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II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política “Horizontes y dilemas del pensamiento contemporáneo en el sur global” Buenos Aires, 2 al 4 de Agosto de 2017 II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política “Horizontes y dilemas del pensamiento contemporáneo en el sur global” Buenos Aires, 2 al 4 de Agosto de 2017 Mesa 24: “De Proudhon a Deleuze” Racionalidade capitalista e estratégias libertárias: reflexões a partir de Deleuze e Guattari Yasmin de Oliveira Alves Teixeira Universidade de São Paulo. Resumen: Os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari descrevem o capitalismo como sistema caracterizado, por um lado, pela descodificação e desterritorialização dos fluxos da II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política - Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina

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“Horizontes y dilemas del pensamiento contemporáneo en el sur global” Buenos Aires, 2 al 4 de Agosto de 2017

II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política“Horizontes y dilemas del pensamiento contemporáneo en el sur

global”

Buenos Aires, 2 al 4 de Agosto de 2017

Mesa 24: “De Proudhon a Deleuze”

Racionalidade capitalista e estratégias libertárias: reflexões a partir de Deleuze e Guattari

Yasmin de Oliveira Alves Teixeira

Universidade de São Paulo.

Resumen: Os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari descrevem o capitalismo como sistema caracterizado, por um lado, pela descodificação e

desterritorialização dos fluxos da produção social desejante e, por outro, pela recaptura desses fluxos livres numa axiomática que opera a racionalização contábil da vida social em termos de quantidades monetárias abstratas. A liberação ilimitada dos fluxos desterritorializados do desejo possuiria uma potência disruptiva que ameaçaria

destruir o campo socioeconômico assim organizado nesse sentido, o desejo seria� revolucionário. Mas a máquina capitalista também funciona através dessa liberação e

das crises consequentes à esquizofrenização do campo social, uma vez que ela fornece a matéria sobre a qual o controle axiomático é lançado, sempre franqueando um limite flexível que promova a expansão do capital. Este trabalho visa investigar,

assim, as condições de contestação política dessa lógica: trata-se da hipótese de que, se o capital se sustém pela atividade perversa de liberar constantemente o desejo

para melhor sujeita-lo à sua racionalidade estatística e contábil, para uma perspectiva

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libertária a questão central não seria pensar a resistência à liberação dos fluxos mas sim as possibilidades de impedir sua recaptura perversa pela axiomatização que

devolve o desejo às engrenagens da máquina de reprodução do capital.

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Introdução

O Anti-Édipo, primeiro tomo da opus magna fruto da parceria entre os filósofos

franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, tem por um de seus pontos centrais delinear

a lógica e a ontologia do modo de produção capitalista. Esse delineamento se faz

através do diálogo com o marxismo, de um lado, e com a psicanálise, de outro, mas

sempre de modo crítico, direcionada à elaboração de uma teoria da imanência do

desejo ao campo social e econômico que possa ultrapassar, assim, as limitações de

um freudo-marxismo que se contenta “em prender um vagão freudiano ao comboio do

marxismo-leninismo” (DELEUZE, 2014, p. 278) de tal modo que a economia sexual e a

economia política permaneceriam campos independentemente determinados que só

se relacionariam de modo extrínseco. A inteligibilidade dessa imanência do sexual ao

socioeconômico dependente também, assim, da contestação da perspectiva familista

e da centralidade do Complexo de Édipo em psicanálise, uma vez que são estes os

pontos nodais que permitem as distorções operadas pela psicanálise quanto à relação

entre o desejo e o social.

A conceituação da contiguidade entre os campos sexual e socioeconômico

buscada por Deleuze e Guattari se relacionava diretamente ao contexto do movimento

de Maio de 68 na França e à atmosfera intelectual da passagem do estruturalismo ao

pós-estruturalismo (SANCHES, 2008). Para os autores, o Maio de 68 foi marcado por

uma irrupção do desejo nas multidões, cuja expressão era a forma característica

(neste e outros momentos de processo revolucionário) de um fluxo de pessoas e

ideias que não se prendia a uma ordenação estratégica rigidamente delimitada, que

desconfiava das pretensões de dirigências ou vanguardas postas em hierarquia em

relação às massas: “na altura desses períodos cruciais qualquer coisa da ordem do

desejo se manifestou à escala do conjunto da sociedade, e depois foi reprimido, tanto

pelas forças do poder como pelos partidos e sindicatos ditos operários”, afirma

Guattari (DELEUZE, 2014, p. 277).

A compreensão desse algo “da ordem do desejo” que se libera e se manifesta

na forma de uma potência insurgente que atravessa o socius como correnteza intensa II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política - Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina

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e destrutiva, bem como desses momentos de repressão, depende de uma análise do

funcionamento da ordem capitalista. O objetivo deste artigo foi traçar, brevemente, as

linhas de força da interpretação deleuze-guattariana sobre tal lógica e ontologia do

socius capitalista no contexto da obra O Anti-Édipo e esboçar, deste modo, quais as

condições de liberação desta potência revolucionária do desejo. De início

investigamos a ideia de produção desejante como conceito fundamental que descreve

a ontologia sobre a qual se baseia essa análise para, depois, adentrar as

consequências de tal concepção para a lógica de funcionamento da máquina

capitalista em termos macropolíticos.

