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49 cadernos Nietzsche 28, 2011 | A dimensão estética do jogo na filosofia de F. Nietzsche* Luis Enrique de Santiago Guervós** Resumo: Com a categoria “jogo”, Nietzsche introduz uma nova lingua- gem, que permite pensar para além da metafísica. A interpretação do mundo, da vida e da existência como jogo é a resposta a uma concepção de mundo em que a finalidade e a verdade não têm lugar. Este artigo analisa em diferentes contextos a categoria de “jogo”: em sua metafísica do artista, a partir da filosofia de Heráclito, do paradigma da “criança” que jogo, dos ensinamentos de Zaratustra. Palavras-chave: jogo – agón – artista – criança. Desde seus primeiros escritos, especialmente no contexto de sua “metafísica de artista”, Nietzsche começa a articular suas ideias adotando, como referência, a misteriosa dimensão do jogo. Trata-se de uma ideia presente nos momentos principais do desenrolar de seu pensamento e talvez seja um desses elementos que, de manei- ra velada, oculta-se sob formas e figuras distintas, a fim de dizer de outra maneira o vir-a-ser, a vida ligeira, a arte; ou, em outras palavras, para pensar para além da metafísica. É por isso que cer- tos estudiosos de Nietzsche se fixaram de modo especial no papel central que o jogo desempenha tanto para expressar suas ideias estéticas quanto para pôr em relevo seus pensamentos mais ocultos. * Tradução de Vinicius de Andrade. ** Professor da Universidade de Málaga, Espanha, e membro do SEDEN (Sociedade espanhola de Estudos sobre Nietzsche).

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    A dimenso esttica do jogo na filosofia de F. Nietzsche*

    Luis Enrique de Santiago Guervs**

    Resumo: Com a categoria jogo, Nietzsche introduz uma nova lingua-gem, que permite pensar para alm da metafsica. A interpretao do mundo, da vida e da existncia como jogo a resposta a uma concepo de mundo em que a finalidade e a verdade no tm lugar. Este artigo analisa em diferentes contextos a categoria de jogo: em sua metafsica do artista, a partir da filosofia de Herclito, do paradigma da criana que jogo, dos ensinamentos de Zaratustra.Palavras-chave: jogo agn artista criana.

    Desde seus primeiros escritos, especialmente no contexto de sua metafsica de artista, Nietzsche comea a articular suas ideias adotando, como referncia, a misteriosa dimenso do jogo. Trata-se de uma ideia presente nos momentos principais do desenrolar de seu pensamento e talvez seja um desses elementos que, de manei-ra velada, oculta-se sob formas e figuras distintas, a fim de dizer de outra maneira o vir-a-ser, a vida ligeira, a arte; ou, em outras palavras, para pensar para alm da metafsica. por isso que cer-tos estudiosos de Nietzsche se fixaram de modo especial no papel central que o jogo desempenha tanto para expressar suas ideias estticas quanto para pr em relevo seus pensamentos mais ocultos.

    * Traduo de Vinicius de Andrade.** Professor da Universidade de Mlaga, Espanha, e membro do SEDEN (Sociedade

    espanhola de Estudos sobre Nietzsche).

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    Alguns crem que a reflexo de Nietzsche sobre a essncia da filo-sofia como jogo tem todos os ingredientes de uma metafilosofia1; outros, como Masini, pensam que ele uma imagem decisiva para compreender a crtica ao conceito schopenhaueriano de vontade2. Djuric, por sua vez, considera o jogo como uma de suas ideias centrais e fundamentais, pois com ela, talvez o filsofo tenha realmente transcendido todos os limites da metafsica, e o jogo , ao mesmo tempo, a ponte que une sua crtica filosofia prtica com suas intuies estticas3. Thierry Lenain, para quem Nietzsche inaugura a tradio da razo ldica, cr que a ideia do jogo marca a origem e o fim da histria do pensamento, e que o que Nietzsche pretende recuperar esta palavra em sua origem, ao trmino de uma histria da qual ele se considera como o ponto final4. Porm, entre todos os estudiosos da obra de Nietzsche, aquele que tratou do tema com mais profundidade, Eugen Fink, vai mais longe e pensa que a ideia de jogo constitui a ideia central de sua filosofia, e

    1 AICHELE, A. Philosophie als Spiel. Berlim: Akademie Verlag, 2000, p. 12. Sobre o tema do jogo, cf., entre outros, os estudos tericos de: HEIDEMMAN, I. Das Begriff des Spieles. Berlim: Walter de Gruyter, 1968; FINK, E. Spiel als Weltsymbol, Stuttgart: Kohlhammer, 1960 e Oasis de felicidad. Pensamiento para una ontologa del juego. Mxico: UNAM, 1966; LENAIN, T. Pour une critique de la raison ludique. Essai sur la problmatique Nietzschenne. Paris: Vrin, 1993; SAVIANI, L. Ermeneutica del gioco. Npoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 1998; SPARIOSU, M.I. Dionysus Reborn. Play and the Aesthetic Dimension in Modern Philosophical and Scientific Discourse. Londres: Cornell University Press, 1989; BEHLER, E. Nietzsche und die romantische Metapher von der Kunst als Spiel In: BATTS, M.S. e outros (Orgs.). Echoes and influences of German Romanticism. Frankfurt/Meno: Peter Lang, 1987, pp. 11-29. Para uma viso mais completa do tema no marco da filosofia da arte de Nietzsche, cf. meu livro, no prelo: Arte y poder. Aproximacin a la esttica de F. Nietzsche. Madrid: Trotta, 2003.

