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Democracia, agência e estado. Teoria com intenção comparativa* Guillermo Q'Donnell o livro Democracia, agência e estado, de Guillermo O'Donnell, cujo falecimento em Por Luis Fernando Ayerbe** novembro de 2011 representa uma inestimável perda para as Ciências Sociais, retoma, atuali- za e avança Oteoricamente em temas caros a uma trajetória intelectual que marcou os debates na América Latina a partir da segunda metade do século passado, repercutindo internacionalmente de forma inovadora nos estudos sobre o desenvolvimento, o estado e os regimes políticos. Nos anos 1960, a crítica ao "nacional-populismo", no contexto de aceleração da crise do modelo de industrialização por substituição de importações que conviveu em vários países com a ascensão de regimes militares, desencadeia um exaustivo debate em torno da questão da dependência, centrado na caracterização das novas formas de inserção internacional da região e suas consequências em termos de especificidades nacionais. As análises sobre a dependência introduzem, como fator a considerar nas afinidades eletivas entre economia e política, o fenômeno do autoritarismo. Diferentemente das ditaduras "tradicionais" - como a dos Somoza na Nicarágua, Trujillo na República Dominicana ou Duvallier no Haiti, associadas a um domínio familiar, ou os golpes mili- tares "preventivos" contra as possibilidades de acesso ao governo do peronismo na Argentina, a APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) no Peru ou o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) na Bolívia, limitando-se a restaurar a ordem dominante e chamar eleições, os Estados Burocrático-Autoritários, conceito desenvolvi- do por Guillermo O'Donnell, buscam assegurar, sem preocupação com prazos, uma * Editora Paz e Terra, São Paulo, 2011, 314 págs. 232 VOL20 N"4 MAR/ABR/MAIO 2012

Democracia, Agência e Estado Odonnel Luis Fernando Ayerbe

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Democracia, agência e estado.Teoria com intenção comparativa*Guillermo Q'Donnell

o livro Democracia, agência e estado, deGuillermo O'Donnell, cujo falecimento em Por LuisFernando Ayerbe**novembro de 2011 representa uma inestimávelperda para as Ciências Sociais, retoma, atuali-

za e avança Oteoricamente em temas caros a uma trajetória intelectual que marcou osdebates na América Latina a partir da segunda metade do século passado, repercutindointernacionalmente de forma inovadora nos estudos sobre o desenvolvimento, o estadoe os regimes políticos.

Nos anos 1960, a crítica ao "nacional-populismo", no contexto de aceleração da crisedo modelo de industrialização por substituição de importações que conviveu em váriospaíses com a ascensão de regimes militares, desencadeia um exaustivo debate em tornoda questão da dependência, centrado na caracterização das novas formas de inserçãointernacional da região e suas consequências em termos de especificidades nacionais.

As análises sobre a dependência introduzem, como fator a considerar nas afinidadeseletivas entre economia e política, o fenômeno do autoritarismo. Diferentemente dasditaduras "tradicionais" - como a dos Somoza na Nicarágua, Trujillo na RepúblicaDominicana ou Duvallier no Haiti, associadas a um domínio familiar, ou os golpes mili­tares "preventivos" contra as possibilidades de acesso ao governo do peronismo naArgentina, a APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) no Peru ou o MNR(Movimento Nacionalista Revolucionário) na Bolívia, limitando-se a restaurar a ordemdominante e chamar eleições, os Estados Burocrático-Autoritários, conceito desenvolvi­

do por Guillermo O'Donnell, buscam assegurar, sem preocupação com prazos, uma

* Editora Paz e Terra, São Paulo, 2011, 314 págs.

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ordem política favorável à consolidação da internacionalização daseconomias, a partir do momento em que os regimes políticos vigentesse mostrem ineficazes.

Para essa abordagem, as interrogantes sobre as possibilidades estru­turais da democracia emergente nos anos 1980 também envolvem arelação entre economia e política: a viabilidade dos novos regimesimplica no questionamento do modelo econômico dominante? A res­posta é negativa. Colocar como tema vinculante a mudança econômico­-social, ao menos nos estágios iniciais da transição política, pode trazersérios riscos, já que a democracia tem de ser pensada como questãoparticular, cujo destino não depende necessariamente das condiçõesadversas ou favoráveis nas outras áreas. A atenção volta-se prioritaria­mente para o fortalecimento das formas institucionais de competição.

A relevância dessa perspectiva de análise vai além do seu impactonas Ciências Sociais, já que se incorporou como elemento constitutivodas práticas políticas de atores centrais nos processos de democratiza­ção. Tornou-se força material.

Em Democracia, agência e estado, O'Donnell revisita essa trajetóriaintelectual, combinando uma rica articulação de abordagens teóricascom pinceladas biográficas, convergindo para um elaborado valorativodo sistema político democrático.

A estrutura do livro segue uma sequência lógica coerente com aperspectiva analítica do autor, que parte de um nível micro em quediscute diversas concepções sobre a democracia e seus atores-chave,passando para um nível macro envolvendo a interação com as dimen­sões estatal, nacional e global, concluindo o percurso com sua própriaelaboração conceitual, em que torna explícita a preferência pelo "únicotipo de sistema político que inerentemente implica um horizonte nor­mativo e historicamente aberto" (pág. 254).

É com base nessa concepção que O'Donnell toma o cuidado dereforçar que se trata de uma caracterização, mais do que uma definiçãode democracia, colocando em evidência que o objeto de reflexão remeteessencialmente a um processo, a democratização, a qual" consiste (...) naaquisição e amparo legal de direitos e liberdades, sustentados de formamais ampla e mais sólida, que dizem respeito aos aspectos civis, sociaise culturais da cidadania - e também, é claro, à expansão de liberdadese direitos políticos. Os graus e a solidez dessas expressões são umamedida, ainda que difícil de calibrar empiricamente, do grau de demo­cratização ou da qualidade da democracia em cada caso" (pág.253).

