Gramáticos Portugueses Do Século Xvi

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história da língua portuguesa

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  • Biblioteca Breve SRIE PENSAMENTO E CINCIA

    GRAMTICOS PORTUGUESES DO SCULO XVI

  • COMISSO CONSULTIVA

    JACINTO DO PRADO COELHO Prof. da Universidade de Lisboa

    JOO DE FREITAS BRANCO Historiador e crtico musical

    JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa

    JOS BLANC DE PORTUGAL Escritor e Cientista

    DIRECTOR DA PUBLICAO

    LVARO SALEMA

  • MARIA LEONOR CARVALHO BUESCO

    Gramticos portugueses

    do sculo XVI

    M.E.C

    SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA

  • Ttulo Gramticos Portugueses do Sculo XVI _______________________________________ Biblioteca Breve /Volume 18 _______________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Secretaria de Estado da Cultura Ministrio da Educao _______________________________________ Instituto de Cultura Portuguesa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases _______________________________________ 1. edio 1978 _______________________________________ Composto e impresso nas Oficinas Grficas da Livraria Bertrand Venda Nova - Amadora Portugal Fevereiro de 1978

  • NDICE

    Significado da criao das gramticas vulgares ..............6 Questes gramaticais.........................................................20 O problema ortogrfico .....................................................28 Defesa e apologia da lngua ..............................................38 Ferno de Oliveira e a primeira anotao da Lngua Portuguesa ......................................................................49 A segunda Gramtica Portuguesa: Joo de Barros........54 Duarte Nunes de Lio e a busca das origens ....................73 Concluso..........................................................................80

    Notas .................................................................................81 Documentrio antolgico ..................................................88 Bibliografia .....................................................................104

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    I SIGNIFICADO DA CRIAO DAS GRAMTICAS VULGARES

    Quando, em 1536, publicada em Lisboa a Gramtica da Lngua Portuguesa de Ferno de Oliveira gramtica, diremos, avant la lettre mais, segundo as prprias palavras do autor, uma primeira anotao da lngua portuguesa; quando, em 1539-40, so publicadas a Cartinha e a Gramtica de Joo de Barros esta j uma verdadeira gramtica, dotada de sistematizao e dum carcter no s vincadamente pedaggico mas tambm normativo; quando, ainda, se publicam as primeiras Cartinhas, a do bispo Frei Joo Soares, pregador de el-rei e mestre dos infantes, por volta de 1540, e tratados de Ortografia, como o de Pero Magalhes de Gndavo em 1574 e o de Duarte Nunes de Lio em 1576, esses factos significam no o comeo, mas o termo dum longo processo cultural que, sem soluo de continuidade, articula a Gramtica do Renascimento com os seus criadores clssicos. Efectivamente, no podemos comear a histria da filologia e da lingustica pelo Renascimento, porque o renovo da Antiguidade

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    comeara muito antes e podemos dizer que no sofrera interrupo. Os Gramticos do Renascimento, Gramticos da lngua vulgar, acentuemos, so antes verdadeiros elos de ligao, garantes duma continuidade, mediante o aproveitamento duma herana.

    As suas inovaes, por vezes espectaculares, no que diz respeito terminologia e audcia de repensar a formulao clssico-escolstica, decorrem de um novo contexto perante o qual no deixam de estar atentos, numa tpica atitude presencialista.

    A civilizao greco-romana, na sua essncia e em todas as expresses da sua vida, manifestara uma unidade, sem que possamos, com preciso, delimitar-lhe o incio e o termo.

    Poderemos, talvez, defini-la, articulada segundo um eixo vertical o tempo e um eixo horizontal o espao.

    A cultura, que nos empenhamos por compreender e penetrar, uma unidade e como unidade tem de ser captada e interpretada.

    Verificamos, portanto, que da gramtica grega j cientfica, se bem que ainda no uma cincia histrica, sobrevivendo em Roma e em Bizncio derivou a nossa cincia gramatical.

    No nos parece, ao analisar o modelo dessa sobrevivncia, que, segundo opinio generalizada, enunciada at por Carolina Michalis 1, se tenha verificado um retrocesso ou mesmo uma estagnao no estudo da Gramtica durante o Imprio Romano e at depois. O que se verifica que o enunciado terico grego encontra ento, e s a partir dos Alexandrinos, a sua formulao sistemtica. A

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    gramtica grega continua a ser, com efeito, o modelo arquetpico de toda a arquitectura gramatical, mas a sua construo a partir desse modelo obra, sucessivamente, dos Alexandrinos, dos Romanos e dos homens da Idade Mdia.

    Efectivamente, quando Plato no Crtilo emite a opinio de que, segundo a natureza, para cada ser, existe uma designao exacta, ele aborda j um problema de ordem especulativa que vai servir de ponto de partida a Aristteles para a elaborao de todo um sistema de categorias que exprimem a constituio da frase, a sua diviso em unidades e classes de palavras.

    As categorias lgicas de substncia, qualidade e quantidade esto claramente representadas e correspondem simetricamente s categoriais gramaticais de substantivo, adjectivo e advrbio. Ora, nessa correspondncia lgico-gramatical, condicionando-se reciprocamente, reside a nosso ver a fundamentao terica da prpria constituio da gramtica, isto , a sua natureza formal; por outro lado, a sua justificao pedaggica, de um ponto de vista pragmtico e, de certo modo, substancial. A gramtica converte-se, pois, no sustentculo de todo o pensamento formal.

    Num parntesis antecipativo, diremos mesmo que essa correspondncia ser um dos parmetros da Lingustica Moderna.

    Ora, o facto de essa correspondncia sistemtica se dever em primeira instncia a Aristteles, garantir, durante a Idade Mdia aristotlica por definio a conservao da

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    correlao estabelecida entre a lgica e a gramtica e a salvaguarda do pensamento formalizado.

    Assim, se a organizao da Gramtica clssica como sistema de pensamento legado grego, a sua construo como quadro ou estrutura sistemtica, alcanada pelos Alexandrinos, assume uma projeco divulgativa atravs dos gramticos romanos, voltados para um pragmatismo que os leva a introduzir a gramtica no plano de estudos que, da poca imperial, passar Idade Mdia.

    Na Europa Ocidental, a Gramtica antiga, na sua formulao latina, devia servir de sustentculo ao ensino da lngua, que sobrevivia no uso prtico, como lngua da Igreja universal do ocidente a Igreja Catlica.

    Ela seria, portanto, o veculo duma cultura que, parecendo destinada a uma runa total, todavia resistiria, insularmente, nas formas artsticas do discurso, produzindo uma nova literatura latina e preservando a tradio jurdica romana.

    Simetricamente, a lngua e a gramtica gregas desempenham um papel e ocupam um lugar semelhante na cultura bizantina da Europa oriental. A diviso do Imprio Romano em duas metades fora irreversvel e provocara uma ruptura cultural articulada em torno de duas lnguas de civilizao: o latim e o grego, respectivamente.

    Ambas, provenientes de fonte comum a cincia helenstica da gramtica, vinculada pela teoria das partes do discurso e pela etimologia doutrina dos sofistas criam, por sua vez, reas culturais diferenciadas entre si, mas internamente unitrias.

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    Essa fraco bipolar conhecer uma tendncia de reunificao aps a queda de Constantinopla. O Ocidente revitalizar de modo precrio, talvez o interesse pelos estudos helnicos. Em Portugal, os estudos gregos conhecem tambm uma fase de aprofundamento e ampliao: um dos nomes o de Vasco Fernandes de Lucena, tradutor de Xenofonte, que dedicou a sua traduo da Ciropedia a Carlos o Temerrio, filho de Isabel de Portugal 2.

    Contudo, o Oriente e o Ocidente da Europa haviam j evoludo separadamente e construido culturas diferenciadas, de cariz prprio e fisionomia especfica. Era j demasiado tarde para promover um unitarismo cultural.

    No Ocidente, em que a Igreja escolhera para seu uso, quer litrgico quer evangelizador, a lngua latina literria, a Gramtica e a Retrica foram salvas pela Escola Crist, e, com elas, um resto da cultura enciclopdica antiga, nas Sete Artes Liberais.

    Com efeito, no limiar da Idade Mdia, os mosteiros do Reino Franco e das Espanhas tornam-se os centros culturais em que se salvam da conquista rabe as runas da cultura mediterrnica. Da, a preocupao prioritria dos conclios hispnicos quanto organizao das escolas paroquiais e episcopais. Em 527, o Conclio de Toledo havia decidido a constituio de internatos de clrigos, formados desde a tenra idade na domus ecclesiae. O 4. Conclio de Toledo, em 633, torna o percurso escolar mais exigente: a, so formados homens como Frutuoso, Martinho e Leandro de Braga que, segundo as prescries de Isidoro de Sevilha deviam, antes de mais nada, conhecer

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    satisfatoriamente a gramtica para compreender, sem o auxlio da pontuao, onde termina um grupo de palavras, onde a frase fica em suspenso e onde, finalmente, se completa o sentido. 3

    Ao examinarmos a programao curricular da escola medieval, verificamos que a cincia gramatical , a partir de Isidoro e durante toda a Idade Mdia, apoiada sobretudo pelos manuais de Donato e Prisciano, a fonte primeira da sabedoria e da lucidez. S depois de conhecidas as principais regras do latim o aluno passa a interpretar poetas e historiadores, como Virglio, Estcio, Terncio, Horcio, Ovdio, Lvio. De tal modo que alguns letrados consideram excessiva a importncia da Gramtica. Raoul Gleber refere que em Itlia esse excessivo culto levava negligncia das outras artes: a Gramtica, por antonomsia a gramtica latina, o fundamento das belas letras, a me gloriosa da eloquncia, a ama de todas as artes. 4

    A ininterrupta tradio gramatical greco-romana, conservada e transmitida atravs de uma Idade Mdia, como vemos, insuspeitadamente erudita, desemboca na intensa proliferao de obras gramaticais e para-gramaticais (apologias, defesas, louvores, ensaios normativos ou histrico-culturais, especulaes dialcticas) no Renascimento.

    No obstante, entre a gramtica concebida durante a Idade Mdia como disciplina do Trivium, e a gramtica renascentista, disciplina j participante dos estudos menores, verifica-se uma notvel e importantssima diferena: na Idade Mdia, efectivamente, a disciplina omnipresente, indissoluvelmente ligada retrica, subsidiando a

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    lgica e a dialctica, era a gramtica latina. Pelo contrrio, no Renascimento, como termo de um longo processo de que Dante pode considerar-se o pioneiro com a obra De Vulgari Eloquentia, a gramtica, como cincia de observao da linguagem, deixa de ser necessariamente latina e passa a incidir sobre as realidades das lnguas vernaculares.

    A imprensa, introduzida em Roma na 2. metade do sculo XV, abre, naturalmente, uma poca nova. Comea, pois, a fazer-se sentir o desejo de reproduzir textos que falassem uma linguagem acessvel a um pblico infinitamente mais vasto. Ora, significativo notar que o advento da imprensa coincide cronologicamente com os primeiros gramticos italianos. As Regole, primeira obra gramatical, depois do pioneirismo lingustico de Dante, so de cerca de 1495. A Gramtica Castelhana, de Antnio de Nebrija 5, aparecera em 1492. Significativo parece, tambm, o facto de a imprensa promover e exigir uma uniformidade regulamentar da Ortografia, at ento anrquica e caprichosa, submetida a toda a gama de critrios individuais.

