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FIBROMIALGIA Daniela Castelo Azevedo Médica Reumatologista, Especialista em Avaliação de Tecnologias em Saúde, Mestre em Saúde do Adulto e Doutoranda em Saúde Pública. - outubro 2018

FIBROMIALGIA...artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico. Cerca de 10% a 30% dos pacientes com essas doenças reumatológicas também preenchem critérios para fibromialgia.7

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FIBROMIALGIA

Daniela Castelo Azevedo

Médica Reumatologista, Especialista em Avaliação de Tecnologias em Saúde, Mestre

em Saúde do Adulto e Doutoranda em Saúde Pública.

- outubro 2018

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1 Fibromialgia

SUMÁRIO

RESUMO ........................................................................................................................................ 2

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 2

2. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS ....................................................................................................... 3

3. PATOFISIOLOGIA ...................................................................................................................... 7

4. DIAGNÓSTICO ......................................................................................................................... 12

5. TRATAMENTO ......................................................................................................................... 15

5.1. Tratamento não farmacológico....................................................................................... 15

6. TRATAMENTO FARMACOLÓGICO .......................................................................................... 17

7. CONCLUSÕES .......................................................................................................................... 21

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................... 22

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2 Fibromialgia

RESUMO

A fibromialgia atinge cerca de 2% da população brasileira. É caracterizada, sobretudo, pela

presença de dor difusa musculoesquelética crônica, mas são comuns também sintomas

de fadiga, distúrbio do sono e alterações cognitivas, como memória deficiente. O

diagnóstico é clínico e os exames laboratoriais servem apenas para descartar outras

doenças. A doença está relacionada à deficiência na regulação da dor, sendo caracterizada

como dor centralizada ou proveniente de sensibilização central. Nesse processo, há um

distúrbio no processamento da dor no nível do sistema nervoso central, o que leva a

características álgicas particulares e traz implicações na forma de manejo dessa dor. O

entendimento da sensibilização central é importante, tanto para o médico assistente

quanto para o paciente. A educação sobre a doença é a primeira e mais importante etapa

do tratamento. Não é recomendado que se prescreva qualquer tratamento antes que o

paciente entenda a doença. Deve-se enfatizar a importância da atividade física regular e

a possível ajuda da terapia cognitivo-comportamental. As medicações podem ser

necessárias para ajudar a aliviar os sintomas, mas devem se conter as expectativas dos

pacientes, já que a melhora da dor com as medicações, usualmente, não ultrapassa 50%

nos estudos clínicos.

1. INTRODUÇÃO

A fibromialgia (FM) é uma condição que causa dor difusa musculoesquelética (ME) e,

depois da osteoartrite, é a doença reumática mais comum, tendo prevalência estimada

na população geral de 2% a 8%, dependendo do critério diagnóstico usado.1 No Brasil,

estudo considerando autorrelato de fibromialgia encontrou prevalência de 2%.2 FM é

mais comum em mulheres do que em homens e ocorre tanto em crianças quanto em

adultos.

Mesmo não sendo incomum, o diagnóstico e o tratamento da fibromialgia permanecem

um desafio para pacientes e profissionais da área da saúde. Geralmente, leva-se mais

de dois anos para o diagnóstico, e os pacientes consultam-se, em média, com 3,7

médicos diferentes antes de o obterem.3 O encaminhamento para especialistas e a

realização de exames propedêuticos resultam em uso excessivo e desnecessário do

sistema de saúde.3 Estudo utilizando base de dados de usuários de seguro de saúde nos

Estados Unidos comparou os gastos em saúde de pacientes com fibromialgia aos de

pacientes sem fibromialgia do mesmo sexo e idade e mostrou que a média total de

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3 Fibromialgia

gastos com saúde em 12 meses é cerca de três vezes maior nos pacientes com

fibromialgia [$9573 ($20,135) vs. $3291 ($13,643); p < 0.001].4

2. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

A manifestação clínica que define a fibromialgia é a dor ME difusa, generalizada,

envolvendo ambos os lados do corpo e presente acima e abaixo da cintura. Os pacientes

podem descrever essa dor como “meu corpo todo dói” ou “parece que estou sempre

gripado”. Entretanto, inicialmente, a dor pode ser localizada, frequentemente em

pescoço e ombros. Inclusive, muitos que desenvolvem fibromialgia comumente têm

uma longa história de dor crônica em diferentes partes do seu corpo, como cefaleia,

dismenorreia, desordem da articulação temporomandibular, lombalgia crônica.1 É como

se esses pacientes tivessem um “fenótipo pró-dor”, caracterizado como muitos

episódios de dor crônica ao longo da sua vida.1 A dor é descrita como

predominantemente muscular, mas frequentemente há queixa de dor articular e

descrição de inchaço articular, mas, ao exame físico, não há sinovite.3

Outro sintoma universal nos pacientes com fibromialgia é a fadiga, que é intensa logo

ao acordar, pela manhã, mas também é marcante durante o meio da tarde. Eles se

sentem pouco descansados pela manhã, mesmo se dormirem oito a dez horas por noite.

