77
CE5ARE BECCARIA Tradução: J. CRETELLA JR. e AGNES CRETELLA DOS DELITOS e DAS PENAS 2. a edição revista

Dos delitos e das penas - SOL - Professorprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/17502... · Penas aplicadas aos nobres 74 XXII. Furtos 76 xxrn. Infâmia 78

Embed Size (px)

Citation preview

CE5ARE BECCARIATradução: J. CRETELLA JR. e AGNES CRETELLA

DOSDELITOSe DAS

PENAS2.a edição revista

«-~«UUUJCC1

rI1ascido em 1738 e falecido em 1793,aos 55 anos, CESARE BECCARIA,conhecido como o Marquês de Beccaria,é o famoso autor do livroDos Delitos e das Penas, escrito aos26 anos de idade, livro que revolucionouo Direito Penal e o Direito Processual Penal.Natural de Milão, cursou Direito naUniversidade de Pavia. Tendo tido umconflito com o pai, que se opusera a seucasamento com Teresa de Blasco, foipreso e atirado de repente ao cárcere,por influência do genitor, contrário àunião dos jovens.Pôde então observar e sentir, na própriacarne, as agruras de uma prisão demasmorra do século XVIII, assistindo deperto ao horror das torturas infligidas.A educação recebida dos jesuítas, nainfância, foi contrabalançada, najuventude, pela leitura de Maquiavel, deGalileu, dos enciclopedistas e dosiluministas franceses.Voltaire, que Beccaria visitou emGenebra, Diderot, D'Alembert,Montesquieu, que conheceu em Paris,modificaram-lhe o modo de pensar e,quando regressou à Itália, só não foiretaliado pelos inimigos e pela Inquisiçãopor causa da proteção que lhe deu oConde Firmiani, a quem prestara serviços,quando este governou a Lombardia.Resistindo a todos os ataques,sobrevivendo a todas as perseguições, opequeno grande livro de Beccaria foiconsagrado pelas gerações posteriores,registrando, na ciência do direito penal, oteorema da proporcionalidade entre o delito Ucometido e a pena aplicada, como uma dasgrandes conquistas do moderno direitocriminal.

EDITaRAmREVISTA DOS TRIBUNAIS

ATENDIMENTO AO CONSUMIDORTel.: 0800-11-2433http://www.rt.com.br

RT TEXTOS FUNDAMENTAIS

DOS DELITOSE DAS PENAS

RT TEXTOS FUNDAMENTAIS

Publicados nesta Coleção

A luta pelo Direito. Rudolf von Ihering. Tradução de J. Cretella Jr. eAgnes Cretella. 1. ed., 2. tir. , São Paulo : RT, 1999.

O Príncipe. Maquiavel. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2.ed., 2. tir., São Paulo : RT, 1999.

Dados Internadonals de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Beccaria, Cesare Bonesana. Marchesi di. 1738·1793.Dos delitos e das penas I Cesare Beccaria; I tradução J. Cretella Jr. e Agnes

Cretella I. - 2. ed. rev., 2. tiro - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1999.(RT textos fundamentais).

ISBN 85·203·1442-2I. Direito penal 2. Crime e criminosos 3. Penas (Direito penal) 4. Pena

de morte 5. Tortura I. Título.96-3563 CDU-343

Índices para catálogo sistemático: 1. Direito penal 343

CESARE BECCARIA

DOS DELITOSE DAS PENAS

Tradução:

J. CRETELLA JR.e

AGNES CRETELLA

2.a ediçãorevista

2.a tiragem

EDITORAmREVISTA DOS TRIBUNAIS

RT TEXTOS FUNDAMENTAIS

DOS DELITOS E DAS PENASCESARE BECCARIA

Tradução: JosÉ CRETELLA JR. e AGNES CRETELLA

Da edição Dei Delitti e delle Pene, de Cesare Beccaria,UTET, Unione Tipografico - Editrice Torinese (MilãoRoma - Nápoles), nuova ristampa, 1911, em XLVIIcapítulos, p. 17-97.

2." edição revista, 2." tiragem

© desta edição: 1999

EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

Diretor Responsável: CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO

CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR: Tel. 0800-11-2433Rua Tabatinguera, 140, Térreo, Loja 1 • Caixa Postal 678Te!. (011) 3115-2433 • Fax (011) 3106-3772CEP 01020-901 - São Paulo, SP, Brasil

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, porqualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográ­ficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recupe­ração total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquersistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às característicasgráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível comocrime (art. 184 e parágrafos do Código Penal) com pena de prisão e multa, busca eapreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dosDireitos Autorais).

Impresso no Brasil (08 - 1999)

ISBN 85-203-1442-2

ln rebus quibuscurnque difficilioribus nonexpectandum ut quis simul et serat et metat, sed

preparatione opus est, ut per gradus maturescant.*

BACON

SO TREU WIE MOGLIG.

SO FREI WIE NOTIG.**

(0) E dm to as as matérias e, em especial, nas mais difíceis, não se deveesperar que alguém semeie e colha, ao mesmo tempo, pois é precisoum período de preparação para que as coisas amadureçamgradativamente.

(00) T fião leI quanto possível, tão livre quanto necessário.

SUMÁRIO

Sobre Beccaria 9

Nota dos Tradutores à L" edição 13

DOS DELITOS E DAS PENAS

A quem ler 17

Introdução.......... 23

I. Origem das penas............ 27

II. Direito de punir 28

m. Conseqüências 30

IV. Interpretações das leis 32

V. Obscuridade das leis 35

VI. Proporção entre os delitos e as penas 37

VII. Erros na medida das penas.............................................. 40

vm. Divisão dos delitos 42

IX. Da honra.............................. 45

X. Dos duelos 48

XI. Da tranqüilidade pública 50

XII. Finalidades da pena 52

xm. Das testemunhas 53

XIV. Indícios e formas de julgamento 56

XV. Acusações secretas 59

XVI. Da tortura 61

XVII. Do fisco 67

XVIII. Dos juramentos............... 69

XIX. Rapidez da pena............................... 71

8 DOS DELITOS E DA PENAS

XX. Violências 73

XXI. Penas aplicadas aos nobres 74

XXII. Furtos 76

xxrn. Infâmia 78

XXIV. Os ociosos 80

XXV. Banimento e confisco 82

XXVI. Do espírito de família................. 84

XXVII. Brandura das penas 87

XXVill. Da pena de morte 90

XXIX. Da prisão 98

XXX. Processos e prescrições.... 101

XXXI. Delitos de prova difíciL.................................................. 104

XXXII. Suicídio.......................................... 108

xxxm. Contrabando 112

XXXIV. Dos devedores 114

XXXV. Asilos 117

XXXVI. Da recompensa 118

XXXVII. Tentativas, cúmplices e impunidade 120

XXXVill. Interrogatórios sugestivos e depoimentos 122

XXXIX. De um gênero particular de delitos 124

XL. Falsas idéias de utilidade.................................................. 126

XLI. Como prevenir os delitos 128

XLII. Das ciências 130

XLill. Dos magistrados 133

XLIV. Prêmios 134

XLV. Educação 135

XLVI. Das graças 136

XLVII. Conclusão............................................................................ 139

Respostas às "Notas e Observações de um frade dominicano" sobreo livro Dos Delitos e das Penas....................................................... 141

I. Acusações de impiedade 142

II. Acusações de sedição 147

SOBRE BECCARIA

Cesare Beccaria nasceu na cidade de Milão no ano de 1738.Tendo freqüentado, em Paris, o Colégio dos Jesuítas, estudou,então, Literatura, Filosofia e Matemática.

As leituras das Lettres Persanes de Montesquieu e DeL'Esprit de Helvetius muita influência exerceram em sua for­mação. Suas preocupações, orientadas para o estudo da Filosofia,levaram-no a fundar a sociedade literária que se formou em Milãoe que divulgou os princípios fundamentais da nova Filosofiafrancesa. Para divulgar, na Itália, as novas idéias, hauridas naFrança, Beccaria fez parte daredação do jornal O Café, publicadoem 1764.

Tendo conhecido as agruras do cárcere, para onde foienviado por injusta interferência paterna, logo ao sair se insurgiuBeccaria contra as injustiças dos processos penais em voga,discutindo com os amigos, entre os quais se destacavam osirmãos Pietro e Alessandro Verri, os diversos problemas rela­cionados com a prisão, as torturas e a desproporção entre o delitoe a pena. Nasceu, assim, o livro Dei Delitti e delle Pene, escritoaos 26 anos de idade. Receoso de possíveis perseguições,imprimiu a obra, secretamente, em Livorno, e, mesmo assim,abrandando sua colocação crítica com expressões vagas egenéricas.

O livro Dos Delitos e das Penas é, de certo modo, aFilosofia francesa aplicada à legislação penal da época. Contraa tradição clássica, invoca a razão. Torna-se o arauto do protestopúblico contra os julgamentos secretos, o juramento imposto aoacusado, a tortura, o confisco, a pena infamante, a delação, adesigualdade diante da sanção e a atrocidade do suplício. Aosustentar que "as mesmas penas devem ser aplicadas aos

10 DOS DELITOS E DA PENAS SOBRE BECCARIA 11

poderosos e aos mais humildes cidadãos, desde que hajamcometido os mesmos crimes", Beccaria proclamou comdesassombro, pela primeira vez, o princípio da igualdade perantea lei. Estabeleceu limites entre a justiça divina e a justiçahumana, entre o pecado e o crime. Condenou o pseudodireitode vingança, tomando por base o ius puniendi e a utilidade social.Considerou sem sentido a pena de morte e verberou comveemência a desproporcionalidade entre a pena e o delito, assimcomo a separação do Poder Judiciário do Poder Legislativo. Osucesso da obra foi imediato, principalmente entre os filósofosfranceses. O abade Morellet traduziu para o francês o livro DosDelitos e das Penas.

Diderot anotou-o, Voltaire colocou-o nas nuvens e comen­tou-o. D'Alembert, Buffon e Helvetius manifestaram desde logoadmiração e entusiasmo pelo novo e audacioso autor. Em 1766,tendo ido a Paris, foi alvo das maiores demonstrações de apoio.Regressando, porém, a Milão, teve de suportar infamante cam­panha por parte dos inimigos, que se apegavam aos preconceitospara acusá-lo de heresia e de desobediência contra a Igreja econtra o Governo. A denúncia não teve maiores conseqüências,mas Beccaria, daí por diante, foi mais reservado, com medo deque novas perseguições o levassem à prisão.

Em 1768, o Governo da Áustria, sabendo que ele recusaraas ofertas de Catarina II, da Rússia, que o convidara para lecionarem São Petersburgo, criou, especialmente para Beccaria, aCátedra de Economia Política.

Cesare Beccaria morreu em Milão, em 1793, legando aomundo o seu pequeno grande livro Dos Delitos e das Penas,obra notável, cujo remate, apresentado no teorema final, serve,ainda hoje, de assunto de meditação e análise por parte doscriminalistas.

O livro de Beccaria foi traduzido em todas as línguas cultasdo mundo. No Brasil, há uma dezena de traduções, como, entreoutras, a de Aristides Lobo, com prefácio de Evaristo de Morais,publicada pela Atena Editora, em São Paulo, há cerca de meioséculo, num total de XLII capítulos.

O texto que tomamos por base para esta tradução foi oda UTET, Unione Tipografico - Editrice Torinese (Milão ­Roma - Nápoles), nuova ristampa, 1911, em XLVII capítulos,p. 17-97.

O estilo de Beccaria é barroco, prolixo, com inúmerasmetáforas e pensamento nem sempre preciso, longe, por exemplo,do límpido e claro estilo de um Descartes, no Discurso doMétodo.

NOTA DOS TRADUTORESÀ La EDIÇÃO

Inestimável a contribuição de CESARE BECCARIA (1738- I 793)para a elaboração da modema ciência do direito penal.

De família nobre, estudou, primeiro, numa escola daCompanhia de Jesus, em Parma, freqüentando mais tarde aUniversidade de Pavia, estudando Filosofia e Direito.

Aos 26 anos de idade publicou Dei Delitti e Delle Pene,resultado da triste experiência que passou em prisão italiana,onde, denunciado pelo pai, teve a vivência do arbitrário sistemacarcerário, então vigente, o que lhe forneceu matéria-prima einspiração para a elaboração de sua obra-prima.

Antes, a desproporcionalidade entre o delito praticado e apena aplicada levava a flagrantes injustiças, mas o Marquês deBeccaria, conforme se lê no último parágrafo de seu livro, nofamoso teorema conclusivo, "a pena não deve ser a violênciade um ou de muitos contra o cidadão particular, devendo seressencialmente pública, rápida, necessária, a mínima dentre aspossíveis nas circunstâncias ocorridas, proporcional ao crime editada pela lei".

DOS DELITOSE DAS PENAS

A QUEM LER1

A LGUNS remanescentes das Leis de antigo povo conquis­tador,2 compiladas por ordem do príncipe3 que reinou,

há doze séculos, em Constantinopla, combinados depois comritos dos longobardos, inseridos em confusos calhamaços deintérpretes particulares e obscuros, formam a tradição deopiniões que, no entanto, em grande parte da Europa, recebeo nome de leis.4 Coisa tão prejudicial, quanto comum, é que

(I) Este Prefácio, sob o nome de "Ao Leitor", ou "A quem ler",apresentado em forma de Aviso, não existia na primeira edição de1764, tendo sido incluído, porém, nas edições posteriores, quandoCesare Beccaria, preocupado com as críticas veementes - e injustas- de Frei Angelo Fachinei e de outros da época, não quis respondersem se defender, antes, das acusações de revolta contra o príncipee contra a religião, dirigidas ao livro recém-publicado.

(2) "O antigo povo conquistador" é o povo romano, que estendeu seudomínio a grande parte do mundo antigo.

(3) O Príncipe, ou melhor, o Imperador, que reinou em Constantinopla,de 527 a 565, foi o grande Justiniano (482 a 565), casado com Teodora,o responsável pela elaboração do Corpus Juris Civilis.

(4) Cesare Beccaria faz referências ao direito da época, que não seencontrava disciplinado nos códigos, mas que se baseava no CorpusJuris Civilis, mandado organizar pelo Imperador Justiniano, no editode Rotário e nas leis dos longobardos, cuja interpretação era maisdifícil do que a doutrina. Essa legislação era incompreensível, mesmopara o jurista experiente da época.

18 OOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER 19

uma oplmao de CarpZOW,5 ou um antigo uso assinalado porClaro, ou uma tortura sugerida por Farinaccio 6 com iradacomplacência, sejam leis obedecidas com segurança por aquelesque deveriam tremer, q~ando decidem sobre a vida e o destinodos homens. Essas leis, resíduos de séculos, os mais bárbaros,são examinadas, neste livro, sob ângulo que interessa ao sistemapenal, e ousamos expor aqui suas desordens aos responsáveispela felicidade pública, em estilo que afastará a plebe nãoesclarecida e impaciente. A ingênua busca da verdade, aindependência com respeito às opiniões vulgares com que estelivro foi escrito são conseqüências do brando e esclarecidogoverno sob o qual vive o autor. Os grandes monarcas,benfeitores da humanidade que nos dirigem,7 amam as verdadesexpostas pelo obscuro filósofo com um não-fanático vigor, sódespertado por quem, afastado da razão, apela para a força oupara o engenho. E as desordens presentes por quem lhe examinabem as circunstâncias são a sátira e a censura dos tempospassados, e não as deste século e de seus legisladores.

(5) Benedikt Carpzow, OU, em português, Benedito Carpsóvio, deWittemberg (1595-1666), Julio Emilio Claro, de Alexandria (1525­1575) e Próspero Farinaccio, de Roma (1554-1618), dedicaram grandeatenção às questões da tortura no campo do direito, considerando-a,entretanto, como normal meio de obtenção da prova. Foram autoresde Tratados, célebres na época, especialmente no que diz respeito àprática criminal. Beccaria não tinha conhecimento profundo do textodesses jurisconsultos, nem a idéia de renovação que a doutrina dodireito comum operara em todo o sistema jurídico da época, e sobrecuja influência histórica o jurista italiano Manzoni foi intérprete muitomais criterioso, quando, na obra, Storia della c%nna infame,observava surpreso que "a pequena monografia Dos Delitos e dasPenas, que proporcionara não apenas a abolição da tortura, mastambém a reforma de toda a legislação criminal", não tivesse sido aindadescoberta e considerada pela ciência do direito.

(6) Alguns tradutores, por lapso, escreveram Francisco, ao invés deFarinacciQ.

(7) Quanto aos príncipes "iluminados" sobre os quais Beccaria fazreferência, cfr. o final dos Cap. xn e XIV, e a monografia de Voltaire,É/age historique de la raison.

Quem quiser honrar-me com críticas comece, pois, por bementender o fim a que esta obra se destina, escopo que, longede diminuir a legítima autoridade, serviria mais para engrandecê­la, caso a opinião tenha mais poder do que força sobre os homense caso a suavidade e a humanidade a justifiquem aos olhos detodos. As mal-intencionadas críticas, publicadas contra esteLivro,8 baseiam-se em confusas noções e me obrigam a inter­romper, por vezes, o raciocínio com os leitores esclarecidos, paraencerrar, de uma vez para sempre, com qualquer possibilidadede erro de um tímido zelo ou com as calúnias da maldosa inveja.

Três são as fontes das quais derivam os princípios moraise políticos reguladores dos homens: a Revelação,9 a Lei Naturale as Convenções artificiais da sociedade. Não há comparação entrea primeira e as outras duas, quanto à finalidade principal, masnisto as três se assemelham por conduzirem à felicidade, nestavida mortal. Considerar as relações da última não é excluir asrelações entre as duas primeiras. Na verdade, assim como aquelas,embora divinas e imutáveis, foram, por culpa dos homens, alteradasde mil. modos, em suas mentes, distorcidas pelas falsas religiõese pelas arbitrárias noções de vício e de virtude, assim tambémme parece necessário examinar, independente de qualquer outraconsideração, aquilo que nasce das puras e expressas convençõeshumanas, ou supostas para a necessidade e utilidade comum, idéiaessa a que toda seita e todo sistema de moral deve necessariamentereportar-se. E será sempre louvável a iniciativa que obrigue mesmoos mais distantes e incrédulos em conformar-se com os princípiosque levam os homens a viver em sociedade. Há, pois, três classesdiversas de virtude e vício: religiosa, natural e política. Estas trêsclasses nunca devem estar em contradição, entre si, mas nem todasas conseqüências e os deveres, resultantes de uma, resultam dasoutras. Nem tudo o que a Revelação exige é cobrado pela Lei

(8) O autor alude ao virulento artigo, publicado em 1764, por Frei AngeloFacchinei sob o título "Notas e Observações" sobre o livro Dos Delitose das Penas, por ordem do governo da República de Veneza. Verp. 141 deste livro.

(9) Refere-se à Revelação divina.

20 DOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER 21

Natural, nem tudo o que esta requer é exigido pela pura Lei Social,. mas é importantíssimo separar o que resulta desta convenção, ouseja, dos pactos expressos ou tácitos entre os homens, porque talé o limite daquela força que pode legitimamente exercer-se entrehomens e homens, sem ordem especial do Ser supremo. Assim,a idéia da virtude política pode, pois, sem desdouro, ser deno­minada de variável; a da virtude natural seria sempre límpida emanifesta, se a imbecilidade ou as paixões dos homens não aobscurecessem; a da virtude religiosa é sempre una e constante,porque revelada imediatamente por Deus e por ele conservada.

Seria, pois, erro, o atribuir, a quem fala de convençõessociais e de suas conseqüências, princípios contrários à LeiNatural ou à Revelação, porque não é delas que aqui se fala.Seria erro também acreditar que, aquele que, falando de estadode guerra antes do estado de sociedade, o tomasse no sentidohobbesiano,1O ou seja, o de nenhum dever e de nenhumaobrigação anterior, ao invés de tomá-lo como fato nascido dacorrupção da natureza e da falta de uma sanção expressa. Seriaerro imputar um delito ao escritor que considerasse as emanaçõesdo pacto social, e de não colocá-lo antes do próprio pacto.

A Justiça divina e a Justiça natural são, por essência,imutáveis e constantes, porque a relação entre dois objetos iguais

(10) Hobbesiano é relativo ao filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679),segundo o qual, antes do contrato social, os homens viviam, conformejá observara o romano Plauto, em contínua e mortífera luta entre si(homo homini lupus), fazendo, portanto, preceder o ."estado político",isto é, a vida em sociedade, por um "estado natural", que consideravacada homem em luta contínua com os semelhantes, negando, assim,o direito natural, anterior às leis. Hobbes, p.restigiado filósofo inglês,concebeu, assim, o contrato social como a evolução da sociedade doestado da natureza, do homo homini lupus (o homem é um lobo parao homem) para o estado político, do homo homini deus (o homemé deus para o homem). Neste ponto, Beccaria procura conciliar ahipótese do estado de guerra pré-social com o princípio da Revelaçãodivina e da lei natural. Em certo aspecto, nesta passagem, é tambémvisível a influência de Montesquieu, nos dois primeiros capítulos doEspírito das Leis.

é sempre a mesma; mas a Justiça humana, ou seja, política, nãosendo senão a relação entre a ação e o estado variável dasociedade, pode variar à medida que se tome necessária ou útilà sociedade tal ação, e só será bem discernida por quem analisaras relações complicadas e mutabilíssimas das combinações civis.Tão logo esses princípios, profundamente distintos, se tomemconfusos, deixará de existir a esperança de bem raciocinar sobreas matérias püblicas. Cabe aos teólogos estabelecer as fronteirasentre o justo e o injusto, quanto à intrínseca malícia ou a bondadedo ato. Estabelecer as relações do justo e do injusto político,ou seja, do que é útil ou danoso para a sociedade, cabe aopublicista. Nenhum objeto poderá prejudicar o outro, pois cadaum vê quanto a virtude, puramente política, deva ceder à imutávelvirtude emanada de Deus.

Quem, repito, desejar honrar-me com críticas, não comece,portanto, supondo em mim a existência de princípios destruidoresda virtude ou da religião, pois tenho demonstrado não seremesses os meus princípios; e, ao invés de achar-me incrédulo ousedicioso, procure ver, em mim, um mau lógico ou um políticodespreparado; não trema a cada proposta que apoie os interessesda humanidade; convença-me da inutilidade ou do dano políticoque poderia resultar dos meus princípios; mostre-me a vantagemdas práticas recebidas. Dei público testemunho da minha religiãoe da submissão ao meu Soberano, na resposta às Notas eObservações. li Responder a ulteriores escritos semelhantes àque­les seria supérfluo; mas quem quer que escreva com a decênciaque convém a homens honestos e com tais luzes, que me dispensede provar os primeiros princípios, seja qual for a natureza deles,pois encontrará em mim não só o homem que procura responder,como o pacífico amante da verdade.

(11) A resposta, redigida por Pietro Verri, com a colaboração do irmão,foi publicada seis dias após o recebimento, em Milão, da crítica acerba,parcial e injusta de Frei Fachinei, escrita esta, por determinação doprepotente e suscetível Conselho dos Dez, de Veneza, supostamentecriticado pela obra de Beccaria, conforme pensavam seus membros.A réplica dos irmãos Verri recebeu o nome de "Apologia".

INTRODUÇÃO

R EORA geral, os homens abandonam os mais relevantesregulamentos à prudência diária ou à discrição daque­

les cujo interesse é o de contestar as leis mais sábias, que, pornatureza, tomam universais as vantagens e resistem ao esforço,que tendem a concentrar-se em poucos, separando, de um lado,o máximo de poder e de felicidade e, de outro, toda a fraquezae a miséria. Por isso, só após haver passado entre si mil erros,nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade, e depoisde um cansaço de sofrer os males até o extremo, dispõem-seeles a remediar as desordens que os oprimem e a reconheceras mais palpáveis verdades, as quais, por sua própria simplici­dade, escapam às mentes vulgares, não habituadas a analisar osobjetos, mas a receber-lhes todas as impressões, de uma só vez,mais por tradição que por exame.

Olhemos a história e veremos que as leis, que são, oudeveriam ser, pactos entre homens livres, não passaram, geralmen­te, de instrumentos das paixões de uns poucos, ou nasceram defortuita e passageira necessidade, não já ditadas por frio analistada natureza humana. capaz de concentrar num só ponto as açõesde muitos homens e de considerá-las de um só ponto de vista:a máxima felicidade dividida pelo maior número. 12 Felizes as

(12) Beccaria foi o primeiro a formular este princípio, nestes exatos termos.Tanto nesta, como em outras passagens deste livro Dos Delitos e dasPenas (cfr. Cap. II e XV), as origens das leis têm como fundamentoa fusão das teorias contratualistas de Locke e de Rousseau com as

24 DOS DELITOS E DAS PENAS INTRODUÇÃO 25

pouquíssimas nações que não esperaram que o lento movimentodas combinações e vicissitudes humanas, após haverem atingidoo mal extremo, conduzissem ao bem, mas que aceleraram aspassagens intermediárias com boas leis. E merece a gratidão doshomens o filósofo que, de seu humilde e obscuro gabinete, tevea coragem de lançar à multidão as primeiras sementes, por longotempo infrutíferas, das úteis verdades. Conheceram-se verdadeirasrelações entre o soberano e seus súditos e entre as diversas nações.Prosperou o comércio à luz das verdades filosóficas, postas pelaimprensa ao alcance de todos, acendeu-se entre as nações tácitaguerra de atividades, a mais humana e a mais digna entre homensrazoáveis. Estes são os frutos que devemos às luzes deste século.Pouquíssimos, porém, examinaram e combateram a crueldade daspenas e as irregularidades dos processos criminais, parte tãoimportante quão descurada da legislação em quase toda a Europa.Pouquíssimos os que, remontando aos princípios gerais, elimina­ram os erros acumulados durante séculos, refreando, ao menos,cO,m a força que só possuem as verdades conhecidas, o demasiadolivre curso do mal dirigido poder, que deu até hoje longo eautorizado exemplo de cruel atrocidade. Entretanto, o gemido dosfracos, vítimas da cruel ignorância e da rica indolência, os bárbarostormentos, com pródiga e inútil severidade multiplicados pordelitos não provados ou quiméricos, a esqualidez e horrores daprisão, aumentados pelo mais cruel algoz dos desgraçados, aincerteza, é que deveriam comover aquela espécie de magistradosque guiam as opiniões das mentes humanas.

