades de ampliar os espaos e os tempos de movimentar-se livremente, relaxar, meditar, estar atento respirao, melhorar a alimentao, cuidar da postura, ter contato com a natureza.

PGM 4 Educao e vivncia do espao: dilogos entre a arquitetura e a pedagogia

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Neste quarto programa, o debate ser voltado para as relaes entre a educao e a vivncia do espao. Neste sentido, abordar a questo do conforto e/ou do desconforto que oferecem os prdios escolares, assim como o afastamento das crianas em relao ao mundo natural. O objetivo discutir a sua adequao educao integral das crianas, considerando o conjunto de necessidades corporais, espirituais, sociais e cognitivas. O programa abordar a questo da importncia da definio de parmetros de qualidade (recentemente elaborados no campo da Educao Infantil), assim como as propostas de arquitetos escolares importantes, como Mayume de Souza Lima.

PGM 5 - O corpo na escola: experincias alternativas

Este quinto programa estar voltado para o relato e o debate de experincias concretas, trazendo educadores/instituies que buscam construir propostas pedaggicas e rotinas cotidianas comprometidas com a superao do divrcio entre corpo e mente, razo e emoo. O debate envolver questes como mudanas nas formas de organizao dos espaos, dos tempos, dos materiais pedaggicos e da prpria grade curricular, valorizando as atividades que incluem o movimento do corpo em contato com a natureza, os jogos (cooperativos x competitivos), a autodisciplina, a cooperao, a valorizao das interaes humanas.

BibliografiaBARROS, Regina e PASSOS, Eduardo. A construo do Plano da Clnica. In: Psicologia, teoria e pesquisa, jan./abr. 2000, vol. 16, n.1, p. 71-79. DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prtica. So Paulo: Escuta, 2002. ESPINOSA, Baruch de. tica. So Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleo Os Pensadores). FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 1987.

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JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionrio Bsico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. KONDER, Leandro. Charles Fourrier: o socialismo do prazer . Rio de Janeiro: Ed. Civilizao Brasileira, 1998. LIMA, Mayume de Souza. A cidade e a criana. So Paulo: Nobel, 1989. MIES, Maria y SHIVA, Vandana. Ecofeminismo: teoria, crtica y perspectivas. Barcelona: Icaria editorial, 1997. MARCONDES, Danilo. Iniciao histria da filosofia: dos pr-socrticos Winttengestein. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1997. NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na poca trgica dos gregos. In: SOUZA, Jos (org.). Pr-socrticos vida e obra. So Paulo, Nova Cultural, 2000. (Coleo Os Pensadores). PALCOS, Maria Adela. Corpo e Psiquismo. Rio de Janeiro: Espao Coringa Rio Aberto, 1998, mimeo. PLASTINO, Carlos. O primado da Afetividade. A crtica freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2001. ROBIM, Michel. A dana nossa de cada dia nos dai, hoje!. Rio de Janeiro: Espao Coringa, 1998, mimeo. TIRIBA, La. Crianas, natureza e educao infantil. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005. ____. Reinventando relaes entre seres humanos e natureza nos espaos de educao infantil. Revista Presena Pedaggica, v.13, n.76, jul./ago., Belo Horizonte, Editora Dimenso, 2007.

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NOTAS: Professora ambientalista e jornalista. Coordenadora do Setor de Educao Ambiental do NIMA (Ncleo Interdisciplinar de Meio Ambiente/NIMA) da PUCRio. Professora do Departamento de Educao e do Curso de Especializao em Educao Infantil desta mesma Universidade. Assessora da Secretaria de Educao de Santo Andr/SP. Consultora desta srie.

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PROGRAMA 1

A ESCOLA, A DISCIPLINARIZAO DOS CORPOS E AS PRTICAS PEDAGGICAS Escola, experincia e verdadeWalter Kohan1

A escola tem sido, nos ltimos sculos, uma das instituies privilegiadas para disseminar as verdades que uma sociedade produz, por meio de uma srie complexa de prticas de disciplinamento, controle e governo. Se pensarmos no corpo, uma das coisas que mais aprendemos na escola alunos, professores, orientadores, diretores, funcionrios, enfim, todos ns que passamos pela instituio levar os corpos de determinada maneira e privilegiar certo tipo de relaes corporais, com o nosso prprio corpo e os outros corpos que habitam a instituio. As cadeiras colocadas de acordo com alguma posio predeterminada, os corpos alinhados nas fileiras nos ptios, o uso de uniformes e outras normas sobre vestimenta, as regras para controlar a entrada e a permanncia nos banheiros so algumas das mais evidentes tcnicas de disciplinamento corporal.

Para pensar a escola, pode ser interessante considerar conceitos como verdade e experincia. Os conceitos so criaes dos filsofos para dar conta de alguns problemas que eles mesmos criam. Alguns conceitos so to interessantes que adquirem vida prpria, para alm do problema para o qual foram criados. Este o caso de conceitos como experincia e verdade. Neste texto, tentaremos pensar, com eles, a escola, a disciplinarizao dos corpos e as prticas pedaggicas. Para isso, primeiro, vamos apresentar um uso especfico que M. Foucault faz dos conceitos de verdade e experincia, contrapondo-os; num segundo momento, estenderemos esse uso para pensar a questo que nos ocupa. Finalmente, formularemos alguns interrogantes a partir das anlises propostas para o caso especfico da infncia.

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Foucault prope pensar a experincia e a verdade em relao com a escrita. O que significaria escrever um livro a partir dessas duas possibilidades? O autor francs prope que, segundo a lgica da verdade, quem escreve um livro o faz porque est instalado numa verdade e o sentido principal da escrita a transmisso dessa verdade para os eventuais leitores do livro. Assim, quem escreve um livro-verdade o faz para transmitir o que sabe para quem ele considera que no sabe. Um livro funciona muito bem como verdade quando, depois de sua leitura, sabemos o que antes no sabamos. De modo que, se h livros escritos como verdade, porque tambm h leitores de livros verdade, ou seja, aqueles leitores que procuram num livro as verdades que eles desejam conhecer. H livros que parecem ser escritos estritamente com essa pretenso: por exemplo, aqueles que levam por ttulo: O que verdadeiramente disse X ou ento tudo o que voc queria saber sobre Y. Tambm muitas outras formas de escrita podem ter essa mesma lgica da verdade. Por exemplo, o jornal. Lemos o jornal como verdade quando pensamos que nele vamos nos inteirar do que no sabemos.

A experincia revela outra relao com a leitura. Um livro que funciona como experincia tambm afirma uma srie de verdades que pode ser constatada ou refutada. A experincia no indiferente verdade. Mas, diferentemente de um livro que funciona como verdade, um livro experincia no afirma verdades com o sentido de transmiti-las, mas para problematizar a relao que um autor, ou um leitor, tm com a verdade. De modo que o ato de escrever ou o de ler um livro, a partir da lgica da experincia, significam entrar num jogo de verdade que tem por propsito desestabilizar a prpria verdade da qual se parte. Afirma Foucault:

Eu jamais penso exatamente o mesmo pela razo de que meus livros so, para mim, experincias. Uma experincia algo do qual a prpria pessoa sai transformada. Se eu devesse escrever um livro para comunicar o que j penso, antes de haver comeado a escrever, no teria jamais a coragem de empreend-lo2.

Para Foucault, ento, a experincia, como propiciadora de transformaes, e no a verdade o que d sentido escrita. Um livro funciona como experincia quando, depois de l-lo, j no podemos mais saber o que sabamos antes, como o sabamos. Se a verdade consolida os lugares j habitados, a experincia uma espcie de viagem que permite sair do lugar que se habita. Quando ela intensa e ousada, a transformao sequer conhece o ponto de chegada.

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Temos ento a experincia e a verdade como possibilidades da escrita e da leitura. Se o sentido da segunda a transmisso da verdade, o sentido da primeira a transformao de si atravs da transformao da relao com a verdade. O leitor j pode estar aplicando essa distino ao prprio exerccio de leitura que est fazendo agora mesmo com este texto. Pergunto ao leitor: estas palavras sobre a experincia e a verdade esto sendo lidas como experincia ou como verdade?