A Produção Desejante Entre a Ontologia e a Filosofia Política

O ponto de vista econômico, em psicanálise, remete aos aspectos da dinâmica

psíquica ligados à distribuição e circulação da energia pulsional, ou seja, é o ponto de

vista que focaliza “a magnitude dos fenômenos psíquicos, a sua dimensão

quantitativa” (ALBERTINI, 2005, p. 21). De outro modo, o termo economia denota, em

Marx (1932), os modos de produção, distribuição e consumo de bens e serviços em

dada sociedade. No freudo-marxismo de Willhem Reich (1973, 1977, 1976) estes dois

sentidos da ideia de economia são determinados como domínios diferentes da vida

humana e as relações entre eles buscam ser elucidadas a partir dessa distinção, o que

corresponde à tentativa reichiana de sintetizar em uma psicologia materialista dialética

os pressupostos da psicanálise como ciência da economia no primeiro sentido e os

pressupostos do marxismo como ciência da economia no segundo sentido. A

estratégia reichiana de operação dessa síntese consistiu em realizar a crítica de

ambas as disciplinas para lançar nova luz à pesquisa de seus respectivos domínios,

complementando-as uma pela outra quando uma dificuldade-limite fosse alcançada no

âmbito de cada uma dessas ciências isoladas.

De certa forma, a filosofia de Deleuze e Guattari desenvolvida no Anti-Édipo

herda a pretensão reichiana de operar tal síntese, mas radicaliza essa pretensão ao

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ponto de levá-la ao extremo da fusão completa das duas economias em um único

processo. Justamente por isso, Deleuze (2014) é claro ao rejeitar qualquer filiação

teórica ao freudo-marxismo argumentando que, em primeiro lugar, para ele e Guattari

importava mais realizar a crítica dos aparelhos burocráticos do marxismo e da

psicanálise tal como são na realidade concreta de suas práticas instituídas do que

realizar um retorno aos “textos sagrados” de Marx e Freud para interpretá-los numa

amálgama abstrata. Em segundo lugar, ele e Guattari recusam a estratégia reichiana

de manutenção da distinção entre os domínios da economia política e da economia

sexual: “Nosso ponto de vista é, ao contrário, que há apenas uma economia e que o

problema de uma verdadeira análise antipsicanalítica é mostrar como o desejo

inconsciente investe as formas dessa economia. A própria economia é que é

economia política e economia desejante” (DELEUZE, 2014, pp. 347-348).

A economia em sentido marxista aponta a produção, a distribuição e o

consumo como seus momentos denominadores. Ora, além da síntese entre sexual e

político, acrescentemos agora que Deleuze e Guattari (2010) compreendem que essas

três esferas de atividade reportam-se também em última instância a apenas uma: a

produção. Disto resulta que o campo da sexualidade e o campo da política estão em

contiguidade imanente e se definem literalmente por processos de produção. A

esquizoanálise exige um rompimento com uma série de distinções que delimitam

domínios autônomos lá onde não existe senão um único continuum do real cuja

dinâmica é caracterizada por uma pura produção de si.

A noção de produção desejante, no Anti-Édipo, fundamenta-se sobre a

ontologia deleuziana desenvolvida em suas obras anteriores, especialmente em sua

tese de doutorado intitulada Diferença e Repetição. Foge ao escopo deste artigo

realizar uma súmula dessa ontologia, mas, dentro de nossos objetivos, gostaríamos de

apresentar a hipótese de que o conceito de produção pode ser compreendido mais

claramente quando o lemos à luz das considerações de Michael Hardt (1996) a

respeito da diferença interna na ontologia de Deleuze.

Segundo Hardt (1996), a filosofia deleuziana guia-se, desde os primeiros

escritos, por um duplo movimento: a crítica da tradição metafísica idealista (pars

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destruens) e a elaboração de uma ontologia materialista que recoloque a relação

direta com a vida no centro da especulação filosófica (pars construens). A crítica tem

como seu principal alvo o hegelianismo e sua lógica dialética, enquanto a alternativa

construtiva de Deleuze centra-se na noção de diferença em si a partir de alianças

conceituais com diversos pensadores, dentre os quais se destacam Bergson,

Espinosa e Nietzsche. Este duplo movimento pode ser encontrado sob formas

diversas em toda obra de Deleuze, no entanto abordaremos aqui, somente, a

interpretação de Hardt sobre o ponto da trajetória filosófica deleuziana no qual o

filósofo francês dedica-se ao estudo da noção de diferença em Bergson, com a qual

busca compreender o movimento ontológico:

Na leitura de Deleuze, a diferença em Bergson não se refere tanto a uma quididade ou a um contraste estático de qualidades no ser real; ao contrário, a diferença marca a dinâmica real do ser – é o movimento que funda o ser. Assim, a diferença em Bergson relaciona-se primeiramente com a dimensão temporal do ser […]. (HARDT, 1996, p. 27).