Essa caracterização condensa os principais aspectos aprofundadosnos capítulos do livro. Remetendo a uma exaustiva leitura de autores dediferentes abordagens e campos científicos, O'Donnell expõe os ele­mentos que considera essenciais à ideia de democracia. Em primeirolugar, a agência, expressão da cidadania política, do cidadão como agen­te cujos direitos e liberdades são reconhecidos legalmente pelo estado.Partindo de Weber, mas não se circunscrevendo apenas a ele, sua defi­nição de estado incorpora o monopólio da coerção física como um dos

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pressupostos para o efetivo império da lei, paralelamente às instituiçõese relações de poder que "permeiam e controlam o território e os habi­tantes que esse conjunto delimita" (pág. 66).

Aqui entram as dimensões associadas à diversidade de interesses eidentidades que permeiam a estrutura legal do estado e influenciam aatuação dos que exercem o governo. A vocação universalista do sistemademocrático passa a ser testada por um contexto nacional e global quetraz para sua esfera de mediações os grupos econômicos, "instituiçõesinternacionais de vários tipos, interesses e visões próprias dos membrosde burocracias estatais e dos funcionários de governos e demandaspopulares e movimentos sociais" (pág. 72).

Sem desconhecer o peso da dimensão transnacional como fator limi­tante da autonomia dos estados e dos regimes políticos para o exercíciodo poder cidadão, O'Donnell descrê das teses sobre a tendência à desa­parição do estado. Mirando especialmente nos países do Noroeste,especialmente Estados Unidos e Europa Ocidental, verifica sua capaci­dade de adaptação institucional e legal para responder aos desafioscolocados pela realidade global.

Esse tipo de crítica às visões deterministas está presente em diversaspartes do livro, muitas vezes ilustradas com referências biográficas queenriquecem a análise com a introdução de componentes existenciaisque despertaram sua curiosidade intelectual e influenciaram escolhas:o ambiente de Yale no final dos anos 1960, quando fez seu doutoradoem Ciência Política, a vivência do estado terrorista na Argentina pós­1976, e sua posterior atuação em centros de pesquisa no Brasil, EstadosUnidos e Inglaterra.

No relato dessa trajetória, O'Donnell deixa clara sua desconfiançacom os reducionismos e essencialismos que marcam algumas das abor­dagens que frequentam os debates nos países do Noroeste. Entre osexemplos, algumas vertentes da teoria da modernização que sancionama incompatibilidade da democracia fora do mundo desenvolvido porfatores associados ao atraso econômico, justificando o autoritarismocomo momento necessário de um processo de crescimento capaz decimentar as bases estruturais de um futuro estado de direito. Também

critica as abordagens culturalistas que conferem essencialidades autori­tárias às tradições católicas ibéricas, confucionistas e islâmicas, cujasversões mais recentes alertam para os perigos do choque de civilizaçõescomo principal componente dos conflitos contemporâneos que ameaça­riam o Ocidente.

A evolução política latino-americana seria uma resposta contrária aesses determinismos. Sem deixar de chamar a atenção para as limita­ções de ordem institucional e de confiança cidadã com relação ao esta­do, ilustradas em várias tabelas baseadas nas pesquisas levadas adiantepor Latinobarómetro, reconhece que" este é o mais longo período dedemocracia na América Latina", em que "há uma nova situação demo­crática, não prevista pela literatura, incluindo os que, como eu, anterior­mente trabalharam tratando das transições a democracia" (pág. 197).

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De fato, a democratização latino-americana conviveu com criseshiperinflacionárias e as chamadas décadas perdidas de 1980 e 1990, arenúncia de presidentes eleitos questionados por fortes movimentoscidadãos (Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, Peru e Argentina), tenta­tivas de golpe (Paraguai, Venezuela) e crises militares (Peru-Equador,Colômbia-Equador- Venezuela).

Em todos esses processos, as soluções se pautaram pela negociaçãoe o respeito às instituições, com o envolvimento dos países vizinhos,gerando jurisdição regional para prevenir futuras violações do estadode direito, como a Carta Democrática do Mercosul e a Carta Democrá­tica Interamericana. Nos anos 1960-70, situações de instabilidade demenor gravidade serviram de justificativa para a intervenção das forçasarmadas na política, contribuindo para disseminar as teses sobre umaregião em que a gestão de crises que opõem interesses profundamentearraigados na sociedade é inconciliável com a manutenção das regrasdo jogo institucional.

O livro de O'Donnell revela uma realidade mais sofisticada e busca

compreender o fenômeno da democracia em suas múltiplas dimensõese possibilidades, não redutível a definições fechadas, embora sem cairnum "ecletismo insípido" que dilua seus fundamentos: "a diferençaespecífica da democracia com relação a todos os outros tipos de domi­nação política é que aqueles que não governam são fonte e justificação- e não apenas sujeitos - do poder e da autoridade política e, portanto,juízes daqueles que o exercem" (pág. 247).

Na introdução do livro, O'Donnell antecipa o projeto de um próxi­mo estudo com ênfase na análise contextual e empírica da situaçãopolítica latino-americana e a intenção de que sua análise sobre teoriacomparada abra caminhos para novas pesquisas em torno das diversi­dades, desafios e complexidades inerentes ao tema da democracia. Seufalecimento prematuro nos priva da experiência de apreciar a continui­dade das suas reflexões, mas a riqueza da obra aqui resenhada nosdeixa otimistas quanto ao legado do pensamento de um grande cientis­ta social.

Janeiro de 2012

** Luis Fernando Ayerbe é coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da UNESP (lEEI-UNESP).

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