Podemos tambm estender esses conceitos a muitos outros campos. Para aproximarmo-nos daqueles que participam deste programa, podemos pensar na educao. Comecemos pelo corpo. A verdade e a experincia so possibilidades do corpo em pelo menos dois sentidos. H, por um lado, corpos que funcionam como verdade, e a servio de uma verdade, para reproduzir padres ou valores socialmente impostos de, por exemplo, comportamento e beleza. E a verdade tambm uma possibilidade para relacionarmo-nos com os corpos, de saber o que no sabemos sobre eles, de como eles funcionam e como devem ser mostrados e usados socialmente. Cada sociedade contm uma srie de dispositivos para produzir, legitimar e transmitir suas verdades sobre as questes que lhe interessam. O corpo no uma exceo. Porm, h tambm a possibilidade de um corpo experincia, ou seja, de uma relao de experincia com o corpo. Neste caso, as prticas corporais no visam consolidao e transmisso de uma verdade sobre o corpo, mas, ao contrrio, colocar em questo as verdades que o corpo carrega consigo.

De fato, a questo bastante mais ampla e a escola tem funcionado como uma das instituies mais poderosas na legitimao e na transmisso das verdades de uma sociedade, no apenas a respeito dos corpos. So to fortes os dispositivos escolares consolidados no apenas pela rigidez dos sistemas de ensino, mas tambm pelas tradies culturais que se sentem extremamente vontade neles , que a pergunta pela prpria possibilidade de uma escola experincia no carece de sentido. Em outras palavras, possvel uma escola que funcione como experincia e no apenas como verdade? Pode sobreviver enquanto escola uma escola que se volta contra as verdades que ela prpria afirma e dissemina?

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Um leitor poderia estar tambm se perguntando: e caso sobreviva, como seria esta escola no que diz respeito s necessidades e aos desejos do corpo? A ordem disciplinar tradicional, com as cadeiras em filas, os uniformes e os regimentos atuais, seria substituda por qual ordem? Ou seria substituda pela falta de ordem, a desordem? Talvez seja necessrio um esclarecimento: no apenas mudando de tcnicas que se muda o modo de exercer o poder. Por exemplo, podemos sentar os alunos em crculo, em confortveis travesseiros, com roupas coloridas e numa sala bem arrumada para controlar e disciplinar mais sofisticadamente seus corpos. Tambm seria interessante pensar que a desordem tambm uma ordem. Em todo o caso, eis o que interessa mais a uma escrita experincia do que a uma escrita verdade: que o prprio leitor pense a forma que uma escola mais sensvel s necessidades e aos desejos do corpo teria.

Essa pergunta, em parte, diz respeito a todos ns que habitamos a instituio escolar. Pensemos num professor de uma escola qualquer. Ele tambm tem a verdade e a experincia como possibilidades. Um professor verdade aquele que entra na sala de aula porque pensa que ele portador de algumas verdades das quais carecem seus alunos. claro que se existem professores verdade porque tambm h alunos verdade, ou seja, aqueles que entram na sala de aula para saber a verdade que os professores pretendem lhes transmitir. Ao contrrio, um professor experincia aquele que entra na sala de aula, mesmo afirmando uma srie de verdades, com o sentido principal de colocar suas verdades em questo, desejando mais transformar e ser transformado do que transmitir o que j sabe. E, certamente, s h professores experincia porque h alunos experincia. Tambm vale a pena se fazer a pergunta sobre a prpria possibilidade de ser um professor que funcione como experincia no interior da escola moderna, to prxima da lgica da verdade. Podemos ser professores experincia no meio das condies existentes, incluindo as demandas sociais que so colocadas na escola?

A questo diz tambm respeito infncia e a como a acolhemos. Se a escola pressupe uma infncia verdade, porque temos feito dela um dos principais objetos de saber e poder. Da infncia cada vez sabemos mais e com mais detalhes e sofisticao. Basta sabermos a idade de uma criana para logo poder antecipar sua conduta, sua reao, e assim planejar

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adequadamente uma estratgia de desenvolvimento. Com efeito, temos feito da infncia um dos terrenos favoritos da verdade. Diga-me teus anos e te direi como te comportars! O lugar outorgado infncia atravessa a esquerda e a direita. Sabemos a verdade de uma formao que conservar a sociedade ou ainda a revolucionar. Outorgamos um nico lugar infncia, como lgico, num lugar onde domina a verdade. A escola verdade acolhe uma infncia verdade, cuja formao alimenta os sonhos dos educadores. Pouco importa se esses so tambm os sonhos da infncia.

Contudo, podemos afirmar outra relao com a infncia e dispor outro lugar para ela. Ela pode ser tambm algo mais do que a matria de nossos sonhos e utopias, se abrirmos a infncia e nossa relao com ela experincia. Mais uma vez, no est claro se isso possvel, e como possvel, na escola moderna. Mas parece evidente que a lgica da verdade est dando sintomas notrios de esgotamento, que ela pouco sensvel novidade da infncia; ao novo, virtual ou atual, que cada nascimento traz consigo.

Por fim, a questo parece ir um pouco alm da escola, do corpo, da disciplina, dos dispositivos pedaggicos e, ainda, da prpria infncia. A questo se somos capazes de fazer no apenas do corpo, da escola e da infncia, mas da prpria vida, uma experincia. A questo ento se a verdade, ou se a experincia, que d sentido a uma vida... dentro ou fora da escola.

Notas: Professor titular de Filosofia da Educao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).2

M. Foucault. Entretien avec Michel Foucault. Entretien avec D.

Tromabadori. In: Dits et crits. Paris: Gallimard, 1994/1978, p. 41.

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PROGRAMA 2

EDUCAO DE CORPO INTEIRODaniela Guimares1

De um modo geral, na escola, o corpo compreendido e vivido na perspectiva do controle, da adaptao e da represso. O ajuste social aprisiona a expanso, o espao dos impulsos e dos prazeres. preciso e precioso o silncio, o uniforme limpo e alinhado, o jeito correto de se sentar, o dedo levantado para a pergunta, o gesto calculado para no agitar o ambiente. O cenrio de uma escola costuma ser reconhecido pela presena de cadeiras e mesas, quadro de giz, murais, ou seja, equipamentos materiais que legitimam a valorizao dos processos de representao (escrita, desenho, e outras marcas grficas), em detrimento de espaos para a acolhida e a movimentao do corpo. A dimenso individualizante do trabalho tambm contribui para o isolamento corporal: carteiras para uma s criana, atividades individuais, prticas em que o valor colocado mais em cada um do que no grupo.

Na escola, os processos mentais tm primazia, em detrimento do corpo que, de modo geral, ocupa o plano da eficincia, como instrumento do pensamento, funcionando como ponto de aplicao de diversas tcnicas segurar corretamente o lpis, subir escadas alternando os passos com sincronia, equilibrar-se, sentar de modo ereto, dentre outras. De um modo geral, as aes educacionais valorizam mais as crianas como indivduos do que como participantes de um grupo social, incentivam mais os processos racionais do que os motores, sensoriais e afetivos.

Esta situao enraza-se nas concepes de desenvolvimento e aprendizagem que sustentam o trabalho nas escolas. Diversos autores, especialmente do campo da Psicologia, elaboraram vises sobre como as crianas aprendem e se desenvolvem que so incorporadas pelas teorias pedaggicas, tendo em vista a organizao das prticas e dos modos de ensino nas instituies educacionais. Neste texto, vamos apresentar algumas destas teorias do campo da Psicologia, com o objetivo de focalizar o lugar que o corpo assume em suas formulaes.

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Em suas pesquisas, na rea da Psicologia, Piaget buscava responder seguinte questo: como o adulto chega a pensar de modo hipottico e dedutivo, quer dizer, criando hipteses sobre acontecimentos futuros ou planejando mentalmente suas aes antes de serem realizadas? Como a criana deixa de precisar dos sentidos (olfato, viso, tato, etc.) ou da experincia direta com os objetos para conhec-los, podendo fazer isto somente atravs da sua ao mental?