Hardt defende que essa leitura aceita os critérios ontológicos herdados da

tradição escolástica referentes à necessidade e essencialidade do ser, de maneira que

tal compreensão do movimento deva passar pelo crivo de tais critérios para que se

obtenha uma noção correta daquilo que “funda” o ser1. Desta maneira, Deleuze afirma

inicialmente que para que o ser seja necessário e essencial ele não pode ser

determinado, ou seja, sua diferença não pode ser posta como uma negatividade a ele

relacionada de modo exterior, visto que de tal forma se “introduziria uma qualidade

acidental no ser; em outras palavras, a determinação implica uma mera exterioridade

subsistente, não uma interioridade substancial” (HARDT, 1996, p. 31). Apenas uma

diferença interna poderá sustentar o movimento de um ser necessário e essencial, de

maneira que o que interessa para Deleuze é ultrapassar a compreensão da diferença

negativa no ser e ir em direção à formulação do ser positivo da diferença, ou seja, em

última instância Deleuze reverte a problemática ontológica para colocar a questão do

1 Ou melhor, “desfundamenta” o ser: a reversão do fundamento como solo ou ápice da hierarquia ontológica é cara à filosofia deleuziana. Somente sob este aspecto se pode dizer que há uma ontologia em Deleuze: ela se centra no jogo da diferença e da repetição e na afirmação da univocidade do ser que se diz dessa diferença, perspectiva que se contrapõe a todo postulado de um fundamento metafísico ou mesmo transcendental que instituiria, por sua operação própria, o domínio da representação. Sobre esta questão, cf. Lapoujade (2015).II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política - Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina

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ser do movimento em si, ser do devir, mais que do movimento ou do devir do ser. Por

isso o tempo é a dimensão fundamental com a qual se pode compreender esse ser do

movimento: é ele o portador da pura transformação, do puro fluxo no qual o real existe.

É no tempo que o ser difere de si mesmo, internamente.

Defendendo, ainda, a postura escolástica de Deleuze na sua leitura de

Bergson, Hardt (1996) assevera que se compreende melhor a noção de diferença

interna quando a consideramos dentro de um raciocínio causal. Em nota, Hardt (1996,

p. 32) afirma:

A obra dos escolásticos (de Roger Bacon e Duns Scot a William Ockham e, muito mais tarde, Francisco Suárez) atribui importância ontológica central à causalidade e à produtividade do ser. [...] O poder, a necessidade, a perfeição, a realidade e a univocidade do ser são todos estabelecidos por argumentos causais; a essência divina é uma capacidade produtiva – existe como causa primeira, a causa eficiente de tudo.

Dentre as quatro causas herdadas do aristotelismo – causa eficiente, causa

material, causa final e causa acidental – apenas a primeira é adequada para se

compreender o ser enquanto absolutamente necessário e essencial. As demais formas

causais não podem senão sustentar a possibilidade do ser, não sua realidade, que é o

que interessa a Deleuze. O ser necessário e essencial é aquele que é causa de si

mesmo, ou seja, que possui aptidão para produzir e ser produzido por si mesmo e,

assim, “no contexto bergsoniano, portanto, poderíamos dizer que a diferença eficiente

é a diferença que é motor interno do ser: ela sustenta a necessidade do ser e a real

substancialidade. Por meio dessa dinâmica produtiva interna, o ser da diferença

eficiente é causa sui” (HARDT, 1996, p. 33). A causalidade eficiente implica que a

causa seja interna ao seu efeito e, para isso, a primeira deve ser contemporânea ao

segundo, de modo que, levada às últimas consequências, a causalidade eficiente diz

de uma união imanente entre a causa e o efeito. De fato, ambos devem ser uma e

mesma coisa, o que, como observa Sales (2009), nos remete à concepção que

Deleuze toma de Bergson a respeito da finalidade da filosofia, qual seja cunhar para

cada objeto um conceito unicamente aplicável para tal objeto de modo que mal se

possa dizer que seja ainda um conceito, delinear a fusão imanente entre a coisa e seu

conceito.

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Do ponto de vista de nosso estudo, podemos agora compreender em que

sentido Deleuze e Guattari falam de uma centralização das categorias econômicas

(tanto sexuais quanto políticas) na produção como seu princípio fundamental. Dizem

os autores: “tudo é produção: produção de produções, de ações e de paixões;

produções de registros, de distribuições e de marcações; produções de consumos, de

volúpias, de angústias e de dores” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 14, grifos dos

autores), identificando com isso as produções econômico-políticas às produções

sexuais enquanto sínteses passivas do inconsciente: síntese conectiva de produção,

síntese disjuntiva de registro e síntese conjuntiva de consumo. Com uma espécie de

“marxismo anti-dialético”, os autores emprestam de Marx uma noção de produção

econômica (GUÉRON, 1997) radicalmente modificada pela ontologia da diferença, em

que a produção remete à própria criação do ser enquanto este difere imediata e

positivamente de si mesmo.

