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Nº 68 – Jan/Mar 2018 - bdr.sintese.com · Midiática: uma Análise da ... la discusión sobre los delitos de peligro no es ... «la criminalización en el ámbito previo como tendencia

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ANO XVII – 2018 – Nº 68

DiretoresElton José Donato

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini Saavedra

Coordenação ExecutivaLetícia Bürgel

Lucas Minorelli

Conselho EditorialAlexandre Wunderlich (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/RS)

Álvaro Sanchez Bravo (Universidade de Sevilha/Espanha)Arndt Sinn (Universidade de Osnabrück/Alemanha)

Davi de Paiva Costa Tangerino (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/RJ)David Sanchez Rúbio (Universidade de Sevilha/Espanha)

Elizabeth Cancelli (Universidade de Brasília/DF)Fabio Roberto D’Avila (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/RS)

Fauzi Hassan Choukr (Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo/SP)Felipe Augusto Forte de Negreiros Deodato (Universidade Federal da Paraíba/PB)

Fernando Machado Pelloni (Universidade de Buenos Aires/Argentina)Gamil Föppel El Hireche (Universidade Federal da Bahia/BA)

Geraldo Prado (Universidade Federal do Rio de Janeiro/RJ)Giovani Agostini Saavedra (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/RS)

Helena Regina Lobo da Costa (Universidade de São Paulo/SP)Heloisa Estellita (Fundação Getúlio Vargas/SP)

Luís Greco (Universidade Humboldt de Berlim/Alemanha)Luiz Eduardo Soares (Universidade Federal do Rio de Janeiro/RJ)

Maria João Antunes (Universidade de Coimbra/Portugal)Rui Cunha Martins (Universidade de Coimbra/Portugal)

Ruth Maria Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/RS)Vittorio Manes (Universidade de Bolonha/Itália)

Conselho do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (www.itecrs.org)

Andrei Zenkner SchmidtAlexandre Wunderlich

Daniel GerberFelipe Cardoso Moreira de Oliveira

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini SaavedraJader da Silveira Marques

Marcelo Machado BertoluciPaulo Vinícius Sporleder de Souza

Rodrigo Moraes de OliveiraSalo de Carvalho

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Uma publicação do ITEC (Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais) e da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos do grupo SAGE.

Revista de estudos CRiminais – ano Xvii – nº 68Periodicidade trimestral – Tiragem 2.000 exemplares

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SAC e Suporte Técnico:

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Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias dos originais obtidas na Secretaria do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais.

Proibida a reprodução parcial ou total, sem autorização dos editores.

© Revista de estudos CRiminais® ISSN 1676-8698

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Telefones para ContatosCobrança: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900

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Renovação: Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7283888

Endereço para correspondência:Prof. Dr. Fabio Roberto D’Avila – Direção da Revista de Estudos CriminaisPrograma de Pós‑Graduação em Ciências Criminais – PPGCCRIMPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRSAv. Ipiranga, 6681 – Porto Alegre/RSCEP 90619‑900 – E-mail: [email protected]

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Sumário

Artigos

7 Los Delitos de Peligro: Una Perspectiva más Allá de la Dicotomía Clásica (Ronald Vílchez Chinchayán)

21 Sobre Pesquisas, Drogas e Ratos: Análise Crítica das Verdades Científicas Produzidas pelos Patrocinadores da “Guerra às Drogas” (Francisco de Assis de França Júnior)

45 “Making a Drug Dealer”: o Impacto dos Depoimentos Policiais e os Efeitos da Súmula nº 70 do TJRJ na Construção do Caso Rafael Braga (Salo de Carvalho e Mariana de Assis Brasil e Weigert)

79 A Legitimação dos Linchamentos a Partir da Narrativa Midiática: uma Análise da Produção Discursiva do “Bandido” Como Ser Matável (Felipe Machado Veloso e Humberto Ribeiro Júnior)

111 “Nada Pessoal”: Multiculturalismo e Crimes de Ódio na Experiência Estadunidense (Bruno Heringer Júnior)

129 A Decisão da Corte Constitucional Italiana no “Caso Eternit-bis”: Questões Novas sobre as Relações entre Bis In Idem Processual e Concurso Formal de Crimes? (Bruna Capparelli e Vinicius Gomes de Vasconcellos)

153 Terrorismo, Inimigo e Exceção: o Caso Brasileiro e a Aprovação da Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260/2016) (Fiammetta Bonfigli e Rodrigo Luz Peixoto)

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175 A Responsabilidade do Estado em Face da Custódia de Presidiários: uma Proposta de Diálogo entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo Tribunal Federal (Manuella Cruz Nobre)

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Los DeLitos De PeLigro: Una PersPectiva más aLLá De La Dicotomía cLásica

enDangerment offense: BeyonD the cLassicaL PersPective Ronald Vílchez chinchayán*

Resumo: A implementação do aparato punitivo do estado pressu-põe não apenas recursos que tornem possível a persecução e aplica-ção da sanção penal, mas também elementos e estruturas dogmáticas que sirvam de base a toda intervenção penal. No cenário atual, em que – novamente – os crimes de perigo assumiram o protagonismo, convém revisar se essa intervenção estatal traz consigo o necessário para realizar uma intromissão válida na liberdade dos cidadãos.

PAlAvRAs-chAve: crimes de perigo; bem jurídico; direito penal.

ABsTRAcT: The implementation of the whole state punitive appa-ratus involves not only resources that make possible the prosecu-tion and the application of a penal sanction, but also elements and dogmatic structures on which to build all criminal intervention. In the current scenario, where the endangerment offense has become – again – protagonists, it is worth reviewing whether this state inter-vention carries with it what is necessary to make a valid interference in the freedom of citizens.

KeYWoRDs: endangerment offense, legally protected interest, cri-minal law.

sumARIo: 1 Presentación; 2 escenario actual;. Inconvenientes; 4 Ba-lance; Bibliografía.

* Doctor en Derecho por la universidad de Navarra (españa), magíster por la universidad de Navarra (españa), Profesor ordinario auxiliar de Derecho penal en la universidad de Piura. Director de estudios en la Facultad de Derecho de la universidad de Piura. correo electrónico: [email protected].

chINchAYÁN, Ronald vílchez. los delitos de peligro: una perspectiva más allá de la dicotomía clásica. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 68, p. 07-20, 2018.

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1 PresentaciÓn

en un trabajo anterior1 me ocupé de llamar la atención sobre la intervención penal anticipada. concretamente me había cuestionado la legitimidad de esa

intervención a través de los delitos de peligro. Insistía en la necesidad de no quedarnos en una «capa externa», y de enfocar nuestra atención en temas de fondo que permitan una aplicación segura de estas figuras.

he podido comprobar que la doctrina ha avanzado en esos temas de fondo, pero – otra vez – el esfuerzo aún no alcanza. No me malinterpreten. No estoy criticando el avance. hacerlo sería incoherente. sostengo, por el contrario, que aún quedan – como veremos – preguntas fundamentales sin respuesta. Éstas deben ser atendidas con urgencia debido al «renovado gusto» por los delitos de peligro en el que se encuentra nuestro sistema penal.

en el presente artículo, que forma parte de un proyecto más amplio, propongo sentar las bases de lo que será mi propuesta de desarrollo teórico de los delitos de peligro. en este estado, merecerá la pena revisar qué se ha dicho hasta el momento sobre la estructura de estos tipos penales (2), para conocer qué inconvenientes están aún presentes (3) en la discusión. Finalmente, presentaré un balance sobre mi desarrollo y adelantaré algunos puntos esenciales de mi proyecto (4).

2 escenario actUaL

la discusión sobre los delitos de peligro no es – como ya he advertido en la introducción – nueva2. Pese al paso del tiempo el esfuerzo no ha decaído o, por lo menos, el interés sobre el tema no ha desparecido3. ha ayudado la presencia,

1 cfr. vÍlcheZ chINchAYÁN, «la anticipación de la intervención penal ¿es solo un problema de legitimidad?», en AP, vol. 5, 2014, pp. 102-109.

2 Ya Zieschang, Die Gefährdungsdelikte, Berlín, 1998, p. 13, en el momento de publicación de su trabajo de habilitación indicaba que en los últimos diez años los delitos de peligro habían aumentado y junto con ellos, el número de trabajos dedicados a su estudio. Pero – recalcaba a continuación – esto no ha significado un gran paso, más bien – citando a Roxin – decía que, “die erforschung der Gefährdungsdelikte stecke noch in den Anfängen. Aunque como sabemos, existen y existían en ese entonces ya muchos trabajos al respecto.

3 sobre el avance doctrinal de los delitos de peligro, cfr. vÍlcheZ chINchAYÁN, «la intervención penal anticipada y los delitos de peligro: una aproximación a su desarrollo dogmático actual y futuro», en Ita Ius Esto, disponible en <http://www.itaiusesto.com/wp-content/uploads/2016/12/Rvc-1.pdf>.

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entre otros, de nuevos desafíos existentes en la «sociedad de riesgo»4, tales como las repercusiones de los grandes adelantos tecnológicos y científicos y la mayor demanda de protección penal5 para atajar los posibles efectos negativos que puedan tener lugar6. Todo esto ha estimulado múltiples intentos7 por parte de

4 Al abordar el estudio de los delitos de peligro suele ser frecuente – casi una obligación – iniciar con la explicación de sus características y su repercusión en el desarrollo del Derecho penal moderno. Por ser una cuestión extensamente trabajada no hace falta detenerme aquí. Basta, en todo caso, con remitime, al desarrollo presentado por BecK, La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad (trads., Navarro, Jiménez, Borrás), Barcelona, 1998, passim y en especial a PRITTWITZ, Strafrecht und Risiko. Untersuchungen zur Krise von Strafrecht und Kriminalpolitik in der Risikogesellschaft, Fráncfort d. m., 1993, pp. 50 y ss. También sIlvA sÁNcheZ, La expansión del Derecho Penal, 1ª ed., madrid, 1999, pp. 21-30; cARNevAlI RODRÍGUEZ, «Algunas reflexiones en relación a la protección penal de los bienes jurídicos supraindividuales», RcD, vol. 27, núm. 1, 2000, p. 135; sIlvA sÁNcheZ, La expansión del Derecho Penal, 2ª ed., madrid, 2001, pp. 26-27; meNDoZA BueRGo, El derecho penal en la sociedad del riesgo, madrid, 2001, pp. 27 y ss.; DÍeZ RIPollÉs, «De la sociedad del riesgo a la seguridad ciudadana: un debate desbocado», RecPc 07-01, 2005, pp. 01:1-01:4. críticamente sobre este tópico, FeIJoo sÁNcheZ, «sobre la “administrativización” del Derecho penal en la “sociedad del Riesgo”. un apunte sobre la política criminal a principios del siglo XXI», en Derecho y Justicia penal en el siglo XXI. Liber amicorum en homenaje al Profesor Antonio González-Cuéllar García, madrid, 2006, p. 143.

5 como resalta meNDoZA BueRGo, «Gestión del riesgo y política criminal de seguridad en la sociedad del riesgo», en en Derecho y Justicia penal en el siglo XXI. Liber amicorum en homenaje al Profesor Antonio González-Cuéllar García, madrid, 2006, p. 360, la sensación de inseguridad (tanto objetiva como subjetiva) obliga a exigir al estado una actuación que anticipe todo peligro. el asunto está en cómo debe responder aquel para ofrecer una anticipación que no limite excesivamente la libertad de los ciudadanos.

6 cfr. sÁNcheZ GARcÍA De PAZ, «la criminalización en el ámbito previo como tendencia político-criminal contemporánea», en QuINTeRo olIvARes/moRAles PRATs (coords.), El nuevo Derecho penal español, Estudios penales en memoria del Profesor José Manuel Valle Muñiz, elcano (Navarra), 2001, p. 712.

7 En el Derecho angloamericano sucede algo similar con aquellas figuras que podrían entenderse como equivalentes a los delitos de peligro. cfr. husAK, Overcriminalization: the Limits of the Criminal Law, Nueva York, 2008, p. 38. explica este autor cómo las «[o]ffenses of risk prevention (or risk creation) are a second category of statute that has contributed to the phenomenal growth of the criminal law. After all, the state has long proscribed just about every possible means of directly causing harm – even if it resorts to recriminalization – but there is virtually no limit to how far the state might go in protecting persons from novel ways that harm might be risked. crimes of risk prevention are examples of inchoate offenses. Roughly, an offense is inchoate when not all of its instances cause harm. These offenses do not prohibit harm itself but, rather, the possibility of harm – a possibility that need not (and typically does not) materialize when the offense is committed. New crimes of risk

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la doctrina y del legislador para encauzar la protección a través de mecanismos que faciliten la puesta en marcha del Derecho penal. No sorprende, por eso, el desarrollo de numerosos planteamientos teóricos ni la creación – en lo que aquí me ocupa – de nuevos delitos de peligro8, entendidos como aquellos que dan lugar a la intervención penal antes de la producción de un resultado de lesión. este esquema, que no es «una invención» del legislador actual9, ha crecido hasta tal punto que sus dos modalidades tradicionalmente reconocidas, los delitos de peligro concreto y abstracto, se perciben10 como «normales»11 y «necesarias»12 en el proceso de (neo) criminalización13, porque constituyen una vía de acceso

prevention can easily be generated by proscribing conduct more and more remote from the ultimate harm to be prevented» (r.t.).

8 en un tono crítico sobre este desarrollo cfr. hAssemeR, «Rasgos y crisis del Derecho penal moderno» (trad., larrauri), ADPCP 1992, pp. 235-249.

9 Reconoce schÜNemANN, Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana (trad., cancio meliá), Bogotá, 1996, p. 31, el mérito del legislador por desarrollar sin indicación alguna por parte de la ciencia del Derecho penal los delitos de peligro (abstracto). Puede rastrearse algunos tipos en los primeros cuerpos legislativos penales europeos. De alguno de éstos, da cuenta, por ejemplo, PuschKe, «origen, esencia y límites de los tipos penales que elevan actos preparatorios a la categoría de delito» (trad., Fakhouri), InDret Penal 4/2010, p. 4.

10 entra en juego aquí también el llamado «efecto simbólico» que pueden poseer los delitos de peligro. Aunque aquel efecto no es totalmente rechazable dentro de mi forma de entender esta clase de delitos, pienso que no habría que permitir la construcción de un tipo únicamente para que se consiga ese efecto, descuidando su contenido y elementos.

11 las (nuevas) exigencias de la sociedad actual obligan a una actualización de los mecanismos de reacción. La aparición de más figuras de peligro sería el resultado de aquellas.

12 cfr. sIlvA sÁNcheZ, La expansión, 2. ed., 2001, p. 51; ID., Aproximación al Derecho penal contemporáneo, 2. ed., Buenos Aires-montevideo, 2010, pp. 7-8.

13 es curioso, como señala meNDoZA BueRGo, El derecho penal, p. 55, que justamente en una sociedad como la actual donde sus integrantes se encuentran más seguros, éstos incongruentemente sienten lo contrario (algunos motivos sobre esta situación son resumidos por Puschke, InDret Penal 4/2010, p. 7) y exigen mayor protección y, en cierto modo, intervención. como sostiene Peris Riera, «Delitos de peligro y sociedad de riesgo: una constante discusión en la dogmática penal de la última década», en cARBoNell mATeu/Del RosAl BlAsco/moRIllAs cuevA/oRTs BeReNGueR/QuINTANAR DÍeZ (coords.), Estudios penales en homenaje al Profesor Cobo del Rosal, madrid, 2005, p. 697, se pretende que el Derecho Penal lo solucione todo. en igual sentido, Kindhäuser,,“Rechtsgüterschutz durch Gefährdungsdelikte’, Festschrift für Volker Krey, 2010, p. 251, el Derecho penal se convierte en una,“Allzweckwaffe sozialer Absicherung und Beruhigung”.

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«rápido y flexible14» para escapar de los controles, la «llegada tardía» y otros aspectos negativos de los delitos de resultado de lesión15. Todo esto sin renunciar – afirma la doctrina o, por lo menos, lo presupone16 – a las garantías y principios propios de esta rama del Derecho. el adelantamiento de la tutela penal – insisten los autores – no puede convertirse en la primera línea de defensa17.

3 inconvenientes

con todo, en el análisis se da por sentado que el Derecho penal no puede intervenir sin mesura, sin embargo, no se detalla hasta dónde puede llegar ni con base en qué. si a lo expuesto le adicionamos las no pocas ocasiones en que la flexibilidad (o ¿indeterminación?) de los delitos de peligro facilita su reconfiguración según las necesidades del caso, tenemos un panorama teórico y práctico heterogéneo y peculiar, ya sea porque las exigencias del caso en concreto rebasan los límites de los modelos teóricos o porque éstos no están claramente determinados o porque se recurre a presunciones18.

más aún, encontramos un escenario confuso porque incluso dentro de una misma clasificación – por ejemplo, los delitos de peligro abstracto – los criterios varían. Para un sector esta diversidad no sería algo negativo, sino simplemente

14 los legisladores asumen un doble rol. Por un lado, atienden los pedidos de protección ampliando el marco penal; y, por otro, cada vez más intentan reducir el campo de aplicación penal o reservar el Derecho penal para la solución de conflictos de especial gravedad.

15 cfr. FelIP I sABoRIT, «observaciones a La expansión diez años después», en RoBles PlANAs/sÁNcheZ-osTIZ (coords.), La crisis del derecho penal contemporáneo, Buenos Aires, 2011, pp. 74 y ss.

16 Que esta idea se mantenga hasta el final de toda la construcción dogmática no es, sin embargo, frecuente. Poco a poco se van haciendo concesiones que resultan en algo esencialmente distinto al punto de partida.

17 Por eso, no le falta razón a ceReZo mir, «los delitos de peligro abstracto en el ámbito del Derecho penal del riesgo», RDPC, 2ª época, 2002 (núm. 10), p. 58, cuando señala que, si el legislador olvida que el Derecho penal es el último recurso a emplear, puede ocasionar una hipertrofia del mismo sistema. Más aún, si esa intervención penal no es eficaz ni para proteger el bien jurídico ni para imputar la conducta.

18 Pese a su (aparente) utilidad – según la doctrina mayoritaria – no se han visto libres de cuestionamientos. Por ejemplo, para BRehm, Zur Dogmatik des abstrakten Gefährdungsdelikts, Tubinga, 1973, p. 38, incluso la presunción iuris et de iure que recae sobre los delitos de peligro abstracto genera más inconvenientes: «aun cuando fuera correcto que los delitos de peligro abstracto contengan una prohibición de prueba en contrario, la cuestión fundamental sin respuesta sería por qué el legislador la ha establecido».

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expresión de lo que significan los delitos de peligro abstracto: una categoría que aglutina supuestos que no son ni de lesión ni de peligro concreto. sin embargo, pienso que todo lo anterior impide predecir la reacción del estado y pone en evidencia – pese a que hay otras exposiciones muy sugerentes que están a medio camino y que se muestran como guía de interpretación, en mi opinión, prometedoras – los vacíos e imprecisiones de la discusión doctrinal. Dicho de otra forma, la actuación penal no puede efectuarse con base en inútiles preceptos tales como «quedan sancionadas con pena de prisión todas las conductas que causen un menoscabo en los bienes jurídico-penalmente relevantes». es necesario contar con una estructura delictiva, o mejor, una forma de tipificación adecuada para llevar a cabo la intervención penal anticipada.

la estructura al uso – los delitos de peligro abstracto y de peligro concreto – es suficiente para, por lo menos, formular ciertas interrogantes, como qué se entiende por peligro abstracto y concreto. Además, preguntar por el contenido que la doctrina le atribuye a cada uno; y los límites frente a otras figuras que también adelantan la intervención penal.

No llama la atención que sobre esas cuestiones existan distintas opiniones. sí, en cambio, que hasta el momento no haya – como adelantaba en la introducción – una propuesta de solución satisfactoria. como consecuencia, nos encontramos ante la «extendida impresión» de que el sello distintivo de los delitos de peligro es la flexibilidad llevada al extremo: sirven para todo. Con esto se renuncia – implícitamente – a la seguridad que ofrece el contar con una construcción teórica coherente sobre este grupo de delitos. Todo en aras de responder a un deseo de intervención penal que precisamente por la prisa y la falta de acuerdo sobre lo fundamental (definiciones, elementos, características y aplicación práctica) resultaría, en no pocos casos, un refuerzo simbólico o una aparente protección que dista mucho de lo que se busca.

