43
Copyright © 2013 ISSN 1887-4606 Vol. 7(3) 447-489 www.dissoc.org _____________________________________________________________ Artículo _____________________________________________________________ Algumas considerações discursivas sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2010 1 Roberto Leiser Baronas Departamento de Letras Universidade Federal de São Carlos/ Universidade Federal do Mato Grosso (Brasil)

Medios de comunicación y discurso

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Sobre los contenidos de los medios de cfomunicación

Citation preview

  • Copyright 2013

    ISSN 1887-4606

    Vol. 7(3) 447-489

    www.dissoc.org _____________________________________________________________

    Artculo _____________________________________________________________

    Algumas consideraes discursivas

    sobre as eleies presidenciais

    brasileiras de 20101

    Roberto Leiser Baronas Departamento de Letras

    Universidade Federal de So Carlos/ Universidade Federal do Mato Grosso

    (Brasil)

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 448

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    Resumo

    Neste artigo, com base num carrefour epistemolgico entre a Anlise do Discurso de base

    enunciativa e a Semitica Social, procuramos analisar discursivamente, por um lado, como

    a fala de atores polticos so destacadas pela mdia dos contextos e cotextos originais de

    produo e submetidas ao regime discursivo da aforizao e, por outro, buscamos

    descrever os recursos semiticos utilizados pelos suportes miditicos na circulao de

    fotografias desses atores polticos. Trabalhamos mais especificamente com a

    (des)textualizao de pequenos enunciados e o emprego de recursos semiticos na

    publicao de fotografias atribudas aos principais candidatos a Presidente da Repblica

    do Brasil, nas eleies de 2010, publicados nos jornais brasileiros Folha de S. Paulo e

    Estado de S. Paulo, durante as eleies presidenciais brasileiras de 2010.

    Palavras-chave: Discurso, mdia, aforizao, recurso semitico, eleies presidenciais.

    Abstract

    In this article, based on an epistemological crossing between Discourse Analysis of

    enunciative basis and Social Semiotics, we seek analyse discursively, on one hand, how

    political actors speech are detached by the media from their contexts and original production cotexts and submitted to the discursive regime of aforization and, on the other

    hand, we seek describe the semiotic ressources used by media supports in the circulation of

    these actors photographs. We work, more specifically, with the de(textualization) of short statements and the employment of semiotic ressources in the publication of photographs

    assigned to the main candidates for the Presidency of Republic, in 2010 elections,

    published in Brazilian newspapers Folha de S. Paulo and Estado de S. Paulo, during the

    presidential election of 2010.

    Keywords: Discourse, media, aforization, semiotic ressource, presidential elections.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 449

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    Primeiras palavras...

    Neste trabalho, inicialmente procuramos delimitar o espao terico-

    metodolgico no qual nos inscrevemos para o tratamento dos corpora

    mobilizados no estudo. Para tanto, realizamos uma breve aproximao

    epistemolgica entre a Anlise de Discurso de orientao francesa,

    especificamente a de base enunciativa, desenvolvida por Dominique

    Maingueneau (2007, 2010a, 2010b; 2011 e 2012) e a Semitica Social,

    proposta por Theo Van Leeuwen (2005). Em seguida, descrevemos como os

    enunciados dos atores polticos so (des)textualizados de seus contextos e

    cotextos originais e submetidos ao regime discursivo da aforizao. Depois,

    levantamos alguns dos recursos semiticos empregados na publicao das

    fotografias dos atores polticos, procurando compreender em que medida

    esse trabalho de recorte do verbal e do no-verbal, produzido pela mdia

    interfere na interpretao do acontecimento histrico dado em narrativa,

    fornecendo ao leitor uma espcie de percurso dentico de interpretao.

    Como recorte temporal, elegemos o perodo de abril a outubro de 2010.

    Como suportes miditicos, elegemos os jornais Folha de S. Paulo -

    http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ - Estado de S. Paulo www.estadao.com.br - todos em suas verses online. Frequentamos os mais variados textos que do em narrativa a agenda dos candidatos e os fatos

    polticos que marcaram a campanha presidencial brasileira.

    Convm destacar que nosso objetivo, entretanto, no apenas testar

    as proposies terico-metodolgicas de Maingueneau e de Van Leeuwen

    em dados urdidos na geografia brasileira, mas, sobretudo, a partir desses

    dados forjados no cadinho miditico braslico, realizar uma calibrao das

    ferramentas de anlise propostas por esses tericos. Apesar de as teorizaes

    de Maingueneau e de Van Leeuwen serem forjadas em espaos

    epistemolgicos distintos, em nosso trabalho, essa aproximao se justifica

    por um lado, em razo da constituio multissemitica dos objetos que

    frequentamos analiticamente e, por outro, pelo fato mesmo de ambos

    mostrarem como os textos (verbais e/ou no-verbais) ao sofrerem

    determinados destaques ou se constiturem a partir de certos recursos

    semiticos engendram certos enquadramentos, percursos interpretativos

    para os leitores.

    Um pouco de teorias...

    No contexto europeu atual, segundo Johannes Arguenmller (2007), os

    estudos do discurso podem ser compreendidos a partir de trs grandes

    escolas: a francesa; a anglo-saxnica e a germnica. No caso brasileiro

    contemporneo, os estudos do discurso podem ser analisados a partir das

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 450

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    escolas francesa (tributria das reflexes de Michel Pcheux, Michel

    Foucault, Greimas, Charaudeau e Maingueneau); eslava (alicerada a partir

    das reflexes de Mikail Bakhtin e de seu crculo de estudos) e anglo-

    saxnica (constituda com base nas reflexes de Norman Fairglough, Van

    Dijk e Wodak). Num rpido exame sobre os diferentes trabalhos publicados no

    domnio do discurso, inscritos na escola francesa de Anlise do Discurso,

    nos ltimos anos, na geografia brasileira, possvel constatar a presena de

    pelo menos trs grandes tendncias de estudos discursivos, a saber, a

    materialista; a historicista e a enunciativa. Embora cada uma dessas

    tendncias tenha o discurso como objeto de observao, cada uma delas

    constri objetos tericos distintos, se constituindo dessa forma em

    programas de pesquisa2 distintos.

    A tendncia enunciativa3 por sua vez alm de buscar respaldo nas

    contribuies de Michel Pcheux e de Michel Foucault alicera-se tambm

    em Mikail Bakhtin; mile Benveniste e Oswald Ducrot. Surge na geografia

    francesa em meados dos anos noventa do sculo passado e sua principal

    preocupao compreender por um lado como certas palavras que circulam

    na mdia podem assumir a condio de palavras-acontecimento, produzidas

    por uma comunidade linguageira a partir de uma formao interdiscursiva

    carregando consigo toda uma memria interdiscursiva e, por outro, como

    certos textos circulam: se inteiros, aos pedaos, em versos, em frmulas.

    Ambas buscam compreender em que medida essa circulao determina o

    que pode e deve ser (re)dito enquanto debate no espao pblico.

    Os recentes trabalhos de Sophie Moirand (2007 e 2010) acerca das

    palavras-acontecimento na sua relao com a memria interdiscursiva,

    comunidade linguageira e formao interdiscursiva so timos exemplos de

    uma das visadas da tendncia enunciativa. Os exemplos abaixo publicados

    em diferentes suportes miditicos brasileiros nos mostram um dos possveis

    funcionamentos analtico-tericos das propostas de Sophie Moirand.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 451

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    (1): Reportagem publicada no jornal Correio do Povo de Porto Alegre em

    12/03/1999.

    (2): Reportagem publicada na Revista poca em 18/12/2001.

    (3): Reportagem publicada no site blogdolago.com em 27/09/2012.

    (4): Reportagem publicada no site esportes.terra.com.br 01/10/2012.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 452

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    (5): Reportagem publicada no site revistalingua.uol.com.br 02/10/2012.

    Os cinco textos anteriormente elencados nos mostram um breve percurso da

    palavra-acontecimento apago. Essa palavra irrompe nos variados suportes miditicos brasileiros em 1999, aps o blecaute ocorrido em

    diversos estados das regies Sul e Sudeste do Brasil. poca, o significante

    blecaute disputava com apago de forma bastante acirrada a preferncia dos

    suportes miditicos na interpretao dos acontecimentos que diziam a falta

    de energia. Em 2001, o blecaute em diversas regies brasileiras se repete, no

    entanto, a mdia o interpreta como apago. De l para c, o significante apago passou a ser a designao no s para a falta de energia, mas para os mais diferentes acontecimentos, que dizem de alguma carncia, de algum

    problema. Como se pode observar nas manchetes anteriores, esse elemento

    lingustico pode significar tanto a falta de mo de obra especializada na

    indstria brasileira quanto a falta de iniciativa do time de futebol paraguaio

    Cero Portenho na sua partida frente ao Clon ou mesmo a dificuldade de

    leitura dos nossos alunos nos diferentes graus de ensino. Essa palavra

    apago desde a sua irrupo carrega consigo um valor disfrico, algo da ordem da falta, da carncia, do problema, que (re)atualizado a cada nova

    textualizao. Assim, ao dizer do Apago profissional e mo de obra assistida ou O apago da leitura, por exemplo, as matrias evocam interdiscursivamente, mesmo que de soslaio, os efeitos de sentidos

    disfricos apensos ao blecaute ocorrido em 1999. Em outros termos, o

    elemento apago em cada uma das suas (re)atualizaes, em termos de

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 453

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    designao de novos acontecimentos discursivos, carrega consigo traos

    disfricos produzidos antes, independentemente e outro lugar. Sobre os

    traos de um discurso que emergem em outro, constituindo novos momentos

    discursivos nos diz Moirand (2007, p. 04):

    Um momento discursivo no forosamente espetacular, como foi o 11 de setembro

    de 2001 ou como pode ser um tremor de terra devastador. Um fato ou um evento

    constitui um momento discursivo quando se d a ler numa abundante produo

    miditica em que alguns traos permanecem por um certo tempo em discursos

    produzidos ulteriormente a propsito de outros eventos. Podemos evocar ainda o

    maio de 68 a propsito dos problemas da Escola francesa em 2004, ou retomar o escndalo do sangue contaminado a propsito da crise da vaca louca, ou da questo

    dos OGM. So esses traos discursivos que nos importam, pois eles reconstroem a

    superfcie discursiva a propsito de outros eventos (novos momentos discursivos) e

    entram na roda dos discursos produzidos sendo transmitidos pelas mdias.