    Durante o sculo XV assiste-se, portanto, a um progressivo movimento de imposio do uso do vernculo, em concorrncia com o latim, nos nveis literrio, cientfico e administrativo. Provises e decretos visam paulatina mas definitiva substituio do latim pelas lnguas vernculas ou vulgares. Generalizam-se as tradues, com privilgio para Ccero, Tito Lvio, Virglio, Horcio e Plnio.

    Os homens do Renascimento so conduzidos chamada questo da lngua e, logo, reviso do conceito e do esquema gramatical, que ter de

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    corresponder feio diferenciada das lnguas modernas em relao ao latim.

    o que faz, entre ns, de modo notavelmente lcido, Joo de Barros cuja reviso crtica expressivamente se manifesta atravs da sistemtica comparao entre ns (os romnicos) e eles (os latinos). No se trata, portanto, no Renascimento, de tentar reviver e admirar passiva e acriticamente o passado clssico. Trata-se, principalmente, de revestir esse legado duma arte nova. Assim, se alguns, intransigentemente, se agarram velha tradio humanstica, e defendem ponta de espada a primazia do latim, ns vemos que essa defesa v, e que, partida, a causa est perdida. As lnguas vernculas abriram definitivamente caminho, e debalde Romolo Amaseo, em 1529, pronuncia duas oraes De lngua latina usu retinendo. Ariosto, Machiavelli, Bembo, reconhecem e defendem o vernculo como lngua nacional.

    Atingindo as lnguas modernas uma maioridade, no momento de plenitude do Renascimento, a que se situam os demiurgos da Gramtica moderna. O termo Gramtica deixa de ser, por antonomsia, a gramtica latina. Pela primeira vez, embora a princpio timidamente, se preconiza a prioridade do ensino gramatical da lngua materna. o que significam as palavras de Antnio, no Dilogo em louvor da nossa linguagem, de 1540: Se eu no soubera da gramtica portuguesa o que me vossa merc ensinou, parece-me que em quatro anos soubera da latina pouco e dela muito menos. Mas com saber a portuguesa, fiquei alumiado em ambas.

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    Em Espanha, Pedro Simn Abril prope a Filipe II a convenincia de se proceder ao ensino das vrias matrias em lngua vulgar e de se ensinar aos meninos a gramtica espanhola antes da latina, o que, efectivamente, representava uma fractura em relao tradio pedaggica anterior.

    As lnguas modernas parece estarem, pois, definitivamente codificadas nos finais do sculo XVI, o bom uso definido a partir dessa codificao a gramtica e, finalmente, o contexto cultural exige que a gramtica assuma um carcter normativo.

    Com efeito, as lnguas vulgares ou vernaculares (embora se lhes reconhea como marca indubitvel de prestgio a filiao latina) apresentam-se, aos olhos dos gramticos renascentistas, como lnguas sem passado.

    Se Ferno de Oliveira alude etimologia, f-lo com ironia e desconfiana, enumerando falsas etimologias. Se Joo de Barros ocasionalmente se lhe refere, refere-se-lhe como a um conhecimento altamente duvidoso e inextrincvel: procurar a origem das palavras ser, segundo ele, to dificultoso como buscar as fontes do Nilo. A atitude destes gramticos , pois, notoriamente presencialista, referida observao directa e s concluses que a realidade actual e visvel unicamente permite.

    , pois, esse um domnio em que se verifica um dos desvios dos gramticos do Renascimento em relao escola gramatical clssica. Eles abandonam a indagao especulativa e terica da origem do vocbulo e do seu sentido primordial e motivado. Interessa-lhes e essa a posio claramente definida de Ferno de Oliveira e de Joo de Barros

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    estabelecer o que o uso introduziu e consagrou. A etimologia era, pois, considerada como o ponto fraco da cincia da linguagem devido, em parte, inexistncia do comparativismo lingustico, que s vir a surgir verdadeiramente no sculo XVIII.

    A partir de certo momento, assistimos ao paradoxo de que so os humanistas do Renascimento, to devotamente apaixonados pelas lnguas e culturas clssicas, aqueles precisamente, que vo abrir o caminho para o estudo mais intenso das lnguas vernaculares, que entraro em competio com o prestgio cultural do latim, do qual, finalmente, sairo vencedoras.

    Em fermentao, pois, durante o Renascimento, no declnio desta era de criaes e recriaes, assiste-se a uma progressiva tomada de conscincia das lnguas vulgares. Aps as primeiras tentativas de uniformizao, para o que contribuiram no s os ortografistas e gramticos, mas tambm os primeiros lexicgrafos do sculo XVI em Frana e em Itlia, os eruditos comearam a discernir as relaes entre as lnguas e a estabelecer os laos entre as particularidades da lngua verncula e a cultura do povo respectivo.

    Mediante novas condies de comunicabilidade entre os povos e, sobretudo, o encontro de lnguas no inseridas nas at ento identificadas como as famlias existentes (Romnica, Germnica e Eslava) torna-se necessrio encontrar uma codificao que, mais do que normativa, se tornar didctica. Os Europeus, chamados a comunicar com povos de outros continentes, no latinizados, quando na Europa o latim funcionava como lngua de erudio

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    supra-nacional, vem-se na necessidade de resolver o problema de dois modos:

    1. Ensinar a esses povos a lngua europeia; 2. Aprender a lngua nativa.

    assim que, no sculo XVI, surge publicado

    pelos jesutas o Dictionarium Latino-Lusitanum ac Japonicum e tambm a Cartilha em Tamul e Portugus, de 1554 (reed. Lisboa, 1970), em que o autor annimo mas, muito provavelmente um jesuta tambm, se apercebe claramente do diferente estatuto das duas lnguas postas em paralelo.

    tambm por isso que as Cartinhas para aprender a ler se multiplicam e visam, alm do ensino dos meninos portugueses, o ensino tambm da lngua portuguesa a estrangeiros.

    Estamos, efectivamente, num tempo dinmico: entre a primeira gramtica portuguesa (1536) do sculo XVI e a ltima obra gramatical do mesmo sculo (1596), encontramos um acelerado itinerrio no conceito e nos respectivos contedos da gramtica e do estudo da lngua. Ao concretismo pragmtico e presencialista do Renascimento, equilibrado na serenidade clssica, sucede rapidamente e sem transio a dor do tempo, que caracteriza a crise espiritual, religiosa e social do Barroco.

    A dialctica dramtica que se exprime pelo binmio interrogao/resposta, abre caminho para a pesquisa teleolgica. A etimologia, desprestigiada e ironicamente ou timidamente abordada pelos Renascentistas, como cincia dos pouco doutos,

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    segundo a irreverente expresso de Ferno de Oliveira, , na nova formulao lingustica, a busca das Origens. Em 1665 publicada em Paris a obra Origini della lngua Toscana; mas j em 1606, Nunes de Lio publicara Origem da Lngua Portuguesa.

    Essa dialctica inicia-se nos tempos modernos, em que se esboa a luta contra a lgica aristotlica, em que se rejeita o dogmatismo, em que se opera, em suma, uma revoluo filosfica, atravs duma ruptura epistemolgica. lgica aristotlica recusado o direito de se intitular a sistemtica do esprito.

    A correspondncia, a aliana, at, entre a lngua e uma gramtica universal, a pedra de toque da nova formulao. A partir da, com Lorenzo Valla em Itlia, Vivs em Espanha, Pierre de la Rame em Frana, tenta romper-se o equilbrio da filosofia aristotlico-escolstica.

    O cartesianismo lanara uma nova luz sobre a teoria da linguagem, buscando o ideal dum saber unificado. E, ao lado da mathesis universalis surge o conceito de lingua universalis. Ao lado da filologia emprica, vai surgir uma nova forma universal de gramtica. O estudo da linguagem posto na presena imediata do problema central que domina o conjunto da histria espiritual do sculo XVII, o problema da subjectividade, que tenta afirmar-se atravs duma viso mais larga e mais profunda da realidade, arrancando-a aos estreitos limites conceptuais dum empirismo psicolgico, fazendo-a sair, em suma, da esfera da simples existncia contingente e da actividade arbitrria para reconhecer a sua forma especificamente espiritual.

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    O problema da linguagem, em consequncia da sua reduo a quadros gramaticais coerentes, surge no conjunto duma metafsica universal do esprito. Logo, ao problema especfico, j colocado anteriormente, da origem das lnguas vulgares, vai suceder-se o problema da origem e essncia da linguagem humana. esse o significado da obra de Duarte Nunes de Lio, publicada entre 1596 e 1606, encerrando, por assim dizer, o ciclo cultural extremamente rico e criador da Cultura Portuguesa, colocada no interior do vasto colquio do Humanismo Europeu.

    A obra de Nunes do Lio situa-se, cronologicamente, nos alvores do Barroco, ou melhor, entre duas pocas. Se considerarmos que o Barroco representa no s uma atitude ou uma forma de expresso esttica mas, muito mais do que isso, uma vivncia ou uma experincia existencial, testemunho de uma crise religiosa, social e cultural, possivelmente camuflada pelo eufrico triunfalismo formal, importa distinguir em que medida o facto de a Origem ter sido composta nessa altura pode ter determinado certos aspectos da sua concepo.

    Desde logo, parece impor-se que o que pode chamar-se o pretensiosismo barroco se reflecte na preocupao etimolgica que, como se viu, s tangencialmente era abordada pelos anteriores gramticos e lingustas. Por outro lado, o novo estilo de relaes internacionais, desenvolvendo um cosmopolitismo cultural e promovendo emprstimos vocabulares, estimula a busca de uma noo de legitimidade na razo de parentesco entre as lnguas,

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    o que vem gerar um novo conceito, o de genuinidade lingustica, patente nas listas vocabulares que fazem parte da Origem. O conceito de que a lngua, perante o seu observador, uma realidade oscilante e mvel, denuncia um inequilbrio que procura reequilibrar-se, encontrando entre o princpio e o fim, entre o presente e a origem remota, smiles e ao mesmo tempo antteses.

    Fortemente vinculada ao tempo, a obra de Nunes do Lio, , pois, um testemunho documental e elucidativo da transio, talvez dramtica, do esprito do Renascimento para o esprito Barroco, enredado numa nova angstia e numa nova maneira de estar no mundo.

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    II QUESTES GRAMATICAIS

    Um dos problemas pelos quais podemos

    considerar ligada a Gramtica renascentista com a Gramtica medieval o problema da origem e diferenciao das lnguas.

    Assim que os Gramticos da Renascena esto ainda muito prximos da interpretao literal da Bblia e consideram o passo do Gnese que se refere criao de palavras por Ado como um passo de carcter directamente histrico. Parece, pois, que por motivos religiosos que o hebraico, a lngua do Antigo Testamento, apresentado, a partir de S. Jernimo, como a nica lngua primitiva aquela de que Deus se serviu ao comunicar com a criatura.

    Durante a Idade Mdia, porm, tal conceito foi assumindo perspectivas diferentes. E verifica-se que Santo Isidoro, ao ocupar-se do problema, o leva mais longe e parece j afastar-se do dogmatismo da afirmao inicial. Efectivamente, ele distingue o problema da lngua com que Deus comunicaria com os Homens essa seria, de facto, o hebraico da

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    linguagem espiritual que serve os espritos e os anjos 6.