La afirmación que se ha hecho podría calificarse como pesimista o, por lo menos, alarmista, si se observa que estas preocupaciones no son aparentemente compartidas por el legislador y que hoy por hoy doctrinalmente parece que se ha alcanzado un acuerdo sobre la estructura y funcionamiento de los delitos de peligro. Así pues, el incremento de esta clase de delitos en los códigos penales y, especialmente, el aumento de sentencias donde se sancionan conductas de peligro, son – desde esta otra perspectiva – indicativos claros de que «gozan de buena salud».

el gran número de hipótesis, esquemas y soluciones son muestras no sólo de la importancia práctica de los tipos que estudio, sino también de la preocupación

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de la doctrina por «revestirlos de ropajes jurídicos»19. esto puede llevar a suponer o dar la impresión de que todo está dicho (los problemas constitucionales, la colisión con los principios del Derecho penal, los conceptos sobre el peligro, las sub-clasificaciones, la configuración interna…). Sin embargo, no puedo dejar de preguntarme por qué siguen formando parte de los «asuntos aún por resolver»20 o, por qué un sector de la doctrina los ubica – generalmente – en esa área. ¿Acaso las cuestiones pendientes o problemas teóricos son sólo una ilusión o producto de un obsesivo y malsano deseo por «rizar el rizo»?

el aumento de los delitos de peligro en los cuerpos legislativos penales no es una muestra de buena salud, sino simplemente de que se los concibe como herramientas útiles para brindar protección21. Pero incluso me cuestiono esa utilidad o, mejor, idoneidad. Ya he dicho que una formulación tan general de la conducta típica no es útil. No basta con pretender la sanción de determinadas conductas. Detrás del precepto debe existir un contenido claro y además unos contornos determinados que permitan al juez y al fiscal poder fundamentar que la conducta es peligrosa22 y que se respeta, entre otros, los principios de legalidad y culpabilidad.

hasta el día de hoy la doctrina encuentra problemas para abordar la figura del peligro. No por falta de una definición (usualmente «la probabilidad de producir una lesión»), sino porque pronto se encuentran con supuestos que

19 sobre esto, me remito a lo que desarrollé en vÍlcheZ chINchAYÁN, en Ita Ius Esto, disponible en <http://www.itaiusesto.com/wp-content/uploads/2016/12/Rvc-1.pdf>.

20 Es peculiar cómo desde Schröder en 1967, y su preocupación por la insuficiencia de las clasificaciones de los delitos de peligro, hasta tiempos más recientes a la doctrina le sigue interesando el tema. una breve, pero orientativa exposición al respecto puede verse en KuhleN, en «Bienes jurídicos y nuevos tipos de delito» (trad., ortiz de urbina Gimeno), en RoBles PlANAs (coord.), Límites al Derecho penal. Principios operativos en la fundamentación del castigo, Barcelona, 2012, pp. 225 y ss.

21 Algo que demuestra, según QuINTeRo olIvARes, «los delitos de riesgo en la política criminal de nuestro tiempo», en ARRoYo ZAPATeRo/NeumANN/NIeTo mARTIN (coords.), Crítica y Justificación del Derecho penal en el cambio de siglo. El análisis crítico de la Escuela de Frankfurt, cuenca, 2003, p. 241, que son – con razón – fruto de la necesidad de nuestro tiempo. Y sobre esto, puedo resaltar, existe preocupación que va desde la protección al medio ambiente en los que aparecen como principales figuras los delitos de acumulación, hasta la defensa de sentimientos, convicciones o tabúes a través de los delitos de comportamiento.

22 Más allá de la discusión sobre su calificación como delito de peligro abstracto o concreto, resulta por lo menos inquietante que la configuración del peligro cambie, que a veces se presuma su existencia, pero se exijan a la vez ciertos elementos para demostrar su presencia.

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requieren mayores precisiones, debido a que ese peligro «no se puede ver» (y se rechaza presumirlo) o, sencillamente, a que se pone en tela de juicio la relación bien jurídico-peligro. Todo esto afecta, a fin de cuentas, al concepto inicial, plantea (otra vez) «claroscuros» y demuestra que se avanza, pese a los continuos esfuerzos, sobre un iceberg.

la situación se agrava en una escala mayor cuando, sobre el concepto de peligro, se incluye como elemento decisivo para la sub-clasificación. Para un sector, por ejemplo, el peligro puede «existir» (delito de peligro concreto) o no (delito de peligro abstracto); mientras que para otro existe, pero en mayor (delito de peligro concreto) o menor (delito de peligro abstracto) grado.

en este contexto puedo observar que se asume que los delitos de peligro concreto23 son los menos problemáticos y que la atención debe recaer sobre los otros. según veo, sobre los primeros se ha logrado un (temprano) consenso sobre su definición y su configuración. Sobre los otros, en cambio, ha aparecido constantemente la sombra de la ilegitimidad. Además, no son pocas las ocasiones en las que la doctrina no es capaz de aclarar por qué los delitos de peligro abstracto son aquellos en los que «no hay peligro» (¿?), o en el mejor de los casos hay una presunción que ha establecido el legislador y por ello no consta en la redacción legal o, como suele afirmarse, no forma parte de los elementos del tipo.

No sorprende, por todo lo anterior, que los autores tengan como centro de atención los delitos de peligro abstracto24. No sólo para volver sobre los cuestionamientos usuales referidos a la definición del peligro y su legitimidad dentro el sistema penal, sino para construir sub-clasificaciones, tales como los delitos de peligrosidad concreta, preparatorios y de acumulación.

este es el esquema que propone Wohlers25. La primera sub-clasificación a la que hace referencia es la de los delitos de peligrosidad concreta. Éstos, en su opinión, sancionan conductas cuya peligrosidad se basa en que conducen a

23 No deja de ser llamativo que algunos autores renuncien a tratar los delitos de peligro concreto, porque en la configuración del Derecho penal moderno, son otros los protagonistas debido a la protección de bienes supraindividuales.

24 es sugerente el planteamiento de KuBIcIel, «libertad, instituciones y delitos de peligro abstracto: ¿un nuevo prototipo del Derecho penal económico?» (trad. vílchez chinchayán), en InDret Penal 3/2017, disponible en <http://www.indret.com/pdf/1315.pdf>.

25 Insiste WohleRs, Deliktstypen des Präventionsstrafrechts – Zur Dogmatik,“moderner” Gefährdungsdelikte, Berlín, 2000, p. 283 en que, “[o]bwohl der Deliktstypus der abstrakten Gefährdungsdelikte gemeinhin ex negativo definiert wird, d.h.: abstrakte Gefährdungsdelikte (stets) dann vorliegen sollen, wenn der Gesetzgeber weder eine verletzung noch eine konkrete Gefährdung des durch die Norm geschützten Rechtsguts

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situaciones en las que el autor ya no puede controlar y, por eso, podrían derivar en un escenario de peligro concreto o de lesión. Todo esto es un planteamiento conocido a través del desarrollo de los delitos de peligro hipotético o los de peligro idóneo, que pueden ser un buen punto de apoyo, no obstante, faltan delimitar ciertos aspectos, entre otros, qué se entiende por idóneo y cuándo una conducta lo es.

La siguiente sub-clasificación26 abarca los denominados delitos preparatorios27. el potencial de riesgo en éstos se encuentra en que el propio agente u otra persona puede añadir un fin delictivo al resultado de la conducta en cuestión. Aquí, a diferencia de la siguiente clasificación, no importa que las acciones se lleven a cabo en gran número, porque ni así «lesionan» el bien jurídico28. No sólo Wohlers, sino también otros autores como Puschke, consideran que los tipos de preparación29 se definen como aquellos en los que

als tatbestandlichen erfolg vorgesehen hat, versucht man dennoch, auch bei abstrakten Gefährdungsdelikten – wenigstens verbal – den Rechtsgutsbezug aufrechtzuerhalten”.

26 Aunque hay autores que los ubican fuera de los delitos de peligro abstracto. Así, por ejemplo, A. meRKel, Die Lehre von Verbrechen und Strafe, stuttgart, 1912, § 12/3.

27 cfr. según PuschKe, «Grund und Grenze des Gefährdungsstrafrechts am Beispiel der vorbereitungsdelikte», en heFeNDehl (coord.), Grenzenlose Vorverlagerung des Strafrechts, Berlín, 2010, p. 11, hay que analizarlos porque, “[…] wegen der Ausrichtung auf eine zukünftige schädigungshandlung Besonderheiten innerhalb der abstrakten Gefährdungsdelikte aufweisen. Zudem werden Tatbestände, die vorbereitungshandlungen verbieten, zum Teil sehr öffentlichkeitswirksam im Kampf gegen spezielle Risiken eingesetzt und nunmehr auch von europäischer seite vorangetrieben“.

28 WohleRs, Deliktstypen des Präventionsstrafrechts, p. 328.29 Distingue PuschKe, en Grenzenlose Vorverlagerung des Strafrechts, pp. 12-13, dentro de los

delitos de peligro abstracto y junto a los ya mencionados de preparación los delitos de «dominio de la casualidad» [Delikte zwecks Zufallsbeherrschung] en los que la protección del bien jurídico tiene que ver con mantener alejadas las acciones que han sido enjuiciadas como peligrosas. Para diferenciarlos de los delitos de preparación, afirma que en los de «dominio de la casualidad» la peligrosidad de la conducta para un bien jurídico se produce desde el no-dominio de una situación. en cambio, en los delitos de preparación hay un claro dominio de aquello que terminará en la lesión del bien jurídico (p. 13).

sostiene que entre ambos extremos hay un buen número de tipos en los que se sancionan tanto el no-dominio objetivo como la relación de peligrosidad subjetiva. Todos estos tipos, serían para Puschke, delitos de preparación en sentido amplio. Así comprende dentro de estos a los llamados delitos de cooperación o de organización [Kooperations-oder organisationsdelikte].

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se evita un daño futuro de un bien jurídico30. en otras palabras, se relaciona la peligrosidad [Gefährlichkeit] que justifica la penalización31 con una futura acción de menoscabo. el matiz que le proporciona Wohlers es que aquí se encuentra una situación sobre la que se puede construir el fin delictivo32. Para Puschke, más bien se trata de la «intención» de tener el dominio sobre la lesión de un bien jurídico en un momento posterior33. ese último elemento subjetivo de la «intencionalidad del dominio» hace rechazable la segunda postura por su inseguridad e imposibilidad de «demostrar», pero también porque enlaza otra vez con la (im)posibilidad de control, una figura que tampoco ha servido de mucho para explicar el contenido de los delitos de peligro concreto.

Por último, los delitos de acumulación34. en éstos no se exige que una sola acción produzca la lesión o el peligro, sino que la acción individual pertenezca a aquellas en las que en un mayor número35 podrían derivar en una lesión o

30 Asegura PuschKe, en Grenzenlose Vorverlagerung des Strafrechts, p. 12, uno individual o colectivo.

31 Algo que no deja de preocupar es su legitimidad. sobre esto cfr. Puschke, en Grenzenlose Vorverlagerung des Strafrechts, p. 24.

32 cfr. WohleRs, Deliktstypen des Präventionsstrafrechts, p. 328.33 cfr. PuschKe, InDret Penal 4/2010, p. 6.34 En contra de esta clasificación: ROXIN, Strafrecht, AT, Tomo 1, 4. ed., múnich, 2006, § 2/82. 35 cfr. KuhleN,, “Der handlungserfolg der strafbaren Gewässerverungreinigung (§ 324

stGB)“, GA 1986, p. 402:, “[d]ie skizzierte Rechtfertigung aus dem Problem der großen Zahl ist m.e. die einzige rationale Begründung, die sich für einen Kumulationstatbestand geben läßt“. Aunque más adelante reconoce que hay, por lo menos, dos objeciones de importancia. Primero, apunta, la justificación desde el problema de la gran escala tiene un núcleo de preventiva general. sería posible que los opositores a una teoría general preventiva sobre la que se basa la construcción de los tipos acumulativos la rechacen, aunque sea una forma necesaria – que no idónea – para solucionar el problema mencionado. Para Kuhlen esta objeción no es válida porque – entre otras argumentaciones – pesa sobre la humanidad el deber moral de mantener para las futuras generaciones el medio ambiente.

una segunda objeción es que, desde la justificación hecha, los tipos acumulativos son elementos que ayudan a mantener un interés general con el inconveniente de que restringen la libertad individual. Para Kuhlen, se trata de un interés que importa a todos los individuos (pp. 403-404).

luego de esto, el autor se pregunta si en realidad deben crearse unos tipos como estos o existen otras formas menos graves para hacerle frente a los problemas expuestos (p. 404). Para responder estas cuestiones hace referencia a la moral y a las contravenciones [ordnungswidrigkeiten]. Descarta ambas. la primera por llegar a una solución irreal, y la segunda porque no hay elementos claros que ayuden tampoco (“es gibt keine “positive qualitative Auszeichnung der ordnungswidrigkeiten”, sondern nur einen randunscharfen

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peligro36. se trata de una situación distinta, porque nos encontramos frente a supuestos37 donde la inocuidad es la regla38. en otras palabras, conductas que no causan lesión ni peligro, se sancionan en función de las consecuencias que podrían tener lugar si se realizan en gran escala39.

Pese a los intentos, como los de Wohlers40 por ejemplo, no parece convincente establecer sub-clasificaciones con el pretexto de explicar qué ocurre en la realidad, si en verdad no se dan pautas de cómo debe hacerse, bajo qué criterios y hasta dónde. sin responder a estas cuestiones no se llega muy lejos, y no faltan las oportunidades para generar mayor inseguridad jurídica. el paso del tiempo y la multiplicación de propuestas sólo acaba en la falta de consenso y de herramientas útiles que guíen la actividad judicial. Aún más, parece que todo el avance no es lineal, sino circular. se descubre una pequeña porción de los delitos de peligro y se insiste en ella desde distintos ángulos, pero no se ha ido más allá.

4 BaLance

Con lo que se ha expuesto podemos afirmar que la intervención penal a través de los delitos de peligro presenta un escenario particular. Y lo es básicamente, en dos sentidos. en primer lugar, porque parece existir cierto

Kernbereich, der dem strafrecht nicht zugunsten des ordnungswidrigkeitenrecht entzogen werden darf”).

36 cfr. KuhleN, GA 1986, p. 399. sería posible, en su opinión distinguir entre tipos acumulativos de lesión y de peligro. en la práctica, según el autor, esta distinción carece de sentido.

37 Ejemplifica KUHLEN, GA 1986, esto sobre la base de la conducción en estado de ebriedad y la contaminación de aguas. Para el primer caso, si el conductor A se encuentra en estado de ebriedad, existe peligro independientemente de si B también lo está. en cambio, en la contaminación de aguas la situación es diferente. en este caso, con el comienzo de la conducta puede excluirse con seguridad que la contaminación al río meno, por ejemplo, pueda ser perjudicial para las personas, los animales o las plantas (p. 399).

38 Aunque precisa que podría en conjunto, tratarse de conductas peligrosas si aumentan regularmente (KuhleN, GA 1986, p. 400).

Ya puede resaltarse aquí cómo es que plantea una situación distinta: las conductas sancionadas por tipos de peligro abstracto son, por regla, peligrosas. en cambio, en los delitos de acumulación son, por regla, inocuas.

39 esta es una línea que ya había propuesto BINDING, Die Normen und ihre Übertretung. Eine Untersuchung über die Rechtsmässige Handlung und die Arten des Delikts, Tomo 1 (reimpresión de la 4.ª ed., leipzig, 1922), Darmstadt, 1991, § 52-54.

40 cfr. vÍlcheZ chINchAYÁN, en Ita Ius Esto, disponible en <http://www.itaiusesto.com/wp-content/uploads/2016/12/Rvc-1.pdf>.

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consenso en que vale la pena contar con (más) tipos de peligro. el aumento de éstos en los códigos penales actuales parece ser una muestra de la valoración positiva que reciben. No obstante, en segundo lugar, esto no ha significado una mejora cualitativa – entiéndase un desarrollo dogmático – que acompañe este nuevo impulso legislativo. es más, tengo la impresión de que precisamente se utiliza ese estado difuso e incompleto como un arma multiusos apropiada para cubrir ciertos espacios donde también se exige – con o sin razón – la presencia de una sanción penal incidiendo en la libertad de organización que tiene cada individuo.

Frente a lo anterior hace falta aclarar que no sostengo que cada individuo pueda hacer lo que le venga en gana afectando a otros sin ninguna consecuencia. Parto de la idea de la autonomía en la organización de cada individuo y en la autorresponsabilidad por la creación de peligros y daños en las esferas de otras personas. Pero esto no significa que sea válida cualquier forma de represión penal.

las inconsistencias y vacíos preocupan aún más cuando se advierte que no pocos tipos penales «de moda» pertenecen a la clasificación que venimos analizando. Así, por ejemplo, pueden mencionarse no sólo los delitos contra el medio ambiente (arts. 304 y ss.), contra la seguridad y salud en el trabajo (art. 168-A, primer párrafo), sino también los delitos de insider trading (arts. 251-A y 251-B), blanqueo de capitales (Dl. núm. 1106); y contra la Administración pública (por ejemplo, el art. 384 primer párrafo o el art. 399).

en este estado de las cosas – y respondiendo a la pregunta formulada en el título de este trabajo – puedo afirmar que queda aún mucho por responder y desarrollar. De esto me ocuparé en los futuros trabajos que publicaré en los próximos meses.

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soBre PesqUisas, Drogas e ratos: anáLise crítica Das verDaDes científicas ProDUziDas

PeLos PatrocinaDores Da “gUerra às Drogas”on research, DrUgs anD rats: criticaL

anaLysis of the scientific trUths ProDUceD By the sPonsors of the “DrUg War”

FRancisco de assis de FRança JúnioR*

* Doutorando e mestre em Direito pela universidade de coimbra (PT), Professor no centro universitário cesmac (maceió/Al), coordenador Adjunto do Instituto Brasileiro de ciências criminais em Alagoas, Advogado de Defesa. E-mail: [email protected].

RESUMO: A utilização de pesquisas (ditas) científicas tem sido uma constante no debate sobre o consumo de droga. Desde que as au-toridades constituídas, a partir do território norte-americano, resol-veram deflagrar o processo de criminalização sobre determinadas drogas, mecanismos variados foram utilizados para apregoar a ne-cessidade de uma guerra contra o seu comércio ilegal. o presente tra-balho objetiva, mediante pontual revisão bibliográfica, desvelar um destes mecanismos: o patrocínio e a reverberação acrítica de pesqui-sas em animais não humanos, sobretudo ratos de laboratório, com o fim de legitimar políticas públicas que afrontam as bases de um ambiente que se pretende substancialmente democrático. os resul-tados obtidos em tais experimentos, pelas contingências que serão a seguir expostas, de modo algum podem alcançar os seres humanos na dinâmica social.PALAVRAS-CHAVE: Pesquisas; ratos; verdades científicas; “guerra às drogas”.ABSTRACT: The use of researches claimed to be scientific ones has been a constant in the debate about drug use. since the authorities from the united states decided to initiate the process of criminalization on certain drugs, several mechanisms have been used to proclaim the necessity of a war against its illegal trade. under specific bibliographical review, the objective of this study is to unveil one of these mechanisms: uncritical sponsorship and reverberation

FRANÇA JÚNIoR, Francisco de Assis de. sobre pesquisas, drogas e ratos: análise crítica das verdades científicas produzidas pelos patrocinadores da “guerra às drogas”.

Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 68, p. 21-44, 2018.

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of research on nonhuman animals, especially laboratory mice, in order to legitimize public policies that face the basis of an intended-to be-substantially democratic environment. The results obtained in such experiments can in no way reach human beings in the social dynamics, by contingencies to be set out throughout this work.