    2 Cf. MASINI, F. Lo scriba del caos. Interpretatione di Nietzsche. Bolonia: Il Mulino, 1978, p. 75.

    3 DJURIC, M. Nietzsche und die Metaphysik. Berlim: Walter de Gruyter, 1985, p. 152. 4 P. Lenain, op. cit., pp. 17-18.

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    que, desse modo, pensando contra Heidegger, Nietzsche se situa verdadeiramente fora da metafsica5, pois mediante a introduo do jogo em sua filosofia, ele teria se emancipado do pensamento de Schopenhauer e expressaria uma nova concepo do ser.

    Esses testemunhos parecem nos indicar que Nietzsche se ser-ve da figura do jogo, porque ela constitui a forma suprema e mais valiosa da relao do homem com o mundo, e nele possvel ver o modelo de uma atividade humana verdadeiramente livre e inocente. De maneira explcita, o filsofo faz do jogo um referente exemplar para a atividade humana criadora e artstica, ao afirmar, por exem-plo, em Ecce Homo: No conheo nenhum outro modo de tratar com grandes tarefas, a no ser o jogo: isso, como sinal de grandeza, um pressuposto essencial (EH/EH, Por que sou to esperto, 10, KSA 6.297. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho). E essas grandes tarefas para as quais Nietzsche indica teriam muito a ver com a elucidao adequada da posio do homem e do artista em relao com a vida e o mundo. Trata-se, poderamos dizer, de outra forma de reduzir a moral esttica, de explicar toda a vida humana a partir da perspectiva artstica e em nome da liberdade individual, a fim de desmascarar todos os modelos universais, abstratos e abso-lutistas que constituem os principais obstculos potencializao da fora vital: To logo negamos a verdade absoluta, temos de renunciar a toda exigncia absoluta e nos remeter a juzos estticos. Eis a tarefa (...) Reduo da moral esttica!!! (Nachlass/FP da primavera-outono de 1881, 11 [79], KSA 9.471). Portanto, a interpretao do mundo, da vida e da existncia como um jogo a resposta de Nietzsche a uma concepo de mundo na qual j no h mais sentido, finalidade ou verdade. Por isso, o jogo como exemplo concreto da atividade humana se converte na atitude fundamental

    5 Cf. Sobretudo o ltimo captulo de Eugen Fink. La filosofia de Nietzsche. Trad. Andrs Snchez Pascual. Madrid: Alianza, 1979.

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    do homem aps a morte de Deus. Este mundo o cenrio do jogo do criar, o mbito do jogo que d valor e marca o fim do domnio da razo e de toda teoria teleolgica da natureza. O jogo, o intil, como ideal daquele-sobrecarregado-de-fora, como infantil. A infantilidade de Deus (Nachlass/FP do outono de 1885-outono de 1886, 2 [130], KSA 12.129). Em outras palavras, o jogo se desloca da periferia para o centro da vida como a mais alta possibilidade humana, e considerado como quintessncia da vida, elevando-se ao grau supremo, pois certamente a maioria das aes humanas so atividades, movimentos em que se descarrega uma fora que visa sempre a transbordar.

    Diversos so os modos para acessar o fenmeno do jogo, assim como so tambm distintas as tentativas para determin-lo signifi-cativamente. Ora a perspectiva ser a atividade artstica do homem, ora a atividade ldica do mundo ou a dimenso csmica do jogo, ora seu carter de mediao entre homem e mundo.

    1. O jogo no contexto da metafsica de artista

    Parece que os gregos criaram seus deuses e sua arte com a finalidade de poder superar a sabedoria de Sileno e o horror in-suportvel existncia. A arte torna a vida possvel ao seduzir os homens para que sigam vivendo por meio da iluso, nesse sentido, a arte uma forma de jogar que torna possvel a existncia humana apesar do terror fundamental e das contradies que ela encerra. O Nascimento da tragdia j delineia distintos modos e formas de entender o pensamento do jogo. Por um lado, para Nietzsche, sonhar um modo de jogar com o real (wirklich), de tal maneira que permitido falar numa atividade artstica consistente no jogar com o sonho; por outro lado, a embriaguez tambm considerada como um jogo que a natureza joga com o artista. Por isso, a criatividade

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    do artista dionisaco poderia ser entendida como o jogar com a em-briaguez, pois a arte dionisaca, em ltima instncia, repousa sobre o jogo com a embriaguez, com o xtase (DW/VD 1, KSA 1.554). Nietzsche estabelece claramente essa comparao: Assim como a embriaguez o jogo da natureza com o homem, a criao do artista dionisaco o jogo com a embriaguez (DW/VD 1, KSA 1.555). Esse jogo se caracteriza pela dissoluo de toda subjetividade, por um abatimento do eu e por uma superao do princpio de indivi-duao que conduz ao ser um com os homens e a natureza e que, ao mesmo tempo, gera o autoesquecimento. Por sua vez, a arte do artista apolneo jogar com o sonho, sendo preciso entender o sonho como o jogo do homem individual com o real. Jogar com o real enquanto se sonha consiste em impor uma forma e uma medida ao acontecer. O sonho no um mero reflexo da contradio primordial, mas sua transformao.