    Das lnguas humanas, porm, a lngua-me continuava a entender-se que seria o hebraico: una omnium nationum lingua fuit, quae Hebraie vocatur 7. Essa lngua inicial e nica, porm, diversificou-se, como resultado da soberba dos homens ao tentarem atingir o cu, em Babel.

    Com efeito, presos letra do Antigo Testamento, todos os Gramticos do Renascimento que se ocuparam do problema o apresentam nestes termos. Assim no-lo apresenta Joo de Barros, nas suas linhas gerais. Curioso notar, porm, que o homem moderno, que desperta nele, parece entrever novas premissas para o problema, e afirma que ao homem natural a fala, embora tal faculdade, tornada natural, seja sem dvida dom de Deus: (a Deus) aprouve que, mediante o pdar, lngua, dentes e beios, um respiro de ar movido dos bofes, causado de a potncia a que os latinos chamam affatus, se formassem palavras significativas, pera que os ouvidos, seu natural objecto, representassem ao entendimento diversos significados e conceitos segundo a disposio delas... 8.

    Igualmente, servindo-se do seu colquio com Antnio, apresenta as dificuldades lgicas que reveste tal soluo: mal poeria Adam nome nau, pois nunca navegara, nem bombarda seno (h)avia de quem se defender, nem ao liblo seno tinha quem demandar. Parece, com efeito, deduzir-se uma certa reserva (que se ope simplicidade das palavras de Isidoro de Sevilha acima citadas) na afirmao de Barros: Porm, de crer que, ao

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    tempo da edificam de Babilnia, em que a linguagem era toda a.... Essa reserva acentua-se mais ainda nas palavras com que Barros tenta pr o problema nos seus devidos termos: Eu t qui recitei que os escritores antigos sentiram (...). E disto tomars que mais quadrar em teu intendimento, levando por guia as autoridades da Sagrada Escritura.

    Quanto a este problema, nem Ferno de Oliveira nem Nunes de Lio dele se ocupam, comeando a sua reflexo pela origem das lnguas vulgares, das lnguas faladas em Espanha e da formao da lngua portuguesa. Encaram frontalmente e apenas o problema da origem e evoluo das lnguas vulgares ou vernaculares.

    Nesse aspecto, podem considerar-se os Gramticos quinhentistas os verdadeiros precursores da gramtica histrica. Tal a ateno que estes homens comeam a dispensar ao problema que podemos entrever na sua obra a fragmentria origem da gramtica histrica como ramo especializado da cincia da linguagem.

    Quase todos os gramticos da Renascena esto de acordo na afirmao de que as lnguas modernas nasceram do latim corrompido pelas invases germnicas. Essa a teoria implcita na obra de Dante De Vulgari Eloquentia e mais tarde explcita nas de Alberti, Bembo, Speroni, Varchi, Nebrija e Barros.

    O conceito de evoluo est, porm, confundido ainda com o de corrupo: este nome de presbiter de que ns corrompemos Preste 9.

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    Para Barros, como para a maioria dos gramticos renascentistas, , pois, ponto incontroverso e assente que a lngua vulgar um latim modificado:

    1.) quanto pronncia, por influncia de outras lnguas (sobretudo a linguagem dos Godos e o mourisco)... Este (o tempo) nos trouxe a barbrie dos Godos, este nos deu xa e cha dos Mouriscos...

    2 ) quanto ao lxico, pela adopo de vocbulos mouriscos, exticos, castelhanos e de outras naes.

    No deixa, porm, Barros de sustentar a primazia do fundo latino; e, desse modo, indica a distino que faz entre a lngua-base e os superstrata: para ele, pois, as linguas romnicas tomam os seus vocbulos de diferentes origens, mas... principalmente da latina que foi a derradeira que teve a monarquia, cujos filhos ns somos.

    Talvez com maior realismo, Ferno de Oliveira no se refere a corrupo, propriamente, mas fala em disposio da lngua corporal, que, condicionada pelas condies do cu e terra em que vivem os homens ocasiona diversificaes articulatrias e lingusticas. Num rasgo de originalidade antecipativa, Ferno de Oliveira chega a afirmar: E no desconfiemos da nossa lngua, porque os homens fazem a lngua e no a lngua os homens. Assim, ao contrrio de Joo de Barros, de Nunes de Lio e, em suma, da maior parte dos gramticos do Renascimento, ele parece ter a noo correcta de evoluo sem, efectivamente, a confundir com corrupo, antes admitindo o afinamento e aperfeioamento progressivo da arte da linguagem:

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    e manifesto que as lnguas grega e latina primeiro foram grosseiras e os homens as puseram na perfeio que agora tm.

    Nunes de Lio, por seu lado, apega-se latinidade. Se Ferno de Oliveira tivera a coragem de afirmar: melhor que ensinemos a Guin que sejamos ensinados de Roma, Lio continua obstinadamente preso ao braso latino, como ndice de nobreza, prestgio e antiguidade. O captulo VII da Origem comea por considerar que a lngua latina em Espanha se corrompeu atravs do cometimento de vcios, barbarismos e solecismos, de modo que a lngua latina, casta e pura que se falava, corromperam, adulterando os vocbulos e mudando-os em outra forma.

    Assim, parece que, mais uma vez, entre os seus congneres, sobressai a lucidez reflexiva, o esclarecido equilbrio de Joo de Barros que sabe conciliar as posies extremadas que observamos em Oliveira e Lio.

    Mas, para alm do problema da origem e evoluo das lnguas, a prpria estrutura gramatical implicava e exigia uma reviso crtica de conceitos. Por um lado, como j vimos, os Gramticos sentiam-se presos tradio gramatical greco-latina. Por outro lado, no fugiam tentao, antes se entregavam deliberadamente ao jogo de demonstrar a individualidade e no identificao das lnguas vulgares com o latim. Trata-se, evidentemente, duma clara manifestao da progressiva consciencializao da realidade da existncia romnica.

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    Uma das mais importantes divergncias, ou antes, pontos controversos, diz respeito s partes do discurso.

    Com efeito, os gramticos antigos admitiam geralmente oito partes, a saber: Nome, Pronome, Numeral, Verbo, Advrbio, Preposio, Conjuno e Interjeio. Mais tarde, o italiano Carlino 10, por exemplo admite (1533) nove partes, tal como o ingls Palsgrave 11 e o francs Robert Estienne 12 que acrescentam s oito partes tambm o Artigo. O castelhano Nebrija admite dez partes, no distinguindo a interjeio do advrbio, mas acrescentando o Gerndio e o Nome Participial Infinitivo. Entre os portugueses, Joo de Barros admite tambm dez partes, seguindo, no entanto, um critrio diferente do de Nebrija, isto , conservando as oito partes consideradas em geral pelos gramticos latinos mas, numa clara apreciao da realidade lingustica, acrescentando-lhe o Artigo (no existente em latim) e distinguindo, no Nome, o Substantivo e o Adjectivo como partes independentes.

    A flexo do nome (Substantivo e Adjectivo) e do Verbo foi outra das questes gramaticais que constituiram para os Gramticos, at ao sculo XVIII, motivo de reflexo e discrepncia. A declinao do Nome, atravs da funo determinada pelas preposies ( rainha, da rainha etc.) apresentada pela maior parte dos gramticos do Renascimento e, o que mais, confundida em muitos casos com a noo de conjugao. Assim, Nebrija afirma que o Verbo... se declina por modos y tiempos, enquanto Barros dir que o nome se declina por casos sem tempo e que o Verbo no se declina mas

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    conjuga-se. Com efeito, a confuso ou sobreposio das noes de declinao e conjugao vinha j da Antiguidade. Prisciano 13 afirma (VIII, 1, p. 369): Verbum est pars orationis cum temporibus et modis, sine casu, afirmando no entanto a seguir (VII, 83, p. 442): Conjugatio est consequens verborum declinatio. Parece isto, pois, significar que, embora os gramticos latinos houvessem j pressentido a diferena entre Conjugao e Declinao, s os gramticos do Renascimento iriam esclarec-la e, entre ns, Joo de Barros que distingue perfeitamente as duas noes, antecipando-se na soluo lgica do problema.

    Se o primeiro problema posto pelo verbo o do prprio conceito de conjugao e Barros insiste na diferena entre conjugao e declinao ao qual j se referia ao tratar do Nome, o segundo problema diz respeito ao nmero de conjugaes. O autor annimo da primeira Gramtica italiana prope duas, afastando-se, por consequncia, da tradio das quatro conjugaes latinas. Trissino, porm, prope trs, sistema que se manteve e que provm da fuso da 2. e da 3. conjugaes latinas. esta a posio de Barros.

    A classificao dos verbos em substantivos e adjectivos (correspondendo noo moderna de frase nominal e frase verbal), pessoais e impessoais e activos e neutros, insere-se perfeitamente no uso gramatical do Renascimento, ainda no totalmente liberto da rigidez dos esquemas latinos. Com efeito, o termo verbo-substantivo, designando o verbo ser devida a Prisciano. No entanto, essa rigidez continua a existir, uma vez que os gramticos conservam, tanto quanto

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    possvel, os quadros latinos, desprezando as formas compostas dos tempos do perfeito e da voz passiva. Barros afirma, pois, que em portugus no h verbos passivos e que a sua funo suprida per rodeo. Considera, por consequncia, apenas os tempos constantes dos esquemas gramaticais do latim: presente, imperfeito, perfeito, mais-que-perfeito, futuro. Todos os outros tempos, que constituem criaes romnicas, so considerados rodeos ou soprimentos.

    A questo da terminologia e classificao dos pronomes e o problema sintctico da concordncia foram ainda outras das muitas questes da problemtica gramatical a que os gramticos do sculo XVI souberam dar soluo ou, pelo menos apont-la, criando o firme alicerce dum edifcio que se mantm ainda hoje suporte do pensamento lgico e da perfeio formal do raciocnio.

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    III O PROBLEMA ORTOGRFICO

    Ao compulsarmos os ttulos de obras

    gramaticais aparecidas na Europa a partir de 1495 (Regole...), verificamos que, acessoriamente aos problemas da gramtica, se punha o problema ortogrfico. A anarquia ortogrfica, proveniente da ruptura entre as lnguas vernaculares e qualquer forma de codificao, durante a Idade Mdia, tornava-se agora num grave inconveniente, mais sensvel aps o aparecimento da imprensa e a consequente difuso ou multiplicao das obras em vulgar.

    Contudo, o problema da escrita e da sua importncia foi desde sempre sentido e, paralelamente ao da origem, os homens puseram o problema da linguagem escrita, isto , fixada, tornada permanente atravs de um certo nmero de actos que assumiram, em certas civilizaes, um carcter ritual. Nicstrata 14, cuja lenda referida por Ferno de Oliveira, Joo de Barros e Nunes de Lio, teria introduzido o uso das letras em Itlia.

  • 29

    Ora, para alm da sua origem, a escrita pressupe uma representao grfica da pronncia. Da a necessidade de adoptar um sistema ortogrfico capaz de reduzir ao mnimo o desacordo entre a palavra e a linguagem escrita. Nesse ponto encontramos como que uma unanimidade entre os ortografistas: a melhor grafia aquela que mais se aproxima da pronncia. Acordo terico apenas, pois na prtica a formulao de regras capazes de salvaguardar esse princpio varia de autor para autor. Dificuldade agravada pela verificao emprica de que as lnguas, estando sujeitas a uma lei de mobilidade como que biolgica, dificilmente suportam uma fixidez grfica. Agravada ainda pelo facto de que o ortografista se encontrava dividido entre a tradio ou o costume ortogrfico, a etimologia (revalorizada pelo culto das letras antigas e das tradies clssicas) e as realidades fonticas da lngua, que presenciava e no procurava ignorar.