De acordo com Piaget, no incio, quando a criana pequena, at mais ou menos os 6 anos, para conhecer um objeto, preciso manipul-lo, senti-lo, t-lo presente. Por exemplo, no possvel entender quanto a soma de 2 laranjas mais 3 laranjas, se no for possvel tocar e mexer nas laranjas de verdade. Mais tarde, a criana no precisar mais lidar materialmente com os objetos para concluir relaes entre eles, mas conseguir mentalmente resolver problemas que envolvam essas relaes: a soma, a comparao entre as laranjas, etc. Piaget estudou como o homem chega a no precisar dos objetos concretos para extrair deles relaes, como faz isso mentalmente, pensando sobre eles.

Piaget estudou tambm como nasce o conhecimento abstrato, ou seja, independente da ao do homem sobre os objetos; como gerado o conhecimento lgico, mental. Este projeto de estudo piagetiano denomina-se Epistemologia Gentica. Gentica significa a gnese, isto , a origem do conhecimento. Episteme significa cientfico; e logia quer dizer estudo. Piaget pesquisou a origem do conhecimento cientfico no homem. Neste processo, investigou o desenvolvimento intelectual (o desenvolvimento da inteligncia), dividindo-o em quatro grandes perodos: perodo sensrio-motor; perodo pr-operatrio; perodo das operaes concretas e perodo das operaes abstratas (ou formais).

A prpria definio do projeto piagetiano j expe o seu limite na considerao do corpo. O conhecimento pela via das sensaes e do movimento algo a ser superado, tendo em vista a competncia mental, que se coloca como o ponto de chegada final do desenvolvimento, o pensamento abstrato, formal, hipottico e dedutivo. Conhecer construir relaes lgicomatemticas no contato com os objetos.

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A partir das bases piagetianas, muitos projetos educacionais centram seu trabalho na construo das estruturas mentais das crianas, planejando atividades em que o foco organizar objetos logicamente, classificar, seriar, perceber diferenas e semelhanas entre eles. A competncia intelectual e individual da criana marca as prticas.

Vigotski, tambm no campo da Psicologia, dedicou-se a identificar o nascimento cultural da criana, a partir do substrato biolgico (essencialmente corporal) que a constitui. Este autor prope uma abordagem dialtica para a relao entre biolgico e cultural, corpo e mente, compreendendo que as construes socioculturais transformam o suporte biolgico que, paralelamente, abre-se para novas elaboraes simblicas. Para este autor, a vida interpsicolgica, a cultura na qual nasce a criana, torna-se sua vida intrapsicolgica, formando suas competncias particulares, a partir de processos de negociao e re-criao constantes.

Vigotski (1984) estuda o gesto de apontar como indicador da origem do processo de constituio sociocultural das crianas. Sobre isso, ele diz que, inicialmente, esse gesto no nada mais do que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa. Mas, quando a me vem e ajuda a criana, notando que o seu movimento indica algo, a situao muda; o apontar tornase um gesto para os outros, para a me, neste caso. Ento, pegar um objeto transforma-se em apontar, pela compreenso que o adulto mostra ter da ao da criana. Um comportamento de base biolgica ganha novo sentido, torna-se comportamento dirigido para outra pessoa, comportamento social, pelo contato com o outro.

Baseado em Vigotski, o trabalho de Pino (2006) dedica-se a buscar os indcios das origens da constituio cultural da criana no ponto onde ocorre o encontro das formas simblicas de comunicao adulta, com as quais o outro significa as coisas criana, com as formas biolgicas de comunicao da criana (formas que ela dispe ao nascer). O autor indaga se existiriam, antes do movimento de apontar, outros mecanismos que, sem exigir a funcionalidade motora do apontar, poderiam desempenhar um papel equivalente. Ou seja, antes da existncia da funcionalidade motora, seria possvel falar j de uma atividade cultural? Nesta pista, identifica quando e como formas de reatividade do corpo tornam-se expressivas,

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portadoras de significao. Destaca o choro, o olhar, o movimento e o sorriso como mecanismos que promovem essa relao entre natureza e cultura, localizando, atravs da relao do adulto com essas expresses do beb, a construo de padres relacionais com o mundo cultural circundante.

Desde os primeiros instantes da existncia, diferentes mecanismos culturais entram em ao, conferindo ao movimento do beb um carter cada vez menos automtico e cada vez mais imitativo e deliberativo. Ento, choros, sorrisos, deslocamentos e olhares so interpretados pelos adultos, criando formas relacionais com os bebs. A forma natureza (reflexos, movimentos fortuitos, balbucios, etc.) adquire um novo modo de existncia quando ganha significao nas relaes interpessoais.

Ou seja, no incio, a funo sensorial e a funo motora constituem o primeiro circuito de comunicao da criana com o outro. Podemos ver as crianas trocando objetos, olhares, muitas vezes de forma casual e contingente. Ao entrar em funcionamento, esse circuito as coloca numa rede de relaes em que suas aes vo ganhando significao, de acordo com a tradio cultural do seu grupo. Pouco a pouco, ganham intencionalidade, sentido e direo.

Neste enfoque, o corpo entendido como espao de construo simblica e cultural a partir da relao com o outro. O mundo adulto insere a criana no universo das construes simblicas e verbais, quando, por exemplo, nomeia a ao das crianas, tutela suas expresses, controla seus movimentos.

Pino (2006) prope que a cultura supe a natureza, porque ela , em ltima instncia, a prpria natureza transformada em cultura, mas uma natureza que, sem deixar de ser natureza, torna-se algo novo (p. 268), o que se pode chamar de natureza humanizada. Essa ponderao importante porque chama a ateno para o risco da construo de dicotomias e desequilbrio na valorizao de um ou outro plano, o natural ou o cultural.

De um lado, o trabalho de Vigotski chama a ateno para a importncia das relaes sociais na constituio cultural das crianas, valorizando o que podem descobrir e como podem

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crescer em colaborao com adultos e parceiros com experincias distintas. Por outro lado, preciso desviar do risco de considerar o plano cultural como um ideal a atingir. importante focalizar, por exemplo, as formas no-verbais atravs das quais o mundo vai sendo significado e experimentado. De um modo geral, os adultos se colocam como aqueles que j sabem o que a criana quer, deseja, para onde vai seu movimento. Se as vem perto de um balano, a tendncia coloc-las em cima dele; se percebem objetos perto de uma caixa, concluem que vo coloc-los dentro dela.

O referencial que Vigotski aponta para pensarmos a aprendizagem e a escola demanda que possamos focalizar os processos de negociao de sentidos das crianas entre si, e delas com os adultos, como diferentes relaes de fora se compem. O que pode a criana no contato com o adulto, de fato? Qual sua potncia, e no como se molda ao adulto? Trata-se de uma tnue e fundamental diferena que se coloca no cotidiano das escolas. At que ponto o adulto tutela a ao das crianas, ou dispe referncias e apresenta possibilidades que podem ser agenciadas pela criana, no movimento do seu crescimento?

No plano do corpo, o desafio perceber como a dimenso natureza se torna cultura sem deixar de ser natureza, expresso de emoes e afetos no deliberados. Gestos e movimentos que nascem do impondervel, para obter prazer pelo prazer, podem tornar-se gestos para e com o outro, sem que se perca o espao para o irrefletido, o inesperado, a surpresa, a alegria.

De modo semelhante a Vigotski, as investigaes do psiclogo Wallon buscavam como as conexes cerebrais modificam-se medida que o ser humano relaciona-se socialmente. Conversas do beb com a me, o colo dos adultos, poder ver e escutar outras pessoas, tudo faz com que as regies do crebro do beb se ampliem e mudem suas funes. As interaes sociais transformam os padres biolgicos. Wallon afirmava que o humano organicamente social. Tambm como Vigotski, Wallon prope que somos sujeitos a partir do outro, pela mediao do outro, ou seja, a partir da linguagem, que se coloca no meio, entre ns e o mundo, para organizar a nossa relao com ele. Mais uma vez, neste caso, o desafio perceber a linguagem para alm da dimenso oral, materializao do pensamento. H linguagem nos olhares, no toque, na entonao, em outros modos de significar e trocar com o

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outro, para alm da forma verbal dominante e socialmente mais valorizada qual o lugar destas outras formas na escola?

