19
www.lusosofia.net ÉTICA, POLÍTICA E SOCIEDADE Alexandre Franco de Sá 2009

Ética, Politica e Sociedade

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Sá, Alexandre - Ética, Politica e Sociedade

Citation preview

Page 1: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

www.lusosofia.net

ÉTICA, POLÍTICA ESOCIEDADE

Alexandre Franco de Sá

2009

Page 2: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Page 3: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Covilhã, 2009

FICHA TÉCNICA

Título: Ética, Política e SociedadeAutor: Alexandre Franco de SáColecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2009

Page 4: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Page 5: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Ética, Política e Sociedade∗

Alexandre Franco de Sá

A reflexão que aqui pretendemos propor como conjugação datríade “ética, política e sociedade” parte de uma verificação sim-ples: vivemos em sociedades que têm na sua base a representa-ção, explícita ou implícita, de uma superioridade moral incontes-tável das suas instituições políticas sobre todas as outras, passa-das e contemporâneas; mas vivemos também em sociedades cujosmembros cada vez mais se afastam destas mesmas instituições, sedemitem de nelas participarem, encontrando nelas uma corrupçãomoral com que não estão dispostos a pactuar nem transigir.

Recentemente, os problemas éticos levantados pela invasão eocupação do Iraque por potências ocidentais – por potências demo-cráticas e liberais – podem ilustrar de um modo privilegiado o pro-blema de que nos propomos partir. Independentemente de todasas variantes de justificações aventadas pelas potências invasoraspara a justificação da invasão, é interessante verificar que, no Oci-dente, o único argumento tido por evidente e incontestável con-sistiu no da superioridade das suas instituições políticas sobre as

∗O presente texto foi elaborado a partir das reflexões apresentadas no XIXEncontro da Associação de Professores de Filosofia, que decorreu em Coimbra,entre 10 e 11 de Fevereiro de 2005, e foi submetido ao tema: A ética e os desafiosdo mundo contemporâneo. Da mesa em que foram apresentadas – intitulada“Ética, Política e Sociedade” – fizeram também parte José Pacheco Pereira eHermínio Rico.

3

Page 6: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

4 Alexandre Franco de Sá

instituições tirânicas e despóticas do Iraque. Diante de uma tal evi-dência incontestável, a única controvérsia entre os decisores polí-ticos ocidentais foi, no fundo, a de saber se a superioridade moraldas suas instituições poderia por si surgir como justificação sufi-ciente para bombardear, em qualquer altura tacticamente conveni-ente, um qualquer povo que se considere, em confrontação comelas, e para usar os termos de John Rawls em The Law of Peoples,“indecente” e “fora da lei”. Em tal controvérsia, o chamado neo-conservadorismo americano tem, sem dúvida, o mérito da clarezameridiana. Segundo este, a incontestável superioridade moral dasdemocracias liberais é já sempre uma justificação imediata e sufici-ente para que um acto de força, uma intervenção militar ou policialunilateral, se liberte de “complicações morais”. Como se pode lerclaramente em The War over Iraq, de Lawrence Kaplan e WilliamKristol: «A esperança de deixar ao mercado a tarefa da democra-tização envolveu a equipa de Clinton em complicações morais àsquais não pôde dar resposta adequada. [...] Longe de espalhar ademocracia, a conduta internacional dos Estados Unidos estava atornar-se indiscernível da dos europeus. A doutrina de Bush rejeitaa assunção complacente de que o “compromisso” será suficientepara promover a democratização. Ela reconhece que a democra-cia é uma escolha política, um acto de vontade. É alguém, e nãoalgo, que tem de criá-la»1. Contudo, mesmo para as posições po-líticas e partidárias mais reservadas quanto a um direito imediatodas democracias liberais a invadir e ocupar militarmente Estadoscaracterizados por outros tipos de instituições políticas, a mesmasuperioridade moral das democracias liberais surge como inquesti-onável. Dir-se-ia que, para as diferentes instâncias e sensibilidadesque no Ocidente europeu ocupam o poder estadual, para os cen-tros que forjam a sensibilidade geral daquilo a que se chama uma“opinião pública”, para todos os poderes e todas as oposições, a