    Electivamente, as realidades lingusticas da Romnia apresentavam-se completamente diferentes das latinas e era, por conseguinte, necessrio encontrar novos smbolos e representaes grficas que correspondessem e pudessem representar o novo sistema fonolgico.

    por isso que as principais fontes gramaticais clssicas (Quintiliano, Escauro, Vlio, Longo, Varro, Prisciano, entre outros), se dificilmente poderiam ser abandonadas, dificilmente tambm poderiam ser seguidas sem adaptao. Foram, pois, submetidas a uma crtica e a sua doutrina a inevitveis modificaes.

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    Para essas adaptaes, que pressupem inovaes, afigura-se indiscutvel a influncia italiana. O prprio Nebrija passou em Itlia vrios anos e a anlise da doutrina gramatical dos primeiros gramticos portugueses denuncia claramente essa influncia.

    Ora, o problema ortogrfico, mais do que qualquer outro, concentrava a ateno dos proto-gramticos do Renascimento, j por no poderem socorrer-se do apoio autorizado dos Antigos, j porque se impunha cada vez com mais urgncia uma uniformizao da linguagem escrita.

    E, assim, muitas obras gramaticais se dedicam, no s em Portugal como em Itlia, Frana e Castela, ortografia das lnguas vulgares. Nesse domnio se estabelece a mais generalizada e importante polmica, em que a um acordo de princpio corresponde um desacordo de solues prticas que s a muito custo iro convergir. Os gramticos portugueses no se alhearam do problema: bem ao contrrio, visto que o sistema fnico do portugus e, principalmente, a abertura e fechamento das vogais, vinha pr problemas e impor solues diferentes dos das outras lnguas afins.

    A Ortografia de Duarte Nunes de Lio uma obra autnoma, cujo subttulo contm j implcito o respectivo plano: Reduzida a Arte e Perceptos. Quer dizer, o autor teve em vista apresentar noes tericas (arte), seguidas de normas prticas (perceptos). O que fez e faria tambm na Origem, em que notria a dupla e distinta feio terico-prtica.

    Comeando por dissertar, numa espcie de prlogo, a nvel quase especulativo, sobre as

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    caractersticas da comunicao por meio da linguagem e da sua representao por escrito, ocupa-se seguidamente das Regras, sempre fundamentadas em razes de lgica ou de erudio (etimologia).

    Por seu lado, dado o carcter eminentemente pedaggico e estritamente didctico da sua Gramtica, Joo de Barros evita toda a prolixidade. Considera-es de ordem mais geral, reserva-as para o Dilogo em louvor da Nossa Linguagem, publicado em apndice Gramtica, a qual, desse modo, conserva a feio linear e simplificada, baseada em esquemas e paradig-mas, conveniente a um verdadeiro livro de estudo. Contudo, no s no Dilogo que Barros se ocupa, de forma mais especulativa, dos problemas da lnguagem. Na sua obra restante, nomeadamente nas Dcadas, com frequncia se abandona a reflexes de carcter lingustico. O passo que a seguir transcrevemos pode aproximar-se das ideias expressas por Nunes de Lio na introduo da Ortografia: o qual artifcio [da inveno da escrita] pero que a inveno dele se d a diversos autores, mais parece per Deus inspirado que inventado per algum humano intendimento; e que, como lhe aprouve que, mediante o pdar, lngua, dentes e beios, um respeito de ar movido dos bofes causado de a potncia a que os latinos chamam affatus, se formassem palavras significativas, pera que os ouvidos, seu natural objecto, representassem ao intendimento diversos significados e conceitos, segundo a disposio delas, assi quis que, mediante os caracteres das letras de que usamos, dispostas na ordem significativa da valia que cada nao deu ao

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    seu alfabeto, a vista, objecto receptivo destes caracteres, mediante eles, formasse a essncia das cousas e os racionais conceitos, ao modo de como a fala em seu ofcio os denuncia. 15

    Ora, relativamente problemtica da ortografia verificamos que os italianos enfileiram no que pode chamar-se partido inovador tendendo a aproximar a grafia o mais possvel da fontica da lngua: ortografia fontica; os franceses, com algumas excepes, e tambm Nebrija, com certas reservas, inclinam-se para a grafia etimolgica ou histrica, que consideram como um braso de latinidade.

    Tolomei, por exemplo, insiste numa reforma, mas hesita em prop-la ele prprio. No obstante, a verdade que desde a gramtica toscana annima de 1495 encontramos tentativas de introduo de novos signos para a representao das vogais abertas e fechadas. Em 1524 Trissino representa as vogais abertas e e o pelos caracteres gregos e considerando que os acentos no se prestam para diferenciar a abertura e o fechamento voclicos. Tolomei, por seu lado, preferia o emprego de maisculas para a representao das vogais abertas. A este propsito, notemos que a doutrina de Tolomei parece estar subjacente opinio expressa por Ferno de Oliveira, Joo de Barros e Nunes de Lio ao referirem-se designao de grande e pequeno como equivalente, respectivamente, a aberto e fechado.

    , contudo, notvel que, apesar da controvrsia italiana de que so reflexo os gramticos portugueses, a diferenciao entre o aberto e fechado e e aberto e fechado nunca houvesse sido referida

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    pelos franceses, excepo de Meigret e Peletier. No caso de Nebrija que, igualmente, se lhe no refere, explica-se pela inexistncia da oposio aberta/fechada no sistema voclico castelhano.

    De modo geral, encontramos entre os gramticos do sculo, principalmente, as seguintes posies e solues:

    e

    abertoe

    fechadoo

    abertoo

    fechadoTrissino e O Salviati e o

    Tolomei E e O o Gilio E e O o

    Varchi e E o O Peletier e e (mudo)

    Donde conclumos que, mais uma vez, os

    gramticos do Renascimento nunca deixaram de pr problemas e de propr solues, numa busca incessante de normalizao ortogrfica.

    Deste quadro infere-se que os gramticos italianos e franceses consideraram, de acordo com o sistema fonolgico das lnguas respectivas, a abertura e o fechamento apenas para o caso de e e de o. , por conseguinte, de notar que Ferno de Oliveira, Joo de Barros e Magalhes de Gndavo se tenham referido tambm a a aberto e a fechado, numa clara aproximao da realidade fonolgica da lngua portuguesa.

    Pelo esquema apresentado verifica-se ainda que, por exemplo Joo de Barros, ao propor as designaes de grande e pequeno, respectivamente para

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    aberto e fechado, parece reflectir, como j vimos, uma influncia da doutrina de Tolomei, embora a representao grfica seja diferente e se aproxime da de Peletier (1515), utilizando o acento agudo e o circunflexo para marcar a abertura e o fechamento de o e de a, e utilizando a vrgula invertida sotoposta para e aberto. Portanto:

    Abertas Fechadas e e

    Ao contrrio dos anteriores, Nunes de Lio no

    considera vlida a distino entre a grande e pequeno, afirmando categoricamente que essa variao procede apenas da posio dentro da palavra, porque nas vogais, nenhuma diferena temos dos latinos. Acrescenta que o ser grande e pequeno consiste na longura e espao da pronunciao e no na maneira dela. De onde conclumos que, por um processo de recesso, Nunes de Lio regressa posio etimolgica, no seu sentido restrito, isto , reivindica para o portugus a noo de quantidade voclica existente em latim.

    A mesma atitude assume em relao a e e a o. Ignorando, pois, a noo de timbre, definida por Ferno de Oliveira, Joo de Barros e Gndavo, confunde-a de novo com a de quantidade.

    Quanto ao problema da oclusiva gutural surda k, c ou qu, ele j uma herana dos gramticos latinos que se haviam referido, com frequncia, necessidade ou, pelo menos, possibilidade de

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    abolio de qu. Essa controvrsia passara directamente para os gramticos renascentistas.

    Com efeito, j Varro, Quintiliano, Prisciano e Isidoro tinham assumido uma posio semelhante entre si, a qual por sua vez se reflecte em Nebrija. De facto, nas Reglas de Orthographia en la lengua castellana (1517), o gramtico afirmaria que um k e qu no tm utilidade na lngua castelhana. Pelo contrrio, Alejo Vanegas, 17 no seu Tratado de Orthogra phia y acentos en las tres lenguas principales (latim, grego e castelhano) aora nuevamente compuesto (1531 e 1592), preconiza o uso tradicional de qu.

    Quanto aos italianos, Tolomei foi o primeiro a referir-se questo e a p-la em termos semelhantes aos que Joo de Barros ir adoptar. A supresso de qu e de k e, em consequncia, a atribuio do seu valor grfico a em todas as posies provoca, evidentemente, como resultado, a necessidade de utilizar antes de e e de i, com valor de fricativa ou de africada. Efectivamente, para Barros, c ter sempre a funo de qu (=k); a cedilha, em qualquer posio, assinalar o som ceceado que, segundo ele, prprio do falar cigano de Sevilha.

    Por seu lado, Nunes de Lio considera o emprego de c e de i como adulterina pronunciao, e assume, por consequncia, uma posio contrria do seu antecessor. No admite, pois, a supresso de qu, mas a razo apresentada para contrapor s de Barros parece artificiosa e ligada, sem dvida, a uma preocupao etimolgica: a ns necessria assim para escrevermos todas as dices que os Latinos por ela escreviam. Razo de teor semelhante, alis, s que apresentara para negar a existncia de vogais

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    abertas e fechadas, isto , grandes e pequenas, em portugus.

    Relativamente terceira questo ortogrfica a distino de i e de u semi-vogais, de j e de v consoantes, assim como a conservao de y j em 1465 Leon Battista Alberti 18 insistira na necessidade de diferenciar u consoante e u vogal. Fortunio propusera a distino tambm de i e de j, assim como de s e de z; Nebrija atribura valores voclicos e consonnticos conforme os casos, a i, j, u, .

    Contudo, em posio intervoclica, o gramtio castelhano reconhece ainda a utilidade do emprego de y. Este problema, no entanto, assume aspectos menos polmicos que os anteriores e depende, muita vezes, apenas de uma questo caligrfica ou tipogrfica.

    Do mesmo modo, Joo de Barros, enquanto relativamente s questes anteriores toma uma posio definitiva e intencionalmente doutrinria, pelo contrrio, neste caso, parece no ter opinio segura e definitiva. Diz: (y) serve no meio das dies s vezes (...); i serve no fim das dies sempre.

    Gndavo torna perfeitamente clara a sua doutrina, j muito prxima da de Lio, preconizando o uso de y apenas entre duas vogais.

    Nunes de Lio, acha-se, por conseguinte, numa posio muito mais prxima dos critrios ortogrficos actuais: distingue acstica e graficamente i de j; distingue, paralelamente, u de ; utiliza y somente para vocbulos de origem grega.