Igualmente, também o desejo é agora posto como parte do processo de

produção econômico-política sem mediação alguma de processos psíquicos

intermediários de deslocamento ou deformação estásica da energia libidinal. Não mais

o desejo como falta e o inconsciente representacional da psicanálise, mas o desejo

como produção e o inconsciente como fábrica ou usina, ambos inseridos não mais na

interioridade do sujeito ou na profundidade do cerne biológico mas no real

compreendido como processo anterior a qualquer cisão entre indivíduo e mundo ou

entre sujeito e objeto. Segundo Deleuze e Guattari (2010, p. 43):

Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão. O desejo e o seu objeto constituem uma só e mesma coisa: a máquina, enquanto máquina de máquina. O desejo é a máquina, o objeto do desejo é também máquina conectada, de modo que o produto é extraído do produzir e algo se destaca do produzir passando ao produto e dando um resto ao sujeito nômade e vagabundo. O ser objetivo do desejo é o Real em si mesmo.

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Assim, é necessária uma compreensão que transponha as divisões,

classificações e segregações epistemológicas e ontológicas entre os campos; na

esquizoanálise de Deleuze e Guattari não há de um lado os processos biopsíquicos da

sexualidade e, de outro, os processos socioeconômicos da exploração patriarcal

capitalista, duas produções separadas que num outro momento entrariam numa

relação da causação extrínseca2. Para Deleuze e Guattari (2010, p. 15), “a produção

como processo excede todas as categorias e forma um ciclo ao qual o desejo se

relaciona como princípio imanente. Eis porque a produção desejante é a categoria

efetiva de uma psiquiatria materialista”.

Deleuze e Guattari valorizam os fatores econômicos da dinâmica psíquica, ou

seja, trazem da concepção psicanalítica da energética das pulsões a noção de que o

inconsciente é usina de forças (SANCHES, 2008), mas censuram à psicanálise a

sobreposição das representações inconscientes em relação esses fatores

econômicos. Mesmo Reich não se desembaraçou completamente de Édipo e do

inconsciente representacional porque ainda acreditava haver uma estase sexual

fornecendo energia às representações, embora estas representações fossem

formações secundárias (DELEUZE; GUATTARI, 2010).

Segundo os autores, a energia sexual é simplesmente a atividade das próprias

máquinas desejantes, a própria produção atual de desejo diretamente no real e, por

consequência, não depende de nenhuma privação ou repressão para ser investida no

social: a produção desejante é desde o início indissociável da produção

socioeconômica. Ora, que seriam as máquinas desejantes e como elas são capazes

de congregar a natureza, o homem, o sexual, a economia e o social ao mesmo tempo,

num campo contíguo, num único plano de imanência? Deleuze e Guattari (2010)

2 A Reich escapa a produção desejante porque o autor ainda pensa numa realidade psíquica do indivíduo médio das massas e coloca-o em relação a uma realidade socioeconômica que lhe é exterior e com isso não obtém uma resposta satisfatória a suas próprias questões, pois o autor “[...] restaura o que pretendia demolir, ao distinguir a racionalidade tal como ela é ou deveria ser no processo da produção social, do irracional do desejo, situando apenas este como passível de psicanálise. Reserva então à psicanálise unicamente a explicação do “negativo”, do “subjetivo”, do “inibido” no campo social. Ele retorna necessariamente a um dualismo entre o objeto real racionalmente produzido e a reprodução fantasmática irracional. Renuncia, pois, a descobrir a medida comum ou a coextensividade do campo social e do desejo” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 47, grifos dos autores).II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política - Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina

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afirmam que não há metáfora quando falam de máquinas desejantes, pois, de fato,

quando abordam a ideia de fluxo desejante estão indicando que o real, ao ser

constituído por multiplicidades fragmentárias, faz-se de conexões e desconexões entre

corpos que não se confundem com o organismo, mas formam uma articulação

provisória entre pedaços ou partes, objetos parciais concretos. É literalmente que o

seio e a boca formam uma máquina desejante: tal exemplo não diz respeito à

representação do seio e da boca no inconsciente e sim ao seio e à boca como

fragmentos do real, como corpos de cujo encontro resulta o arranjo provisório de um

corpo-máquina seio-boca.

Trata-se de composições e decomposições, cortes e fluxos, uma vez que “o

homem compõe peça com a máquina, ou compõe peça com outra coisa para constituir

uma máquina. A outra coisa pode ser uma ferramenta, ou mesmo um animal, ou

outros homens” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 508). Toda produção é desejante na

medida em que o investimento de libido se dá no encontro entre corpos sob

determinadas condições. Deleuze e Guattari falam, por exemplo, do “conjunto homem-

cavalo-arco” que “forma uma máquina guerreira nômade nas condições da estepe”, ou

os homens que “formam uma máquina de trabalho nas condições burocráticas dos

grandes impérios” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 508). O conceito de máquina

desejante possibilita a compreensão da coextensividade dos campos: há uma relação

imanente, no inconsciente, entre o humano, o natural, o histórico e o técnico.