    Os atuais trabalhos de Dominique Maingueneau (2007, 2010a, 2010b; 2011

    e 2012) se inscrevem numa outra possibilidade de pensar a Anlise de

    Discurso de base enunciativa e tm buscado compreender de forma acurada

    a circulao dos textos verbais na nossa sociedade, isto , como certos

    textos circulam: inteiros, em fragmentos, adaptados, em edies originais,

    traduzidos. E tambm: por que, de um texto integral, frequentemente

    circulam apenas partes: estrofes, versos, finais, comeos, pequenas frases,

    pontos culminantes.

    No entendimento de Dominique Maingueneau (2011), poucas

    pessoas hoje em dia contestariam a ideia de que o texto constitui a nica

    realidade emprica sobre a qual se debrua o lingista: unidades como a

    frase ou a palavra so necessariamente retiradas de textos. O texto , com

    efeito, no entendimento do pesquisador francs, a contraparte do gnero do

    discurso, que o quadro de toda a comunicao pensvel. Maingueneau

    mobiliza o termo gnero do discurso para atividades como registrar o nascimento, o debate televisivo, o sermo, entre outros.

    Um problema se pe, no entanto, quando preciso tratar de

    enunciados curtos que se apresentam fora do texto, geralmente constitudos

    de uma nica frase. Dominique Maingueneau conceitua essas pequenas

    frases como enunciados destacados. Eles so de tipos muito diversos: slogans, mximas, provrbios, ttulos de artigos da imprensa, interttulos,

    citaes clebres, etc. Para o estudioso francs devem-se distinguir duas

    classes bem diferentes, segundo o seu destacamento:

    1) constitutivo: o caso em particular das frmulas (provrbios, slogans, divisas)

    que por sua prpria natureza so independentes de um texto particular; 2) ou resulta

    da extrao de um fragmento de texto: encontra-se em uma lgica de citao.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 454

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    O texto a seguir se constitui num bom exemplo do que Maingueneau

    considera como destacamento constitutivo:

    (6): Reportagem publicada na Folha de S.Paulo 13/09/2009.

    O ttulo do comentrio de Fernando de Barros e Silva, publicado na Folha

    de S. Paulo em 13 de setembro de 2007 H algo muito podre no reino faz aluso frase shakespereana do Hamlet H algo de podre no reino da Dinamarca. Todavia, dada a grande circulao deste enunciado nos mais

    diversos campos e suportes, essa pequena frase perdeu sua marca de autoria

    e se transformou numa espcie de slogan se tornando profundamente

    independente do texto de Willian Shakespeare.

    O excerto a seguir se constitui num bom exemplo do que

    Maingueneau denomina destacamento que resulta de um processo de

    extrao.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 455

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    (7): Reportagem publicada no site g1.globo.com 15/08/2008.

    A matria anterior foi publicada no site de notcias G1 da Globo.com em 16

    de setembro de 2008 e traz como manchete o seguinte enunciado: Pergunta para o Bush, diz Lula sobre crise americana. Esse enunciado foi retirado de um discurso proferido pelo ento presidente Lula em cerimnia de

    inaugurao da UFERSA Universidade Federal do Semi-rido em Mossor no Rio Grande do Norte em setembro de 2008. Na ocasio disse

    Lula:

    Vocs viram que a crise americana j est a h algum tempo. A imprensa s fala

    nisso. Imagine, Wilma, se fosse dez anos atrs. Imagine se os Estados Unidos

    dessem o espirro que deram com essa crise imobiliria l, certamente o Brasil teria

    pegado pneumonia. Agora, eles esto em crise. A imprensa, de vez em quando, fica

    doida: Mas, presidente Lula, e a crise americana? Perguntem para o Bush. A crise dele, no minha. Eu tenho que cuidar do meu pas para no permitir que ele seja contaminado por esta crise, e por isso que diversificamos a nossa

    balana comercial. Antigamente o Brasil tinha muitas coisas com a Europa e com os

    Estados Unidos e ainda queremos ter mas hoje ns temos mais com a Amrica do Sul e com a Amrica Latina, temos mais com a frica, com o Oriente Mdio,

    com a sia. Hoje no dependemos de um ou de dois pases. Hoje ns temos um

    fluxo de balana comercial diversificado. Alm disso, o FMI no est mais aqui para

    dar palpite nas coisas que ns fazemos, e temos 207 bilhes de dlares de reserva,

    sagrados, para no permitir que este pas seja vtima de especulao imobiliria ou

    financeira. (grifos nossos).

    O enunciado em negrito deixa claro que o enunciador jornalista no somente

    destacou de um texto maior um (pequeno) enunciado, mas tambm realizou

    um trabalho de interpretao desse enunciado, como se pode ver

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 456

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    comparando as duas verses: segundo o jornalista, Lula disse: Pergunta para o Bush. Por sua vez, Presidente Lula tinha dito: Mas, presidente Lula, e a crise americana? Perguntem para o Bush. A crise dele, no minha. Todo o restante da fala do presidente completamente esquecida pelo enunciador jornalista. Essa extrao no se exerce de maneira indiferenciada sobre todos os

    constituintes de um texto, pois frequentemente o enunciador sobreassevera

    alguns de seus fragmentos e os apresenta como destacveis. A

    sobreasseverao uma modulao de enunciao que habilita formalmente

    um fragmento como candidato a uma destextualizao. Trata-se de uma

    operao de colocao em relevo no tocante ao restante do desenvolvimento

    textual que se efetua com a ajuda de marcadores diversos: de ordem

    aspectual (genericidade), tipogrfica (posio saliente em uma unidade

    textual), prosdica (insistncia), sinttica (construo de uma forma

    pregnante), semntica (recurso aos tropos), lexical (utilizao de conectores

    de reformulao), etc. A reportagem a seguir publicada no jornal Folha de S.

    Paulo em 21/05/2012 se constitui num bom exemplo do que Maingueneau

    define como sobreasseverao.

    (8): Reportagem publicada no Jornal Folha de S. Paulo 21/05/2012.

    Segundo o UOL em matria publicada em 21/05/2012: Uma das redaes consideradas pela Fuvest (Fundao Universitria para o Vestibular) como

    uma das melhores do vestibular 2012 da USP (Universidade de So Paulo)

    continha uma mensagem subliminar pedindo a sada do reitor da instituio,

    Joo Grandino Rodas. Na verdade o que o UOL compreende como mensagem subliminar se constitui num exemplo bastante interessante do

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 457

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    que Dominique Maingueneau conceitua como sobreasseverao. Com

    efeito, o locutor destaca determinados elementos lingusticos ao longo da

    redao, formando o enunciado Fora Rodas. Esse enunciado, produzido alhures, visto que se constitui numa representao metonmica das

    manifestaes contrrias a atitude do Reitor da USP em autorizar a entrada e

    a permanncia da Polcia Militar no campus da USP na cidade de So Paulo

    - SP, dado a ler na redao do vestibulando como uma espcie de

    antecipao do que deve ser retomado. Trata-se de uma estratgia do

    vestibulando, buscando identificar seu posicionamento ideolgico frente

    reitoria com o posicionamento da banca de correo das redaes.

    No entendimento de Maingueneau, as divergncias entre o

    enunciado fonte e o enunciado destacado so reveladoras de um estatuto

    pragmtico especfico para os enunciados destacados. Esses ltimos

    revelam, com efeito, um regime de enunciao que o pesquisador prope

    chamar enunciao aforizante. Entre uma aforizao e um texto no existe uma diferena de tamanho, de forma, de sistematicidade lingustica,

    mas de ordem enunciativa. O esquema a seguir exemplifica as duas ordens

    discursivas propostas por Maingueneau:

    Enunciao

    Aforizante Textualizante

    Destacada por natureza Destacada de um texto

    Para Maingueneau a enunciao se organiza em duas ordens do enuncivel:

    a enunciao textualizante e a enunciao aforizante. Esta ltima, por sua

    vez, se organiza em enunciao aforizante destacada por natureza e

    enunciao aforizante destacada de um texto. No entendimento do terico

    francs por meio da aforizao o locutor se coloca alm dos limites

    especficos de um determinado gnero do discurso:

    O aforizador assume o ethos do locutor que fala do alto, de um indivduo em

    contato com uma Fonte transcendente, ele no se enderea a um interlocutor

    colocado no mesmo plano que ele e que pode responder, mas a um auditrio

    universal. Ele instado a enunciar a sua verdade, que prescinde de toda a

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 458

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    negociao, exprimindo uma totalidade vivida: seja uma doutrina ou uma certa

    concepo de existncia. Por intermdio da aforizao vemos coincidir sujeito da

    enunciao e Sujeito no sentido jurdico e moral: algum que se coloca como

    responsvel, afirmando valores e princpios diante do mundo, se endereando a uma

    comunidade para alm dos locutores empricos que so seus destinatrios.

    Este, no entanto, , para Maingueneau, o ponto central do problema, o aforizador no um locutor, o suporte da enunciao, mas uma

    conseqncia do destacamento, isto , no se trata apenas de outra instncia enunciativa, distinta tanto da do locutor/alocutrio quanto da do

    enunciador/enunciatrio, mas uma instncia supraenunciativa em contato com uma Fonte Transcendente. Desse modo, quando se extrai um

    fragmento de texto para fazer uma aforizao, um ttulo de uma matria na

    imprensa, por exemplo, converte-se ipso facto seu locutor original em

    aforizador.