O imortal Presidente Montesquieu l3 discorreu rapidamentesobre este tema. 14 A indivisível verdade forçou-me a seguir os

teorias utilitaristas que Beccaria assimilou do pensador Helvétius(1715-1771), de quem foi grande admirador. Beccaria, cérebro essen­cialmente receptivo, toma seu o pensamento de Locke e de Rousseau.

(13) Montesquieu (1689-1755) foi eleito Presidente do Parlamento (órgãojurisdicional do reino da França) de Bordeaux, jurista e pensadoriluminista, autor de inúmeras obras, entre as quais a fundamental éo Esprit des lois.

(14) Beccaria declarou ao tradutor Morellet que sua "conversão" à filosofiaocorreu, quando da leitura da obra Lettres persanes de Montesquieu;

traços luminosos desse grande homem, mas os pensadores, paraos quais escrevo, saberão distinguir os meus passos dos dele.Afortunado serei eu se puder, como ele, obter os secretosagradecimentos dos obscuros e pacíficos adeptos da razão e sepuder inspirar aquele doce frêmito com o qual as almas sensíveisrespondem a quem luta pelos interesses da humanidade.

porém, neste seu trabalho, é bem visível a influência do Esprit deslois .em inúmeros pontos.

I

ORIGEM DAS PENAS

L EIS _~Ão condições sob as _quai§__holllens independentes eisolados se uniram em sociedade, cansados de viver

em contín\l_o_~~~cl<LQ~ g~lT!l e de.gozar de uma liberdade inútilpela incerteza de conservá-la. Parte dessa liberdade foi por elessacrificada. para poderem gozar o restante com. segurança. etranqüilídade. A soma de todas essas porções de liberdades,sacrificaaas ao bem de cada um, forma a soberania de uma naçãoe _o Soberano é seu legítimo depositário e administrador. Nãobastava, porém, formar esse repositório. Era mister defendê-lodas usurpações privadas de cada homem, em particular, o qualsempre tenta não apenas retirar do escrínio a própria porção mastambém usurpar à porção dos outros. Faziam-se necessáriosmotivos sensíveis suficientes para dissuadir o despótico espíritode cada homem de submergir as leis da sociedade no antigo caos.Essas são as penas estabelecidas contra os infratores das leis.Digo motivos sensíveis, porque a experiência mostrou que amultidão não adota princípios estáveis de conduta, nem se afastado princípio universal de dissolução no universo físico e moral,senão por motivos que imediatamente afetam os sentidos e quesobem à mente para contrabalançar as fortes impressões daspaixões parciais que se opõem ao bem universal. Nem aeloqüência, nem as declamações, nem mesmo as mais sublimesverdades bastaram para refrear por longo tempo as paixõesdespertadas pelos vivos impactos dos objetos presentes.

DIREITO DE PUNIR 29

II

DIREITO DE PUNIR

T CDA PENA, que uão derive da absoluta uecessidade, dizo grande Montesquieu, é tirânica, proposição esta que

pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homempara homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico.Eis, então, sobre o que se funda o direito do soberano de puniros delitos: sobre a necessidade de defender o depósito da salvaçãopública das usurpações particulares. Tanto mais justas são aspenas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maiora liberdade que o soberano dá aos súditos. Consultemos o coraçãohumano e nele encontraremos os princípios fundamentais doverdadeiro direito do soberano de punir os delitos pois não sepode esperar nenhuma vantagem durável da política moral, seela não se fundamentar nos sentimentos indeléveis do homem.Toda lei que se afaste deles encontrará sempre resistênciacontrária, que acabará vencendo, da mesma forma que uma força,embora mínima, aplicada, porém, continuamente, vencerá qual­quer movimento aplicado com violência a um corpo.

Homem algum entregou gratuitamente parte da próprialiberdade, visando ao bem público, quimera esta que só existenos romances. Se isso fosse possível, cada um de nós desejariaque os pactos que ligam os outros não nos ligassem. Cada homemfaz de si o centro de todas as combinações do globo. Amultiplicação do gênero humano, pequena por si só, mas muito

superior aos meios que a estéril e abandonada natureza ofereciapara satisfazer as necessidades que cada vez mais se entrecruzavam,é que reuniu os primeiros selvagens. As primeiras uniõesformaram necessariamente· outras para resistir àquelas e, assim,o estado de guerra transportou-se do indivíduo para as nações.Foi, portanto, a necessidade, que impeliu os homens a ceder parteda própria liberdade. É certo que cada um só quer colocar norepositório público a mínima porção possível, apenas a suficientepara induzir os outros a defendê-lo. O agregado dessas mínimasporções possíveis é que forma o direito de punir. O resto é abusoe não justiça, é fato, mas não direito. 15 Observemos que a palavradireito não se opõe à palavra força, mas a primeira é antes umamodificação da segunda, isto é, a modificação mais útil para amaioria. Por justiça entendo o vínculo necessário para manterunidos os interesses particulares, que, do contrário, se dissolve­riam no antigo estado de insociabilidade. Todas as penas queultrapassarem a necessidade de conservar esse vínculo sãoinjustas pela própria natureza.

É necessário evitar associar à palavra Justiça a idéia de algoreal, como força física ou ser vivo. Ela é mero modo de conceberdos homens, o que influencia infinitamente a felicidade de cadaum. Também não me refiro àquele tipo de justiça, que emanade Deus e que tem relações imediatas com as penas e recom­pensas da vida futura.

(15) "Observe-se que a palavra direito não contradiz a palavraforça. Direitoé a força submetida à lei para vantagem da maioria. Entendo por Justiçaos laços que reúnem de maneira estável os interesses particulares. Seesses laços se quebrassem, não haveria sociedade. É mister que seevite ligar a palavra justiça à idéia de força física ou de um serexistente. Justiça é pura e simplesmente o ponto de vista a partir doqual os homens encaram as coisas morais para o bem-estar de cadaum. Não pretendo falar aqui da justiça de Deus, que é de outranatureza, tendo relações imediatas com as penas e as recompensas deuma vida futura." - Nota de Beccaria.

CONSEQÜÊNCIAS 31

ln

CONSEQÜÊNCIAS

A PRIMEIRA conseqüência destes princípios é que só as leispodem determinar as penas fixadas para os crimes,

e esta autoridade somente pode residir no legislador, querepresenta toda a sociedade unida por um contrato social.Nenhum magistrado (que é parte da sociedade) pode, com justiça,aplicar pena a outro membro dessa mesma sociedade, pena essasuperior ao limite fixado pelas leis, que é a pena justa acrescidade outra pena. Portanto, o magistrado não pode, sob qualquerpretexto de zelo ou de bem comum, aumentar a pena estabelecidapara um delinqüente cidadão.

A segunda conseqüência é que, se cada membro emparticular está ligado à sociedade, essa sociedade está igualmenteligada a todos os seus membros por um contrato que, pornatureza, obriga as duas partes. Essa obrigação·, que desce dotrono até a choupana e liga igualmente o mais poderoso ao maisdesgraçado dos homens, nada mais é do que o interesse de todos,em observar pactos úteis à maioria. A violação, de um só pacto,gera a autorização da anarquia. O soberano, que representa aprópria sociedade, só pode promulgar leis gerais que obriguema todos os membros, mas não pode julgar se um deles violou

(0) Ver a nota 16, p. 32.

o contrato social, pois, então, a nação se dividiria em duas partes,uma, representada pelo soberano, que aponta;ia a violação docontrato, outra, pelo acusado, que a negaria. E, pois, necessárioque um terceiro julgue a verdade do fato. Daí, a necessidade

.do magistrado, cujas sentenças sejam inapeláveis e consistam,tão só, em afirmações ou negações de fatos particulares.

A terceira conseqüência é que, mesmo provada que aatrocidade da pena, não sendo imediatamente oposta ao bemcomum e ao próprio fim de impedir os delitos, fosse apenasinútil, ela seria, ainda assim, contrária não só às virtudesbenéficas, efeito de uma razão esclarecida, que prefere Q

comando de homens felizes ao de um rebanho de escravos, emmeio aos quais circulasse, perpetuamente, uma tímida crueldade,contrária também à justiça e à natureza do próprio contrato social.

INTERPRETAÇÕES DAS LEIS 33

IV

INTERPRETAÇÕES DAS LEIS

QUARTA conseqüência. A ~ut~ridade de interpre~ }eispenais não pode ser atnbUIda nem mesmo aos JUIzes

criminais, pela simples razão de que eles não são legisladores.Os juízes não receberam as leis de nossos antepassados comotradição de família, nem como testamento, que só deixasse aospósteros a missão de obedecer, mas recebem-nas da sociedadevivente ou do soberano que a representa, como legítimo depo­sitário do atual resultado da vontade de todos. Não nas recebemcomo obrigações de antigo juramento, nulo, por ligar vontadesnão existentes,16 iníquo, por reduzir os homens do estado de

(16) "Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade,a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cadacidadão, pois a natureza do contrato consiste em obrigar igualmenteas duas partes contratantes. Esse liame de obrigações mútuas que descedo trono até a cabana e que liga igualmente o maior e o menor dosmembros da sociedade, tem como fim único o interesse público, queconsiste na observação das convenções úteis à maioria. Violada umadessas convenções, abre-se a porta à desordem. A palavra obrigaçãoé uma das que se empregam mais freqüentemente em moral do queem qualquer outra ciência. Existem obrigações a cumprir no comércioe na sociedade. Uma obrigação supõe um raciocínio moral, convençõesraciocinadas. Não se pode, porém, emprestar à palavra obrigação uma

sociedade ao estado de rebanho, mas como efeito de umjuramento tácito ou expresso, que as vontades reunidas dossúditos vivos fizeram ao soberano, como vínculos necessáriospara frear e reger o fermento intestino dos interesses particulares.Esta é a física e real autoridade das leis. Quem será então olegítimo intérprete da lei? O soberano, isto é, o depositário dasatuais vontades de todos, ou o juiz, cujo ofício é apenas o deexaminar se determinado homem cometeu ou não ação contráriaàs leis?

Em cada crime, o juiz deverá estruturar um silogismoperfeitQ; ª maior deve ser a lei geral; a menor, a ação, conformeou não à lei: a conseqüência, a liberdade ou a pena. Quandoo juiz for coagido, ou quiser formular somente dois silogismos,a porta à incerteza estará aberta.

Nada é mais perigoso do que o axioma comum de que énecessário consultar o espírito da lei. Este é um dique abertoà torrente das opiniões. Esta verdade, que parece paradoxal àsmentes vulgares, mais abaladas por pequenas desordens presentesdo que pelas funestas, mas remotas, conseqüências que nascemde um falso princípio radicado numa nação, parece-me demons­trada. Nossos conhecimentos e todas as nossas idéias têm umarecíproca conexão. Quanto mais são complicados, mais nume­rosas são as estradas que a eles levam e deles partem. Cadahomem tem seu ponto de vista, e o mesmo homem, em épocasdiferentes, pensa de modo diferente. O espírito da lei seria, então,o resultado da boa ou da má lógica de um juiz; de uma fácilou difícil digestão; dependeria da violência de suas paixões, dafraque~a de quem sofre, das relações do juiz com a vítima ede todas as mínimas forças que alteram as aparências de cadaobjeto no espírito indeciso do homem.

Assim, vemos a sorte de um cidadão mudar várias vezes,ao passar por diversos tribunais e vemos a vida dos miseráveisser vítima de falsos raciocínios ou do atual fermento dos humores

idéia física ou real. É palavra abstrata que precisa ser explicada.Ninguém pode obrigar-vos a cumprir obrigações sem saberdes quaissão tais obrigações." - Nota de Beccaria.

34 DOS DELITOS E DAS PENAS

de um juiz, o qual tomou como legítima interpretação o vagoresultado de toda uma série confusa de noções, que lhe agitama mente. Vemos, pois, os mesmos delitos punidos diferentementeem épocas diferentes, pelo mesmo tribunal, por ter este consul­tado não a voz imutável e constante da lei, mas a erranteinstabilidade das interpretações.

A desordem, que nasce da rigorosa observância da letra deuma lei penal, não se compara com as desordens que nascemda interpretação. Tal momentâneo inconveniente leva à correçãofácil e necessária das palavras da lei, causa da incerteza, masimpede a fatal licença da razão, da qual nascem as arbitráriase venais controvérsias. Quando um código fixo de leis, quedevem ser observadas ad litteram, só deixa ao juiz a incumbênciade examinar as ações dos cidadãos e de julgá-las de acordo ounão com a lei escrita; quando a norma do justo e do injusto,que deve guiar tanto os atos do cidadão ignorante como os dofilósofo, não é questão controvertida, mas de fato, então ossúditos não estão sujeitos às pequenas tiranias de muitos, tantomais cruéis quanto menor é a distância entre quem sofre e quemfaz sofrer; mais fatais do que as de um só, porque o despotismode muitos somente é corrigível pelo despotismo de um só e acrueldade de um déspota é proporcional não à força, mas aosobstáculos. Dessa forma, adquirem os cidadãos a própria segu­rança, que é justa por ser o escopo pelo qual os homens vivemem sociedade e é útil porque os levam exatamente a calcularos inconvenientes de um crime. É verdade, ainda, que adquirirãoum espírito de independência, mas que não irá abalar as leis,nem será recalcitrante aos supremos magistrados, resistindo,porém, aos que ousarem chamar, com o sagrado nome de virtude,a fraqueza de ceder às suas interessadas ou caprichosas opiniões.Esses princípios desagradarão a todos os que se impuserem odireito de transmitir aos inferiores os golpes da tirania quereceberam dos superiores. Estarei preparado para tudo temer, seo espírito da tirania for consonante com o espírito da leitura.

V

OBSCURIDADE DAS LEIS

SE A JNrnlPRETAÇÃO das leis é um mal, claro que aobscundade, que a mterpretação necessariamente acarre­

ta, é também um mal, e este mal será grandíssimo se as leisforem ~sc~itas em língua estranha ao pOVO,17 que o ponha nadependencIa de uns poucos, sem que possa julgar por si mesmo~ual seria o êxito de sua liberdade, ou de seus membros, emhngua que t~ansformasse um livro, solene e público, em outrocomo que pnvado e de casa. Que deveremos pensar dos homensquando refletimos ~ue este é o inveterado costume de boa part~da culta e esclarecIda Europa! Quanto maior for o número dosque entenderem e tiverem nas mãos o sagrado código das leis,tanto menos freqüentes serão os delitos, pois não há dúvida deque a ignorância e a incerteza das penas contribuem para aeloqüência das paixões.

Conseqüência destas últimas reflexões é que, sem escritaa sociedade ~~Ama~s teria forma fixa de governo, onde a forç~fosse consequencIa do todo e não das partes e onde as leisalteráveis, apenas pelo consenso geral, não se corrompam,passando pela grande quantidade dos interesses privados. Aexperiência e a razão demonstraram-nos que a probabilidade e

(17) Latim era a "língua estranha ao povo", usada pela elite, pelos doutos,sendo o sermo vulgaris a língua popular, da plebe.

36 DOS DELITOS E DAS PENAS

a certeza das tradições humanas diminuem à medida que estasse distanciam da fonte. Se não houver monumento estável dopacto social, como resistirão as leis à força inevitável do tempoe das paixões?

Vemos, assim, quanto é útil a imprensa, que faz do público,e não apenas de alguns, o depositário das leis sagradas e quantosumiu o espírito tenebroso da cabala e da intriga, que desaparecediante das luzes e das ciências, aparentemente desprezadas porseus sequazes, mas na verdade temidas por eles. Esta é a razãopela qual vemos diminuída na Europa a atrocidade dos crimes,que faziam gemer nossos antepassados, os quais se tomavam,alternadamente, tiranos e escravos. Quem conhece a história dosúltimos dois ou três séculos e a nossa, poderá ver, como, noseio do luxo e da apatia, nasceram as mais doces virtudes, asaber, a filantropia, a benevolência e a tolerância para com oserros humanos. Verá quais foram os efeitos daquilo que semrazão denominamos de antiga simplicidade e boa-fé; a huma­nidade, gemendo sob a implacável superstição; a avareza, aambição de alguns, tingindo com o sangue humano os escríniosde ouro e os tronos dos reis, as ocultas traições e os massacrespúblicos, todos os nobres, tiranos da plebe. Os ministros daverdade evangélica, sujando de sangue as mãos que todos os diastocavam o Deus da mansuetude, não são obra deste séculoesclarecido, que alguns denominam corrupto.

VI

PROPORÇÃO ENTREOS DELITOS E AS PENAS

N Ão SOMENTE é interess: de todos que n.ão se c~metamdelitos, como tambem que estes sejam maIS raros

proporcionalmente ao mal que causam à sociedade. Portanto,mais fortes devem ser os obstáculos que afastam os homens doscrimes, quando são contrários ao bem público e na medida dosimpulsos que os levam a delinqüir. Deve haver, pois, proporçãoentre os delitos e as penas.

Impossível evitar todas as desordens, no universal combatedas paixões humanas. Crescem elas na proporção geométrica dapopulação e do entrelaçamento dos interesses particulares, quenão é possível dirigir geometricamente para a utilidade pública.A exatidão matemática deve ser substituída, na aritméticapolítica, pelo cálculo das probabilidades. Se lançarmos um olharpara a história, veremos crescerem as desordens com os limitesdos impérios, diminuindo o sentimento nacional na mesmaproporção e, assim, a tendência para o crime cresce na razãodo interesse que cada um tem nas próprias desordens. Por essemotivo, a necessidade de ampliar as penas vai sempre aumen­tando.

Essa força, semelhante à da gravidade, que nos impele aobem-estar, só se refreia, na medida dos obstáculos que lhe são

38 DOS DELITOS E DAS PENASPROPORÇÃO ENTRE OS DELITOS E AS PENAS 39

levantados. Os efeitos desta força são a confusa série das açõeshumanas. Se estas se chocam e se ferem, umas com as outras,as penas, a que eu chamaria de obstáculos políticos, impedem­lhe o efeito nocivo sem destruir a força motriz, que é a própriasensibilidade inseparável do homem. E o legislador faz comohábil arquiteto, cujo ofício é opor-se às diretrizes ruinosas dagravidade e pedir a colaboração das que contribuem para afirmeza do edifício.

Dada a necessidade da reunião dos homens, por causa dospactos que, necessariamente, resultam da própria oposição dosinteresses privados, forma-se uma escala de desordens, das quaiso primeiro grau consiste naquelas que destroem imediatamentea sociedade, e, o último, na mínima injustiça possível, feita aseus membros privados. Entre esses dois extremos encontram­se todas as ações opostas ao bem comum, chamadas delitos, quevão decrescendo, por graus insensíveis, do mais grave ao maisleve. Se a geometria fosse adaptável às infinitas e obscurascombinações das ações humanas, deveria existir uma escalaparalela de penas, descendo da mais forte para a mais fraca, masbastará ao sábio legislador assinalar os pontos principais, semalterar-lhes a ordem, não cominando, para os delitos de primeirograu, as penas do último. Se existisse escala precisa e universalde penas e delitos, teríamos medida provável e comum dos grausde tirania e de liberdade, do fundo de humanidade ou de malíciadas diversas nações.

Toda ação, não compreendida entre os dois limites,supramencionados, não pode ser chamada de delito, nem punidacomo tal, senão por aqueles que têm interesse em assim chamá­la. A incerteza desses lirriites produziu, nas nações, moral quecontradiz as leis, leis mais atuais que se excluem reciprocamentee uma quantidade de leis que submetem o mais sábio a penasmais rigorosas. Assim vagos e flutuantes ficaram os sentidos daspalavras vício e virtude. Nasceu, assim, a incerteza da própriaexistência, o que produz a letargia e o sono fatal dos corpospolíticos. Quem ler sob o ângulo filosófico os códigos das naçõese os respectivos anais, observará, quase sempre, as palavras vício

e virtude, bom cidadão ou réu, que se alteram com as revoluçõesdos séculos, não em razão das mutações ocorridas nas circuns­tâncias das nações, e, por isso, sempre de acordo com o interessegeral, mas em razão das paixões e dos erros que agitaramsucessivamente os diversos legisladores.Verá freqüentemente queas paixões de um dado século são a base da moral dos séculosseguintes. As paixões desenfreadas, filhas do fanatismo e doentusiasmo, enfraquecidas e corroídas, diria eu, pelo tempo, quereduz ao equilíbrio todos os fenômenos físicos e morais, tomam­se pouco a pouco a prudência do século e útil instrumento nasmãos dos fortes e perspicazes. Desse modo, nasceram as obscurasnoções de honra e de virtude, e isso ocorre, porque mudam comas revoluções do tempo, que antepõem os nomes às coisas,mudam como o curso dos rios e como as montanhas, que marcamfreqüentemente os limites não só da geografia física, comotambém da geografia moral.

Se o prazer e a dor são a força motriz dos seres sensíveis,se entre os motivos que impelem os homens para ações maissublimes foram colocados, pelo invisível legislador, o prêmio eo castigo, a distribuição inexata destes produzirá a contradição,tanto menos observada, quanto mais comum, de que as penascastigam os delitos a que deram origem. Se pena igual forcominada a dois delitos que desigualmente ofendem a sociedade,os homens não encontrarão nenhum obstáculo mais forte paracometer o delito maior, se disso resultar maior vantagem.

ERROS NA MEDIDA DAS PENAS 41

VII

ERROS NA MEDIDA DAS PENAS

A S PRECEDENTES reflexões dão-me o direito de afirmar quea única e verdadeira medida do delito é o dano

causado à nação, errando, assim, os que pensavam que averdadeira medida do delito era a intenção de quem o comete.Esta depende da impressão atual dos objetos e da precedentedisposição do espírito. Elas variam de homem para homem, e,em cada homem, com a velocíssima sucessão das idéias, daspaixões e das circunstâncias. Seria, então, necessário elaborar umCódigo especial para cada cidadão e uma nova lei para cadadelito. Às vezes, os homens, com a melhor das intenções, causamo maior mal à sociedade. Outras vezes, com a maior má vontade,causam o maior bem.

Outros medem o delito mais pela dignidade da pessoaofendida do que por sua importância em relação ao bem-estargeral. Se esta fosse a verdadeira medida do delito, uma irreverênciapara com o Ser dos seres deveria ser punida mais atrozmentedo que o assassinato de um monarca, porque a superioridade danatureza compensaria infinitamente a diferença da ofensa.

Finalmente, alguns chegaram a pensar que a gravidade dopecado seria levada em consideração na medida do delito. Afalsidade dessa opinião saltará aos olhos do objetivo examinadordas verdadeiras relações entre os homens, e entre estes e Deus.As primeiras são relações de igualdade. Só a necessidade fez

nascer do choque das paixões e das oposições dos interesses aidéia de utilidade comum, base da justiça humana. As segundassão relações de dependência de um Ser perfeito e criador, quereservou para si apenas o direito de legislar e julgar ao mesmotempo, pois só ele pode fazê-lo sem inconveniente. Se Deuscominasse penas eternas para quem lhe desobedecesse a onipo­tência, qual seria o inseto que ousaria suprir a divina justiça,querendo vingar o Ser que bastasse a si mesmo e que não pudessereceber dos objetos nenhuma impressão de prazer ou dor, e que,único entre os seres, agisse sem reação? A gravidade do pecadodepende da insondável malícia do coração, a qual não pode serconhecida por seres finitos, sem a Revelação. Como poderia,pois, tal malícia fixar-se em norma para a punição dos delitos?Nesse caso, poderiam os homens castigar, quando Deus perdoa,e perdoar quando Deus castiga. Se os homens pudessem estarem oposição ao Onipotente ao ofendê~lo, poderiam também, aopunir, contradizê-lo.

DIVISÃO DOS DELITOS 43

VIII

DIVISÃO DOS DELITOS

V IMOS que a verdadeira medida do delito é o dano àsociedade. Esta é uma daquelas palpáveis verdades,

que, embora não precisem de quadrantes nem de telescópios paraserem reveladas, pois estão ao alcance de toda inteligênciamedíocre; todavia, por maravilhosa combinação de circunstân­cias, são conhecidas com firme segurança somente por algunspoucos pensadores, homens de todas as nações e de todos osséculos. Mas as opiniões ostensivas e as paixões revestidas deautoridade e poder, a maioria das vezes por meio de insensíveisimpulsos, outras poucas por impressões violentas sobre a tímidacredulidade dos homens, dissiparam as noções simples queformavam, talvez, a primeira filosofia das sociedades nascentes.A luz deste século parece que reconduz a essas noções, commaior firmeza, no entanto, que pode ser proporcionada por umexame geométrico, por mil experiências funestas e pelos própriosobstáculos. Nossa ordem de expor levar-nos-ia a examinar e adistinguir os diversos tipos de delitos ou a maneira de puni-los,se a variável natureza desses delitos, pela diversa circunstâncialigada aos séculos e aos lugares, não nos levasse a imenso etedioso pormenor. Bastar-me-á indicar os princípios mais geraise os erros mais danosos e comuns para desmentir tanto os que,por um mal compreendido amor de liberdade, gostariam de

introduzir a anarquia, quanto os que desejariam reduzir oshomens a uma regularidade claustral .

Alguns delitos destroem imediatamente a sociedade ouquem a representa, outros defendem a segurança do cidadão navida privada, nos bens, na honra; outros são ações contráriasàquilo que, por lei, cada um é obrigado a fazer ou não fazer,em vista do bem geral. Os primeiros, isto é, os delitos máximos,porque mais danosos, são os chamados de lesa-majestade. Sóa tirania e a ignorância, que confundem os vocábulos e as idéiasmais claras podem dar esse nome e, por conseguinte, cominarpena máxima a delitos de naturezas diferentes, de modo a fazeros homens, como em outras mil ocasiões, vítimas de um sóvocábulo. Cada delito, embora privado, ofende a sociedade, masnem todo delito procura a destruição imediata dessa mesmasociedade. As ações morais, assim como as físicas, têm esferalimitada de atividade e, como todos os movimentos da natureza,são diversamente circunscritas ao tempo e ao espaço. Só ainterpretação cavilosa, que é comumente a filosofia da escravi­dão, pode confundir aquilo que a verdade eterna com imutáveisrelações distinguiu.