1 Lawrence F. Kaplan, William Kristol, The War over Iraq: Saddam’s Ty-ranny and America’s Mission, San Francisco, Ecounter Books, 2003, p. 108.

www.lusosofia.net

Page 7: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Ética, Política e Sociedade 5

superioridade moral das instituições políticas ocidentais consistenuma espécie de último reduto de uma doutrina consensual.

No entanto, para além deste consenso, a vida política nas demo-cracias liberais ocidentais caracteriza-se por um crescente cepti-cismo e desmotivação. Uma comparação simples entre a contes-tação à Guerra do Vietname e à invasão do Iraque, nos EstadosUnidos, mostra que, no caso desta última, a diferença consiste fun-damentalmente em ser levada a cabo sob uma atmosfera de pro-fundo cepticismo, como se os abusos e as mentiras fizessem fatal-mente parte de uma vida política em que nenhuma pessoa de bemse gostaria de envolver. E é este sentimento difuso que hoje nãopode deixar de suscitar a questão: como é possível que as nossasinstituições, cuja superioridade moral aparece como incontestável,produzam, por outro lado, tanto desalento e apatia? Será – comoafirmam alguns – o afastamento e a indiferença de tantos homensem relação à vida política, nas sociedades ocidentais, já um impor-tante testemunho do seu elevado grau de liberdade e, nesse sen-tido, uma confirmação da incontestável superioridade moral dassuas instituições políticas? Ou antes manifestará tal afastamentoe indiferença que, sob a permanência formal das mesmas insti-tuições, a liberdade de que estas eram inicialmente expressão setransforma e desvanece, tornando-as hoje espectros de uma liber-dade que já não existe? Diante da indiferença e do afastamentode importantes sectores populacionais das nossas sociedades emrelação às instituições políticas que se apresentam como garantesda sua liberdade, não seremos forçados a perguntar se tais institui-ções se transformaram intimamente, mantendo os seus contornosexteriores, mas perdendo a sua “alma”, ou seja, perdendo a capa-cidade de serem expressão de uma liberdade que as determinavacomo moralmente superiores? Que tipo de argumentos nos resta-rão hoje para a afirmação de uma superioridade moral das nossasinstituições políticas? Mesmo que hesitemos numa resposta dema-

www.lusosofia.net

Page 8: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

6 Alexandre Franco de Sá

siado apressada, a pergunta parece-nos hoje adquirir um sentidoque a torna inevitável.

Um primeiro argumento em que se alicerça a representação dasuperioridade moral das instituições políticas ocidentais – aqueleque é porventura o argumento mais imediato – consiste naquiloa que se poderia chamar um argumento de natureza deontológica,um argumento que estabelece uma tal superioridade moral no planodos princípios. Um tal argumento é simples e, com toda a clareza,poderia ser enunciado do seguinte modo: as instituições políticasdas sociedades democráticas e liberais são moralmente superioresporque os seus cidadãos têm nelas um elevado grau de liberdade,sendo chamados a deliberar livremente, de acordo com os seusprincípios, e a realizar escolhas em conformidade com a sua livredeliberação. Segundo um tal argumento, as instituições políticasdo Ocidente, longe de contrariarem as diferenças entre os seus ci-dadãos, antes as promovem, permitindo a sua livre expressão. E aliberdade que por tais instituições é promovida é levada a cabo numduplo sentido: por um lado, ela cumpre-se no sentido democráticoda determinação do governo e do Estado pelos cidadãos que nelese integram; por outro lado, esta mesma liberdade realiza-se nosentido liberal de uma cada vez menor determinação dos cidadãospelos seus governos e Estados, ou seja, no sentido da progressivaconquista pelos cidadãos de uma esfera inviolável de privacidadeque progressivamente se estende e alarga.