    De um modo geral, e tendo em vista os critrios ortogrficos dos seus dois antecessores, podemos verificar que a ortografia de Nunes de Lio apresenta

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    uma feio notavelmente moderna e no difere substancialmente da que foi utilizada at s reformas ortogrficas do nosso sculo, principalmente, ao que nos parece, por dois aspectos fundamentais (em que residia o exotismo dos restantes sistemas ortogrficos referidos): o uso dos acentos, que passam a marcar no a abertura mas a tonicidade; e o estabelecimento das normas actuais do uso de (conservando qu e abolindo k).

    Separa-os mais de meio sculo fecundo em inovaes e conquistas culturais. Se a obra de Barros nitidamente renascentista, a de Nunes de Lio j decisivamente moderna, especificamente barroca, no esforo a cada passo demonstrado para relacionar graficamente as formas portuguesas com os seus timos latinos. Isto , intentando restituir sua forma erudita a terminologia j tradicional, procurando para o vocabulrio, sintaxe e fisionomia ortogrfica uma filiao genealgica.

    Situada entre ambas, a obra de Gndavo apresenta-se como documento expressivo duma cultura em expanso democrtica, visando objectivos estritamente didcticos.

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    IV DEFESA E APOLOGIA DA LNGUA

    la lecture des grammaires parues au cours du

    XVIe sicle, on est frapp du ton dardent patriotisme. 19 Esta observao, que se apresenta evidente a todos os que se ocupem do estudo das ideias gramaticais quinhentistas, j se impusera no breve apontamento de Leite de Vasconcelos sobre o assunto: Este perodo da histria da nossa Filologia pode caracterizar-se pelo seguinte: preocupao, nos gramticos, da semelhana da gramtica latina com a portuguesa [...]; disciplina e autoridade gramaticais; o estudo cada vez mais profundo da lexicologia; e sentimento patritico da superioridade da lngua portuguesa em face das outras, principalmente da castelhana. 20

    Verifica-se, contudo, que esse tom de patriotismo acentuado de que se faz eco nas gramticas europeias do sculo XVI parece estar ausente, ou, pelo menos, encontra-se diludo e mitigado na exposio gramatical de Barros. Considerando, porm, a Gramtica intencionalmente aglutinada ao Dilogo, verificamos imediatamente que

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    a objectividade pedaggica que Barros observou na Gramtica exclua todo o entusiasmo que reservava para o Dilogo, seu complemento. Nele, finalmente, se prope louvar a nossa lingugem [...] com que lve mis ornto que as rgras gramatices.

    Tal sentimento patritico objectiva-se e manifesta-se principalmente sob dois aspectos distintos:

    A defesa e ilustrao apologtica da lngua; B expansionismo lingustico, isto ,

    considerao da lngua como elemento de unidade, expanso e fixao de soberania.

    Com efeito, a glorificao nacionalista da lngua

    portuguesa, empreendida no Dilogo, constitui como que uma tomada de posio da parte de Joo de Barros na polmica que se esboava entre os doutos portugueses de quinhentos. Efectivamente, a par da glorificao da lngua, de que foi principal paladino Antnio Ferreira, 21 verificou-se tambm por outro lado um menosprezo pela lngua natal.

    Uma das mculas imputadas lngua portuguesa era a pobreza vocabular que Barros rebate mas que, como bem observa Asensio, parece reconhecer logo a seguir e a falta de ornato. Antnio Pinheiro 22 protesta, precisamente, contra a falsa e va opinim que da nossa lingoa muitos conceberam, tachando-a de pobre, no copiosa, dura, no ornada, injuriando-a de brbara, grosseira.

    Barros coloca-se, pois, decisivamente, entre os apologistas e defensores da lngua, apontando

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    sistematicamente todas as perfeies e belezas que se lhe apresentam e que podemos considerar o ponto de partida de todos os que, desde ento, se ocuparam do elogio da lngua.

    Para a lngua portuguesa Barros aponta e demonstra, principalmente, seis motivos de louvor: riqueza vocabular; conformidade com a lngua latina e filiao

    nela; gravidade e majestade; sonoridade agradvel; capacidade de abstraco; possibilidade de enriquecimento do vocabulrio por meio de adopes e adaptaes (sobretudo de latinismos).

    No podemos, contudo e muito menos no

    caso portugus , dissociar o nacionalismo do ideal unificador e expansionista.

    Seguindo a lio dos Antigos, muito principalmente a dos Romanos, os homens do Renascimento concluem que a lngua , antes e depois de tudo, o mais importante elo entre os homens e um instrumento unificador, conceito claramente expresso por Kukenheim: La Renaissance avait appris aux peuples de 1Europe que les Grecs, ayant bien rgl leur langue, lavaient introduit Rome, et que les Romains, leur tour, avaient impos leur idiome aux peuples vaincus: cest ainsi que les grammairiens en venaient admettre quune langue bien codifie est un excellent moyen dexpansion nationale.

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    o que Nebrija admiravelmente traduz na expresso: siempre la lengua fue compaera del imprio. 23

    Ora, enquanto nos restantes povos da Europa, sobretudo Frana e Itlia, o objectivo dos gramticos era unificar a Nao por meio da lngua, verificamos que tal finalidade no tem, na Pennsula, o mesmo valor, dado que Portugal , como sabemos, o pas europeu de fronteiras fixas mais antigas, e que o problema da unidade espanhola, em vias de efectivao, era, de longe, superado pelo ideal expansionista que culminou com os Reis Catlicos.

    A codificao e, logo, a fixao duma lngua dignificada pelo uso e pela gramaticalizao, visava, pois, a nosso ver, um objectivo mais lato, isto , a transmisso da lngua como instrumento e como veculo cultural.

    A inteno estritamente pedaggica, tantas vezes acentuada pelo autor a propsito da elaborao da Gramtica, conduziu-o a uma redaco cuja conciso deliberada o impediu de expor um certo nmero de ideias de carcter geral e no meramente pragmtico.

    No tal, por exemplo, a apresentao da Gramtica Castellana de Antnio de Nebrija, que inclui numerosas reflexes para alm do mbito meramente normativo.

    O Dilogo constitui, pois, ao que parece, o complemento de certo modo especulativo, embora tambm muitas vezes prtico, da Gramtica, que destinara a mininos e moos e que, intencionalmente, despojou de toda a prolixidade. Intenta, pois, neste Dilogo, louvar a nossa

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    lingugem que temos psta em rte, com que lve mis ornto que as rgras gramatices.

    Barros no considera, efectivamente, terminada com a Cartinha e a Gramtica (obras didcticas no sentido restrito) a misso de pedagogo que se atribuiu. Com o Dilogo da Viisa Vergonha, que parece ter sido composto antes do Dilogo em louvor.... Barros tenciona estabelecer regras ss de vida para a juventude e planeia complet-lo com outros dois que no chegou, com toda a probabilidade, a escrever: E a estes preceitos gramaticais (incluidos na Gramtica) e Dilogo da Viisa Vergonha [...], quisra ajuntr outros dous, um, da Viisa Verdde, e outro dstas duas palvras Si, Nam. 24

    Muitas das intenes planificadas por Joo de Barros, estavam, no entanto, destinadas a nunca virem a ser integralmente realizadas, como aconteceu com a monumental estrutura histrica de que s chegou a apresentar, com a sia, uma quarta parte. O prprio Barros se apercebe da distncia entre as suas intenes e as suas realizaes, afirmando ter mais cabedal em desejos que faculdade e tempo para esse ofcio de escritura.

    O Dilogo em louvor..., porm, surge, antes de mais, como correspondendo a uma necessidade de Barros se completar e se esclarecer a si prprio como autor da Gramtica.

    Assim, depois da inteno pedaggica reafirmada logo no incio do Dilogo, Barros ocupa-se do problema da origem das lnguas, baseando-se fielmente na escritura, embora evidenciando uma elasticidade de esprito tipicamente humanstica. Directamente relacionado com este, Barros refere-se

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    depois ao problema da diferenciao das lnguas, que explica, segundo a generalidade dos autores, pelo mito da Torre de Babel. 25

    Afigura-se, no entanto, que, uma vez diferenciadas as lnguas, Barros admite a noo de evoluo e filiao lingustica, embora confundindo essas noes com a ideia de corrupo. Assim, atribui, sem sombra de dvidas, ao portugus a paternidade latina, cujos filhos ns somos, embora admita a introduo de termos de diferentes origens, nomeadamente do grego, do hebraico, do mourisco e das lnguas dos povos com quem os portugueses recentemente haviam travado contacto. No obsta isto, porm, a que continue a considerar como lngua mais perfeita que mis se confrma com a latina.

    Entra a seguir, propriamente, na parte de louvor da lngua portuguesa. A posio de Joo de Barros no que respeita a este ponto, parece que se insere na polmica mais ou menos latente durante os sculos XVI e XVII entre os decididos apologistas da lngua nacional e os que reconheciam a superioridade da castelhana como lngua de maior circulao, expressividade e riqueza. Contra esses, ope-se vigorosamente Joo de Barros, atribuindo lngua portuguesa, como qualidades essenciais, riqueza vocabular, conformidade com o Latim, gravidade e majestade, sonoridade agradvel, capacidade de exprimir ideias abstractas, possibilidade da formao de novos vocbulos. Note-se, porm, que, paradoxalmente e numa fugidia aluso, Barros parece contradizer-se no seguinte passo: Aqui nestes trs respeitos de vergonha vam trs partes suas que nam especificamos em nome, pero que dissssemos seus

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    efeitos, por nam termos a cpia de vocbulos que tem os Gregos e Latinos [...]. Reconhece, pois, que o portugus vocabularmente mais pobre que aqueles dois idiomas.

    Refere-se a seguir ao problema da adopo de neologismos cultos, que preconiza desde que a orelha bem receba esses novos vocbulos.

    Esta reflexo relaciona-se de perto com o problema do uso e da gramtica, o qual fz as cousas tam natures como a prpria natureza.

    Seguindo na esteira de Lorenzo Valla e de Nebrija, Joo de Barros estende o seu louvor lngua, considerando-a como o mis rto sinl [...] testemunho de sua vitria.

    Depois de deixar-se discorrer sobre problemas lingusticos deste tipo, prximo, muitas vezes, da especulao, o gnio concreto de Barros recondu-lo esfera pedaggica de que nunca se afasta por muito tempo e faz uma crtica acerba impreparao dos mestres de ler e escrever: Nem todolos que insinam ler e escrever nam sam pera o ofio que tem [....]. Ua das cousas menos oulhda que [h] nestes reinos consintir, em todalas nbres vilas e iddes qualqur idita e nam aprovdo em costumes de bom viver poer escla de insinr meninos [...]. [E...] leiam os dipulos dandos pera toda sua vida [... ]. A mesma ideia ser retomada mais tarde numa breve aluso nas Dcadas, em que se refere necessidade de preparao especializada dos mestres. [...] na Gramtica, na Lgica e na Retrica, etc., somente julgam os professores dela e no o vulgo.

    A ltima parte deste Dilogo , por consequncia, quase um ensaio sobre a pedagogia

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    das primeiras letras. Barros, depois de ter afirmado a necessidade de fazer preceder o ensino do Latim pelo do portugus, faz a apologia da brandura no ensino; preconiza o mtodo indutivo, e aconselha a precedncia do ensino da letra redonda sobre o da letra tirada, contrariamente ao mtodo geralmente seguido.