    O desenvovimento recente de uma configurao miditica totalmente

    nova, que associa diretamente a mdia impressa, o rdio, a televiso, a

    internet e a telefonia mvel, permitiu aumentar para nveis sem precedentes

    o destacamento e a colocao em circulao das aforizaes.

    Um certo nmero de frases sem texto so tomadas em um

    processo de tipo pandmico: durante um perodo curto vemos circular em

    todas as mdias e s vezes com uma frequencia muito elevada, com estatutos

    muito diversos: ttulo de um artigo de jornal ou de uma pgina da internet,

    frase que circula na parte de baixo do monitor de um canal de informao

    televisiva, ttulo de um vdeo sobre o YouTube, etc. Como exemplos

    podemos citar o enunciado Que vergonha, Barack Obama4, proferido por

    Hillary Clinton nas ltimas eleies presidenciais americanas (23 de

    fevereiro de 2008), ou o enunciado de Slvio Berlusconi : Obama jovem,

    belo e bem bronzeado5 (06 de novembro de 2008). Nesse sentido, segundo

    Maingueneau (2012) :

    Podemos falar de uma panaforizao , termo que combina o pan pandemia e

    aforizao . A panaforizao figura nas manchetes dos jornais, se infiltra nas

    conversaes ordinrias, suscita debates de todas as espcies nas mdias : sobre os

    fruns, os talk-shows televisivos, no correio dos leitores, etc. Antes de desaparecer

    substituda por outras.[...] Com a emergncia da Internet e a interconexo

    generalizada dos suportes de informao num mundo globalizado, a aforizao

    entrou num novo regime, que ainda no conseguimos medir todas as suas

    implicaes polticas, sociais, cognitivas. A panaforizao se ope termo a termo

    sentena da cultura humanista que pervaleceu at segunda guerra mundial: sua

    validade no est ligada a sua profundidade temporal, a seu pertencimento a um

    Thesaurus antigo e Tradio que a perpetuou, mas ao fato de que ela satura de

    repente o espao miditico, que se impe como objeto de discurso, como o que no

    podemos deixar de falar.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 459

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    Um exemplo que ilustra bem o funcionamento das panaforizaes a

    pequena frase Vada a bordo, cazzo, dita pelo comandante Gregrio De Falco da Capitania do Porto de Livorno ao capito do navio Costa

    Concrdia Francesco Schettino em 17 de janeiro de 2012, quando do

    naufrgio do navio.

    (9): Reportagem publicada no site geek.com.br 22/01/2012.

    (10): Reportagem publicada no site g1.globo.com 18/01/2012.

    As matrias acima publicadas em diferentes suportes nos mostram como a

    frase Vada a bordo, cazzo, por conta da sua intensa circulao ganhou o status de panaforizao.

    Defendo que a teoria das frases sem texto proposta por Dominique Maingueneau se configura num preciso ferramental para dar conta,

    sobretudo, da maneira mesmo, como certos textos circulam atualmente nas

    mdias. No entanto, dado o carter multissemitico dos textos miditicos

    atuais, que mobilizam em sua constituio diferentes materialidades

    significantes, especialmente os que se assentam na comunicao poltica,

    objeto nosso de reflexo neste artigo, cremos ser pertinente mobilizar na

    juno com a teoria de Maingueneau a teoria Semitica Social de Theo Van

    Leuuwen.

    O livro Introducing social semiotics6 de Theo Van Leeuwen

    inaugura a introduo aos conceitos e mtodos do escopo de estudos da

    semitica social. A obra discute ao longo de suas pginas alguns dos

    princpios que tornam a semitica social uma nova e distinta abordagem

    dentro do campo de estudos semiticos de maneira geral, bem como,

    lingusticos, comunicacionais e sociais. Nessa direo, delineia-se que

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 460

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    semitica social no uma teoria pura, homognea, terminada, distante de

    suas relaes fronteirias nem um campo auto-suficiente. Isso se aplica

    porque a tentativa do autor deste livro tambm o de aproximar o termo

    social da semitica, que feito justamente para envolver a esta teoria com

    diversas teorias sociais.

    No entendimento de Theo Van Leuuwen, assim como nas teorias

    lingusticas, que, em algum momento de histria, mudaram seus focos da

    sentena ao texto e do contexto gramtica do discurso, a semitica social

    modificou seu foco do signo para o modo como, em inter-relao, os

    indivduos lanam mo de certos recursos semiticos para produzirem as

    aes e os mecanismos comunicativos, assim como utiliz-los para

    interpretar em contextos especficos de situaes e prticas sociais, os quais

    podem ou no alterar a forma de produo e a manifestao.

    Recursos em semitica social so, portanto, significantes, aes

    observveis e objetos que foram esquadrinhados para o domnio do social,

    da comunicao e que tm, por essa natureza significativa-social, um

    potencial semitico-terico constitutivo, seja por todas as suas utilizaes

    alhures, seja pelas atualizaes que deles so feitas ou pela fresta aberta a

    uma futura utilizao. E exatamente por todos esses potenciais de usos

    anteriores que tais recursos so conhecidos, compartilhados e considerados

    relevantes pelos usurios em uma comunicao, verbal ou no-verbal. Essas

    utilizaes ocorrem em um contexto histrico-social, e nesta situao em

    especfico podem haver regras de uso as melhores prticas a serem seguidas , que regulam como recursos especficos semiticos podem/no podem e devem/no devem ser usados. Alm disso, esses recursos no esto

    restritos fala nem escrita tampouco produo de imagens.

    Utilizando um interessante esquema argumentativo, qual seja, definir

    aspectos e anlises dos mecanismos semiticos desenvolvidos e aplicados a

    diversas imagens, filmes, arquitetura, propagandas e at mesmo a ao

    formato, design e funcionalidade de brinquedos para crianas, bem como as

    verdades que estes representam, o autor coloca trs questes bsicas que, em

    sua perspectiva, os semioticistas trazem luz em suas pesquisas: a) eles

    coletam, documentam e sistematizam em catlogos de pesquisas semiticas

    inclusive a histria desses catlogos; b) investigam como essas pesquisas so usadas ao longo da histria, em contextos culturais e institucionais o seu plano, o seu ensino, a sua justificativa, a sua crtica etc.; c) contribuem

    para a descoberta e o desenvolvimento de novas pesquisas semiticas e

    novos usos para as pesquisas semiticas j existentes.

    Nesse sentido, da ideia originada em Halliday, de que Gramtica no

    simplesmente um conjunto de regras para se redigir boas sentenas, e sim

    um recurso para busca de significados, Leeuwen aprofunda essa reflexo,

    defendendo que gramtica pode ser usada em outros modos/suportes

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 461

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    semiticos, definindo que recursos semiticos como aes e

    artefatos/mecanismos, que ns usamos para comunicao, sejam elas

    produes de sentido por meios fisiolgicos com ou sem aparelho vocal, com msculos usados para criar expresses faciais e gestos etc. sejam elas pelos significados tecnolgicos com caneta, tinta e papel, com computadores e software, com tesouras e mquinas de costura etc.

    Tradicionalmente, essa busca por significados na comunicao, ou aquilo

    que comum entre interlocutores, no que tange aos sentidos, chamado de

    signo. Com efeito, para Van Leuuwen h tambm uma espcie de gramtica

    que regula o funcionamento dos textos multissemiticos.

    A semitica social no estaria centrada apenas no discurso, mas em qualquer troca cultural que exija a busca de conhecimentos. Para nossa

    anlise em relao s eleies brasileiras, interessa particularmente os

    recursos das dimenses de anlise da semitica social que Leeuwen aborda.

    O autor dimensiona seu trabalho algum desses recursos. Entre eles: 1)

    Discurso, que conceito-chave para estudar como os recursos semiticos

    so usados para a construo de representaes sobre o que est

    acontecendo no mundo; 2) Gnero, que trata da compreenso de como os

    recursos semiticos so usados para promulgar interaes comunicativas interaes que envolvem alguma forma de representao como, por exemplo, se so conversas face a face ou se so retirados de outros tempos

    e/ou lugares, como livros e outras mdias; 3) Estilo, um conceito que o

    espao terico privilegiado para estudar como os indivduos usam recursos

    semiticos na execuo dos gneros e, mais e alm disso, como esses

    mesmos indivduos deixam certas marcas, pistas, trilhas para expressar suas

    identidades e valores ao faz-lo; 4) Modalidade, conceito que crucial para

    estudar como indivduos usam recursos semiticos para criar valores de

    verdade ou de realidade de suas representaes, para se comunicar, por

    exemplo: se uma imagem e/ou assero so postas a circular para ser

    tomadas como verdade ou como fico, a verdade comprovada ou

    conjectural etc., e sempre na tenso de certo interesse nesta representao de

    verdade, ou seja, as verdades so diferentes a depender de quem a produz.

    Apesar de discuti-las separadamente, para fins didticos, todas essas

    dimenses nunca ocorrem isoladamente e so sempre parte de cada evento

    comunicativo e cada artefato semitico utilizado como recursos de

    construo e compreenso dos objetos. De acordo com o autor, somente se

    pode ter uma viso multidimensional destes conceitos ao olh-los

    conjuntamente.