Esses pacientes, caracteristicamente, descrevem seu sono como “leve” e podem

despertar precocemente, tendo dificuldade em reconciliar o sono. Frequentemente,

queixam-se com expressões como “parece que um caminhão passou sobre mim”.3

O sono, nos pacientes com fibromialgia, pode ser caracterizado como não reparador,

sendo comum sua interrupção não específica no estágio.4 Além do sono não reparador,

também podem ocorrer distúrbios do sono específicos, como apneia do sono, síndrome

das pernas inquietas e desordem periódica do movimento das pernas.3

Os pacientes com fibromialgia costumam relatar alterações cognitivas envolvendo

memória, atenção e tarefas que requeiram rápida mudança de pensamento. Essas

alterações têm sido denominadas de “fibro fog”.5

Doenças psiquiátricas, sobretudo depressão, são mais comuns nos pacientes com

fibromialgia do que naqueles com outras doenças reumatológicas: cerca de 25% dos

pacientes com FM têm depressão maior concorrentemente e 50% dos pacientes têm

história de depressão prévia.3

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4 Fibromialgia

Outros sintomas são cefaleia, tanto do tipo enxaqueca quanto tensional, parestesias

(apesar de não se detectarem alterações neurológicas), dor abdominal, dor torácica,

sintomas de síndrome do intestino irritável, dor pélvica, sintomas sugestivos de cistite

intersticial/síndrome da bexiga dolorosa. Ainda, os pacientes podem se queixar de

secura ocular, sensibilidade química múltipla e sintomas “alérgicos”, palpitações,

vulvodinea, disgeusia, flutuações de peso, suores noturnos.

Figura 1. Espectro de sintomas da fibromialgia27

O exame físico na fibromialgia, usualmente, não é significativo. Os pacientes costumam

ter sensibilidade difusa ao toque e são mais sensíveis à insuflação do manguito de

pressão. Por vezes, mostram áreas do corpo que julgam estarem inchadas, como a

região medial da face cubital do cotovelo e a face posterior do antebraço, próxima ao

punho, mas o exame físico não confirma essa alteração.

Os exames laboratoriais são úteis para descartar outras doenças que cursam com dor

difusa e fadiga; podem ser solicitados hemograma, TSH e proteína C reativa. Não há

exames para diagnosticar a fibromialgia. Não devem ser pedidos exames de fator

antinuclear (FAN) e fator reumatoide, a não ser que haja forte suspeita de doença

inflamatória autoimune, como artrite reumatoide ou lúpus eritematoso sistêmico.1

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5 Fibromialgia

Quadro 1. Exemplo de caso clínico de fibromialgia1

Descrito pelo médico assistente:

A senhora P. tem 64 anos e vem evoluindo com dores musculares difusas e fadiga.

Ela desenvolveu dor lombar crônica em 1991, seguida de dor crônica em tornozelo

após acidente automobilístico. Em 2009, passou a apresentar dor profunda em

suas extremidades inferiores e a dor lombar piorou. A sua dor é agravada pelo

toque ou pressão e aliviada pelo repouso e pelo calor tópico. A dor tem limitado

sua capacidade para exercitar-se. Ela teve o diagnóstico de fibromialgia, sendo-

lhes prescritas várias medicações (gabapentina, venlafaxina, pregabalina e

codeína mais paracetamol), das quais a maioria resultou em eventos adversos

relevantes. Atualmente, faz tratamento com acupuntura, pregabalina,

ciclobenzaprina e codeína mais paracetamol. Nos últimos anos, tem

experimentado perda de energia, ganho de peso, cefaleias ocasionais, insônia e,

ocasionalmente, humor deprimido. Relata as seguintes comorbidades:

hipertensão, hipotireoidismo, hérnia discal, enxaqueca, hiperlipidemia,

fibroadenoma de mama, eczema, doença do refluxo gastrointestinal e síndrome

do túnel do carpo. Além dos medicamentos para fibromialgia, faz uso de

amlodipina, hidroclorotiazida, levotiroxina, moexipril, pantoparazol, pravastatina,

aspirina e multivitamínicos.

Ela é enfermeira, mas não trabalha, devido às suas limitações físicas.

Ao exame físico, a senhora P. estava afebril e com sinais vitais inalterados. Não

apresentava alopecia, úlceras orais ou exsudatos. Não havia lesões cutâneas ou

rashs e suas unhas eram normais. Havia várias áreas sensíveis a palpação,

incluindo o dorso, epicôndilos laterais, tórax superior e proeminências

trocantéricas. O exame articular estava normal, assim como o restante do exame

físico.

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6 Fibromialgia

Descrito pela paciente:

A maioria das pessoas não entende a fibromialgia, elas não captam; elas te veem,

te olham e você parece estar bem. Então, elas não entendem. A dor da fibromialgia

parece uma tensão ou dor muscular profunda. Para mim, tem sido uma dor

aborrecida, profunda e aflitiva através do meu corpo. Eu nunca sei como será o

meu dia. Eu tenho que acordar pela manhã e verificar o que dói e que

medicamento eu posso tomar para essa dor e como eu irei funcionar naquele dia.

Durante o dia, eu sinto que tenho um prazo de validade. É como se eu tivesse um

peso em torno do meu pescoço, das minhas costas ou da minha cintura e eu

começo a decair depois de um tempo. Eu ainda posso estar bem mentalmente,

mas meu corpo simplesmente desiste de mim e eu tenho que deitar. As medicações

afetam minhas atividades da vida diária. Eu usualmente as tomo à noite para

poder funcionar durante a manhã, mas eu não posso pular da cama e fazer o que

eu era acostumada a fazer. Eu tenho que ter um tempo para levantar, ver o que

dói... ver se preciso de medicação adicional. É como se eu estivesse caminhando

por um nevoeiro. A acupuntura tem me ajudado a aliviar a dor. Eu não espero que

ajude como as medicações, mas que, com ela, eu tome menos medicações no

geral. No princípio, o mais difícil foi receber o diagnóstico. Tinha que ser entre A,

B, C, D ou E e, no final, não era nada disso. Desde que o meu médico me

diagnosticou, a parte decepcionante tem sido a procura de medicações ou

tratamentos que irão me ajudar a retomar o quanto for possível de uma vida

normal. Há um plano melhor para mim?