    Uma das razes fundamentais da ideia do jogo no jovem Nietzsche se encontra na referncia que o filsofo faz estrutura grega do agn e sua importncia para o mbito no apenas poltico, mas tambm artstico do povo grego. Em A filosofia da poca trgica dos gregos, Nietzsche interpreta filosoficamente a tese do carter agonstico da arte e da cultura. Para ele, uma das intuies radicais de Herclito a luta dos contrrios que cria o mundo do vir-a-ser e que marca o vnculo inseparvel entre a filosofia helenista e o modo de vida helenista baseado no jogo como agn. Esse um tema recorrente no primeiro pensamento de Nietzsche, e o que se manifesta como trao essencial e fundamento vital do povo grego a centralidade do impulso agonal6, da justa (Wettkampf), do impulso

    6 A ideia de agn em Nietzsche inspira-se na obra de J. Burckhardt: Griechische Kul-turgeschichte. Berlim, v.4, p. 89. Cf. um escrito de Nietzsche, o quinto prefcio para cinco livros no escritos: A justa de Homero (Homers Wettkampf) (KSA 1.783).

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    agonstico competitivo. Mas o motivo do agn adquire sua maior relevncia quando Nietzsche o relaciona ao tema do jogo, deixando de ser um princpio puramente tico para se tornar um princpio esttico da criao do mundo e fundamento de uma cosmodicia que rechaa a interpretao teleolgica da metafsica tradicional. Em A justa de Homero, afirmava-se o seguinte: Que problema se nos abre quando nos perguntamos sobre a relao entre a justa (Wettkampf) e a concepo da obra de arte!, pois toda fora criativa se espalha e se manifesta lutando: Tambm o arista se irrita com o artista! (A justa de Homero, KSA 1.790-791).

    O jogo , portanto, sempre luta, contenda, uma luta por algo e, como tal, , assim, uma representao. E a luta o lugar onde se espalham as diferenas e onde se abre o campo dos significados. A luta se desenrola, acontece, no se estabiliza num ou noutro ponto da contradio; expressa-se nos lutadores que, como combatentes, caem, mas o polemos imortal. Isso quer dizer que o verdadeira-mente importante o jogo, no seus elementos, ou seja, a meta da ao se encontra em seu prprio acontecer, sem relao com o que vem depois. Huizinga, em sua clssica obra sobre o jogo, afirma que como realidade objetiva, o desenlace do jogo , por si, insignificante e indiferente7; o que verdadeiramente expressa de forma indiscut-vel a essncia do jogo que algo est em jogo. Por isso, Heidegger, ao se perguntar por que a grande criana do mundo de Herclito joga, responde buscando justificar ontologicamente o modo de ser do jogo: joga porque ele joga (es spielt). Permanece somente jogo: o supremo e mais profundo8. E esse acontecer do jogo que repre-senta sua verdadeira essncia, margem dos que dele participam, possvel precisamente porque o jogo sem porqu.

    7 HUIZINGA, J. Homo ludens. Madrid: Alianza, p. 67. 8 HEIDEGGER, M.. La proposicin del fundamento. Barcelona: Serbal, 1991, p. 178.

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    Se nos fixarmos agora no sentido da tragdia, a obra de arte por excelncia, veremos como ela tambm entendida como resultado de um jogo, isto , o jogo dos impulsos artsticos: o apolneo e o dionisaco. No se pode compreender o trgico seno no movimento significante do jogo, no qual se enraza a autoafirmao dionisaca do vir-a-ser, dissolvendo e renovando perpetuamente a iluso do ser. Esta ambivalncia, como destaca Masini9, remetendo-se a Heidegger e Derrida10, s pode ser explicada pela ausncia de centro, tal como se d no jogo. Heidegger dizia que o ser abre sua essncia como fundamento, ele mesmo no tem nenhum fundamento, e se o ser no tem fundamento, pode-se pensar a partir da essncia do jogo. Ademais, se observarmos com ateno essa falta de centro do jogo, veremos como h uma estreita relao com a esttica da ligeireza que se expressa de maneira plstica no jogo da dana de Zaratustra.

    Porm, o jogo no implica apenas uma atitude neutra ou passiva, pois jogar tambm significa transformar e transformar-se, criar e criar-se. Dioniso um deus ludens, o deus que joga, o deus amorfo que joga com suas mscaras, precisamente porque no ama o rito; porque a mscara o rosto do vir-a-ser e do jogo, que sempre vem-a-ser, e sobretudo porque ele o lugar do deslocamento do eu, o espao entre o qual o sujeito jogando-se adquire a prpria aparncia ambgua metamorfoseada, aquela potncia que se realiza no querer-se sempre como contradio, crise, descontinuidade, vir-a-ser, etc.11. Por isso, para compreender a essncia do trgico e o efeito da tragdia, nada melhor que recorrer ao jogo artstico, pois

    9 MASINI, F., op. cit., p. 116.10 Cf. HEIDEGGER, M. La proposicin del fundamento, op. cit., p. 175; DERRIDA, J.

    Escritura y diferencia. Barcelona: Anthropos, 1989, p. 397. 11 Cf. SAVIANI, L., op. cit., p. 116.

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    ao se mostrar a conscincia do destino trgico da vida, seu eterno processo de construo e destruio como jogo, no se desemboca numa viso pessimista do mundo e da existncia, mas se chega a uma aceitao da vida mesma, incluindo-se seus aspectos mais terrveis. Desse modo, pode-se dizer tambm que o prazer esttico do trgico deriva do jogo artstico com o terrvel e com o horror da existncia, e, a partir dessa perspectiva, inclusive a dissonncia (NT/NT 25, KSA 1.154) constitui um estmulo essencial para esse processo da transfigurao esttica da existncia.