Deste modo, trata-se então de compreender como o desejo opera em dada

formação social, como as máquinas desejantes funcionam na composição de cada

socius: não é do mesmo modo que os modos de produção selvagens, bárbaros e

civilizados organizam e são organizados pelo desejo. Deleuze ressalta que em todos

os casos essa organização produzida a nível do inconsciente é a um só tempo

racional e irracional, visto que a racionalidade depende de um recorte sobre a

irracionalidade a partir do qual dados elementos são selecionados como agentes de

organização: “São forçosamente racionais pelos seus mecanismos, rodas, sistemas de

ligação, e mesmo pelo lugar que reservam ao irracional. Porém, tudo isso pressupõe

códigos e axiomas que não são produtos do acaso, mas que também não possuem

uma racionalidade intrínseca” (DELEUZE, 2014, p. 331).

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São tais elementos organizadores que funcionam como verdadeiros

fundamentos de cada socius e que assim, uma vez postulados, passam a engendrar

as séries de razões que ganham seu sentido somente em relação a esses elementos

primeiros. Nas formações pré-capitalistas, essa racionalidade sobreposta a um fundo

delirante de desrazão é determinada pela codificação dos fluxos, enquanto o

capitalismo surge trazendo consigo a novidade maior de operar por uma recusa dessa

codificação fundante, ou seja, por uma descodificação radical de todos os fluxos do

socius que equivale a uma desfundamentação, a um effondement de todo o corpo

social (LAPOUJADE, 2015). Porém, se há ainda no capitalismo uma ordem que não

permite que o fundo delirante - que assombra virtualmente todo socius - venha

finalmente à tona como catástrofe derradeira é porque o capital substitui a codificação

pela axiomatização dos fluxos, mantendo a produção desejante a serviço de sua

reprodução.

Codificação, Descodificação e Axiomática

Desta forma, para Deleuze e Guattari (2010) a função primordial com a qual se

depara as primeiras formações sociais pré-capitalistas é a de codificar o desejo,

executar o registo da produção desejante através da marcação direta dos corpos

(tatuagens, incisões, escarificações, mutilações) que confere uma ordem às relações

sociais de produção no socius territorial3. Esse sistema de crueldade “é o movimento

da cultura que se opera nos corpos e neles se inscreve, cultivando-os. [...] Faz dos

homens e de seus órgãos peças e engrenagens da máquina social. O signo é posição

de desejo; mas os primeiros signos são signos territoriais que fincam suas bandeiras

nos corpos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 193).

3 “O problema geral das sociedades é ligar o desejo, quer dizer, submeter seu modo de distribuição esquizofrênico a um regime de disjunções exclusivas, de regras diferenciadas, de distribuições estáveis, instauradoras de uma ordem social reprodutível. […] As sociedades são aparelhos de ligação que têm por objetivo colocar as forças produtivas do inconsciente a serviço do corpo social, o qual elas constituem por essa mesma via. As ligações não tem outra função: estão a serviço da composição de um corpo social” (LAPOUJADE, 2015, p. 158).II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política - Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina

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É em Nietzsche que Deleuze e Guattari se baseiam para formular tal

lineamento da máquina territorial selvagem. Nietzsche (2009) aponta que essa lógica

da crueldade deve ser compreendida a partir dos valores próprios às relações sociais

e à moral que constituiu a aurora da história e da cultura humana. Em sua raiz

etimológica, a noção de “bom” denota diretamente as castas ou estamentos sociais

superiores, os nobres, aristocratas e bem-nascidos, em oposição às castas de pobres,

plebeus e comuns, os “maus”. Originalmente, estas designações de classe apontavam

tão somente para as distinções de origem socioeconômica de modo literal e amoral, e

posteriormente derivaram para outras denotações que serviam à designação dos

traços de caráter e ideais guerreiro-aristocráticos de superioridade, pureza, nobreza,

força e poder, em contraste com o impuro, baixo, covarde. Mesmo assim, estas

distinções ainda guardavam pouco ou nenhum simbolismo ou espiritualização

moralista, algo que somente aconteceria com o advento da coincidência entre a casta

mais alta e nobre com a casta dos sacerdotes. A partir daí, os ideais gurreiro-

aristocráticos passaram a conflitar com os ideais sacerdotais, derivados dos primeiros

por uma densa transmutação de valores.

Para aqueles que encontravam-se no caminho dos aristocratas-guerreiros,

estes certamente se afigurariam como verdadeiros animais de rapina, cuja

impulsividade e violência teriam sido indissociáveis da atividade, alegria, jovialidade,

potência e vitalidade que marcavam o caráter desses “jubilosos monstros que deixam

atrás de si, com ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de

assassínios, incêndios, violações e torturas, como se tudo não passasse de

brincadeira de estudantes [...]” (NIETZSCHE, 2009, p. 29).

Esse aspecto amoral da força guerreira constituiu o sentido das primeiras

relações jurídicas de dívida, nas quais ao credor reservava-se o direito de marcar no

corpo do devedor, através de rituais festivos de crueldade, a memória orientada para o

futuro como promessa de pagamento da dívida contraída. Isto nada tinha a ver com

vingança, mas sim com um prazer compensatório do credor em punir ou ver ser

punido o seu devedor, em fazer sofrer ou ver sofrer aquele que carregava a dívida. Na

antiguidade humana, a relação credor-devedor, posta nestes moldes, estabelecia-se

não apenas entre indivíduos, mas sobretudo entre a comunidade e os indivíduos que

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se beneficiavam de sua proteção e entre os antepassados e os descendentes que se

beneficiavam de suas realizações4.