Seguem-se os crimes contra a segurança de cada particular.Sendo este o fim primeiro de toda legítima associação, não épossível deixar de cominar à violação do direito de segurança,adquirido pelo cidadão, penas das mais severas, fixadas pelasleis.

A opinião que cada cidadão deve ter de poder fazer tudoo que não é contrário à lei, sem temer outro inconveniente, alémdo que pode resultar da própria ação - eis o dogma políticoem que os povos deveriam acreditar e que os supremosmagistrados deveriam apregoar com a incorruptível proteção dasleis, dogma sagrado, sem o qual não pode haver sociedadelegítima, certa recompensa pelo sacrifício, por parte dos homens,daquela ação universal sobre todas as coisas, que é comum acada ser sensível e limitada apenas pela própria força. Eis o quetoma as almas livres e vigorosas e as mentes esclarecidas, quefaz os homens virtuosos, mas virtude que sabe resistir ao temor,

44 DOS DELITOS E DAS PENAS

e não da prudência submissa, digna apenas de quem pode tolerarprecária e incerta existência. Atentados contra a segurança e aliberdade dos cidadãos constituem, pois, um dos maiores crimese, nessa classe, incluem-se não apenas os assassinatos e os furtosdos plebeus, mas também os dos grandes e dos magistrados, cujainfluência age a maior distância e com maior vigor, destruindo,nos súditos, as idéias de justiça e de dever, substituindo-as pelado direito do mais forte, perigoso não só para quem o exercecomo também para quem o suporta.

IX

DA HONRA

H Á MARCANrn contradição entre as leis civis, zelosasguardiãs, acima de tudo, do corpo e dos bens de cada

cidadão, e as leis relativas ao que se chama de honra, a qualcoloca, em primeiro plano, a opinião. A palavra honra é umadas que serviram de base para longos e brilhantes raciocínios,sem que estivesse associada a nenhuma idéia fixa ou estável.Mísera condição da mente humana a de que as idéias menosimportantes e mais remotas sobre as revoluções dos corposcelestes sejam conhecidas melhor do que as próximas e impor­tantíssimas noções morais, sempre flutuantes e confusas, à mercêdo vendaval das paixões que as impelem e da ignorância dirigidaque as recebe e as transmite! O aparente paradoxo desaparecerá,porém, se se ponderar que, assim como os objetos bem próximosda vista se confundem, assim também a excessiva proximidadedas idéias morais faz com que facilmente se misturem asmúltiplas idéias simples que as compõem, confundindo as linhasde separação, necessárias ao espírito geométrico que quer mediros fenômenos da sensibilidade humana, acabando por esvair-sede toda a maravilha do indiferente pesquisador das coisashumanas, que suspeitará que tanto aparato moral e tantos liamesnão sejam necessários para tomar os homens felizes e seguros.Essa honra é, pois, uma daquelas idéias complexas que cons­tituem um bloco não apenas de idéias simples, mas também de

46 DOS DELITOS E DAS PENASDA HONRA 47

idéias igualmente complexas que, assomando reiteradamente àmente, ora admitem, ora excluem alguns dos diversos elementosque as compõem, conservando apenas algumas idéias comuns,assim como, na álgebra, várias quantidades complexas admitemum divisor comum. Para achar o máximo divisor comum, nasvárias idéias que os homens fazem da honra, é preciso lançaruma vista rápida de olhos sobre a formação das sociedades. Asprimeiras leis e os primeiros magistrados nasceram da neces­sidade de corrigir as desordens geradas pelo despotismo físicode cada homem, finalidade esta instituidora da sociedade e estafinalidade primeira sempre foi mantida, na realidade ou naaparência, no início de todos os códigos, mesmo quando danosos,mas a aproximação dos homens e o progresso de seus conhe­cimentos originaram infinita série de ações e necessidades,impelindo uns contra outros, sempre superiores à providência dasleis e inferiores ao atual poder de cada um. Foi nessa época quecomeçou o despotismo da opinião, único meio de obter de outremaqueles bens e de afastar os males contra os quais as leis eraminsuficientes. É a opinião que atormentou o sábio e o vulgo, quevalorizou a aparência da virtude acima da própria virtude, queconverteu em missionário até o criminoso, para que ali encon­trasse seu interesse. Portanto, as aprovações dos homens setomaram não só úteis, mas necessárias, para não descer abaixodo nível comum. Portanto, se o ambicioso conquista a virtude,porque ela é útil, se o vaidoso a mendiga, como prova do própriomérito, vê-se o homem honrado exigi-la como necessária. Essahonra é a condição que muitíssimos homens consideram indis­pensável à sua existência. Nascida após a formação da sociedade,ela não pôde ser colocada na vala comum. Assim, é uminstantâneo retomo ao estado natural e uma subtração momen­tânea da própria pessoa às leis que, nesse caso, não servem paradefender suficientemente o cidadão.

Portanto, quer na radical liberdade política, quer na radicaldependência, desaparecem as idéias de honra ou se confundemperfeitamente com outras, porque no primeiro caso o despotismodas leis toma inútil a busca da aprovação alheia, no segundocaso, porque o despotismo dos homens, anulando a existência

civil, os reduz a uma precária e momentânea personalidade. Ahonra é, pois, um dos princípios fundamentais daquelas monar­quias que são um despotismo atenuado e, nelas, correspondemàs revoluções nos estados despóticos, momentânea volta aoestado da natureza e uma recordação do padrão da antigaigualdade.

DOS DUELOS 49

xDOS DUELOS

DA NECBSSlDADB da aprovação dos outros nasceram osduelos privados, originados da anarquia das leis. Pre­

tende-se que fossem desconhecidos na antigüidade, talvez porqueos antigos se reuniam, sem armas e sem desconfiança, nostemplos, nos teatros, ou com os amigos. Ou talvez porque o duelofosse espetáculo ordinário e comum que os gladiadores escravose aviltados ofereciam ao povo, e que os homens livres, recusandoos combates privados, afastavam a aparência e o nome degladiadores. Em vão, os editos, contra quem aceitasse o duelo,procuraram extirpar tal costume, cujo fundamento se encontranaquilo que alguns homens temem mais do que a própria morte,pois, sem a aprovação alheia, o homem honrado se vê expostoa tornar-se um ser meramente solitário, estado insuportável parao homem sociável, OU tornar-se alvo de insultos e da infâmia,que com a ação repetida acabam prevalecendo sobre o perigoda pena.

Por que motivo o populacho se bateria, em duelo, menosdo que os grandes? Não só por não possuir armas, como tambémporque a necessidade da aprovação alheia é menos comum entrea plebe do que entre aqueles que, estando em nível mais alto,se entreolham com maior suspeita e com maior inveja.

Não é inútil repetir o que outros já escreveram, a saber,que o melhor método de prevenir o delito é punir o agressor,

ou seja, quem deu motivo para o duelo, declarando inocenteaquele que, sem culpa, foi obrigado a defender o que as leisatuais não asseguram, isto é, a opinião, e teve que mostrar aosconcidadãos que teme somente as leis e não os homens.

DA TRANQÜILIDADE PÚBLICA 51

XI

DA TRANQÜILIDADE PÚBLICA

P OR FIM, entre os delitos da terceira espécie est~? par­ticularmente incluídos os que perturbam a tranqUilIdade

pública e a o sossego do cidadão, como algazarras e espalhafatos,nas vias públicas destinadas ao comércio e à passagem doscidadãos, como os fanáticos discursos que inflamam as fáceispaixões da curiosa multidão, as quais ganham força pelafreqüência dos ouvintes, mais pelo obscuro e misterioso .entu:siasmo, do que pela clara e tranqüila razão, que nunca mflUIsobre a grande massa humana.

A noite iluminada às expensas públicas, os guardas distri­buídos pelos diferentes bairros da cidade, os simples e mora~s

discursos da religião, reservados ao silêncio e à sacra tranqüI­lidade dos templos protegidos pela autoridade pública, os aranzéisdestinados a apoiar os interesses privados e públicos nasassembléias da nação, nos parlamentos ou onde reside a majes­tade do soberano, são, em conjunto, meios eficazes para prevenira perigosa intensidade das paixões populares. Estas formam osprincipais ramos da vigilância do ~agistrado: que o~ frances~s

denominam polícia, mas se esse magIstrado agIsse, aplIcando leISarbitrárias e não estabelecidas por um código que circulasse pelasmãos de todos os cidadãos, estaria aberta uma porta à tiraniaque cerca todas as fronteiras da liberdade política. Não encontroexceção alguma ao axioma geral de que todo cidadão deve saber

se é réu ou inocente. Se os censores e, de um modo geral, osmagistrados arbitrários são necessários em qualquer governo, issodecorre da fraqueza de sua constituição e não da natureza degoverno bem organizado. A incerteza da própria sorte sacrificoumais vítimas à obscura tirania, do que a pública e solenecrueldade. Ela revolta os ânimos mais do que os avilta. Overdadeiro tirano começa sempre por dominar a opinião, queprevine a coragem, a qual só pode resplandecer ou sob a claraluz da verdade, no fogo das paixões, ou ainda na ignorância doperigo.

Quais serão, entretanto, as penas adequadas a esses delitos?Será a morte uma pena realmente útil e necessária para asegurança e para a boa ordem da sociedade? Serão a tortura eos suplícios justos, e alcançarão eles o fim a que as leis sepropõem? Qual será a melhor maneira de prevenir os delitos?Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos?Que influência terão as penas sobre os costumes? Estes proble­mas merecem ser resolvidos com a precisão geométrica a quea nebulosidade dos sofismas, a sedutora eloqüência e a tímidadúvida não podem resistir. Se eu só tivesse tido o mérito deter sido o primeiro a apresentar na Itália, com algum realce maior,aquilo que as outras nações ousaram escrever e começam apraticar, julgar-me-ia feliz, mas se, apoiando os direitos doshomens e da invencível verdade, eu tivesse contribuído paraarrancar dos espasmos e das vascas da morte algumas vítimasinfelizes da tirania e da ignorância, não menos fatal, as bênçãose as lágrimas, mesmo as de um só inocente, nos transportes daalegria, me consolariam do desprezo dos homens.

XII

FINALIDADES DA PENA

D A SIMPLES consideração das verdades, até aqui expostas,fica evidente que o fim das penas não é atormentar

e afligir um ser sensível, nem desfazer o delito já cometido. Éconcebível que um corpo político que, bem longe de agir porpaixões, é o tranqüilo moderador das paixões particulares, possaalbergar essa inútil crueldade, instrumento do furor e do fana­tismo, ou dos fracos tiranos? Poderiam talvez os gritos de uminfeliz trazer de volta, do tempo, que não retorna, as ações jáconsumadas? O fim da pena, pois, é apenas o de impedir queo réu cause novos danos aos seus concidadãos e demover osoutros de agir desse modo.

É, pois, necessário selecionar quais penas e quais os modosde aplicá-las, de tal modo que, conservadas as proporções,causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito doshomens, e a menos tormentosa no corpo do réu.

XIII

DAS TESTEMUNHAS

P aNTO considerável, em toda boa legislação, é o dedeterminar exatamente a credibilidade das testemunhas

e das provas do crime. Todo homem razoável, isto é, que tenhaidéias conexas e cujas sensações sejam conformes às dos outroshomens, pode ser arroll:ldo como testemunha. A verdadeiramedida de sua credibilidade é tão-somente o interesse que tenhaem dizer ou não a verdade, razão por que é frívolo o argumentoda fraqueza das mulheres, pueril a aplicação dos efeitos da mortereal à morte civil nos condenados, e incoerente a nota de infâmianos infames, quando as testemunhas não tenham interesse algumem mentir. A credibilidade, pois, deve diminuir na proporçãodo ódio ou da amizade, ou das estreitas relações existentes entrea testemunha e o réu. É necessária mais de uma testemunha,porque enquanto uma afirma e a outra nega, nada haverá de certo,e prevalecerá o direito que cada um tem de ser consideradoinocente. A credibilidade de uma testemunha torna-se tãosensivelmente menor quanto mais cresce a atrocidade do delito18

(18) "Entre os penalistas, ao contrário, a credibilidade que o testemunhomerece aumenta em proporção da atrocidade do crime. Apoiam-se elesneste axioma de ferro, ditado pela mais cruel imbecilidade: lnatroeissimis leviores conjecturae sufficiunt, et /icet judiei jura trans­gredi. Traduzamos essa máxima hedionda, para que a Europa conheça

54 DOS DELITOS E DAS PENASDAS TESTEMUNHAS 55

ou a inverossimilhança das circunstâncias, como, por exemplo,a magia e as ações gratuitamente cruéis. É mais provável quevários homens mintam na primeira acusação, porque é mais fácilcombinar-se, em muitos, a ilusão da ignorância ou o ódioperseguidor, do que se exercer, por um só, um poder que Deusnão deu ou suprimiu de toda criatura. O mesmo acontece nasegunda acusação, pois o homem só é cruel na proporção doseu próprio interesse, do ódio, ou do temor que concebeu. Nãohá propriamente, no homem, nenhum sentimento supérfluo, poiseste é sempre proporcional ao resultado das impressões exercidassobre os sentidos. Igualmente, a credibilidade de uma testemunhapode ser às vezes diminuída, quando ela seja membro desociedade privada, cujos costumes e normas não são bemconhecidos ou divirjam das normas públicas. Tal homem uneas próprias paixões às paixões alheias.

Finalmente, quase nula é a credibilidade da testemunhaquando se faz, das palavras, um delito, pois o tom, o gesto, oque precede e o que segue às diversas idéias que os homensassociam às mesmas palavras altera e modifica de tal modo seusdizeres que é quase impossível repeti-las exatamente como foram

ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos aos quaisestá submetida quase sem o saber: "Nos delitos mais atrozes, isto é,menos prováveis, as mais ligeiras circunstâncias bastam, e o juiz podecolocar-se acima das leis". Os absurdos, em uso na legislação, sãomuitas vezes o resultado do meio, fonte inesgotável das inconseqüênciase dos erros humanos. Os legisladores, ou antes, os jurisconsultos, cujasopiniões são consideradas após sua morte como espécie de oráculos,e que, como escritores vendidos ao interesse, se tomaram árbitrossoberanos da sorte dos homens, os legisladores, repito, receosos dever condenar inocentes, sobrecarregaram a jurisprudência de forma­lidades e exações inúteis, cuja exata observação colocaria a desordeme a impunidade no trono da Justiça. Outras vezes, assombrados comcertos crimes atrozes e difíceis de provar, acharam que deviam desprezaras formalidades que eles próprios estabeleceram. Foi assim que,dominados ora por um despotismo impertinente, ora por temores pueris,fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie de jogo abandonadoao acaso e aos caprichos do arbítrio." - Nota de Beccaria.

pronunciadas. As ações violentas e fora ~o comum,. como AOS

verdadeiros delitos, deixam traços na quantldade das CIrcunstan­cias e nos efeitos decorrentes, mas as palavras só permanecemna memória, quase sempre infiel e geralmente sedutora dosouvintes. É, pois, muito mais fácil a calúnia relativa às palav~as

do que a referente às ações de um homem, porque quanto maIorfor o número de circunstâncias apresentadas como prova, tantomaiores serão os meios fornecidos ao réu para justificar-se.

INDíCIOS E FORMAS DE JULGAMENTO 57

XIV

INDÍCIOS E FORMASDE JULGAMENTO

H Á UM lEOREMA ge~ muito útil para,calcular a certezade um fato, Isto e, a força dos mdIclOs de um crime.

Quando as. pr?:as ~o fato dependem de outra prova, isto é,quando os mdIclOs so se provam entre si, quanto maiores foremas provas aduzidas, menor será a probabilidade da existência dofato, porqu~ os casos que enfraquecessem as provas precedentesenfraquecenam as subseqüentes. Quando todas as provas do fatod~p~nd~m de uma só prova, esse número não aumenta nemdImmUI a probabilidade do fato, porque todo seu valor se reduz~o valor da única prova de que dependem. Quando as provasmdependem umas das outras, ou seja, quando os indícios sepro.vam por si mesmos, quanto maiores forem as provas aduzidasmaIS aumentará a probabilidade do fato, pois a falsidade de um~das provas não influi sobre a outra. Falo da probabilidade em~atéria de delitos que, para merecerem uma pena, devem sertIdos. como cert~s. O paradoxo, entretanto, esvair-se-á para quemconSIdere que, ngorosamente, a certeza moral não é senão umapr~babilidade, mas probabilidade tal que é denominada certeza,pOIS todo homem de bom senso nela consente necessariamentepor um hábito nél;scido da necessidade de agir e anterior a todaespeculação. A certeza que se exige para determinar que um

homem é réu, pois, é a que caracteriza cada homem nas operaçõesmais importantes de sua vida. Pode-se dividir as provas de umcrime em perfeitas e imperfeitas. Denomino perfeitas as provasque excluem a possibilidade de alguém não ser culpado e chamoimperfeitas as que não a excluem. Das primeiras basta uma sóprova para a condenação. Das outras bastam tantas quantas sejamnecessárias para constituir a prova perfeita, ou seja, que, se comcada uma destas, em particular, é possível que alguém não sejaréu, diante de sua soma, no mesmo caso, é impossível que nãoo seja. Note-se que as provas imperfeitas pelas quais o réu podejustificar-se e não o faça suficientemente se tomem perfeitas,mas esta certeza moral de provas é mais fácil de ser sentidado que exatamente definida. Por isso, julgo ótima a lei que indicaassessores para o juiz principal por sorteio e não por escolha,pois, neste caso, é mais segura a ignorância que julga pelosentimento do que a ciência que julga pela opinião. Onde as leissão claras e precisas, o ofício do juiz não é senão o de averiguaro fato. Se, na busca das provas do delito, se exigir habilidadee destreza, se, na apresentação do resultado, forem necessáriasclareza e precisão, para julgar essa conclusão, nada mais seexigirá do que mero e comum bom senso, menos enganoso doque o saber de um juiz habituado a pretender encontrar réus eque reduz tudo a mero sistema teórico, extraído de seus estudos.Feliz a nação cujas leis não são ciência! É muito útil a lei quefaz cada homem ser julgado por seus iguais, pois, quando setrata da liberdade e do destino do cidadão, devem silenciar ossentimentos inspirados pela desigualdade. A superioridade comque o homem de sorte olha para o infeliz, o pouco caso comque o inferior olha para o superior, não podem influir nesse juízo.Quando, porém, o delito constituir ofensa a terceiro, então, osjuízes deverão ser a metade pares do réu, e a outra metade paresdo ofendido. Estando assim equilibrado todo interesse particularque modifica também, involuntariamente, as aparências dosobjetos, só prevalecem as leis e a verdade. É, então, conformeà justiça que o réu possa excluir até certo ponto os que lhe sãosuspeitos, e, se isso lhe for concedido sem problema, por algum

58 DOS DELITOS E DAS PENAS

te~po, p~ecerá que o réu se condenará a si próprio. Públicossejam os J.ul.~amentos e públicas sejam as provas do crime, paraque a opImao, que é talvez o único cimento da sociedadeimponha freio à força e às paixões, para que o povo diga "nã~somos escravos e somos defendidos", sentimento que inspiracoragem e q~e e~uivale a um tributo ao soberano que conheceseus verdade~r~s mteresses. Não acenarei a outros pormenorese cautelas, eXIgIdos por instituições semelhantes. Nada teria ditose tivesse sido necessário dizer tudo. '

xvACUSAÇÕES SECRETAS

E M MUITAS nações, pela fraqueza da organização, acusaçõessecretas, mas consagradas e necessárias, provocam de­

sordens, costume esse que toma os homens falsos e dissimulados.Quem achar que outrem é delator, nele terá um inimigo. Oshomens costumam, então, mascarar os sentimentos e, tendo ohábito de ocultá-los dos outros, acabam finalmente por ocultá­los de si mesmos. Infelizes os homens que chegaram a talextremo! Sem princípios claros e estáveis que os orientem,vagam, aqui e ali, desgarrados e flutuantes no vasto oceano dasopiniões, sempre preocupados em salvar-se dos monstros que osameaçam, passando o momento presente amargurados semprepela incerteza do futuro. Privados dos prazeres duradouros datranqüilidade e da segurança, só alguns deles, espalhados aquie ali, ao longo de sua melancólica existência, devorados pelapressa e pela desordem, consolam-nos de haver vivido. É desseshomens que faremos os corajosos soldados defensores da pátriaou do trono? Encontraremos, entre eles, incorruptos magistradosque, com livre e patriótica eloqüência, sustentem e desenvolvamos verdadeiros interesses do soberano, que levam ao trono, comos tributos, o amor e as bênçãos de homens de todos os níveise do trono, trazendo de volta aos palácios e às cabanas, a paz,a segurança e a industriosa esperança de melhorar a sorte, útilfermento e vida dos Estados?

60 DOS DELITOS E DAS PENAS

Que~ poderá defender-se da calúnia, quando esta se protegecom o m~Is forte escudo da tirania, o segredo? Que espécie degov~~o .e esse, em que o regente pretende ver em cada súdito~m mImIgo e, para assegurar o sossego público, é obrigado atIrar o sossego de cada um?

Que motivos justificariam as acusações e as penas secretas?A salvação pública, a segurança e a manutenção da forma d~governo? Que .e~~ranh~ organização é essa, onde quem detéma. for~a e a ~pImao, amda mais eficaz que a força, teme cada~Idada~! A mcolumidade do acusador? As leis, assim, sãomsufictente~ p~a ?e~endê-Io. E haverá súditos mais fortes queo soberano. A mfamIa do delator? Autoriza-se, pois, a calúniasecre:a e. p~ne-se a calúnia pública! A natureza do delito? Seas ~çoes mdIferentes, ainda que úteis ao público, forem chamadasdelItos, as acusações e os julgamentos nunca serão suficiente­mente secretos. Pode haver delitos, isto é, ofensas públicas, mas,a~ ~esmo tempo, pode não ser do interesse de todos tomarpublIco o ex:mplo, isto é, o julgamento? Respeito todos osg?vernos, e nao falo de nenhum em particular. A natureza dascIrcunstâncias é tal, às vezes, que se pode julgar como a piord.as ruínas erradicar um mal que, na verdade, é inerente aosI~tema de uma nação, mas, se eu tivesse que publicar novasleIs em algum recanto abandonado do universo, antes de autorizare~se costume, minha mão tremeria e eu veria toda a posteridadedIante dos meus olhos.

, .Já o _disse. o senhor de Montesquieu que as acusaçõespubh~as sao .m~Is co~fo~es à república, onde o bem públicodevena con~tItUIr a pnmeIra paixão dos cidadãos, antes mesmoda monarqUIa, onde esse sentimento é fraquíssimo pela próprianatu~ez~ .do governo e onde é ótimo o procedimento de nomearc~mIssanos que, em nome de todos, acusem os infratores dasleIs. , En~retanto, todo governo, não só republicano comomonarqUIco, deve aplicar ao caluniador a pena que tocaria aoacusado.

XVI

DA TORTURA

C RUELDADE, consagrada pelo uso, na maioria das nações,é a tortura do réu durante a instrução do processo,

ou para forçá-lo a confessar o delito, ou por haver caídoem contradição, ou para descobrir os cúmplices, ou por qualmetafísica e incompreensível purgação da infâmia, ou, finalmen­te, por outros delitos de que poderia ser réu, mas dos quais não

é acusado.Um homem não pode ser chamado culpado antes da

sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteçãopública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dosquais ela lhe foi outorgada. Qual é, pois, o direito, senão o daforça, que dá ao juiz o poder de aplicar pena ao cidadão, enquantoexiste dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência? Não é novoeste dilema: ou o delito é certo ou incerto. Se é certo, não lheconvém outra pena se não a estabelecida pelas leis, e inúteissão os tormentos, pois é inútil a confissão do réu. Se é incerto,não se deveria atormentar o inocente, pois é inocente, segundoa lei, o homem cujos delitos não são provados. E acrescentomais: é querer subverter a ordem das coisas exigir que umhomem seja ao mesmo tempo acusador e acusado, que a dorse tome o cadinho da verdade, como se o critério dessa verdaderesidisse nos músculos ou nas fibras de um infeliz. Este é o meioseguro de absolver os robustos criminosos e de condenar os

62 DOS DELITOS E DAS PENAS DA TORTURA 63

fracos inocentes. Eis os fatais inconvenientes desse pretensocritério da verdade, mas critério digno de um canibal, que osromanos, bárbaros por mais de um título, reservaram apenas aosescravos, vítimas de tão feroz quanto muito louvada virtude.

Qual a finalidade política da pena? O medo dos outroshomens. Que juízo deveremos fazer, então, das carnificinassecretas e .privadas que o uso tirânico outorga tanto ao culpadoquanto ao Inocente? E importante que nenhum crime comprovadopermaneça impune, mas é inútil investigar a autoria do crimesepulto nas trevas. Mal já consumado, e para o qual não. háremédio, só pode ser punido pela sociedade política para influirn~s outros com a ilusão da impunidade. Se é verdade que onumero dos homens que, por medo ou virtude, respeitam as leis,é superior ao número dos que a infringem, o risco de atormentarum inocente deve ser tanto mais bem avaliado quanto maior éa probabilidade de que um homem, em condições iguais, as tenhamais respeitado que desprezado.. ?utro motivo ridículo da tortura é o da purgação da infâmia,ISto e, que um homem julgado infame pelas leis deva confirmarseu depoimento com a tritura de seus ossos. Esse abuso nãodeveria ser tolerado no século XVIII. Acredita-se que a dor, queé sensação, purgue a infâmia, que é mera relação moral. Seráa dor realmente um cadinho? Será a infâmia um corpo mistoimpuro? Não é difícil remontar às origens dessas leis ridículas,PAois os próprios absurdos adotados por uma nação inteira sempretem alguma relação com outras idéias comuns e respeitadas pelaprópria nação. Parece esse uso derivar das idéias religiosas eespirituais que tanta influência exeiéêm sobre os pensamentosdos homens, sobre as nações e sobre os séculos. Dogma infalívelassegura-nos que as nódoas contraídas pela fraqueza humana eque não merecem a ira eterna do Ser Supremo serão purgadaspor um incompreensível fogo. Se a infâmia é nódoa civil, e sea dor e o fogo apagam as nódoas espirituais e incorpóreas, porque os espasmos da tortura não apagariam a mácula civil dainfâmia? Creio que a confissão do réu, que alguns tribunaisexigem, como algo essencial à condenação, tenha origem seme­lhante, pois, no misterioso tribunal da penitência, a confissão do

pecado é parte essencial do sacramento. Eis de que forma oshomens abusam das luzes mais seguras da Revelação, e comoestes são os únicos que subsistem em tempos de ignorância, aeles recorre a dócil humanidade em todas as ocasiões, servindo­se das aplicações as mais absurdas e remotas. A infâmia,entretanto, é sentimento que não está sujeito nem às leis, nemà razão, mas à opinião comum. A própria tortura ocasiona realinfâmia em suas vítimas. Assim sendo, com esse método sesubstituirá a infâmia pela infâmia.