Wallon props trs centros que se entrelaam diferentemente, ao longo do desenvolvimento da criana: a afetividade, a motricidade e a cognio. Num perodo inicial do desenvolvimento, no recm-nascido, predomina a afetividade (a inteligncia ou cognio no se separa da afetividade). o perodo denominado por ele como impulsivo-emocional (at por volta de 2 anos). Nesse momento, o autor reconhece algo como um "dilogo tnico", ou seja, uma espcie de conversa entre o beb e o adulto por intermdio no s das palavras, mas do tnus corporal, da expresso facial, dos gestos, do contato fsico.

na relao com o movimento e a fala dos adultos que a criana vai entendendo quem ela e quem so os outros. O processo de imitao tem um papel importante neste momento. Quando faz algo igual a algum, quando busca imitar a palavra dita pela me, quando imita o jeito de a av esconder um boneco embaixo de um pano, a criana ganha novos movimentos e vai inserindo em seu repertrio a possibilidade simblica, ou seja, a capacidade de representar aes e objetos ausentes do seu campo perceptivo, da sua viso presente.

Conforme os movimentos se expandem e desenvolvem-se o pegar, o andar e o deslocar-se no espao tambm os movimentos simblicos aparecem. Trata-se do que Wallon denomina dos primeiros ideomovimentos, caractersticos do perodo sensrio-motor projetivo (entre 2 e 4 anos).

Wallon prope que o ato motor o deslocamento do corpo no espao com cada vez mais desenvoltura e segurana gera o ato mental. As primeiras idias mentais das crianas nascem em seus movimentos. Ao observarmos crianas pequenas (de 3 anos, por exemplo) brincando, comum percebermos que dos gestos brotam palavras e significados. Tambm quando desenham, s conseguem dizer o que fizeram depois que terminam e no antes. Ou seja, as palavras que retratam as idias surgem nas relaes e aes no espao.

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importante ressaltar que o ato mental inibe o motor, mas no deixa de ser atividade corprea. Comea a haver uma economia no movimento quando o pensamento ganha um lugar maior, medida que a criana mexe menos msculos para realizar tarefas. No entanto, Wallon reconhece nas atividades de pensamento o que ele chama de funo tnica do movimento, ou seja, uma motricidade expressiva. Ento, h dois tipos de atividade corprea: a cintica, responsvel pelo movimento, deslocamento, mudana de posio e a atividade tnica, presente na imobilidade e responsvel pela expressividade.

Para Wallon, por volta dos 4 anos, surge o perodo personalista, momento de afirmao do eu; e a partir dos 7 anos, o perodo categorial, quando o domnio cognitivo oferece as bases para que se desenvolvam as aes mentais de explicar, definir, diferir objetivamente o mundo.

relevante pensarmos que tanto a dimenso afetiva, quanto a cognitiva (mental) e do movimento esto em jogo em todos os momentos do desenvolvimento. No h para Wallon superposio de uma pela outra, somente predominncia alternada. Valorizar estes trs planos no cotidiano da escola um desafio!

A contribuio de Wallon para pensarmos a escola traz algumas outras provocaes: como equacionar a valorizao tanto do movimento cintico quanto do tnico, quer dizer, a importncia dos deslocamentos da criana no espao, da expanso, correr, pular, saltar e a contrao inerente ao pensamento? Como considerar o que o autor denomina como dilogo tnico, que aparece entre o beb e o adulto, como forma de relao mediada pelo contato corporal, como algo importante para a vida inteira? Como o professor toca, olha, escuta e, pelas vias sensoriais, constitui uma qualidade afetiva na relao com as crianas no cotidiano?

Autores contemporneos do campo da Biologia e da Psicologia, Maturana e Varela, propem que sujeito e meio so efeitos de uma rede processual, constituindo-se reciprocamente. O princpio a relao. Assim, no conhecemos um mundo preexistente, que existe independente de nossas aes nele. No h separao entre nosso conhecimento do mundo e o que fazemos nele. Essa circularidade entre ao e experincia permite a afirmao de que todo ato de conhecer faz surgir um mundo. Quando nos debruamos sobre a realidade para

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conhec-la, tambm produzimos essa realidade. Na relao entre sujeito e ambiente, ambos esto em constante mudana. A capacidade de o organismo produzir a si mesmo sem destruir sua unidade denominada pelos autores de autopoiesis.

Assim, a cognio, ou a produo de conhecimento, acontece no domnio das interaes de todo o sistema autopoitico (onde a produo de sujeito e a produo de mundo acontecem simultaneamente). Portanto, o conhecimento no algo que acontece na mente, mas em todo o corpo. Maturana e Varela chamam de enao a cognio corporificada, isto , o fruto da ao do sujeito no mundo, possibilitada pelo corpo. A ao guiada por processos sensoriais.

A partir dessas idias de Maturana e Varela, podemos dizer que a aprendizagem envolve a coordenao de corpo e mente e no somente a representao mental do mundo. Aprendizagem no repetio mecnica, mas atividade criadora, que envolve o acoplamento do organismo com o meio. Na escola, importante focalizar quais as experincias sensoriais, afetivas e relacionais das crianas, tendo em vista percebermos quais mundos criam e como so constitudas como sujeito. A experincia produz o conhecimento e produz a prpria criana, como exploradora, criadora, confiante em si, ou submissa, passiva, expectadora da ao do outro.

A interlocuo com a Filosofia dilata essa compreenso da aprendizagem como criao de um mundo, experincia e no representao mental, algo que acontece somente no pensamento. Deleuze (1987), analisando a obra de Proust, prope que a aprendizagem acontece sempre por intermdio de signos e no pela assimilao de contedos objetivos; acontece quando um signo interpela o sujeito, no encontro, no como algo planejado de antemo. Para o autor, todo aprendiz egiptlogo de alguma coisa, decifra signos que emanam dos objetos, do mundo, das relaes.

Portanto, para a escola, coloca-se o desafio de organizar espaos, objetos, relaes que incitem ao movimento, aos encontros, alegria, surpresa e ao impondervel. Isso no significa deixar de lado ou de fora o pensamento e a razo, mas de equacion-los com o corpo

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e a emoo, na perspectiva de dar sentido e compreender os acontecimentos da vida, o que diferente de controlar a vida, antes que ela acontea.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense, 1987. MATURANA, Humberto. Emoes e linguagem na educao e na poltica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. PIAGET, Jean. O raciocnio na criana. Rio de Janeiro: Record, 1967. PIAGET, Jean. O nascimento da inteligncia na criana. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. PINO, Angel. As marcas do humano: as origens da constituio cultural da criana na perspectiva de Lev S. Vigotski. So Paulo: Cortez, 2005. VYGOTSKY, Lev Seminovich. A formao social da mente. So Paulo: Martins Fontes, 1984. VYGOTSKY, Lev Seminovich. Pensamento e Linguagem. So Paulo: Martins Fontes, 1987. WALLON, Henri. As origens do carter na criana. So Paulo: Nova Alexandria, 1995. WALLON, Henri. As origens do pensamento na criana. So Paulo: Manole, 1989.

Nota: Professora do Curso de Especializao em Educao Infantil Perspectivas de trabalho em creches e pr-escolas na PUC-Rio. Doutora em Educao pela PUC - Rio.

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PROGRAMA 3

ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLA: AS PERSPECTIVAS Pensando o lugar do corpo na escolaAlexandra Pena1 Isabel C. Boga2 Leonor Pio Borges3

A famosa mxima penso, logo existo implica numa concepo que permeia todo o conhecimento e os valores ocidentais, e que tem duas caractersticas muito definidas: a de que corpo e mente so opostos, e a de que o corpo um mero suporte para as nobres atividades mentais. Essa concepo, na escola, se materializa como a crena de que s se aprende com a mente.

Nossos questionamentos esto relacionados, principalmente, s rotinas e atividades escolares que envolvem o corpo, de bebs dos berrios at crianas de 10 anos, como comer, brincar, tomar banho, correr, se mexer, danar, ir ao banheiro... Por que estabelecemos uma hora para cada uma dessas atividades? Ser que todo mundo tem fome junto? Quem diz que hora de dormir? Alm disso, por que propomos determinadas atividades e no outras? Temos, na escola, uma hora para danar? E para fazer o que se tem vontade?

No incio, procuramos compreender o modelo de escola vigente, evidenciando, a partir desta contextualizao, a relao que a sociedade ocidental estabeleceu com o corpo e com suas necessidades e desejos. Em seguida, abordamos a questo do corpo como a primeira morada do psiquismo e finalizamos com a esperana de conquistar novas concepes sobre o corpo e sobre a criana, que gerem desdobramentos nas prticas pedaggicas e no cotidiano da escola.