Além dos sintomas característicos e da usual ausência de alterações marcantes nos

exames físico e de laboratório, há descrição de um perfil psicológico característico de

pacientes com fibromialgia. As pessoas com fibromialgia seriam ansiosas e deprimidas,

perfeccionistas, sensíveis a mudanças e com capacidade diminuta para adaptar-se a

elas, exibindo dificuldades para se relacionar com outras pessoas.6 Estudo empírico-

exploratório com objetivo de considerar as variáveis contextuais que modelam e

mantêm comportamentos de dor crônica na fibromialgia entrevistou oito mulheres com

esse diagnóstico.6 Os relatos foram analisados qualitativamente com base em conceitos

da teoria analítico-comportamental. As participantes foram descritas como

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7 Fibromialgia

mulheres que sempre tiveram o domínio das situações, monitorando onde os filhos estavam, decidindo sobre os assuntos familiares, tomando a iniciativa na realização de tarefas e exigindo que os afazeres fossem feitos do modo como elas julgavam correto. Com esse padrão de comportamento, produziram, ao longo da vida, bons resultados no contexto de trabalho, mantendo a ordem da dinâmica familiar e a organização do lar. Essas características identitárias foram descritas pelas entrevistadas de um modo nostálgico, pois foi frequente em seus discursos o quanto elas almejam restituir o que eram e o que podiam fazer.6

As pesquisadoras também observaram que: “Em geral, as participantes não aceitam

suas restrições físicas e descrevem a incapacidade de realizar as tarefas com perfeição

como episódios acompanhados por ‘tristeza’, ‘desânimo’, ‘revolta’ ou ‘desgosto’”.6 Com

base nas descrições, então, sugerem que as entrevistadas apresentam padrão

comportamental perfeccionista e afirmam que,

Sob uma ótica analítico-comportamental, esse padrão envolve um conjunto de sentimentos e ações, tais como o sentimento de baixa autoestima, inabilidade para o autorreconhecimento, autocrítica, intolerância ao erro, sentimento de extrema responsabilidade e comportamento governado por regras e autorregras.6

Diante dessa análise, relaciona-se o padrão comportamental perfeccionista e a dor

crônica no contexto da fibromialgia apontando dois elementos preponderantes no

surgimento e no desenvolvimento da dor crônica: mudanças contextuais (como, por

exemplo, separação do cônjuge), que as pacientes apontam como desencadeador das

dores, e limitações físicas (por exemplo, o diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico).6

Esses elementos remontam à dificuldade do indivíduo com fibromialgia de adaptar-se

às mudanças. As autoras explicam que

Para uma pessoa considerada perfeccionista, como é o caso das participantes desta pesquisa, a mudança abrupta configura um contexto desfavorável, pois não permite o domínio das situações (por exemplo: saber onde o filho está; impedir que o marido vá embora de casa; realizar as tarefas com perfeição, por conta de uma hérnia de disco ou artrite/artrose), produzindo eventos aversivos.6

As autoras ainda identificam comportamento de não respeitar os limites do corpo, que

leva os pacientes à exaustão corporal e ao comportamento de fuga e esquiva.6

3. PATOFISIOLOGIA

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8 Fibromialgia

A fibromialgia, assim como outras síndromes somáticas funcionais, era considerada uma

condição controversa. Pacientes parecem bem, não há anormalidades ao exame clínico

e estudos laboratoriais e radiológicos não estão alterados. Assim, o papel do

adoecimento orgânico era questionado, e a fibromialgia, com frequência, era

considerada uma doença psicogênica ou psicossomática.3 Entretanto, pesquisas atuais

sugerem que ela seja um doença relacionada à regulação da dor, frequentemente

classificada como uma forma de sensibilização central. A principal teoria patofisiológica

que explicaria essa sensibilização seria a de que neurotransmissores com ação central

estariam em níveis anormais, levando à dor (por exemplo, diminuição de noradrenalina,

GABA ou serotonina e aumento de glutamato e substância P).7

Há pelo menos três mecanismos diferentes de dor, que podem se sobrepor nas

síndromes de dor crônica: 1) periférico/nociceptivo; 2) neuropático periférico; e 3) dor

centralizada.

Quadro 2. Mecanismos de dor8

Periférico/

nociceptivo

Neuropático

periférico Dor centralizada

Origem

Inflamação ou dano

tecidual aos tecidos

Dano ou disfunção

dos nervos

periféricos

Distúrbio no

processamento

central da dor

Tratamento

Anti-inflamatórios

(AINE) não

esteroidais, opioides;

boa resposta a

procedimentos

Responde tanto a

terapias

farmacológicas com

ação central quanto

com ação periférica

Terapias

farmacológicas com

ação central, que

alteram os níveis de

neurotransmissores

envolvidos na

transmissão da dor

Exemplos

Artrite reumatoide,

dor relacionada ao

câncer, osteoartrite

Dor da neuropatia

diabética; neuralgia

pós-herpética

Fibromialgia,

síndrome do cólon

irritável, cefaleia

tensional

* O termo síndrome funcional somática tem sido aplicado a várias síndromes relacionadas, caracterizadas mais por sintomas, sofrimento e incapacidade do que anormalidades teciduais consistentemente demonstradas.