A partir de um tal argumento, o percurso reflexivo que aquipropomos implica perguntar: corresponderão as instituições polí-ticas concretas das nossas sociedades ocidentais à emergência deuma tal liberdade? A resposta a esta questão não se pode restringiràquilo a que se poderia chamar um plano meramente formal. For-malmente, é inquestionável que as instituições políticas das socie-dades democráticas e liberais assentam, por definição, na liberdadede escolher. Contudo, conduzindo a questão para além do planoda simples formalidade, interessa aqui aprofundar a pergunta, per-

www.lusosofia.net

Page 9: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Ética, Política e Sociedade 7

guntando pela natureza da própria escolha. Por outras palavras:a questão que aqui consideramos exige perguntar não apenas sese escolhe ou não nas nossas instituições políticas, mas tambémcomo se escolhe no quadro destas mesmas instituições. E é no se-guimento desta pergunta que aqui nos parece inevitável uma consi-deração simples: das escolhas feitas no enquadramento das nossasinstituições políticas faz essencialmente parte que os cidadãos nãosejam incomodados com a exigência de uma deliberação racionalconducente à escolha.

Escolher é, para os cidadãos das nossas democracias liberais,um direito simplesmente decorrente da sua liberdade privada: umdireito decorrente da sua liberdade de viver de acordo com as suasíntimas inclinações e com os princípios interiores de que não abdi-cam e com que não transigem. Assim, longe de derivar da respon-sabilidade da deliberação, a escolha é antes, nas nossas sociedades,a afirmação da inocência e da intransigência de alguém que escolhesem se confrontar com as dificuldades e as exigências intrínsecasao acto de deliberar. Pascal Bruckner, em La tentation de lŠin-nocence, analisa uma tal intransigência como o resultado de umaperda da concepção da vida humana como “devir”, como um pro-cesso de conquista, de esforço e de maturação. Perdida esta con-cepção, apenas resta ao homem ser “autêntico”, ser “ele mesmo”,tendo como meta não qualquer virtude, qualquer vir-a-ser ou qual-quer dever-ser, mas apenas a expressão sem barreiras daquilo que,no seu núcleo mais íntimo, já sempre é: «Já não “devenho”, soutudo aquilo que devo ser em qualquer instante, posso aderir semremorsos às minhas emoções, invejas, fantasias. Sendo a liberdadea faculdade de se livrar de determinismos, exijo esgotá-los o maisdepressa possível: não ponho quaisquer limites aos meus apetites,já não tenho de me construir, isto é, de introduzir uma distânciaentre mim e mim, já não tenho senão de seguir a minha inclinação,de fundir-me comigo mesmo»2. Longe de surgir de uma delibera-

2 Pascal Bruckner, La tentation de l’innocence, Paris, Grasset, 1995, p. 107.

www.lusosofia.net

Page 10: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

8 Alexandre Franco de Sá

ção racional em que são pesados prós e contras, longe de ter lugarnuma esfera pública partilhada onde as circunstâncias e os custosdas opções não podem deixar de ser ponderados, as escolhas doscidadãos das democracias liberais são secretas, íntimas, responsá-veis apenas perante a intimidade dos princípios próprios e, nessamedida, despojadas de qualquer culpabilidade. Na introdução doseu livro La senda del mal, Rafael del Águila caracteriza correcta-mente um tal cidadão absolutamente inocente, isento de qualquerculpa, como um “cidadão impecável”: «cidadãos auto-satisfeitosirresponsáveis pelas decisões, crentes na fé da harmonia política,incapazes de enfrentar as cisões a que as decisões públicas condu-zem, sem possibilidade de desenvolver a sua autonomia de juízono meio da auto-complacência em que se movem, sem qualquertensão cidadã e em permanente menoridade, vivendo o sonho semlimites da adolescência política em que tudo é possível e, alémdisso, o é sem custos»3.