    Para Van Leeuwen ainda, a semitica social aborda dois temas

    intimamente relacionados, quais sejam: os recursos materiais de

    comunicao e a forma como os seus usos so socialmente regulados. O

    primeiro tema trata de como os recursos materiais de comunicao podem

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 462

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    ser fisiolgicos ou tcnicos. Como recursos fisiolgicos, incluem-se o

    nosso aparelho vocal, msculos que usamos para criar expresses faciais,

    gestos e outras aes fsicas que realizam parte do no-verbal das

    comunicaes inter-humanas. Pode-se dizer que se trata tambm de uma

    utilizao sempre socialmente regulada. Em consonncia com o autor, a

    voz, por exemplo, pode produzir uma vasta variedade de sons. Mas, na

    maioria das situaes, evocada a produzir apenas sons da fala, e apenas os

    sons da fala apropriados a uma dada situao, idade, gnero, classe social e

    papel dos falantes envolvidos. O mesmo se aplica ainda ao no-verbal das

    comunicaes. A tese de que, desde cedo, tendemos a observar e a imitar

    os elementos socialmente permitidos ou, mais ainda, as formas desejveis

    de comunicao no-verbal; muitas vezes ns somos explicitamente

    instrudos termo de Leeuwen por esses elementos permitidos, como em seus exemplos: Olhe para mim enquanto voc fala ; No coloque as mos em seus bolsos; Sente-se direito mesa etc. Isso no quer dizer que no exista espao para a liberdade, para uma pitada de estilo individual,

    no modo como nos comunicamos, verbal ou no verbalmente H, no

    entanto, mais em algumas situaes do que em outras. Entretanto, em geral,

    a comunicao sempre ocorre dentro ou s vezes em oposio a alguma coisa dos limites socialmente definidos de situaes especficas. Se, por ventura, nos afastamos para alm dessas fronteiras sociais, ora mais ou ora

    menos visveis, algumas sobrancelhas sero arqueadas nos desaprovando; mas, se persistirmos um pouco mais alm em superar esses limites, pode

    haver outras consequncias e mais graves: no vamos ser os mais aptos a esta situao particular e seremos afastados de alguns acontecimentos

    institucionais e sociais.

    Em contrapartida, pelos os recursos tcnicos, Leeuwen entende que

    so elementos que podem ampliar o potencial de nossos recursos

    fisiolgicos. Ns podemos comunicar no s com a nossa voz, mas tambm

    com instrumentos musicais; no s com expresses faciais e gestos, mas por

    meio das roupas que usamos e pela maneira como tratamos nossos corpos.

    Isso inclui at mesmo a comunicao por meio de modalidades sensoriais,

    as quais no temos controle articulatrio consciente, como, exemplo,

    quando usamos certas fragrncias para comunicar algo sobre ns mesmos (a

    intensidade e o cheiro de perfumes que passamos para ir a um encontro,

    festa etc.) ou sobre espaos particulares, ao perfumarmos uma sala, um

    banheiro etc. Por fim, temos tecnologias desenvolvidas para preservar

    nossos atos comunicativos: escrever e gravar para retransmitir ou distribuir

    por meio de distncias. Por exemplo, telefonia, radiodifuso, arquivos de

    computador, entre outros. O uso desses recursos tambm socialmente

    regulado, por exemplo, por meio de quem ou a quem sero permitidos os

    acessos a tais arquivos, sejam eles em papis, sejam digitalizados.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 463

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    O escopo da semitica social , portanto, a unio desses dois

    aspectos de recursos semiticos, sua natureza material ou tcnica e a potencialidade semitica que eles tm , e a regulao social da sua utilizao, a par e passo com sua histria. Isto significa que semitica social

    em grande medida sobre o como das comunicaes. Como podemos utilizar todos esses recursos materiais para produzir sentido X e/ou Y? Van

    Leeuwen argumenta no ser possvel dissolver estas questes sem entender

    um como sem o qu, e arriscaramos, do mirante do discurso, nem sem um por que da circulao discursiva desses recursos. E como feito isso em suas teorizaes? Esta resposta repousa na compreenso que traz de

    discurso.

    No nosso entendimento, o autor usa explicitamente uma concepo

    foucaultiana de discurso, bem como a forma de ser fazer a anlise dos

    discursos, aspectos terico-metodolgicos que o aproximam da Anlise de

    Discurso, quer seja na sua vertente historicista, quer seja na sua vertente

    enunciativa. Com efeito, discursos que so possibilitados a partir de

    princpios de controle, de delimitao e de rarefao, isto , discursos como

    ordens reguladoras e definidoras das construes de saberes socialmente

    circulantes, edificadores de aspectos da realidade.

    A ideia de socialmente construda define-se como conhecimentos que tm sido desenvolvidos em contextos sociais especficos e em formas

    adequadas aos interesses dos atores sociais nesses contextos, sejam eles

    grandes contextos corporaes multinacionais sejam eles pequenos uma famlia em particular; sejam contextos fortemente institucionalizados a imprensa , sejam aqueles relativamente informais conversas familiares mesa de jantar, entre amigos em um restaurante, etc. Um dos exemplos que

    Van Leeuwen apresenta parece bastante interessante. Segundo o terico,

    tomemos um discurso sobre operaes especiais de guerra. Esses discursos podem ser destacados por jornalistas ocidentais ao relatar os EUA

    em uma coligao militar de intervenes nos lados do oriente, mas podem

    tambm ser utilizados em certos tipos de conversao, dilogos cotidianos

    prosaicos, em aeroportos, em romances policiais, em filmes de Hollywood,

    em jogos de computador, em documentrios... Tais discursos,

    frequentemente, servem ao interesse de pas e/ou pases e de certas

    instituies miditicas, em que textos, dilogos, imagens e outros elementos

    so produzidos acerca do tema. Todavia, como seguem uma orientao

    ideolgica de sentido, normalmente, esses discursos deixam de fora, ou mais

    margem, acontecimentos factuais como bombardeios areos, terrestres,

    mortes de civis, para concentrarem seu centro de sentido em a elite das foras terrestres envolvidas em operaes especiais, isto , habilidades de combate altamente superiores, quer seja em tecnologia, quer seja em

    grupamentos e equipamentos de trabalho, rpida e eficiente insero ao

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 464

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    territrio inimigo; a criao palpvel e visvel de um inimigo, ou seja, a representao do mal, como um senhor da guerra desptico, tirano ou super-

    terroristas, levando luta um exrcito de homens aos frangalhos,

    indisciplinados e mal preparados/equipados; a ideia de salvao de vtimas

    fracas deste inimigo, a saber, as populaes locais, a ONU, a manuteno da

    paz e agncias humanitrias de alimentos que, de acordo com esse discurso,

    no podem operar sem a proteo das foras de elite.

    Discursos so, portanto, recursos para representao, conhecimentos

    sobre algum aspecto da realidade que podem ser utilizados quando esse

    aspecto da realidade tem de ser representado. Podem existir vrios discursos

    sobre um determinado aspecto da realidade, que produzem efeitos de

    sentido de maneiras diferentes, ou seja, incluindo ou excluindo coisas

    diferentes e servindo a interesses diversos. Qualquer discurso pode ser

    realizado por gneros diferentes e mltiplas combinaes de recursos

    semiticos. Discursos combinam dois tipos de elementos, quais sejam,

    representaes de prticas sociais e as legitimaes destas prticas sociais7.

    Com isso temos que, para a questo de um o qu da comunicao, na

    semitica social, Van Leeuwen faz uma abordagem via as estruturas

    discursivas e suas regulaes. Todavia, a fim de edificar um como acontecem as comunicaes, o autor envereda por dois conceitos bastante

    difundidos e conhecidos no campo dos estudos da linguagem: a teoria dos

    atos de fala, marcadamente envolta nas concepes do filsofo ingls Austin

    e teorias sobre gnero, que aproxima, sobretudo, a semitica, tal como ele

    entende, do vis social.

    Todavia, a propsito de nosso trabalho, compreender com as frases sem texto e as fotografias dos atores sociais em textos da mdia sobre as eleies presidenciais brasileiras, engendram determinados percursos de

    interpretao, nos debruaremos mais detidamente na questo dos gneros.

    Deixamos apenas a ressalva de que neste gesto de recorte no h nenhuma

    valorao depreciativa ante a teoria dos atos de fala, e sim apenas questes

    terico-metodolgicas.

    Gnero, em diversas teorias dentro do campo de estudos da

    linguagem, um termo-conceito geralmente usado para definir um tipo de texto. Textos adquirem certo padro genrico quando tm caractersticas que podem tambm ser reconhecidos em outros textos semelhantes. A razo

    para isso que as pessoas que produzem os textos parecem seguir certas

    regularidades ao lhes produzirem, vezes mais, vezes menos tcitas. O

    filsofo russo Mikhail Bakhtin, em Esttica da criao verbal, traz uma

    definio seminal acerca da concepo de gnero, que para alm de decisiva

    pelo seu contedo, com certeza est mais que alicerada pelo uso e desuso em diversos trabalhos. Na clebre definio, tem-se que:

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 465

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, esto sempre

    relacionadas com a utilizao da lngua. No de surpreender que o carter e os

    modos dessa utilizao sejam to variados como as prprias esferas da atividade

    humana, o que no contradiz a unidade nacional de uma lngua. A utilizao da

    lngua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e nicos, que

    emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado

    reflete as condies especficas e as finalidades de cada uma dessas esferas, no s

    por seu contedo (temtico) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleo operada nos

    recursos da lngua recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais , mas tambm, e, sobretudo por sua construo composicional. Estes trs elementos (contedo

    temtico, estilo e construo composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo

    do enunciado, e todos eles so marcados pela especificidade de uma esfera de

    comunicao. Qualquer enunciado considerado isoladamente , claro, individual,

    mas cada esfera de utilizao da lngua elabora seus tipos relativamente estveis de

    enunciados, sendo isso que denominamos gneros do discurso. (BAKHTIN, 1997a,

    p.280 grifos do autor)

    Para Van Leuuwen so de trs tipos de caractersticas-padro a sedimentar

    os gneros: contedo, forma e funo. Gneros como os Western (histrias

    que envolvem lutas, tiroteios, bangue-bangue) e os famosos e tradicionais

    contos de fadas so normalmente caracterizados com base em seus

    contedos. Westerns so caracterizados normalmente em um determinado

    tempo e lugar e usam aes e caractersticas das personagens em tramas

    tpicas ao padro genricas. Contos de fadas, da mesma forma, so definidos

    a partir de bases consolidadas. No entanto, de acordo com Van Leeuwen,

    no se deve ficar restrito a esses tipos de texto. Contedo, um o qu de um texto, claramente importante em qualquer tipo de texto. Na semitica

    social, no entanto, o contedo um recurso estudado sob o ttulo de

    discurso, em vez de sob o ttulo de gnero.