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9 Fibromialgia

O termo dor central foi originalmente descrito como dor advinda de lesão da medula

espinhal ou acidente vascular encefálico. Nessa situação, o termo central referia-se ao

fato de que a lesão causadora da dor originava-se no sistema nervoso central (SNC).

Mas, recentemente, o termo central ou dor centralizada ou sensibilização central

também está sendo usado para descrever qualquer patologia ou disfunção do SNC, que

pode contribuir para o desenvolvimento ou manutenção de uma dor crônica. A “dor

centralizada” ou sensibilização central, como atualmente definida, tipicamente

descreve indivíduos com síndromes de dor funcional ou idiopática, como a própria

fibromialgia, a síndrome do cólon irritável, a disfunção temporomandibular.8 Essa dor

ocorre ao longo da vida, iniciando-se na adolescência ou no adulto jovem e

manifestando-se como experiências de dor em variadas partes do corpo, em diferentes

períodos da vida. O termo “dor centralizada” não implica que um estímulo periférico

nociceptivo não possa contribuir para a dor desses indivíduos, mas sim que estes sentem

mais dor do que normalmente seria esperado, baseando-se no grau do estímulo

nociceptivo. O entendimento da dor centralizada é importante para cirurgiões e

médicos que realizam procedimentos, uma vez que os pacientes com esse componente

de dor costumam não responder a cirurgias e procedimentos para alívio da dor.1

Quadro 3. Características da fibromialgia e outras síndromes de dor centralizada1

CARACTERÍSTICA OU QUALIDADE DA DOR

Difusa ou multifocal, alternando a intensidade e de natureza migratória;

Frequentemente acompanhada de disestesia ou parestesia, pode ser descrita com formigamento, queimação, dormência;

Pacientes podem notar desconforto ao toque ou quando colocam roupas apertadas.

HISTÓRIA DE DOR EM OUTRAS REGIÕES DO CORPO

DOR ACOMPANHADA DE SINTOMAS ORIGINADOS DO SNC

Fadiga, distúrbio do sono, da memória e do humor.

SINTOMAS SUGESTIVOS DE SENSIBILIDADE GERAL AUMENTADA

Sensibilidade aumentada à claridade, a sons altos e odores e sintomas viscerais;

Frequentemente induz à revisão de sintomas de dor positiva, levando à caracterização desses indivíduos como “somatizadores”.

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10 Fibromialgia

Os parentes de pessoas com fibromialgia também podem ter história de dor crônica.

Quando comparados parentes de primeiro grau de pessoas com fibromialgia a parentes

de primeiro grau de pessoas sem fibromialgia, os parentes dos fibromiálgicos

apresentam maior chance (odds ratio: 8,5; IC 95%: 2,8-26; P<0,001) de ter fibromialgia

e outros estados de dor crônica.9 Fatores genéticos podem explicar a forte predisposição

familiar para fibromialgia e para muitas condições de dor crônica. Genes associados com

aumento ou diminuição da frequência de estados de dor crônica ou sensibilidade à dor

regulam a dor – modulando vias de neurotransmissores ou vias inflamatórias. A

sensibilidade à dor é poligênica, e diferenças na dor e sensibilidade entre os indivíduos

podem ser resultado de desequilíbrio ou atividade alterada de neurotransmissores,

explicando por que analgésicos de ação central podem ajudar em muitos sintomas (dor,

sono, humor, fadiga), ou não ajudar em nada, dependendo de cada indivíduo.1 Estudos

em gêmeos sugerem que aproximadamente 50% do risco de desenvolver fibromialgia e

condições relacionadas, como síndrome do cólon irritável e cefaleia tensional, seriam

genéticos, enquanto 50% estariam relacionados ao ambiente.10 Fatores ambientais

apontados como desencadeadores da fibromialgia incluem episódios de dor aguda,

certas infecções (Epstein-Barr, doença de Lyme, hepatite viral), trauma (colisão

automotiva).1 Estresse psicológico também pode desencadear a fibromialgia. O relato

de abuso sexual é mais comum em pacientes jovens com fibromialgia (média de idade

de 23,4 anos), que têm mais chance de desenvolver transtornos psiquiátricos, como

transtorno bipolar, ataques de pânico e ansiedade.11 A fibromialgia também pode

ocorrer concomitantemente a outras doenças que levam à dor, como osteoartrite,

artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico. Cerca de 10% a 30% dos pacientes

com essas doenças reumatológicas também preenchem critérios para fibromialgia.7

A observação de que pacientes com fibromialgia têm sensibilidade difusa à dor levou a

estudos funcionais, químicos e estruturais de neuroimagem cerebral. Esses estudos

mostram uma base biológica para dor da fibromialgia e síndromes de amplificação da

dor relacionadas. Os pacientes com fibromialgia percebem dor quando outros pacientes

sem fibromialgia percebem apenas o toque. A ressonância nuclear magnética (RNM)

funcional do cérebro de pacientes com fibromialgia, verificando a resposta a estímulos,

mostra padrões de ativação nas áreas de processamento da dor diante de pressão leve

e calor.12,13

Pessoas com fibromialgia estão mais propensas a apresentar doenças psiquiátricas,

incluindo depressão, ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo e transtorno de

estresse pós-traumático. Essas condições têm desencadeadores comuns à fibromialgia,

como estresse precoce na vida ou trauma.1 Os neurotransmissores mediadores da dor