O terceiro motivo é a tortura aplicada aos supostos réus,quando caem em contradição durante o interrogatório, como seo temor da pena, a incerteza do julgamento, o aparato e amajestade do juiz, a ignorância, comum a quase todos, criminosose inocentes, não fizessem provavelmente cair em contradiçãotanto o inocente temeroso como o culpado que procura acobertar­se, como se as contradições, comuns aos homens, quando estãotranqüilos, não se multiplicassem na perturbação do espírito, todoabsorvido na preocupação de salvar-se do perigo iminente.

Esse infame cadinho da verdade é monumento da legislaçãoantiga e selvagem, que ainda hoje subsiste quando as provas dofogo e da água fervente, e o incerto destino das armas, eramchamados juízos de Deus, ou ordálios, como se elos da eternacorrente que está no âmago da Causa Primeira devessem a todoinstante ser desordenados e desconectados ao sabor da frívoladeterminação humana. A única diferença entre tortura e provasdo fogo e da água fervente é que o êxito da primeira depende,em parte, da vontade do réu e, o das últimas, de fato meramentefísico e extrínseco. Todavia, essa diferença é só aparente, nãoreal. Tão pouca é a liberdade de dizer a verdade entre osespasmos e as dilacerações, quanto o era então impedir semfraude os efeitos do fogo e da água fervente. Todo ato da nossavontade é sempre proporcional à força da impressão sensível deonde se origina. E a sensibilidade do homem é limitada. Assim,a impressão da dor pode crescer a tal ponto que, ocupando asensibilidade inteira do torturado, não lhe deixa outra liberdadesenão a de escolher o caminho mais curto, momentaneamente,para se subtrair à pena. Então, a resposta do réu é tão necessária

64 DOS DELITOS E DAS PENAS DA TORTURA 65

quanto o seriam as impressões do fogo e da água. O inocentesensível declarar-se-á culpado, quando achar que assim farácessar o tormento. A diferença entre eles é anulada pelo própriomeio que se pretende utilizar para encontrá-lo. É supérfluo, paramelhor esclarecer, citar inúmeros exemplos de inocentes queconfessaram a culpa diante dos espasmos da tortura. Não hánação nem época que não os enumere, mas nem os homensmudam, nem tiram proveito disso. Não há homem qlle tenhalevado idéias além das necessidades da vida e que, às veu~s,

não corra para a natureza que o atrai com vozes secretas econfusas, mas o hábito, esse tirano da mente, o repele e o assusta.O resultado, pois, da tortura, é questão de temperamento e decálculo, que varia em cada homem, de acordo com sua robusteze sua sensibilidade, de tal forma que, com esse método, ummatemático resolveria esse problema mais facilmente do que ofaria um juiz, já que a força dos músculos e a sensibilidade dasfibras de um inocente medirão o grau de dor que o fará confesséU"a culpa de um delito.

O interrogatório do réu é feito para conhecer a verdade,mas se esta verdade dificilmente se revela pela atitude, pelogesto, pela fisionomia de um homem mmqüilo, muito menOSapareceria no homem no qual as convulsões da dor alteram todosos sinais através dos quais a maioria dos homens deixa, algumasvezes, contra a vontade, transparecer a verdade. Toda açãoviolenta confunde e suprime as mínimas diferenças dos objetospor meio dos quais se distingue o verdadeiro do falso.

Essas verdades já eram conhecidas pelos legisladores ro­manos, entre os quais não era tolerado nenhum tipo de torturaa não ser para os escravos, aos quais era negada toda perso­nalidade. A tortura foi adotada pela Inglaterra, nação onde aglória das letras, a superioridade do comércio e das riquezas e,portanto, do poderio, e os exemplos de virtude e de coragem,não nos deixam duvidar da bondade das leis. A tortura desapareceuda Suécia, abolida por um dos monarcas mais sábios da Europa,19

(19) Frederico II, o Grande (1712-1786), foi rei da Prússia de 1740 a 1786.

o qual, tendo levado a ftlosofia ao trono, e sendo legislador amigodos súditos, os tomou iguais e livres na dependência das leis, únicaigualdade e única liberdade que possam homens razoáveis exigirdas coisas. A tortura não é julgada necessária pelas leis dosexércitos, formados na maior parte, pela ralé das nações que, porisso, pareceriam dela precisar mais do que qualquer outra classe.Estranha coisa para aquele que não considere quão grande é atirania do uso, que as pacíficas leis devem aprender dos coraçõesendurecidos pelas carnificinas e pelo sangue, o mais humanométodo de julgar.

Essa verdade é, certo, sentida, por fim, embora confusamen­te, por aqueles mesmos que dela se afastam. Não tem validadea confissão feita sob tortura, se não for confirmada por julga­mento, após a cessação do suplício, mas, se o réu não confirmao delito, é de novo torturado. Alguns doutores e algumas naçõesnão permitem essa infame petição de princípio senão por trêsvezes. Outras nações e outros estudiosos entregam-na ao arbítriodo juiz, de modo que, de dois homens, igualmente inocentes ouigualmente réus, o forte e o corajoso será absolvido, o fraco eo tímido será condenado, em virtude deste exato raciocínio: Eujuiz deveria julgar-vos culpados de tal delito; tu, que és forte,soubeste resistir à dor, e, por isso, te absolvo; tu, que és fraco,cedeste a ela, e, por isso, te condeno. Sinto que a confissãoarrancada entre suplícios não teria força nenhuma, mas nova­mente sereis torturado se não confirmardes a vossa confissão.

Estranha conseqüência que, necessariamente, decorre do usoda tortura, é que o inocente é posto em pior condição que oculpado. Realmente, se ambos são submetidos ao suplício, oprimeiro tem tudo contra si, uma vez que ou confessa o delitoe é condenado, ou é declarado inocente, mas sofreu penaindevida; ao passo que um caso é favorável ao culpado quando,resistindo à tortura com firmeza, deverá ser absolvido comoinocente, trocando a pena maior pela menor. O inocente, portanto,só tem a perder e o culpado só a ganhar.

A lei que ordena a tortura é a lei que diz: Homens, suportaia dor, e, se a natureza criou em vós inextinguível amor próprio,

66 DOS DELITOS E DAS PENAS

se ela vos deu o direito inalienável de vos defenderdes, despertoem vós o sentimento contrário, o heróico ódio de vós mesmose ordeno que sejais vossos próprios acusadores e que digais averdade embora vos estraçalhem os músculos e vos quebrem osossos.

A tortura aplica-se para descobrir se o réu cometeu outrosdelitos além daqueles de que é acusado, o que equivale aoseguinte raciocínio: Tu és culpado deste delito; é pois possívelque o sejas de cem outros delitos; esta dúvida me oprime e querocertificar-me com meu próprio critério da verdade; as leistorturam-te porque és culpado, porque podes ser culpado, porquequero que sejas culpado.

. Finalmente, a tortura é aplicada ao acusado para que sedescubram os cúmplices do seu crime, mas se foi demonstradoque ela não é meio adequado para descobrir a verdade, comopoderá servir para revelar os cúmplices, sendo esta uma dasverdades a serem descobertas? Como se o homem, que seacusasse a si mesmo, não iria acusar os outros mais facilmente.Será certo torturar um homem pelo crime alheio? Não serãodescobertos os cúmplices, interrogando as testemunhas e o réu,por meio das provas e pelo corpo de delito, em suma, por aquelesmesmos meios utilizados para comprovar o delito do acusado?Os cúmplices geralmente fogem imediatamente após a prisão docompanheiro. A incerteza de seu destino os condena, por si, aoexílio, e livra a nação do perigo de novos crimes, enquanto apena do réu, que está preso, alcança seu fim único, ou seja,afastar, pelo terror, outros homens de delito semelhante.

XVII

DO FISCO

H OUVE época em que quase todas as penas eram pecuniárias.Os delitos dos homens eram o patrimônio do príncipe.

Os atentados contra a segurança pública eram objeto de luxo.Quem devia defendê-la tinha interesse em vê-la lesada. O objetoda pena era, pois, o litígio entre o fisco (o cobrador dessas penas)e o réu. Tratava-se de negócio civil, contencioso, mais privadodo que público, que dava ao fisco direitos outros dos conferidospela defesa pública e ao réu outras culpas, além daquelas emque havia incorrido pela necessidade do exemplo. O juiz era,então, advogado do fisco, mais do que imparcial investigadorda verdade; agente do erário fiscal mais que protetor e ministrodas leis. Como, porém, nesse sistema, confessar-se culpado eraconfessar-se devedor do fisco, finalidade dos procedimentoscriminosos de então, assim a confissão do delito - confissãoelaborada de tal modo a favorecer e a não prejudicar os motivosfiscais - tomou-se, e ainda é (perdurando os efeitos muitíssimotempo após as causas), o centro em tomo do qual giram todosos mecanismos criminais. Sem ela, um réu, condenado por provasirrefutáveis, sofrerá pena menor que a prevista; sem ela, nãosofrerá a tortura por delitos da mesma espécie que possa tercometido. Com ela, o juiz apoderar-se-á do corpo do réu e otorturará com as metódicas formalidades de praxe, para extrair­lhe, como de um terreno adquirido, todo o proveito possível.

68 DOS DELITOS E DAS PENAS

Provada a existência do delito, a confissão constitui provaconvincente, e, para tomar menos suspeita essa prova arrancadacom os tormentos e o desespero da dor, determina-se ao mesmotempo que uma confissão extrajudicial tranqüila, indiferente, semos prepotentes temores de um tormentoso julgamento, não bastapara a condenação. Excluem-se as investigações e as provas queesclarecem o fato, mas enfraquecem as razões do fisco. Não éem favor da desgraça nem da fraqueza que se poupam às vezesos tormentos aos réus, mas em consideração das vantagens quepoderia perder o fisco, esse ente hoje imaginário e inconcebível.O juiz toma-se inimigo do réu, desse homem acorrentado,minado pela miséria e pela desolação, diante do mais negroporvir; não busca a verdade do fato, mas busca no prisioneiroo delito, prepara-lhe armadilhas, considerando-se perdedor se nãoconsegue apanhá-lo, e crê estar falhando naquela infalibilidadeque o homem se arroga em todas as coisas. Os indícios paraa prisão estão em poder do juiz; para que alguém prove serinocente deve. ser antes declarado culpado; chama-se a issoprocesso ofensivo, e são esses, por quase toda parte da esclarecidaEuropa do século dezoito, os procedimentos criminais. O ver­dadeiro processo, o informativo, isto é, a investigação objetivado fato, aquele que a razão ordena, que as leis militares adotam,usado até pelo próprio despotismo luxuriante,20 nos processostranqüilos e indiferentes, pouquíssimo utilizado nos tribunaiseuropeus. Que complicado labirinto de estranhos absurdos,incríveis sem dúvida para uma mais feliz posteridade! Somenteos filósofos desse tempo futuro lerão, na natureza do homem,a possível verificação de um tal sistema.

(20) No texto, está "asiático".

XVIII

DOS JURAMENTOS

CONTRADIÇÃO entre as leis e os sentimentos naturais dohomem nasce dos juramentos que se exigem do réu,

para que seja um verdadeiro homem, quando tem o máximointeresse em ser falso. Como se o homem pudesse jurar since­ramente, quando contribui para a própria destruição. Como se areligião não calasse, na maioria dos homens, quando fala ointeresse. A experiência de todos os séculos demonstrou que eíesabusaram, acima de tudo, deste precioso dom do céu. E por querazão deveriam os criminosos respeitá-lo, se os homens, conside­rados como os mais sábios, freqüentemente o violaram? Muitofracos, por serem remotos aos sentidos, são, em sua maioria, osmotivos que a religião contrapõe ao tumulto do medo e ao amorà vida. As questões do céu são regidas por leis totalmentediversas das que regem os negócios humanos. E por que razãocomprometer umas com as outras? Por que motivo colocar ohomem na terrível contradição de falhar em relação a Deus, oude concorrer para a própria ruína? A lei que obriga a taljuramento ordena que o homem seja mau cristão ou mártir. Ojuramento toma-se, pouco a pouco, mera formalidade, destruindoassim a força dos sentimentos religiosos, único penhor dahonestidade da maior parte dos homens. Quanto são inúteis osjuramentos, a experiência já o demonstrou, e qualquer juiz poderáser testemunha que juramento algum jamais fez o réu dizer a

70 DOS DELITOS E DAS PENAS

verdade. A própria razão demonstra isso, quando declara inúteise, conseqüentemente, danosas, todas as leis que se opõem aosnaturais sentimentos do homem. Acontece a essas leis o mesmoque acontece com as barreiras erguidas diretamente no curso deum rio, as quais ou são imediatamente rompidas e arrastadas,ou um turbilhão, por elas mesmas criadas, as corrói e as minainsensivelmente.

XIX

RAPIDEZ DA PENA

QUANTO mais rápida for a pena e mais próxima do crimecometido, tanto mais será ela justa e tanto mais útil.

Digo mais justa, porque poupa ao réu os tormentos cruéis einúteis da incerteza, que crescem com o vigor da imaginaçãoe com o sentimento da própria fraqueza; mais justa, porque aprivação da liberdade, sendo uma pena, só ela poderá precedera sentença quandQ a necessidade o exigir.IO cárcere é, assim,a simples guarda de um cidadão até que ele seja consideradoculpado, e sendo essa guarda essencialmente penosa, deverá duraro menor tempo possível e ser a menos dura que se possa. Essemenor tempo deve ser medido pela necessária duração doprocesso e pelo direito de anterioridade do réu ao julgamento.O tempo de recolhimento ao cárcere só pode ser o estritamenteindispensável quer para impedir a fuga, quer para que não sejamescondidas as provas do delito. O próprio processo deve serconcluído no mais breve espaço de tempo possível. Que contrastemais cruel existe do que a inércia de um juiz diante das angústiasde um réu? O conforto e os prazeres do magistrado insensível,de um lado, e, de outro lado, as lágrimas, a desolação do preso?Em geral, o peso da pena e a conseqüência do delito devemser mais eficazes para os outros e menos pesados para quemos sofre, pois não se pode chamar legítima sociedade àquela em

72 DOS DELITOS E DAS PENAS

que não vigore o princípio infalível segundo o qual os homenssão voluntariamente sujeitos aos menores males possíveis.

Disse que a prontidão da pena é mais útil porque, quantomais curta é a distância do tempo que se passa entre o delitoe a pena, tanto mais forte e mais durável é, no espírito humano,a associação dessas duas idéias, delito e pena, de tal modo que,insensivelmente, se considera uma como causa e a outra comoconseqüência, necessária e fatal. Está provado que a união dasidéias é o cimento que sustenta toda a fábrica do intelectohumano, sem a qual o prazer e a dor seriam sentimentos isoladose sem efeito algum. Quanto mais os homens se afastam das idéiasgerais e dos princípios universais, isto é, quanto mais eles sãovulgares, tanto mais agem em função das associações imediatase mais próximas, descuidando-se das mais remotas e complica­das. Estas servem apenas aos homens muito apaixonados peloobjeto que os atrai, pois a luz da atenção ilumina um só objeto,deixando os outros na escuridão. Servem, também, para asmentes mais elevadas, que adquiriram o hábito de examinarrapidamente muitos objetos de uma só vez, e têm a habilidadede contrapor uns aos outros muitos sentimentos parciais, de talmodo que o resultado, que é a ação, é menos perigoso e incerto.

Da mais alta importância, pois, é a proximidade entre o delitoe a pena, se se quiser que, nas rudes e incultas mentes, o sedutorquadro de um delito vantajoso seja imediatamente seguido da idéiaassociada à pena. A longa demora só produz o efeito de dissociarcada vez mais essas duas idéias e, também, de causar umaimpressão de que o castigo de um delito seja menos a de umcastigo que a de um espetáculo, e isso só acontecerá após ter­se enfraquecido nos espectadores o horror de um certo delito emparticular, que serviria para reforçar o sentimento da pena.

Outro princípio serve admiravelmente para restringir sempremais a importante conexão entre a infração e a pena, a saber, queesta seja, o mais possível, adequada à natureza do delito. Talanalogia facilita admiravelmente o contraste que deve haver entreo impulso para o delito e a repercussão da pena, de tal modoque esta afaste e conduza o ânimo a um fim oposto àquele parao qual procura encaminhá-lo a sedutora idéia da infração da lei.

XX

VIOLÊNCIAS

A LGUNS delitos são ~ten~ados contra ~ pe~soa, outros contraos bens. Os pnmeuos devem mfahvelmente ser pu­

nidos com penas corporais. Nem o poderoso, nem o rico deverãopôr a prêmio os atentados contra o fraco ~ o ~obre. I?e .outraforma, as riquezas que sob a tutela das leIS sao o prermo dahabilidade, tornar-se-iam o alimento da tirania. Não ~averá

liberdade sempre que as leis permitirem que, em cer:as clrcu~s­

tâncias o homem deixe de ser pessoa e se tome COlsa. VereIs,então, ~ poderoso concentrar toda sua habilidade ~ar~ e~trair damultiplicidade das combinações civis as que a leI dlspoe a seufavor. Tal descoberta é o segredo mágico que transforma oscidadãos em bestas de carga, que, nas mãos do forte, é a correnteque inibe as ações dos incautos e dos fra~os .. Por e~se motivo,em alguns governos que têm toda a aparencla de hberdade, atirania esconde-se ou infiltra-se, despercebida, em algum ângulodescuidado pelo legislador, ali tomando for~a e cresc~nd~ .. Oshomens erguem, na maioria dos casos, barreIras as maiS sohdasà tirania declarada mas não enxergam o inseto imperceptívelque os devora, e abrem, ao rio inundador, caminho tanto maisseguro quanto mais oculto.

PENAS APLICADAS AOS NOBRES 75

XXI

PENAS APLICADAS AOS NOBRES

QUAIS serão, então, as pelll1S aplicáveis aos delitos dosnobres, cujos privilégios formam grande parte das leis

das nações? Não examinarei aqui se tal distinção hereditária entrenobres e plebeus é útil ao governo ou necessária à monarquia.Se é verdade que forme poder intermediário que limite osexcessos dos dois extremos, ou se, antes, ela forma uma classe,escrava de si mesma e de outrem, que, como aquelas fecundase amenas ilhotas que se destacam nos arenosos e vastos desertosda Arábia, limitaria toda circulação de crédito e de esperançaa um círculo estreitíssimo. E, mesmo admitindo-se que adesigualdade fosse inevitável ou útil às sociedades, também écerto que ela deve consistir mais nas castas do que nosindivíduos, deve fechar-se, antes, numa única parte do quecircular por todo o corpo político, e antes perpetuar-se do quenascer e destruir-se incessantemente. Restringir-me-ei às únicaspenas aplicáveis a esta classe, aftrmando que elas devem ser asmesmas para o primeiro e para o último dos cidadãos. Todadistinção, nas honrarias ou nas riquezas, para ser legítima supõeuma anterior igualdade, fundada nas leis, que consideram todosos súditos igualmente dependentes delas. Devemos admitir queos homens que renunciaram ao despotismo natural, tenham dito:que o mais engenhoso tenha maiores honras e que sua fama

resplandeça em seus sucessores; e quem é mais feliz ou maishonrado tenha maiores aspirações, mas não tema, menos queos outros, violar os acordos com os quais se elevou acima dosoutros. É verdade que tais decretos não emanaram de assembléiasdo gênero humano, mas existem nas relações imutáveis dascoisas, e sem destruir aquelas vantagens que se supõem produ­zidas pela nobreza, impedindo-lhes os inconvenientes, tomandoas leis poderosas e fechando toda estrada à impunidade. A quemdisser que a pena aplicada ao nobre e ao plebeu não é realmentea mesma, em virtude da diversidade da educação e da infâmiaque se esparge sobre uma ilustre farmlia, responderei que asensibilidade do réu não é a medida das penas, mais sim o danopúblico, tanto maior quanto é produzido pelo ,mais fa~ore~idoe que a igualdade das penas só pode ser extnnseca, dlfenndorealmente de pessoa a pessoa, em cada indivíduo, e a infâmiade uma família inocente pode ser apagada pelo soberano comdemonstrações públicas de benevolência. E quem não sabe quesensíveis formalidades servem de razão ao povo crédulo eadmirador?

FURTOS 77

XXII

FURTOS

F URros destituídos de violência deveriam ser punidos compena pecuniária. Quem procura enriquecer à custa

alheia deve ser privado dos próprios bens, mas como habitual­mente esse é o delito da miséria e do desespero, o delito daquelaparte infeliz de homens a quem o direito de propriedade (direitoterrível e talvez desnecessário) não deixou senão uma existênciade privações; mas como as penas pecuniárias aumentam onúmero dos réus mais do que o número dos delitos, pois que,ao tirar o pão dos criminosos, acabam tirando-o dos inocentes,a pena mais oportuna será então a única forma de escravidãoque se pode chamar justa, ou seja, a escravidão temporária dostrabalhos e da pessoa a serviço da sociedade comum, pararessarci-la, com a própria e total dependência, do injustodespotismo exercido sobre o pacto social. Se, porém, o delitofor seguido de violência, a pena deve ser igualmente um mistode pena corporal e servil. Outros escritores demonstraram, antesde mim, a evidente desordem que nasce da não distinção daspenas dos furtos violentos das dos furtos dolosos, fazendoabsurda equação entre uma alta soma em dinheiro e a vida deum homem, mas nunca é supérfluo repetir aquilo que quase nuncafoi posto em prática. As máquinas políticas conservam mais doque quaisquer outras o ritmo que lhes foi impresso e são mais

lentas em adquirir outro. Esses delitos são de diferente natu~e~a,

sendo incontestável, mesmo em política, o axioma da matematlcapelo qual entre quantidades heterogêneas existe o infinito que

as separa.

INFÂMIA 79

XXIll

INFÂMIA

I NJÚRIAS pessoais e contrárias à hoora, isto é, à certa porçãode aprovação que o cidadão tem o direito de exigir dos

outros, devem ser punidas com a infâmia. Infâmia é o sinal dapública desaprovação que priva o réu do aplauso coletivo, daconfiança da pátria e daquela quase fraternidade que a sociedadeinspira. Ela não está ao arbítrio da lei. É preciso, pois, que ainfâmia da lei seja a mesma que nasce das relações entre ascoisas, a mesma da moral universal ou da moral particulardependente dos sistemas particulares, legisladores das opiniõesvulgares e da nação que a inspira. Se elas diferem umas dasoutras, ou a lei perde a veneração pública, ou as idéias da morale da probidade se esvaem, em que pesem os protestos, que nãoresistem aos exemplos. Quem declara infames as ações, por sisó indiferentes, diminui a infâmia das ações que são verdadei­ramente tais. As penas de infâmia não devem ser nem muitofreqüentes, nem incidir sobre grande número de pessoas simul­taneamente. No primeiro caso, os efeitos reais e por demaisfreqüentes das coisas de opinião enfraquecem a força da própriaopinião; no segundo caso, porque a infâmia de muitos acabareduzindo-se à infâmia de nenhum.

As penas corporais e aflitivas não devem ser aplicadas aosdelitos que, fundados no orgulho, retiram, da própria dor, glóriae alimento. A tais delitos convém o ridículo e a infâmia, penas

que freiam o orgulho dos fanáticos com o orgulho dos espec­tadores, e de cuja tenacidade a própria verdade só se liberta comlentos e obstinados esforços. Assim, opondo forças a forças eopiniões a opiniões, o sábio legislador anula a admiração e asurpresa despertadas no povo por um falso princípio, cuja absurdaorigem por suas bem deduzidas conseqüências costuma serescondida do povo.

Eis o modo de não confundir as relações e a naturezainvariável das coisas, a qual não sendo limitada no tempo, eoperando incessantemente, confunde e destrói todos os limitadosregulamentos que dela se afastam. Não apenas as artes do gostoe do prazer têm por princípio universal a imitação fiel danatureza, mas a própria política, ao menos a verdadeira e adurável, está sujeita a essa máxima geral, pois ela nada maisé do que a arte de melhor dirigir e de tomar cooperadores ossentimentos imutáveis dos homens.

OS OCIOSOS 81

XXIV

OS OCIOSOS

QUEM PERTURBA a tranqüilidade pública, quem não obedeceàs leis, isto é, às condições pelas quais os homens

se toleram e se defendem reciprocamente, deve ser excluídoda sociedade, ou seja, deve ser banido. Esta é a razão pelaqual os sábios governos não admitem, no seio do trabalho edas atividades, esse tipo de ócio político que austeros denun­ciantes confundiram com o ócio das riquezas acumuladas pelaatividade, ócio necessário e útil à medida que a sociedade seexpande e a administração se retrai. Denomino de ócio políticoaquele que não contribui para a sociedade nem com o trabalhonem com a riqueza e ganha sem jamais perder, ócio veneradopelo povo com estúpida admiração e é considerado pelo sábiocom desdenhosa compaixão de suas vítimas. Ocioso é aqueleque, sem o estímulo da vida ativa, que é a necessidade deconservar ou de aumentar os confortos da vida, transfere àspaixões de opinião, que não são as menos fortes, toda suaenergia. Não é politicamente ocioso quem goza dos frutos dosvícios ou das virtudes dos antepassados, e que, em troca deprazeres atuais, garante pão e existência à pobreza trabalhadora,a qual trava, em época de paz, tácita guerra, velada, daatividade com a opulência, em vez de incerta e sanguinolentaguerra com a força.