    Textos tambm podem ser caracterizados com base no meio de

    expresso ou meios eles usam para circular. Para o autor, o quarteto de

    cordas poderia ser um exemplo dessa abordagem orientada ao estudo do

    gnero. Dessa forma, no exemplo, gnero: um quarteto de cordas um

    quarteto de cordas, porque compreende quatro instrumentos de cordas,

    independentemente de como eles so tocados. Essa abordagem de forma

    orientada comum em relao s formas de expresso em que a

    representao no est em primeiro plano ou no considerada importante como exemplo de Leeuwen tem-se a msica.

    Os textos ainda podem ser tpicos em termos pelo o que eles fazem.

    O gnero de propaganda, a exemplo, definido pela sua funo de venda de

    produtos ou servios. Atualmente, tambm de ideias, vide as campanhas

    polticas. O gnero de notcia definido pela sua funo de fornecer

    informaes sobre ltimos acontecimentos de interesse pblico. As

    combinaes so possveis tambm. O gnero de revista publicidade, por

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 466

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    exemplo, definido com base na sua funo publicidade como, bem como o seu meio, a revista.

    A abordagem de gnero da semitica social tem se concentrado nas

    funes do texto diante das interaes sociais, no que as pessoas fazem para

    si ou para outros por meio de textos. Como tais acontecimentos se

    desenrolam sequencialmente. Esta abordagem de gnero concentra-se na

    forma como os diferentes tipos de comeo-meio-fim estruturam e ajudam a aprovar prticas comunicativas. Mas a abordagem da semitica social

    tambm ressalta que o estudo do texto por si s no suficiente. As

    sequncias de aes comunicativas que compem gneros esto incrustadas

    em prticas sociais que contm tambm outros elementos: atores, tempos,

    lugares e assim por diante. A semitica social debrua-se no s nas aes,

    isto , o que feito aqui com palavras (ou imagens, ou msica)?, mas tambm em Quem faz isso?, 'Para quem faz?, Onde faz?, Quando? Em outras palavras, vai dos elementos estruturais s condies de produo

    desses gneros.

    Portanto, gnero pode ser um tipo de texto definido em termos da

    sua estrutura e das suas condies de produo como um evento

    comunicativo. Alm disso, so formas de atingir objetivos comunicacionais,

    tais como contar uma histria, persuadir as pessoas a fazer e acreditar em

    coisas, instruir pessoas em alguma tarefa, e assim por diante. Eles so

    analisados como constituintes de etapas dadas em padres funcionais, como a identificao de um problema, a proposta de uma soluo, e assim

    por diante. Cada estgio, ainda, um passo no caminho para cumprir tais

    metas comunicativas. Gneros podem, assim, ser vistos como as aes de

    comunicao de dadas prticas sociais que, por sua vez, como vimos, so

    aes que as pessoas fazem para si ou para outros, na medida em que elas

    seguem padres reconhecveis e cujos principais elementos de tais prticas

    so as aes que as constituem, a maneira pelas quais estas aes so

    executadas, os atores sociais que participam das aes, os recursos

    necessrios para a exequibilidade das aes etc.

    A priori, pode se esperar que qualquer gnero possa combinar com

    qualquer discurso, porque os gneros so, no mais das vezes, modelos de

    aes e mecanismos comunicativos. Todavia, na prtica, nem todas as

    combinaes de gnero e discurso so socialmente aceitveis, justamente

    pelas regulaes que os discursos sofrem e refratam.

    J por outro recurso de anlise social semitica, Theo Van Leeuwen

    aborda a questo do estilo. Para desenvolv-la sob a gide semitica social,

    o autor parte dos trabalhos de outro terico, Norman Fairclough, que

    executa trs conceitos, em parte semelhantes, aos da teoria de Van

    Leeuwen: discurso, gnero e estilo. Entretanto, o objeto de pesquisa de

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 467

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    Fairclough foi o de uma anlise da linguagem do Novo Trabalhismo, mas ligado ao

    campo poltico:

    Estilos (por exemplo, o estilo de Tony Blair) tm a ver com identidades polticas e

    valores; discursos (por exemplo, o discurso da "terceira via" [frente poltica da qual

    Tony Blair faz parte]) tm a ver com representaes polticas, e gneros tm a ver

    com figuras como a linguagem, como meios de Governo (O Green paper constitui

    um gnero particular, uma maneira particular de usar a lngua no governo) (...)

    Apenas estes [gneros] so analiticamente separveis em casos reais, eles esto sempre simultaneamente em funcionamento. Assim, qualquer discurso de Tony

    Blair, por exemplo, pode ser analisado em termos de como ele contribui para o

    processo de governo (como ele alcana o consentimento, por exemplo), como se

    representa o mundo social e os processos poltico e governamental em si, e como ele

    projeta uma identidade particular, ligada a valores especficos isto , em termos de gnero, discurso e estilo. (FAIRCLOUGH, 2000, p.14 apud VAN LEEUWEN,

    2004, p. 139)8

    A semitica social, principalmente, tem se concentrado mais nos recursos

    semiticos empregados no discurso e no gnero do que estilo. Entretanto,

    Van Leeweun observa que, como em seu entendimento, a expresso estilo de vida comea a substituir classe social, como o principal tipo de agrupamento social e fonte de identidade social, as questes de estilo tm-se

    se tornando cada vez mais importantes no mundo social dos dias de hoje.

    O autor ainda apresenta trs abordagens para questes ligadas ao

    tema estilo. Aponta em uma direo de mudana quanto a esta questo: a

    dominncia de expresses tais como estilo de vida em vez de estilo social. Na prtica e em teoria, as trs abordagens, como o autor tenta demonstrar, se envolvem de muitas maneiras. Isso se d porque h um ponto

    comum entre todas os recursos de estilo, que a articulao que preside a

    relao entre a liberdade individual um certo estilo prprio de cada indivduo e a determinao social, que, de muitas maneiras, coage os vrios estilos existentes a centrar-se em formas estilisticamente dominantes.

    No entendimento de Van Leuuwen, em primeiro lugar, deve ser considerada

    a ideia de estilo individual como diferena individual, embora as formas de

    falar, escrever e agir estejam sempre em alguma medida socialmente

    reguladas. H, ainda assim, geralmente, espaos para diferenas individuais,

    para, como diz o prprio autor, fazer as coisas do nosso jeito. A caligrafia um bom exemplo do estilo individual. Ela

    socialmente regulada, uma vez que h um modo como tem sido ensinada no

    sistema escolar, mas todo mundo tem sua prpria caligrafia, que

    reconhecvel e ligada a um estilo prprio. O estilo individual tem se

    expressado fortemente em manifestaes como msica, literatura e artes, em

    que interessante e exaltado ter seu prprio estilo. De acordo com Van

    Leeuwen, alguns autores, por um lado, tratam o estilo individual como

    marca de identidade, uma espcie de impresso digital. O estilo individual

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 468

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    de voz permite reconhecer que certo orador, que o estilo individual de

    escrita de dado escritor etc. A capacidade de reconhecer estilo individual

    torna-se um campo de conhecimento especial, um campo de trabalho,

    certamente. A experincia do historiador de arte, a determinar se uma

    pintura um verdadeiro Monet, Portinari, Tarsila do Amaral, entre outros

    artistas. Alm desse campo, a base de estilo individual pode contribuir na

    percia de um linguista forense, que chamado a (com)provar, com base em

    caractersticas estilsticas, que documentos aparentemente distintos e

    assinados diferentemente, eram, na verdade, escritos pela mesma pessoa.

    Para outros tericos, por outro lado, o recurso estilstico significa ser

    algo expressivo. Estilo expressa sentimento, atitudes diante do que dito,

    escrito, pintado ou engendrado. Ou seja, sustenta certa autoria de um

    discurso a que se veicula o dizvel. Segundo o autor, isto pode resultar de

    decises deliberadas, como no caso da literatura, artes, teatro, etc., em que

    estilos podem ser deliberadamente cultivados (ou imitados), ou no, como

    no caso de algo considerado vulgar, vozes das pessoas, estilos de escrita,

    estilos de andar, e assim por diante.

    Tericos franceses, como Guiraud, Barthes, Rifaterre, cada qual

    sua maneira, se detiveram na questo do estudo dos estilos. Da expresso

    estilstica a um estudo do valor estilstico, passando inclusive por tpicos

    tais como origem social do sujeito falante, efeitos de estilo na semitica

    estruturalista, abordagens psicolgicas ao estilo individual, como o estudo

    de preferncias de cor, em determinadas abordagens linguagem corporal, ou

    em grafologia, ou em relao literatura, como Barthes o fez, ao criticar a

    ideia valores expressivos.

    J pela ideia de estilo social, Van Leeweun trata de arguir que

    recurso de estilo nesta situao exprime no nossa personalidade individual

    e atitudes, mas a nossa posio social. Dito de outro modo, h um Quem somos? em termos de categorias estveis, tais como classe, gnero e idade, relaes sociais e O que fazer? em termos de atividades socialmente reguladas, as quais nos envolvemos em certos papis que desempenhamos

    dentro do ambiente social. Assim, estilo social no seria psicologicamente

    motivado nem seguiria nossos humores de ocasio. Ainda que nessa ideia o

    individual no desaparea, em certa medida, o valor altamente centrado em

    um ego diminui de importncia.