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11 Fibromialgia

também afetam o humor, a memória, o sono e a disposição. Potenciais fatores de risco

modificáveis para o desenvolvimento da fibromialgia são distúrbio do sono, obesidade,

inatividade física e insatisfação com a vida e o trabalho.1 Fatores cognitivos, como

catastrofização (modo de pensar na dor como se esta tivesse consequências sempre

muito negativas) ou medo de que a movimentação possa piorar a dor são fatores de

pior prognóstico em pacientes com fibromialgia ou com outros estados dolorosos

crônicos.1

Figura 2. Fenótipo propenso a dor por sensibilização central7

Legenda: A figura demonstra o fato de que o sexo feminino, trauma precoce na vida,

história familiar ou pessoal de dor crônica, história pessoal de outros sintomas mediados

pelo sistema nervoso central (SNC) – insônia, fadiga, problemas de memória, distúrbios

do humor – e fatores cognitivos, como catastrofização, estão presentes em pessoas com

qualquer estado de dor crônica e predizem quais indivíduos estão mais propensos a

passar de um estado de dor aguda para dor crônica.7

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12 Fibromialgia

4. DIAGNÓSTICO

A fibromialgia deve ser suspeitada em pacientes com uma combinação de dor crônica,

fadiga e distúrbio do sono. O diagnóstico é clínico e não há exames laboratoriais

específicos para ele, tendo sido desenvolvidos critérios diagnósticos para serem usados

em estudos clínicos. Em 1990, o Colégio Americano de Reumatologia (American College

oh Rheumatology – ACR) desenvolveu critérios para o diagnóstico de fibromialgia. Tais

critérios requeriam que o indivíduo apresentasse dor difusa crônica (por pelo menos

três meses) no esqueleto axial, acima e abaixo da cintura e em ambos os lados do corpo,

assim como 11 ou mais pontos dolorosos de 18 pontos distribuídos no corpo (tender

points).14 Esses critérios apresentam sensibilidade de 88% e especificidade de 81%,

quando comparados a pacientes com diagnóstico de fibromialgia realizado

clinicamente.15 Observou-se que esses critérios deixavam de diagnosticar pessoas com

fibromialgia, já que muitas podem não ter dor no corpo inteiro ou não têm os 11 tender

points. Em 2011, então, foi desenvolvido um novo critério, com objetivo de ser usado

em estudos epidemiológicos, considerando mais os sintomas do que os tender points.

Tal critério conta com uma avaliação preenchida pelo próprio paciente, a qual inclui

perguntas sobre a localização da dor, assim como sobre a presença e gravidade da

fadiga, distúrbio do sono, dificuldades de memória, cefaleia, alteração da função

intestinal e problemas do humor. Com esse novo critério, identifica-se a maioria dos

pacientes que preenchem os critérios de 1990, mas também mais pacientes do sexo

masculino com fibromialgia (que raramente preenchiam o critério de 1990 devido ao

número insuficiente de tender points).16

Figura 3. Exemplo de questionário autoaplicado para o diagnóstico de fibromialgia, de

acordo com os critérios do ACR 20111

1. Índice de dor física

Indique os locais nos quais você tem tido dor ou maior sensibilidade durante os últimos

sete dias. Marque um X no círculo correspondente à área na qual você tem tido dor ou

maior sensibilidade.

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13 Fibromialgia

2. Gravidade dos sintomas

Para cada sintoma listado abaixo, use a escala para indicar gravidade, considerando os

últimos sete dias:

Sintoma Ausente (0) Leve (1) Moderado (2) Grave (3)

Fadiga

Dificuldade de memória

Sono não reparador

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14 Fibromialgia

3. Durante os últimos seis meses você teve algum dos seguintes sintomas?

Sintoma Ausente (0) Presente (1)

Dor ou cólicas em baixo abdômen

Depressão

Cefaleia (dor de cabeça)

São somados o total de áreas dolorosas e os índices de gravidade. O escore varia de 0 a

31 pontos, um escore ≥ 13 pontos é consistente com o diagnóstico de fibromialgia. Os

sintomas dos itens 1, 2 e 3 precisam estar presentes por pelo menos três. Não pode

haver outra doença que explique as dores.

Em 2017, a Sociedade Brasileira de Reumatologia publicou artigo com recomendações,

baseadas em evidências científicas, para o diagnóstico da fibromialgia (FM). Essas

recomendações foram as seguintes:17

1. O diagnóstico de FM pode ser feito sem o uso dos critérios ACR 1990, entretanto sua

aplicação junto aos critérios de 2010 aumenta a acurácia diagnóstica.

2. A presença da dor difusa é fundamental para o diagnóstico de pacientes com suspeita

de FM.

3. Os pontos dolorosos podem ser úteis no diagnóstico da FM quando avaliados em

conjunto com outros distúrbios funcionais contemplados nos critérios de 2010. Sua

contagem pode se correlacionar com a intensidade de alguns sintomas, particularmente

de estresse emocional.

4. Os distúrbios do sono, as alterações de cognição e a fadiga devem ser levados em

conta para o diagnóstico da FM. Sugere-se considerá-los também na avaliação da

gravidade dos pacientes com FM.

5. Recomendamos o emprego dos critérios do ACR 2010 para o diagnóstico de

fibromialgia. As modificações publicadas em 2011 estão mais bem indicadas para

pesquisas epidemiológicas.