Convergindo com Nietzsche, Deleuze e Guattari afirmam que a inscrição sobre

os corpos que caracteriza a codificação pré-capitalista marca precisamente uma

relação de dívida e, portanto, está na gênese da formação de uma memória através da

qual o devedor é lembrado de seu débito com o credor, que, em última instância, é o

próprio socius. Ao nível das sociedades territoriais primitivas não há, ainda, um corpo

privado do indivíduo mas apenas corpos coletivos de órgãos que pertencem a todo o

socius:

[...] o homem que goza plenamente dos seus direitos e deveres tem todo seu corpo marcado sob um regime que reporta os seus órgãos e o seu exercício à coletividade [...]. É que se trata de um ato de fundação, pelo qual o homem deixa de ser um organismo biológico e devém um corpo pleno, uma terra, sobre a qual seus órgãos se agarram, atraídos, repelidos, miraculados segundo as exigências de um socius. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 192).

O capitalismo, por outro lado, já não se caracteriza por uma codificação dos

fluxos de produção desejante, mas, ao contrário, por uma descodificação radical de

todos eles, com o que torna todo o campo social verdadeiramente esquizofrênico,

desterritorializado: “tudo é irracional no capitalismo, exceto o capital ou o capitalismo.

Um mecanismo da bolsa é perfeitamente racional, podemos compreendê-lo,

apreendê-lo, os capitalistas sabem servir-se dele, e, no entanto, é completamente

delirante, é demente” (DELEUZE, 2014, p. 331). Não há mais relações que se

instituem a partir da marcação direta de fragmentos corporais apropriados por todo o

socius, marcações que antes tornavam-se signos através dos quais o modo de vida e

de produção era organizado, distribuíam linhas de afiliação e aliança, designavam

4 A progressiva espiritualização dos antepassados transformados em deuses aumentou na mesma proporção em que o sentimento de dívida aumentava, transformando-se finalmente em um sentimento de culpa. A hipótese de Nietzsche é de que aquela antiga crueldade espiritualizou-se e voltou-se contra os devedores ao longo desse processo, donde o ressentimento, a má consciência e a culpa tomarem sua forma mais avançada no sentimento de dívida infinita para com Deus, até o ponto máximo de envolver não apenas o devedor mas até mesmo o próprio credor: “[...] subitamente nos achamos ante o expediente paradoxal e horrível no qual a humanidade atormentada encontrou um alívio momentâneo, aquele golpe de gênio do cristianismo: o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...” (NIETZSCHE, 2009, p. 74-75).II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política - Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina

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funções sociais. Com o capital, os fluxos da produção desejante já não se deixam

marcar e circulam livres, os objetos parciais devém corpos individuais privados que

não se submetem mais à coletividade de modo imediato.

No entanto, isto não significa que o capitalismo não exerça nenhum controle

sobre os fluxos do desejo: a desterritorialização generalizada que esquizofreniza o

socius é contida por uma nova forma de racionalidade: ocorre que o capitalismo

substitui constantemente as codificações por uma axiomática, ou seja, por um controle

contábil da vida social em termos de “quantidades abstratas na forma de moeda”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 185). Tal é a tarefa fundamental do socius capitalista

porque os fluxos desterritorializados do desejo, se deixados livres até o máximo de

sua potência, poderiam operar uma destruição absoluta desse socius.

Ao mesmo tempo, o capital “descobriu” que quanto mais desterritorializados os

fluxos do desejo melhor o funcionamento da máquina capitalista, motivo pelo qual o

capital tanto necessita alimentar-se de suas próprias crises, da esquizofrenização

constante do campo social e de suas contradições aparentes, quanto necessita, ao

mesmo tempo, exercer formas de registro que sejam capazes de comportar essa

esquizofrenização impondo-lhe um limite exatamente ao mesmo tempo em que a

incentiva e a libera. O que o capitalismo “descodifica com uma mão, axiomatiza com a

outra. [...] trata-se de ligar suas cargas e suas energias numa axiomática mundial que

opõe sempre novos limites interiores à potência revolucionária dos fluxos

descodificados” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 326).

Desejos Inconscientes e Interesses Pré-Conscientes

Quanto a isso, os autores apontam a vocação da burguesia para essa

operação concomitante de descodificação e axiomatização. Eis porque, para a

esquizoanálise, só há uma classe social propriamente dita, uma vez que se deve

distinguir as castas e hierarquias sociais características dos socius inscritores das

classes enquanto equivalentes descodificados dessas castas e hierarquias. Para II Congreso Latinoamericano de Teoría Social y Teoría Política - Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina

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Deleuze e Guattari (2010, pp. 336-337), “a burguesia é a única classe enquanto tal, na

medida em que ela conduz a luta contra os códigos e se confunde com a

descodificação generalizada dos fluxos. A este título, ela basta para preencher o

campo de imanência do capitalismo”. A burguesia, longe de se constituir como uma

casta de senhores, se determina como classe pela sua própria submissão ao capital,

pela sua própria servidão ascética e voluntária à máquina capitalista: “com efeito, algo

de novo se produz com a burguesia: o desaparecimento do gozo como um fim, a nova

concepção de conjunção segundo a qual o único fim é a riqueza abstrata” (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 337).