KEYWORDS: Research; rats; scientific truths; “drug war”.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Sobre as pesquisas científicas: não nos es-queçamos do contexto; 2 sobre drogas e ratos: “meus heróis mor-reram de overdose”; 3 A construção das verdades científicas sobre a “guerra às drogas”; Considerações finais; Referências.

SUMMARY: Introduction; 1 On scientific research: let us not forget the context; 2 on drugs and rats: “my heroes died of overdose”; 3 The construction of scientific truths about the “drug war”; Final remarks; References.

introDUÇÃo

Não é de hoje que os ratos são instrumentalizados na dinâmica social. sua finalidade lúdica certamente é uma das mais conhecidas, sobretudo quando lida-mos com o público infantojuvenil. Mickey, Minnie, Super Mouse, Topo Gigio, Stuart Little, Pink e Cérebro, (Tom e) Jerry, entre outros, imortalizaram-se no ideário popular como personagens essencialmente destemidos, não raramente responsá-veis por nos apresentar, da forma mais simplificada possível, importantes dile-mas existenciais. No embalo de suas aventuras, remetem-nos a conflitos internos que aperfeiçoam nossas perspectivas sobre o mundo. Disciplina, sacrifício, ousa-dia, perseverança, irresignação e determinação são algumas das noções que po-dem ser abstraídas de filmes, desenhos, contos e quadrinhos do gênero. Ocorre que os pequenos roedores acabaram por conquistar influência histórica em outro meio: o das pesquisas sobre os efeitos das drogas, por meio das quais também nos transmitem mensagens.

em meio às cobranças (de cunho eminentemente moral)1 por crimina-lização de determinadas drogas – a começar pelo álcool em território norte--americano na década de 1920 –, a falta de embasamento científico, ou seja, de critério relativamente seguro que pudesse justificar uma postura tão invasiva às liberdades alheias, acabou por deflagrar a estruturação de uma indústria de experimentos, da qual os animais não humanos se tornaram os clientes prefe-

1 A escalada do ideário de guerra sobre a problemática as drogas, sobretudo no campo moral, pode ser acompanhado, em detalhes, em: vAloIs, luís carlos. O direito penal da guerra às drogas. 2. ed. Belo horizonte: D’Plácido, 2017. 697 p.

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renciais. Com protocolos éticos mais flexíveis, sendo, na generalidade, encara-dos juridicamente como coisas, passaram rapidamente a portadores qualifica-dos das respostas pleiteadas nos debates entre proibicionistas e abolicionistas. Nessa dinâmica de competitividade capitalista que sempre se baseia na lógica do custo-benefício, os ratos, sobretudo por conta do tamanho, do baixo custo de manutenção e das características genéticas aproximadas às humanas, acabaram por se tornar os preferidos.

No contexto da capilarizada2 “guerra às drogas”3, uma das imagens mais emblemáticas na busca por alguma justificação científica, repetida à exaustão pe-los movimentos proibicionistas, é a do rato engaiolado a ingerir compulsivamen-te doses de cocaína (ou heroína)4. A droga, dizem os entusiastas do experimento, é tão viciante e tão nociva que leva o animal a preferir ingeri-la até a morte em vez da opção pelo recipiente com alimento. logo, preferem a morte (droga) à vida (alimento). Toda a análise se enclausura no comportamento do rato ante a droga. Negligenciam-se as relações dele com o meio em que se insere; além dis-so, seu histórico de vida (condicionado à rotina do laboratório), por vezes, nem sequer é levado em consideração.

eis aqui nossa hipótese: os resultados obtidos por meio de ratos não de-veriam ser associados tão facilmente à complexidade da dinâmica do comporta-mento humano. Tais circunstâncias, é o que pretendemos demonstrar, compro-metem seriamente, entre outras coisas, a precisão, a consistência e a validade de teorias que são embasadas nesse tipo de pesquisa comportamental.

2 o sentido aqui é o desvelado por michel Foucault a respeito do exercício do poder punitivo. o ideário de “guerra às drogas”, assim como a ideia de necessidade (?) da punição, está disseminado não apenas entre as instâncias de controle geridas pelo estado (polícia, ministério Público, Judiciário, etc.), mas em todas as camadas da sociedade que, em sua grande maioria, demoniza o uso das drogas ditas ilegais. Devo a presente reflexão ao Professor Doutor hugo leonardo Rodrigues santos. Para aprofundar a perspectiva que nos serviu de parâmetro, recomenda-se, entre outras obras do mesmo autor: FoucAulT, michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto machado. Rio de Janeiro: Paz&Terra, 2014. 432 p.

3 Utilizaremos sempre as aspas para que fique absolutamente clara nossa ideia de que não existe, e jamais existirá, como apregoado, uma guerra contra as drogas, ou seja, contra coisas ou instrumentos quaisquer, mas contra pessoas, o que deveria nos impor limites intransponíveis em ambiente substancialmente democrático.

4 “Ratos são capazes de bater cerca de 100 a 200 vezes para obter uma dose de cocaína, por exemplo”. A dinâmica de funcionamento do modelo de autoadministração de drogas com animais não humanos pode ser encontrada em: FReese, luana; GomeZ, Rosane. Drogas de abuso. In: FuNchAl, cláudia; DANI, caroline. Neurociências – modelos experimentais em animais. Porto Alegre: eDIPucRs, 2014. p. 259 ss.

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Nesse passo, o presente estudo tem por objetivo central analisar critica-mente a utilização de pesquisas – em especial aquelas com ratos – que se desti-nam, direta ou indiretamente, a sustentar, sob o viés da cientificidade, o modelo proibicionista quanto às drogas. Também nos interessa discutir, ainda que resi-dualmente, as razões da não realização de determinados experimentos com seres humanos, que poderiam se voluntariar e participar, desde que devidamente in-formados sobre os procedimentos e seus riscos.

Desvelar, da perspectiva já apontada, as incoerências deixadas ao longo da escalada de criminalização sobre as drogas é tarefa ainda por fazer, isso ao menos em território brasileiro, razão pela qual resolvemos enfrentá-la, sem que, para tal, tenhamos de nos comprometer com o esgotamento do tema (se é que isso é possível) ou com qualquer coisa próxima disso. A metodologia se consubs-tanciará na revisão bibliográfica de trabalhos que consideramos como relevantes na sociologia, na criminologia, na Política criminal e no campo da pesquisa com animais de um modo geral.

o processo de desconstrução das verdades científicas historicamente disse-minadas a respeito das drogas deve, prioritariamente, passar pelo tipo de en-frentamento proposto, cujo percurso investigativo não se presta a atalhos, e tam-pouco a forçar conclusões. esse modelo de política pública com “derramamento de sangue”5, adotado com certo entusiasmo pelas autoridades brasileiras, que fique bem claro desde o início, não nos serve. A construção de um ambiente subs-tancialmente democrático é incompatível com o que tem sido feito nessa esfera, sobretudo quando o investigado é pobre, negro e jovem. É preciso mudar urgen-temente essa realidade. o foco, portanto, incide na exploração crítica das bases epistemológicas, das fraquezas conceituais e das vestes pseudocientíficas dessa propalada “guerra às drogas”. espera-se, com isso, ajudar a provocar uma ava-lanche de inconveniências que, ao final, vai nos levar a reconhecer, em uníssono e sem rodeios, que “o rei está nu!”

1 soBre as PesqUisas científicas: nÃo nos esqUeÇamos Do conteXto

os debates públicos sobre determinados temas têm se destacado por uma técnica argumentativa que, por vezes, é infalível por seu poder de agregar certa credibilidade: o uso indiscriminado de pesquisas (ditas) científicas. Há, na atua-lidade, uma acentuada valorização de argumentos embasados na coleta científica de dados. A marca da cientificidade, cortejada pelos envolvidos na discórdia,

5 BATIsTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro: Icc, ano 3, n. 5/6, 1998.

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parece afastar qualquer subjetividade comprometedora da validade da respos-ta. Afinal, aquilo que se defende já está – supõe-se – objetivamente provado pela ciência. A ciência é idealizada popularmente como aquele ramo do conhecimento que confere autoridade a alguém para falar com propriedade (com acerto) sobre o objeto da pesquisa.

De fato, goza o pesquisador/cientista de proeminência em uma discussão sobre o tema com o qual trabalha, mas seus argumentos não são (nem podem ser) irrefutáveis, definitivos, absolutos ou simplesmente verdades. Karl R. Popper6 tem sustentado que “as teorias científicas nunca são inteiramente justificáveis ou veri-ficáveis, mas que, não obstante, são suscetíveis de se verem submetidas a prova”, de serem, portanto, falseadas. Ilya Prigogine7, por sua vez, alerta-nos que aquilo o que pode ser submetido a controle não é nunca totalmente real, e “o que é real não pode nunca ser rigorosamente controlado”. o autor, laureado com o Nobel de Química em 1977, conclui que “vivemos o fim das certezas”. É preciso cuida-do com “experiências subjetivas”, ou seja, “um sentimento de convicção jamais pode justificar um enunciado científico”8. A convicção, aliás, “é um pensamento que parou, que se imobilizou”9.

sendo assim, merecem – as pesquisas – passar pelo teste da crítica, sobre-tudo quanto aos métodos utilizados no curso de suas realizações. É a crítica, a ir-resignação, o que impulsiona o desenvolvimento. Importa-nos, se de fato quiser-mos evoluir, a insatisfação com o status quo, a curiosidade, a vontade de descobrir novas perspectivas, de operar mudanças com vistas à melhoria da qualidade de vida das pessoas. Foi justamente esse espírito desbravador que possibilitou che-garmos até ao atual estágio de desenvolvimento10. É nesse sentido que carl hart11 constata que boa parte do que se aprende como cientista “envolve o questiona-

6 PoPPeR, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. leonidas hegenberg e octanny silveira da mota. são Paulo: cultrix, 2007. p. 46.

7 PRIGoGINe, Ilya. O fim das certezas – Tempo, caos e as leis da natureza. 2. ed. Trad. Roberto leal Ferreira. são Paulo: unesp, 2011. p. 162-3.

8 PoPPeR, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. leonidas hegenberg e octanny silveira da mota. são Paulo: cultrix, 2007. p. 48.

9 Alves, Rubem. Ostra feliz não faz pérola. são Paulo: Planeta, 2008. p. 54.10 Refiro-me aos inúmeros avanços conquistados – como, por exemplo, os de natureza médico-

-tecnológica –, apesar da criação e do incremento dos riscos inerentes a todos eles. em uma perspectiva sociológica mais aprofundada: BecK, ulrich. Sociedade de risco – Rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Trad. sebastião Nascimento. são Paulo: editora 34, 2011. 368 p.

11 hART, carl. Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Trad. clóvis marques. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 236.

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mento crítico da metodologia usada para conduzir as pesquisas e o empenho em descartar todas as possíveis manifestações de prejulgamento”. mas isso, atente--se, não garante certeza. Qualquer pesquisa, mesmo que conduzida com todos os cuidados técnicos, está vinculada a um contexto, isto é, aos paradigmas12 vigen-tes e aos interesses de quem eventualmente a patrocina. lembra-nos cynthia crossen13: “existe um antigo ditado no mundo das pesquisas: formule a pergun-ta, e você já terá uma resposta”.

Alguns dos principais teóricos da escola de Frankfurt14 constataram que uma das consequências mais problemáticas da era pós-industrial foi o avanço dos interesses dos grandes grupos econômicos sobre as diversas áreas de nossas vidas, com praticamente tudo sendo submetido ao princípio da calculabilidade, e o saber, por sua vez, reduzido à técnica e ao método, instrumentalizado em razão dos interesses daquele que é o “primeiro poder”15. Nas palavras de vera Regina Pereira de Andrade16, “o saber é sempre histórico, contextual e processual, movi-mentado pelas demandas – muitas vezes contraditórias – do contexto em que é produzido e sobre o qual exerce sua permanente ação de retorno”. Para a autora, há uma constante relação entre “saber e poder, teoria e empiria”, “resultado da interação entre sujeito e objeto de conhecimento”. essa interação não se dá de maneira completamente asséptica, imparcial ou neutra. A construção do saber científico está vinculada às vicissitudes conceituais tanto daquele que pretende conhecer (o sujeito) quanto daquele que será conhecido (o objeto).

Desse modo, algumas das escolhas do pesquisador, como, por exemplo, os métodos que serão utilizados, baseiam-se em sua visão de mundo. Por isso, pode fazer toda diferença estarmos diante de alguém que é fervoroso devoto de uma religião, afiliado de uma determinada agremiação partidária, integrante de um coletivo que radicaliza suas opiniões ou dependente econômico dos financiado-res de seu trabalho. A realização e, sobretudo, a divulgação de uma pesquisa

12 KuhN, Thomas s. A estrutura das revoluções científicas. 10. ed. Trad. Beatriz vianna Boeira e Nelson Boeira. são Paulo: Perspectiva, 2010. 264 p.

13 cRosseN, cynthia. O fundo falso das pesquisas – A ciência das verdades torcidas. Trad. Roberto Teixeira. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 9.

14 Para o presente contexto, interessa-nos a análise feita em: cARmo, Paulo sérgio do. Sociologia e sociedade pós-industrial: uma introdução. são Paulo: Paulus, 2007. p. 125-126.

15 “Na realidade, o primeiro poder é hoje claramente exercido pela economia.” (RAmoNeT, Ignacio. A tirania da comunicação. 5. ed. Trad. lúcia mathilde endlich orth. Petrópolis/RJ: vozes, 2010. p. 40)

16 ANDRADe, vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia – o controle penal para além da (des)ilusão. Florianópolis: Revan, 2012. p. 185.

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carregam consigo as marcas irrenunciáveis dos interesses de quem a realiza. mas isso, frise-se, não nos parece ser necessariamente um problema, não fulmina por completo sua (pretensão de) validade, pelo menos não quando há honestidade intelectual, com a explicitação sincera das razões para as escolhas feitas. convém sabermos: Por que este método e não aquele? Por que esta hipótese e não aquela? Por que este ponto de partida e não o outro? É justamente nessas fases que “os pesquisadores podem empurrar ou puxar um estudo para alguma direção que irá agradar ao patrocinador, sem pôr em risco sua integridade científica”17.

As tentativas de influenciar no resultado de uma pesquisa podem ocorrer de diversas formas. sutileza é geralmente a modalidade eleita pelos patrocinado-res interessados em teses isentas para propagandear seus produtos. Importa ar-regimentar especialistas sem que eles saibam quais as reais intenções18. esse tipo de investida “requer um mínimo de finesse; isso não deve ser muito ostensivo, pois os próprios especialistas não devem reconhecer que perderam sua objetivi-dade e liberdade de ação”. Há quem nutra sérias preocupações com influências desse tipo em seu trabalho. Não é nossa intenção menosprezar ou desacreditar a pesquisa científica ou seus empreendedores, longe disso – ela é sim importante e, por vezes, necessária –, mas alertar para o fato de que ela sempre será porta-dora das contingências de sua realização. Reconheça-se, porém, que esse não é propriamente um ambiente de ingênuos; em boa parte dos casos, “sem que uma palavra seja dita, os pesquisadores acadêmicos sabem qual o que irá mais facil-mente favorecer num novo contrato de pesquisa”.

Assim, o que se pretende demonstrar, por ora, é que uma pesquisa pode ser absolutamente correta para o contexto em que foi realizada, não significando dizer, portanto, que suas conclusões são de pronto universalizáveis. cabe ao crí-tico apontar os eventuais desvios. Para Karl R. Popper19, “está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa no inferir enunciados universais de enunciados singulares, independentemente de quão numerosos sejam estes”. Nessa perspectiva, “qualquer conclusão colhida desse modo sempre pode reve-lar-se falsa: independentemente de quantos casos de cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos”.

17 cRosseN, cynthia. O fundo falso das pesquisas – A ciência das verdades torcidas. Trad. Roberto Teixeira. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 28.

18 cRosseN, cynthia. O fundo falso das pesquisas – A ciência das verdades torcidas. Trad. Roberto Teixeira. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 159.

19 PoPPeR, Karl R. A lógica da pesquisa científica. Trad. leonidas hegenberg e octanny silveira da mota. são Paulo: cultrix, 2007. p. 27-28 (destaque no original).

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logo, o resultado da pesquisa carrega consigo todas as marcas de seus méto-dos e das eventuais limitações de seu próprio tempo. uma análise crítica, qualquer que seja, residirá justamente na tentativa de identificação dessas variáveis e no potencial de influência sobre o que se apresenta como resultado. No caso das pes-quisas com drogas, seria necessário questionar, por exemplo, entre outras variáveis igualmente importantes, a quantidade utilizada, o tempo de uso, se ela foi injetada, engolida ou inalada, se os que a ingeriram eram homens ou mulheres, se estavam em situação de isolamento ou não20. Tais circunstâncias, como a seguir avaliare-mos, não podem (nem devem) ser negligenciadas ou simplesmente ignoradas.

2 soBre Drogas e ratos: “meUs herÓis morreram De overDose”

em 1988, o músico Agenor de miranda Araújo Neto, o cazuza, lançava, pela Philips Records, seu terceiro trabalho solo: Ideologia. eleito o melhor álbum do ano pela crítica especializada21, sua principal música pode nos servir de pa-râmetro inicial na análise da dinâmica de demonização, na qual as drogas haviam sido inseridas. A política beligerante patrocinada pelo governo norte-americano, com especial ênfase a partir do final dos anos de 1960, tem deixado muitas baixas ao longo do caminho, quer seja pela marginalização e violenta repressão sobre a clientela de sempre (pobres, negros e jovens), quer seja pela desinformação que historicamente produz. o ideal de “guerra às drogas”, enfrentado de maneira incipiente pelos movimentos de contracultura, pode ser apontado como um dos fatores responsáveis pela morte prematura de artistas como Jim Morrison, Jimi Hendrix e Janis Joplin, o que provavelmente levou ao lamento imortalizado por cazuza em seu premiado trabalho: “meus heróis morreram de overdose”.

A utilização de animais não humanos, para fins de pesquisa científica, foi imprescindível no desenvolvimento da história humana. A cura e o estabeleci-mento de tratamento para determinadas doenças só foram possíveis mediante experimentos neles realizados. ocorre que a crescente demanda pelo reconhe-cimento dos direitos dos animais tem pressionado a busca por alternativas me-nos invasivas. De qualquer forma, a comunidade científica comprometida com a honestidade intelectual tem plena consciência de que os resultados obtidos por meio de modelos experimentais não são, como já deixamos antever, prontamente universalizáveis. Nem para todos os animais da mesma espécie utilizada22, tam-

20 hART, carl. Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Trad. clóvis marques. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 312.

21 Ganhador do Prêmio sharp de 1988.22 os ratos de laboratório, por exemplo, possuem cérebros, glândulas suprarrenais, fígados,

rins e corações menores do que os demais, tidos como selvagens (BARNeTT, s. Anthony. The

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pouco para os seres humanos. haverá sempre um complexo trabalho de aproxi-mação entre aquilo que se obteve de resposta dos animais não humanos e o que se pode aplicar aos seres humanos.

No âmbito da pesquisa com drogas, também foram celebrizados nossos pequenos roedores: mortos por overdose. como antevisto, não raramente retra-tados como heróis no ideário infantojuvenil pela indústria do entretenimento, os ratos passaram a assumir um papel de destaque no processo de capilarização da “guerra às drogas”. Afinal, dentro de cada rato branco haveria, de fato, uma resposta segura como aquela propagandeada pelos proibicionistas? s. Anthony Barnett23, que se dedicou a historiar a relação dos ratos com os seres humanos, destaca que os vários capítulos de seu trabalho descrevem achados que nos fa-zem perguntar se animais em laboratórios nos dizem algo útil sobre nossa pró-pria vida social.

convém perguntarmos: Por que os pequenos roedores, e não os seres hu-manos, como cobaias desses experimentos com drogas? “Ambos são imperfeitos”, diz-nos cynthia crossen24. Segundo a autora, camundongos ou ratos “têm fisio-logia e expectativa de vida diferentes: de 30 meses a 70 anos”. os seres humanos, por sua vez, “seriam entes perfeitos para pesquisas de saúde humana, mas ao contrário dos ratos, eles não podem ser forçados a fazer o que se espera que fa-çam, e alguns mentem a respeito disso”. E finaliza indagando: “Pergunte a mil pessoas o que elas comeram ontem, e as respostas estarão repletas de sabores daquilo que elas deveriam, poderiam ou gostariam de ter comido”.