6. Não existem evidências científicas para recomendar o emprego da termografia para

o diagnóstico da FM.

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15 Fibromialgia

7. Não recomendamos o uso da polissonografia para o diagnóstico da FM.

8. A FM não deve ser considerada como diagnóstico de exclusão, mas sugerimos sempre

avaliar os diagnósticos diferenciais com outras síndromes ou doenças com sintomas

semelhantes, como recomendado pelos critérios do ACR 2010.

9. Sugerimos a mensuração sistemática dos transtornos de humor por meio de

instrumentos validados, adequados ao nível de atenção à saúde em que são aplicados,

pois se mostram de grande importância na avaliação da gravidade dos pacientes com

FM.

5. TRATAMENTO

A fibromialgia pode ser diagnosticada e tratada no nível primário de atenção à saúde

(atenção básica). O encaminhamento ao especialista deve ser realizado apenas quando

o diagnóstico for incerto (por exemplo, reumatologista ou neurologista, dependendo

dos sintomas) ou quando os pacientes são refratários a terapia ou apresentem

comorbidades psiquiátricas significativas.

5.1. Tratamento não farmacológico

Idealmente, o tratamento deve integrar cuidado multidisciplinar, com médicos que

possam educar o paciente sobre a doença, profissionais que irão orientar atividade física

adequada (educador físico ou fisioterapeuta, por exemplo) e psicólogos especialistas em

terapia cognitivo-comportamental.1 Esses tratamentos não farmacológicos (educação

do paciente, atividade física e terapia cognitivo-comportamental) são os mais bem

estudados e todos têm alto nível de evidência de eficácia. O maior benefício desse

tratamento é observado na melhora da função, que deve ser o principal objetivo do

tratamento da dor crônica.1

O primeiro passo, essencial para o tratamento, é a educação do paciente acerca da

doença. Os pacientes devem entender sua doença antes que qualquer medicação seja

prescrita. Devem entender o diagnóstico e o tratamento da fibromialgia, as incertezas a

respeito da sua patogênese e o seu papel ativo durante o tratamento.

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16 Fibromialgia

Quadro 4. Elementos-chave para educação dos pacientes com fibromialgia18

1. Reafirmação de que a fibromialgia é uma doença real: deve-se assegurar ao

paciente que a fibromialgia é uma doença real e não psicológica ou “da sua

cabeça”. A natureza benigna também deve ser enfatizada. O paciente deve ser

informado de que a doença não levará a deformidades e não leva a risco de vida.

A relação entre os neuro-hormônios e a percepção da dor, fadiga, distúrbio do

sono e do humor deve ser discutida, isso ajudará o paciente a entender o uso de

medicamentos como antidepressivos e anticonvulsivantes.

2. Falta de evidências de uma infecção persistente: os pacientes devem ser

assegurados de que não há nenhum processo infeccioso presente.

3. Papel do estresse e dos distúrbios de humor: explicar o papel do estresse e dos

distúrbios de humor para encorajar o paciente a aprender técnicas de

relaxamento e considerar a participação em programas de redução do estresse. O

estresse emocional ou físico pode agravar ou precipitar a fibromialgia. Pacientes

com distúrbios do humor devem ser encorajados a obter tratamento para essas

condições, seja com clínicos, seja com psiquiatras.

4. Papel da higiene e dos distúrbios do sono: pacientes devem ser educados sobre

a importância de uma boa higiene do sono e do potencial benefício de corrigir

maus hábitos de sono. Devem ser informados de que reconhecer e obter

tratamento para distúrbios do sono pode contribuir para melhora da dor e de

outros sintomas de fibromialgia.

5. Papel do exercício: os pacientes devem ser orientados sobre a importância da

atividade física para o recondicionamento e a melhora da capacidade funcional.

6. Prognóstico: Os pacientes precisam estar cientes de que há períodos em que os

seus sintomas vão aumentar e diminuir, mas que a dor e fadiga, geralmente, são

persistentes. Entretanto, apesar desses sintomas crônicos, deve ser enfatizado

que a maioria dos pacientes terá vida normal e ativa.

7. Educação sobre comportamentos de má adaptação a doenças crônicas deve ser

fornecida, seja pelo clínico do cuidado primário ou em conjunto com um programa

de terapia cognitivo-comportamental, que pode ser feito individualmente ou em

grupo.

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17 Fibromialgia

Os exercícios físicos podem beneficiar significativamente os pacientes em termos de

redução da dor, melhora da função e da qualidade do sono. Devem ser recomendados

exercícios aeróbicos, como caminhada rápida, bicicleta, natação ou hidroginástica. Os

pacientes devem ser alertados de que, no início das atividades físicas, a dor e a fadiga

podem aumentar. Portanto, a atividade deve ser aumentada de forma gradual.18

As terapias alternativas e complementares (por exemplo, acupuntura, yoga, tai-chi)

podem ser úteis como um tratamento adjuvante para fibromialgia, apesar de poucos

estudos controlados suportarem a sua utilização. Como, usualmente, não causam danos

e têm o custo acessível, podem ajudar, já que as opções para tratamento da dor crônica

são limitadas.1

6. TRATAMENTO FARMACOLÓGICO

Alguns pacientes com fibromialgia, sobretudo os atendidos na atenção básica, podem

não necessitar de tratamento farmacológico, melhorando apenas com o tratamento não

farmacológico.18 Entretanto, muitos precisarão de medicamentos para auxiliar no alívio

dos sintomas.