    2. O jogo do mundo e o jogo esttico do vir-a-ser

    Outro aspecto que encontramos j no Nascimento da tragdia, em suas explicaes sobre a arte trgica e a esttica dionisaca, a concepo do mundo como jogo. O jovem Nietzsche pensa que o mito trgico proporciona o mximo prazer esttico, pois faz o heri trgico sofrer para comprovar que o desarmnico que representa a tragdia um jogo artstico que a vontade joga consigo mesma na eterna plenitude de seu prazer (NT/NT 24, KSA 1.152). A intuio nietzschiana do mundo como um jogo, um jogo de dados divinos, ou o jogo de foras12, ou o jogo das contradies at o prazer da harmonia traduzem a ideia do vir-a-ser de Herclito. Mas o que significa dizer que o mundo joga? Por acaso Nietzs-che estaria pensando que o mundo e a vida jogam seu jogo como aquele fundo dionisaco que produz artisticamente o mundo das formas aparentes apolneas? Fink diz: O homem tem a tremenda possibilidade de entender a aparncia como aparncia, e, a partir

    12 Sobre a relao entra a ideia de fora e potncia e o jogo, ver adiante a seo sobre a vontade de potncia e o jogo em sua relao com a arte.

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    de seu prprio jogo, submergir no grande jogo do mundo e, em tal imerso, tornar-se participante do jogo csmico13. Mas esse jogo do mundo pode agradar viso do artista que transcende a aparncia apolnea e as criaes da aparncia para tomar conscincia da vida e do mundo que, como um jogo, formam, constroem e destroem. s no seio desse jogo que surgem e aparecem os valores para alm de bem e mal, porque o jogo amoral.

    Desse modo, o jogo se converte em alegria com a aparncia. transfigurador porque possibilita o aligeirar da vida, a liberao passageira. E a aparncia pertence ao jogo humano. O jogo cria, produz um mundo ldico, um mbito de aparncia. Como diz Fink, o jogar uma criao infinita na dimenso mgica da aparncia14. Num certo sentido, podemos dizer que no jogo se suspende a autn-tica realidade do mundo, porque nesse mundo ldico o homem goza de um poder quase ilimitado, forma produtivamente e sem entraves, pois no produz no espao da autntica realidade. O jogo oculta em si o momento apolneo da mesmidade, mas tambm o obscuro momento dionisaco da autorrenncia. Esse mundo da aparncia que cria o jogo nos revela que ele est essencialmente determinado por uma funo representativa que explica semanticamente a etimologia do termo jogo (Spiel) em alemo e outras lnguas, pois significa, entre outras coisas, representar, tocar um instrumento, no sentido de interpretar, etc.. Portanto, pode-se dizer que na apa-rncia do jogo aparece o mundo, reflete-se a si mesmo; cumpre-se, em ltima instncia, a epifania dos deuses15.

    Numa anotao de 1872, Nietzsche fala expressamente do jogo da natureza como algo que acontece em si mesmo e no atravs

    13 FINK, E., op. cit., p. 225.14 Idem, op. cit., p. 28.15 Idem, op. cit., p. 195.

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    de outra coisa, algo fora do prprio jogo; isto , para o jogo, trate-se do jogo humano ou do jogo do mundo, o fundamental a autorre-ferncia que nele acontece. Por isso, o jogo para o homem um acontecer:

    Da natureza. Ela interpreta (spielt) um espetculo: se ela v a si mesmo, no sabemos, e ainda assim ela o interpreta para ns, que ficamos no canto. Seu espetculo sempre novo, porque sempre cria novos espectadores. A vida sua mais bela inveno, e a morte seu conceito artstico para o ter vida em demasia. (Nachlass/FP do inverno de 1872-1873, 24 [3], KSA 1.562).

    Porm, ns s estamos em condies de imitar a natureza, en-quanto ela interpreta para ns. A natureza inclui o homem no jogo, submete-o a seu ritmo, ironiza com ele como se fosse seu brinquedo. Na Aurora, lemos:

    Aquelas mos de ferro da necessidade, que sacodem o tabuleiro de dados do acaso, jogam seu jogo por um tempo infinito: tm de apare-cer nele dados que parecem perfeitamente semelhantes finalidade e racionalidade de todo grau. Talvez nossos atos de vontade, nossos fins, no sejam nada outro do que precisamente tais dados (...) e ns prprios, com mos de ferro, sacudimos o tabuleiro de dados, que ns prprios, em nossas aes mais propositais, nada mais fazemos do que jogar o jogo da necessidade. (M/A 130, KSA 3.122. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho).

    3. O jogo da criana-Zeus.

    Na Filosofia da poca trgica dos gregos, de 1873, Nietzs-che prope novamente a esttica do jogo que havia delineado no

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    Nascimento da tragdia. Aqui, a metafsica do jogo adquire uma definio mais precisa sob a interpretao feita da filosofia do vir-a-ser de Herclito. No escrito, a dicotomia entre Dioniso-Apolo, ser-aparncia, reconduzida ao jogo inocente da grande criana do mundo, Zeus. Esta criana-Zeus que destri as construes de areia sobre a orla do grande mar tem os traos da criana-Dioniso: O mundo o jogo de Zeus, ou, expresso fisicamente, o jogo do fogo consigo mesmo, apenas nesse sentido o uno (das Eine) ao mesmo tempo o mltiplo (das Viele) (PHG/FT 6, KSA 1.828).