Não a austera e limitada virtude de alguns censores, massó as leis devem definir qual será o ócio que deve ser punido.

Parece que o banimento deveria ser aplicado àqueles que,acusados de atroz delito, tenham com grande probabilidade, masnão certeza, de ser julgados culpados. Para isso, porém, serianecessário um estatuto o menos arbitrário e o mais preciosopossível, o qual condenasse ao banimento quem tivesse colocadoa nação diante da fatal alternativa de temê-lo ou de ofendê-lo,deixando-lhe, entretanto, o sagrado direito de provar-lhe ainocência. Maiores deveriam ser os motivos contra o nacionaldo que contra o estrangeiro, contra o acusado pela primeira vez,do que contra quem o foi mais vezes.

BANIMENTO E CONFISCO 83

xxvBANIMENTO E CONFISCO

DEVERÁ, porém, aquele qoe é banido e excluído parasempre da sociedade da qual era membro ser privado

dos bens? Esta questão é suscetível de diversos aspectos. A perdados bens é pena maior que a do banimento. Deve, pois, havercasos em que, proporcionalmente ao delito, haja a perda de todosou de parte dos bens, e outros casos em que não. A perda totalocorrerá quando o banimento, previsto em lei, determinar orompimento de todos os laços entre a sociedade e o cidadãodelinqüente. Morre, então, o cidadão e permanece o homem, oque, com respeito ao corpo político, deverá produzir o mesmoefeito do que a morte natural. Dir-se-ia, pois, que os bensconfiscados ao réu deveriam reverter, de preferência, para oslegítimos sucessores mais do que para o príncipe, pois a mortee o banimento são o mesmo, relativamente ao corpo político.

Não é esse, porém, o pormenor que me leva a censurar oconfisco dos bens. Se alguns já sustentaram que Q confisco erao freio às vinganças e às prepotências privadas, não perceberamque, embora as penas produzam um bem, nem sempre são justas,pois, para serem justas, precisariam ser necessárias, e umainjustiça útil não pode ser tolerada pelo legislador que preten­desse fechar todas as portas à vigilante tirania, a qual seduz comum bem do momento e com a felicidade de alguns notáveis,desprezando o extermínio futuro e as lágrimas de muita gente

obscura. O confisco coloca a prêmio a cabeça dos fracos e fazrecair sobre o inocente a pena do culpado, deixando-o nadesesperada necessidade de cometer delitos. Que espetáculo maistriste do que o da família arrastada à infâmia e à miséria peloscrimes do chefe, cujos atas, por causa da submissão imposta pelasleis, ela não poderia impedir mesmo que dispusesse dos meiosde fazê-lo?

DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA 85

XXVI

DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA

E STAS funestas e autorizadas injustiças foram aprovadasmesmo pelos homens mais esclarecidos e praticadas

pelas repúblicas mais livres, por terem considerado a sociedademais como união de famílias do que como união de homens.Imaginemos cem mil pessoas, isto é, vinte mil famílias de cincopessoas cada uma, incluindo o chefe que a representa. Se aassociação for de famílias, haverá vinte mil pessoas livres eoitenta mil escravos. Se a associação for de pessoas, haverá cemmil cidadãos e nenhum escravo. No primeiro caso, haverá umarepública e vinte mil pequenas monarquias que a compõem e,no segundo caso, o espírito republicano não soprará apenas naspraças ou nas assembléias das nações, mas também entre asparedes domésticas, onde reside grande parte da felicidade ouda miséria dos homens. No primeiro caso, como as leis ecostumes são o efeito dos sentimentos habituais dos membrosda república, ou seja, dos chefes de família, o espírito monárquicointroduzír-se-á paulatinamente na própria república e seus efeitossó serão evitados pelos interesses opostos de cada um, mas nãopelo sopro do sentimento de liberdade e igualdade. O espíritode família é um espírito de detalhes, circunscrito a pequenosfatos. O espírito regulador das repúblicas, senhor dos princípiosgerais, vê os erros e os condensa nas classes principais eimportantes para o bem da maior parte. Na república de famílias,

OS filhos permanecem sob o pátrio poder do chefe, enquanto estevive, e são obrigados a esperar-lhe a morte para ter existênciaque dependa somente das leis. Acostumados a submeter-se e atemer, na idade mais verde e vigorosa, quando os sentimentossão menos modificados por aquele temor de esperança, deno­minado moderação, como resistirão eles aos obstáculos que ovício sempre opõe à virtude na lânguida e cadente idade, na qualtambém a desesperança de ver-lhes os frutos se opõe a vigorosasmudanças?

Quando a república é .de homens, a família não é subor­dinação de comando, mas de contrato, e os filhos, quando a idadeos liberta da dependência natural, que é a da fraqueza e danecessidade de educação e de proteção, se tomam livres membrosda cidade, sujeitando-se ao chefe da farmlia, na medida em queparticipam das mesmas vantagens, como os homens livres nagrande sociedade. No primeiro caso, os filhos, ou seja, a partemaior e a mais útil da nação, são entregues à discrição dos pais.No segundo caso, não subsiste nenhum outro laço obrigatório,a não ser o sagrado e inviolável dever de prestar, reciprocamente,a assistência recíproca, e da gratidão pelos benefícios recebidos,o que não é tão destruído pela malícia do coração quanto pelamal compreendida sujeição imposta pelas leis.

Essas contradições entre as leis de família e as leisfundamentais da república são fecunda fonte de outras contra­dições entre a moral privada e a moral pública e, por isso, geramperpétuo conflito no coração dos homens. A primeira inspirasujeição e temor; a segunda, coragem e liberdade. A primeiraensina a limitar a benevolência a pequeno número de pessoasque não foram escolhidas; a segunda, a estendê-la a toda classede homens, mas esta ordena o contínuo sacrifício de si a umídolo vão, chamado bem de família que, muitas vezes, não ébem de nenhum dos que a compõem. Esta ensina a servir opróprio interesse sem lesar as leis, ou estimula a imolar-se pelapátria com o prêmio do fanatismo que precede a ação. Taiscontrastes levam os homens a desdenhar o caminho da virtude,considerando-o emaranhado e confuso, porque nasce da obscu-

86 DOS DELITOS E DAS PENAS

ridade dos objetos tanto físicos quanto morais. Quantas vezeso homem, voltando-se para ações passadas, não se terá surpre­endido com a própria desonestidade? À medida que a sociedadecresce, cada um dos seus membros se torna parte menor do todoe o sentimento republicano diminui na mesma proporção, se asleis não tratarem de reforçá-lo. As sociedades, como o corpohumano, têm limites circunscritos e, crescendo elas para alémdesses limites, a economia perturba-se necessariamente. Pareceque a massa de um Estado deve estar na razão inversa dasensibilidade de quem o compõe, pois, do contrário, crescendouma e outra, as boas leis, ao prevenirem os delitos, encontrariamum obstáculo no próprio bem que produziram. Urna república,muito vasta, somente se salva do despotismo, subdividindo-see unindo-se em diversas repúblicas federativas. Mas como fazê­lo? Com um ditador despótico que tenha a coragem de um Sila 21

e tanto gênio para edificar quanto Sila teve para destruir. Se talhomem for ambicioso, a glória de todos os séculos o esperará;se for filósofo, as bênçãos de seus cidadãos o consolarão da perdade autoridade, a menos que ele se torne indiferente a essaingratidão. À medida que os sentimentos que nos unem à naçãose enfraquecem, adquirem força os sentimentos para com osobjetos circunstantes. Por isso, é sob o despotismo mais forteque as amizades são mais duráveis, e as virtudes de famílias,sempre medíocres, se tornam mais comuns, senão as únicas.Disto pode cada um ver quão limitadas são as vistas da maiorparte dos legisladores.

(~I) Ditador romano, nascido em 136 a.c. Companheiro e, depois, êmulode Mário, cônsul em 88, vencedor de Mitridates, chefe do partidoaristocrático e depois tirano de Roma. e de toda Itália. Exilou osadversários, reformou a Constituição Romana, favoreceu o Senado eadquiriu enorme influência. Renuncia inesperadamente, morrendo noano seguinte (80 a.C.).

XXVII

BRANDURA DAS PENAS

o CURSO, porém, das minhas idéias desviou-me do temaque devo, agora, apressar a esclarecer. Um dos

maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas, mas suainfalibilidade e, como conseqüência, a vigilância dos magistradose a severidade de um juiz inexorável que, para ser uma virtudeútil, deve ser acompanhada de uma legislação branda. A certezade um castigo, mesmo moderado, sempre causará mais intensaimpressão do que o temor de outro mais severo, unido àesperança da impunidade, pois, os males, mesmo os menores,quando certos, sempre surpreendem os espíritos humanos, en­quanto a esperança, dom celestial que freqüentemente tudo supreem nós, afasta a idéia de males piores, principalmente quandoa it'npunidade, outorgada muitas vezes pela avareza e pelafraqueza, fortalece-lhe a força. A própria atrocidade da pena fazcom que tentemos evitá-la com audácia tanto maior quanto maioré o mal e leva a cometer mais delitos para escapar à pena deum só. Os países e as épocas em que os suplícios mais atrozesforam sempre os das ações mais sanguinárias e desumanas, poiso mesmo espírito de crueldade que guiava a mão do legisladorregia a do parricida e a do sicário. Do trono, ditava leis férreasa ânimos torturados de escravos, que obedeciam. Na íntimaescuridão, estimulava a imolação para criar outros novos.

88 DOS DELITOS E DAS PENAS BRANDURA DAS PENAS 89

À medida que as torturas se tomam mais cruéis, o espíritohumano que, como os fluidos, se nivela sempre com os objetoscircunstantes, endurecem, e a força sempre viva das paixões fazcom que, após cem anos de cruéis suplícios, a roda cause tantotemor quanto antes a prisão causava. Para que a pena produzaefeito, basta que o mal que ela inflige exceda o bem que nascedo delito e, nesse excesso de mal, deve ser calculada ainfalibilidade da pena e a perda do bem que o crime deveriaproduzir. O resto é supérfluo e, portanto, tirânico. Os homensregulam-se pela repetida ação dos males que conhecem e nãopela dos que ignoram. Consideremos duas nações, numa dasquais, na escala das penas proporcional à escala dos delitos, apena maior seja a escravidão perpétua e, na outra, a roda.Sustento que a primeira terá tanto temor de sua maior quantoa segunda, e, se houvesse razão para transferir-se para a primeiraas penas maiores da segunda, a mesma razão serviria paraaumentar as penas desta última, passando insensivelmente daroda para os tormentos mais lentos e requintados, até os últimosrefinamentos da ciência mais conhecida dos tiranos.

Duas outras danosas conseqüências derivam da crueldadedas penas, contrárias ao próprio fim de prevenir os delitos. Aprimeira é que não é tão fácil preservar a proporção essencialentre delito e pena, porque, embora uma engenhosa crueldadetenha contribuído para fazer variar grandemente suas espécies,a pena, não pode, ainda assim, ultrapassar a última força a queestão limitadas a organização e a sensibilidade humana. Alcan­çado esse extremo, não se encontrariam penas maiores corres­pondentes aos delitos mais danosos e atrozes, o que seriaoportuno para preveni-los. Outra conseqüência é que a própriaimpunidade nasce da atrocidade dos suplícios. Os homens estãocircunscritos a certos limites, tanto no que se refere ao bemquanto no que se refere ao mal, e um espetáculo muito atrozpara a humanidade só pode constituir um ódio passageiro, nunca,porém, sistema constante, como devem ser as leis, pois, se estasrealmente fossem cruéis, ou seriam alteradas ou, então, fatalmen­te dariam nascimento à impunidade.

Quem, ao ler a história, não se horripila diante dos bárbarose inúteis tormentos, friamente criados e executados, por homensque se diziam sábios? Quem não estremecerá, até em sua célulamais sensível, ao ver milhares de infelizes que a miséria,provocada ou tolerada por leis que sempre favoreceram a minoriae prejudicaram a maioria, forçou a desesperado regresso aoprimitivo estado da natureza, ou acusados de delitos impossíveis,criados pela tímida ignorância, ou réus julgados culpados apenaspela fidelidade aos próprios princípios, esses infelizes acabammutilados por lentas torturas e premeditadas formalidades, oriun­das de homens dotados dos mesmos sentimentos e, por conse­guinte, das mesmas paixões, em alegre espetáculo para a fanáticamultidão?

DA PENA DE MORTE 91

xxvm

DA PENA DE MORTE

A INúTIL quantidade de suplícios, que nunca tomou oshomens melhores, levou-me a indagar se a morte é

verdadeiramente útil e justa, em governo bem organizado. Qualpoderá ser o direito que o homem tem de matar seu semelhante?Certamente não é o mesmo direito do qual resultam a soberaniae as leis. Estas nada mais são do que a soma de pequeninasporções da liberdade particular de cada um, representando avontade geral, soma das vontades individuais. Que homem,porém, outorgará a outro homem o arbítrio de matá-lo? Comopoderá haver, no menor sacrifício da liberdade de cada um, osacrifício do bem maior de todos os bens, que é a vida? Se assimfosse, como se harmonizaria tal princípio com o de que o homemnão tem o direito de matar-se? Não deveria porventura ter eleesse mesmo direito, se resolveu outorgá-lo a outrem ou a todaa sociedade?

A pena de morte não é, portanto, um direito, já quedemonstrei que isso não ocorre, mas é a guerra da nação contrao cidadão, que ela julga útil ou necessário matar. Se, no entanto,eu demonstrar que a morte não é útil nem necessária, tereivencido a causa da humanidade. A morte de um cidadão nãopode crer-se necessária a não ser por dois motivos: o primeiro,quando, também privado da liberdade, ele tenha ainda relaçõese poder tais que possam afetar a segurança da nação; o segundo,

quando sua existência possa produzir perigosa r~vol~ção para aforma de governo estabelecida. A morte do cldadao toma-seassim necessária, quando a nação recupera ou perde a liberdade,ou, em época de anarquia, quando as próprias desordens tomamo lugar das leis, mas, sob o reinado tranqüilo das leis, sob formade governo que reúna os votos da nação, bem amparada externae internamente pela força e pela opinião, talvez mais eficaz quea própria força, onde o comando só é exercido pelo própriosoberano e onde as riquezas compram prazeres, e não autoridade,não vejo nenhuma necessidade de destruir o cidadão, a não serque tal morte fosse o único e verdadeiro meio capaz de i~~edir

que outros cometessem crimes, razão suficiente que tornana Justae necessária a pena de morte.

Ainda que a experiência de todos os séculos, em que oúltimo dos castigos tivesse refreado os homens decididos aofender a sociedade, ainda que o exemplo dos cidadãos romanose vinte anos de reinado da imperatriz Isabel de MOSCOU,22 aolongo dos quais ela deu, aos ancestrais dos. povos, i~~stre

exemplo, que equivale a pelo menos muitas conqUIstas adqumdascom o sangue dos filhos da pátria, não convencessem os homens,para quem a linguagem da razão é sempre suspeita, porém éeficaz a da autoridade, bastaria consultar a natureza do homempara perceber a verdade da minha assertiva.

Não é o grau intenso da pena que produz maior impressãosobre o espírito humano, mas sim sua extensão, pois a sensi­bilidade humana é mais facilmente e mais constantemente afetadapor impressões mínimas, porém renovadas, do que por abalointenso mas efêmero. A força do hábito é universal, em cada

, A ,

ser sensível, e, assim como o homem fala, anda e prove aspróprias necessidades por seu intermédio, assim também as idéiasmorais só se imprimem na mente por impressões duráveis erepetidas. Não é o terrível, mas passageiro, espetáculo da mortede um criminoso, mas sim o longo e sofrido exemplo de um

(22) Isabel Petrovna (1709-1762), Isabel de Moscou, ou da Rússia, filhade Pedro o Grande e de Catarina Primeira (1684-1727), que subiuao trono em 1741.

92 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 93

homem, privado da liberdade, e que, convertido em animalreco~p~nsa c?m a. fadiga a sociedade que ofendeu, é queC?nStItUl o freIo mais forte contra os delitos. A repetição paraSI mesmo, eficaz por seu insistente refrão, eu mesmo sereireduzido a longa e mísera condição, se cometer semelhantesdelitos, é Amuito mais forte do que a idéia da morte, que oshomens veem numa obscura distância.

A pena de morte causa tal impressão que, embora fortenão suprime o rápido esquecimento, que é pertinente ao homem:mesmo nas coisas essenciais, acelerados pelas paixões. Regrager~l, as paixões violentas surpreendem os homens, mas não pormUlto tempo; e, embora sejam elas aptas a fazer as revoluçõesque de homens comuns fazem persas ou lacedemônios e livree tranqüilo governo, as impressões devem ser mais fr;qüentesdo que fortes.

. A pena de ~~rte torna:se espetáculo para a maioria e objetomIsto de compa1xao e desdem para poucos. Ambos os sentimen­tos ocupam mais o espírito dos espectadores do que o salutarterror que a lei pretende inspirar, mas, nas penas moderadas econ~ín~as, o sentimento predominante é o último, porque único.O hm1te, ~~e o legislador deveria fixar para o rigor das penas,parece reSIdIr no sentimento de compaixão, quando este começaa prevalece.r sobre qualquer outro, no ânimo dos espectadoresd~ um castigo, reservado mais para eles do que para o próprio'reu.

Para ~ue a. pena seja justa, só deve ter os indispensáveisgra~s de mtenS1dade suficientes para afastar os homens dosdehtos; ora não há ninguém que, refletindo a respeito, possaescolher ~ total e perpétua perda da liberdade, por mais vantajosoque o dehto possa ser. Assim, a intensidade da pena de escravidãop~rpétu~, substi!~indo ~ pena de .morte, contém o suficiente parad.1ssuad1r o espmto maiS determmado. Acrescento mais: muitís­SImos homens encaram a morte com o semblante tranqüilo efirme, alguns por fanatismo, outros por aquela vaidade que quase~e~pre acompanha o homem depois da morte. Outros, ainda, naultima e desesperada tentativa de não viver ou de sair da misériamas, nem o fanatismo nem a vaidade subsistem entre cepos ~

cadeias, sob o bastão ou sob o jugo. Atrás de gaiolas de ferro,o deseperado não põe fim a seus males, mas apenas os começa.Nosso espírito resiste mais à violência e às dores extremas, maspassageiras, do que ao tempo e ao incessante tédio, porque,concentrado, em si mesmo, por um instante, o espírito poderepelir as primeiras, mas sua vigorosa elasticidade não basta pararesistir à longa e repetida ação dos últimos. Com a pena de morte,cada exemplo, dado ao país, supõe um delito. Na pena deescravidão perpétua, um único delito oferece muitíssimos eduráveis exemplos, e, se é importante que os homens vejamsempre o poder da leis, a pena de morte não deve ser muitodistante entre si. Por isso, elas supõem a freqüência dos delitos.Portanto, para que este suplício seja útil, é preciso que nãoproduza, nos homens, a impressão que deveria causar, isto é,que seja útil e inútil ao mesmo tempo. Se alguém disser quea escravidão perpétua é tão dolorosa quanto a pena de morte,e, portanto, igualmente cruel, responderei que, somados todosos momentos infelizes da escravidão, ela talvez o será mais, masesses momentos são espalhados pela vida toda, enquanto a morteconcentra toda a força num só momento. E é esta a vantagemda pena de escravidão, que intimida mais quem a vê do quequem a sofre, porque o primeiro analisa a soma de todos osmomentos infelizes, enquanto o segundo se abstrai da infelici­dade futura pela infelicidade presente. Todos os males aumentamna mente e quem sofre acha recurso e consolo desconhecidos,jamais imaginados pelos espectadores, que substituem a própriasensibilidade pelo espírito acostumado do infeliz.

O ladrão ou o assassino, cujo único contrapeso para nãoviolar as leis seja a forca ou a roda, raciocina mais ou menosdo seguinte modo (sei que desenvolver os sentimentos do próprioespírito é arte que se aprende com a educação, mas se o ladrãonão souber expressar com propriedade seus princípios, nem porisso deixarão eles de atuar): Que leis são essas que devo respeitare que põem tão grande distância entre minha pessoa e a dorico? Ele me nega o centavo que lhe peço e se desculpa,mandando-me trabalhar, fazendo o que ele mesmo não sabefazer. Quem fez essas leis? Homens ricos e poderosos, que nunca

94 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 95

se propuseram a visitar os míseros casebres do pobre, que nuncaprecisaram repartir o pão amanhecido entre os gritos inocentesdos filhos famintos e as lágrimas da mulher. Quebremos esteslaços fatais à maioria e úteis a uns poucos tiranos preguiçosos.Ataquemos a injustiça na fonte. Voltarei ao meu estado deindependência natural, viverei livre e feliz por algum tempo comos frutos da minha coragem e do meu trabalho. Talvez chegueo dia da dor e do arrependimento, mas esse tempo será breve,e terei um dia de privação, ao invés de muitos anos de liberdadee de prazeres. Rei de pequeno número, corrigirei os erros dodestino, e verei os tiranos empalidecerem e tremerem diantedaqueles que os preteriram, com fausto ultrajante, e que elescolocaram abaixo de seus cavalos e cães. A religião, nesse caso,sobe à cabeça do criminoso que abusa de tudo e, apresentando­lhe fácil arrependimento e quase certa felicidade etema, minimizarásensivelmente o horror dessa última tragédia.

Aquele, porém, que vê, diante dos olhos, longos anos, oumesmo o curso de toda uma vida que passaria na escravidãoe na dor, exposto ao olhar dos concidadãos, com quem convivialivre e socialmente, escravo das mesmas leis que o protegiam,fará inútil comparação de tudo com a incerteza do êxito de seuscrimes, cujos frutos gozará por breve tempo. O exemplo contínuodos que ele contempla atualmente, vítimas da própriaimprevidência, causa-lhe impressão muito mais forte do que oespetáculo do suplício que o embrutece mais do que o corrige. .

A pena de morte também não é útil pelo exemplo decrueldade que oferece ao homem. Se as paixões ou as neces­sidades da guerra o ensinaram a derramar o sangue humano, asleis moderadoras da conduta do homem não deveriam aumentarjamais o feroz exemplo, tanto mais funesto quanto mais a mortejurídica é ministrada com estudo e com formalidade. Pareceabsurdo que as leis, expressão da vontade pública, que repeleme punem o homicídio, o cometam elas mesmas e que, paradissuadir os cidadãos do assassinato, ordenem o homícidiopúblico. Quais são as verdadeiras e mais úteis leis? São todosos pactos e todas as condições que os homens desejariam propore observar, enquanto a voz sempre presente do interesse privado

se cala ou se funde com a do interesse público. Quais são as.opiniões de cada um sobre a pena de morte? Elas manifes~am­

se nos atos de indignação e de desprezo de cada um ao aVIstaro carrasco, que é, no entanto, mero e inocente executor. davontade pública, bom cidadão que contribui para o bem coletlvo,instrumento necessário à segurança pública interna, co~o ?Svalorosos soldados o são para a segurança externa. Qual e, pOiS,a origem dessa contradição? E por que ~sse sentimento, adespeito da razão, é indelével nos homens? E qu~,. no fundo deseus corações, onde mais se preserva a forma on~mal ~a vel~anatureza os homens sempre acreditaram que sua VIda nao podIaestar e~ poder de ninguém, a não ser da necessidade, que regeo universo com mão de ferro.

Que devem pensar os homens ao ver os .sá~ios magistra~~se os graves sacerdotes da justiça, que com mdlferente tranqm­lidade e aparato vagaroso conduzem o réu à morte? Enquantoo miserável se debate, em sua derradeira angústia, à espera dogolpe de misericórdia, continua o juiz, com ins~n~ível fri~za, e,quem sabe, com secreta complacência pela propna au~ond~d:,a degustar o conforto e os prazeres da vida. Essas leiS, dlraoos homens, nada mais são do que pretextos da força e asformalidades cruéis e meditadas da justiça n~o passam delinguagem convencional para imolar-nos con; mal~r se~~rança,

como vítimas imoladas, em sacrifício, ao laolo msaczavel do

despotismo. . , .Vemos praticar sem repugnância e sem furor o homlclalO,

que nos é apontado como um crime. terrível. Aprove!temo~ esteexemplo! Nas descrições que nos fazzam da morte, nos a vzam~s

violenta como uma cena terrível. Vemo-la agora como questaode um momento. E menos ainda ela será para aquele que, nãolhe estando à espera, se vê poupado de tudo o que ela tem dedoloroso! Tais são os funestos paralogismos que, se não comclareza confusamente pelo menos, tornam os homens propensosaos deiitos, nos quais, como vimos, o abuso da religião pode

/ mais do que a própria religião.Se me refutarem, invocando os exemplos de quase todos

os séculos e de quase todas as nações que aplicaram a pena

96 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 97

de morte a certos crimes, responderei que esse exemplo seanula diante da verdade, contra a qual não corre a prescrição;que a história da humanidade nos dá a idéia de imenso oceanode erros, do qual emergem, a grandes intervalos, algumaspoucas verdades confusas. Sacrifícios humanos eram cpmunsem quase todas as nações, mas quem ousará desculpá-los? Ofato de que algumas sociedades tenham abolido por poucotempo a pena de morte, mais me favorece do que me desabona,porque o destino das grandes verdades é o de não durar maisdo que um relâmpago, em comparação com a longa e tenebrosanoite que envolve os homens. Ainda não chegou a épocaafortunada em que a verdade, como o erro até agora, pertenceráà maioria. Dessa lei universal só se subtraíram até agora asgrandes verdades que a Sabedoria infinita quis separar dasoutras por meio da Revelação.

A palavra do filósofo é muito débil contra os tumultos eos gritos dos que são guiados pelos cegos costumes, mas ospoucos sábios que estão espalhados pela face da terra acompa­nharão a minha voz, no fundo de seus corações e, se a verdadepudesse alcançar o trono, entre os infinitos entraves que a afastamdo monarca, malgrado seu, saiba ele que ela trouxe consigo osvotos secretos de todos os homens. Saiba ele que se calará nasua presença a fama sangrenta dos conquistadores e que a justaposteridade lhe reservará o primeiro lugar entre os pacíficostroféus dos Titos,23 dos Antoninos 24 e dos Trajanos.25 '

(23) Tito, filho de Vespasiano, imperador romano de 76 a 81, cognominadoas delícias do gênero humano, por causa dos grandes benefícios feitosao povo. "Perdi meu dia" (Diem perdidi) tinha o hábito de dizer,quando passava um dia sem que tivesse tido ocasião de praticar algumaboa ação.