As medicações que têm se mostrado eficazes no tratamento da fibromialgia e são

liberadas para o uso no Brasil são os tricíclicos (amitriptilina, nortriptilina,

ciclobenzaprina), os gabapentinoides (pregabalina, gabapentina) e os inibidores da

recaptação de noradrenalina e serotonina, inibidores duais (duloxetina). A escolha entre

essas medicações pode depender da proeminência de determinado sintoma, dos efeitos

adversos e do custo.1 Não há estudos comparando diretamente a eficácia desses

medicamentos no tratamento da fibromialgia. Em comparação indireta da eficácia e

aceitabilidade dos antidepressivos amitriptilina (AMT), duloxetina (DLX) e minalciprano

(MLN) no tratamento da fibromialgia, metanálise de ensaios clínicos randomizados

controlados mostrou que AMT foi superior a DLX e MLN na redução da dor, distúrbios

do sono, fadiga e limitações da qualidade de vida relacionada à saúde. Não houve

diferença na aceitabilidade entre esses medicamentos.19 Em outra metanálise, também

de comparação indireta, mostrou-se que o efeito na redução da dor foi maior com o uso

dos antidepressivos tricíclicos do que com inibidores duais e inibidores da recaptação

de serotonina.20 Dessa maneira, alguns autores recomendam que a terapia para

fibromialgia seja iniciada com um antidepressivo tricíclico.18,21 Sugere-se iniciar a terapia

com baixa dose de medicação tricíclica (por exemplo, amitriptilina ou nortriptilina 10

mg) duas horas antes de dormir, à noite. Essa dose pode ser aumentada gradualmente

para 25mg a 50mg; a fibromialgia, usualmente, requer doses mais baixas do que aquelas

usadas para o tratamento da depressão.18 Não obstante, mesmo em baixas doses, os

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18 Fibromialgia

eventos adversos de boca seca, constipação intestinal, retenção de fluido, ganho de

peso, tonteira e dificuldade de concentração são comuns. Tais efeitos, somados à

possibilidade de cardiotoxicidade, limitam o seu uso em idosos.18 Em pacientes com

sintomas leves a moderados, a ciclobenzaprina pode ser uma alternativa. Tem estrutura

semelhante à medicação tricíclica, mas parece ter efeito antidepressivo mínimo. Em

metanálise de estudos randomizados placebo controlados com objetivo de avaliar a

efetividade da ciclobenzaprina no tratamento da fibromialgia, mostrou-se melhora

global com o uso da ciclobenzaprina em comparação ao placebo (OR:3,0; IC 95%: 1,6-

5,6); a dor diminuiu em 4 semanas no grupo da ciclobenzaprina, mas não em 8 e 12

semanas e não foi observada melhora na fadiga e nos tender points.22 A imipramina,

outro antidepressivo tricíclico, foi menos estudada na fibromialgia, mas é uma

alternativa possível, devido a seus menores efeitos anticolinérgicos.18

Nos pacientes que não responderam ou foram intolerantes aos tricíclicos, pode-se usar

um inibidor dual ou um anticonvulsivante. Em pacientes com distúrbio de sono mais

proeminente, pode ser útil o uso de um anticonvulsivante. Já naqueles com

predominância de depressão, pode-se preferir o inibidor dual. É aconselhável iniciar

com doses mais baixas e aumentá-las gradativamente.18 Revisão sistemática com

metanálise de ensaios clínicos randomizados controlados com comparador ativo ou

placebo, com objetivo de avaliar a eficácia e a segurança dos inibidores duais no

tratamento da fibromialgia, reuniu 18 estudos (7.903 pessoas) e mostrou que a

duloxetina e o milnaciprano não têm benefício clínico relevante sobre o placebo no

alívio da dor em ≥ 50%.23 Mostraram benefício clinicamente relevante no alívio da dor ≥

30% (DR 0,10; IC 95%, CI 0,08 a 0,12; NNTB 10, IC 95% 8 a 12). Não mostraram benefício

relevante na fadiga, na redução do distúrbio do sono e na qualidade de vida relacionada

à saúde em relação ao placebo. Não houve diferença entre a desvenlafaxina e o placebo

na eficácia, tolerabilidade e segurança em um pequeno estudo.23 Não houve diferença

entre a duloxetina e desvenlafaxina na eficácia, tolerabilidade e segurança em dois

estudos com comparadores ativos (L-carnitina, pregabalina).23 No grupo dos inibidores

duais, 19% dos participantes deixaram o estudo devido a eventos adversos comparado

a 10% dos participantes no grupo placebo. Não houve diferença nos eventos adversos

graves entre duloxetina, milnaciprano ou desvenlafaxina e placebo.23 Revisão

sistemática avaliando a eficácia e a segurança de anticonvulsivantes no tratamento da

fibromialgia mostrou que os pacientes em uso de pregabalina apresentavam melhora

de 50% ou mais da sua dor com mais frequência do que os pacientes em uso de placebo

(22% versus 14%, RR: 1,59, IC 95% 1,33-1,90). O evento adverso mais comum no grupo

da pregabalina foi tonteira (RR: 3,77; IC 95% 3,06 a 4,63; NNTH 4; IC 95% 3 a 5) e não

houve diferença nos eventos adversos graves entre a pregabalina e o placebo (RR: 1,03;

IC 95% CI 0,71 a 1,49).24

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19 Fibromialgia

Figura 4. Fluxograma de tratamento farmacológico inicial em pacientes com

fibromialgia18

EA: eventos adversos.