A determinação do modo como se escolhe democraticamenteconduz a uma visão sobre as nossas instituições políticas diferenteda sua representação comum. Elas aparecem assentes numa estru-tura essencialmente oligárquica em que os cidadãos se distinguem,no plano estritamente político, em dois grupos fundamentais: emprimeiro lugar, um grupo oligárquico mais ou menos abrangente,um grupo de “especialistas em nada senão política”, transitando decargo para cargo, cujo papel consiste fundamentalmente em con-centrar em si o ónus das decisões, o peso da transigência que as de-cisões exigem e, nesse sentido, o fardo da culpa; em segundo lugar,uma massa de cidadãos impecáveis nos seus princípios, imaculadosnas suas decisões, socialmente empenhados ou socialmente indife-rentes, mas que se caracterizam por transferirem ciclicamente paraos decisores políticos, para os “oligarcas”, a culpa que possibilitaa sua absoluta inocência. Estes dois grupos pertencem-se, exigem-

3 Rafael del Águila, La senda del mal. Política y razón de Estado, Madrid,Taurus, 2000, p.22.

www.lusosofia.net

Page 11: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Ética, Política e Sociedade 9

se e alimentam-se mutuamente. Por um lado, a existência cres-cente de uma grande massa de cidadãos inocentes, fiéis apenas aosseus princípios íntimos, intransigentes e críticos, mais ou menossocialmente intervenientes, mas rigorosamente “independentes” eauto-excluídos da culpa política, possibilita e estimula, nas nossasdemocracias liberais, a ocupação do poder por grupos oligárqui-cos fechados, tal como são hoje crescentemente os partidos po-líticos ou os interesses sectoriais, alimentados pela sua exposiçãopública conseguida por meio das relações íntimas com os mass me-dia. Por outro lado, a ocupação do poder por parte das oligarquiaspartidárias, a exclusiva responsabilização dos chamados “políticosprofissionais”, origina e alimenta a preservação da inocência, daintransigência e do carácter imaculado de “cidadãos impecáveis”que nada querem ter a ver com a mácula inevitavelmente contidanas decisões políticas.

Assim, dir-se-ia que as instituições políticas das nossas demo-cracias liberais assentam neste duplo crescimento. Por um lado,elas assentam na absoluta responsabilização e culpabilização – emprocessos que se estendem desde a condenação à ridicularizaçãopúblicas – de “homens políticos” cuja vida se confunde crescen-temente com a sua exposição pública: homens de quem se pode-ria dizer serem pagos para habitarem um permanente pelourinho.Como escreve Giorgio Agamben, em Mezzi senza fine: «Não háhoje sobre a terra um único Chefe de Estado que não seja, nestesentido, virtualmente um criminoso»4. Por outro lado, estas mes-mas instituições assentam na promoção pública de uma vida cívicabaseada numa cada vez maior inocência, ou seja, numa cada vezmaior ocupação da vida política por “políticos profissionais” e pororganizações partidárias que, ao limite, tendem a esgotar e ocuparinteiramente esta mesma vida.

4 Giorgio Agamben, Mezzi senza fine: note sulla politica, Turim, BollatiBoringhieri, 1996, p. 86.

www.lusosofia.net

Page 12: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

10 Alexandre Franco de Sá

O argumento deontológico na determinação de uma superiori-dade moral das sociedades democráticas e liberais não pode deixarde ser assim afectado pelo aspecto concreto que as suas institui-ções políticas oferecem. Mas não é só a ideia de uma superio-ridade moral destas mesmas instituições no plano dos princípiosque este aspecto concreto põe em causa. Também um segundo ar-gumento acerca da superioridade moral das democracias liberais,um argumento que a justifica no plano dos fins, um argumento denatureza teleológica, não pode deixar de ser atingido. Um tal ar-gumento procura justificar esta superioridade moral em função dotipo de homem cuja representação está subjacente às nossas insti-tuições como a sua meta fundamental. Segundo um tal argumento,dir-se-ia que as instituições políticas das sociedades democráticas eliberais são moralmente superiores porque são essencialmente edu-cadoras e formadoras, pressupondo a preparação e, nessa medida,já sempre preparando os seus cidadãos para o exercício da sua li-berdade e para o reconhecimento da liberdade dos outros.