    O estilo social passou a desempenhar papel cada vez mais

    importante, por exemplo, nas teorias sociolingustica e estilstica dos anos

    1960 e 1970. Juntamente com o interesse nas variantes lingusticas em si,

    como determinada realizao fontica ou encaixes morfossintticos em

    certos grupos de indivduos, muitas vezes falantes do mesmo idioma,

    passou-se a se estudar outras variantes a atuar nestas diferenas de

    linguagem, por exemplo, classe social, poder, status de determinada variante

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 469

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    diante do meio social etc. So de muito flego, dentro do campo da

    lingustica, trabalhos de pesquisadores como Bernstein, Labov, Brown,

    Gilman ou mesmo para os recursos de estilo em meios de comunicao,

    campo de judicirio. Portanto, a idia de estilo, que tinha sido to

    fortemente associada ao estilo individual, passava ento idia de

    variedade da lngua, dialeto, idioleto, marcadores de variedade; competncia das regras sociais para seguir os estilos, entre outras coisas. A semitica social por tratar de recursos semiticos, em contextos

    sociais, se alinha a esses estilos sociais. Desse modo, estilo compreende

    tanto a organizao de caractersticas lingusticas no texto quanto os efeitos

    produzidos nas complexas inter-relaes do produtor do texto, texto e

    consumidor do texto, em sua, especficos posicionamentos sociais.

    Por essa via de pensamento terico, estilo de vida, como quer Van

    Leeuwen, o ponto de encontro entre estilo individual e estilo social. Por

    um lado, social, porque um grupo que mantm certo estilo, mesmo se os

    grupos que sustentam esto geograficamente dispersos, espalhados por

    outras cidades, estados e/ou lugares do mundo, o que os caracteriza no por

    uma estabilidade posicionamentos sociais como classe, sexo e idade ou

    mesmo atividades relativamente estveis, como ocupaes. Porm,

    compartilham comportamentos de consumo (gosto compartilhado) padres

    comuns de atividades de lazer (por exemplo, um interesse em esportes

    similares, ou destinos tursticos) e atitudes compartilhados para questes

    sociais, como atitudes semelhantes para os problemas ambientais, questes

    sexistas de gnero etc. Por intermdio de sua aparncia, as pessoas podem

    anunciar suas interpretaes de mundo, a sua filiao com certos valores e atitudes. Na mesma base, que pode tambm reconhecer outros, em todo o

    mundo, como membros que interpretam o mundo da mesma forma.

    No entanto, estilo de vida tambm pode ser analisado como algo da

    ordem do individual. Ao contrrio do tradicional estilo social, o discurso

    inscrito em estilo de vida, segundo Van Leeuwen, diversificado. Tem-se

    uma diminuio da homogeneidade, aumenta-se a escolha e acaba-se, assim,

    com a exigncia de se vestir de acordo com a sua idade, gnero, classe,

    profisso e at mesmo nacionalidade. H certamente estilos distintos para

    homens e mulheres, para jovens e velhos e para diferentes nveis sociais,

    como classes e ocupaes; entretanto, se essas nuanas no desaparecem,

    certamente se tornam gradativamente menos importantes. Embora os

    indivduos possam estar cientes do fato de que as suas escolhas so tambm

    as escolhas de milhes de pessoas como eles, em todo o mundo, seus estilos

    so essencialmente individuais e pessoais, e isso demonstra, em alguma

    medida, que eles esto fazendo uso criativo da ampla gama de recursos

    semiticos, que lhes so disponibilizados pelas indstrias culturais (que

    fator gerado e existente pelo lado social do consumo de bens culturais). Este

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 470

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    discurso se refora pelo fato de que estilo de vida um tipo de identidade

    instvel, que pode mudar e ser descartada, refeita, transformada a qualquer

    momento. Como um resultado, existe uma necessidade de monitorar

    constantemente os meios de vida e do meio ambiente. Os significados

    expressos pelo estilo de vida j no derivam do inconsciente, tais como os

    de escritores, artistas e atores no passado. As pessoas atualmente criam suas

    identidades de forma deliberada talvez isso explique o estado exaltado de escritores, artistas, atores etc. na sociedade de consumo contempornea, isto

    , com essa permissividade de criao, mudana e transformao de estilo, a

    canonizao de um estilo literrio pode ser questionada ou, na melhor das

    hipteses, ter de dividir espao com outros estilos menos prestigiados, ao dizer de Dominique Maingueneau (2003).

    Van Leeuwen explicita est tenso individual vs. social com o

    exemplo da caligrafia, novamente. Vejamos:

    Se caligrafia estilo individual de escrever, revelando uma personalidade nica e consistente do escritor, seja em qualquer contexto, e se os estilos sociais so homogneos, mas variam de acordo com o contexto por exemplo, a caligrafia livre de uma carta pessoal, escrita com as caligrafias apropriadas para cartas comerciais ento estilo de vida do escrito caracterizado pelo computador, que, como a mquina de escrever, fornece padronizaes sociais e produes em massa de

    formas de letras[fontes], mas, ao contrrio da mquina de escrever, d aos usurios

    uma grande variedade de fontes que lhes permitam personalizar sua comunicao

    por escrito, independentemente se estas so pblicas ou privadas.(VAN LEEUWEN,

    2005, p. 146)9

    Com efeito, estilo, na visada terica da semitica social de Van Leeuwen,

    trata-se de um recurso semitica inscrito na maneira pela qual um artefato

    semitico produzido ou, ainda, um evento semioticamente realizado,

    quando em contraste com o discurso e o gnero em que se realiza. Os efeitos

    de sentidos transmitidos pelo estilo so, no mais das vezes, diferentes. No

    caso de individual, estilo marca a identidade e o carter de uma pessoa,

    individualmente dizendo. No caso do modelo de estilo social, trata-se de

    ndices sociais, categorias como provenincia, classe, profisso etc. No caso

    de estilo de vida, possvel pensar na indicao de identidades individuais e

    sociais interagindo. Assim, os valores que so socialmente produzidos e

    partilhados com outros formam um novo tipo de identidade social.

    Em ltima instncia, entre as maneiras de anlise da semitica social

    de Van Leeuwen, temos questes atinadas modalizao elaborada a partir

    dos recursos semiticos empregados nos discursos. Modalidade a abordagem social semitica para a questo da representao de verdade,

    ainda que, sem trocadilhos, a verdade no seja verdadeiramente verdade. Ela

    diz respeito tanto a questes de representao fato vs. fico, realidade vs. fantasia, vs. real vs. artificial, autntico vs. falso quanto a questes de

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 471

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    interao social, porque as reflexes que concernem verdade so tambm

    um vis para questes sociais, haja vista que o que considerado como

    verdadeiro em um contexto social e histrico por no ser, necessariamente,

    assim considerado em outros, com todas as consequncias que isso traz.

    De acordo com Van Leeuwem, em princpio linguistas e

    semioticistas no esto preocupados com a verdade absoluta, mas com a

    verdade que falantes, escritores e outras produes significantes interpretam

    com base em certos recursos semiticos que utilizam para se expressarem.

    Os dois no coincidem necessariamente, mas perfeitamente possvel

    representar ou se fazer representar sobre o que no existe. uma fico

    realista que prospera sobre isso. Surgida de um embate de posicionamentos,

    da, portanto, a necessidade de modalizar a algum objetivo qualquer que seja

    o discurso, a modalidade se baseia na imposio de argumentos, ditos

    representantes de uma verdade absoluta, por uma autoridade, ou por um

    texto oficial, ou por um consenso alcanado no dilogo; dito de outro modo,

    modalidade requer sempre duas partes, o falante ou escritor e o ouvinte ou

    leitor que, voluntariamente, ou a contragosto, esto em consonncia com a

    verso de verdade acordada. H, dessa forma, um controle social que

    decanta sobre o controle de representao da realidade, que ser aceita ou

    no como a base, para um dado julgamento e/ou ao a ser realizada. Quem

    busca controlar a modalidade pode controlar que verso de realidade ser

    selecionada como a verso vlida no processo semitico utilizado ou a que

    ser marginalizada.

    Os recursos lingusticos da modalidade tm claramente papel muito

    importante a desempenhar na sociedade. Eles permitem que as pessoas

    criem as verdades compartilhadas de que precisam, a fim de serem capazes

    de formar grupos que acreditam nas mesmas coisas e que podem, portanto,

    agir de forma coesa e eficaz no e sobre o mundo, atuando inclusive na

    marginalizao de certas verdades que eventualmente um determinado

    grupo, ideolgica ou politicamente dominante, por exemplo, possa no

    querer expor ou no ter interesse em expor.

    Dessa perspectiva, Van Leuween classifica o interesse dos lingistas

    na modalidade tradicionalmente centrada em uma abordagem gramatical sistmica especfica, que se vale de modais auxiliares, por exemplo, tais

    como may, will, must. Estes trs ordenadamente expressam modalidades

    (possibilidades de assentos de sentido): baixa, mdia e alta. Para este

    domnio de estudos lingusticos, a verdade no simplesmente alguma coisa

    do tipo uma coisa ou outra (ou...ou), algo vlido para um verdadeiro ou falso, saturado de sentidos, mas uma questo de grau. Como ilustra Van

    Leeuwen:

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 472

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    She may use another name (low modality)

    She will use another name (median modality)

    She must use another name (high modality) 10

    Esses trs graus de modalidade podem, naturalmente, ser tambm expressos

    por substantivos relacionados, por exemplo, segurana, probabilidade,

    possibilidade; por adjetivos, por exemplo, certo, provvel, possvel;

    advrbios, por exemplo, com certeza, provavelmente, talvez,

    indubitavelmente etc.