Historicamente, a relao do ser humano com o corpo marcada pelo controle. Hoje, as instituies escolares ainda reproduzem estas prticas dicotmicas por duas razes: primeiro, porque o discurso higienista produziu, alm de uma preocupao com o corpo, a sade e a higiene, um discurso social e poltico, e segundo pela presena ainda marcante de instituies

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religiosas nos espaos educacionais, sustentadas por um discurso do sagrado e da moral. O controle da economia do corpo pela limpeza, pela abstinncia sexual e no-masturbao foi um princpio bsico para a formao dos sujeitos capitalistas e cristos, que ns somos.

Os corpos ficaram cada vez mais regulados e administrados em nome da ordem social. O corpo solto torna-se imoral, desviado, desocupado e deve ser transformado, com a ajuda da educao moral, em corpo til. Segundo Foucault (1982), poderamos dizer que o sculo XIX realizou um grande esforo de disciplinarizao e de normalizao.

Podemos constatar a expresso destas marcas em algumas prticas escolares como: filas de carteiras, o emparedamento por horas a fio das crianas dentro das salas de aula, as filas indianas, as msicas para todas as atividades, a hora definida de cada coisa, etc.

A descoberta das crianas como seres diferentes dos adultos trouxe uma questo: como fazer para educ-las, para torn-las virtuosas? Uma das respostas encontradas foi a criao de instituies para civilizar as crianas e, em conseqncia, controlar as famlias e a sociedade (Barbosa, 2006, p.54).

A rotina da escola demonstra um automatismo das relaes e uma acomodao a padres de comportamento previamente estabelecidos, onde no h lugar para o surgimento do novo. Que concepes de criana e de desenvolvimento infantil esto por trs desse modelo de educao? Seria a concepo de uma criana autnoma, criativa, capaz de produzir cultura? Parece mais a de uma criana em falta, que precisa ser ensinada, moldada.

No entanto, no podemos nos esquecer que somos, ns mesmos, profissionais de educao cuja formao marcada fortemente pelo vis cartesiano que perpassa toda a civilizao ocidental e que, inclusive, influencia a forma como construmos e organizamos nosso conhecimento. Deste modo, por mais que saibamos que no existe desenvolvimento motor separado de desenvolvimento afetivo nem de desenvolvimento cognitivo, ainda difcil ter um olhar integrado sobre o processo de desenvolvimento de nossas crianas na prtica

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cotidiana. O risco de compartimentalizar o processo de desenvolvimento infantil real e constante

Alm dessa compartimentalizao, existe a questo do peso que cada um desses aspectos encontra em nossa sociedade. Como j colocado anteriormente, vivemos numa sociedade que prioriza o racional, o pensamento, os processos mentais em detrimento de outras experincias como as sensoriais, sentimentais, artsticas e o contato com a natureza.

A importncia dada ordem e ao controle aparece claramente em diversos momentos do cotidiano: as crianas no tm liberdade para escolher as atividades que desejam realizar, de se servirem sozinhas na hora do almoo, de dormir o tempo que precisam, de se movimentarem da maneira que quiserem.

Todas essas questes nos fazem refletir sobre como a escola pode acabar contribuindo para a formao de pessoas sem autonomia, que desconhecem seus prprios corpos, seus sentimentos, suas possibilidades e seus limites.

atravs do corpo que a criana experimenta o mundo, conhece as sensaes de calor, frio, aconchego, dor, prazer, medo, etc., mas para isso necessrio que ela possa se movimentar e interagir com o ambiente sua volta. De fato, para Maturana (2001) viver sinnimo de conhecer. Segundo este autor, um bilogo chileno, o ser humano aprende com o corpo inteiro. Seu conceito de acoplamento estrutural supe que o conhecimento se d nas trocas estabelecidas a partir das relaes do ser humano com o outro humano, mas tambm com o outro ambiente sua volta.

Neste processo, o ser humano se modifica e modifica o outro simultaneamente, o que significa dizer que a cada encontro, a cada momento, estamos modificando e sendo modificados, numa espiral infinita que s cessa com a morte. Esse conceito d a dimenso da importncia do espao entre o eu e o outro, o espao da relao, que chamado por Maturana de espao de convivncia. (Maturana, apud Pio Borges de Castro, 2006, p. 16) Este conceito implica num ambiente verdadeiramente acolhedor construo do conhecimento, pois parte

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do princpio de que o conhecimento no est em mim nem no outro, mas sim na relao que estabelecemos entre ns. Esse pressuposto inclui a necessidade de reconhecer a alteridade em todas as suas dimenses, pois, sem respeito ao outro, s suas diferenas, desejos e necessidades, no h aprendizado, no h paz no viver e no conviver.

Para Maturana (2001), o conhecimento no representativo, no est gravado na mente humana, mas corpreo est gravado em nossos corpos, o que inclui outras dimenses que no s a mente racional humana: inclui as sensaes corporais e os sentimentos vivenciados. No entanto, estamos inseridos em uma cultura que enfatiza o conflito mente-corpo e a escola acaba reproduzindo esta dualidade em suas estruturas curriculares e em suas rotinas.

(...) o jeito de ser do nosso corpo no algo que possumos naturalmente, no apenas uma construo pessoal, mas social e poltica: algo aprendido, construdo ao longo de toda a vida. Portanto, a histria e a cultura significam nossos corpos (Tiriba, 2001, p. 01).

H uma grande valorizao do intelecto, j que a sociedade em que vivemos tende a ignorar tudo aquilo que nos identifica enquanto animais. Relegando o corpo a um segundo plano, ficam tambm esquecidos outros canais de expresso, entre eles as sensaes fsicas, as emoes, os afetos, os desejos.

As prticas escolares, em geral, associam movimento baguna, disperso e, por isso, privilegiam o no-movimento, a postura esttica, quieta e atenta como condio para a aprendizagem. Valoriza-se apenas o movimento mecnico e sistemtico, que tem como objetivo aprimorar a coordenao motora, para garantir a aquisio da leitura e da escrita ou, ainda, o movimento ligado prtica esportiva.

Um corpo escolarizado capaz de ficar sentado por muitas horas e tem, provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de ateno, mesmo que falsos. Um corpo disciplinado pela escola treinado no silncio e num determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo e o espao de uma forma particular. Mos, olhos e ouvidos esto adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente desatentos ou desajeitados para outras tantas (Louro, apud Pena, 2003, p. 35).

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Os comportamentos e os movimentos previamente determinados compem a rotina de atividades infantis, desconsiderando o interesse das crianas. O espao externo das escolas costuma ser muito mal aproveitado, restringindo-se apenas ao recreio. O dia-a-dia escolar lembra o de uma linha de montagem, onde os encontros acontecem sem criatividade, sem troca, sem emoo, sem produo de conhecimento.

Hoje, quando ainda temos muitas de nossas prticas educativas resultantes desse modelo autoritrio e assistencialista, observamos, com freqncia, escolas que mantm na sua rotina um excessivo controle sobre as atitudes espontneas das crianas.

O atendimento aos bebs tambm denuncia prticas estereotipadas de atendimento. Com a criao de berrios, um enorme nmero de bebs passou a ser atendido em ambiente escolar. O que dizer dos bebs que so impedidos, por exemplo, de explorar os alimentos com as mos, com a boca, de se sujarem por inteiro? Provavelmente, eles perdero muito com relao conquista de sua autonomia pessoal e parte da confiana em si mesmos.

Em geral, no temos idia do quanto o corpo, desde muito cedo, est implicado na constituio do psiquismo. No incio da vida, nossa comunicao com o mundo se d no nvel corporal, atravs dos sentidos: ttil, olfativo, visual, auditivo, gustativo e muscular (Anzieu, 1989).

O nascimento biolgico e o nascimento psquico no coincidem no tempo. Neurobilogos, psiclogos, alm de psicanalistas, vm estudando esta questo desde os anos 70, principalmente na Frana e nos EUA, procurando identificar o percurso que leva ao nascimento psquico, considerando especialmente a enorme plasticidade do crebro nos trs primeiros anos de vida.