    Menos notvel no seu tempo que Joo de Barros e menos aventureiro que Ferno de Oliveira, Pero Magalhes de Gndavo, filho de pai flamengo, era natural de Braga, onde nasceu em data incerta. No se conhece tampouco a data da sua morte mas vivia decerto ainda em 1576. Barbosa Machado poucas informaes biogrficas nos d acerca do homem, que apenas sabemos que teve uma escola pblica na provncia de Entre Douro e Minho. Esteve no Brasil antes de 1569 e, ao voltar, foi funcionrio na Torre do Tombo. Modesto e obscuro, Gndavo viveria apenas na sua obra a que os brasileiros deram necessrio relevo, visto ter sido o primeiro a escrever uma histria do Brasil: Tratado da Provncia do Brasil, indito at ao sculo XIX e Histria da Terra de Santa Cruz, impresso em 1576.

    A sua obra gramatical constituda pelas Regras que ensinam a maneira de escrever a orthographia da lngua Portuguesa, com hum Dilogo que adiante se segue em defensam da mesma lngua. Em Lisboa. Na officina de Antnio Gonsalves. Anno de 1574.

    O nico exemplar conhecido da primeira edio existe na biblioteca do Pao Ducal de Vila Viosa,

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    existindo edies posteriores de 1590, por Belchior Rodrigues e Alexandre de Siqueira (1592).

    Tal como Joo de Barros, embora numa dimenso de modstia, a obra de Pero Magalhes de Gndavo apresenta-se em duas seces independentes e de objectivos perfeitamente diferenciados.

    A primeira um pequeno tratado ortogrfico que confronta o autor, muito claramente, com uma experincia didctica. Pretende no fazer doutrina, mas ensinar a escrever bem e pronunciar correctamente, restaurando o prestgio da lngua, para que os portugueses deixem de cometer erros que a deslustram e os deslustram. Dirige-se especialmente aos que no sam Latinos, porque os erros mais comuns provm da ignorncia dessa lngua. Aqui verificamos que Magalhes de Gndavo se coloca numa posio ortogrfica perfeitamente diferenciada da que encontraremos em Nunes de Lio, que se dirige a conhecedores do Latim e evidencia uma notvel erudio. Coloca-se tambm numa posio diferenciada em relao a Joo de Barros, cuja posio mais fontica que etimolgica, tentando uma conciliao entre a raiz latina do vocbulo e aquilo que a orelha bem receba.

    No Dilogo, em que exercita, como o grande mestre, o estilo coloquial, Gndavo pretende mostrar a ilustrao da lngua portuguesa, a sua apropriao para os gneros herico e cmico, bem como a sua adaptao aos ritmos do lirismo. Mas, enquanto Barros tentava demonstrar as excelncias da lngua portuguesa a partir da sua conformidade com o latim e em confronto com as outras lnguas,

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    Gndavo restringe-se polmica da competio entre o portugus e o castelhano, colocando-se numa posio inteiramente pragmtica: efectivamente e no sculo seguinte, pelo menos na primeira metade, os factos vieram demonstr-lo era a lngua castelhana e no outra qualquer que punha em risco o prestgio e circulao do portugus. , pois, significativo que, enquanto no Dilogo de Barros os interlocutores so Antnio e o Pai, que dialogam em tom dialctico e elegante, no de Gndavo, os interlocutores so um Portugus e um Castelhano, que se envolvem numa clara discusso de rivalidades. Parece evidente que a frmula de Gndavo, menos erudita, se tornou mais popularizante, jogando com um certo nmero de coordenadas da psicologia colectiva.

    Quanto a Ferno de Oliveira e Nunes de Lio, no que diz respeito ao problema da apologia da lngua, o processo ou frmula utilizados foram diferentes. A apologia e defesa da lngua no do lugar construo duma obra independente, mas encontram-se incorporadas no decorrer da obra respectiva. Na Gramtica de 1536 surgem aqui e ali, ao sabor da pitoresca indisciplina mental do seu autor. Na do erudito Nunes de Lio surgem dialecticamente arquitectadas, segundo uma determinada linha de raciocnio. Assim, se Gndavo, como vimos, limita a sua defesa em face do castelhano, Nunes de Lio, pelo contrrio, encontra uma forma mais hbil de chegar mesma concluso, mostrando a maior expressividade do portugus em

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    relao ao latim, a sua maior riqueza, a sua capacidade de adaptao de vocbulos exticos e, finalmente, a sua dificuldade a qual j Gndavo acentuara qualidade que parece ser para os gramticos do sculo XVI um sinal de nobreza. Assim, discretamente, Lio acaba por mostrar que no falta da bondade da lngua portuguesa no ser comum a tantas gentes como a castelhana.

    Tal raciocnio, rodeado e escamoteado, tinha, como evidente, uma boa razo na situao poltica vivida pelo Autor, que em no pouco influenciou a sua obra.

    As apologias, defesas e louvores constituram, pois, um dos sectores paralelos gramtica, representando como que a fundamentao terica ou razo justificativa da criao da gramtica das lnguas vulgares.

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    V FERNO DE OLIVEIRA E A PRIMEIRA ANOTAO

    DA LNGUA PORTUGUESA

    Ferno de Oliveira foi filho do juiz de rfos de

    Pedrgam, Heitor de Oliveira, e nasceu provavelmente em Aveiro, em 1507. Morreu cerca de 1580 ou 1581. Foi, contudo, na Beira que decorreu a sua infncia, conforme ele prprio testemunha no captulo XLVII da Gramtica: Contudo, sendo eu moo pequeno, fui criado em S. Domingos de vora, onde faziam zombaria de mim os da terra, porque o eu assim pronunciava, segundo que o aprendera na Beira.

    De qualquer modo, aos treze anos de idade entrou como novio no convento dos Dominicanos em vora os quais seriam mais tarde seus implacveis perseguidores. A, foi discpulo de Andr de Resende, que muitos anos depois viria tambm testemunhar contra o frade desfradado e talvez hereje.

    , contudo, s em 1532, j homem, que abandona o convento e se refugia em Espanha. Ter

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    sido durante a estadia nesse pas que deu incio redaco da sua Gramtica? Galindo 26 faz essa deduo, embora o argumento apresentado no seja suficientemente probante: Oliveira cita Nebrija a propsito das letras latinas. O modo de falar de Oliveira em tal passo e tambm quando alude aos que no se lembram de sua terra a que muito devem, faz pensar que Oliveira escreveu a sua obra achando-se em Espanha e talvez em Toledo. Interpretando, porm, outro passo da obra de Ferno de Oliveira, parece, pelo contrrio, que a Gramtica foi redigida em Lisboa, onde viria a ser publicada, em Janeiro de 1536: Ainda, porm, que nesta cidade houve ou cuido que haja e viva uma mulher que se chamava Cataroz. (captulo XLIV). Aqui, o autor exemplifica uma excepo da lngua portuguesa, donde se torna evidente que esta cidade em Portugal.

    Secularizado por Paulo III, o egresso da Ordem dos Pregadores dedica-se ento a leccionar jovens fidalgos, filhos e filhas de alguns senhores principais desta terra, entre os quais D. Anto de Almada (filho de D. Fernando de Almada, por sugesto do qual publicar a Gramtica), os filhos do baro do Alvito e os de Joo de Barros. Nesta poca parece ter gozado de uma certa estabilidade, a qual nunca mais reencontraria.

    Por volta de 1540 ou 1541 parte para Itlia, talvez em servio secreto de D. Joo III, na complicada questo que este rei manteve com a Santa S a propsito dos cristos novos 27. Talvez em virtude do carcter secreto desses servios o seu

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    nome no aparea mencionado na documentao relativa a esse assunto.

    Regressa a Portugal em 1543, acompanhando o nncio Lippomani e, em Lisboa, abandonado pelos amigos, criando inimizades e conflitos pelo seu temperamento irrequieto e arrebatado, mal visto pelos dominicanos, omnipotentes no Santo Ofcio, atravessa dois anos de penria.

    Em 1545, com o nome de Capito Martinho, alista-se a bordo duma nau francesa, sob o comando de Saint-Blancard, na frota de Antoine Escalin, baro de La Garde. Vai, porm, ter a Londres, e frequenta a corte de Henrique VIII. A dissidncia do rei ingls em relao a Roma parece quadrar-se com as opinies pessoais de Ferno de Oliveira, que ento denuncia certos aspectos do ritual e do conceiturio catlico. Morto Henrique VIII, volta a Portugal; e, talvez duvidoso do acolhimento que o esperava, faz-se acompanhar, em 1547, de uma carta credencial para D. Joo III, passada pelo jovem rei Eduardo. No obstante, logo nesse ano denunciado e preso pela Inquisio (Ordem de S. Domingos). Tendncias religiosas consideradas herticas? Apologia audaciosa da poltica religiosa dissidente de Henrique VIII? Ressentimento dos dominicanos? O certo que Ferno de Oliveira preso por tempo indeterminado, cumpre a pena durante trs anos, findos os quais, por motivos de sade, transferido para o Mosteiro de Belm, em recluso. Um ano depois -lhe concecida liberdade condicionada.

    Em 1552 parte para o Norte de frica, na qualidade de capelo; e, feito prisioneiro, vem a Lisboa para negociar o resgate e fica em Portugal.

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    As suas desventuras, porm, prosseguiriam: em 1554 denunciado como cismtico por um falso amigo. Consegue, no entanto, durante uns meses ser nomeado revisor na Universidade de Coimbra, onde ensina Retrica. Volta ao crcere, de 1555 a 1557. O seu rasto torna-se agora mais incerto e duvidoso. Em 1565 sabe-se que lia casos de conscincia na escola dos espatrios em Palmela e recebia uma tena de D. Sebastio.

    A obra de Oliveira , efectivamente, um conjunto de curiosas e judiciosas reflexes, de tipo ensastico. Em suma: uma miscelnea lingustica e cultural.

    Inicia-se por uma parte preambular (ausente da gramtica tipicamente escolar do seu sucessor), em que define a linguagem. A linguagem figura do entendimento 28; e expende consideraes, apoiado na autoridade dos filsofos antigos, sobre a formao das lnguas. Seguem-se algumas pginas sobre o modo de falar dos portugueses e a formao do reino. S depois de se referir origem dos nomes de Lisboa, Lusitnia, Portugal, de fazer um breve resumo da Histria dos primeiros reinados, de tomar como exemplo a perdurabilidade da glria romana, devido imposio da lngua aos vencidos, se prope definir gramtica. Refere-se, em seguida, ao papel de D. Dinis e D. Joo III no desenvolvimento da instruo e segue um pormenorizado estudo da pronncia, articulao e grafia dos sons portugueses, a parte talvez mais original da sua obra.

    Mesmo a no exclui digresses de tipo histrico-cultural, as quais vm, naturalmente,

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    interromper a sistematizao da matria. extensa parte dedicada descrio fontica segue-se um breve estudo da morfologia, ou melhor, de alguns problemas morfolgicos, sem sequncia ou planificao: derivao e composio, flexo dos nomes, alguns pronomes, plural dos nomes terminados em o e em consoante, conjugao dos verbos. Termina com uma pgina dedicada construo (sintaxe).

    Por outro lado, um dos aspectos curiosos da obra de Oliveira consiste na adopo de uma nomenclatura original, muito expressiva e notavelmente inovadora (palavras apartadas e juntas, mudadas, primeiras, tiradas), a qual, no vir a ser utilizada pelos gramticos posteriores.