Assim, a possibilidade de encarar protocolos ético-sociais mais flexíveis25, a alegada ausência do direito de autodeterminação26 e o atrativo custo-benefício (o

story of rats – Their impact on us, and our impact on them. sydney/Australia: Allen&unwin, 2001. p. 11 (part I, cap. 2).

23 Ibidem, p. 2 (prefácio).24 cRosseN, cynthia. O fundo falso das pesquisas – A ciência das verdades torcidas. Trad.

Roberto Teixeira. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 59.25 O que não significa dizer que não haja disciplina legal. Veja-se, por exemplo, a Lei

nº 11.794/2008, regulamentada pelo Decreto nº 6.899/2009. A propósito, historicamente discute-se a existência de um status moral nos animais não humanos. Aristóteles, Descartes, Voltaire, Hume, Locke, Kant, Bentham, entre outros, são alguns dos filósofos que se ocuparam, ao menos em parte, dessa questão. Para uma visão geral a respeito: FeIJÓ, Anamaria. A utilização de animais na investigação e docência: uma reflexão ética necessária. Porto Alegre: eDIPucRs, 2005. p. 24 ss.

26 A esse respeito, salientando pioneiramente, entre outros pontos, o desequilíbrio e as incoerências em termos de reconhecimento de direitos entre humanos e animais não humanos capazes de sofrer, recomenda-se: sINGeR, Peter. Libertação animal – o clássico

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tamanho, a capacidade relativamente fácil de aprendizagem, de procriação, de alimentação, as características genéticas aproximadas às humanas, o baixo custo de manutenção) fizeram com que os animais não humanos, sobretudo ratos, fos-sem os eleitos. No entanto, a utilização de tais animais, para que haja alguma legi-timidade na comunidade científica, precisa passar pelo crivo das chamadas cinco liberdades, endossadas pela Associação mundial de veterinária: 1) livre da fome e da sede, com pronto acesso à água e comida adequadas à espécie; 2) livre do des-conforto, com um ambiente adequado, incluindo abrigo e uma área de descan-so confortável; 3) livre de dor, injúria ou doença, por meio de prevenção ou do pronto diagnóstico e tratamento; 4) livre para expressar os seus comportamentos normais, com espaço suficiente e companhia de animais de sua espécie; 5) livre de medo e aflição, com condições e tratamento que evitem sofrimento mental27.

Apesar dos resultados com a marca da cientificidade, reverberados à exaustão pela mídia, houve quem se atrevesse a questionar os experimentos tradi-cionalmente realizados com drogas em ratos. Afinal, “o trabalho do cientista con-siste em elaborar teorias e pô-las à prova”28. Bruce K. Alexander29 foi um deles. O psicólogo canadense, ainda na década de 1970, havia desconfiado do contexto das pesquisas que enfatizavam a escolha compulsiva e mortífera assumida pelos ratos. Ao revisar os resultados propagandeados pelos proibicionistas, Bruce K. Alexander percebeu que os roedores estavam em uma gaiola vazia. estavam, portanto, sozinhos, ociosos, sem nenhum tipo de interação comunitária. eles não podiam fazer outra coisa senão se drogarem. o mesmo acontecia com experi-mentos realizados com macacos30. era preciso saber qual seria o resultado caso as condições do ambiente fossem outras.

manteve-se a opção pela droga, mas se transformou a tradicional e mo-nótona gaiola em uma espécie de parque temático, cheia de ratos, com todo tipo

definitivo sobre o movimento pelos direitos dos animais. Trad. Marly Winckler. São Paulo: WmF martins Fontes, 2010. 496 p.

27 FeIJÓ, Anamaria. A utilização de animais na investigação e docência: uma reflexão ética necessária. Porto Alegre: eDIPucRs, 2005. p. 85-86.

28 PoPPeR, Karl R. A lógica da pesquisa científica. Trad. leonidas hegenberg e octanny silveira da mota. são Paulo: cultrix, 2007. p. 31.

29 AleXANDeR, Bruce K. The globalization of addiction: a study in poverty of the spirit. oxford: oxford university Press, 2010. 496 p. e mais: AleXANDeR, Bruce K.; coAmBs, R. B.; hADAWAY, P. F. The effect of housing and gender on morphine self-administration in rats. Psychopharmacology, n. 58, p. 175-9, 1978.

30 hART, carl. Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Trad. clóvis marques. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 97 ss.

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de distração e com os melhores alimentos. o resultado prático? Nenhum deles morreu por overdose, bem como nenhum deles se tornou dependente químico. A conclusão, nessa perspectiva crítica, aparecia com toda a clareza: não é a droga, por si, que vai desencadear uma conduta nociva, mas a interação do ser que a ingeriu com o ambiente em que está inserido. As variáveis ambientais, ao menos nos reduzidos círculos em que se discutiam os experimentos do parque de ratos, ganharam um inédito protagonismo no debate.

Timothy leary31 também realizou experimentos paradigmáticos entre os anos de 1960 e 1970, só que com seres humanos. em suma, o consumo respon-sável de drogas precisaria ser aprendido, segundo o psicólogo que fez carreira em Harvard. Na visão dele, “as guerras, conflitos de classe, tensões raciais, ex-ploração econômica, brigas religiosas, ignorância e preconceito eram causados por um limitante condicionamento social”, ou seja, “os problemas políticos eram manifestações de problemas psicológicos, que basicamente pareciam ser de or-dem neurológica, hormonal e química”; logo, ajudando pessoas a ligarem deter-minados circuitos de empatia do cérebro, algumas alterações sociais positivas poderiam ocorrer. o curso regular de suas experiências demandava preparação do ambiente e dos usuários. Para ele, “com uma preparação apropriada, os vo-luntários têm menos problemas e podem controlar os medos envolvidos”.

os estímulos provenientes do ambiente precisavam ser ajustados para que se pudesse aproveitar sem traumas a experiência do consumo da droga. Ainda assim, não seriam esperados resultados completamente dissociados das condi-ções físicas e psicológicas de quem a ingeria. Aldous huxley32, tendo participado de experimentos com mescalina, é quem nos explica:

eu tinha a expectativa de me deitar e, de olhos fechados, contemplar visões de formas geométricas multicoloridas, de arquiteturas animadas crivadas de pedras preciosas e fabulosamente belas, de paisagens com figuras heroicas, de dramas simbólicos tremeluzindo perpetuamente a um passo da revelação der-radeira. mas é claro que eu não havia levado em conta as idiossincrasias da mi-nha constituição mental, os fatos do meu comportamento, da minha formação e dos meus hábitos.

e mais adiante, arremata: “Para aqueles cuja faculdade da imaginação é forte, meu mundo interior deve parecer curiosamente enfadonho, limitado e de-sinteressante. era esse o mundo – medíocre, mas meu – que eu esperava ver

31 leARY, Timothy. Flashbacks – “surfando no caos” – A história pessoal e cultural de uma era. Trad. hélio melo. são Paulo: Beca, 1999, p. 63-65.

32 huXleY, Aldous. As portas da percepção e céu e inferno. Trad. marcelo Brandão cipolla e Thiago Blumenthal. são Paulo: Biblioteca Azul, 2015. p. 14-15.

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transformado em algo completamente diferente de si mesmo”. huxley e leary, como contemporâneos, chegaram a realizar experimentos com psilocibina juntos33.

Noutra linha de raciocínio – ainda que não dissociada das já expostas –, no final da década de 1990, trabalhava o médico Gabor Maté34. sua opção por ou-vir os consumidores marginalizados apontou para uma variável: o histórico de vida. A maioria era de pessoas que haviam passado a vida a sofrer castigos e que nunca haviam tido a oportunidade de encontrar alguém disposto a escutá-los. Gabor maté o fez. A hipótese era relativamente simples: se não era a droga, por si, que desencadeava uma conduta nociva (eis seu ponto de partida), pois nem todos os consumidores tinham problemas com ela, deveria haver algo presente em algumas pessoas e não em outras que nos permitiria explicar as diferenças nos resultados dessa interação. A biografia com traços traumáticos, como, por exemplo, a presença de violência e/ou de abuso na infância, seria a chave, o elo comum entre os consumidores mais propensos ao consumo problemático.

contudo, qualquer tentativa de elaboração de políticas públicas sobre a problemática das drogas precisa respeitar os limites já expostos. As autoridades constituídas podem estabelecer linhas gerais de uma política que pretendem ver realizada, sobretudo indicando as fontes de financiamento, mas devem atentar para a necessidade de empoderamento dos destinatários dessa política. De nada adiantará o estabelecimento de medidas compulsórias – portanto, autoritárias –, como, por exemplo, a internação. Tais medidas estão fadadas ao fracasso, já que, apesar das razões aparentemente nobres, continuam a reproduzir a estig-matização e a violência institucional, ambas usuais em terrae brasilis quando o assunto é o consumo de drogas ilegais35. o fato é que as teorias farmacológicas mais difundidas, obtidas durante vários anos por meio do uso de animais não humanos, convenientes ao proibicionismo, a partir das experiências sociais que sucintamente relacionamos, eram colocadas em xeque36.

33 leARY, Timothy. Flashbacks – “surfando no caos” – A história pessoal e cultural de uma era. Trad. hélio melo. são Paulo: Beca, 1999. p. 54.

34 mATÉ, Gabor. In the Realm of Hungry Ghosts: close encounters with addiction. Berkeley: North Atlantic Books, 2010. 495 p.

35 WINTeR, Gustavo schlupp. A internação compulsória de dependentes de drogas – Do mito da defesa social e ajuda compulsória à violência e exclusão social. Florianópolis: empório do Direito, 2017. 82 p.

36 uma análise crítica mais detida do impacto (midiaticamente quase nulo) desses experi-mentos (tanto o de Bruce K. Alexandre quanto o de Gabor maté) no ideário de “guerra às drogas” pode ser vista, especialmente, nos capítulos 12 e 13, em: hARI, Johann. Tras el grito

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contemporaneamente, retomando as críticas de Bruce K. Alexander, carl hart37 insiste:

Naturalmente você já ouviu falar de estudos nos quais ratos ou até primatas continuamente pressionavam alavancas para conseguir cocaína, heroína ou metanfetamina até morrer, optando antes pelas drogas que por comida e água. mas o que você decerto não sabe é que esses animais eram mantidos, a maior parte da vida, em ambientes isolados e nada naturais, e costumavam se tornar estressados, sem contatos sociais e sem nada para fazer.

e adverte:Se você estivesse em confinamento solitário durante anos, com um filme como entretenimento, é provável que visse esse filme várias e várias vezes. Mas isso não significaria necessariamente que o filme fosse especificamente “viciante”, ou que merecesse ser visto de maneira compulsiva. você continuaria a vê-lo ainda que fosse o pior filme do mundo, simplesmente para ter algo a fazer. As-sim, dizer que o acesso ilimitado à cocaína “torna” os animais viciados a ponto de se matar, com pesquisas como essas, não nos diz grande coisa a respeito da utilização de drogas no mundo real.

Percebe-se, portanto, que os roedores (bem como os demais animais não humanos), com todas as contingências que os diferenciam dos seres humanos e em condições muito distantes das complexidades da dinâmica social contem-porânea, não devem servir de parâmetro absolutamente confiável nesse debate. mesmo a qualidade da pesquisa com animais não humanos depende do moni-toramento de uma série de fatores ambientais, entre os quais: a umidade, a tem-peratura, a iluminação, os ruídos, os materiais das camas, o tamanho da gaiola, a cor, o odor, entre outros38. Atuar na diminuição do desconforto, evitando estresse e dor, proporcionará “resultados mais confiáveis e estudos científicos de qualida-de superior”39. Ademais, quanto mais se administra uma droga em animais como

– un relato revolucionario y sorprendente sobre la verdadera historia de la guerra contra las drogas. Trad. maria Jose viejo Perez. Barcelona: Paidós, 2015. 448 p.

37 hART, carl. Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Trad. clóvis marques. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 99.

38 FeIJÓ, Anamaria. A utilização de animais na investigação e docência: uma reflexão ética necessária. Porto Alegre: eDIPucRs, 2005. p. 86. Também: FReese, luana; GomeZ, Rosane. Drogas de abuso. In: FuNchAl, cláudia; DANI, caroline. Neurociências – modelos experimentais em animais. Porto Alegre: eDIPucRs, 2014. p. 257.

39 ANDRADes, michael; GeRsoN, simone. legislação referente à pesquisa com animais. In: FuNchAl, cláudia; DANI, caroline. Neurociências – modelos experimentais em animais. Porto Alegre: eDIPucRs, 2014. p. 17.

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os ratos, mais eles tendem a se tornar tolerantes aos seus efeitos, o que demanda-rá uma dose mais alta para gerar a reação inicial. Tal dinâmica não é necessaria-mente a mesma no caso do ser humano, o que levou carl hart40 a observar que, “para descobrir o que realmente queria saber a respeito do uso de drogas, teria de estudá-lo muito atentamente em seres humanos”.

É de se concluir, pelo que até aqui já expusemos, que o comportamento daqueles que ingerem a droga (qualquer que seja ela), mesmo que em modelos experimentais, depende de um número considerável de variáveis, não simples-mente da interação de seu princípio ativo com o cérebro. o ambiente, o estado psicológico do consumidor, a sua idade, o seu sexo (ou gênero), o seu nível de sensibilidade, o seu histórico de vida, as suas condições físicas, a dosagem, o nível de pureza da droga, etc., devem igualmente importar. Ainda assim, é pos-sível desconfiar, pois “nada é certo no que concerne às pessoas: sua altura muda durante o dia, seus hormônios, conforme a estação do ano. seus corpos e mentes são únicos e inconstantes”41.

se estivéssemos preparados (ou minimamente abertos) para compreender toda essa complexidade que cerca o consumo de drogas, se, desde o início, tivés-semos um debate honesto intelectualmente, rico em informação, sem dissemi-nação de pânico, sem marginalização nem estigmatização social – ou seja, tudo o que o ideário de “guerra às drogas” nos impede de ter –, certamente teríamos evitado o massacre historicamente direcionado a pobres, negros e, principal-mente, jovens nessa dinâmica bélica usual. e mais: não fosse essa atmosfera de desinformação, muito mais aguda há época, talvez ainda pudéssemos desfrutar alguns anos mais da genialidade artística de Morrison, Hendrix e Joplin, entre ou-tros, o que obrigaria cazuza a mudar a letra de sua música. em vez de destacar a overdose, poderia ele ter optado por dizer que seus heróis, conscientes e bem informados, consumiam sem problemas.

40 hART, carl. Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Trad. clóvis marques. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 246.

41 cRosseN, cynthia. O fundo falso das pesquisas – A ciência das verdades torcidas. Trad. Roberto Teixeira. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 14. e ainda: “em suma, a condição humana é uma confusão endêmica radicada nos processos evolutivos que nos criaram. o pior na nossa natureza coexiste com o melhor, e assim sempre será” (WIlsoN, edward o. A conquista social da terra. Trad. Ivo Korytovski. são Paulo: companhia das letras, 2013. p. 75).

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3 a constrUÇÃo Das verDaDes científicas soBre a “gUerra às Drogas”

os experimentos de Bruce K. Alexander passaram longe, muito longe, de ganhar a mesma projeção midiática que o original contraposto. De início, sobre a participação da mídia nesse processo de “naturalização” de determinados temas, convém a análise de marcus Alan de melo Gomes42. Dirá ele: “o público tem acesso a uma realidade de segunda mão, filtrada e construída pelos jornalistas, que dirigem a atenção das pessoas para assuntos específicos, e por razões que vão desde conveniências de mercado até conflitos de interesses entre grupos de comunicação e de poder político ou econômico”. os veículos de comunicação, segundo o autor, ajudam a construir um consenso e inibem a contestação da “or-dem social para a qual eles mesmos contribuem”. Não é difícil perceber que a agenda de boa parte das pessoas é organizada conforme a programação da tele-visão43.

há, portanto, interesses, quase sempre escamoteados, na formação de um ambiente acrítico, livre de obstáculos à manutenção e à expansão de determi-nados poderes. Por que as evidências encontradas por Bruce, Gabor e Timothy não reverberaram com a mesma intensidade que aquelas destinadas a legitimar as políticas públicas de “guerra às drogas”? Por que seus estudos foram margi-nalizados, até mesmo no ambiente acadêmico? carl hart, Johann hari, cynthia crossen, entre outros, conforme veremos adiante, dão-nos algumas pistas.

É de nos questionarmos: há lucro com a paz? Por certo que sim. No en-tanto, há muito mais lucro com a guerra44, sobretudo quando seus artífices se utilizam da retórica democrática para mantê-la em níveis administráveis. No que

42 Gomes, marcus Alan de melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 63-64.

43 BecK, ulrich. Sociedade de risco – Rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Trad. sebastião Nascimento. são Paulo: editora 34, 2011. p. 197.

44 “em um mercado livre qualquer – peguemos as batatas, ou carne, por exemplo – existem milhares de importadores e exportadores. Qualquer um pode entrar nestes negócios. mas é muito difícil para um indivíduo entrar para o negócio da importação de drogas porque os esforços de intervenção do governo elevam muito os custos dessa atividade. então, as únicas pessoas que conseguem sobreviver nesse negócio são os grandes cartéis como o de Medellín, que têm dinheiro suficiente para adquirir frotas inteiras de aviões, usar de outros métodos sofisticados e por aí vai. Além disso, mantendo esses produtos fora e prendendo, digamos, plantadores locais de maconha, o governo mantém o preço desses produtos alto. o que mais um monopolista pode querer?” (FRIeDmAN, milton. Disponível em: <https: //www.youtube.com/watch?v=-shwabBmeXQ>. Acesso em: 25 dez. 2015)

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mais um ideário de guerra pode ser útil? Na manutenção de um ambiente de pânico, de medo constante de vitimização, o que facilita a anuência coletiva pela implantação de medidas essencialmente autoritárias. em nome do bem comum, da felicidade geral da nação, do são sentimento do povo, perder um pouco de nossas garantias constitucionais seria justificável. No processo de naturalização dessas perdas, os veículos de comunicação de massa são ferramentas imprescindíveis.

A obra de ulrich Beck45, que se debruça sobre a criação e o incremento dos riscos na sociedade contemporânea, ajuda-nos na empreitada proposta, senão vejamos:

Todas as decisões tomadas no quadro da produção de conhecimentos sobre riscos e ameaças civilizacionais jamais consistem em meras decisões sobre o conteúdo do conhecimento (questionamentos, hipóteses, mediações, métodos, limites máximos etc.), mas também, concomitantemente, em decisões sobre sus-cetibilidades: sobre alcance, tipo e teor de ameaça, círculo de pessoas afetadas, efeitos retardados, medidas a tomar, responsáveis, demandas de reparação.

Já nos é permitido afirmar que a divulgação de uma notícia não acontece à toa. ela não é escolhida aleatoriamente ou por força do simples dever de informar. Os conglomerados midiáticos, aliás, convém não perdermos de vista, “figuram entre as trezentas maiores empresas não financeiras do mundo e dominam os ramos de informação e entretenimento, com participações cruzadas em negócios de telecomunicações, informática e audiovisual”46.

Não à toa, atentos a esse poder de (re)construção da realidade, os gran-des grupos econômicos imiscuem-se dedicadamente nas empresas de comuni-cação, ora financiando programas, ora adquirindo quotas de propaganda ou até de constituição das referidas empresas. É preciso defender seus interesses. Nada aquém de lucro (financeiro e, sobretudo, político, o que corresponde ao precioso poder de articular o sistema mais diretamente). Neste contexto, cumpre-nos in-dagar: É de se esperar que uma pesquisa (dita) científica apontando para a pre-sença de substâncias altamente cancerígenas em um produto muito consumido seja divulgada com pompa no horário nobre dos principais telejornais do país? É certo que sim, pois isso despertaria a audiência. mas, e se aquele produto fosse

45 BecK, ulrich. Sociedade de risco – Rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Trad. sebastião Nascimento. são Paulo: editora 34, 2011. p. 65.