    Sem dvida, Herclito encontrou aqui, como sugere Sara Kof-man, a metfora mais incrvel de todas as metforas16, ou, como diz Nietzsche, com a doutrina (Lehre) da lei no vir-a-ser e do jogo na necessidade ele abriu as cortinas do maior dos espetculos (PHG/FT 6, KSA 1.835). O mundo como jogo de Zeus indica para o que incrvel para a razo: que o uno ao mesmo tempo o mltiplo. Mas esse jogo da mesma ndole daquela do artista e da criana que constroem e destroem com inocncia:

    E esse jogo joga o Aion consigo mesmo. Transformando-se em gua e terra, faz, como uma criana, montes de areia borda do mar, faz e desmantela; de tempo em tempo comea o jogo de novo. (PHG/FT, KSA 1.830. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho).

    Nietzsche utilizar essa metfora de Herclito para expressar simbolicamente que o acontecer da vida dentro de um mundo finito uma criana inteligente com poder sobre-humano que, a partir de si e por si mesmo, produz de modo infantil um movimento sem meta nem fim. Ademais, a criana joga como se o que fizesse fosse algo real. Suas personagens so puras fices, aparncias ou formas

    16 KOFMAN, S. Nietzsche et la mtaphore. Paris : Galile, 1983, p. 35.

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    substitutivas de uma realidade inalcanvel ou ignorada, mas a criana preenche de vida as figuras que cria e que constituem o seu mundo. Por isso, a criana tem esse poder fantstico ilimitado para criar. Nietzsche tambm analisa a doutrina heraclitiana do vir-a-ser como luta entre contrrios:

    Da guerra dos opostos nasce todo vir-a-ser: as qualidades deter-minadas, que nos aparecem como duradouras, exprimem apenas a preponderncia momentnea de um dos combatentes, mas com isso a guerra no chegou ao fim, a contenda perdura pela eternidade (PHG/FT, KSA 1.825. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho).

    E essa contenda ou luta das polaridades o fogo que joga con-sigo mesmo, o correr do mundo como o jogo de Zeus. Desse modo, reconhece Herclito e os filsofos pr-socrticos em cuja proxi-midade, diz Nietzsche, sinto-me mais aquecido e mais bem disposto que em qualquer outro lugar (EH/EH, O Nascimento da Tragdia, 3, KSA 6.312) como sendo seus precursores, por considerarem o mundo um jogo divino e para alm de bem e mal (Nachlass/FP do vero-outono de 1884, 26 [193], KSA 11.201) e por proporcionarem um fundamento adequado onde se possam assentar seus prprios princpios: o vir-a-ser como autntica dimenso da realidade ou o pensamento da eterna luta dos contrrios, que teriam antecipado a dialtica Apolo-Dioniso, assim como a imagem do jogo como met-fora da unidade que pode ser ao mesmo tempo o mltiplo. Nietzsche, com sua metfora do jogo, abre um campo interessante para elaborar uma teoria antipessimista do trgico face filosofia de Schopenhauer. Para Masini, o fato de Nietzsche assumir essa imagem decisivo para compreender a inverso da metafsica de Schopenhauer da vontade primordial que imprime em todas as coisas o selo de sua condenao a continuar vivendo. Assim, o poder original que, no Nascimento da tragdia, se identificava com Dioniso, agora se identifica com o

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    fogo sempre vivo, com Zeus, com o Uni, e tambm com o Aion, como fora csmica primordial.

    Nietzsche tambm v em Herclito o pensador trgico para quem a vida radicalmente inocente. Herclito descrevia o jogo criativo do mundo deixando margem qualquer implicao teleolgica ou moral, e apenas descreve o mundo existente, tendo por ele o mesmo prazer contemplativo com o qual o artista v sua obra em vir-a-ser (PHG/FT 7, KSA 1.832). Por isso, entende a existncia a partir de um instinto de jogo, isto , faz da existncia um fenmeno esttico, no um fenmeno moral ou religioso, como o fizeram os esticos ao introduzirem uma viso finalista do mundo. E a razo para essa forma de entender a existncia reside em que o vir-a-ser no nenhum fenmeno moral, mas apenas um fenmeno artstico (PHG/FT 19, KSA 1.869). Donde, o mundo justificado apenas na medida em que se o interprete como o jogo do artista e da criana, isto , s se justifica o mundo atravs de uma interpretao esttica que exclua qualquer princpio moral ou finalista.

    Por outro lado, em sua interpretao do texto de Herclito, Nietzsche tambm pensa que a criana, o artista e a natureza pro-duzem do mesmo modo, pois jogam inocentemente:

    Um vir-a-ser e perecer, um construir e destruir, sem nenhuma prestao de contas de ordem moral, s tem neste mundo o jogo do artista e da criana. E assim como joga a criana e o artista, joga o fogo eternamente vivo, constri em inocncia e esse jogo joga o Aion consigo mesmo (PHG/FT 7, KSA 1. 830. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho).

    A inocncia do vir-a-ser a aceitao do mundo em todos seus aspectos, a viso do mundo que exclui toda interpretao moral que signifique ao mesmo tempo a introduo da ideia de culpabilidade, finalidade, etc. O vir-a-ser no um fenmeno moral, mas artstico

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    (PHG/FT 19, KSA 1.869). O mundo em seu carter trgico, isto , em seus aspectos mais terrveis e cruis, s pode ser justificado nos termos da inocncia, do jogo. Isso em virtude de que todo e qualquer acontecimento no um fruto finalstico de um deus, mas o fruto de um jogo do deus-criana de Herclito ou de uma inteligncia criadora, pois a afirmao do perecer e do aniquilar, decisiva numa filosofia dionisaca, o dizer-sim ao antagonismo e guerra, o vir-a-ser, com a recusa radical inclusive do conceito mesmo de ser (EH/EH, O nascimento da tragdia, 3, KSA 6.313). O vir-a-ser como jogo antinmico sempre inocente. Inocente a infncia, inocente a histria, inocente o tempo:

    H quanto tempo me esforo para provar a mim mesmo a completa inocnca do vir-a-ser! E por quais caminhos estranhos j passei! Uma vez, pareceu-me que tal era a soluo correta, de modo que decretei: a existncia algo da espcie de uma obra de arte, absolutamente no est sob a jurisdio da moral; ao contrrio, a moral pertence ao reino da aparncia. Noutra vez, eu disse: todos os conceitos de culpa so objetivamente desprovidos por completo de valor, subjetivamente, porm, toda vida necessariamente injusta e algica. Numa terceira vez, cheguei negao de toda finalidade e senti a incognoscibilidade das ligaes causais. E tudo isso para qu? No foi seno para criar para mim mesmo o sentimento de total irresponsabilidade (Nachlass/FP, 36 [10] de junho-julho de 1885, KSA 11.553).

    4. O jogo da criana: um modelo de jogo artstico

    Nietzsche estabelece continuamente um paralelismo entre o jogo da criana e o do artista, a um ponto tal que o filsofo se limi-ta a apenas distinguir um do outro, pois da mesma maneira que a criana joga, tambm joga o artista criador: como ocorre na criana,

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    tambm no artista a necessidade fora o artista a criar, pois o impulso ldico, que, sempre despertando de novo, chama vida outros mundos. (PHG/FT 7, KSA 1.830. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho). E assim como joga a criana e o artista, joga o fogo eternamente vivo, constri em inocncia e esse jogo joga o Aion consigo mesmo (PHG/FT 7, KSA 1.830. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho). A criana que joga no seno o onipotente Zeus17, a forma plstica do mundo, que em seu jogo recria repetidamente o vir-a-ser construindo e destruindo, e voltan-do de novo a construir eternamente. A forma de dizer sim vida, (Ja-sagen), o jogo da criao representado por essa criana que constri castelos de areia junto ao mar e que, quando se cansa de jogar, solta o brinquedo que tem s mos, mas que volta ao jogo e recolhe seu brinquedo do cho quando acometido pela necessi-dade. Nesse sentido:

    Assim intui o mundo somente o homem esttico que aprendeu com o artista e com o nascimento da obra de arte como o conflito da pluralida-de pode trazer consigo lei e ordem, como o artista fica em contemplao e em ao sobre a obra de arte, como necessidade e jogo, conflito e harmonia, tm de se emparelhar para gerar a obra de arte (PHG/FT 7, KSA 1.831. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho).

    Esse interesse pelo jogo da criana motiva-se fundamental-mente pelo fato de que Nietzsche acreditava que apenas nele que se mostrava de maneira exemplar e perfeita o fenmeno do jogo

    17 Num dos Prefcios, Sobre o pathos da verdade, o filsofo afirmava: Entre os homens, Herclito foi, enquanto homem, incrvel; e quando foi visto prestando tanta ateno ao jogo das crianas barulhentas, pensou em algo que nenhum mortal pensara em tal ocasio no jogo da grande criana do mundo Zeus e na eterna brincadeira da desintegrao e surgimento do mundo (CV/CP, KSA 1.758).

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    humano como tal. Ademais, o otimismo artstico (Nachlass/FP da primavera de 1888, 14 [100], KSA 13.278) prprio da criana. Por isso, o filsofo insiste que o fenmeno artista ainda o mais facilmente de ser detectado (...) O jogo, o intil, como ideal daquele-sobrecarregado-de-fora, como infantil. A infantilidade de Deus, pais paizon (Nachlass/FP do outono de 1885-outono de 1886, 2 [130], KSA 12.129). Dessa forma, acreditou no sentido humano universal do jogo da criana:

    A eterna criana. Ns pensamos que contos de fada e brincadeiras (Spiel) so parte da infncia: mopes que somos! Como se nos fosse possvel viver em qualquer outra idade da vida sem contos de fada e brincadeiras! Sem dvida, ns os denominamos e sentimos de modo diferente, mas justamente isso mostra que se trata da mesma coisa pois tambm a criana sente a brincadeira como seu trabalho e o conto de fadas como sua verdade (VM/OS 270, KSA 2.493).

    O homem que, depois de uma srie de transformaes dramti-cas pode chegar a ser o que era, compreende todas as aes humanas como espcies de jogo, como variaes de um mesmo potencial ldico originrio18, com o qual o jogo se converte em chave herme-nutica primordial e universal do mundo humano.

    Entre as caractersticas que podemos citar do jogo da criana e que se assimilam ao jogo em geral esto as j mencionadas ausncias de finalidade e utilidade, mas, sobretudo, destacam-se a inocncia e a seriedade como as duas qualidades fundamentais atravs das quais podemos vislumbrar a tese nietzschiana da inocncia do vir-a-ser19 e a justificao esttica da existncia. Inocncia a abertura,

    18 LEMAIN, T., op. cit., p. 19.19 Cf. NEGRI, A. Nietzsche e/o linnocenza del devenire. Npoles: Liguori, 1986.

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    para alm de qualquer por qu, de qualquer pergunta como ga-rantia externa para o domnio da plenitude, da perfeio e do fun-damento. Inocncia tambm esquecimento, um comear-de-novo, um jogo, uma roda rodando por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim (ZA/ZA I, Das trs transmutaes, KSA 4.31. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho). Assim, a criana quem joga, quem repetidamente recria o vir-a-ser e renova o mundo. A inocuidade e leveza do jogo da criana era algo singular no mundo. A criana no tem sentimento de culpa, no se sente responsvel nem tem nenhuma valorao moral por aquilo que faz, representa um acontecer puramente natural. Nesse sentido, a concepo do jogo que Nietzsche tem se aproxima da esttica de Hegel, pois para este a indiferena do jogo consiste em que seu sentido mais ligeiro ao mesmo tempo a sublime e verdadeira seriedade20.