Diante de um tal argumento, do mesmo modo que para o pri-meiro, não nos é hoje possível deixar de perguntar se as nossasinstituições políticas correspondem efectivamente ao aparecimentodesta preparação para a liberdade. E, do mesmo modo que no pri-meiro, não basta aqui repousar sob a configuração meramente for-mal de uma tal pergunta. Num plano inicial e imediato, a repostaa esta pergunta não pode deixar de ser inequívoca: é incontestá-vel que as instituições políticas das democracias liberais actuaisse configuram em função da afirmação por parte dos cidadãos quenela se integram de uma fundamental liberdade. Mas, aprofun-dando o problema, não pode também deixar de ser perguntado:que liberdade é por elas promovida? Como se exerce esta mesmaliberdade? Só uma confrontação com este aprofundamento da per-gunta pode decidir uma resposta à questão de saber se é possívelafirmar uma superioridade moral das nossas instituições políticassob uma argumentação de natureza teleológica. E é entrando neste

www.lusosofia.net

Page 13: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Ética, Política e Sociedade 11

plano do problema que uma tal superioridade não pode deixar desurgir, de imediato, como problemática.

Se as nossas instituições políticas assentam na formação e pro-moção de homens livres, a liberdade destes mesmos homens, a li-berdade dos “cidadãos impecáveis” a que há pouco aludimos, a li-berdade de homens inocentes e imaculados que, intransigentes nosseus princípios, nada querem ter a ver com a culpa e a responsabi-lidade já sempre intrínsecas à tomada de decisões, não pode deixarde se caracterizar como uma liberdade deficiente. Ela assemelha-seà liberdade dos personagens daquela sátira que, estando constran-gidos, durante toda a sua vida, a escrever um diário, conservam,no entanto, a sua liberdade, na medida em que podem escrever nodiário que veementemente se recusam a escrevê-lo. Tal é a únicaliberdade possível, numa sociedade em que a educação para a liber-dade se confunde com o cultivo de uma inocência de que faz parteuma espécie de messianismo sem esperança: uma espécie de estra-nha consciência de que nada mudará o desenvolvimento imanentedas coisas acompanhado do secreto sentimento, cada vez mais di-luído, de que é possível inverter uma situação através da escolhaimprevista de uma personagem providencial.

Numa tal sociedade, os homens inocentes são então chama-dos a apreciar a “vida política” e a realizar “escolhas políticas”como um crítico teatral que aprecia um espectáculo. As escolhassurgem fatalmente, de tempos a tempos, não como uma mudança,mas como uma troca de personagens, na qual se reflecte a puniçãoinevitável do decisor político, encarregue da assunção da respon-sabilidade e da culpa, às mãos de um cidadão imaculado e impe-cável, absolutamente inocente e intransigentemente crítico. Comoescreve Pascal Bruckner, em La mélancolie démocratique: «Mu-damos de pessoal político como fazemos zapping na televisão, porfadiga das mesmas imagens»5. E, nesta sociedade eminentementecrítica, o espectáculo é justamente o instrumento que aprofunda a