(24) Antonino, o Piedoso ou o Pio, foi um dos sete imperadores romanos(Nerva, Trajano, Adriano, Antonino, Marco Aurélio, Vero e Cômodo),que reinaram de 96 a 192, caracterizando-se seu governo, de 138 a161, por notável espírito de modemção e de justiça.

(25) Tmjano, um dos imperadores Antoninos, grande organizador, quereinou de 98 a 117 p.c.

f.

Feliz a humanidade se, pela primeira vez, lhe forem ditadasleis, agora que, repostos nos tronos da Europa monarcas ben­feitores, cujo aumento de autoridade das pacíficas virtudes, dasciências e das artes, pais de seus povos, cidadãos coroados, cujoaumento de autoridade forma a felicidade dos súditos, porquecorta o intermediário despotismo, mais cruel, porque menosseguro, do qual vinham sufocados os votos sempre sinceros dopovo e sempre gratos quando podem unir-se ao trono! Digo quese esses monarcas deixam subsistir as leis antigas, isto nasceda infinita dificuldade de expurgar dos erros a venerandaferrugem de muitos séculos, e isto é motivo para os cidadãosesclarecidos desejarem, com maior entusiasmo, o contínuocrescimento de sua autoridade.

DA PRISÃO 99

XXIX

DA PRISÃO

E RRO NÃO menos comum, pnrque contrário ao fim social,que é a opinião da própria segurança, é deixar ao

magistrado, executor das leis, o alvedrio de prender o cidadão,de tirar a liberdade do inimigo sob frívolos pretextos e de deixaro amigo impune, mesmo havendo os mais fortes indícios deculpabilidade. Prisão é pena que, por necessidade, deve, diver­samente de todas as outras, ser precedida da declaração do delito,mas este caráter distintivo não lhe tira o outro traço essencial,a saber, que somente a lei determine os casos em que o homemmerece a pena. Assim, a lei apontará os indícios do delito queexige a guarda do réu, sujeitando-o a um interrogatório e a umapena. O clamor público, a fuga, a confissão extrajudicial, odepoimento do companheiro do delito, as ameaças e a constanteinimizade com o ofendido, o corpo de delito e indícios seme­lhantes são provas suficientes para prender o cidadão, mas taisprovas devem ser enumeradas pela lei e não pelo juiz, cujosdecretos são sempre opostos à liberdade política, quando nãosejam proposições particulares de uma máxima geral, existenteno código público. À medida que as penas forem moderadas,que a desolação e a fome forem eliminadas das prisões, que,enfim, a compaixão e a humanidade adentrarem as portas de ferroe prevalecerem sobre os inexoráveis e endurecidos ministros dajustiça, as leis poderão contentar-se com indícios sempre mais

fracos para a prisão. O homem acusado de delito, encarceradoe depois absolvido, não deveria trazer consigo nenhuma nota deinfâmia. Quantos romanos acusados de delitos gravíssimos, edepois considerados inocentes,· foram reverenciados pelo povoe honrados com magistraturas! Por que razão, pois, é tãodiferente, em nossos dias, a absolvição de um inocente? É porque,no sistema penal de hoje, segundo a opinião dos homens,prevalece a idéia da força e da prepotência sobre a da justiça;porque se atiram, indistintamente, no mesmo cárcere, não só osacusados como os condenados, porque a prisão é mais lugar desuplício do que de custódia do réu e porque a força interna, tutoradas leis, é separada da força externa, defensora do trono e danação, quando deveriam estar unidas. Assim, a primeira, porcausa do apoio comum das leis, seria combinada com a faculdadede julgar, sem depender de sua autoridade imediata, e a glória,que acompanha a pompa e o fausto de um corpo militar, tolheriaa infâmia, a qual, como todos os sentimentos populares, está maisligada ao modo do que à coisa, o que está provado por seremas prisões militares, na opinião comum, não tão infamantes comoas forenses. Perduram ainda, no povo, nos costumes e nas leis,sempre atrasadas em mais de um século, de bondade em relaçãoàs luzes atuais de uma nação, as bárbaras impressões e as ferozesidéias dos nossos pais setentrionais caçadores.

Sustentaram alguns que, onde quer que se cometa o crime,isto é, a ação contrária às leis, possa ele ser punido, como seo caráter do súdito fosse indelével, sinônimo, ou, pior ainda, dode escravo. Como se alguém pudesse ser súdito de um lugare habitar em outro e suas ações pudessem, sem contradição,subordinar-se a dois soberanos e a dois códigos, muitas vezescontraditórios. Alguns crêem igualmente que uma ação cruel,praticada, por exemplo, em Constantinopla, possa ser punida emParis, pela abstrata razão de que quem ofende a humanidademerece ter toda a humanidade como inimiga, bem como aexecração pública, como se os juízes vingadores o fossem dasensibilidade dos homens mais do que dos pactos que os ligamentre si. O lugar da pena é o lugar do delito, porque aí somente,

100 DOS DELITOS E DAS PENAS

e não em outro lugar, os homens são obrigados a ofender umparticular para prevenir a ofensa pública. O criminoso que nãotenha infringido os pactos de uma sociedade da qual não eramembro, pode ser temido e, por isso, exilado e excluído pelaforça superior da sociedade, mas não punido com as formalidadesdas leis asseguradoras dos pactos desse país, nem por causa damalícia intrínseca de suas ações.

Costumam os réus de delitos mais leves ser punidos ou coma escuridão de uma prisão, ou ser enviados, como exemplo, auma longínqua, e, portanto, quase inútil escravidão, a nações quenão ofenderam. Se os homens, num momento, não se decidema cometer os mais graves delitos, a pena pública, para uma grandeinfração, será considerada pela maioria como estranha e impos­sível de ocorrer, mas a pena pública de delitos mais leves, dosquais o espírito está mais próximo, causará sobre ele impressãoque, desviando-lhe a atenção destes últimos, o afastará ainda maisdos delitos mais graves. Não devem as penas ser somenteproporcionais entre si e aos delitos, em intensidade, apenas, mastambém no modo de aplicação. Alguns eximem de pena opequeno delito, quando o ofendido o perdoa, ato este conformeà benevolência, à humanidade, mas contrário ao bem público,como se o particular pudesse, dando o perdão, ~liminar anecessidade do castigo, da mesma forma que pode renunciar aoressarcimento da ofensa. O direito de mandar punir não é deum só, mas de todos os cidadãos ou do soberano. Ele poderenunciar somente à sua porção de direito, mas não anular a dosoutros.

xxxPROCESSOS E PRESCRIÇÕES

C ONHECIDAS as provas e calculada a certeza do crime,necessário é conceder ao réu tempo e meios conve­

nientes para justificar-se, mas tempo bastante breve, que nãoprejudique a rapidez da pena, que, como vimos, é um dosprincipais freios dos delitos. Um mal entendido amor pelahumanidade parece contrário a essa brevidade de tempo, masqualquer dúvida desaparecerá se se refletir que os perigos paraos inocentes crescem com os defeitos da legislação.

As leis, porém, devem fixar um certo prazo de tempo, tantopara a defesa do réu como para as provas dos delitos, e o juizse tornaria legislador se acaso decidisse sobre o tempo necessáriopara a prova do delito. Do mesmo modo, os crimes cruéis quepermanecem longo tempo na lembrança dos homens, assim queprovados, não merecem prescrição alguma em favor do réu, quese livra pela fuga. Nos delitos menores e obscuros, entretanto,a prescrição deve pôr fim à incerteza do cidadão quanto à suasorte, pois a obscuridade, envolvendo por muito tempo os delitos,anula o exemplo da impunidade, deixando, entretanto, ao réu,a possibilidade de redimir-se. Basta-me aqui indicar essesprincípios, pois só se pode fixar limite preciso para cadalegislador, dadas as circunstâncias de uma dada sociedade.Acrescentarei somente que, provada a utilidade das penasmoderadas duma nação, as leis que, proporcionalmente à gra-

102 DOS DELITOS E DAS PENAS PROCESSOS E PRESCRIÇÕES 103

vidade dos delitos, reduzem ou acrescem seu tempo da prescri­ção, ou o prazo das provas, contando o encarceramento ou oexílio voluntário como integrante da pena, chegarão facilmentea estabelecer a classificação de poucas penas suaves para grandenúmero de delitos.

Tais prazos, porém, não aumentarão, na mesma proporçãoda atrocidade dos delitos, uma vez que a probabilidade doscrimes está na razão inversa de sua crueldade. Será preciso, pois,reduzir o tempo de instrução e aumentar o da prescrição, o queparece contradizer minha afirmação anterior, isto é, que penasiguais possam ser aplicadas a delitos desiguais, contando comopena o tempo de prisão ou de prescrição, anteriores à sentença.Para explicar ao leitor minha idéia, distingo duas espécies dedelitos: a primeira é a dos delitos atrozes, que começam pelohomicídio e que compreendem todos os ulteriores atos crimi­nosos; a segunda é a dos delitos menores, distinção esta que temfundamento na natureza humana. A segurança da própria vidaé um direito natural, a segurança dos bens é um direito social.O número de motivos que impelem os homens além do naturalsentimento de piedade é muito inferior ao número de motivosque, pela natural ambição de serem felizes, os induzem a violaro direito que não encontram em seus corações, mas sim nasconvenções sociais. A maior diferença de probabilidades entreessas duas espécies de delitos exige que se regulem por princípiosdiferentes. Nos delitos mais graves, por serem mais raros, devereduzir-se o tempo de instrução por causa da maior probabilidadede inocência do réu, devendo aumentar o prazo da prescrição,pois da sentença definitiva da inocência ou da culpabilidade deum homem depende o fim de sua ilusão de impunidade, cujosdanos aumentam conforme a gravidade do delito. Nos delitosmenores, porém, sendo menos provável a inocência do réu,deverá somar-se o tempo da instrução e, sendo menores os danosda impunidade, será menor o prazo da prescrição. Essa distinçãodos delitos em duas espécies não seria admissível, se o riscoda impunidade diminuísse na proporção da probabilidade dodelito. Observe-se que o acusado, do qual não se provou nem

a inocência nem a culpabilidade, embora absolvido por falta deprovas, poderá sujeitar-se, pelo mesmo delito, a nova prisão ea novos interrogatórios, se surgirem novos indícios previstos emlei, enquanto não tenha decorrido o prazo de prescrição fixadopara o crime. Esse, pelo menos, é o critério que creio oportunopara defender não somente a segurança como também a liberdadedos súditos, pois muito facilmente se pode favorecer uma como prejuízo da outra, já que estes dois bens, que formam oinalienável e igual patrimônio de cada cidadão, não sejamprotegidos e custodiados, o primeiro, pelo aberto ou mascaradodespotismo, o outro pela turbulenta anarquia popular.

DELITOS DE PROVA DIFíCIL 105

XXXI

DELITOS DE PROVA DIFÍCIL

E M RAZÃo destes princípios, parecerá estranho, a quem nãopercebe que a razão quase nunca é a legisladora das

nações, que os delitos mais cruéis ou os mais obscuros equiméricos, isto é, aqueles cuja improbabilidade for maior, sejamprovados pelas conjecturas e pelas provas mais frágeis eequívocas. Como se o interesse das leis e dos juízes não fosseo de buscar a verdade, mas o de provar o delito. Como secondenar o inocente não fosse perigo tanto maior quanto maiora probabilidade da inocência relativamente à do crime. Falta, namaioria dos homens, o vigor necessário tantQ para os grandesdelitos como para as grandes virtudes, razão pela qual me pareceque ambas andam sempre juntas nas nações que se apóiam naatividade do governo e das paixões que conspiram contra o bemcomum, do que no povo ou na constante excelência das leis.Nessas nações, as paixões enfraquecidas parecem mais inclinadasa manter do que a melhorar a forma de governo. Disto se infereconseqüência importante, a de que nem sempre numa nação aocorrência de grandes delitos prova o seu declínio.

Há alguns delitos que são, ao mesmo tempo, freqüentes nasociedade, e difíceis de serem provados, e, neles, a dificuldadeda prova vale como a probabilidade da inocência, e sendo o danoda impunidade tanto menos apreciável quanto mais a freqüênciadesses delitos depende de princípios diversos, do perigo da

impunidade, a duração da instrução e o tempo da prescriçãodevem ser reduzidos igualmente. E, todavia, o adultério e alibidinagem grega 26, delitos de difícil prova, são aqueles que,segundo os princípios admitidos, acolhem as presunções tirâni­cas, as quase-provas, as semi-provas (como se se pudesse sersemi-inocente ou semi-culpado, isto é, semi-absolvível ou semi­punível), onde a tortura exerce cruel império sobre a pessoa doacusado, sobre as testemunhas e até mesmo sobre toda a famíliade um infeliz, como ensinam, com iníqua frieza, alguns doutoresque indicam aos juízes a norma e a lei.

Adultério é crime que, considerado politicamente, encontraforça e direção em duas razões: as leis variáveis dos homense a fortíssima atração 27 que impele um sexo para o outro; estaé semelhante, em muitos casos, à gravitação motriz do universo,porque, da mesma maneira, diminui com a distância; e, se umamodifica todos os movimentos dos corpos, a outra age sobrequase todos os movimentos do espírito, enquanto dura o seuperíodo, diferindo no fato de que a força de gravidade se equilibracom os obstáculos que encontra, mas a atração entre os sexosgeralmente adquire força e vigor com o crescimento dos própriosobstáculos.

Se eu tivesse que dissertar a nações ainda privadas da luzda religião, diria que há ainda considerável diferença entre estedelito e os outros, porque este deriva do abuso de umanecessidade constante e universal a toda a humanidade, neces­sidade anterior e, aliás, fundadora da própria sociedade, onde psoutros delitos destruidores dessa sociedade têm origem determi­nada mais em paixões momentâneas do que em necessidadenatural. Para quem conhece a história e o homem, tal neces-

(26) Refere-se à sodomia.(27) "Esta atração se parece sob vários aspectos com a gravitação universal.

A força dessas causas diminui com a distância. Se a gravitação modificaos movimentos dos corpos, a atração natural de um sexo para outroafeta todos os movimentos da alma, enquanto durar a atividade. Essascausas diferem pelo fato de que a gravitação se equilibra com osobstáculos que encontra, ao passo que a paixão do amor adquire, comos obstáculos, mais força e vigor," - Nota de Beccaria.

106 DOS DELITOS E DAS PENAS DELITOS DE PROVA DIFíCIL 107

sidade, em dado clima, parece ser igual a uma quantidadeconstante. Se isso fosse verdade, seriam inúteis e, aliás, perni­ciosas, as leis e os costumes que procurassem diminuir a somatotal, pois seu efeito seria o de aumentar parte das necessidadespróprias e alheias. Sábias seriam, ao contrário, as leis que, porassim dizer, seguindo a inclinação natural do plano, dividisseme distribuíssem a soma total em iguais e pequenas porções,capazes de impedir, uniformemente, por toda parte, as secas eas inundações. A fidelidade conjugal é sempre proporcional aonúmero e à liberdade dos casamentos. Onde estes obedecem apreconceitos hereditários, onde o poder do lar os combina esepara, a galanteria rompe secretamente esses laços, em prejuízoda moral vulgar que tem por função protestar contra os efeitos,perdoando as causas. Mas não há necessidade de tais reflexõespara quem, vivendo na verdadeira religião, tem motivos maisnobres para corrigir a força dos efeitos naturais. Cometer taldelito é ação tão instantânea e misteriosa, tão coberta por aquelemesmo véu estendido pelas leis, véu necessário, mas frágil, queaumenta o valor da coisa em vez de reduzi-lo; as ocasiões sãotão fáceis, as conseqüências tão equívocas, que está mais nasmãos do legislador preveni-lo do que corrigi-lo. Regra geral, emcada delito que, porventura, deva geralmente ficar impune, a penatoma-se um incentivo. É próprio de nossa imaginação que asdificuldades, se não são intranspôníveis ou demasiado grandes,relativamente à preguiça da alma de cada homem, excitam maisvivamente a mente e engrandecem o objeto, pois elas são quaseoutras tantas barreiras impedindo o espírito errante e volúvel deabandonar tal objeto e, constrangendo-o a considerá-lo sob todosos aspectos, fazem-no mais fortemente se apegar ao ladoagradável, ao qual mais naturalmente o" nosso ânimo se atira,do que ao lado doloroso e funesto, do qual foge e se afasta.

A antiga Vênus,28 tão severamente punida pelas leis e tãofacilmente submetida aos tormentos vencedores da inocência,

1

fundamenta-se menos nas necessidades do homem isolado e livre

(28) Em outro texto está "ática Vênus" (homossexualismo).

do que nas paixões do homem sociável e escravo. Ela retira aforça não tanto da saciedade dos prazeres do que da educaçãoque começa por tomar os homens inúteis a si mesmos, para torná­los úteis aos outros, naqueles casos onde se condensa umajuventude ardente e onde, havendo diques intransponíveis paraqualquer outro tipo de relacionamento, todo o vigor da naturezaque se desenvolve é inutilmente consumido pela humanidade, ea velhice é antecipada.

O infanticídi029 é, igualmente, efeito de inevitável contra­dição em que é colocada a mulher que, por fraqueza, ou porviolência, tenha cedido. Quem se encontra entre a infâmia e amorte do ser, a quem essa infâmia não afeta, como não preferirátal morte à miséria infalível a que ela e o rebento infeliz ficariamexpostos? Melhor maneira de prevenir tal delito seria a deproteger com leis eficazes a fraqueza contra a tirania, que exageraos vícios que não podem ser cobertos com o manto da virtude.

Não pretendo minimizar a justa aversão que estes crimescausam, mas, indicando-lhes as fontes, creio-me no direito depoder extrair daí uma conseqüência geral, a saber: que não sepossa denominar precisamente de justa (o que quer dize~,

necessária) a pena de um crime, até que a lei, em certascircunstâncias de uma nação, não tenha aplicado os melhoresmeios para preveni-lo.

(29) Aborto.

SUIcíDIO 109

XXXII

SUICÍDIO

S UIcímo é crime que parece não poder admitir pena,.propriamente dita, pois ela só poderia incidir sobre

inocentes, ou sobre o corpo frio e insensível. Se, neste últimocaso, a pena não há de impressionar os vivos mais do que ochicotear uma estátua, no primeiro caso, ela é injusta e tirânica,porque a liberdade política dos homens supõe necessariamenteque as penas sejam estritamente pessoais. Os homens amamdemasiado a vida e tudo o que os cerca confirma tal sentimento.A sedutora imagem do prazer e a esperança, dulcíssimo enganodos mortais, em nome da qual bebem eles a grande sorvos omal, misturado com algumas gotas de contentamento, deleita-osmuito para temer que a necessária impunidade do suicídio tenhaalguma influência sobre os homens. Quem teme a dor obedeceàs leis, mas todas as fontes dessa dor se extinguem no corpopela morte. Qual será, então, o motivo que poderá deter a mãodesesperada do suicida? Aquele que se mata comete um malmenor à sociedade do que aquele que lhe atravessa para sempreas fronteiras, pois o primeiro deixa para trás todos os bens, maso segundo se transfere com boa parte dos haveres. Assim, sea força da sociedade consiste no número dos cidadãos, aqueleque renuncia à nação para entregar-se a uma nação vizinha causadano duas vezes maior do que aquele que simplesmente renuncia

à sociedade pela morte. A questão reduz-se, pois, a saber, seé útil ou nocivo à nação deixar a cada um de seus membrosliberdade total para abandoná-la.

Não deverá ser promulgada nenhuma lei que não sejafortalecida 30 ou que a natureza das circunstâncias tome insubsis­tente e, assim, como a opinião dirige os ânimos, obedecendo àsimpressões lentas e indiretas do legislador e resiste às impressõesdiretas e violentas, assim também as leis inúteis, desprezadas peloshomens, comunicam seu aviltamento às leis mais salutares, quesão resguardadas mais como óbice a ser superado do que comodepósito do bem comum. Ora, se, como foi dito, nossos sentimentossão limitados, quanto maior for a veneração dos homens por objetosestranhos às leis, menor será a que sobrará para as próprias leis.Desse princípio, o sábio provedor da felicidade pública pode extrairalgumas úteis conseqüências que, para serem expostas, muito meafastariam do meu assunto, que é o de provar a inutilidade de fazerdo Estado uma prisão. Lei, nesse sentido, seria inútil, pois, a nãoser que rochedos inacessíveis ou mar encapelado separem os paísesuns dos outros, como fechar todos os pontos de suas fronteiras?Como vigiar os vigilantes? Quem tudo carrega consigo não podeser punido após o fato. Desde que foi cometido, o delito não podeser punido e puni-lo por antecipação seria punir a vontade doshomens e não as ações. Seria comandar a intenção, a parte maislivre do homem em relação ao império das leis humanas. Puniro ausente pelos bens que deixou, além de facilitar o inevitávelconluio que não pode ser impedido sem tiranizar os contratos,paralisaria todo comércio de nação a nação. Punir o réu após suavolta, impedindo que ele reparasse o mal causado à sociedade,perpetuaria as ausências. A própria proibição de sair de um paísaumenta, nos nacionais, o desejo de fazê-lo e é uma advertênciaaos estrangeiros que ingressem.

Que deveremos pensar do governo que não possui outro meio,a não ser o temor, para conservar os homens naturalmentevinculados ao solo pátrio pelas primeiras impressões da infância?

(30) "Legge armada", ou "fortalecida", é a "lei que comina pena".

110 DOS DELITOS E DAS PENAS SUIcíDIO 111

A mais segura maneira de ligar os cidadãos à pátria é aumentaro bem-estar relativo de cada um. Assim como todo esforço deveser feito para equilibrar a balança comercial a nosso favor, tambémé interesse supremo do soberano e da nação que o total defelicidade, comparado com o das outras nações, seja maior do queo de qualquer outra. Os prazeres do luxo 31 não são os principaiselementos desta felicidade, embora, impedindo que a riqueza seacumulasse nas mãos de um só, sejam um remédio necessário àdesigualdade que cresce com o progresso de uma nação. Quandoas fronteiras de um país aumentam em proporção maior do quea sua população, o luxo favorece o despotismo, já que quanto menorfor o número de homens tanto menor será a produção, e quantomenor for a produção tanto maior será a dependência da pobrezaem relação ao fausto e mais difícil e menos temida a reunião dosoprimidos contra os opressores, pois as bajulações, os cargos, asdistinções e a submissão, que tornam mais flagrante a distância entreo forte e o fraco, se obtêm mais facilmente de poucos do que demuitos, sendo os homens tanto mais independentes, quando menosvigiados, e menos vigiados, quando maior é seu número. Se apopulação de um país aumenta em proporção maior do que suasfronteiras, o luxo contrapõe-se ao despotismo, pois estimula otrabalho e a atividade dos homens, e a necessidade oferece prazerese conforto em demasia ao rico, para que os da ostentação, queaumentam o sentimento de dependência, ocupem o lugar melhor.Pode-se, pois, observar que, nos Estados vastos, mas fracos edespovoados, a menos que outras razões não· se ergam comoobstáculo, o luxo de ostentação prevalece sobre o de conforto, masnos Estados mais povoados do que vastos, porém, o luxo doconforto sempre reduz o da ostentação. O comércio e a circulaçãodos prazeres do luxo 32 apresentam o seguinte inconveniente, qual

(31) e (32) "O comércio, a troca dos prazeres do luxo não deixa de terinconvenientes. Tais prazeres são preparados por muitos agentes,mas partem de um pequeno número de mãos e irradiam a umpequeno número de homens. A maioria s6 raramente pode privá­los em pequena proporção. Eis porque o homem se lamenta damiséria, mas esse sentimento é apenas o efeito da comparação, nadatendo de real." - Nota de Beccaria.

seja, o que tudo que se faça por intermédio de muitos, começa,no entanto, com poucos e termina com poucos, e pouquíssimossão os que tiram proveito, o que não impede o sentimento damiséria, ocasionado mais pela comparação do que pela realidade.A segurança e a liberdade, limitadas unicamente pelas leis, são,porém, o que forma a base principal desta felicidade, com a qualos prazeres do luxo favorecem a população, e, sem elas, se tomaminstrumento da tirania. Assim como os animais mais generosose os pássaros mais livres se refugiam na solidão ou nos bosquesinacessíveis, abandonando os férteis e ridentes campos ao homeminsidioso, também os homens fogem dos próprios prazeres quandoa tirania é que os oferece.

Está, pois, demonstrado que, se a lei que prende os súditosa seu país é inútil e injusta, também o será a lei que condenao suicídio. Por isso, embora seja culpa, que Deus pune, o únicoque pode punir após a morte, não é delito diante dos homens!pois a pena, em vez de incidir sobre o réu, incide sobre suafamília. Se alguém me' contestasse que tal pena pudesse, noentanto, impedir um determinado homem a suicidar-se, euresponderia que quem renuncia tranqüilamente ao bem da vida,que odeia a existência, aqui, no mundo, a ponto de trocá-la poruma infeliz eternidade, não se comoverá decerto pela menoseficaz e mais distante consideração dos filhos ou dos pais.

CO NTRABANDO 113

XXXIII

CONTRABANDO

CONTRABANOO é um verdadeiro delito que prejudica osoberano e a nação, mas cuja pena não deve ser

infamante, porque, cometido, não produz infâmia na opiniãopública. Quem pune com penas infamantes crimes que não sãoreputados como tais pelos homens, abranda o sentimento deinfâmia para os que o são. Quem pretenda a aplicação da própriapena de morte, por exemplo, para quem mata o faisão e paraquem comete homicídio ou falsifica escrito relevante, não farádiferença alguma entre estes delitos, destruindo, assim, ossentimentos morais, obra de muitos séculos e de muito sangue,lentíssimos e difíceis de impressionar o espírito humano e paracujo nascimento se julgou necessária a ajuda dos mais sublimesmotivos e de todo um aparato de graves formalidades.