46 moRAes, Dênis; RAmoNeT, Ignacio; seRRANo, Pascual. Mídia, poder e contrapoder – Da concentração monopólica à democratização da informação. são Paulo: Boitempo, 2013. p. 46-47. Também: hAlImI, serge. Os novos cães de guarda. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis/RJ: vozes, 1998. 150 p.; RAmoNeT, Ignacio. A tirania da comunicação. 5. ed. Trad. lúcia mathilde endlich orth. Petrópolis/RJ: vozes, 2010. 144 p.

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fabricado e comercializado justamente pela empresa que detém a maior quota de propaganda das redes de televisão do País? e mais: e se a divulgação tivesse o potencial de provocar uma verdadeira catástrofe econômica a ambos os lados (a produtora e a propagadora do produto)? eis o problema.

Quase todos os fundos disponíveis à realização de pesquisas com drogas provêm de governos que participam entusiasticamente da “guerra às drogas”. o Instituto Nacional sobre o Abuso de Drogas, cuja sigla em inglês é NIDA, é o responsável por protagonizar a conscientização da população norte-americana – e, por tabela, de boa parte do mundo – quanto à importância dos conhecimentos científicos em relação ao vício e ao abuso de drogas. Carl Hart47 afirma que “os cientistas que solicitam verbas ao Nida sabem perfeitamente que devem enfati-zar os danos provocados pelas drogas para obter financiamento”. Mais de 90% das investigações sobre drogas pelo mundo são patrocinadas pelo órgão, o que significa “que a esmagadora maioria das informações sobre o tema, publicadas na literatura científica, nos manuais e na imprensa popular, tende a enfatizar os aspectos negativos”.

A propaganda, como se percebe, é amplamente favorável ao proibicionis-mo e, em ainda maior medida, favorável à manutenção do status de guerra contra os traficantes/inimigos. Receosas, por conta da pecha da anormalidade, as pes-soas, de um modo geral, acabam por aderir ao senso comum já instalado. marcia Tiburi48 descreve o senso comum como “aquele território simbólico-prático em que certas verdades são estabelecidas, orientando o pensamento possível até a elimi-nação de toda crítica”. Prevenindo-se da marginalização por qualquer tentativa de construção de um pensamento contra-hegemônico (logo, essencialmente críti-co), boa parte das pessoas tem preferido não se indispor contra as verdades cientí-ficas postas pelas autoridades, aderindo acriticamente a elas. segundo o provérbio francês, a lógica seria a de que “todo mundo sabe mais que qualquer um”49.

luciano oliveira50, em opúsculo sobre a insistente prática da tortura em terrae brasilis, lembra-nos do experimento realizado pelo psicólogo social stanley milgram sobre obediência à autoridade. voluntários eram instruídos à adminis-

47 hART, carl. Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Trad. clóvis marques. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 292.

48 TIBuRI, marcia; DIAs, Andréa costa. Sociedade fissurada – Para pensar as drogas e a banalidade do vício. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2013. p. 174.

49 cRosseN, cynthia. O fundo falso das pesquisas – A ciência das verdades torcidas. Trad. Roberto Teixeira. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 26.

50 olIveIRA, luciano. Do nunca mais ao eterno retorno – Uma reflexão sobre a tortura. São Paulo: Brasiliense, 2009. p. 111-112.

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tração de choques elétricos contra pessoas (atores contratados) que forneciam respostas erradas aos questionamentos realizados. conforme os erros ocorriam, a intensidade dos choques aumentava, assim como os gritos de dor e as con-torções. Quando os voluntários que liberavam os choques hesitavam, cogitando atender aos pedidos de clemência, o psicólogo responsável pelo experimento os tranquilizava, alegando que tudo estava bem e que seria necessário prosseguir, o que era feito pela maioria. Em resumo, tinham dificuldades em desobedecer ou a contrariar figuras de autoridade, entre outros motivos, por conta da ridiculari-zação.

É conveniente direcionar o financiamento das pesquisas para a relação (química) da droga com o cérebro, negligenciando-se todas as demais varáveis nesse processo51. Isso, por certo, ajuda a manter o status quo. carl hart52 dirá que “é a interação entre a biologia (os efeitos das drogas no cérebro) e o ambiente que determina os efeitos das drogas no comportamento humano”; e conclui que “as tentativas de caracterizar os efeitos das drogas no comportamento humano ex-clusivamente pelo exame do cérebro depois da administração de uma substância são inadequadas e ingênuas”. logo, as drogas, apesar de seus efeitos no cérebro humano, como demonstraram Bruce, Gabor e Timothy, não podem ser aponta-das categoricamente como “a” causa de um eventual comportamento problemá-tico do indivíduo. No entanto, não há vontade política para permitir que haja uma abertura crítica relevante na elaboração das principais políticas públicas a respeito.

Manter o ambiente de desconfiança sobre o “outro”, difundindo medo e insegurança, tem sua funcionalidade53. Possibilitar uma abertura crítica nesse ambiente significaria uma ameaça intolerável ao lucro e, principalmente, ao exer-cício desembaraçado do poder político. Aos que se contrapõem direciona-se uma espécie de processo de inimificação54, que pode ser articulado em variados níveis. No caso de Bruce K. Alexander, logo que a universidade constatou os rumos

51 hARI, Johann. Tras el grito – un relato revolucionario y sorprendente sobre la verdadera historia de la guerra contra las drogas. Trad. maria Jose viejo Perez. Barcelona: Paidós, 2015. p. 34 (cap. 13).

52 hART, carl. Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Trad. clóvis marques. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 203.

53 veja-se a perspectiva que nos interessa em: BAumAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Trad. eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 94 p.

54 Ainda que em outro contexto, a referência que utilizamos se deve ao processo estudado em: soARes Do Bem, Arim. Paradoxos da diferença – Etnicidade, inimificação e reconhecimento (Alemanha-Brasil). curitiba: Appris, 2013. 210 p.

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(nitidamente contra-hegemônicos) que tomavam seus experimentos, suas verbas foram cortadas55. A história de Gabor maté e seus experimentos sociais passaram quase despercebidos. Foram praticamente ignorados. Timothy leary, apesar da carreira acadêmica bem-sucedida, acabou perseguido pelas autoridades norte--americanas56.

os preconceitos também tinham (e ainda têm) sua utilidade. mexicanos, chineses e, principalmente, negros figuraram como os alvos preferenciais na construção de um ideário negativo sobre as drogas57. A propósito, a articulação e o fortalecimento do movimento negro, não nos custa lembrar, constituem um dos capítulos mais dramáticos e significativos da história americana58. Não é por acaso que ainda hoje há sérios problemas raciais em diversas regiões do país. A história de Billie holiday59, por exemplo, é emblemática no que diz respeito ao binômio drogas/preconceito. sua ascensão e seu reconhecimento como cantora de sucesso, a partir dos anos de 1930, não foram suficientes para impedir que fosse perseguida tanto por conta da cor de sua pele quanto por conta do consumo de drogas.

Ainda hoje, rótulos recheados de preconceito, além de muita desinfor-mação e estímulo ao “pânico moral”60, embalam expressões como traficantes e viciados, que obstaculizam o senso crítico, para que o sistema consiga cumprir de-sembaraçadamente sua missão de assepsia na manutenção da lei e da ordem. Não à

55 hARI, Johann. Tras el grito – un relato revolucionario y sorprendente sobre la verdadera historia de la guerra contra las drogas. Trad. maria Jose viejo Perez. Barcelona: Paidós, 2015. p. 36 (cap. 13).

56 leARY, Timothy. Flashbacks – “surfando no caos” – A história pessoal e cultural de uma era. Trad. hélio melo. são Paulo: Beca, 1999.

57 hARI, Johann. Tras el grito – un relato revolucionario y sorprendente sobre la verdadera historia de la guerra contra las drogas. Trad. maria Jose viejo Perez. Barcelona: Paidós, 2015. 448 p.

58 Para uma melhor compreensão, são representativas as seguintes obras: mARABle, manning. Malcolm X – uma vida de reinvenções. Trad. Berilo vargas. são Paulo: companhia das letras, 2013. 642 p.; cARsoN, clayborne (org.). A autobiografia de Martin Luther King. Trad. carlos Alberto medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 466 p. e mais: WAcQuANT, löic. As duas faces do gueto. Trad. Paulo cezar castanheira. são Paulo: Boitempo, 2008. 160 p.

59 holIDAY, Billie. Lady sings the blues – A autobiografia dilacerada de uma lenda do jazz. Trad. Roberto muggiati. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 240 p.

60 ZAFFARoNI, eugenio Raúl. A palavra dos mortos – conferências de criminologia cautelar. Trad. Alice Bianchini e luiz Flávio Gomes. são Paulo: saraiva, 2012, p. 377 ss.

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toa, viu-se no Brasil a desproporcional equiparação em hediondez61 do comércio ilegal de drogas (mesmo como expressão da vontade livre, consciente e infor-mada entre pessoas maiores e plenamente capazes) com as práticas de tortura e de terrorismo. A comercialização ilegal de drogas (art. 33)62 tem pena mais grave que a de pessoas (art. 231)63, mesmo quando esta última se dá com o emprego de violência. o ser humano, nesse tipo de sistema, parece não ser mais o centro das atenções. Tudo para atender aos postulados ideológicos da “guerra às drogas”. Adverte-nos vera malaguti Batista64: “Nossa perspectiva é oswaldianamente an-tropofágica: como recebemos e digerimos as teorias do centro hegemônico”. Não é coerência o que se busca, mas votos65.

A construção da linguagem – a determinação e/ou indução de significa-dos – a respeito do tema exerce também seu papel de influência na manutenção de um ambiente acrítico. A mídia inegavelmente tem se mobilizado nesse senti-do, seja por ingenuidade, seja por má-fé. marcus Alan de melo Gomes66 descreve essa dinâmica da seguinte forma: “o manipulador emprega expressões e esque-mas mentais de grande poder sugestivo para o público”. Referindo-se à carga semântica comumente atribuída pelos meios de comunicação a expressões como narcotráfico, o autor destaca que “é um vocábulo cujo sentido remete às drogas como um problema exclusivamente policial, de repressão ao crime organizado, e que anula todo o significado social da questão e de como se deve analisar o uso de entorpecentes no contexto das políticas de saúde”. e conclui:

o público é levado a pensar – e, de fato, acaba por assim fazer – que o tema drogas se restringe ao tráfico; que este representa uma ameaça perturbadora da

61 BRAsIl. lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do artigo 5º, inciso XlIII, da constituição Federal, e determina outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 26 jul. 1990.

62 BRAsIl. lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 24 ago. 2006.

63 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de setembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 31 dez. 1940.

64 BATIsTA, vera malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p. 17.

65 Gomes, luiz Flávio; GAZoTo, luís Wanderley. Populismo penal legislativo – A tragédia que não assusta as sociedades de massas. salvador: JusPodivm, 2016. 336 p.

66 os grifos a seguir estão no original: Gomes, marcus Alan de melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 73-74.

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segurança pública; que a solução para o problema é uma declaração de guerra ao traficante, que, por sua vez, deve ser caçado pela polícia, pois é uma verdadeira chaga social.

Dessacralizar os postulados ora vigentes quanto à problemática das dro-gas é providência que exige atuação de elevado grau de complexidade em várias frentes. Avessa, portanto, às objetividades historicamente propostas. um discur-so crítico, como o que pretendemos incentivar, sobretudo na esfera da juridicida-de, é o que nos diz luís Alberto Warat67, exige, à partida, “substituição do controle conceitual pela compreensão do sistema de significações”, e a “introdução da temática do poder como forma de explicação do poder social das significações, proclamadas científicas”.

Não há alternativa à vista – se de fato quisermos um ambiente substan-cialmente democrático – se não investirmos criticamente, como assevera Juarez cirino dos santos68, contra o véu da seletiva “‘indignação moral’ promovida pela ação oficial e pelos meios de comunicação de massa”. Mas, atenção (!), que isso não sirva para justificar a utilização dos mesmos procedimentos contra todas as pessoas de maneira indistinta. Não é disso que falamos. Percebe-se que, diante das críticas contra a flagrante seletividade, o sistema criminal, em vez de mudar sua abordagem marcadamente autoritária, tem se insurgido (ainda que simboli-camente) contra integrantes das classes sociais mais abastadas. esse tipo de pos-tura é o que nos tem permitido, por exemplo, a dinâmica nietzschiana do “eterno retorno”69, o que não nos permitirá uma necessária viragem valorativa, do auto-ritário para o essencialmente democrático.

consiDeraÇÕes finais

o ideário de “guerra às drogas”, outrora amparado apenas em postula-dos morais, fomentou a estruturação de uma indústria de pesquisas que acabou por garantir-lhe certa legitimidade no plano social. os resultados de experimentos com animais não humanos, muito especialmente com ratos, serviram para insti-lar com significativa eficiência a sensação de necessidade de uma política de cunho beligerante. Não havia espaço para tergiversação na lida com as drogas. o mal do século precisava ser combatido sem pudores, especialmente contra pobres, ne-gros e jovens. A partir de então, as políticas públicas a respeito foram elaboradas

67 WARAT, luís Alberto. saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Seqüência – estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 3, n. 5, p. 48-57, 1982.

68 sANTos, Juarez cirino. A criminologia radical. 2. ed. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2006. p. 17.69 em sentido aproximado às articulações feitas: olIveIRA, luciano. Do nunca mais ao eterno

retorno – Uma reflexão sobre a tortura. São Paulo: Brasiliense, 2009.

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no vigor de uma guerra, e, como em toda guerra, baixas eram admissíveis (para não dizermos incentivadas).

Percorremos um caminho tortuoso, repleto de falsas premissas e ainda muito orientado por um senso comum agressivo que se regozija das verdades cien-tíficas patrocinadas pelos que lucram com a guerra ora em curso. Como fizemos questão de frisar ao longo do trabalho, pesquisas (ditas) científicas podem e de-vem se submeter às investidas de viés crítico. elas não são irrefutáveis. seus obje-tivos e, por consequência, suas hipóteses e seus métodos precisam permanecer à mostra do início ao fim do experimento proposto. Quando não há transparência, e tampouco disposição para o contraditório, pelo simples fato de já restar provado cientificamente (o velho argumento de autoridade), incumbe-nos a desconfiança.

Bruce K. Alexander, Gabor maté e Timothy leary foram alguns dos que se insurgiram academicamente contra os rumos que as pesquisas (ditas) científi-cas sobre drogas haviam tomado. A utilização de ratos de laboratório, tal como procuramos demonstrar, não nos deve servir de parâmetro nesse debate. A dinâ-mica a que nós, seres humanos, estamos submetidos é completamente diferente daquela proporcionada aos animais não humanos, destinatários de experimen-tos controlados. As consequências do consumo de droga, seja essa lícita ou não, estão vinculadas a inúmeras variáveis; boa parte delas escapa da capacidade de controle e de domínio dos cientistas laboratoriais. A pesquisa em laboratório, quando pautada pela honestidade intelectual, tem sua importância e seu peso, mas ela sempre estará vinculada a um contexto.

É certo que hoje parece haver muito mais espaço para o contraditório, o que não quer dizer que ele seja efetivamente exercido. o surgimento das redes sociais, sem dúvida, viabilizou a reunião de pessoas e ideias que não necessaria-mente precisam passar pelo crivo das grandes e influentes redes de comunicação para que reverberem70. Na mesma medida em que há uma já consolidada rede de informação, há também uma rede de contrainformação disponível a praticamen-te todos os que se conectam. se pesquisas como aquela com ratos, que “optam” pela morte, fossem agora divulgadas, teríamos condições mais favoráveis para refutá-las, o que tornaria mais difícil sua consolidação como verdade científica. Nosso papel, agora – para que não se pense que não nos familiarizamos com expressões do “senso comum”71 –, é, digamos, correr atrás do prejuízo.

70 cAsTells, manuel. Redes de indignação e esperança – movimentos sociais na era da Internet. Trad. carlos Alberto medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 276 p.

71 sANTos, Boaventura de sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 8. ed. são Paulo: cortez, 2011. 415 p.

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“making a DrUg DeaLer”: o imPacto Dos DePoimentos PoLiciais e os

efeitos Da súmULa nº 70 Do tJrJ na constrUÇÃo Do caso rafaeL Braga

“making a DrUg DeaLer”: the imPact of PoLice testimonies anD JUDiciaL PreceDents on the

DeveLoPment of rafaeL Braga’s casesalo de caRValho*

MaRiana de assis BRasil e WeigeRt**

* Professor Adjunto de Direito Penal, Departamento de Direito do estado, Faculdade Nacional de Direito (uFRJ), mestre (uFsc) e Doutor (uFPR) em Direito, Pós-Doutor em Direito Penal (Un. Bolonha), Criminologia (Un. Pompeu Fabra, Barcelona) e Filosofia Política (PUCRS).

** Professora substituta de Direito Penal, Departamento de Direito do estado, Faculdade Nacional de Direito (uFRJ), mestre em criminologia (un. Autônoma de Barcelona) e em ciências criminais (PucRs) e Doutora em Psicologia social (uFRGs).

Resumo: A partir da análise da sentença penal que condenou Rafael Braga pelos crimes de tráfico de drogas e de associação ao trá-fico, o artigo problematiza, em primeiro lugar, os requisitos gerais de validade para aplicação da súmula nº 70 do TJRJ, que versa sobre a admissibilidade de condenação criminal com base exclusivamente em depoimentos policiais; e, em segundo, a qualidade do argumen-to judicial e a sua (des)conformidade com os pressupostos legal e constitucional para valoração da prova no processo penal.PALAVRAS-CHAVE: Tráfico de drogas; depoimento policial; pro-va; política criminal; Rafael Braga.ABsTRAcT: Through the analysis of the criminal decision that con-demned Rafael Braga for the crimes of drug trafficking and associa-tion with trafficking, this article analyses (a) the validity of general requirements for the application of the judicial precedents which considers the admissibility of criminal conviction based solely on police testimony, and (b) the quality of the judicial argument and its compliance or not with legal and constitutional requirements to assess evidence in criminal procedure.

cARvAlho, salo de; BRAsIl e WeIGeRT, mariana de Assis. “making a drug dealer”: o impacto dos depoimentos policiais e os efeitos da súmula nº 70 do TJRJ na construção do caso

Rafel Braga. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 68, p. 45-77, 2018.

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KEYWORDS: Drug trafficking; police testimony; evidence; criminal policy; Rafael Braga.sumÁRIo: Introdução; 1 A imputação e o juízo de tipicidade: a de-núncia e os fundamentos da condenação de Rafael Braga; 2 conde-nação fundada exclusivamente nos depoimentos dos policiais mili-tares. súmula nº 70 do TJRJ: argumento de sustentação da decisão; Considerações finais; Referências.

introDUÇÃo

1. o presente artigo reproduz, praticamente na íntegra, a primeira parte do parecer que elaboramos sobre o juízo de imputação na sentença condenatória proferida contra Rafael Braga no Processo criminal nº 0008566-71.2016.8.19.0001, da 39ª vara criminal da comarca do Rio de Janeiro1. o parecer foi redigido após consulta formulada pelos Advogados carlos eduardo cunha martins silva, ednardo mota de oliveira santos, João henrique de castro Tristão soares e lucas da silveira sada, que atuam na defesa de Rafael Braga vieira (Rafael Braga) por meio do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (IDDH).

Rafael Braga foi denunciado como incurso nos tipos penais dos arts. 33 e 35 da lei nº 11.343/2006, na forma do art. 69 do código Penal. A sentença julgou procedente a pretensão punitiva e condenou o réu, em 20.04.2017, às penas de 11 (onze) anos e 3 (três) meses de reclusão e ao pagamento de 1.687 (um mil seiscen-tos e oitenta e sete) dias-multa.