5 Pascal Bruckner, La mélancolie démocratique, Paris, Seuil, 1992, p. 61.

www.lusosofia.net

Page 14: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

12 Alexandre Franco de Sá

inocência, a intransigência nos princípios próprios e, consequente-mente, o isolamento do próprio espectador. Uma passagem de GuyDebord em La société du spectacle expressa de um modo extrema-mente adequado este processo: «O que liga os espectadores nãoé senão uma relação irreversível ao centro mesmo que mantém oseu isolamento. O espectáculo reúne o separado, mas reúne-o en-quanto separado»6. Assim, numa tal “sociedade do espectáculo”,o espectador do espectáculo não se mantém pura e simplesmente àmargem dele. Ele faz parte do espectáculo, na medida em que nãohá espectáculo sem espectador. Mas a sua intervenção no espec-táculo não pode deixar de se caracterizar como uma mera obser-vação à distância e, neste sentido, como uma participação fictíciano próprio espectáculo. E o carácter de ficção desta participação éimediatamente compreensível: o espectador está presente no “es-pectáculo”, do mesmo modo que o cidadão inocente está presentena “vida política”; ambos estão presentes não propriamente comoparticipantes efectivos do espectáculo, mas fazendo ficticiamentecomo se participassem.

O resultado da caracterização da “vida política” democrática eliberal como uma ficção pode-se traduzir numa conclusão polémi-ca, cujo reconhecimento explícito não pode deixar de levantar re-sistências, mas de que o desencanto com as nossas instituiçõespolíticas dá um sinal cada vez mais visível: a conclusão de queé crescentemente problemática a afirmação de uma superioridademoral das sociedades ocidentais sobre outro tipo de sociedades ede que as suas estruturas políticas têm crescentes dificuldades parase justificarem, seja no plano deontológico dos seus princípios epressupostos, seja no plano teleológico dos seus fins e metas fun-damentais. E o reconhecimento de tais dificuldades não pode dei-xar de suscitar a questão: haverá algum argumento restante, algumargumento residual, capaz de fundar hoje a superioridade moraldas nossas instituições políticas? É a esta pergunta que, explícita

6 Guy Debord, La société du spectacle, Paris, Gallimard, 1992, p. 30.

www.lusosofia.net

Page 15: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Ética, Política e Sociedade 13

ou implicitamente, se tenta hoje responder, com a alusão àquiloa que se poderia chamar o argumento meramente pragmático deum minimum de moralidade nas nossas instituições. Segundo esteterceiro e derradeiro argumento, tais instituições poderão não sermoralmente superiores nos seus princípios nem nos seus fins, massão-no em função das consequências pragmáticas do seu exercício:uma vida pacífica e baseada no controlo permanente dos conflitos,por um lado; a promoção da paz e da tolerância entre pessoas e po-vos, por outro. Dir-se-ia então aqui que, nesta perspectiva, a nossapolítica se compreende como superior na exacta medida em quecorresponde ao termo da acção política propriamente dita, ou seja,na exacta medida em que corresponde àquele estado póshistóricodescrito por Kojève, na sua Introduction à la lecture de Hegel, emque a acção propriamente humana desaparece e o homem regressaà animalidade: «Tal não é uma catástrofe biológica: o Homempermanece em vida enquanto animal que está de acordo com a Na-tureza ou o Ser dado. O que desaparece é o homem propriamentedito, isto é, a Acção negadora do dado e o Erro ou, em geral, oSujeito oposto ao Objecto. De facto, o fim do Tempo humano ouda História, isto é, o aniquilamento definitivo do Homem propria-mente dito ou do Indivíduo livre e histórico, significa simplesmentea cessação da Acção no sentido forte do termo. O que quer dizer, naprática: o desaparecimento das guerras e das revoluções sangren-tas» Alexandre Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, Paris,Gallimard, 2003, p. 435.; «Fui levado a concluir que o Americanway of life era o género de vida próprio do período pós-histórico,prefigurando a presença actual dos Estados Unidos no Mundo ofuturo “eterno presente” de toda a humanidade. Assim, o regressodo Homem à animalidade já não aparecia como uma possibilidadeainda a vir, mas como uma certeza já presente»7. As consequên-cias daquilo que Kojève descreveu como uma conversão do homemem animal assumem então hoje, nas sociedades ocidentais, aquilo