    Eminentemente pragmtica, baseada numa experincia pedaggica e humana, a obra de Ferno de Oliveira, que ele modestamente qualifica de primeira anotao da Lngua Portuguesa, deixando para a de Joo de Barros o ttulo de primeira gramtica, uma obra altamente expressiva dum esprito aberto e atento realidade circundante uma obra do Renascimento.

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    VI A SEGUNDA GRAMTICA PORTUGUESA:

    JOO DE BARROS

    Joo de Barros nasceu em Vila Verde, perto da

    cidade de Viseu, no nordeste de Portugal e morreu na sua quinta de Ribeira de Litm (ou Alitm), perto de Pombal.

    Foi filho ilegtimo do fidalgo Lopo de Barros, sendo desconhecido o nome da me, e foi educado desde muito novo no pao real, por recomendao de seu pai que, antes de morrer, o confiou a D. Joo de Meneses, mordomo-mor do rei D. Manuel. Efectivamente, o seu bigrafo, Severim de Faria 29 atribui a Joo de Barros uma formao cultural especificamente ulica: Costumavam naquele tempo os reis de Portugal mandar doutrinar os moos fidalgos e os da cmara (...) em toda a boa disciplina e tinham para isso mestres no Pao que lhes ensinavam as lnguas, cincias matemticas, letras humanas, danar, jogar as armas e outros virtuosos exerccios. E os mestres tinham certo dia no ms em que el-Rei sabia deles quem bem exercitava estas

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    Artes ou quem se havia remisso ou negligente nelas. 30

    Essa formao cultural foi depois ampliada por um auto-didactismo de que as suas obras so documentos: a erudio clssica, atravs de um conhecimento detalhado dos autores latinos e alguns filsofos e historiadores gregos; a cultura escolstica e patrstica, visveis nos seus Dilogos morais, na Cartinha e na Gramtica. A sua obra histrica documenta a fuso dessa cultura humanstica com conhecimentos actualizados da cincia geogrfica e etnolgica resultante da ampla documentao a que teve acesso. Catlico de feio erasmista, no deixando de submeter anlise crtica tudo o que no fosse dogma, toma parte, embora prudentemente, no gravssimo conflito moral e religioso suscitado na poca pelo problema judaico, e que culminaria com o rei D. Joo III. Essa posio lev-lo- a manifestar, na sua obra Contra o Talmud, uma tendncia para a soluo pacfica e conciliatria de um problema que atormentava a sua conscincia catlica.

    Cerca de 1516 era Moo de Guarda-Roupa do ento prncipe D. Joo, futuro rei D. Joo III, e nessa altura compe a sua primeira obra, Crnica do Emperador Clarimundo segundo o seu prprio juzo, trabalho de ensaio para maiores coisas.

    Casou em 1522 com D. Maria de Almeida, de famlia fidalga, oriunda de Leiria, de quem teve dez filhos: Jernimo, Antnio (interlocutores nos seus Dilogos, em cuja educao tomou parte activa, discpulos tambm de Ferno de Oliveira), Joo (morto na batalha de Alccer-Quibir em 1578), Lopo

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    (casado e fixado em Goa), Diogo (morto tambm em Goa), Maria, Isabel e Catarina, sendo desconhecidos os nomes das duas outras filhas.

    J durante o reinado de D. Joo III, desempenhou cargos pblicos da mais alta importncia: Governador da Fortaleza de S. Jorge da Mina (Costa da Mina) em 1522 e Tesoureiro da Casa da ndia, Mina e Ceuta, cargo que exerceu de 1525 a 1528.

    Segundo o seu bigrafo Severim de Faria, Joo de Barros teria feito uma viagem Mina (e teria sido a nica) onde cumpriu o trinio governativo, mas sobre essa sua deslocao no h documentao segura. Em 1525 encontramo-lo em Lisboa, de onde se retira, em 1530, para a sua quinta em Ribeira de Litm, para fugir epidemia de peste que ento grassava. Regressa a Lisboa em 1532 e empossado como Feitor da Casa da ndia, cargo que exerceu at 1567. Nessa data retira-se definitivamente para Ribeira de Litm, onde veio a morrer em 1570 ou 1571, sendo sepultado, de acordo com as suas disposies testamentrias, na capela de Santo Antnio que ele prprio fundara.

    A biografia de Joo de Barros, historiador, lingusta, pedagogo e moralista filosofante, actividades mutuamente tributrias, apresenta antes de mais o aparente paradoxo de que, embora no tenha, como a maior parte dos seus congneres historigrafos da mesma poca, conhecido o Oriente nem o Continente Africano (sendo duvidosa a sua estadia na Costa da Mina), se mostra capaz de dar uma imagem exacta e rigorosamente delineada dos

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    povos que se tornam os protagonistas e os informadores da sua obra histrica.

    Na sua sia concorrem informaes geogrficas, etnolgicas e at lingusticas, em que podemos distinguir uma atitude precursora do comparativismo lingustico.

    Joo de Barros, efectivamente, teve sua disposio uma vastssima documentao, pelo facto de ter sido durante trinta e cinco anos Feitor da Casa da ndia: tinha, pois, acesso a dirios de bordo, relatrios oficiais de governadores e capites, relatos e depoimentos testemunhais de mercadores, marinheiros e soldados, ou simples aventureiros. S assim se explica a soma de detalhes pitorescos, a cor extica e local de que est informada a sua obra. Tendo comeado a vasta planificao da sua obra scio-histrico-geogrfica em 1531, de que resultaram as quatro Dcadas que formam a sua sia, s em Dezembro de 1539 publicada a Cartinha para aprender a ler, logo seguida, em Janeiro de 1540, pelo volume da Gramtica, que inclui tambm o Dilogo em Louvor da nossa Linguagem. Ora, se a Cartinha, dirigida ao prncipe D. Filipe (morto em 1539, filho do seu primeiro amo, D. Joo III) e a Gramtica, destinada aos moos, pelo seu carcter estritamente didctico no contm mais que as indicaes economicamente dirigidas ao objectivo de ensinar, o Dilogo torna-se j tributrio da experincia lingustica adquirida atravs do seu contacto indirecto mas submetido a profunda e analtica reflexo com as realidades do Oriente Asitico. essa a razo pela qual, j como historiador, Joo de Barros se revela como um cripto-lingusta, cedendo inmeras vezes tentao de

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    explicar, comparando, factos lingusticos orientais com os das lnguas europeias conhecidas. Reflexes oriundas desse ncleo de informao, fundidas com a erudio clssica, reencontram-se ao longo dos Dilogos morais, trs dos quais so dirigidos aos filhos (Jernimo e Antnio) e os tm como interlocutores, alm de um no existente (ou por perda ou por no ter sido composto), acerca das palavras Sim e No, o qual anunciou no Dilogo da Viciosa Vergonha. 31

    , pois, todo esse tesouro cultural que ele prprio afirma ser a nica herana que deixa aos filhos filhos bem ensinados, a favor dos quais nem sequer utilizou o direito que lhe assistia de transmitir o cargo pblico que desempenhava.

    Efectivamente, antes de morrer, o seu testamento inclui uma minuciosa lista de dvidas que mostram que morreu, seno na misria, pelo menos numa mediocridade que pouco tinha de ureo. Esse documento uma revelao da figura moral de Joo de Barros. Nele encomenda aos seus herdeiros a satisfao completa das dvidas at mais pequena, pede aos filhos que no esqueam o dote de suas irms e a estas que, no casando, se recolham vida monstica, como cumpre honra delas e minha. Recomenda ainda aos filhos que amparem e consolem a me e se ocupem em fazer imprimir as obras que deixa inditas e que dedica ao rei. 32

    Esta quase penria material dos ltimos anos de um homem que, durante toda a sua vida, vivera de tenas mais ou menos avultadas e regalias, coma rgia recompensa dos seus trabalhos, pode ter sido originada pelo desastre econmico e pessoal que

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    constituiu para ele a empresa de uma Capitania no Maranho para explorao aurfera.

    O prprio Joo de Barros, de sociedade com Aires de Cunha e Ferno lvares de Andrade, tesoureiro-mor do Reino, constituiu, em 1535, uma frota de dez navios em que seguiam novecentos homens de armas e cento e treze cavaleiros. Malograda esta expedio, Joo de Barros enviou outra em 1536 em que seguiram dois dos seus filhos sem que, todavia, em cinco anos de buscas, tivessem encontrado ouro. Este desastre financeiro no o impediu de indemnizar Aires da Cunha e todos os que haviam tido prejuzos com tal empresa.

    Vida pblica, ambies econmicas, o prprio encargo oficial de historiar a expanso, no o impediram de ser no s o autor da primeira verdadeira Gramtica portuguesa, como de participar na gramaticalizao das lnguas vernaculares em elaborao na Europa durante a poca do Renascimento.

    Os gramticos do sculo XVI no fazem seno, como vimos, alargar o ideal pr-esboado desde Petrarca ao adoptar o Toscano como lngua de expresso literria. Concretizam, pois, o movimento de reabilitao das lnguas romnicas, proclamado por Sperone Speroni 33, Valds 34, Du Bellay 35, e aspiram conferir lngua vulgar a simetria e sistematizao razo de dignidade e prestgio que os Alexandrinos haviam dado ao Grego e os gramticos da poca imperial ao Latim.

    Essa dignidade e prestgio sero, pois, tanto maiores quanto mais rigorosa e exacta a sua codificao gramatical. Tm, assim, um objectivo

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    prtico bem determinado e rejeitam as subtilezas especulativas familiares cincia antiga da linguagem. Comea a definir-se a doutrina gramatical de Joo de Barros pela sua posio perante as lnguas clssicas, em primeiro lugar, (postulando assim uma existncia romnica) e, em segundo lugar, em relao s restantes lnguas (postulando uma existncia nacional).

    Hesitantes, ainda, os Gramticos e proto-fillogos do Renascimento, tm conscincia de uma inexperincia que os impede de caminhar sem o fabordo dos Antigos.

    Em consequncia, a afirmao de que Joo de Barros (...) defende a aproximao do portugus e do latim cujos filhos ns somos 36, no pode ser tomada sem restrio, tendo em vista o contexto de toda a gramtica. Para Joo de Barros, como para quase todos os seus contemporneos, o latim aparece, principalmente, como ponto de referncia, modelo de codificao gramatical, fonte de emprstimos vocabulares. Este trplice conceito vai manter-se em muitos dos gramticos dos sculos seguintes, at ao de novecentos.

    O que primeiro sobressai (...) dos seus escritos, a observncia geral das normas clssicas. Observncia to insistente e to fiel que, no atingindo apenas as definies, vai tocar a prpria ordenao e a substncia maior das matrias. (...) Tanto importante em Barros a influncia greco-latina, sobretudo latina, que no estudo da flexo h o sistema curiosssimo de se disporem os nomes por declinaes, sistema que, por sinal, continuar mais tarde 37.

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    No obstante, e para alm da ordenao, nomenclatura e definio, o contedo da Gramtica parece colocar-nos perante uma realidade porventura desconcertante. O balano entre os passos em que Barros alude decantada conformidade com o latim e aqueles em que se refere desconformidade entre o latim e o portugus, favorvel segunda atitude. A latinizao de Barros , pois, segundo parece, mais formal do que essencial, preocupando-se ele mais em demonstrar diferenas do que em apontar identidades.