Neste sentido, o antagonismo central que define o capitalismo não há

propriamente uma luta entre duas classes, mas luta entre a classe capitalista, como

aquela encarregada de operar a axiomatização dos fluxos desterritorializados

(atividade perversa de liberar constante do desejo para melhor reprimi-lo na sua

sujeição à racionalidade estatística e contábil do capital), e os “fora-da-classe”,

aqueles cuja despossessão encontra sua positividade na sua identificação ao

atravessamento dos fluxos absolutamente descodificados e desterritorializados. A luta

de classes devém luta “entre os servidores da máquina e os que a fazem ir pelos ares

ou explodem as engrenagens; entre o regime da máquina social e o das máquinas

desejantes” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 338).

É por isso que a esquizoanálise deve colocar em outros termos toda a

problemática da consciência de classe e da luta de classes, centrais no freudo-

marxismo. Trata-se de saber como liberar, de fato, a produção desejante, impedindo

sua recaptura perversa pela axiomática capitalista que devolve o desejo às

engrenagens da “máquina esfomeada” de reprodução do capital. Perguntar como

podem as massas proletárias trair seus próprios interesses de classe é assentar sobre

falsas categorias a questão da insurgência anticapitalista. A contradição de classe se

faz artificialmente em função da própria luta política e, deste modo, a dualidade entre

dois polos individuados é resultado da própria práxis do movimento socialista que

institui o proletariado em classe organizada e definida por vetores de interesse e pelo

antagonismo em relação à burguesia, bem como pelo objetivo final da conquista do

aparelho de Estado (DELEUZE; GUATTARI, 2010).

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No entanto, o problema reside justamente no fato de que, para Deleuze e

Guattari, o aparelho de Estado moderno é por definição a instituição que tem por

função administrar a axiomática capitalista. O Estado não é mediador de uma suposta

luta de classes (recusada enquanto constructo teórico pelos autores), mas sim gerir os

fluxos descodificados e servir às potências econômicas. Como grande exemplo dessa

função do Estado, os autores citam a concessão de direitos aos operários e

trabalhadores em geral, especialmente depois da Revolução Russa de 1917. É nisso

que consiste a expansão do limite do socius capitalista: ele é capaz de permitir sem

maiores consequências todo tipo de contestação ou oposição capitalizando-as, “é sua

paixão própria que nada muda no essencial” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 336).

Tal foi o destino da Revolução Russa, “este grande corte leninista não impediu

a ressurreição de um capitalismo de Estado no próprio socialismo, como não impediu

o capitalismo clássico de contorná-la, prosseguindo seu verdadeiro trabalho de

toupeira” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 339), trabalho este que consistiu em

afastar mais ainda às margens aqueles que os autores chamam de “os fora-da-

classe”, elementos revolucionários que nem o capitalismo nem o socialismo real

assimilaram. Isto se deve ao fato de que o aparelho de Estado continua, no

socialismo, a exercer a mesma função que antes exercia no capitalismo – a de

administrar os fluxos descodificados e desterritorializados –, o que faz com que ele

seja ainda um avatar da burguesia mesmo que numa sociedade dita socialista. Desta

forma:

Então, ou o proletariado o submete ao seu interesse objetivo mas estas operações são feitas sob a dominação da sua vanguarda de consciência ou de partido, isto é, em proveito de uma burocracia ou de uma tecnocracia que valem pela burguesia como “grande ausente”; ou a burguesia conserva o controle do Estado, pronta a secretar sua própria tecno-burocracia e, sobretudo, a acrescentar alguns axiomas para o reconhecimento e a integração do proletariado como segunda classe. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 339).

Mesmo sob o aparente interesse revolucionário de classe é possível haver uma

configuração política tal que, na verdade, apenas se reconfigura os velhos

mecanismos capitalistas da consignação de uma axiomática que não deixa de ter

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efeitos repressivos. Nesse sentido, não há diferença significativa de função entre o

Estado socialista e o Estado capitalista – uma distinção possível, ainda que superficial,

reside no fato de que o primeiro é rígido e facilmente saturável e o segundo é flexível e

insaturável. Enquanto permanecer a cumplicidade subterrânea de ambas as formas

políticas no que tange o controle dos fluxos desterritorializados do desejo, nada

significa opor o proletariado, enquanto classe organizada em torno do interesse, à

burguesia. O interesse de classe “apenas define um pré-consciente coletivo,

necessariamente representado numa consciência distinta, a respeito da qual nem

sequer se pode perguntar, nesse nível, se trai ou não esse interesse, se aliena ou não,

se deforma ou não” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 340).