7 Idem, p. 437.

www.lusosofia.net

Page 16: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

14 Alexandre Franco de Sá

a que se poderia chamar uma função consoladora. E o pensamentosubjacente a uma tal função é simples: as nossas instituições políti-cas podem promover a ocupação do espaço político por oligarquiasmedíocres, por partidos clientelares e por interesses egoístas; maselas são, apesar de tudo, apenas “as piores com a excepção de todasas outras”, na medida em que não se caracterizam por revoluçõese levantamentos, por prisões políticas, perseguições e julgamentosarbitrários, por entraves à iniciativa individual, pelo descontrolo dopoder policial ou pelo empreendimento de guerras injustificadas.

Contudo, diante de um tal pensamento, que está na base maisfunda da autorepresentação que as nossas sociedades se constroemacerca da vigência das suas instituições políticas, não pode dei-xar de despertar também, como atrás, a necessidade de aprofundara questão. Se é um tal pensamento que está subjacente à refe-rência a um minimum de moralidade nas nossas instituições po-líticas, importa perguntar: o que está implicitamente pressupostoneste mesmo pensamento? E a resposta a esta pergunta é imedi-atamente clara: num tal pensamento está pressuposta a identidadeentre a vigência das nossas instituições políticas e a pura e sim-ples vigência do direito e da normalidade. Por outras palavras, nasnossas sociedades democráticas e liberais está contida, como pres-suposta, uma representação das nossas sociedades como idênticasà vigência do direito e, consequentemente, como exigindo a repre-sentação de todas as outras como estando assentes naquilo a quese poderia chamar estados anómicos, estados “fora da lei”, estadosem que não é possível encontrar a vigência de uma vida normal.Surge então a necessidade de fazer explicitamente a pergunta: serápossível dizer seriamente que as nossas sociedades têm o mono-pólio do direito e da vida normal? A resposta não pode deixar deser negativa. Longe de esgotarem as possibilidades de uma vidanormal, as nossas instituições apenas se caracterizam por mono-polizarem uma representação puramente normativa do direito, ouseja, uma representação segundo a qual a vigência do direito se

www.lusosofia.net

Page 17: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Ética, Política e Sociedade 15

identifica com a ausência de qualquer poder e de qualquer decisãoque não seja, já sempre à partida, normativamente determinada.Diante desta representação, não é possível deixar de perguntar, poruma última vez, como se concretiza concretamente este derradeiroargumento acerca da superioridade moral das nossas instituiçõespolíticas. Quais as consequências efectivas do puro normativismoque caracteriza hoje a representação de uma vigência do direito nasnossas sociedades ocidentais? Só uma abordagem desta questãoconcreta pode decidir a viabilidade de um derradeiro argumento –um argumento meramente pragmático – na justificação da superio-ridade moral das suas instituições.

Uma abordagem desta última questão não pode deixar de par-tir do resultado mais imediato do puro normativismo: a reduçãoda decisão política e jurídica à simples administração. Nas nos-sas instituições políticas, dir-se-ia que só as normas vigoram e que,nesse sentido, qualquer decisão política não normativamente deter-minada está já sempre excluída. Vimos atrás que as decisões po-líticas surgem hoje, nas nossas sociedades democráticas e liberais,como monopólios de oligarquias partidárias cujo papel consiste,nessa medida, em carregar o ónus da culpa e da responsabilidade,possibilitando a inocência daquilo a que chamámos cidadãos im-pecáveis. E vemos agora que, por seu lado, estas decisões nãosão senão ficções: as oligarquias partidárias não decidem propria-mente, mas apenas fazem como se decidissem. A prática políticacorrente nas nossas instituições democráticas e liberais encontraaqui o seu significado. As instâncias deliberativas que deveriampreparar racionalmente e fundamentar as decisões – os parlamen-tos – convertem-se em meras assessorias governamentais e em pal-cos de discussões simuladas e teatralizadas: neles, ocupam agoraos seus lugares não propriamente representantes que efectivamentepensam e argumentam, mas apenas mandatários de interesses oudelegados de partidos, comissários disciplinados e frequentementeprofissionais, que cumprem a função de meramente se opor ou

www.lusosofia.net

Page 18: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

16 Alexandre Franco de Sá

apoiar. Por outro lado, constituídas crescentemente por este tipode funcionários, as oligarquias políticas surgem assim não comocentros de decisão propriamente ditos, mas como instâncias que,de tempos a tempos, se alternam na administração de um processoautomático, mecânico, incontrolável no seu movimento, por cujadeterminação já ninguém assume qualquer responsabilidade.