    Para ele, a filiao latina da lngua portuguesa e a conformidade desta com ela constituem, sem dvida, ttulos de nobreza e um dos motivos de louvor da lngua portuguesa, patentes no Dilogo, mas no deixa de reconhecer a individualidade do Portugus em relao lngua-me. Com efeito, embora se refira conformidade, ou como argumento apologtico ou como ponto de referncia (visto que, como vimos atrs, se pressupe que a primeira lngua estudada gramaticalmente era o latim), Barros no se deixa cegar pela sua formao de latinista: Sam os mdos erca de ns inco como tem os latinos, portanto, seguiremos a sua rdem e termos, diz. Repare-se, pois, que, s porque existe real conformidade neste caso, Barros seguir a rdem e termos dos latinos. A relacionao com o Latim para ele um meio pedaggico de facilitar a aprendizagem da nova gramtica: Ns tomaremos da nossa construim o mais necessrio, imitando sempre a rdem dos Latinos, como temos de costume; a nssa lingugem compsta dstas nve partes (...) que tem

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    os latinos (...) imitam dos quaes, por termos as suas prtes, dividimos a nossa Gramtica.

    Destes exemplos, que se multiplicam ao longo da Gramtica, inferimos por conseguinte que o latim, ou melhor, a Gramtica latina, , antes de mais nada, o modelo e a referncia. Modelo, contudo, tambm, de vernaculidade. Nas Dcadas, com efeito, afirma: (Afonso de Albuquerque) falava e escrevia muito bem, ajudado de algas letras latinas que tinha. Como meio de valorizao da lngua portuguesa, e por virtude da identidade famosa por que pugnaram quase todos os nossos humanistas, e que Valds reivindicara para o Italiano, o latim apresenta-se tambm para Barros como uma possvel fonte de enriquecimento vocabular: assi que podemos usr d(e) alguns termos latinos que a orelha bem receba. Vai mesmo ao ponto de exortar os seus contemporneos adopo de neologismos processo j praticado pelas outras naes romnicas: este exerccio, se ns usramos, j tivramos conquistda a lngua latina. Esta atitude idntica de Andr de Resende 38, ao censurar aqueles juristas (morosos) que evitam empregar latinismos e encerram a lngua na estreiteza dos idiotismos lusitanos.

    Em contrapartida, a preocupao de Barros em individualizar a lngua portuguesa por oposio latina torna-se insistente pela repetio do processo comparativo: nos ques gneros reprtem os latinos os seus (...). Ns, destes inco gneros, temos smente dous (...). Ns no temos estes vrbos (que os latinos tm). (...) Temos mis este vrbo (h)ei (h)s (...). A oposio entre os factos latinos e as

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    realidades romnicas do portugus est, pois, bem marcada pelo uso constante do pronome ns que, acinte, contrape a eles, os latinos.

    Verifica-se, por outro lado, que as principais inovaes romnicas em relao ao latim foram ou claramente discernidas ou, pelo menos, pressentidas por Joo de Barros: a existncia do artigo: artigo a das partes da ram, a qul (...) nam tem os latinos. desaparecimento da declinao: (...) sta dificuldade mis entre os latinos e gregos pola variam dos csos que erca de ns (...) porque toda a (...) nssa variam de singulr a plurr. formao perifrstica dos graus de comparao: E antre ns e os latinos (h) sta diferena: eles fzem comparativos de todolos seus nomes ajetivos (...) e ns nam temos mis comparativos que estes: maior, menr (...), milhr (...), pir (...); reduo das conjugaes: Os latinos tem qutro conjugaes; ns, trs (...); diferenas entre a forma e o valor dos tempos verbais em relao ao latim: (...) alguns que os latinos tem de que ns careemos ; formao perifrstica de alguns tempos verbais: todalas outras ms prtes que os latinos tem, suprimos ou pelo infinitivo, imitam dos gregos, ou per ircunlquio a que podemos chamr rodeo. Note-se que, no entanto, no distinguiu a formao perifrstica do futuro e do condicional, como lucidamente fizera Nebrija; contudo a designao rodeo do gramtico castelhano;

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    formao perifrstica da voz passiva: E, porque nam temos vrbos da vs passiva, suprimos este defeito per rodeo (como os latinos fzem nos tempos que lhe fale a vs passiva) ; desaparecimento da noo de quantidade: (...) os latinos e gregos sentem milhr o tempo das slabas por cusa do vrso do que ns sintimos nas trvas, porque csi espra a nssa orelha o consoante que a cantidade, ddo que tem. existncia de aumentativos: Destes nomes gregos e latinos nam trtam em suas gramticas por s nam terem.

    De modo semelhante, e sem cegueira afectiva em relao ao latim, Barros no deixa de condenar e at ridicularizar o emprego pedante de construes latinas que o esprito da lngua portuguesa no suporta: Cacosinteton qur dizer m composim, a qul cometemos quando, per maneira de elegncia, algum ordena a lingugem segundo o latim jz, como a ram a qul eu vi tirda em lingugem per um letrdo que se prezva de eloquente.

    Finalmente, cremos poder concluir que, para Barros, o binmio portugus-latim se pe, antes de mais nada, duma forma esclarecida e consciente em relao realidade romnica que vai definir-se a partir desse momento.

    A posio perante o Grego bastante mais esbatida e as referncias a essa lngua aparecem, sobretudo, com significado de:

    1. Reforar as referncias latinas: sta dificuldde mis entre os latinos e os gregos (...);

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    2. Esclarecer etimologias: articulus, dim latina derivda de arthon, grega, que qur dizer juntura de nervos;

    3. Substituir as referncias latinas quando estas no se encontram: Todalas outras mis prtes que os latinos tem, suprimos ou pelo infinito, imitam dos gregos, ou per ircunlquio.

    O problema da influncia do mourisco ps-se, como natural, de modo especial para as lnguas peninsulares. As referncias e adopes, por conseguinte, de inovaes ortogrficas, como o uso da cedilha, atribudas ao influxo rabe, aparecem esporadicamente nos gramticos franceses e devem-se, provavelmente, a influncias castelhanas.

    Dentro da Pennsula, porm, verifica-se uma diferenciao bem marcada entre a atitude nitidamente antirabe de Nebrija e a posio mitigada e, talvez, mais objectiva de Joo de Barros em relao a esse problema.

    Dois aspectos fundamentais se distinguem na forma por que Barros encara a influncia rabe, qual ele atribui por um lado certas tendncias articulatrias e ortogrficas em que o portugus se afastou do latim, lngua-me, e, por outro lado, a origem de certos vocbulos de etimologia no latina.

    Para o primeiro caso, citaremos a explicao da grafia e da respectiva pronncia, que Barros sente como nitidamente rabe: Ns pare que (h)ouvemos stas lteras dos mouriscos que venemos. Temos sta ltera que pare ser inventda pera pronunciam hebrica ou mourisca. O mesmo se passa em relao s palatais ch, x que se devem, segundo Barros, mesma influncia: Este (o

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    tempo) nos deu xa e cha dos mouriscos; A qul figura (anttesis) , erca de ns, mui usda, priniplmente nesta ltera x, que tomamos da pronunciam mourisca. importante verificar que tambm no passou despercebida a Joo de Barros a origem dos nomes rabes articulados em al: Todolos que comam em al e em xa e os que acabam em z, os ques so mouriscos.

    Para o segundo caso, isto , como fonte de adopes vocabulares, citaremos ainda as palavras do autor quinhentista: O outro (conselheiro do rei de Malaca) havia nome Lacsamava, que era Capito Gral do mar, ao modo que, erca de ns, o almirante, oficio trazido a ns do uso dos arbicos. (...) A terra a que c, per vocbulo arbico chamamos leziras; (...) neste reino, cuias rendas se encabeou em almoxarifados, vocbulo mourisco, mais que natural portugus.

    Quanto lngua hebraica, no me parece que Barros tivesse admitido uma possibilidade de influncia. Da exemplificao colhida, com efeito, infere-se que o hebraico era para o gramtico apenas um termo de comparao, um ponto de referncia quando faltava o paradigma latino:

    sta dificuldade (de declinar) mis entre os latinos e gregos pola variam dos csos que erca de ns e dos hebreus. Os latinos conheem o gnero (...) uns pela significam, outros pela terminam, (...). Os hebreus per artigos e terminam; este final nsso tem ali oficio do mem errdo dos hebreus, que a das lteras que eles chamam dos beios; temos algas lteras dobrdas maneira dos hebreus.

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    maneira de, isto , termo de comparao, parece, pois, ser o motivo da presena da lngua hebraica nas reflexes gramaticais de Joo de Barros.

    Vem em primeiro lugar, entre as outras lnguas, o castelhano, a mais perigosa rival do portugus, obstculo para o prestgio que queriam v-la alcanar os grande paladinos quinhentistas da lngua.

    Com efeito, embora raras vezes Barros se refira concretamente lngua castelhana, cujo prestgio como lngua literria e de cultura foi crescente at meados do sculo XVII, sente-se que , principalmente, visando essa rivalidade perigosa para o desenvolvimento da lngua portuguesa que Barros constri a apologia contida no Dilogo. Essa rivalidade era tanto mais aguda quanto os portugueses, incluindo Barros, tinham conscincia da semelhana e quase identidade das duas lnguas: A sua lngua (dos habitantes de Arguim) e escritura no comum com os alarves da Berbria e per em tudo quase tm a convenincia como ns temos com os castelhanos. O problema implcito seria, como j vimos, mais explicitamente abordado por Gndavo e Nunes de Lio.

    O Dilogo, bem como, afinal, a Gramtica, visa, pois, secundria mas efectivamente, uma afirmao de individualidade da lngua portuguesa em relao castelhana. dentro desse escopo, com efeito, que Barros se preocupa em definir o que ele considera portugus vernculo por oposio aos emprstimos castelhanos: (...) este partipio, sido, mis comum aos castelhanos que a ns; Ml e cl de moinho, pare que s (h)ouvemos de Castla.

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    Por conseguinte, embora difusamente, a atitude de Barros insere-se no conflito dos humanistas portugueses do sculo XVI, em relao ao bilinguismo literrio, conflito que vai estender-se at ao sculo seguinte para encontrar soluo no triunfo setecentista do portugus libertado da influncia directa da cultura castelhana e buscando a gide e o sustentculo da francesa.

    Na sua poca, Barros , certamente, solidrio com a atitude de Antnio Ferreira: da lngua amigo, radical na condenao do uso da lngua vizinha.

    As restantes lnguas europeias (o francs e o italiano), contudo, so para Barros apenas fugidios termos de comparao, quer de factos lingusticos quer de atitudes a serem tomadas como exemplo pelos portugueses:

    Os franceses tomram Monseor, os Italianos Misser, os Aragoeses Mossem. E assi outras muitas naes; mui estranha compostura a francesa e italiana. Ou ento: deu-se tanto a gente castelhana e italiana e franesa s treladaes latinas (...) que s fez mis elegantes do que foram ra (h) cincoenta anos. Para alm disto, Barros exclui da sua Gramtica para principiantes quaisquer outros paralelismos. No obstante, curioso relevar a reflexo includa na Cartinha sobre a possibilidade de conhecimento dessas lnguas estrangeiras por parte dos moos portugueses: Ddo que em nssa linguagem nam sirvam algas destas slabas (...), nam me pareeo sem fruito poer exemplo dlas, c todas srvem assi no latim como em outras lingugens.

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    Muito mais extensas, variadas e interessantes so, a propsito das lnguas que classificaremos de exticas, as refer