As dirigências partidárias não poderiam ter qualquer vontade de investigar uma

possível distinção e convergência entre os desejos inconscientes e os interesses pré-

conscientes das massas para a formação de uma consciência de classe. A própria

organização dirigente em um partido ou em uma vanguarda atesta a afinidade desse

socialismo com a burocracia Estatal herdada da burguesia. Afirmam os autores que

“acontece desejar-se contra seu interesse: o capitalismo aproveita-se disso, mas

também o socialismo, o partido e a direção do partido. Como explicar que o desejo se

dedique a operações que não são desconhecimentos, mas investimentos

inconscientes perfeitamente reacionários?” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 341).

Ao lado da axiomática capitalista encontram-se as territorialidades modernas,

neoterritorialidades ou reterritorializações, ou seja, arcaísmos plenamente integrados

aos fluxos desterritorializados e descodificados que podem manifestar-se tanto sob a

simples forma de afirmação de tradições e costumes culturais quanto de um controle

social francamente despótico. As desterritorializações e reterritorializações capitalistas

atuam como verso e avesso do mesmo processo que consiste em expandir os limites

descodificando e rearranjando os fluxos, o que faz com que o capitalismo seja tanto

mais pernicioso quanto mais se flexibiliza e mais permite passar fluxos para tão

somente fazê-los cair, depois, em sua máquina de captura. Nesse sentido, Deleuze e

Guattari (2010, p. 342) afirmam que:

Dentro do capitalismo, o Estado fascista foi, sem dúvida a mais fantástica tentativa de reterritorialização

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econômica e política. [...] Se é verdade que a função do Estado moderno é a regulação dos fluxos descodificados, desterritorializados, um dos principais aspectos dessa função consiste em reterritorializar, de modo a impedir que fluxos descodificados fujam por todos os cantos da axiomática social.

Mais uma vez, Reich (1974) estava certo ao perceber como o nazismo fez uso

do discurso socialista, do ímpeto revolucionário e da indignação das massas com as

condições de vida, mas o autor não apreende quão longe a ortodoxia marxista vai,

também, nos seus componentes reterritorializados, pois:

(...) o Estado socialista também tem suas próprias minorias, suas próprias territorialidades, que voltam a se formar contra ele, ou que ele mesmo suscita e organiza (nacionalismo russo, territorialidade de partido: o proletariado só pode constituir-se como classe com apoio em neoterritorialidades artificiais; paralelamente, a burguesia reterritorializa-se às vezes sob as mais arcaicas formas). (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 342).

Para Deleuze e Guattari (2010), os próprios fluxos contêm em si mesmos um

elemento de anti-produção que traz consigo os riscos inerentes ao próprio desejo,

pois, como dizem, as máquinas desejantes só funcionam desarranjadas, “na sua

própria violência, a máquina desejante põe à prova todo o campo social por meio do

desejo, prova que tanto pode levar ao triunfo do desejo como à opressão do desejo”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 533).

Considerações Finais

Uma vez que a única classe de fato existente é a burguesia, para Deleuze e

Guattari não haveria, portanto, luta de classes, mas luta contra a classe – contra a

classe burguesa ou capitalista. Quem combate essa classe? Para os autores, somente

aqueles que não possuem classe enquanto tal, os fora-da-classe, podem efetivamente

contestar a hegemonia da classe capitalista. Devemos nos perguntar, então, que

significa não ter classe: em que sentido a não-classe da qual falam Deleuze e Guattari

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realmente difere do conceito marxista de proletariado? Não estaria ocorrendo aqui

uma mera mudança de nome para o mesmo conceito?

Enquanto a questão que se coloca para o marxismo ortodoxo é a da forma da

passagem da classe-em-si à classe-para-si, para a esquizoanálise, por outro lado,

trata-se justamente de encontrar a positividade ontológica do em-si do proletariado. Se

o proletário é o despossuído, sua potência está justamente em ser multidão destituída

inclusive de aparato institucional que fale em seu nome. Para Deleuze e Guattari, seria

um equívoco pensar que é necessária uma organização partidária ou a tomada do

poder do Estado para combater a ordem capitalista, ou seja, nas palavras dos autores:

Até aqui, os partidos revolucionários se constituíram como sínteses de interesses em lugar de funcionar como analisadores de desejos das massas e dos indivíduos. Ou então, o que dá no mesmo, os partidos revolucionários se constituíram como embriões de aparelhos de Estado, em lugar de formar máquinas de guerra irredutíveis a tais aparelhos” (DELEUZE, 2014, p. 352).

Organizar a multidão despossuída, os fora-da-classe, como máquina de guerra

nômade, eis a tarefa política primordial. A posição de Deleuze e Guattari nada tem a

ver com uma ignorância ou uma recusa a admitir que a ordem capitalista é sustentada

sobre profundas desigualdades que se apresentam como cisão econômica entre

grupos sociais. O problema com que os autores se deparam é, na verdade, o de forjar

um conceito para essa desigualdade que seja mais adequado para a prática política. O

que se passa a nível do inconsciente social é mais relevante, nesse aspecto, que a

disputa ou compreensão daquilo que é posto no nível das consciências – os fluxos do

desejo e a circulação dos afetos são primeiros. Precisamente por isso, a questão não

é despertar a consciência das classes proletárias supostamente adormecidas, mas,

sim, empreender a análise social do desejo da multidão, do proletariado como em-si

revolucionário.

Bibliografia

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