Este crime nasce da própria lei, pois, aumentando o impostoalfandegário, aumenta sempre a vantagem e, portanto, a tentaçãode praticar o contrabando e a facilidade de cometê-lo aumentacom a extensão da fronteira a ser fiscalizada e com a diminuiçãodo volume da própria mercadoria. A pena de perder não somenteos bens contrabandeados como as coisas que os acompanhamé justíssima, mas será tanto mais eficaz quanto menor for oimposto, porque os homens só se arriscam na proporção diretada vantagem que lhes propiciaria o feliz êxito do empreendi­mento.

Entretanto, como é que este delito jamais gera infâmia parao autor, sendo furto feito ao príncipe e, por conseguinte, à próprianação? Respondo que os danos que os homens acreditam nãolhes devam ser feitos, não lhes interessam o suficiente paraproduzir a indignação pública contra os ofensores. Tal é ocontrabando. Os homens sobre os quais as conseqüências remotascausam fraquíssimas impressões, não enxergam o dano que lhespode causar o contrabando. Assim, muitas vezes, usufruem-lheas vantagens presentes apresentadas por ele, não percebendo oprejuízo causado ao príncipe. Assim, não se interessam tanto emficar privados de aprovação de quem pratica o contrabandoquanto em punir aquele que comete o furto privado, falsificadocumento e produz outros males que os possam atingir.Princípio evidente de que todo ser sensível só se interessa pelosmales que conhece.

Dever-se-ia, porém, deixar sem castigo tal delito contraquem nada tem a perder? Não! Há contrabandos que interessamde tal forma à natureza do imposto, parte essencial e difícil daboa legislação, que esse delito merece severíssima pena, atéprisão e escravidão, mas prisão e escravidão adequadas à naturezado delito. Por exemplo, a prisão do contrabandista de cigarronão deve ser a mesma que a do assassino ou a do ladrão, eos trabalhos do contrabandista ficam limitados ao trabalho e aoserviço do próprio Fisco, que ele quis fraudar, sendo os maisadequados à natureza da pena.

DOS DEVEDORES 115

XXXIV

DOS DEVEDORES

A BOA-FÉ nos contratos e a segurança do comércio levamo legislador a assegurar aos credores as pessoas dos

devedores falidos, mas julgo importante distinguir o falido dolosodo falido inocente. O primeiro deveria ser punido com a mesmapena corninada aos falsários de moedas, pois falsificar peça demetal cunhado, penhor das obrigações do cidadão não é crime~aior do que o de falsificar as pr6prias obrigações: mas o falidolOocente, aquele que, ap6srigoroso exame, prova diante do juizque a malícia ou a desgraça alheia ou vicissitudes inevitáveisda humana prudência o despojaram dos bens, deverá ser atiradoà prisão e privado do único e triste bem que lhe resta - a nuae crua liberdade? Por que deverá ele experimentar as angústiasdos culpados e com o desespero de sua probidade oprimidaarrepender-se, quem sabe, da tranqüila inocência em que viviasob a tutela das leis que não estava em seu poder poupar dodano? Leis ditadas pela avidez dos poderosos e suportadas pelosfracos graças à esperança que sempre reluz no ânimo humano,fazendo-nos acreditar que as vicissitudes adversas são para osoutros e as vantajosas para n6s? Abandonados a seus sentimentosos mais 6bvios, os homens amam as leis cruéis, embora sujeito~a elas. Seria do interesse de cada um que elas fossem moderadas,porque maior é o temor de ser ofendido do que a vontade deofender. Retomando ao inocente falido, digo que se a obrigação

dele há de ser inextinguível até o total pagamento, se não lhefor concedido subtrair-se a ela sem o consentimento das partesinteressadas e de transferir para outra jurisdição sua atividade,a qual, por lei, deveria, ser empregada para tomar a colocá-loem condições de pagar dívidas. Qual será, então, o pretextolegítimo, como a segurança do comércio ou a sagrada proprie­dade dos bens, que justifique a inútil privação da liberdade,exceto no caso raríssimo, aliás, em que, supondo-se um examerigoroso, os males da escravidão ocasionassem a revelação dossegredos de um suposto falido inocente? Considero máximalegislativa aquela em que o valor dos inconvenientes políticosvaria na razão direta do dano público e na razão inversa daimprobabilidade de verificar-se. Poder-se-ia distinguir o dolo daculpa grave, a grave da leve, e esta da perfeita inocência,cominando à primeira as sanções previstas para o crime defalsificação, à segunda, penas menores com privação da liber­dade, reservando à última a livre escolha dos meios pararecuperar-se, negando à terceira a liberdade de fazê-lo, eoutorgando aos credores a mesma liberdade. A distinção entrepena grave e pena leve, entretanto, deve ser estabelecida pelacega e imparcial lei e não pela arbitrária e perigosa prudênciados juízes. A fixação dos limites é assim tão necessária napolítica como na matemática, tanto na medida do bem comumcomo na medida das grandezas.

Com que facilidade o previdente legislador poderia impedirgrande parte das falências fraudulentas e remediar as desgraçasdo inocente laboriosop3 O público e manifesto registro de todosos contratos, a liberdade de todos os cidadãos de consultardocumentos bem ordenados, um banco público, formado por

(33) "Nas primeiras edições desta obra, eu mesmo cometi este erro. Ouseidizer que o falido de boa-fé deveria ser conservado como penhor dadívida contraída, reduzido ao estado de escravidão e obrigado atrabalhar por conta dos credores. Envergonho-me de ter escrito essascoisas cruéis. Acusaram-me de impiedade e de sedição, sem que eufosse sedicioso, nem ímpio. Ataquei os direitos da humanidade, eninguém se levantou contra mim ..." - Nota de Beccaria.

116 DOS DELITOS E DAS PENAS

impostos sabiamente incidentes sobre o comércio feliz e desti­nado a socorrer, com somas convenientes, o infeliz e inocentecomerciante, não teriam nenhum real inconveniente e poderiamtrazer inúmeras vantagens, mas as fáceis, simples e grandes leissomente aguardam o aceno do legislador para disseminar, no seioda nação, o vigor e a robusteza, leis essas que o recompensariam,de geração em geração, com hinos imortais de reconhecimento,são as menos conhecidas ou as menos desejadas. O espíritoinquieto e mesquinho, a tímida prudência do momento presente,a circunspecta rigidez diante das notícias apoderam-se dossentimentos de quem concatena a grande quantidade de açõesdos pequenos mortais.

xxxvASILOS

R ESTAM-ME ainda dnas questões para exame: uma, a desaber se os asilos são justos, a outra, se o pacto da

permuta recíproca de réus entre nações é útil ou não. Dentro doslimites de um país não deve haver lugar nenhum infenso às leis.A força da lei deve seguir o cidadão, como a sombra segue ocorpo. A impunidade e o asilo diferem só em grau, e, como aimpressão da pena consiste mais na segurança de encontrá-la doque em sua força, os asilos mais convidam o homem ao delito doque as penas dele o afastam. Multiplicar asilos é criar outras tantaspequenas soberanias, porque onde as leis não vigoram, novas leis,opostas às comuns, podem formar-se e, portanto, com espíritocontrário ao do corpo inteiro da sociedade. A história demonstraque dos asilos grandes revoluções saíram, nos Estados e nasopiniões dos homens, mas a utilidade ou não da permuta recíprocados réus entre nações é questão que eu não· ousaria resolver,enquanto leis mais adequadas às necessidades da humanidade,penas mais suaves e a extinção da dependência do arbítrio e daopinião não garantirem a segurança da inocência oprimida e davirtude detestada, enquanto a tirania não for totalmente limitada àsvastas planícies da Ásia pela razão universal que une cada vez maisos interesses do trono aos dos súditos, e não obstante a convicçãode não achar um só palmo de terra que perdoe os verdadeiros delitospudessem ser meio eficacíssimo para preveni-los.

DA RECOMPENSA 119

XXXVI

DA RECOMPENSA

A OUIRA questão refere-se à utilidade. ou não. de pôr aprêmio a cabeça de um homem, notoriamente réu,

armando o braço de cada cidadão e fazendo dele um carrasco.Ou o réu está além das fronteiras, ou dentro delas. No primeirocaso, o soberano estimula os cidadãos a cometerem delitos e osexpõe ao castigo, praticando assim injustiça e usurpação desoberania em território alheio, autorizando, assim, outras naçõesa agirem do mesmo modo. No segundo, ele exibe a própriafraqueza. Quem tem força para defender-se não procura comprá­la. Além disso, semelhante edito subverte todas as idéias de morale de virtude que, ao menor sopro de vento, se desvanecem noespírito humano. As leis ora convidam à traição, ora a castigam.Por um lado, com uma mão o legislador estreita os laços defanulia, de parentesco, de amizade, e, por outro, com a outra,premia quem quebra esses laços, sempre contradizendo a simesmo, ora convidando os ânimos desconfiados dos homens àconfiança, ora espalhando a desconfiança em todos os corações.Ao invés de prevenir o delito, dá origem a outros cem. São estesos expedientes das nações fracas, cujas leis não passam derestaurações momentâneas de edifício em ruínas, que se estádesmoronando. À medida que crescem as luzes de uma nação,a boa fé e a confiança recíprocas tomam-se necessárias e cada

vez mais tendem elas a confundir-se com a verdadeira política.Os artifícios, as cabalas, as estradas obscuras e indiretas são,no mais das vezes, previsíveis, e a sensibilidade de todos reduza sensibilidade de cada um, em particular. Os próprios séculosde ignorância, nos quais a moral pública obrigava os homensa obedecerem à moral privada, servem de instrução e deexperiência aos séculos esclarecidos, mas as leis que premiama traição e que suscitam uma guerra clandestina, espalhando adesconfiança recíproca entre os cidadãos, se opõem a esta tãonecessária união da moral e da política, a qual os homensdeveriam a felicidade, às nações a paz, e ao universo um maislongo período de tranqüilidade e de repouso dos males pelosquais antes passaram.

TENTATIVAS, CÚMPLICES E IMPUNIDADE 121

XXXVII

TENTATIVAS,CÚMPLICES E IMPUNIDADE

NÁo É PORQUE as leis não castiguem a intenção. qne o crimedeixe de merecer pena, delito que comece com ação

que revele o ânimo de cometê-lo, ainda que a pena seja menordo que a aplicável à própria prática do delito. A importânciade prevenir a tentativa autoriza a pena, mas, assim como podehaver intervalo entre tentativa e execução, reservar pena maiorao delito consumado pode ocasionar o arrependimento. Diga-seo mesmo quando houver vários cúmplices do delito, e não todoseles executores imediatos, mas por diferentes motivos. Quandovários homens se unem num risco, quanto maior for esse riscotanto mais eles procuram torná-lo igual para todos. Será, pois,mais difícil achar quem se contente com o papel de executordo delito, correndo maior risco do que os outros cúmplices. Aúnica exceção seria a da hipótese em que fosse prometido prêmioao executor, caso em que, tendo ele, então, recompensa pelo riscomaior, a pena deveria ser igual. Tais reflexões parecerãodemasiadamente metafísicas a quem não meditar quão útil seriaque as leis propiciassem menos razões de acordo possível entreos cúmplices de um delito.

Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice degrave delito que delatasse os companheiros. Tal expediente tem

inco~venien~es e vantagens. Os inconvenientes são que a naçãoestana autorIzando a delação, detestável mesmo entre criminosos,porque são menos fatais a uma nação os delitos de coragem queos de vilania: porque o primeiro não é freqüente, já que só esperauma força benéfica e motriz que o faça conspirar contra o bempúblico, enquanto que a segunda é mais comum e contagiosa,e sempre se concentra mais em si mesma. Além disso, o tribunalmostra a própria incerteza, a fraqueza da lei, que implora ajudade quem a infringe. As vantagens consistem na prevenção dosdelitos relevantes, que, por terem efeitos evidentes e autoresocultos, atemorizam o povo. Além disso, contribui para mostrarque quem não tem fé nas leis, isto é, no poder público, é provávelque também não confie no particular. Parece-me que lei geral,que prometesse impunidade ao cúmplice delator de qualquerdelito, seria preferível a uma declaração especial em casoparticular, porque assim preveniria as uniões pelo temor recí­proco que cada cúmplice teria de expor-se e o tribunal nãotornaria audaciosos os criminosos chamados a prestar socorronum caso particular. Tal lei, portanto, deveria unir a impunidadeao banimento do delator. Atormento-me, em vão, para destruiro remorso que sinto, autorizando as leis sacrossantas, monumentoda confiança pública, base da moral humana, à traição e àdissimulação. Além disso, que exemplo haveria para a nação senegasse a impunidade prometida e, por meio de doutas cavilações,arrastasse ao suplício, a despeito da fé pública, quem aceitouo co~vite das leis? Não são raros tais exemplos nas nações e,por ISSO, não são poucos os que só concebem a nação comomáquina complicada, cujo mecanismo é movido pelo mais hábile poderoso, à vontade. Frios e insensíveis a tudo que forma adelícia das almas ternas e sublimes, eles excitam com imper­turbável sagacidade os sentimentos mais caros e as paixões maisviolentas, tão logo percebam que elas lhes são úteis aos desígnios,tocando os ânimos assim como os músicos tocam os instrumen­tos.

XXXVIII

INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOSE DEPOIMENTOS

N OSSAS leis proscrevem, no processo, os interrogatóriosdenominados sugestivos, isto é, aqueles que, segundo

os doutos, indagam sobre a espécie, e não, como deveriam, sobreo gênero, nas circunstâncias de um delito, a saber, os interro~

gatórios que, tendo imediata conexão com o delito, sugerem aOréu imediata resposta. Os interrogatórios, segundo os penalistas,devem, por assim dizer, envolver o fato como uma espiral, semjamais alcançá-lo por via direta. Os motivos deste método s!oou não sugerir ao réu réplica que o ponha a salvo da acusaçao,ou talvez porque parece contrário à própria natureza que o ré,use acuse imediatamente por si só. Seja qualquer destes dOISmotivos frisante é a contradição das leis que, junto com essaprática, 'autorizam a tortura. E, com efeit~, ~ue inte.rrogat6riopode ser mais sugestivo do que a dor? O pn~elfo m~tlvo.ocorrena tortura, pois a dor sugerirá, ao forte, obstmado sl1êncIo paraa troca da pena maior pela menor, e ao fraco sugerirá a confissão,para livrar-se do tormento presente, mais eficaz, nesse momento,do que a futura dor. O segundo motivo é evidentemente o mesmo,pois se o interrogatório especial leva, contr~ Ô d.ireito na~ral,o réu à confissão, as dores o conseguirão maiS facl1mente ainda,mas os homens se conduzem mais pela diferença dos nomes do

INTERROGATORIOS SUGESTIVOS E DEPOIMENTOS 123

que pela das coisas. Entre outros abusos da gramática, cujainfluência, nas questões humanas, sempre foi grande, merecerealce o que torna nulo e ineficaz o depoimento do réu, jácondenado. Ele está morto civilmente, afirmam com gravidadeos jurisconsultos peripatéticos, e morto é incapaz de ação.Sacrificou-se grande número de vítimas para dar fundamento aessa vã metáfora, e freqüentemente, com a maior seriedade, sediscutiu se a verdade deveria ceder lugar ou não ao formalismolegal. Desde que o depoimento do réu condenado não chegueao ponto de perturbar o curso da justiça, por que não reservaraos interesses da verdade e à extrema miséria do réu, mesmoapós a condenação, espaço suficiente, de modo que, acrescendoele elementos novos que alterem a natureza do fato, permitareivindicar a si mesmo, ou a outrem um novo julgamento? Asformalidades e o cerimonial são necessários para a administraçãoda justiça, ou porque nada deixam ao arbítrio de quem aadministra, ou porque sugerem ao povo julgamento não tumul~

tuado e parcial, mas estável e regular, quer, enfim, porque assensações, mais do que os raciocínios, produzem impressõeseficazes sobre os homens imitadores e escravos do hábito. Taisformalidades, porém, nunca podem, sem perigo fatal, ser fixadaspela lei de modo a prejudicar a verdade, a qual, por ser oudemasiado simples ou demasiado complexa, necessita de algumapompa externa que a concilie com o povo ignorante. Finalmente,aquele que, durante o interrogatório, insistir em não responderàs perguntas feitas, merece pena fixada pelas leis, pena das maisgraves entre as cominadas, para que os homens não faltem ànecessidade do exemplo que devem ao público. A pena édesnecessária quando é fora de dúvida que tal acusado tenhacometido tal delito, o que torna o interrogatório inútil, da mesmaforma que é inútil a confissão do delito, quando outras provasjustificam a condenação. Este último caso é o mais freqüente,porque a experiência demonstra que, na maior parte dos pro~

cessos, os réus negam a culpa.

XXXIX

DE UM GÊNERO PARTICULARDE DELITOS

QUEM LER este escrito perceberá que deixei de mencionarum tipo de delito que cobriu a Europa de sangue

humano e levantou funestas fogueiras, onde corpos humanosvivos serviam de pasto às chamas. Era um alegre espetáculo euma grata harmonia, para a cega multidão, ouvir os confusosgemidos dos miseráveis, que saíam dos vórtices negros dafumaça, fumaça de membros humanos, entre o ranger dos ossoscarbonizados e o frigir das vísceras ainda palpitantes, mashomens racionais verão que o lugar, o século e a matéria nãome permitem analisar a natureza de tal delito. Seria tarefa muitolonga e estranha a meu propósito provar a necessidade da perfeitauniformidade de pensamento no Estado, contra o exemplo demuitas nações. Provar como opiniões que distam entre si apenaspor algumas diferenças muito sutis e obscuras, muito acima dacapacidade humana, possam talvez ainda tumultuar o bempúblico, a menos que uma só seja autorizada, e as outrasexcluídas, e provar ainda que a natureza das opiniões é formadade tal modo que, enquanto algumas se fortalecem no contrastee, se opondo, se esclarecem, subindo à tona as verdadeiras, asfalsas submergem no esquecimento, enquanto outras, inseguras

DE UM GÊNERO PARTICULAR DE DELITOS 125

por sua nua constância, devem revestir-se de autoridade e deforça. Seria demasiado longo provar que, por mais odioso quepareça o império da força sobre as mentes humanas, cujas únicasconquistas são a dissimulação, logo o aviltamento, e, porcontrário que ele possa aparentemente ser ao espírito de mansidãoe fraternidade ordenado pela razão e pela autoridade que maisveneramos, ele é, entretanto, necessário e indispensável. Tudoisto deve acreditar-se ter sido bem provado e de acordo comos verdadeiros interesses dos homens, se existe quem o exerçacom reconhecida autoridade. Eu só falo dos crimes que brotamda natureza humana e do pacto social, e não dos pecados, cujaspenas, ainda que temporais, devem regular-se por princípiosdiversos daqueles de uma limitada filosofia.

FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE f27

XL

FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE

F ONTE de erros e de injustiças são as falsas idéias deutilidade, elaboradas pelos legisladores. Falsa idéia de

utilidade é a que antepõe os inconvenientes particulares aoinconveniente geral, ou seja, a que reprime os sentimentos, aoinvés de estimulá-los, e diz à lógica: sirva. Falsa idéia deutilidade é a que sacrifica mil vantagens reais a um inconvenienteimaginário ou de poucas conseqüências. É a que tiraria o fogodos homens, porque queima, e a água, porque afoga, que sórepara os males com a destruição. As leis que proíbem portararmas são leis dessa natureza. Tais leis só desarmam os que nãotêm vocação nem determinação para os crimes, enquanto aquelesque têm a coragem de violar as leis mais sagradas da humanidadee os dispositivos mais importantes do Código, respeitarão as leismenores e puramente arbitrárias, tão fácil e impunementepassíveis de transgressão e cuja exata execução suprime aliberdade pessoal, tão cara ao homem quanto ao legisladoresclarecido e submete os inocentes a todos os vexames destinadosaos réus. Tais vexames colocam os agredidos em posição deinferioridade, privilegiando os agressores; ao invés de diminuiro número de homicídios, aumentam-no por ser mais confiávelassaltar os desarmados do que os armados. Assim se chamamas leis não preventivas dos delitos, mas temerosas deles, nascidasda tumultuada impressão de alguns fatos particulares e não da

meditação racional dos inconvenientes e das vantagens de umdecreto universal. Falsa idéia de utilidade é a que pretendessedar a uma multidão de seres sensíveis a simetria e a ordem quea matéria bruta e inanimada tolera, descuidando dos motivospresentes, os únicos a agir sobre a multidão com força eperseverança, para fortalecer os motivos distantes, que causamimpressão ao mesmo tempo fraca e fugaz, se uma força deimaginação incomum na humanidade não suprir a distância doobjeto com o seu engrandecimento. Finalmente, falsa idéia deutilidade é a que, sacrificando a coisa ao nome, separa o bempúblico de todo bem particular. Há diferença entre estado desociedade e estado de natureza, a saber: homem selvagem sóprejudica a outrem o suficiente para beneficiar-se a si próprio,enquanto o homem, sociável, é, às vezes, levado pelas más leisa prejudicar terceiros, sem benefício para si próprio. O déspotalança temor e desalento no coração dos escravos, mas essessentimentos, rebatidos, se voltam mais fortemente contra seucoração para atormentá-lo. Quanto mais o temor é solitário einterno, menos perigoso é para quem dele faz o instrumento defelicidade, mas quanto mais se tomar público e atacar umamultidão maior de homens, mais fácil será ver o imprudente,o desesperado ou o destemido avisado forçar os homens a servir­lhes os fins, despertando, neles, sentimentos tanto mais gratose sedutores quanto maior for o número de pessoas sobre as quaisincide o risco da iniciativa. Então, o valor que os infelizesatribuem à própria existência diminui na proporção da misériaque sofrem. Esta é a razão pela qual as ofensas vão fazer nascernovas ofensas, pois o ódio é sentimento mais durável do queo amor, na medida em que o primeiro extrai a força dacontinuidade dos atos que enfraquecem o segundo.

COMO PREVENIR OS DELITOS 129

XLI

COMO PREVENIR OS DELITOS

M ELnOR prevenir os crimes que punHns. Esta é a

finalIdade precípua de toda boa legislação, arte deconduzir os homens ao máximo de felicidade, ou ao mínimo deinfelicidade possível, para aludir a todos os cálculos dos bense dos males da vida; entretanto, os meios empregados até agoratêm sido, em sua maioria, falsos e contrários ao fim proposto.Não é possível reduzir a desordenada atividade dos homens auma ordem geométrica, sem irregularidade e sem confusão.Assim como as constantes e simplicíssimas leis da natureza nãoimpedem que os planetas se perturbem em seus movimentosassim também, nas atrações infinitas e muito contrárias do praze;e da dor, as leis humanas não podem impedir as perturbaçõese a desordem. Todavia, essa é a quimera dos homens limitados,quando têm na mão o comando. Proibir grande quantidade deações diferentes não é prevenir delitos que delas possam nascer,mas criar novos; é definir ao bel-prazer a virtude e o vício,conceituados como eternos e imutáveis. A que nos reduziríamosse nos fosse proibido tudo o que nos pode induzir ao delito?Seria preciso privar o homem do uso dos sentidos. Para cadamotivo que induz os homens a cometer o verdadeiro delito, hámil outros que os impelem a cometer ações indiferentes que asmás leis chamam delitos. E, se a probabilidade dos delitos éproporcional ao número das razões, ampliar a esfera dos delitos

é aumentar a probabilidade de que sejam cometidos. A maioriadas leis não passa de privilégios, isto é, tributo de todos, paraas mãos de alguns poucos.

Quereis prevenir os delitos? Fazei com que as leis sejamclaras, simples e que toda a força da nação se condense emdefendê-las e nenhuma parte da nação seja empregada emdestruí-las. Fazei com que as leis favoreçam menos as classesdos homens do que os próprios homens. Fazei com que oshomens as temam, e temam apenas a elas. O temor das leis ésadio, mas fatal e fecundo, em delitos, é o temor de homempara homem. Os homens escravos são mais voluptuosos, maislibertinos e mais cruéis do que os homens livres. Estes meditamsobre as ciências e sobre os interesses da nação, vêem os grandesobjetos, e os imitam, mas aqueles, satisfeitos com o dia presente,procuram, no tumulto da libertinagem, uma distração para oaniquilamento em que se encontram. Afeitos à incerteza em tudo,o êxito dos seus crimes torna-se-Ihes problemático; favorecendoa paixão que os determina. Se a incerteza das leis incide sobreuma nação indolente pelo clima, mantém e aumenta a indolênciae a estupidez. Se incide sobre uma nação voluptuosa, mas ativa,ela desperdiça a atividade dessas leis em número infinito depequenas cabalas e intrigas, que semeiam a desconfiança noscorações e fazem da traição e da dissimulação o alicerce daprudência. Se a incerteza das leis incide sobre uma naçãocorajosa e forte, a incerteza é suprimida, gerando, antes, muitasoscilações da liberdade para a escravidão e da escravidão paraa liberdade.

DAS CIÊNCIAS 131

XLII

DAS CIÊNCIAS

QUEREIS prevenir os delitos? Fazei com qne as luzesacompanhem a liberdade. Os males que nascem do

conhecimento estão na razão inversa de sua difusão e os bensna razão direta. O audacioso impostor, que é sempre um home~invulgar, é adorado pela plebe ignara e vaiado pelo homemesclarecido. Os conhecimentos, facilitando as comparações entreos objetos e multiplicando os pontos de vista, contrapõem muitossentimentos que se modificam entre si tanto mais facilmentequanto mais previsíveis são, nos outros, as mesmas vistas e asmesmas resistências. Em face das luzes' esparsas com profusãosobre a nação, cala-se a caluniosa ignorância e treme a auto­ridade, desarmada de razões, permanecendo imutável a vigorosaforça das leis, pois não há homem esclarecido que não gostedos pactos públicos, claros e úteis da segurança comum, aocomparar a parcela da inútil liberdade que sacrificou com a somade todas as liberdades sacrificadas pelos outros homens, os quais,sem leis, poderiam tornar-se conspiradores contra ele. Todoaquele que, dotado de alma sensível, lançando um olhar sobreum Código de leis bem feito e achando que nada perdeu a nãoser a nefasta liberdade de prejudicar a outrem, será levado a bem­dizer o trono e quem o ocupa.