A consulta formulada pelo IDDh foi delimitada nas implicações da deci-são nos campos do direito penal e processual penal e referiu (primeiro) os requi-sitos de validade para a aplicação da Súmula nº 70 do TJRJ (“o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desauto-riza a condenação”); e (segundo) os critérios de imputação e ao juízo de tipicidade dos arts. 33 e 35 da Lei nº 11.343/2006.

o estudo é relativo, portanto, ao primeiro problema apresentado, mate-rializado em duas questões específicas, cujas respostas serão apresentadas em forma de conclusão: (primeira) Quais os pressupostos de validade para a aplicação da Súmula nº 70 do TJRJ?; (segunda) No caso concreto (sentença condenatória de Rafael Braga), a aplicação da Súmula nº 70 do TJRJ respeitou os pressupostos legal e constitu-cional de validade da prova?

1 Agradecemos a mestranda Renata saggioro Davis (ueRJ), pela pesquisa jurisprudencial, e a acadêmica mariana Ferreira (uFRJ), pela organização inicial da pauta de trabalho e pelos primeiros contatos com os advogados do Instituto de Defensores de Direitos humanos (IDDh).

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1 a imPUtaÇÃo e o JUízo De tiPiciDaDe: a Denúncia e os fUnDamentos Da conDenaÇÃo De rafaeL Braga

2. Rafael Braga foi denunciado pelo ministério Público do Rio de Janeiro como incurso no art. 33 da lei de Drogas, porque, em 12 de janeiro de 2016, por volta das 9 horas, na Rua 29, no interior da comunidade vila cruzeiro, complexo do Alemão,

com consciência e vontade, trazia consigo, com finalidade de tráfico, 0,6g (seis decigramas) da substância entorpecente cannabis sativa l., acondicionados em uma embalagem plástica fechada por nó, bem como 9,3g (nove gramas e três decigramas) de cocaína (pó), distribuídos em 06 cápsulas plásticas in-colores e 02 embalagens plásticas fechadas por grampo, contendo a inscrição “cv-Rl/PÓ 3/comPleXo DA PeNhA”, tudo sem autorização e em desa-cordo com determinação legal e regulamentar.2

Narra a denúncia que, nas mesmas condições de tempo, lugar e forma de agir, igualmente agindo com consciência e vontade, Rafael Braga estaria “[...] associado a outros indivíduos não identificados, todos subordinados à facção cri-minosa que domina o tráfico de drogas na comunidade, para o fim de praticar, reiteradamente, o crime previsto no art. 33 da lei nº 11.343/2006”3, delito previs-to no art. 35 da lei de Drogas.

conforme a narrativa apresentada pela acusação, Policiais militares da 7ª uPP do 16º Batalhão da PmeRJ, em operação no interior da comunidade, foram informados por um morador de que um homem estaria “portando entorpecente com a intenção de comercializá-lo” (fls. 01 da sentença). Assim, ao realizarem di-ligência ao local, “os agentes visualizaram o denunciado Rafael Braga vieira em poder de uma sacola de conteúdo suspeito”, e que “[...] ao perceber a presença dos agentes da lei, o denunciado tentou se desfazer do material, arremessando a referida sacola ao solo”4. Na sacola teriam sido apreendidos a droga referida e um morteiro.

Instruíram o processo os autos de apreensão e os laudos (prévio e defi-nitivo) da droga e do morteiro. Na instrução judicial, foram ouvidas 2 (duas) testemunhas arroladas pela acusação, 2 (duas) testemunhas referidas e 1 (uma) testemunha de defesa.

2 TJRJ, Processo criminal nº 0008566-71.2016.8.19.0001, 39ª vara criminal da comarca do Rio de Janeiro, Sentença Condenatória, fl. 01.

3 Idem, fl. 02.4 Idem, fl. 01.

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3. Após as alegações da acusação e da defesa, o julgador proferiu sentença, condenando Rafael Braga nos termos da denúncia. Na análise do mérito, funda-mentou o juízo condenatório nas premissas que seguem.

imputação do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006

Tipicidade objetiva (materialidade): (a) laudos toxicológicos – atestado de ser a substância apreendida droga ilícita; (b) prova testemunhal – depoimento dos policiais do 16º BPmeRJ; (c) acondicionamento da droga – embalagens apreendi-das que continham a inscrição “cv” (“comando vermelho”), sendo de conheci-mento geral que aquela localidade seria dominada pelo “comando vermelho”; (d) acondicionamento da droga (segue) – substâncias entorpecentes encontravam-se fracionadas, o que indicaria estarem prontas para mercancia; e (e) local – ponto de venda conhecido.

entrelaçando os argumentos, conclui o magistrado que “por consequên-cia, levando-se em conta a quantidade de droga apreendida, forma de acondi-cionamento e local da apreensão, resta inquestionável que a substância entorpe-cente destinava-se a traficância, portanto, não tenho qualquer dúvida quanto à adequação do fato ao tipo penal previsto no art. 33 da lei de Tóxicos”5.

Tipicidade subjetiva (dolo)

extraída das demais provas de corroboração da tipicidade objetiva: “Dolo-sa, assim, a conduta do agente, eis que subjetivamente se conduziu a vulnerar o art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, visto que trazia consigo, para fins de mercan-cia, sem autorização legal ou regulamentar, as drogas descritas na denúncia”6.

Autoria

(a) Prisão em flagrante; (b) depoimentos policiais: narrativa apresentada pelos policiais do 16º BPMERJ, que realizaram o flagrante, versões consideradas har-mônicas; (c) depoimento da testemunha de defesa: apontado como isolado no contex-to probatório e invalidado em razão de a testemunha ser considerada “amiga”, em razão de frequentar a casa da genitora do acusado.

Após reproduzir os depoimentos prestados em juízo, o julgador, apoian-do-se na súmula nº 70 do TJRJ, disse que,

5 Idem, fl. 03.6 Idem, fl. 07.

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nos depoimentos policiais acima mencionados, nada há que elida a veracidade das declarações feitas pelos agentes públicos que lograram prender o acusado em flagrante delito. Não há nos autos qualquer motivo para se olvidar da pa-lavra dos policiais, eis que agentes devidamente investidos pelo estado, cuja credibilidade de seus depoimentos é reconhecida pela doutrina e jurisprudên-cia. os testemunhos dos policiais acima referidos foram apresentados de forma coerente, neles inexistindo qualquer contradição de valor, já estando superada a alegação de que uma sentença condenatória não pode se basear neste tipo de prova.7

imputação do artigo 35 da Lei nº 11.343/2006

Tipicidade objetiva (materialidade)

(a) Credibilidade dos depoimentos policiais: declarações “valiosas” prestadas pelos policiais militares que diligenciaram o flagrante (Pablo Vinícius Cabral e victor hugo lago) – “os depoimentos prestados em juízo pelos policiais milita-res responsáveis pela prisão do acusado merecem credibilidade, porquanto se-guros e coerentes, guardam afinidade com a realidade fática trazida no contexto probatório. Ademais, não há qualquer motivo nos autos capaz de macular a isen-ção dos mesmos como testemunhas”8; (b) inscrição “cv” nas embalagens que continham maconha e cocaína, situação que indicaria a estabilidade do vínculo associativo; e (c) fracionamento da droga, o que evidenciaria a destinação para venda.

conclui o julgador que,

dessa forma, restou inequívoca a estabilidade do vínculo associativo para a prática do nefasto comércio de drogas, sendo certo que a facção criminosa “co-mando Vermelho” é quem domina a prática do tráfico na localidade conhecida como “sem terra”, em que o réu foi preso, situada no interior da vila cruzeiro. Por outro lado, a regra de experiência comum permite concluir que a ninguém é oportunizado traficar em comunidade sem integrar a facção criminosa que ali pratica o nefasto comércio de drogas, sob pena de pagar com a própria vida. Portanto, não poderia o réu atuar como traficante no interior da Comunidade vila cruzeiro, sem que estivesse vinculado à facção criminosa “comando ver-melho” daquela localidade.9

7 Idem, fl. 06.8 Idem, fl. 08.9 Idem, fl. 08.

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Tipicidade subjetiva (dolo)

Apontada apenas no sentido de referendar a tipicidade objetiva: “Assim, dolosa a conduta do agente, eis que subjetivamente se conduziu a vulnerar o art. 35 da lei nº 11.343/2006, eis que se associou de forma estável e permanente para a prática de tráfico de entorpecentes, conforme descrito na denúncia”10.

Autoria

Fundada basicamente na prova oral (depoimentos policiais), nos termos da argumentação da definição da autoria do art. 33 da Lei de Drogas – “no que tange a autoria, a mesma é certa quanto ao acusado. sob o crivo do contraditório foi produzida a prova oral formadora da convicção acerca da existência da con-duta imputada ao réu, eis que estava associado para a prática do crime de tráfico de drogas”11.

o julgador considerou robusto o conjunto probatório em desfavor de Rafael Braga no que diz respeito aos delitos de tráfico e associação para o tráfico, condenando-o nas sanções dos arts. 33 e 35 da lei nº 11.343/2006. Ato contínuo, fixou a pena-base em 6 (seis) anos de reclusão e 700 (setecentos) dias-multa.

2 conDenaÇÃo fUnDaDa eXcLUsivamente nos DePoimentos Dos PoLiciais miLitares. súmULa nº 70 Do tJrJ: argUmento De sUstentaÇÃo Da DecisÃo

4. embora sejam notórias as fragilidades em relação ao juízo de tipicidade que condenou Rafael Braga pelos delitos de tráfico e de associação ao tráfico – temas que foram abordados na segunda parte do parecer e que não está repro-duzida neste artigo –, é possível notar, pela fundamentação judicial exposta, que o pilar de sustentação da sentença é a credibilidade aferida aos depoimentos dos policiais que realizaram a prisão em flagrante.

Nota-se da narrativa exposta pela acusação, a qual o magistrado adere para formar o juízo condenatório, que a palavra dos policiais do 16º BPmeRJ (primeiro) valida a existência de informante que indica a prática de tráfico de dro-gas na região e (segundo) confirma a realização do comércio ilegal de droga por Rafael Braga.

10 Idem, fl. 08.11 Idem, fl. 08.

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A questão da autoria – e parte substancial do debate sobre a materialida-de – restringe-se, pois, à validade dos depoimentos policiais como suficientes para a emissão do juízo condenatório. Não por outra razão, o julgador sustenta o argumento na súmula nº 70 do TJRJ, a partir de duas premissas: (primeira) a pre-sunção de regularidade per se que o exercício do cargo público detém – no caso, a palavra dos policiais teria fé pública e somente poderia ser refutada se apresen-tadas provas pela defesa de Rafael Braga que fossem suficientes para demonstrar má-fé (“não há nos autos qualquer motivo para se olvidar da palavra dos poli-ciais, eis que agentes devidamente investidos pelo estado, cuja credibilidade de seus depoimentos é reconhecida pela doutrina e jurisprudência”)12; e (segunda) a coerência (ausência de contradição) entre os depoimentos dos policiais, embora não tenham sido os únicos tomados em juízo (“os testemunhos dos policiais aci-ma referidos foram apresentados de forma coerente, neles inexistindo qualquer contradição de valor”)13. os argumentos foram apresentados em relação ao crime de tráfico e referidos, posteriormente, de forma sintética e remissiva, quando da análise da autoria do crime de associação ao tráfico.

5. A presunção de regularidade dos atos dos agentes dos Poderes Públicos, que fundamenta a súmula nº 70 do TJRJ e sustenta o julgado em análise, é um dos pressupostos da Administração Pública nos estados de Direito. se o art. 37, caput, da constituição estabelece que a Administração Pública obedecerá aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, a decorrência imediata é a de que os atos administrativos gozam de presunção de legalidade, legitimidade e veracidade.

J. J. Gomes canotilho e vital moreira enfatizam que essa vinculação à cons-titucionalidade e à legalidade submete a atividade administrativa aos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade14. Nos termos propostos por Ayres Brito, nos Comentários à Constituição do Brasil,

dizer que a lei é o primeiro dos princípios regentes da administração pública, mas não o único (óbvio), é dizer que o Direito especificamente aplicável a esse tipo de administração começa com a lei, mas não termina com ela. o Direito ainda se manifesta em cada qual dos modos obrigatórios de aplicar a lei, que são os princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficácia.

12 Idem, fl. 06.13 Idem, fl. 06.14 cANoTIlho, J. J. Gomes; moReIRA, vital. Fundamentos da Constituição do Brasil. coimbra:

coimbra, 1991. p. 228.

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segue o autor sustentando que “a Administração Pública somente alcança o patamar da legitimidade plena quanto aos seus meios ou meios de atuação se, impulsionada pela lei, a esta consegue imprimir o selo dos outros quatro princí-pios [impessoalidade, moralidade, publicidade e eficácia]”15.

No exercício da função pública, portanto, supõe-se que o policial militar atue dentro da legalidade, sendo sua palavra, fundada nos princípios éticos da boa-fé e da probidade, comprometida com a veracidade dos fatos, notadamente em razão de validar importantes atos subsequentes, como indiciamentos, denún-cias e decisões judiciais.

esclarece letizia Gianformaggio, porém, que o dogma da presunção de regularidade dos atos dos Poderes Públicos identifica a validade (das normas e das decisões) com a sua mera existência16. Significa dizer: confunde vigência (ato em si) com validade (conformação do ato com a constituição e as leis). A existência do ato diz respeito à vigência. Todavia, o mero fato de existir não tor-na o ato per se válido (legítimo). A legitimidade diz respeito a sua conformidade constitucional.

A concepção puramente formal da validade dos atos dos poderes é fruto de uma simplificação derivada da incompreensão da complexidade do termo legalidade no estado constitucional de Direito. segundo Ferrajoli, os conceitos de vigência e de validade são assimétricos e independentes: enquanto vigência, diz sobre a forma dos atos normativos, ou seja, é questão de correspondência ou subsunção das normas às regras de procedimento e competência; validade, corres-ponde ao significado (conteúdo), isto é, trata-se de uma questão de coerência ou de compatibilidade das normas produzidas com os valores materiais encontra-dos nas constituições17.

embora vigência (existência formal) e validade (conteúdo constitucional-mente conformado) não se confundam, devendo os atos guardar correspondên-cia plena com o conteúdo material indicado pelas constituições, em condições de normalidade – inclusive para que a burocracia dos estados possa funcionar

15 BRITTo, carlos Ayres. comentário ao artigo 37, caput. In: cANoTIlho, J. J. Gomes; meNDes, Gilmar F.; sARleT, Ingo W.; sTRecK, lenio l. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. são Paulo: saraiva/Almedina, 2013. p. 822.

16 GIANFoRmAGGIo, letizia. Diritto e Ragione tra essere e Dover essere. In: GIANFoRmAGGIo, letizia (org.). Le Ragioni del Garantismo: discutendo com luigi Ferrajoli. Torino: Giappichelli, 1993. p. 28.

17 FeRRAJolI, luigi. el Derecho como sistema de Garantías. Jueces para la Democracia, v. 16/17, p. 64, 1992.

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regularmente – é suposta uma certa regularidade no funcionamento dos Poderes Públicos. Desde a base contratualista da fundação dos estados de Direito, pres-supõe-se a existência de um “bom poder” voltado para a efetivação dos direitos das pessoas e atento contra toda e qualquer possibilidade de sua lesão arbitrária.

o debate é relevante na análise do caso, porque a decisão condenatória, sustentada pela súmula nº 70 do TJRJ, parece supor que os depoimentos poli-ciais per se são válidos, ou seja, que sua simples existência formal (depoimentos prestados em juízo e submetidos ao contraditório) lhes conferem validade (cor-respondência aos princípios constitucionais da moralidade e impessoalidade).

como referido, é lógico que em situações de normalidade democrática poderia ser presumido que os atos dos poderes se encontram em harmonia com a consti-tuição, sendo, portanto, legítimos, idôneos e verídicos. Assim, o seu afastamento ocorreria nos casos em que haveria prova inequívoca em sentido contrário, como, aliás, é o entendimento dogmático majoritário.

No entanto, essa máxima que regula os modelos ideais típicos dos estados de Direito é invariavelmente confrontada na análise da incidência real dos sis-temas penais, isto é, quando colocada a prova no campo das práticas punitivas. Roberto Bergalli, a partir da análise empírica da atuação das agências penais, é extremamente perspicaz ao demonstrar que, historicamente, os sistemas puni-tivos não observaram os níveis possíveis de legalidade fixados pelas estruturas normativas. A situação é ainda mais grave na América latina, local em que a regra é a inobservância dos níveis mínimos de legalidade, ou seja, dos parâmetros que dão as condições de verificabilidade da regularidade dos atos dos Poderes Públicos (punitivos)18.

Nesse sentido, embora a súmula nº 70 do TJRJ, que legitima a decisão que condenou Rafael Braga, encontre amparo dentro do sistema de princípios e de re-gras gerais de uma teoria geral do direito pensada para os estados Democráticos – o que implica em dizer que no plano ideal é válida –, ao ser deslocada (primeiro) para os sistemas penais e, mais especificamente, (segundo) para os sistemas pe-nais latino-americano e fluminense, seus efeitos devem ser, no mínimo, proble-matizados. Assim, se em um panorama ideal e abstrato a súmula nº 70 do TJRJ instrumentaliza a legalidade e atesta a moralidade, a idoneidade e a veracidade dos atos dos agentes da polícia militar, no plano real e concreto pode produzir efeitos extremamente perversos se não for confrontada com as especificidades

18 BeRGAllI, Roberto. Fallacia Garantista nella cultura Giuridico Penale di lingua Ispanica. In: GIANFoRmAGGIo, letizia (org.). Le Ragioni del Garantismo: discutendo com luigi Ferrajoli. Torino: Giappichelli, 1993. p. 192.

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do sistema penal e, havendo distorções, não forem relativizados os seus efeitos. Note-se, pois, que, se há uma racionalidade no ponto de partida (regularidade dos atos dos Poderes Públicos nos estados de Direito), não necessariamente essa racionalidade será verificada no ponto de chegada (racionalidade dos atos da po-lícia militar do Rio de Janeiro). em confronto com o real, uma carta de intenções racionais que afirma um pacto civilizatório pode produzir o seu exato oposto: a irracionalidade de práticas punitivas que reeditam estados de barbárie.

6. Demonstra Ferrajoli que a atividade policial é uma atividade adminis-trativa formalmente organizada como dependente do Poder executivo. ocorre que “[...] diversamente dos outros ramos da administração pública, é uma ativi-dade em contato direto com as liberdades fundamentais”19.

Assim, podemos perceber que se no âmbito dos direitos sociais, por exem-plo, é crível afirmar que a ação dos Poderes Públicos é “amiga dos direitos”, tal assertiva não pode ser transposta acriticamente para o campo da intervenção policial. E não há, nessa afirmação, nenhum preconceito contra essa atividade. Todavia, seria no mínimo ingenuidade, mesmo no plano abstrato e teórico, ima-ginar que a ação de polícia, que não esporadicamente implica confronto, não seja uma atividade violenta que restrinja e, no limite, viole os direitos individuais. Não por outra razão Ferrajoli percebe uma latente ilegitimidade da atuação poli-cial no estado de Direito. se a força policial se manifesta como violência, é dessa mesma violência que “provém sua latente ilegitimidade com respeito ao paradig-ma do estado de Direito”20.

Possível concluir, portanto, que, em relação à atividade policial, o princí-pio da regularidade dos atos dos Poderes Públicos é uma máxima sujeita à refu-tabilidade. exatamente para reduzir as possibilidades ou as tendências inerentes ao exercício irregular da violência – “os casos de ilegalidades estabelecidas como práticas rotineiras, mais ou menos conhecidas ou toleradas”21, conforme leciona Nilo Batista – é necessário submeter a atividade policial à constante fiscalização. Fiscalização que também é judicial e que pode/deve ser exercida durante o acer-tamento dos casos penais concretos, no momento, por exemplo, de contextualizar e problematizar a presunção absoluta de veracidade de depoimentos policiais, notadamente em situações de baixa densidade democrática, como é possível per-ceber no caso concreto. Isso porque, novamente nas lições de Nilo Batista, o “sis-

19 FeRRAJolI, luigi. Diritto e Ragione. Roma: laterza, 1998. p. 798 [tradução livre].20 Idem, ibidem [tradução livre].21 BATIsTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

p. 25.