Em um primeiro momento, o beb vai adquirindo, pouco a pouco, a conscincia de uma separao de corpos entre ele e seus cuidadores. Adquirir a conscincia desta separao uma travessia extremamente delicada que se d durante o primeiro ano de vida. Sair da unidadedual, para perceber a existncia de um eu e de um no-eu, o caminho inicial para o

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desenvolvimento do psiquismo. De incio temos, portanto, um ego corporal para construir um ego psquico. Segundo Tustin (1990), a maneira como o beb toma conscincia do no-eu essencial constituio de sua identidade individual.

Numa interseo com seus cuidadores, que deve ser contnua, se d a interpenetrao de alguns aspectos corporais: os olhos relacionados ao olhar acolhedor do outro; a boca relacionada amamentao e ao auto-erotismo oral; a vivncia de colo, experimentada como suporte pelo beb, numa juno entre cabea, nuca e costas e, finalmente, todos estes aspectos embalados pela capacidade de expressar sons adquirida pelo beb. Num sutil alinhavar de sensaes, o beb vai organizando seu corpo e percebendo-se como nico e inteiro.

Os processos de subjetivao vo depender dessa primeira organizao do corpo sensvel. Nesta primeira costura se faz necessria uma parceria com a doura, como acolhedora deste funcionamento precoce, em que as emoes ainda so confundidas com as sensaes (Haag, 1991, p. 53-54). Ser atravs da doura do toque que construiremos a ternura. A ternura , portanto, inicialmente ttil (Fontes, 2002).

O sentido do toque entre o cuidador e o beb uma maneira de transmisso entre os dois. O toque entre cuidador e beb pode resgatar ou impedir um melhor equilbrio nesta dade, que a base do contato do beb com o mundo. Com o nascimento de um beb, recebemos em nossos braos muito mais que uma tabula rasa, na qual iremos imprimir nossa educao parental ou pedaggica. O que na verdade ocorre so trocas bilaterais, que so construdas desde o nascimento. Estas interaes podem formar uma troca positiva quando h: sincronia (simultaneidade), mutualidade (reciprocidade) e sintonia afetiva. Por outro lado, temos as interaes patolgicas e patognicas que so o resultado de sobrecarga, carncia e assincronia (Golse, 2003).

O cuidador uma pea-chave nesta atmosfera que envolve o beb. Se o adulto for sensvel a este momento especial da vida do beb, estar cuidando do espao relacional entre ele e o beb, construindo um campo de afetao (Maia, 2004) favorvel ao desenvolvimento infantil. Desta forma, promove-se o fortalecimento dos laos afetivos, fundando uma

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intimidade estruturante na escola. Estes subsdios permitem que os educadores possam identificar diferentes modalidades relacionais, com o intuito de promover interaes positivas que incentivem o desenvolvimento saudvel do beb e da criana, prevenindo assim, possveis desequilbrios nestas trocas.

Nos lactentes, percebemos que os estmulos auditivos constituem o grande motor da interao. A voz do adulto provoca sorrisos, atrai o olhar, facilita uma relao face a face, alm de permitir uma troca de comunicao verbal. O ambiente lingstico dos bebs est composto por formas particulares de linguagem. A prosdia (pronncia das palavras) contribui para a estruturao do universo afetivo do beb e tambm ajuda na estruturao de seu tratamento da palavra. A criana, ainda bem pequena, j percebe os sons das palavras, podendo organiz-los, segment-los e reconhec-los. Os bebs reagem s variaes na durao e na entonao da fala dos adultos e, em resposta, se comunicam, se identificam e captam a emoo transmitida em cada fala. A maneira de falar com as crianas, assumida, instintivamente pelos pais e por grande parte dos que cuidam das crianas, mergulha a criana num banho lingstico e afetivo (Soul & Cyrulnik,1999).

A Educao Infantil, ao lidar com crianas de zero a cinco/seis anos, e a primeira parte do Ensino Fundamental, ao lidar com crianas at 10 anos, so etapas que esto mergulhadas no mundo da comunicao, no s da comunicao verbal, como tambm da comunicao noverbal. O mundo da expresso corporal e sensorial, embora desprezado, um universo a ser explorado, quando o aprendizado direcionado e restritivo no dominar mais as relaes escolares.

Portanto, de crucial importncia que os educadores sejam sensveis s necessidades e desejos do corpo. Mas como desenvolver essa escuta com as crianas se no a tivermos conosco? Como perceber as sensaes dos outros sem conectarmos as nossas prprias? Como estar aberto s emoes infantis sem recuperarmos os nossos sentimentos? Como acompanhar o ritmo das crianas sem sentirmos os nossos ritmos biolgicos?

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Novas prticas, como a arte milenar de massagem para bebs desenvolvida na ndia, chamada Shantala, poderiam ser desenvolvidas nas creches e nas escolas.

A Shantala na escola seria uma ponte entre a experincia corporal com o beb e a apropriao de um olhar mais amplo pelas educadoras de berrio. Praticar a Shantala, para alm de uma tcnica, traduz uma oportunidade de contato no s com o corpo do beb, mas tambm com o prprio corpo das educadoras, repensando a relao que estabelecem com cada criana, assim como valorizando as inmeras formas de comunicao produzidas pelas crianas. Tocar implica em ser tocado, j que o relaxamento necessrio para a prtica da Shantala pode trazer uma nova forma de contato das educadoras/cuidadoras com elas prprias, oferecendo novas representaes psquicas, que seriam acolhidas num trabalho de formao destas educadoras (Boga Borges, 2007, 57-58).

Estar atento ao corpo, aos sentimentos e aos desejos das crianas nas relaes e atividades cotidianas na escola implica reconhecer, legitimar e dar voz s necessidades infantis, seja da ordem do corpo ou do psiquismo, favorecendo o desenvolvimento de seres sensveis a si mesmos e aos outros. Nas situaes cotidianas, por exemplo, esse reconhecimento acontece quando a criana chega a um adulto mostrando o joelho machucado e este pergunta est doendo?. Ou quando uma criana bate em outra e o adulto pergunta: O que aconteceu? Voc est com raiva? Por que voc fez isso? Estas perguntas fazem com que a criana possa, gradativamente, perceber e nomear as sensaes do seu corpo e seus sentimentos at que seja capaz de expressar-se pela fala, verbalizando as situaes ocorridas, as sensaes experimentadas, os seus pensamentos e sentimentos. Dessa forma, constituem-se como sujeitos sensveis a si mesmos e ao outro, pois, ao experimentarem um olhar externo atento, carinhoso e acolhedor em relao a si, so marcados inevitavelmente pela dimenso da alteridade.

Em outras palavras, estamos falando de um ambiente que possibilite a constituio de sujeitos solidrios, conscientes de si e da alteridade, da existncia de um outro que diferente de mim. Num mundo regido cada vez mais pela massacrante ditatura do individualismo e do imediatismo, do eu quero agora, do no me importa o que voc sente, pensa ou qual a sua

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situao me importa que eu esteja satisfeito, urgente pensarmos, como profissionais de educao, nos seres humanos que estamos formando e que queremos formar.

Segundo Tiriba (2005), o paradigma que norteia a civilizao ocidental produz desigualdade social, desequilbrio ambiental e sofrimento pessoal. De fato, cada vez torna-se mais claro que h algo errado num mundo onde existe um abismo entre os muitos sem nada e os poucos que concentram a riqueza; onde a natureza sinaliza no suportar mais o modo de produo capitalista que a explora sem trgua; e, por fim, um mundo em que os seres humanos esto, cada vez mais, consumindo compulsivamente (bens, medicamentos, drogas, comida, sexo, etc.) em busca de uma satisfao que no chega, o que os mantm cada dia mais deprimidos e angustiados.

preciso mudar. preciso resgatar e valorizar a dimenso do cuidado conosco, com o outro e com o mundo, comeando no berrio das creches e, se possvel, at incorporarmos o cuidado ao nosso modo de viver.

Pensamos que um caminho considerar uma concepo de formao e qualificao dos profissionais de educao que estimule um processo de construo de autonomia, que s possvel valorizando a histria, a experincia, a palavra e tambm o corpo desses profissionais.