    E precisamente nessa seriedade do jogo que se encontra a melhor prova para a inocncia do jogo mesmo. Ainda que a criana comece a jogar quando tenha vontade, sinta desejo, tambm deixa de jogar quando quer, no entanto, quando joga, segue as exigncias internas do jogo, obedece s suas regras. Talvez o jogo represente por isso aquela grande seriedade terrena, esse ideal estranho, tenta-dor, rico de perigos, o ideal de um esprito que joga ingenuamente, isto , sem querer e por transbordante plenitude e potencialidade (FW/GC 382, KSA 3.636. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho), dado que se joga porque a vida se transborda e se potencia-liza. Por trs do jogo e de sua aparente arbitrariedade e indiferena existe, portanto, uma seriedade do jogo. Eis a suprema possibili-dade humana resolver tudo no jogo, atrs do qual est a seriedade (Nachlass/FP da primavera-vero de 1874, 34[31], KSA 7.801), diz

    20 HEGEL, G.W.F. Das Kunstwerk Objetive. In: Vorlesungen ber die Philosophie der Geschichte. Em op. cit., vol. 12, p. 297.

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    Nietzsche. Como indica Gadamer, jogo e seriedade, o movimento vital de excesso e exaltao e a fora tensa de nossa energia vital esto entrelaados no que h de mais profundo21, isto , parece que toda forma de seriedade acompanhada por um possvel comporta-mento ldico, como sua prpria sombra. A capacidade de jogar foi reconhecida sempre como um exerccio da mais alta seriedade. Nietzsche, diz Gadamer, festeja na leveza divina do jogo o poder criador da vida e da arte22. Portanto, o jogo no a outra face da seriedade. A seriedade ldica o que faz com que, em certos momentos, a criana se converta em homem, pois a maturidade do homem reside em ter reencontrado a seriedade com que brincava (beim Spiel) quando criana (JGB/BM 94, KSA 5.90). Mas essa seriedade uma seriedade esttica, no tica.

    Por outro lado, a seriedade do jogo tambm tem a ver com o fato de o jogar pertencer ao jogo. Isso exclui qualquer possibilidade de uma relao objetiva entre o jogar e o jogo. Por isso, no o jogador que define o jogo, mas o jogo define os jogadores. A seriedade do jogo significa simplesmente que aqueles que dele participam se entregam ao ritmo do jogo, ao prazer em sua realizao rtmica. Gadamer dizia, com a perspiccia que o caracteriza, que todo jogar um chegar a ser jogador, e que o sujeito do jogo o jogo mesmo23. Desse modo, o jogo se converte na expresso da capacidade criativa do homem, de seu ser artista, de sua necessidade de criar; mas ao mesmo tempo ele o modo de ver a realidade pelo lado do artista, isto , atravs do vu da aparncia que oculta a base das coisas. Simnides j aconselhava que era preciso tomar a vida como um jogo, e os gregos cercavam

    21 GADAMER, H.-G. El juego del arte. In: Esttica y hermenutica. Trad. A. Gmez Ramos. Madrid: Tecnos, 1996, p. 136.

    22 Idem, ibidem. 23 Cf. GADAMER, H.-G. Verdad y mtodo. Trad. Rafael Agapito e Ana Agud. Salamanca:

    Sgueme, 1977, p. 143ss.

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    a vida com mentiras, pois sabiam que unicamente atravs da arte at mesmo a desdita poderia tornar-se deleite (MA I/HH I 154, KSA 2.146). Na realidade, tanto a criana como o artista em sua atividade ldica fazem de conta, num gesto intencional em direo a algo. Esse faz de conta, trao fundamental da essncia do jogo, tambm prprio da arte. A obra de arte no um objeto, tampouco utenslio, mas sim, refere-se a algo, mostra algo. uma obra, como diz Gadamer, porque algo jogado24, uma representao e, como tal, comunica-se como jogo, pois suas regras lhe so inerentes e postas a partir de sua prpria essncia sem que dependam de um critrio exterior.

    5. Zaratustra ensina os homens a jogar

    Por fim, Nietzsche mostrar em seu Zaratustra como o jogo a forma mais alta da atividade humana e ao mesmo tempo a forma de atividade capaz de superar o niilismo. Por outro lado, tambm preciso ver a vontade de potncia como jogo, e, se a vontade de potncia representa a ideia criativa do jogo, a doutrina do eterno retorno expressa o carter de jogo do mundo que o alm-do-homem cria atravs de sua vontade de potncia. De maneira que a ideia de jogo atrai de modo determinante os temas fundamentais que Nietzs-che desenvolve em sua maturidade. Heidegger muito expressivo a esse respeito ao afirmar que a metafsica de Nietzsche pensa o carter de jogo do jogo do mundo do nico modo possvel: a partir da vontade de potncia e do eterno retorno do mesmo25. Uma prova para isso pode ser encontrada no discurso de Zaratustra sobre as

    24 GADAMER, H.-G., op. cit., p. 132.25 HEIDEGGER, M. Nietzsche I y II. Trad. Luis Vermal. Barcelona: Destino, 2000,

    v.2, p. 310.