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tema penal a ser conhecido e estudado é uma realidade, e não aquela abstração dedutível das normas jurídicas [e princípios gerais, inclua-se] que o delineiam”22.

No caso específico, a presunção (abstrata) de veracidade do depoimento dos policiais deve, necessariamente, ser submetida a alguns filtros: (primeiro) o filtro da experiência histórica da incidência dos sistemas penais na sociedade; (segundo) o filtro da experiência concreta da atuação do sistema penal latino-ame-ricano; e, no particular, (terceiro) o modo de atuar do sistema de polícia do estado do Rio de Janeiro.

7. A série de problematizações apresentada, no sentido de relativizar o princípio geral que fundamenta a súmula nº 70 do TJRJ, pode ser sintetizada na seguinte questão: Qual o índice real de confiabilidade (princípios da legalidade, da mo-ralidade e da impessoalidade dos agentes da Administração Pública) do depoimento dos policiais militares que realizaram a prisão de Rafael Braga?

embora seja evidente que o indivíduo concreto não se confunde com a instituição que integra, é importante contextualizar os problemas concretos que atingem com impressionante regularidade a Polícia militar do estado do Rio de Janeiro. Apesar de os sujeitos serem autônomos, ninguém é estrangeiro da sua própria cultura e as práticas institucionais acabam, em inúmeros casos, sendo incorporadas pelos processos de institucionalização que há muito tempo são estudados pela psicologia social (notadamente quando os indivíduos integram cadeias hierárquicas e burocráticas que facilitam a isenção e a transferência da responsabilidade do ato23).

Assim, se no plano ideal e abstrato a súmula nº 70 do TJRJ poderia estar em harmonia com a principiologia que instrumentaliza a forma de atuação da Administração Pública, marcada pelos princípios da legalidade, da impessoali-dade e da moralidade, no plano real e concreto pode produzir distorções e legiti-mar atos opostos a sua perspectiva racionalizadora.

em 2016, uma a cada seis pessoas assassinadas no Rio foi morta por um po-licial. De acordo com dados do Instituto de segurança Pública (IsP), no ano passado, foram registrados 5.953 homicídios no estado. Desse total, 920 são os

22 Idem, ibidem.23 sobre o tema, foram inovadores os estudos no campo da psicologia social de milgram,

em 1969, na universidade de Yale (mIlGRAm, stanley. Obedience to Authority. New York: harper & Row, 1974) e de Zimbardo, em 1971, na universidade de stanford (ZImBARDo, Philip. O efeito lúcifer. Rio de Janeiro: Record, 2013; e suRhoNe, lambert; TeNNoe, mariam; heNssoNoW, susan (ed.). Stanford Prison Experiment. la vergne: Betascript, 2010).

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chamados autos de resistência – quando o policial alega que matou um crimi-noso em legítima defesa.

o número de autos de resistência no Rio em 2016 é o maior desde 2009, quan-do o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) estava em seu início. Desde 2013 – quando o número de autos de resistência foi o menor registrado na série histórica contabilizada pelo estado –, o índice não pára de aumentar ano a ano. De 2015 para 2016, o aumento foi de 43%. (Jornal Extra, 17 fev. 2017)24

os números apresentados na matéria são conhecidos não apenas pela po-pulação, mas pelas autoridades públicas do estado do Rio de Janeiro. são infor-mações oficiais, baseadas em dados empíricos e apresentadas no início do ano corrente pelo Instituto de segurança Pública (IsP).

em julho de 2016, a human Rights Watch publicou o relatório “o bom po-licial tem medo: os custos da violência policial no Rio de Janeiro” e constatou que

as estatísticas oficiais sobre homicídios cometidos pela polícia corroboram o entendimento das autoridades de que execuções extrajudiciais são bastante co-muns. o número de mortos por ação policial é muito maior do que o número de baixas na polícia, fazendo com que seja difícil acreditar que todas estas mor-tes ocorreram em situações em que a polícia estava sendo atacada.25

Todavia, para além da grave questão da letalidade policial, o relatório da human Rights Watch documenta 64 casos, com 119 mortes, em que policiais mi-litares acobertaram ou tentaram acobertar os homicídios26.

24 soARes, Rafael. um em cada seis homicídios no Rio foi cometido por policiais em 2016. Jornal Extra, 17 fev. 2017. Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/um- -em-cada-seis-homicidios-no-rio-foi-cometido-por-policiais-em-2016-20940865>.

No mesmo sentido, BIANchI, Paula. uma pessoa é morta pela polícia a cada 8 horas no Rio. Uol Notícias. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas- -noticias/2017/02/23/uma-pessoa-e-morta-pela-policia-a-cada-8-horas-no-rio>. Acesso em: 23 fev. 2017.

25 human Rights Watch. o bom policial tem medo: os custos da violência policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <https://www.hrw.org/pt/report/2016/07/07/291589>. Acesso em: 7 jul. 2016.

26 “uma técnica comum é remover o cadáver da vítima da cena do crime e levá-lo a um hospital, alegando a tentativa de ‘socorrer’ a vítima. esses falsos ‘socorros’ servem para destruir provas na cena do crime ao mesmo tempo em que simulam um ato de boa-fé por parte dos policiais. em alguns casos, policiais forjaram provas ao colocarem armas nas mãos das vítimas e as dispararem, ou, ainda, ao deixarem drogas junto aos seus corpos. Alguns policiais ameaçaram testemunhas para desencorajar depoimentos. em um caso ocorrido em julho de 2011, por exemplo, policiais torturaram e mataram o filho de 14 anos da testemunha de uma execução anterior, ocorrida na favela do salgueiro, com o objetivo de intimidá-la,

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Fundamental perceber, ainda, que os dados apresentados pelos órgãos de monitoramento da segurança pública e pelos observatórios nacionais e interna-cionais de direitos humanos são aprofundados e validados por sérias pesquisas acadêmicas, desenvolvidas por importantes centros e baseadas em critérios me-todológicos sofisticados e rigorosos27.

Nota-se, porém, que os resultados apresentados sobre as práticas policiais no Rio de Janeiro não se restringem aos ambientes institucional ou acadêmico de pesquisa. A percepção da violência institucional, que gera uma significativa re-dução da credibilidade das ações policiais, é sentida de forma bastante evidente pela população carioca.

Pesquisa de opinião recentemente publicada aponta o baixo grau de con-fiança na Polícia Militar do Rio de Janeiro28.

de acordo com promotores de justiça.” (human Rights Watch. o bom policial tem medo: os custos da violência policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <https: //www.hrw.org/pt/report/2016/07/07/291589>. Acesso em: 7 jul. 2016)

27 Nesse sentido, exemplificativamente: MISSE, Michel; GRILLO, Carolina Christoph; NÉRI, Natasha elbas. letalidade policial e indiferença legal: a apuração judiciária dos “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, edição especial, n. 1, p. 43-71, 2015; mIsse, michel; GRIllo, carolina christoph; TeIXeIRA, césar Pinheiro; NÉRI, Natasha elbas. Quando a polícia mata: homicídios por “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Necvu/Booklink, 2013; soARes, Barbara musumeci; mouRA, Tatiana; AFoNso, carla (org.). Auto de resistência: relatos de familiares de vítimas da violência armada. Rio de Janeiro: 7letras, 2009; veRANI, sérgio. Assassinatos em nome da lei: uma prática ideológica do direito penal. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996; ZAccoNe, orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

28 “Pediu-se aos entrevistados que pontuassem de zero a dez seus graus de confiança nas polícias e na Justiça. A nota média dada à Polícia militar foi bastante baixa (4,9) e inferior àquela atribuída à Polícia civil (5,8)”. No que tange à relação com a Polícia, “[...] embora o percentual de contatos positivos seja maior que o de negativos, 55% acreditam ser provável ou muito provável tornarem-se vítimas de violência policial e 39% temem ser confundidos com bandidos pela polícia”. Assim, segundo o estudo, “não se pode dizer que a população carioca ignore ou minimize a violência excessiva e a seletividade na atuação policial. Pelo contrário, quase dois terços (62%) dos entrevistados concordam totalmente ou em parte com a afirmação de que a polícia no Rio de Janeiro mata demais e 70% discordam da ideia de que o problema da criminalidade se resolveria se a polícia tivesse ‘carta branca para matar’. Além disso, 75% acreditam que a polícia é mais violenta na favela do que no asfalto e 66% acham que ela é mais violenta contra os negros que contra os brancos” (lemGRuBeR, Julita; cANo, Ignacio; musumecI, leonarda. Olho por olho? o que pensam os cariocas sobre “bandido bom é bandido morto”. Rio de Janeiro: cesec/ucAm, 2017. p. 16).

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Fonte: lemGRuBeR, Julita; cANo, Ignacio; musumecI, leonarda. Olho por olho? o que pensam os cariocas sobre “bandido bom é bandido morto”. Rio de Janeiro: cesec/ucAm, 2017.

A enorme desconfiança da população em relação às práticas policiais de-corre da percepção concreta dos tipos e das formas de abordagem realizadas no cotidiano da cidade, sobretudo nos locais de vivência da população mais vulne-rável. Importante sublinhar que a conclusão não decorre de um mero exercício de abstração acadêmica – como muitas vezes é adjetivada a crítica à violência policial, com nítida intenção de desqualificar as tentativas de visibilização desse problema real. com o crescimento do nível de violência por parte da polícia, são cada vez mais frequentes as notícias de abusos praticados pelas instituições militares.

lembre-se, por exemplo, o caso da morte de maria eduarda dentro da es-cola em que frequentava e, na sequência, a execução dos dois suspeitos rendidos na parte externa da instituição de ensino.

um morador gravou a ação de dois Pms que acabavam de abater dois homens armados no exterior da escola onde maria eduarda morreu. enquanto os rapa-zes caídos ainda se mexiam, um dos policiais se aproxima e pega um fuzil do chão para na continuação atirar duas vezes contra um deles. um segundo poli-cial aparece na cena e se aproxima do segundo homem para também disparar contra ele. Ambos PMs foram presos em flagrante por homicídio qualificado enquanto prestavam depoimento na Divisão de homicídios da capital. o Rio registrou 182 mortes causadas por intervenção policial no começo deste ano

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(janeiro e fevereiro). É 78,4% mais que o contemplado nos dois primeiros meses de 2016.29

os dados empíricos apresentados sobre violência e (falta de) credibilidade da Polícia militar do estado do Rio de Janeiro convergem para a necessidade da análise da notícia publicada pelo Jornal Extra, em 01.07.2017.

Fonte: heRINGeR, carolina; mARINATTo, luã. Pms prendiam usuários de drogas como traficantes para alcançar meta do batalhão. Jornal Extra, 1º jul. 2017. Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/pms-prendiam-usuarios-de-drogas-como--traficantes-para-alcancar-meta-do-batalhao-21542860>.

conforme a matéria, inquérito policial conduzido pela Delegacia de ho-micídios de Niterói e são Gonçalo (DhNsG), no âmbito das investigações que redundaram na prisão de 96 policiais militares acusados de receberem dinheiro do tráfico com o objetivo de não coibirem o comércio de drogas (tornadas) ilícitas, conseguiu demonstrar a existência de ações coordenadas entre agentes do 7º Batalhão da Polícia Militar e traficantes da região. Assim, os policiais militares faziam opera-ções combinadas com os comerciantes de drogas, que separavam determinada quantidade exatamente para satisfazer a necessidade de apreensões. ocorre que a autoria dos delitos, com frequência, era atribuída a consumidores de entorpe-centes:

os PMs faziam apreensões de drogas após combinação com os traficantes, que deixavam os entorpecentes em endereços já acertados. os policiais, então, abor-davam usuários no morro e os levavam para a delegacia, alegando que eles eram os responsáveis pela droga encontrada. Na unidade, os usuários acaba-vam sendo autuados por tráfico de drogas.30

29 mARTÍN, maria. execução policial e estudante morta em tiroteio: o Rio mergulha na barbárie. El País Brasil. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/31/politica/1490974463_586184>. Acesso em: 31 mar. 2017.

30 heRINGeR, carolina; mARINATTo, luã. Pms prendiam usuários de drogas como traficantes para alcançar meta do batalhão. Jornal Extra, 1º jul. 2017. Disponível em: <https:

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Na reportagem, o Delegado Assistente da DhNsG detalha o procedimen-to dos policiais: “os Pms alegavam (aos criminosos) que precisavam não só bater a meta de apreensões de drogas e armas, mas também a de prisões”31.

A atribuição de responsabilidade criminal por tráfico de drogas a usuários – e, inclusive, a membros das comunidades que não possuem qualquer relação com o consumo ou comércio de drogas ilegalizadas –, para “atingir a meta de prisões e apreensões” do Batalhão ou para realizar retaliações ou para proteger determinadas pessoas, infelizmente não é uma prática esporádica e que deva simplesmente ser desconsiderada em casos como o de Rafael Braga. Pelo contrá-rio, essa realidade deve servir como elemento de sensibilização ou filtro para a interpretação dos elementos de prova que compõem os autos.

Com isso não se quer, repita-se, generalizar a desconfiança a todos os rela-tos policiais prestados em juízo. como se sabe, existem policiais militares dignos e que resistem às situações de violência e às práticas corruptivas. No entanto, os dados concretos do cotidiano das instituições policiais apresentados igualmente não permitem uma generalização da conclusão oposta, ou seja, não permitem que se tenha como máxima indiscutível a credibilidade dos depoimentos poli-ciais, como acaba acontecendo no momento em que a súmula nº 70 é incorporada acriticamente nos procedimentos judiciais.

Nesse sentido, parece ser fundamental, antes de se tomar a súmula nº 70 como dogma, levar em consideração as particularidades do sistema penal brasi-leiro e analisar os elementos de prova que integram o processo para verificar se efetivamente, no caso concreto, o entendimento pretoriano consolidado é coeren-te e racional.

8. o argumento de legitimação da súmula nº 70 no universo dos julgados do TJRJ é o de que (primeiro) na ausência de outros elementos de prova e (segun-do) sendo harmônicos os testemunhos policiais, a condenação com base exclusiva nestes depoimentos é válida. Pressupõe-se, portanto, uma determinada situação fática: um conjunto probatório reduzido exclusivamente aos depoimentos de policiais mi-litares que narram, de forma coerente (sem contradições), os fatos objeto do julgamento.

A súmula nº 70, portanto, além de ser uma diretriz geral pensada para um estado de coisas ideal no qual os agentes policiais pautam suas ações em estrita observância aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade – motivo

//extra.globo.com/casos-de-policia/pms-prendiam-usuarios-de-drogas-como-traficantes- -para-alcancar-meta-do-batalhao-21542860>. Acesso em: 1º jul. 2017.

31 Idem.

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pelo qual a realidade empírica dos sistemas penais e das instituições policiais flu-minenses devem servir como contraponto ao seu “valor absolutizado”, conforme demonstrado anteriormente –, pressupõe (primeiro) a inexistência (ou a impossibili-dade de produção) de qualquer outra prova e (segundo) a coerência dos relatos policiais.

ocorre que, no caso, para além da necessidade de relativização da súmula nº 70 em decorrência dos problemas fáticos que afetam diretamente a credibili-dade dos agentes da Polícia militar do estado do Rio de Janeiro, essa situação de impossibilidade de produção ou de ausência de outras provas não se concre-tizou. Primeiro, porque foi colhido depoimento que se contrapõe à narrativa dos policiais; segundo, porque os policiais foram contraditórios em relação à fonte que teria “informado de um grupo comercializando droga” e sobre a trajetória percorrida após a prisão; terceiro, porque as circunstâncias da prisão são extrema-mente dúbias (informação sobre o número de pessoas; narrativa sobre a conduta de Rafael Braga, que, ao ver os policias, teria ficado parado, portando “uma saco-la de conteúdo suspeito”, enquanto todos os demais empreendiam fuga); e quar-to, porque as circunstâncias da prisão não condizem, pelas regras de experiência, às hipóteses de tráfico em associação (pequena quantidade de droga apreendida, horário do pretenso comércio, ausência de rede de proteção ao tráfico, ausência de confronto com a polícia, falta de tentativa de fuga, não apreensão de arma ou de valores em moeda).

Iniciaremos a problematização reconstruindo a narrativa dos policiais e, ato contínuo, apresentando o que consideramos lacunas (questões sem resposta) e inconsistências fáticas insuperáveis nos depoimentos.

9. A primeira imagem [cena um], a que devemos nos ater, é a da construção da narrativa policial no seu ponto desencadeador: Pablo vinicius cabral, policial militar, informa que um colaborador, morador da comunidade e não identificado, dirigiu-se à guarnição policial para denunciar comércio de drogas na região.

A primeira controvérsia na narrativa dos policias é em relação à denúncia do morador não identificado, pois se, em sede policial, Pablo Vinicius Cabral e Victor Hugo Lago afirmam que a informação foi de que “havia um indivíduo a poucos metros do local onde se encontravam com material entorpecente a fim de comercializá-lo. Ato contínuo, foram até o local informado e encontraram Rafael Braga vieira”, em juízo a conduta unitária é transformada em pluripessoal: “um colaborador veio até a guarnição informar que existia um grupo de pessoas co-

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mercializando drogas umas duas ruas à frente. Nós fomos lá verificar e eu avistei um grupo correndo, só que o meliante ficou”32.

A segunda controvérsia é a do destinatário da informação prestada pelo mo-rador não identificado: Pablo Vinicius Cabral diz ter sido abordado diretamente – “Juiz: Aí, eu acho que o doutor advogado está querendo dizer é que senhor lá falou ‘quando um morador não identificado informou que havia um indivíduo’ e aí aqui, quando o senhor respondeu para a doutora promotora o senhor falou que seria um grupo. Aí ele está querendo entender. Testemunha: É, foi o que eu falei. Na dinâmica que o morador veio falar comigo, de repente tinha um, mas quando eu fui lá era um grupo”33 –, enquanto victor hugo lago, que fazia patrulhamento com o primeiro, refere ter sido a informação passada por outro policial que havia recebido originalmente a denúncia – “Defesa: voltando à questão do colabora-dor que teria feito a denúncia anônima. o senhor teve essa informação a partir de quem? Testemunha: De outro policial. Defesa: Qual policial que disse isso? Testemunha: Foi o soldado lopes, de outra equipe. Defesa: o quê exatamente ele disse? Testemunha: ele me ligou e disse, ‘olha, um morador passou aqui e disse que tava tendo tráfico lá na 29. Dá um pulo lá que vocês estão perto’”34.

A terceira controvérsia, mas que ainda compõe essa primeira cena, é relativa ao desdobramento da prisão. victor hugo lago informa que Rafael Braga foi conduzido diretamente para a Delegacia – “Defesa: Boa tarde, senhor policial. como é que foi a rotina a partir da captura? o que aconteceu depois? Testemu-nha: Nós voltamos com ele até onde estava a viatura, próximo do local onde ia ser colocada a cabine blindada. ele adentrou no interior da viatura e conduzimos ele até à delegacia. Defesa: houve algum tipo de agressão, alguma situação de domínio que precisou ser colocada alguma força contra ele? Testemunha: Não, ele não resistiu em momento nenhum. Defesa: vocês chegaram a levá-lo para a base da uPP de vocês? Testemunha: Direto para delegacia” –, ao passo que Pablo Vinicius Cabral e Fernando de Souza Pimentel afirmam ter sido levado ao contê-iner da vila cruzeiro – “Testemunha: o container vila cruzeiro. Foi encaminha-do ele até o container vila cruzeiro. ele saiu, aproximadamente uns 600 metros do local onde a gente pegou e caminhando até o container da vila cruzeiro” (Pablo vinícius cabral, 15:00 do depoimento judicial); “Defesa: então ele não foi levado direto à delegacia? ele foi para a base blindada e depois para a delegacia? Testemunha: É porque nós não temos viaturas à disposição. muitas quebradas,

32 TJRJ, Processo criminal nº 0008566-71.2016.8.19.0001, 39ª vara criminal da comarca do Rio de Janeiro, Depoimento Judicial.