    O terico Van Leeuwen, para chegar a essa concluso, se fiou em

    boa medida no trabalho de Halliday, linguista que acrescentou uma

    dimenso importante sobre a questo das enunciaes modalizadas. Ele

    percebeu que a modalidade no s nos permite escolher graus de verdade,

    mas tambm tipos de verdades. Os exemplos citados por Van Leeuwen nas

    linhas anteriores so baseados na idia de probabilidade. Eles representam

    os valores em uma escala que vai de um Sim, verdade at No, falso. Portanto, o critrio para este tipo de verdade : quanto maior a probabilidade de que o que se est afirmado realmente existiu, ou realmente

    ocorreu, ou ser que realmente ocorreu, maior a modalidade da afirmao. Outro tipo a frequncia de verdade modalizada. Isto baseado em uma

    escala que vai de "Sim, sempre" at "No, nunca", ou de "Sim, todos at

    No, ningum. Nestes casos, o critrio de verdade : quanto mais o que se afirmou acontece, ou quanto mais as pessoas pensam o que se afirma, ou

    mais o dizem ou mais o fazem, maior da modalidade dessa afirmao. Os recursos lingusticos utilizados para realizar este tipo de modalizao, no

    entanto, podem ainda se expressar em diferentes graus de frequncia, como,

    por exemplo, em forma adverbial. Ele algumas vezes usa camiseta branca; Ele frequentemente usa camiseta branca; Ele sempre usa camiseta branca, entre outros. Ainda argumentando com base no mirante das reflexes de Halliday, h tambm a distino entre modalidade objetiva e

    modalidade subjetiva. Nesta, o critrio de verdade algo como: quanto mais forte for minha convico interior sobre a verdade de uma afirmao,

    maior ser a modalidade dessa afirmao. J naquela a ideia deixar claramente a verdade expressa. Novamente, isto no significa que a

    afirmao seja necessariamente verdade, apenas que representada como

    tal.

    Todavia, de acordo com semitica social, modalidade no se

    restringe ao estudo da linguagem verbal, mas tambm um conceito

    multissemitico. Todos os meios de expresso tm recurso de modalidade.

    A questo da verdade emerge em todos eles, em todas materialidades

    significantes inscritas na histria.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 473

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    Em consonncia com Van Leeuwen (1996), tomando por base outros

    estudos seus especialmente Kress e Van Leeuwen (1996) muitos so os meios de expresso que esto envolvidos em julgamentos de modalidade,

    entre elas a visual. Por exemplo: os graus de articulao dos detalhes das

    formas, escalonados entre simples desenhos tracejados at fotografias mais

    ntidas e de textura fina; os graus de articulao do plano de fundo, numa

    escola que vai do zero, onde as formas e/ou os objetos so mostrados em

    contraste com um fundo branco e/ou preto, esboado fora de foco, at o

    mximo em nitidez e detalhamento dos preenchimentos de plano de fundo; a

    existncia de graus de saturao de cor, num gama de possibilidade que vai

    da ausncia de saturao preto e branco at cores em mxima saturao, entre as quais esto os tons misturados a vrios outros tons de cinza; a

    modulao de cor por graus a partir da utilizao de cor plana, no

    modulada para a representao de todas as nuanas, desde as mais sutis at

    as mais aparentes, em modulaes de certas cores, por exemplo, a cor da

    pele, ou a cor da grama; diferentes tonalidades de cor, em graus que vo do

    monocromtico a uma utilizao completa das cores; outros recursos como

    uso maior ou menor das profundidades, jogos de luz e sombra, uso

    proposital da gradao preto e branca em fotografias, filmes, desenhos,

    enfim, uma srie de elementos que compem a modalidade visual, utilizadas

    por meio de recursos semiticos e que so estudados no escopo da semitica

    social.

    Todos esses meios de expresso visual so gradativos. Eles

    permitem dizer que dimenso ser destacada, colocada em relevo, e quais

    outras ficaro margem. O valor de certas modalidades, suas configuraes

    e recursos semiticos utilizados dependem do tipo de verdade visual que

    posta ou no em relevo, em determinados contextos. E o terico Van

    Leeuwen ainda vai trabalhar quatro formas de modalizao distintas para o

    aspecto visual dos objetos semiticos, sendo elas a modalizao naturalista,

    abstrata, tecnolgica e sensorial.

    Em muitos contextos, h dominncia de modalidades naturalistas.

    Elas mantm uma viso de verdade que tange assero: quanto mais uma imagem for semelhante maneira como, na realidade, se veria algo que se

    viu, a partir de um ponto de vista especfico e sob certas condies

    especficas de iluminao, maior ser a sua modalidade. Ainda de acordo com Van Leeuwen, esta, pelo menos, a teoria, porque, na realidade, a

    modalidade naturalista fornece indcios de julgamentos de maneira muito

    dependente da forma como que a tecnologia de imagem representa o visual.

    Quando a preto e branco era a norma, a cor foi considerada como mais do que real. J as modalidades visuais abstratas so comuns nos visuais

    cientficos e de arte moderna. A verdade visual como uma verdade abstrata.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 474

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    Assim, quanto mais uma imagem representar as essncias profundas e

    subjetivas daquilo que ela est representando, ou mais ela representar o

    padro geral, subjacente superficialmente, maior ser a sua modalidade. Ou

    seja, ela se expressa pela articulao reduzida. Especificidades de

    iluminao, matizes de cor, detalhes que criam diferenas individuais so

    irrelevantes do ponto de vista da verdade essencial ou geral. Isto visto, por

    exemplo, quando as modalidades naturalistas e abstratas so combinadas.

    A modalidade tecnolgica tem a verdade visual baseada na utilidade

    prtica da imagem. Quanto mais uma imagem pode ser usada como um

    modelo, ou uma ajuda, ou uma trilha de sentido para a ao, maior ser sua

    modalidade. Muitos mapas so deste tipo, e por isso so padres para fazer

    o vestido, a arquitetura de desenhos e as instrues de montagem de kits

    faa voc mesmo. Ou mesmo o Diagrama de Veen que contextualiza icnicamente o discurso do desenvolvimento sustentvel. As configuraes

    correspondentes desta modalidade tendero para articulao fortemente

    diminuda.

    A ltima modalidade arrolada pelo terico a sensorial, em que o

    visual baseia-se no efeito de prazer ou descontentamento criado pelas

    sensaes visuais. Alm disso, realizado por um grau de articulao que

    aplicado para alm do ponto de naturalismo, de modo que a nitidez,

    profundidade, cor, luz o jogo de sombra tornam-se, a partir do ponto de

    vista da modalidade naturalista, mais do que real. Cor, por exemplo,

    utilizado na sensorial no para denotar significados gerais, tais como

    pastagens ou gua em mapas, ou ainda expressar a essncia de algo em uma

    imagem artstica (modalidade abstrata) nem por sua semelhana com a

    realidade (como na modalidade naturalista), mas para ser uma espcie de

    calmante ou efeito perturbador. A modalidade sensorial usada em

    contextos onde h assuntos de prazer: em anncios de alimentos de

    fotografia e perfume, por exemplo, e tambm em contextos que tentam criar

    uma intensidade de experincia semelhante do sonho ou da alucinao,

    tal qual em certos tipos de arte surrealista ou em filmes de terror.

    Em suma, modalidade um termo-conceito que se refere a recursos

    semiticos utilizados para expressar a forma em que as verdades so

    representadas e tambm com elas devem ser tomadas. Recursos de

    modalidade permitem que uma gama de distintos graus e tipos de

    modalidades possam ser expressos como verdades. A linguagem tem

    recursos de modalidade para expressar a verdade dos enunciados em termos

    de probabilidade, frequncia, de saber, cuja valorao de verdade no

    enunciado pode e/ou deve ser subjetivo ou objetivo. Alm disso, a semitica

    social de Van Leeuwen trata de outras modalidades, utilizadas na

    comunicao, entre as quais podemos ter a naturalista, a abstrata, a

    tecnolgica e a sensorial, conforme expomos.

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 475

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    As eleies presidenciais brasileiras: uma breve anlise...

    O primeiro texto que mobilizamos para a nossa anlise foi publicado

    inicialmente no jornal Folha de S. Paulo e republicado no site do UOL em

    12/05/2010 s 11h 54.

    Aborto questo de poltica de sade pblica, diz Dilma

    (11)

    Dilma participou de programa de TV no Rio Grande do Sul nesta segunda-feira.

    Para a presidencivel Dilma Rousseff, o aborto uma "violncia contra a mulher" e

    no uma "questo de foro ntimo", mas sim uma de "poltica de sade pblica". A

    ex-ministra da Casa Civil foi questionada sobre o tema na manh desta quarta-feira

    (12), durante participao no programa Painel RBS, da emissora TVCOM, no Rio

    de Grande do Sul. "Nesses casos que incluem gravidez risco de vida ou violncia

    no possvel que as mulheres das classes populares usem mtodos medievais [para

    abortar]", disse a pr-candidata petista Presidncia da Repblica. "Um governo no

    tem de ser contra ou a favor do aborto; ele tem de ser a favor de uma poltica

    pblica".

    No fragmento de texto acima possvel observar que o enunciado aborto questo de poltica de sade pblica destacado do contexto situacional e do cotexto original e colocado como ttulo da matria. A opo por esse

    destaque da fala da locutora em detrimento de outras possveis tais como

    violncia contra a mulher e questo de foro ntimo inicialmente parece estar relacionada ao fato de que essa pequena frase possui um carter de

    frmula. Todavia, um exame um pouco mais minucioso das outras falas

    evidencia que todas poderiam ser enquadradas na categoria de frmula.

    Acreditamos que tal destaque se d em razo de o jornalista transformar a

    fala de Dilma numa enunciao aforizante, pois como diz Maingueneau

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 476

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    (2010a, p.14), o enunciador da aforizao assume o ethos do locutor que est no alto, do indivduo autorizado, em contato com uma Fonte

    Transcendente. Ele considerado como aquele que enuncia sua verdade,

    que prescinde da negociao. O jornalista, ao realizar o destaque, no est dialogando nem com o locutor da fala destacada e nem com o destinatrio

    (leitor). Sua fala monologalmente construda se inscreve como a fala

    autorizada de um Sujeito Pleno de direito.