Ao analisar as prticas escolares, especificamente entre os bebs de berrios e as crianas de at 10 anos, procuramos demonstrar o quanto rotinas estereotipadas podem prejudicar uma experincia rica em trocas, transformando-a numa atividade mecnica e carente de sentido. Todos os envolvidos nesta cena sofrem, tanto adultos, como crianas. A coragem de mudar aparece bem traduzida nas palavras de Freire:

No nos tornamos "delinqentes", anti-sociais, "narcisistas", deprimidos, obcecados pela domesticao do corpo e por sensaes corporais estticas apenas porque queremos devorar tudo e todos, segundo a lei do consumo. Tornamo-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes, abatidos, ansiosos, impiedosos, truculentos, apticos ou "resignados" porque nos fazem ver,

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sentir e pensar que nada do que somos ou temos desperta o menor "interesse", "admirao", "cuidado" ou amor do outro (Freire Costa, 2000).

Reafirmamos nosso desejo de contribuir para um mundo diferente, uma vida menos banal, onde a tica do cuidado possa retomar o seu valor, ao favorecer em cada um o encontro com sua maneira singular de ser. Assim, propomos e buscamos maneiras de conviver com nossos parceiros de vida, tenham eles a idade que tiverem, estimulando que o debate, os desdobramentos e as respostas possam ser construdos pelos que vivem a experincia num eterno compartilhar ao longo do trabalho e ao longo da vida.

Referncias Bibliogrficas

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Notas: Psicloga com Formao em Psicoterapia Reichiana, especialista em Educao Infantil pela PUC-Rio e mestranda em Psicologia pela UFRJ.2

Psicanalista e membro do grupo de pesquisa "Primrdios da Vida Psquica - Clnica dos

Primeiros Anos", do Crculo Psicanaltico do Rio de Janeiro - CPRJ. Especialista em Educao Infantil pela PUC-Rio.3

Psicloga, bailarina, especialista em Educao Infantil e mestranda em Educao pela

PUC-Rio.

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PROGRAMA 4

EDUCAO E VIVNCIA DO ESPAO: DILOGOS ENTRE A ARQUITETURA E A PEDAGOGIALa Tiriba1

Salas de aulas, geralmente inspitas, alunos em carteiras enfileiradas, quadro de giz, um professor frente: estranha e inadequada organizao, em especial, nos lindos dias-de-sol-lfora. Fechada entre muros, estranha interao com a realidade social, desarticulada dos cenrios onde ocorre a vida de verdade, indiferente, insensvel ou artificial na relao com o que, de fato, para as crianas e jovens, mobiliza e tem significado. E inadequada sade do corpo, relao dos humanos com o mundo natural, ao desfrute do sol, do vento. Indiferente beleza do universo mais amplo em que estamos situados, s necessidades do corpo e do esprito. Espao contido, de crianas e adultos emparedados, mas fervilhante de energias.

A escola o nico espao social que freqentado diariamente, e durante um nmero significativo de horas, por adultos e crianas. Para os pequenos, que freqentam creches, prescolas e as sries iniciais, especialmente os que permanecem em horrio integral, a que, para alm do convvio familiar, aprendem a viver e a conviver. Nove horas dirias, s vezes, mais! Para quem tem entre 0 e 10 anos, o que resta de tempo em cada dia? Se na escola que grande parte da vida transcorre, preciso que a as crianas se sintam muito bem, que a sejam felizes...

Referindo-se s reas destinadas s escolas nas cidades contemporneas do Terceiro Mundo, a arquiteta Mayume de Souza Lima escreveu:

As construes podiam se destinar tanto a crianas, a sacos de feijo ou a carros, pois so apenas reas cobertas, com fechamento e piso. (...) os seres humanos perderam no apenas a sua capacidade nica de dar sentido s coisas, mas tambm perderam o instinto primrio de todos os animais adultos de buscar o ambiente mais favorvel para o desenvolvimento dos seres jovens de sua espcie (Lima, 1989, p.11).

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Atualmente, somos informados sobre esforos investidos por dirigentes de secretarias de educao, e mesmo por diretores e/ou professores, no sentido de qualificar os espaos escolares. Sabemos de escolas que reorganizam as salas derrubando paredes, introduzindo grandes espaos interativos e cantos para brincadeiras; que abrem janelas nos muros, possibilitando a viso do lado exterior; que assumem o entorno, os parques, as praas, o patrimnio cultural e ambiental da cidade como objeto de investigao pedaggica. Entretanto, esta no a realidade da maioria das cidades brasileiras! No municpio do Rio de Janeiro, por exemplo, vrias escolas no dispem de reas ao ar livre. O resultado que crianas passam manhs e/ou tardes inteiras em espaos fechados, muitas vezes em salas inteiramente ocupadas por mesas e cadeiras.

Mesmo considerando a precariedade de muitos Sistemas de Ensino, a situao salarial dos professores e os recursos limitados para a educao, entendemos que hora de levantar a bandeira da qualidade de vida nas escolas! No mais possvel compactuar com a insalubridade do modo de funcionamento escolar. J hora de serem efetivadas as condies concretas de materializao dos direitos previstos no Estatuto da Criana e do Adolescente e que dizem respeito integridade da pessoa humana.

Este desafio exige que superemos uma viso de mundo que concebe os seres humanos separados do mundo natural. No podemos esquecer que o divrcio primordial da modernidade, entre seres humanos e natureza e os outros que dele se originam entre corpo e mente e entre emoo e razo se materializam tambm nos espaos escolares. Como assegurar bem-estar se as crianas no so assumidas em sua integralidade existencial, se a escola no tem pelo corpo o mesmo apreo que tem pela mente?

Escola: um direito, uma alegria!

Do ponto de vista das crianas, no importa que a escola seja um direito, importa que seja agradvel, interessante, instigante, que seja um lugar para onde elas desejem sempre retornar. O poder pblico tem o dever de assegurar acesso e permanncia. Mas, a freqncia escola no pode ser entendida apenas como direito a um espao que oferea proteo fsica e

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desenvolvimento cognitivo. preciso que as crianas se sintam bem, que sejam cuidadas; e cuidar implica oferecer aquilo que satisfaa o conjunto de suas necessidades e desejos.

Entretanto, as escolas:

No so pensados para crianas alegres e brincalhonas, (...) mas para massas de crianas (...). Roubam das crianas o direito a flores e gramados, gua no ptio, barro, areia, salas amplas, abertas, coloridas, saudveis (Hoemke, 2004, p.18).

Segundo esta autora, quando se trata de construir escolas, aqueles que pensam e projetam os espaos das crianas no se dedicam a compreender a lgica da infncia. Muitas vezes, o projeto arquitetnico realizado por uma empresa terceirizada, a partir de dados de demanda, como nmero de crianas e o que se quer nas salas. Estas informaes so obtidas junto s equipes das Secretarias de Educao. Isto , no processo de elaborao do projeto arquitetnico, h pouca ou nenhuma participao de educadores, crianas e suas famlias, aqueles que faro uso do prdio que est sendo construdo.

Referindo-se ao processo de definio do local que abrigar a escola, Lima (1989) aponta uma situao ainda comum: nem sempre escolhido pela sua salubridade, acesso, topografia, mas por decises polticas que se voltam para o no confronto com os loteadores e para a diminuio aparente dos custos da construo dos prdios (p. 65).

H ainda um aspecto, relativo s polticas de ampliao do acesso escola, que podemos denominar como ideologia do espao construdo. Consiste em ocupar todos os espaos do terreno com edificao de salas. Assim, as crianas ficariam confinadas, porque as reas ao ar livre vo sendo ocupados com novas instalaes, o verde vai sumindo, as crianas vo ficando emparedadas.

Esta situao se deve falta de recursos econmicos, mas tambm a uma viso que objetiva estender a cobertura do atendimento, sem assegurar qualidade de vida. Neste caso, o compromisso do poder pblico est restrito ao cumprimento de um dever que corresponde a

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um direito legal. Porm, esta referncia no basta, porque a tica do cuidar no se pauta num conceito de moralidade centrado em direitos, num princpio moral abstrato, assentado sobre condutas universais (Tronto, 1997). Pois, partindo do princpio de que as pessoas so singulares, no h uma quantidade ou uma determinada maneira de cuidar que sirva a todas. Assim, oferecer instalaes adequadas sade e ao bem-estar das crianas e adultos cumprir com um primeiro dever, pois no basta que a freqncia escola seja apenas um direito, preciso que, para as crianas, seja tambm uma alegria!