Num mundo político assim automatizado, dir-se-ia que o Es-tado de direito assenta num princípio de identificação entre a sobe-rania e o próprio direito e, portanto, na absoluta rejeição daqueladefinição schmittiana de soberania que, diferenciando-a da vigên-cia pura e simples do direito, a determinava como a possibilidadede uma decisão sobre um estado de excepção. Por outras palavras:num mundo em que a política se reduz à administração, dirse- iaque o Estado de direito assenta na vigência automática ou, o queé o mesmo, administrativa das normas. No entanto, tal quer di-zer que, apesar da sua aparente normalidade, as nossas instituiçõespolíticas se podem caracterizar como instituições em que desapa-rece não propriamente a excepção, mas a diferença entre esta ea norma, ou seja, como instituições em que surge entre norma eexcepção uma indistinção que se traduz na simples vigência ad-ministrativa daquilo a que poderíamos chamar paradoxalmente um“estado normal de excepção”. A crescente determinação da vidapolítica nos Estados ocidentais não por leis, mas por medidas ad-ministrativas avulsas emanadas dos seus governos, a exposição per-manente desta mesma vida ao poder incontrolado e arbitrário dosmedia, assim como a necessidade crescente da criação de âmbitosonde vigoram estados de excepção permanentes, como no caso dosprisioneiros da base americana de Guantánamo, são testemunhossuficientes da crescente vigência entre nós deste “estado normalde excepção”. Giorgio Agamben tem assim razão ao afirmar cla-ramente, em Stato di eccezione, que «o estado de excepção tende

www.lusosofia.net

Page 19: Ética, Politica e Sociedade

ii

ii

ii

ii

Ética, Política e Sociedade 17

cada vez mais a apresentar-se como o paradigma de governo domi-nante na política contemporânea»8.

E é sobretudo diante da possibilidade de as nossas instituiçõespolíticas serem caracterizadas como “estados normais de excep-ção” que hoje a sua superioridade moral e, consequentemente, asua legitimidade para impor ao mundo um paradigma não podedeixar de se revelar como intrínseca, e não apenas acidentalmente,aporética. Num mundo liberal e democrático, despojado de deci-sões políticas, é certo que, por exemplo, já não se poderá decidira guerra e que, consequentemente, a guerra já não poderá ser, se-gundo a expressão de Clausewitz, a continuação da política poroutros meios. Mas se um tal mundo assenta na entrega dos ho-mens ao puro desenvolvimento de um processo automático, nãoserá agora a política a continuar por outros meios uma mobiliza-ção que crescerá no sentido da assunção de um carácter guerreiro?Por outras palavras: não se traduzirão hoje as nossas instituiçõespolíticas numa abertura à possibilidade de uma entrega dos ho-mens a processos cujo desenvolvimento desenfreado tudo devorae mobiliza? E não precisarão as nossas instituições democráticase liberais de reformas tendentes à recuperação das suas virtudesoriginárias, mais do que um tour de force que procure impô-las,tal como concretamente hoje se apresentam, como modelos? Pormais que hesitemos na resposta, já não parece hoje possível, ao re-flectir sobre as nossas sociedades e as nossas instituições, ignorarteimosamente a pergunta.

8 Giorgio Agamben, Stato di eccezione, Turim, Bollati Boringhieri, 2003, p.11.

www.lusosofia.net