Não é verdade que as ciências tenham sido sempre preju­diciais à humanidade e, quando o foram, tratava-se de malinevitável para os homens. A multiplicação do gênero humano,na face da terra, inventou a guerra, as artes mais rústicas, asprimeiras leis, que eram pactos passageiros gerados pela neces­sidade e que com ela pereciam. Foi essa a primeira filosofia doshomens, com poucos elementos corretos, pois somente a indo­lência e a escassa sagacidade os preservavam do erro, mas asnecessidades cada vez mais se multiplicavam com a multipli­cação dos homens. Faziam-se, pois, necessárias impressões maisfortes e mais duradouras para dissuadi-los de reiterado retornoao primeiro estágio de insociabilidade, que se tornava cada vezmais prejudicial. Foram, assim, um grande bem para a huma­nidade aqueles primeiros erros que povoaram a terra de falsasdivindades (refiro-me ao grande bem político) e que imaginaramum universo invisível, governador do nosso. Foram benfeitoresdos homens aqueles que ousaram surpreendê-la, arrastando atéos altares a dócil ignorância. Apresentando-lhes objetos que lhesultrapassavam os sentidos, que lhes escapavam das mãos àmedida que pensavam alcançá-los, que não podiam desprezar pornão conhecê-los, reuniram e concentraram as divididas paixõesem um único objeto que os impressionava fortemente. Foramessas as primeiras vicissitudes de todas as nações formadas depovos selvagens. Foi essa a época de formação das grandessociedades e foi esse o vínculo necessário e talvez o único. Nãofalo do povo eleito de Deus para o qual os milagres extraor­dinários e as graças mais conhecidas marcaram época na políticahumana. Mas, assim como é próprio do erro subdividir-se aoinfinito, assim também as ciências nascidas de tal erro fizeramdos homens fanática multidão de cegos, entrechocando-sedesordenadamente em labirinto fechado, a ponto de algunsespíritos sensíveis e filosóficos ordenarem até mesmo o antigoestado de selvageria. Eis a primeira época em que os conhe­cimentos, ou melhor, as opiniões, são prejudiciais.

A segunda consiste na difícil e terrível passagem do erroà verdade, da obscuridade desconhecida à luz. O choque imensodos erros úteis aos poucos poderosos contra as verdades úteis

132 DOS DELITOS E DAS PENAS

aos muito fracos, a aproximação e o fermento das paixões, quesuscitam, naquela ocasião, causam males infinitos à míserahumanidade. Quem refletir sobre a história, em que certosintervalos de tempo se assemelham a períodos principais, en­contrará mais vezes uma geração inteira sacrificada à felicidadedas que a sucederam na enlutada, mas necessária passagem dastrevas da ignorância à luz da filosofia, da tirania à liberdade,conseqüências disso. Acalmados, porém, os ânimos, e extinto oincêndio que purgou a nação dos males que a oprimiam, averdade, cujos progressos são, primeiro, lentos, depois acelera­dos, compartilha o trono dos monarcas e tem culto e altar nosparlamentos das repúblicas, quem poderá garantir que a luz queilumina a multidão seja mais danosa do que as trevas, e queas relações simples e verdadeiras entre as coisas bem conhecidaspelos homens lhe sejam prejudiciais?

Se a cega ignorância é menos fatal que o medíocre e confusosaber, já que este acrescenta aos males da primeira os errosinevitáveis de quem tem visão restrita ao que está junto dasfronteiras da verdade, o homem esclarecido é o dom maisprecioso que o soberano pode ofertar à nação e a si mesmo,tomando-o depositário e guardião das santas leis. Acostumadoà visão da verdade, e não a temê-la, privado da maioria dasnecessidades da opinião que, nunca suficientemente satisfeitas,põem à prova o valor da maioria dos homens, afeitos acontemplar a humanidade das maiores alturas, diante dele a naçãotoma-se uma família de irmãos, e a distância entre os poderosose o povo parece-lhe tanto menor quanto maior é a massa humanaque está diante de seus olhos. Os filósofos cultivam necessidadese interesses desconhecidos da plebe ignara, principalmente o denão desmentir, à luz pública os princípios apregoados naobscuridade, e adquirem o hábito de amar a verdade por simesma. A seleção de tais homens constitui a felicidade de umanação. Será, no entanto, felicidade efêmera, se as boas leis nãolhes aumentarem de tal modo o número que diminuam aprobabilidade, sempre grande, de uma má seleção.

XLIII

DOS MAGISTRADOS

OUTRO meio de prevenir os delitos é o de interes~ar .0

Colegiado, executor das leis, mais pela ob~ervancla

delas do que pela corrupção. Quanto maior ~or o num:ro demembros que o compõem, menos perigosa sera a usurpaçao dasleis, porque a venalidade é mais difí~il entre membros que seobservam entre si, e que estão menos Interessados em aume~tar

a própria autoridade quanto menor for a porçã? que cabena acada um, principalmente se comparada com o pengo do emp~een­

dimento. Se o soberano, com aparato e pompa, C?~ a austendadedos editos, com a proibição das querelas justas e Injustas de ~uemse crê oprimido, acostumar os súditos a temere~ ~aIS ~s

magistrados do que as leis, estes últimos se apr~veltarao ~aIS

desse temor do que a segurança própria e púbhca lucrara.

XLIV

PRÊMIOS

oUTRO modo d. prev.nir d.litos é o do recomponsar a. ';lrtude. A esse respeIto, veJo que há silêncio universal

na leglslaçao de todas as nações contemporaneas. Se os prêmios,propostos pelas academias aos descobridores das mais úteis~erdades, multiplicaram não só os conhecimentos, como os bonshvros, por qual razão os prêmios propostos pela mão benévolado soberano não multiplicariam também as ações virtuosas? Amoeda da honra é sempre inesgotável e frutífera nas mãos dosábio distribuidor.

XLV

EDUCAÇÃO

F iIIAiMENTE, o mais s.goro, mas o mais diffcil moio d.prevenir o delito é o de aperfeiçoar a educação, objeto

muito amplo e que ultrapassa os limites a que me impus, objeto queouso também dizer estar muito intrinsecamente ligado à natureza dogoverno, para que não seja sempre campo estéril, só cultivado aquie ali por alguns poucos estudiosos, até nos mais remotos séculos dafelicidade pública. Um grâhde homem, que iluminou a humanidadeque ô perlíeguia, mostrou em pormenores quais as principaismiÍXimas da educação realmente úteis aos homens,34 a saber,preterir Utha estéril multidão de objetos em favor de uma escolhae precisâo deles, substituir àS c6pias pelos originais, nos fenômenostânto motâis como físicos que o acaso e o talento apresentam aoshOvos espíritos dos jovens, e impelir esses jovens à virtudepela fácil estrada do sentimento; afastando-os do mal pela viainfalível da necessidade e do inconveniente, e não pela via incertado comando; que s6 consegue simulada e momentânea obediência.

(34) Referência à famosa obra Em{lio ou Da educaçéIo (1762), romancefilos6fico, em que Jean-Jacques Rousseau expõe seu sistema educa­cional, baseado no prinCíI'io de que "o homem é, por natureza, bom''',"sendo má a educação dadà pela sociedade", pois seria melhorpropidl1r edUcação negativa, como a melhor, ou antes, como a t1nicaa sef transmitida. A despeito de certos pl1ràdoxos, O livro de Rousseauteve influência decisiva sobre o siStema educacional da época.

DAS GRAÇAS 137

XLVI

DAS GRAÇAS

'"A MIIDIDA que as peuas se tomam mais brandas, a clemênciae o perdão tomam-se menos necessários. Feliz a nação

onde eles pudessem ser erradicados por nefastos! A clemência,virtude que, às vezes, foi para o soberano o suplemento de todosos deveres do trono, deveria ser suprimida de uma legislaçãoperfeita em que as penas fossem brandas e o método dejulgamento regular e rápido. Esta verdade poderá parecer cruapara quem vive na desordem do sistema penal, onde o perdãoe a graça são necessários, na proporção do absurdo das leis eda crueldade das condenações. A graça é a mais bela prerrogativado trono e o mais desejável atributo da soberania, sendo estatácita reprovação que os benefícios geradores da felicidadepública dão a um Código que, com todas as imperfeições, tema seu favor o prejulgamento dos séculos, volumoso e imponenteaparato de infinitos comentadores, solene pompa das eternasformalidades e adesão dos mais insinuantes e menos temidossemi-doutos. Se se considerar, porém, que clemência é virtudedo legislador e não do executor das leis, que resplandecem noCódigo e não nos julgamentos particulares e que mostram aoshomens que os delitos podem ser perdoados e que a pena nãoé sua inevitável conseqüência, mas a de criar a ilusão daimpunidade, e a de fazer crer que as condenações não são

perdoadas, embora pudessem sê-lo, sejam antes abusos da forçado que emanações da justiça. Que dizer, então, do príncipe queoutorga a graça, ou seja, a segurança pública a um particulare que, com um ato privado de benevolência não esclarecida, editadecreto público de impunidade? Que as leis sejam, pois,inexoráveis, e inexoráveis sejam também seus executores, noscasos particulares, mas que o legislador seja brando, indulgente,humano. Sábio arquiteto, faça surgir seu edifício na base do amorpróprio e que o interesse geral seja o resultado dos interessesde cada um, não sendo ele constrangido, com leis parciais eremédios estapafúrdios a separar, sempre, o bem público do bemparticular e para alçar o simulacro da salvação pública sobre otemor e sobre a desconfiança. Profundo e sensível filósofo,permita que os homens, seus irmãos, gozem, em paz, a pequenaporção de felicidade que o imenso sistema, concebido pela CausaPrimeira daquele que é, lhes permita desfrutar neste ângulo douniverso.

XLVII

CONCLUSÃO

CONCLUO com uma reflexllo: que o grau das ponas deva. ser relativo ao estado da pr6pria nação. Mais fortes

e sensíveis devem ser as impressões sobre os ânimos endurecidosde um povo recém-saído do estado selvagem. É necessário o nuapara abater o feroz leão que, com o tiro do fuzil, apenas se agita.À medida, porém, que os espíritos se abrandam no estado desociedade, cresce a sensibilidade. e, crescendo esta, deverádiminuir a intensidade da pena, se se desejar manter constantea relação entre o objeto e a sensação.

De tudo quanto se viu até a~ora poderá extrair-se umteorema geral muito útil. mas pouco de acordo com o uso,legislador, por excelência, das nações, ou seja: para que a ponanão seja a violência de um ou de muitos contra o cidadãoparticular, deverá ser essencialmente pública, rápida, necessária,a mínima dentre as passIveis, nas dadas circunstâncias ocorridas,proporcional ao delito e ditada pela lei.

RESPOSTAS ÀS"NOTAS E OBSERVAÇÕES

DE UM FRADE DOMINICANO"SOBRE O LIVRO

DOS DELITOS E DAS PENAS

E STAS "Notas e Observações" são mera coleção de injúriascontra o autor do livro Dos Delitos e das Penas,

classificado como fanático, impostor, escritor falso e perigoso,satírico descontrolado, sedutor do público. É acusado de destilaro mais acre fel, de reunir contradições odiosas com os traçospérfidos e escondidos da dissimulação de ser obscuro pormaldade. O crítico pode ficar seguro de que não responderei àsinjúrias pessoais.

Ele apresenta meu livro como obra horrível, virulenta e delicenciosidade deletéria, infame, ímpia. Nele, encontra blasfêrniasimpudentes, ironias insolentes, anedotas indecentes, sutilezasperigosas, pilhérias escandalosas e calúnias grosseiras.

A religião e o respeito que se deve aos soberanos sãoo pretexto para as duas mais pesadas acusações que seencontram nessas "Notas e Observações". Estas serão as únicasàs quais me con!iiderarei obrigado a responder. Comecemos pelaprimeira.

142 DOS DELITOS E DAS PENASRESPOSTAS ÀS "NOTAS E OBSERVAÇÕES" 143

I - ACUSAÇÕES DE IMPIEDADE

1.° - O "autor do livro Dos Delitos e das Penas desconhecea justiça que se origina no legislador eterno, que tudo vê e prevê".

Aqui está mais ou menos o silogismo do autor nas "Notas".

"O autor do livro Dos Delitos e das Penas não concordaque a interpretação da lei esteja na dependência da vontade edo capricho do magistrado. - Quem não deseja confiar ainterpretação da lei à vontade e aos caprichos do magistrado nãoacredita na justiça que vem de Deus. - O autor não admite,portanto, justiça puramente divina ...".

2.° - "Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas,As Santas Escrituras somente contêm imposturas."

Em toda a obra Dos Delitos e da Penas, trata-se da EscrituraSagrada uma só vez: é quando, a propósito de erros religiosos,no capítulo XLI, afirmei que não falava desse povo eleito deDeus, em que os milagres mais evidentes e as graças maisnotáveis substituíram a política humana.

3.° - "Toda gente sensata achou, no livro Dos Delitos edas Penas, um inimigo do cristianismo, um mau homem e ummau filósofo".

Não me importa parecer ao meu crítico bom ou maufilósofo. Aqueles que me conhecem atestam que não sou umhomem mau.

Serei, pois, inimigo do cristianismo quando insisto namanutenção da tranqüilidade dos templos sob proteção gover­namental, e quando afirmo, ao falar da sorte das grandesverdades, que a Revelação é a única que manteve sua pureza,em meio às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu ouniverso durante tantos séculos?

4.° - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala dareligião como se ela fosse simples princípio político".

O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama a religiãode "um dom sagrado do céu". Poder-se-ia provar que ele tratacomo simples princípio político o que lhe parece dom sacrossantodo céu?

5.° - "O autor é inimigo declarado do Ser supremo".

Peço, no fundo de meu coração, que esse Ser supremoperdoe a todos os que me ofendem.

6.° - "Se o cristianismo provocou algumas desventuras ealguns morticínios, exagera-os e silencia a respeito dos benefíciose das vantagens que a luz do Evangelho disseminou por todaa humanidade".

Em meu livro, não se achará nenhum lugar onde se apontemmales provocados pelo Evangelho. Não citei um só fato sequerque se relacione com isso.

7.° - "O autor lança blasfêmia contra os mImstros dareligião, quando afirma que suas mãos se sujaram no sanguehumano".

Todos aqueles que escreveram a História, desde CarlosMagno até Otão o Grande, e' ainda depois desse príncipe,proferiram idêntica blasfêmia. Desconhecer-se-á que, por trêsséculos, os abades e os bispos nenhum escrúpulo manifestaramem caminhar para a guerra? E não será o caso de afirmar, semblasfêmia, que os padres que se achavam no meio das batalhas- e que tOJI.laram parte na carnificina - sujavam as mãos desangue humano?

S.O - "Os prelados da Igreja Católica, tão recomendáveispor sua suavidade e humanidade, figuram, no livro Dos Delitos

144 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS "NOTAS E OBSERVAÇÕES" 145

e das Penas, como autores de suplícios tão bárbaros quantoinúteis".

Não sou culpado por ter de repetir, mais de uma vez, amesma coisa. Não poderá ser citada, em toda minha obra, umasó frase que afirme que os padres inventaram os suplícios.

9.0- "A heresia não pode ser chamada de crise de lesa­

majestade divina, conforme o autor do livro Dos Delitos e dasPenas".

Não existe, em todo meu livro, um só termo que dê margema tal imputação. Propus-me, tão-somente, tratar Dos Delitos edas Penas, e não dos "pecados".

Afirmei, a propósito do crime de lesa-majestade, que apenasa ignorância e a tirania que confundem as palavras e as idéiasmais claras, podem nomear assim e castigar como tais, com amorte, crimes de naturezas diferentes. O crítico talvez não saibacomo se abusa da expressão "lesa-majestade", nas épocas dedespotismo e ignorância, empregando-a para designar crimes degênero totalmente diverso, pois não levavam imediatamente àdestruição da sociedade. Consulte a lei dos imperadores Graciano,Valentiniano e Teodósio. Observe como eram tidos comocriminosos de lesa-majestade os que ousavam duvidar da bon­dade de escolha do Imperador, na ocasião em que ele ofereciaalgum emprego. Uma outra lei de Valentiniano, de Teodósio ede Arcádio, lhe ensinará que os moedeiros falsos também eramcriminosos de lesa-majestade. Era necessário um decreto doSenado para libertar da acusação de lesa-majestade aquele quetivesse fundido estátuas dos imperadores, ainda que velhas emutiladas. Apenas depois do edito dos imperadores Severo eAntonino é que se deixou de ajuizar ação de lesa-majestadecontra aqueles que vendiam as estátuas dos imperadores. Essespríncipes fizeram publicar um decreto que proibia a perseguiçãopor esse delito àqueles que porventura tivessem atirado uma

pedra contra a estátua de um imperador. Domiciano condenouà morte uma senhora de Roma, porque se despira diante de umaescultura. Tibério mandou matar, como criminoso de lesa­majestade, o cidadão que vendera a casa onde estava a estátuado imperador.

Em séculos menos afastados do nosso, verá Henrique VIIIabusar de tal maneira das leis, que fez morrer mediante infamesuplício o Duque de Norfolk, a pretexto de lesa-majestade, eporque ele misturara as armas da Inglaterra com as de suàfamília. Esse soberano até mesmo declarou réu do mesmo crimequem se atrevesse a prever a morte do príncipe. Por isso, quandoficou gravemente enfermo pela última vez, os médicos recusa­ram-se a preveni-lo do perigo real em que se encontrava.

10.0- "De acordo com o autor Dos Delitos e das Penas,

os hereges excomungados pela Igreja e exilados pelos príncipessão vítimas de uma palavra".

Todas essas interpretações são forçadas. Limitei-me adiscorrer sobre o crime de lesa-majestade humana. Ora, a palavra"lesa-majestade"serviu freqüentemente de pretexto à tirania,especialmente ao tempo dos imperadores romanos. Qualquer açãoque tivesse a desventura de desagradá-los configuraria delito delesa-majestade. Suetônio afirma que o delito de lesa-majestadeera o crime dos que não tinham cometido nenhum delito. Seeu afirmei que a ignorância e o despotismo deram esse nomea crimes de natureza diversa e fizeram os homens vítimas deuma palavra, não fiz mais do que falar de acordo com a História.

11.0- "Não será terrível blasfêmia assegurar, como faz

o autor do livro Dos Delitos e das Penas, que a eloqüência, adeclamação e as mais excelsas verdades são freio muito fracopara deter por muito tempo as paixões humanas?"

Não julgo que a acusação de blasfêmia possa recair sobreo que afirmei da eloquência e da declamação. O acusador

146 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS "NOTAS E OBSERVAÇÕES" 147

desejou, certamente, referir-se à insuficiência que atribuo "àsmais sublimes virtudes". Indago se considera que, na Itália, seconhecem essas sublimes verdades, isto é, as da fé. Indubita­velmente, responder-me.,.á que sim. Contudo, tais verdades ser­viram de freio às paixões dos homens na Itália? Todos osoradores sacros, os magistrados, os homens, em uma só palavra,garantir-me-ão o contrário. É um fato, portanto, que as excelsasverdades são, para as paixões d()s homens, um freio que nãoas refreia ou que logo se parte. E, enquanto houver, em paíscatólico, juízes, criminosos, prisões e penas, estará demonstradaa insuficiência das verdades excelsas.

12.0- "O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve

imposturas sacnlegas contra a Inquisição".

No meu livro, não menciono, nem direta, nem indiretamente,a Inquisição. Indago, contudo, ao meu acusador, se lhe parecebem de acordo com o espírito da Igreja a condenação de homensao suplício nas fogueiras. Não é do próprio seio de Roma,sobos olhos do vigário de Cristo, na capital da religião católica,que se cumprem nos dias atuais, para com os protestantes dequalquer país, todos os deveres de humanidade e de hospitali­dade? Os últimos papas, e especialmente o atual, receberam erecebem com grande bondade os ingleses, os holandeses e osrussos. Tais povos, de seitas e religiões diversas desfrutam emRoma de toda liberdade, e ninguém está mais seguro do queeles de gozar ali da proteção das leis e do governo.

13.0- "O autor do livro Dos Delitos e das Penas

representa, debaixo de cores odiosas, as ordens religiosas eespecialmente os frades".

Muito difícil seria apontar um só lugar de meu livro quemencionasse ordens religiosas ou frades, a não ser que seinterprete, de modo arbitrário, o capítulo em que discorro sobrea ociosidade.

14.0- "O autor do livro Dos Delitos e das Penas é um

desses escritores sem fé, para os quais os eclesiásticos sãocharlatães, os monarcas tiranos, os santos fanáticos, a religiãoimpostura e que nem sequer r~speitam a majestade do Criador,contra a qual vomitam blasfêmias hediondas".

Passemos às acusações de sedição.

II - ACUSAÇÕES DE SEDIÇÃO

1.0 - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas julgadéspotas cruéis todos os príncipes e todos os soberanos doséculo".

Apenas uma vez falei em meu livro dos soberanos e dospríncipes que reinam atualmente na Europa. E, aqui está, pelaprimeira vez, o que afirmo: Venturoso o gênero humano, serecebesse leis. Hoje, que vemos erguidos os tronos da Europa,etc. (Ver o fim do cap. XVI).

2.0- "Não podem deixar de surpreender a confiança e a

liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penasse volta com fúria contra os monarcas e eclesiásticos."

A confiança e a liberdade não representam um mal. Quiambulat simpliciter, ambulat confidenter; qui autem depravatvias suas, manifestus erit.

Se aplaudi certo espírito de independência dos súditos, foina proporção em que se submetessem às leis e fossem respeitosospara com os primeiros juízes. Quero até que os homens, nãoprecisando recear a escravidão, porém desfrutando a liberdadesob a proteção das leis, se tomem soldados intrépidos, defensoresda pátria e do trono, cidadãos cheios de virtude e juízesincorruptíveis, que levem para junto do trono os tributos e oamor de todas as ordens do país e que disseminem,nas

148 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS "NOTAS E OBSERVAÇÕES" 149

choupanas, a segurança de um destino sempre mais doce. Nãoestamos mais nos tempos de Calígula, de Nero ou de Heliogábalo.E o crítico pouquíssima justiça faz aos princípios reinantes,crendo que meus preceitos possam ofendê-lo.

3.° - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas asseguraque o interesse do particular supera o de toda a sociedade eem geral, o dos que a representam." ,

Se tal absurdo estivesse no livro Dos Delitos e das Penasnão acredito que meu adversário escrevesse um livro de 19ipáginas para refutá-lo.

4.° - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas não confereaos monarcas o direito de castigar com a morte."

Como aqui não se trata nem de religião, nem de governo,porém, apenas da exatidão de um raciocínio, meu acusador temint~ira liberdade de julgar o que desejar. Resumo meu silogismoaSSIm:

Não se deve impor a pena de morte, se esta não forrealmente útil e necessária; ora, a pena de morte nãoé realmente útil nem necessária',

Logo, não se deve impor a pena de morte.

Este não é o lugar para uma explanação sobre os direitosdos mo~arcas. O crítico, certamente, não desejará sustentar quese deva Impor a pena de morte, ainda que ela não seja realmenteú~il, nem nece"ssária. Proposta tão cruel e escandalosa não pode~Ir da boca de um cristão. Se a segunda parte do silogismo nãoe correta, tratar-se-á de crime de lesa-lógica e jamais de lesa­majestade, sendo escusados os meus pretensos erros. Parecem­me eles com aqueles em que caíram tantos cristãos zelosos daprimeira Igreja; (34) parecem-se com aqueles em que caíram osfrades da época de Teodósio - o Grande, ao fim do século IV.

Em seus Anais da Itália, afirma Muratori que, no ano 389,"Teodósio publicou uma lei pela qual determinava aos fradesque ficassem nos conventos, pois levavam a caridade pelopróximo até ao ponto de subtrair os criminosos das mãos dajustiça, não desejando que se matasse ninguém". A minhacaridade não vai tão longe e aceitarei, de boa vontade, que adaquele tempo se regesse por falsos preceitos. Toda ação violentacontra a autoridade pública é criminosa.

Ainda tenho duas palavras a dizer. Existirá no mundo leique proíba afirmar ou prescrever que o Estado pode existir emanter a paz interna sem utilizar a pena de morte contra oculpado? Diodoro conta, no Livro I, Capítulo LXV, que Sabacão,rei do Egito, se tomou modelo de clemência, por comutar penascapitais em escravidão e por dar emprego feliz à sua autoridade,condenando os culpados a trabalhos públicos. Estrabão, no LivroXI, informa-nos que havia, junto ao Cáucaso, algumas naçõesque desconheciam a pena de morte, ainda quando o crimemerecesse os maiores tormentos, "nernini mortem irrogare,quamvis pessima merito". Tal verdade está referida na HistóriaRomana, da época da Lei Pórcia, que proibia tirar a vida decidadão romano, se a sentença de morte não estivesse confirmadapor todo o povo. Tito Lívio fala dessa Lei no Livro X, CapítuloIX, de sua obra. Por fim, o exemplo próximo de um reinadode vinte anos, no maior império do mundo, a Rússia, demonstraainda esta verdade. A Imperatriz Isabel (ver nota do tradutor,a de número 22) morta há alguns anos (1762), jurou, quandoascendeu ao trono dos czares, que não condenaria à mortenenhum culpado durante o seu reinado. Essa augusta princesacumpriu esse feliz compromisso que assumira, sem interrompero curso da justiça penal e sem prejudicar a tranqüilidade pública.Se tais fatos são incontestáveis, será então correto dizer que oEstado pode subsistir e ser venturoso sem castigar com a mortequalquer criminoso.

Diagramação el,!{rânica

EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAISRllll TllbllfingllÇlra, 140, T6rreQ, Loja 01

Te!. 0__II 3115-2433 - FliX 0__II 3106-3772

CEP 01020-901 - São Pllulo, SP, Brasil

~Impresso nas pficmas daEDITORA PARMA LIDA.

Telefone: (011) 6412·7822Av. Antonio 8ardella, 280

Guarulhos - São Paulo - BrasilCom filmes fornecidos pelo editor