Na contramo do desejo, aprisionadas, as crianas vo sendo despotencializadas, adormecidas em sua curiosidade, em sua exuberncia humana. Como diria Foucault (1987), seus corpos vo sendo docilizados. Sua subjetividade vai sendo modelada. Esta situao corresponde, no plano macropoltico, a um quadro socioambiental em que a natureza vai sendo tambm destruda. Este duplo e simultneo processo de degradao vai fazendo da Terra um planeta inspito, inadequado para a vida das espcies que hoje o habitam, e o das instituies educacionais, espaos de aprisionamento, de impotncia.

Controle e docilizao dos corpos

Embora j haja documentos orientadores2, em muitas cidades, prevalecem os padres antigos. A denncia da arquiteta Mayume de Sousa Lima ainda atual:

(...) as salas de aula tinham, como continuam tendo, orientao para abertura de janelas esquerda das carteiras, quadro frente (...), junto porta de acesso, com visor para a inspeo dos administradores. Essas salas sucediam-se lado a lado, ao longo de corredores (...). Este esquema, sempre igual, dava s escolas uma ar de caserna ou de presdio, onde as crianas caminhavam em filas, sob as vistas dos professores ou dos bedis. Mas o esquema ainda hoje no mudou inteiramente. O condicionamento disciplina d o tom geral dos espaos escolares (Lima, 1989, p. 58).

A questo do controle relaciona-se com a possibilidade de olhar cada indivduo. Na viso de Foucault (1987), o prprio conceito de indivduo foi produzido socialmente, e este foi um dos

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aprendizados fundamentais para a adequao das pessoas ao modo de produo capitalista. De fato, os espaos das salas favorecem o olhar atento e o acompanhamento das aes de cada indivduo. Excluindo as inovaes que j podemos vislumbrar, em especial em algumas experincias inspiradas em concepes sociointeracionistas, podemos dizer que a prpria organizao dos espaos definida em funo de assegurar a ateno de cada um, no do grupo. O seu objetivo contribuir para a formao de pessoas que atuem produtivamente na sociedade.

Como, na perspectiva moderna, o atributo humano principal para esta atuao a razo, so priorizados os espaos que favoreceriam o seu desenvolvimento. As salas escolares, como as demais reas fechadas que limitam os movimentos, seriam lugares mais apropriados que os ptios para modelizar as formas de pensar, agir e sentir, assim como para controlar as possveis diferenas e ensinar as crianas a tornarem-se capazes, teis e adequadas ao mercado de trabalho. Nas palavras de Lima:

(...) o poder, primeiro da sociedade, depois das instituies representativas desta sociedade e, terceiro, dos adultos em geral, se apodera dos espaos da criana e o transforma num instrumento de dominao. A organizao e a distribuio dos espaos, a limitao dos movimentos, a nebulosidade das informaes e at mesmo a falta de conforto ambiental estavam e esto voltadas para a produo de adultos domesticados, obedientes e disciplinados se possvel limpos destitudos de vontade prpria e temerosos de indagaes. (...) A liberdade da criana a nossa insegurana, enquanto educadores, pais ou simples adultos, e, em nome da criana, buscamos a nossa tranqilidade, impondo-lhes at os caminhos da imaginao (Lima 1989, p.10 - 11).

Neste contexto, o ambiente de referncia o da sala, mais propcio a metodologias voltadas para captar a ateno das crianas. Esta necessidade levaria a uma pedagogia que privilegia os espaos fechados. E, tanto como causa, quanto como efeito, a uma concepo e a uma prtica de formao de educadores (inicial e em servio) que pensada tendo os espaos das salas como referncia.

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O emparedamento das crianas

O documento Parmetros Nacionais de Qualidade para a Educao Infantil, citado anteriormente, j anuncia a idia de que o convvio com elementos do mundo natural um direito das crianas! Entretanto, na Portaria n 321 de 26/05/88, do Ministrio da Sade que serviu, ou ainda serve de referncia para a construo de espaos de Educao Infantil em municpios brasileiros as definies para a rea interna so detalhadssimas. Ao contrrio, so poucas e genricas as normas tcnicas que orientam o projeto arquitetnico, no que diz respeito ao espao externo.

A falta de ateno rea do terreno que no ser construda uma caracterstica comum a documentos que orientam a construo de creches e pr-escolas no Brasil. Se no h uma nfase importncia de contato de meninos e meninas com o mundo natural, porque ainda no alcanamos a compreenso do quanto fundamental para as crianas um cotidiano em liberdade, em relao com elementos da natureza que se compem positivamente com elas, e que, portanto, geram potncia.

Esta situao se deve ao fato de no nos percebermos enquanto seres de natureza, membros de uma espcie entre outras. A concepo de criana enquanto ser de cultura est assegurada na maioria das propostas pedaggicas, pois todos ns aceitamos a idia de que nenhum ser sobrevive com caractersticas humanas se no receber cuidados de outros humanos, e de que s entre humanos aprendemos a recriar o jeito de ser da espcie e do grupo social de que somos parte. Entretanto, ainda no assumimos a concepo de criana enquanto ser de natureza, porque, na prtica, esquecemos que a vida de cada criana e a vida do coletivo social acontecem num universo maior, o cosmo, a Natureza. Nossa cultura antropocntrica esquece que os seres humanos no esto ss, partilham a existncia com inmeras outras espcies, sem as quais a vida no planeta no pode existir. Somos parte da natureza! Somos fruto de autopoiese, isto , de um fenmeno de auto-organizao da matria que d origem a todos os seres vivos (Maturana e Varela, 2002). Portanto, as crianas so, ao mesmo tempo, seres da natureza e seres de cultura.

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Portanto, os espaos educacionais precisam ser pensados em funo desta dupla dimenso. verdade que, nos ltimos anos, a dimenso cultural foi valorizada: ganharam importncia outros caminhos de conhecer que envolvem as mltiplas linguagens de que os seres humanos fazem uso no processo de interao com a realidade, mediada por outro ser humano. Mas, as relaes com o mundo natural seguem sendo de distanciamento, j que ele seria simplesmente pano de fundo, cenrio onde humanos mentais se movem.

Talvez por serem modos de expresso da Natureza (Espinosa, 1983), as crianas tm verdadeira paixo por espaos ao ar livre, em contato com elementos do mundo natural. Mas as rotinas as mantm distanciadas: mesmo que se deslocando de um espao para outro, a maior parte do tempo permanecem emparedadas.

Utilizamos esta expresso para designar, de forma genrica, a situao das crianas nos muitos espaos, alm das salas de aula, que so utilizadas pelas crianas: dormitrio, refeitrio, sala de vdeo, galpo... De fato, analisando as rotinas, aparece claramente uma dinmica em que a criana vai de um espao fechado a outro: da sala onde recebida, para a sala da TV, para o refeitrio, para sala de sua turma, para atividades de higiene, para o dormitrio... A chegada aos espaos externos demorada, e pode mesmo no acontecer!

Em pesquisa recente (Tiriba, 2005) realizada em quarenta instituies de Educao Infantil vinculadas rede pblica, que atendem em horrio integral constatamos que as crianas permanecem em espaos entre-paredes durante 8, 9, 10 horas ou mais, sendo que, em 10% das instituies investigadas, elas dispem, diariamente, de um curto perodo de 30 a 60 minutos ao ar livre. No caso dos bebs e dos que tm at 2 ou 3 anos, evidenciou-se uma situao de aprisionamento, pois, nas unidades que no dispem de solrio, at mesmo o banho de sol pode no acontecer!

Verificamos tambm que, em 25% das instituies pesquisadas, as janelas no esto ao alcance das crianas, ou no existem. Ou seja, alm de permanecerem muito tempo em espaos entre-paredes, so impossibilitadas de acesso vida que transcorre l fora.

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E as reas ao ar livre? O que h a: terra, rvores, gua, areia, o qu? Raramente de ps descalos, as crianas brincam sobre cho predominantemente coberto por cimento e brita, revestimentos que predominam nas reas externas. Poucos ptios so de terr