    Se a aforizao implica um locutor que se situa como Sujeito de pleno direito,

    reciprocamente um Sujeito se manifesta como tal por sua capacidade de aforizar.

    Trata-se fundamentalmente de fazer coincidir sujeito da enunciao e Sujeito no

    sentido jurdico e moral: algum se coloca como responsvel, afirma valores e os

    princpios perante o mundo, dirige-se a uma comunidade que est alm dos

    alocutrios empricos que so seus destinatrios. Na tradio filosfica, o Sujeito, o

    sub-jectum, colocado abaixo, ele o que no varia, o que escapa relatividade dos

    contextos; Sujeito pleno, o aforizador pode responder por aquilo que diz atravs da

    pluralidade das situaes de comunicao. Disso vem sua ligao estreita com a

    juridicidade: quando se quer condenar por suas afirmaes, em geral o que se

    condena no um texto sempre relativo a um contexto , mas uma aforizao ou um conjunto de aforizaes. (MAINGUENEAU, 2010a, p.15).

    No momento em que o site do UOL insere monologalmente a aforizao"

    aborto questo de poltica de sade pblica", atribuda candidata Dilma

    Rousseff, o leitor interpelado a atribuir a esse enunciado formulaico um

    sentido que extrapola o seu sentido primeiro. A interpretao assume a

    equao: Dizendo X, o locutor implica Y, onde Y se constitui num enunciado genrico de valor dentico: O Estado no deve deixar que o indivduo decida sobre realizar um aborto ou no; O aborto deve ser tratado pelo Estado; O Estado deve planejar aes para resolver o problema do aborto; No se deve apoiar o aborto, O aborto no deve ser tratado como um problema religioso, etc. As possveis interpretaes produzidas pelos leitores no so da mesma ordem e profundidade das que

    acompanham os textos literrios, filosficos, ou religiosos, por exemplo. No

    entanto, trata-se de uma verdadeira atitude hermenutica que faz com os leitores mobilizem um conjunto de estratgias interpretativas. Ou seja, os

    leitores so mobilizados a interpretar o destaque, procurando (re)construir o

    percurso interpretativo desenhado pela enunciao aforizante. Desse modo,

    no entendimento de Maingueneau (2010a, p. 15),

    [...] partindo do postulado de que a aforizao resulta de uma operao de

    destacamento que pertinente, o leitor deve construir interpretaes que permitam

    justificar esta pertinncia. Pouco importa qual seja a interpretao que ele construa,

    o essencial que ele postule um alm do sentidoimediato e aja de acordo. Fazendo

    isso, o destinatrio chamado a justificar, pela busca hermenutica, a prpria

    operao de destacamento: o fato de esse enunciado ["aborto questo de poltica de

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 477

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    sade pblica"] ser apresentado em um regime aforizante leva o destinatrio a

    legitimar a totalidade do quadro situacional.

    No fragmento em anlise, possvel observar junto da enunciao

    aforizante a presena de uma fotografia do rosto da locutora Dilma

    Rousseff. Sobre a relao entre fotografia e aforizao, Maingueneau

    (2010a, p.16) nos diz o seguinte:

    A presena muito frequente de fotos do rosto dos locutores ao lado das aforizaes

    pessoais aparece como a manifestao de algo constitutivo. O rosto tem duas

    propriedades notveis: 1) a nica parte do corpo considerada capaz de identificar o

    indivduo como distinto de qualquer outro; 2) , no imaginrio profundo, a sede do

    pensamento e dos valores transcendentes. A foto autentica a aforizao do locutor

    como sendo sua fala, aquela que faz dele um Sujeito plenamente responsvel. Ela

    acompanha naturalmente, portanto, a aforizao.

    No caso em anlise, a fotografia mostra que a locutora Dilma Rousseff est

    dentro de um carro acompanhada por Marco Aurlio Garcia, assessor

    especial da Presidncia da Repblica para assuntos internacionais. A

    matria do jornalista faz, contudo, aluso ao fato de que a candidata deu

    entrevista a uma TV do Rio Grande do Sul, Dilma participou de programa de TV no Rio Grande do Sul nesta segunda-feira; era de se esperar, portanto, que a fotografia retratasse a entrevista. No entanto, como afirma

    Maingueneau (2010a, p. 16) A foto do rosto tambm , alm disso, o produto de um destacamento, que elimina a exigncia de todocontexto

    situacional (roupa, lugar, momento...). A fotografia do rosto da locutora Dilma Rousseff apaga a necessidade de uma referencialidade, corporal,

    temporal e espacial. No preciso mostrar a locutora em um estdio de

    televiso para evidenciar que efetivamente ela tenha dito o que est no

    destaque e no cotexto original. Tanto a aforizao quanto o destacamento do

    rosto, ao se apoiarem mutuamente, identificam o locutor com a pessoa do

    rosto, dando corpo enunciao e produzindo um efeito de veracidade do

    que dito. Ademais, a fotografia mostra que a locutora Dilma traz a

    fisionomia leve: sorriso nos lbios; olhos bem abertos e sobrancelhas

    levemente arqueadas, olhando alegremente para os seus

    espectadores/interlocutores. Tais recursos semiticos (Van Leeuwen, 2005) buscam mostrar, por um lado, um tom de ameno do locutor e, por

    outro, colocam esses espectadores/interlocutores numa relao de interao

    com o locutor. Essa trajetria do olhar, mesmo que em um plano imaginrio,

    exige dos espectadores/interlocutores que estes ltimos estabeleam um

    contato afetuoso com o primeiro. Acrescente-se a isso o fato de que a

    fotografia ao mostrar uma pessoa sorrindo francamente para os seus

    espectadores/interlocutores, evidencia que se trata do locutor em sua

    essncia, dirigindo-se de maneira amena, mas sincera, franca aos seus

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 478

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    espectadores/interlocutores. Com efeito, ao defender ento que o aborto questo de poltica de sade pblica, na conjuno com os recursos semiticos mobilizados, constri-se uma representao da verdade que a

    locutora o est fazendo de maneira sincera.

    Tomemos mais um excerto de matria publicada no site do UOL em

    13 de setembro de 2010 s 14h57, de autoria de Camila Campanerut.

    Serra satiriza argumento de Dilma "de que no era

    candidata em 2009"

    (12)

    O candidato Presidncia da Repblica, Jos Serra (PSDB), disse segunda-feira

    (13) que o argumento de sua principal concorrente na disputa eleitoral, a ex-

    ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT) de que o vazamento de dados

    sigilosos da Receita Federal de aliados dele no tem ligao com as eleies

    hilariante. muito importante saber que est ligado a uma questo poltico-eleitoral. A idia de que ela no era candidata hilariante. A Dilma j, desde meados

    de 2008 comeou a campanha ao lado do presidente da Repblica, inclusive quem

    tocava a Casa Civil na prtica era a atual ministra da Casa Civil. Isso at as paredes,

    o gramado da Esplanada, as lmpadas da OAB, todo mundo sabe disso, afirmou aps participao de debate na sede do Conselho Federal da Ordem dos Advogados

    do Brasil (OAB). Logo aps receber a notcia do vazamento de dados da filha de

    Serra, a empresria Vernica Serra e de seu genro Alexandre Bourgeois, Dilma

    alegou que no era candidata e, que por isso os vazamentos de dados fiscais de

    pessoas ligadas a Serra no tinha vis eleitoral. "Em abril de 2009 no existia

    eleio, nem para mim, nem para o meu adversrio, nem para a outra concorrente, a

    Marina. Nenhum de ns era candidato, era algo bastante longe. Ento tem de apurar

    direitinho o que est acontecendo dentro da Receita. Em setembro, eu no era

    candidata, no era pr-candidata, no tinha pr-candidatura nem candidatura",

    afirmou a petista, no ltimo dia 5 em entrevista coletiva.

    No fragmento acima o locutor Jos Serra diz: muito importante saber que est ligado a uma questo poltico-eleitoral. A ideia de que ela no era

  • Discurso & Sociedad Vol. 7(3), 447- 489 479

    Roberto Leiser Baronas. Algumas consideraes discursivas sobre as eleies

    presidenciais brasileiras de 2010.

    ______________________________________________________________________

    candidata hilariante. A Dilma j, desde meados de 2008 comeou a

    campanha ao lado do presidente da Repblica, inclusive quem tocava a Casa

    Civil na prtica era a atual ministra da Casa Civil. Isso at as paredes, o

    gramado da Esplanada, as lmpadas da OAB, todo mundo sabe disso. Todavia, o jornalista constri o ttulo da matria introduzindo o enunciado

    Serra satiriza o argumento de Dilma e destacando do cotexto original a pequena frase de que no era candidata, todo o restante da fala do locutor totalmente opacificada. Alm disso, no cotexto original, embora tenha

    qualificado de hilariante a idia de que no era candidata, no fica to evidente que o locutor Jos Serra tenha satirizado o argumento de Dilma

    Rousseff. Com efeito, quando o site do UOL reconstri a fala atribuda ao

    candidato Jos Serra, o leitor interpelado a atribuir a esse enunciado um

    sentido que extrapola o seu sentido primeiro. A interpretao assume a

    equao: Dizendo X, o locutor implica Y, onde Y se constitui num enunciado genrico de valor dentico: O argumento de Dilma no deve ser entendido como verdadeiro; Dilma deve falar a verdade sobre a quebra de sigilo na Receita Federal; No se deve apoiar quem falta com verdade, etc. Trata-se, tal qual no exemplo anterior, de uma verdadeira atitude hermenutica que faz co