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    transmutaes do esprito, em que a terceira transmutao, quando o leo se transmuta em criana, proclama a afirmao criativa da existncia, afirmao que se desdobra metaforicamente por meio da atividade prpria criana, o jogo criativo que emerge como forma suprema da atividade humana.

    E assim, Zaratustra seguir mostrando ao longo de seus discur-sos como se exemplifica em sua pessoa o sagrado sim da criana, tambm associando a capacidade de criar ao jogo e inocncia infantil. Isso se confirma com a pergunta: Onde h inocncia? Onde h vontade de gerar. E quem quer criar para alm de si, este tem para mim a mais pura das vontades. (ZA/ZA II, Do imaculado conhecimento, KSA 4.157. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho). E, mais uma vez, Zaratustra, da mesma maneira com a qual havia repreendido os homens por no saberem danar nem rir, volta sua pedaggica ladainha: os homens superiores tampouco sabem jogar, e esse precisamente o problema. Para poder superar a si mesmo e poder criar para alm de si, preciso aprender a jogar, a saber jogar. E saber jogar afirmar o acaso26. Deleuze insiste no componente do acaso que todo jogo possui. Tomando como modelo o lanamento de dados, os dados lanados so a afirmao do acaso, a combinao ao cair a afirmao da necessidade. A necessidade se afirma no acaso, o ser se afirma no vir-a-ser e o acaso inocente (...) como uma criancinha! (ZA/ZA III, No monte das oliveiras, KSA 4.221. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho), pois aqui no entram nem clculo nem reflexo. Abolir o acaso significa abrir caminho para a causalidade ou finalidade, confiar numa finalidade. Isso que o que o mau jogador faz. Confia na razo, na teia de ara-nha, na m conscincia. Zaratustra suficientemente claro a esse

    26 DELEUZE, G. Nietzsche y la filosofa . Trad. Carmen Artal. Barcelona: Anagrama, 1986, p. 42.

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    respeito, quando afirma que para se tornar um verdadeiro criador e jogar bem necessrio no dar ouvidos a essas pequenas palavras falsas que intoxicam nossas aes: vossa virtude quer precisamente que no faais nenhuma coisa com por ou a fim de ou porque (ZA/ZA IV, Do homem superior, 11, KSA 4.362), ou negar que o universo tenha finalidade, que no h causas a serem conhecidas ou finalidades a serem esperadas. Desse modo, o eterno retorno o resultado do abandono, a afirmao da necessidade. Assim Nietzs-che o expressa ao dizer que:

    Se o mundo pode ser pensado como grandeza determinada de fora e como nmero determinado de centros de fora e toda outra repre-sentao permanece indeterminada e conseqentemente inutilizvel , disso se segue que ele tem de passar por um nmero calculvel de combinaes, no grande jogo de dados de sua existncia. (...) o mundo como curso circular que infinitas vezes j se repetiu e que joga seu jogo in infinitum (Nachlass/FP da primavera de 1888, 14 [188]. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho).

    O jogo como processo artstico , portanto, o caminho que Nietzsche elege para dizer sim vida, pois o princpio mais original do mundo fenomnico. Djuric cr que possvel afirmar com toda certeza que Nietzsche contempla como um acontecimento artstico primrio a transformao da prxis humana em jogo, e que o filso-fo pensou essa transformao como uma configurao artstica da atividade humana, e tambm como uma identificao entre vida e arte, pois ambos liberam em certa medida a potncia criadora da vida e esto estreitamente relacionados entre si pelo fato de uma pertencer outra reciprocamente, mas no somente na medida em que o jogo constitui a verdadeira e mais profunda raiz de toda arte. E embora nem todo jogo tenha um cunho artstico, a arte se preenche do esprito ldico, representa inclusive a forma original

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    do jogo. Donde a expresso gadameriana o jogo da arte27. O jogo da arte seria sobretudo representao que diferena de outros jogos sempre para algum, para um espectador, embora de fato no haja ningum que o escute ou o veja28. Est claro que no h uma relao inseparvel entre esse carter de representao, refe-rncia, associado arte e algum tipo de dependncia com aqueles que a representam.

    Para concluir, podemos afirmar sem reservas que a partir do conceito de jogo que Nietzsche tratar de superar as iluses da au-toconscincia e os preconceitos do idealismo da conscincia gerados pela mentalidade metafsica. O jogo nunca um mero objeto, mas sim, existe para aquele que dele participa, mesmo que seja como espectador.

    Abstract: With the category of game Nietzsche is introducing a new language to think beyond metaphysics. The interpretation of the world, life and existence as a game is Nietzsches response to a worldview in which there is no meaning, no purpose, no truth. In this article we have discussed in various contexts the category of game in its metaphysical artist, from the philosophy of Heraclitus, from the paradigm of child playing, from the teachings of Zarathustra.Keywords: game agn artist child.

    27 Gadamer considera que a noo de jogo permite uma aproximao com o significado da experincia esttica, uma experincia que se interpreta como processo independente da conscincia dos sujeitos: o sujeito da experincia da arte (...) no a subjetividade daquele que experimenta, mas a obra de arte mesma. E esse (...) o ponto para o qual se volta significativamente o modo de ser do jogo. Esttica y hermenutica, op. cit., p. 129 ss.

    28 GADAMER, H.-G. Verdad y mtodo, op. cit., p. 151.

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    Artigo recebido em 20/10/2010.Artigo aceito para publicao em 05/11/2010.