Tabela 1. Recomendações do EULAR para o tratamento da fibromialgia25

Recomendação Nível de

Evidência GRADE

Força da

Recomen-

dação

Concor-

dância (%)

Gerais

A conduta adequada exige

diagnóstico rápido. O IV D 100

Primeira escolha: tricíclico

amitriptilina ou nortiptilina 10 a

50 mg/dose única noite. EA:

constipação, boca seca; ganho

de peso, tonteira, dificuldade de

concentração; cardiotoxicidade

em idosos.

Sintomas leves

a moderados:

ciclopenzaprina

(5 a 30 mg/dia)

FALHA OU INTOLERÂNCIA OU CONTRAINDICAÇÃO

Inibidor dual

duloxetina (30 a

60 mg/dia)

ANTICONVULSIVANTES:

gabapentina (1200 a 2400

mg/dia) ou pregabalina (75 a

450mg/dia)

Melhor em pacientes com

distúrbio do sono grave. EA:

alteração da cognição, ganho de

peso, boca seca, edema.

Melhor pctes com

depressão associada. EA:

cefaleia, náuseas,

constipação, diminuição

do apetite, sonolência,

aumento do suor e

agitação.

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20 Fibromialgia

entendimento da fibromialgia

requer avaliação da dor, função e

contexto psicossocial. Deve-se

reconhecer que é condição

complexa e heterogênea onde há

alteração do processamento da

dor. Em geral, o seu manejo deve

ser realizado de maneira gradual.

O objetivo do tratamento deve ser

melhora da qualidade de vida com

balanço do risco e benefício do

tratamento e, frequentemente,

envolve abordagem

multidisciplinar com combinação

de tratamento farmacológico e

não farmacológico ajustados de

acordo com a intensidade da dor,

função e outros sintomas (como

depressão, fadiga, distúrbio do

sono) e preferências dos pacientes

e comorbidades; por decisão

compartilhada com o paciente. O

manejo inicial deve focar em

terapias não farmacológicas.

IV D 100

Específicas

Não farmacológica

Exercícios aeróbicos e de

alongamento Ia A

Forte a

favor 100

Terapia cognitivo-comportamental Ia A

Fraca a

favor 100

Terapias multicomponentes Ia A

Fraca a

favor 93

Terapias físicas definidas:

acupuntura ou hidroterapia Ia A

Fraca a

favor 93

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21 Fibromialgia

Terapias com movimento

meditativas (qigong, yoga, tai chi)

e redução do estresse por meio de

mindfulness

Ia A Fraca a

favor 71-73

Farmacológica

Amitriptilina em baixa dose Ia A

Fraca a

favor 100

Duloxetina ou milnaciprano Ia A

Fraca a

favor 100

Tramadol Ib A

Fraca a

favor 100

Pregabalina Ia A

Fraca a

favor 94

Ciclobenzaprina Ia A

Fraca a

favor 75

A Liga Europeia contra o Reumatismo (European League Against Rheumatism – EULAR)

publicou, recentemente, recomendações baseadas nas melhores evidências (revisões

sistemáticas de ensaios clínicos randomizados com ou sem metanálise) para o manejo

da fibromialgia.25 Essas recomendações foram feitas utilizando o Grading of

Recommendations Assessment, Development and Evaluation system – GRADE. São

quatro recomendações possíveis: forte a favor/fraca a favor/forte contra/fraca contra.

A força da recomendação é baseada no balanço entre os efeitos desejáveis e os

indesejáveis (considerando valores e preferências), confiança na magnitude dos efeitos

e uso de recursos.26

7. CONCLUSÕES

Nos últimos anos, o entendimento sobre a fibromialgia aumentou consideravelmente,

colocando essa síndrome no espectro das condições dolorosas associadas ao fenômeno

de sensibilização central. Essa nova compreensão deve ser difundida entre os

profissionais de saúde envolvidos no cuidado dos pacientes para que o tratamento, que

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22 Fibromialgia

inclui como parte fundamental a educação dos próprios pacientes sobre a doença, possa

ser efetivo.

Quanto ao caso clínico apresentado, o Dr. Daniel J. Clauw, estudioso proeminente da

área de dor crônica e fibromialgia, aponta que a senhora P. tem uma história típica de

fibromialgia e, junto com seus sintomas dolorosos, ela se apresentava desamparada,

sem esperanças e frustrada. Vale ressaltar a frustração enquanto tentava obter um

diagnóstico. Na maioria dos casos, os pacientes sentem-se aliviados quando o

diagnóstico é estabelecido e, uma vez determinado, a utilização dos serviços de saúde e

a propedêutica desnecessária podem diminuir. No caso da senhora P., não é imperativo

o encaminhamento para o especialista, já que o diagnóstico está bem estabelecido e

ainda há muitas opções de tratamento disponíveis. Uma vez feito o diagnóstico, deve-

se educar o paciente sobre a doença, ressaltando: que os sintomas não são decorrentes

de inflamação ou lesão tecidual; que as medicações têm eficácia limitada; e que é

fundamental o paciente autogerenciar sua terapia, sendo parte ativa do tratamento. A

importância das terapias comportamentais deve ser enfatizada, assim como o distúrbio

do sono deve ser tratado. Deve-se iniciar atividade física regular, e o paciente deve

entender que esse tratamento frequentemente é mais efetivo do que os tratamentos

farmacológicos.1

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