33 Idem.34 Idem.

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enfim, poucas viaturas para todas as equipes que trabalham na Vila Cruzeiro. então a gente tem essa logística de, às vezes, uma viatura a gente está usando e cede para outro colega para levar, alguma outra condução administrativa. então, isso é praxe. Geralmente, quando nós pegamos alguma ocorrência que estamos a pé no interior da comunidade – porque tem pontos lá que não tem como patru-lhar de veículo embarcado – nós fatalmente pegamos o elemento, se for o caso de ocorrência, e conduzimos até a parte baixa, onde embarca na viatura, para levar para a delegacia”35.

Note-se que as três controvérsias apresentadas não são laterais. Não se tra-ta do tipo de informação em que comumentemente são apresentadas variações naturais entre as versões. os dados são relevantes: Quem prestou a informação? Quantos estavam comercializando a droga? Para onde o flagrado foi levado?

Portanto, não é possível afirmar, como faz o julgador na sentença, que o depoimento dos policiais é “[...] coerente, neles inexistindo qualquer contradição de valor”36.

Neste contexto, o fato relevante da falta de esclarecimento do motivo pelo qual o colaborador não tenha sido identificado e trazido aos autos para depoi-mento não pode igualmente ser tratado como secundário. logicamente que a polícia faz uso de informantes, que preferem o anonimato para se proteger de re-taliações de grupos ligados ao tráfico. Apesar do fato de o depoimento poder ser tomado sob sigilo, situação que garantiria uma qualidade diferenciada da prova, em nenhum momento os policiais indicaram quais as razões apontadas pelo co-laborador para suspeitar do grupo. o esperado é, no mínimo, um esclarecimento do motivo da suspeita, por exemplo: O colaborador não identificado presenciou a venda de droga pelo grupo? se negativa a resposta, quais os indícios que justi-ficaram a suspeita?

10. A cena dois é o momento da abordagem de Rafael Braga pelos policiais militares. Na justificativa, os policiais referem que havia um grupo comerciali-zando droga e que, com a aproximação, todos fugiram, restando apenas Rafael Braga, “parado, distraído”, portando uma “sacola suspeita”. Algumas questões são interessantes nessa segunda cena. Primeira: Qual a razoabilidade de se pensar que uma pessoa que integra um grupo que está vendendo drogas fique parada, distraída, com uma sacola contendo drogas?; segundo: Posteriormente, ao notar a presença dos policiais, qual o motivo para não tentar fugir ou, ao menos, resistir

35 Idem.36 Idem, Sentença Condenatória, fl. 06.

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prisão (situação não narrada pelos policiais), enquanto todos os demais fogem?; terceiro: Qual a lógica de “arremessar a sacola ao chão”?

Nesse quadro ainda caberia uma pergunta: Por que os policiais não se es-forçaram, após a prisão de Rafael Braga, para prender os demais membros do grupo? Qual a razão de terem ficado “satisfeitos” com a prisão de apenas um dos “membros da facção”?

mas pensemos de forma fragmentada na composição das cenas, analisan-do a narrativa passo a passo: (um) um morador não identificado comunica ao policial ou a sua guarnição que um indivíduo ou grupo está vendendo droga (o colaborador permanece sem identificação, não presta depoimento e não realiza reconhecimento dos membros do grupo); (dois) na aproximação policial todos fogem, menos Rafael Braga, que fica “parado, distraído” e, finalmente, ao notar a aproximação da polícia, “arremessa a sacola ao chão”; (três) os policiais prendem Rafael Braga e não empreendem qualquer outro esforço (perseguição, chamada de reforço) para capturar os demais membros do grupo.

Importante ainda explorar um dos argumentos utilizados para justificar a abordagem de Rafael Braga: o fato de ter “em poder uma sacola de conteúdo suspeito”. há, inclusive, uma contradição ou descontinuidade nas falas: como identificar alguém com uma “sacola suspeita” se essa mesma sacola teria sido “arremessada ao chão”? embora essa narrativa descontínua tenha sido compar-tilhada entre os policiais, indagamos: Como seria possível afirmar-se ex ante que uma sacola (qualquer sacola, embalagem ou mala) tem conteúdo suspeito antes de se ter acesso ao conteúdo do recipiente? A questão, novamente, não é lateral, pelo contrário. Trata-se de um ponto central, porque é um dos argumentos uti-lizados para motivar a abordagem policial. seria possível, assim, imaginar que existem “sacolas intrinsecamente suspeitas”? com o devido respeito, o argumen-to é insustentável do ponto de vista da análise probatória e, pelos efeitos concre-tos que produziu, é trágico pensar em uma sentença que aceita essa hipótese sem qualquer credibilidade fática.

11. Nesse cenário pouco esclarecedor, uma lacuna não explorada pela polí-cia, pela acusação e pelo órgão jurisdicional nos parece ser decisiva, representan-do uma espécie de silêncio narrativo ensurdecedor.

O julgador se utiliza de máximas de experiência para afirmar a partici-pação de Rafael Braga em associação criminosa, mais especificamente de que integraria o comando vermelho. A conclusão é ancorada na regra de experiência de que, em uma comunidade dominada pela referida facção, ninguém poderia vender droga sem estar autorizado, ou seja, sem integrar o grupo criminoso. o argumento pode ser explorado, preliminarmente, apontando-se a nítida viola-

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ção à regra do NcPc, que considera imotivada (e, portanto, nula) a decisão que “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” (art. 489, § 1º, do Código de Processo Civil), ou seja, essa hipótese justificaria qualquer ato ilegal praticado na comunidade, não apenas relacionado ao tráfico, como condu-ta derivada de associação ao crime, porque, pela regra da experiência, em comu-nidades dominadas por facções qualquer conduta ilícita deve ser autorizada sob pena de retaliação.

mas seguindo a linha proposta pelo julgador: se a máxima de experiência indica que Rafael Braga e os demais membros do grupo (fugitivos) pertenciam ao comando vermelho; e se, em decorrência desse pertencimento, havia uma certa organização nas atividades ilícitas, sobretudo o tráfico de drogas, não seria crível pensar que haveria uma rede de proteção desse comércio ilegal? Ou, no mínimo, que Rafael Braga estivesse armado?

A propósito, não é uma regra de experiência que o tráfico, ao definir pon-tos de venda em comunidades, cria mecanismos de proteção exatamente para evitar prisões em casos de abordagens policiais, como rotas de fuga? Não é uma máxima da experiência o uso de menores de idade como informantes que utili-zam celulares, rádios, foguetes ou “pipas” para avisar quando policiais ingres-sam em área de comércio de drogas? Por que, no caso de Rafael Braga, se crível a hipótese de ser integrante do comando vermelho, nenhuma dessas tradicionais redes de proteção foi acionada?

mas o argumento que chama mais atenção é o de que Rafael Braga foi pre-so desarmado. Novamente na linha do argumento judicial é possível questionar: Não é uma máxima de experiência que pessoas associadas ao tráfico de drogas, que pra-ticam o comércio ilegal em grupo, portem, em regra, armamento (e armamento pesado, sublinhe-se)?

No caso – e essa conclusão é trágica e sintomática –, as regras de experiên-cia serviram apenas para a incriminação de Rafael Braga, quando outras, igual-mente evidentes e até mesmo com maior grau de factibilidade, simplesmente foram esquecidas ou ignoradas.

12. A cena três, desde o ponto de vista dos pesquisadores, revela uma das omissões mais contundentes na análise do conjunto probatório. A terceira cena pode ser imaginada como uma ruptura no “relato oficial” (depoimento dos po-liciais), como a gravação de uma imagem paralela, realizada por um terceiro ob-servador (testemunha ocular) que simplesmente não ganhou qualquer relevân-cia. Pelo contrário, foi injustificadamente desprezada. Aliás, importante lembrar que é exatamente essa condição de terceiro espectador que legitima alguém como

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testemunha válida, em posição de imparcialidade real, diferente daquela que, no caso, ocupam, por exemplo, os policiais envolvidos no flagrante.

Não é irrelevante lembrar que os policiais, como agentes da lei que realizaram a abordagem e a prisão em flagrante, têm, inegavelmente, interesse em manter válida a sua narrativa. sob pena, inclusive, de estarem vulneráveis aos procedimentos inves-tigatórios de eventuais irregularidades nos campos administrativo e criminal. A questão é relevante e, por si só, problematizaria de forma contundente a absolu-tização da súmula nº 70 do TJRJ.

No caso, diferentemente do que parece ser o fundamento de legitimidade da súmula – estabelecer a presunção de legalidade e moralidade da palavra dos policiais quando os depoimentos são coerentes e não há outra prova trazida aos autos, conforme destacado anteriormente –, prestou depoimento uma testemu-nha que presenciou os fatos e que narra uma sequência totalmente diversa da-quela expostas pelos agentes da lei. A observadora externa, que compareceu em juízo, prestou compromisso e não foi contraditada pelo Ministério Público, é a moradora da comunidade Evelyn Barbara Pinto Silva, presente no momento do flagrante.

Na sentença, o julgador apresenta a sua leitura do depoimento:segundo a aludida testemunha evelyn Barbara, foi possível observar da varan-da de sua casa o réu Rafael Braga sozinho, sem qualquer objeto em suas mãos, sendo abordado e agredido pelos policiais militares. Ato contínuo, narrou a aludida testemunha evelyn que o acusado foi arrastado por um policial até a parte baixa da rua, o que comprometeu a sua visão.37

O julgador desqualificou a fala da testemunha em razão de ter dito “[...] que era amiga e frequentava a casa da genitora do acusado por muitos anos”, concluindo, portanto, que “[...] as declarações da testemunha evelyn Barbara, arrolada pela defesa do réu, visavam tão somente eximir as responsabilidades criminais do acusado Rafael Braga em razão de seus laços com a família do mes-mo e por conhecê-lo ‘por muitos anos’ como vizinho”38.

Algumas questões merecem ser exploradas. em primeiro, o fato de a teste-munha não ter sido contraditada pela acusação e de ter prestado compromisso no momento do seu depoimento. A circunstância, por si só, é relevante porque ser “amiga da mãe” e “vizinha” não são elementos que invalidam o depoimento de testemunhas. se houvesse dúvida quanto à idoneidade do testemunho ou à existência de relação de “amizade íntima” entre a testemunha e o réu, caberia à

37 Idem, fl. 07.38 Idem, fl. 07.

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acusação realizar a contradita e a depoente ser ouvida como informante, nos termos do art. 447 do NcPc (lei nº 13.105/2015)39. Não houve contradita, porque as rela-ções de vizinhança e de amizade com a mãe do réu não são causas impeditivas (suspeição) ao testemunho. Ademais, cabe indagar se, em não havendo contra-dita, poderia o juiz, na sentença, sem provocação, ter “reconhecido a relação de intimidade” e afastado o depoimento em razão dessa “suspeição”? conforme a estrutura do processo penal constitucional brasileiro, moldado a partir do siste-ma acusatório, a resposta parece ser negativa.

em segundo, a estrutura narrativa do depoimento demonstra uma eviden-te intenção de expor aquilo que efetivamente foi presenciado pela testemunha. Note-se que a depoente apresenta uma visão não total do fato, porque admite que não teve condições de seguir observando o evento porque Rafael Braga teria sido levado para um local que obstaculizava sua visão. Assim, é possível indagar se efetivamente o depoimento é “comprometido” com a versão da defesa – nos termos em que conclui o julgador –, por qual razão a testemunha limitaria a nar-rativa e não apresentaria um relato mais completo? A interrupção no relato torna possível concluir – inclusive se interpretado como máxima de experiência – em sentido radicalmente oposto à conclusão apresentada pelo magistrado, ou seja, de que o relato foi voluntário (isto é, não foi construído artificialmente) e idôneo, exatamente em decorrência das circunstâncias apresentadas.

No ponto, importante reproduzir algumas informações:

Testemunha [evelyn Barbara Pinto silva]:

39 “Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas.

[...] § 2º são impedidos: I – o cônjuge, o companheiro, o ascendente e o descendente em

qualquer grau e o colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consanguinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito; II – o que é parte na causa; III – o que intervém em nome de uma parte, como o tutor, o representante legal da pessoa jurídica, o juiz, o advogado e outros que assistam ou tenham assistido as partes.

§ 3º são suspeitos: I – o inimigo da parte ou o seu amigo íntimo; II – o que tiver interesse no litígio.

§ 4º sendo necessário, pode o juiz admitir o depoimento das testemunhas menores, impedidas ou suspeitas.

§ 5º os depoimentos referidos no § 4º serão prestados independentemente de compromisso, e o juiz lhes atribuirá o valor que possam merecer.”

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Foi assim, eu estava no muro da minha casa. Tem uma varanda que cai para rua. ele estava passando, estava até balançando os braços. eu mexi com ele, chamei ele pelo jeito que a gente chama que é de “poder”. Ri para ele, brinquei, ele passou. Quando ele chegou um pouquinho à frente, tinha uns policias que abordaram ele. No meio desses policiais tinha um branco, alto, do nariz bem fino, que jogou ele no canto, começou a bater nele. Bateu muito nele. Depois arrastou ele, tipo porque, na minha rua tem uma subida e tem uma descida. ele tipo que jogou ele para descida e jogou ele para o canto da parede. Dali, não dava mais para eu ver. como não dava mais para ver, eu peguei e fui lá correndo chamar a mãe dele. Fui lá correndo chamar a mãe dele, e, quando a mãe dele chegou, já tinham levado ele. Foi isso que aconteceu.

Defesa: Quando você o avistou, ele estava com alguma coisa na mão?

Testemunha: Não, ele estava balançando os braços. ele estava andando balan-çando os braços. ele estava sem nada na mão [...].40

Importante destacar essa circunstância: a testemunha chama Rafael Braga de “poder” exatamente pela forma como estava andando, gesticulando os bra-ços, o que demonstra que não trazia nada, nenhuma sacola, nas mãos. outra questão relevante é o fato de que, pela quantidade apreendida, dificilmente a droga seria carregada em sacola. o mais provável, pelas regras de experiência, é que estivesse nos bolsos.

Defesa: e você estava de cima?

Testemunha [evelyn Barbara Pinto silva]: estava. como eu estava na varanda, quando eles jogaram ele para a rua debaixo, assim, para a descida, eu fui para a minha janela de cima que dali dá pra ver mais. A visão é mais ampla.

Defesa: Que horas eram?

Testemunha: era a hora das crianças irem para escola. era umas 07:30h, 07:40h.

Defesa: Não passou de 08:00h da manhã?

Testemunha: Não passou. [...]

Defesa: como ele estava vestido?

Testemunha: ele estava com uma bermuda preta e estava com uma blusa escu-ra, se não me engano.

Defesa: uma blusa escura? ele estava com uma bermuda preta e uma blusa escura?

Testemunha: É, se não me engano ele estava com uma blusa escura.

Defesa: entendi. ele estava sozinho na hora que foi abordado?

40 TJRJ, Processo criminal nº 0008566-71.2016.8.19.0001, 39ª vara criminal da comarca do Rio de Janeiro, Depoimento Judicial.

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Testemunha: sim, estava sozinho.

Defesa: Tinha um grupo de pessoas com ele?

Testemunha: Não, ele estava sozinho.

Defesa: Não tinha mais ninguém ao redor dele?

Testemunha: Não tinha. [...]

Defesa: entendi. você não chegou a acompanhar a condução dele não? A saída da viatura com ele?

Testemunha: Não, porque como eles estavam batendo muito nele, jogaram ele para a rua debaixo, eu fui chamar a mãe dele, para a mãe dele ir lá.

Defesa: e quando a mãe dele apareceu, eles já tinham levado o Rafael?

Testemunha: sim, já tinham levado.

Defesa: Que nada trazia nas mãos, nesse dia?

Testemunha: Nada.

Defesa: Quantos policiais participaram da abordagem a ele?

Testemunha: Assim que chegou eram quatro, depois encheu. Ficou muito cheio. Aí foi quando eu fui chamar a mãe dele, que começaram a bater nele, jogaram ele para a rua debaixo. Aí eu fui chamar a mãe dele correndo.

Defesa: eram visíveis essas agressões de onde você estava?

Testemunha: era visível porque era na rua.41

os dados são relevantes: Rafael Braga estava sozinho, sem nada nas mãos, conversando com a testemunha, quando foi abordado e agredido pelos policiais.

A conclusão é a de que, no mínimo, há uma versão idônea que se contrapõe àquela apresentada pelos policiais. e mesmo se a versão pudesse estar comprome-tida pelos laços de vizinhança e amizade da testemunha com a mãe de Rafael Braga, a situação probatória seria a da existência de versões conflitivas de sujeitos que possuem interesse em manter suas versões: a testemunha, pelos laços de vizi-nhança e amizade com a mãe do réu; os policiais, em face da acusação da violência empregada e de terem forjado o flagrante.

Nesse conflito – se, por hipótese, desqualificada a fala de Evelyn Bárbara, o que não nos parece ser a melhor interpretação do conjunto probatório –, resta uma situação de dúvida razoável que necessariamente deve conduzir à absol-vição de Rafael Braga. No contexto narrado, a partir das circunstâncias fático--probatórias apresentadas e que tornam hígido o depoimento de evelyn Bárbara,

41 Idem.

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o princípio da presunção de veracidade do depoimento dos policiais, instrumentalizado pela súmula nº 70, não pode afastar o princípio do in dubio pro reu, critério de maior relevância na interpretação da prova nos sistemas de processo penal dos estados Democráticos de Direito.

13. mas uma outra cena (cena quatro) deve ainda ser agregada ao even-to: Rafael Braga estava em livramento condicional, monitorado eletronicamente pelo Departamento Penitenciário do eRJ. Nesse sentido, é questionável a ausên-cia, nos autos, do relatório completo do sistema de controle que permitiria re-construir a trajetória percorrida após a prisão. o fato é notório e reconhecido pelo próprio julgador ao realizar a dosimetria da pena (pena-base): “o acusado na ocasião de sua prisão encontrava-se em gozo de benefício extramuros, inclu-sive fazendo uso de tornozeleira eletrônica, como esclareceu na quando de seu interrogatório”42.

o mapa do trajeto é fundamental para validar uma das inúmeras narrati-vas do que houve após o flagrante.

o objetivo primeiro da utilização da tornozeleira eletrônica é o monitora-mento de todas as ações de investigados, réus ou condenados. Assim, não tem sentido que, em estando Rafael Braga sob monitoramento, os registros oficiais não tenham sido explorados, notadamente quando há conflito entre as versões dos po-liciais e entre essas e a do réu. Por outro lado, não parece ser uma prova difícil de ser disponibilizada, pois de posse das próprias autoridades públicas do eRJ.

14. Ao final, pensemos em recompor os fragmentos das distintas cenas desse evento, que, na tradição da atual dramaturgia de documentários, poderia ser nominado “making a drug dealer”43: (um) um morador não identificado comu-nica a um policial ou à guarnição policial (há divergência na versão) que uma pessoa ou um grupo (também há divergência entre as versões) está vendendo droga; (dois) o colaborador permanece sem identificação, não presta depoimento e não realiza reconhecimento dos membros do grupo; (três) a informação é sobre prática de venda de drogas em uma comunidade, perto do comércio local e nos primeiros horários da manhã; (quatro) na aproximação policial todos os supostos traficantes fogem, menos Rafael Braga, que fica “parado, distraído” e, finalmen-te, ao notar a aproximação da polícia, “arremessa a sacola [que continha droga] ao chão”; (cinco) os policiais prendem Rafael Braga, que não resiste, e não reali-

42 Idem, Sentença Condenatória, fl. 09.43 Referência à série “Making a Murderer” (Netflix, 2015), documentário que desnuda o sistema

de justiça norte-americano ao narrar como um homem é inocentado por provas de DNA após anos na prisão.

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zam qualquer outro esforço (perseguição, chamada de reforço) para capturar os demais membros do grupo; (seis) Rafael Braga, supostamente membro de uma facção, é preso desarmado e, apesar de negociante de drogas, sem dinheiro; (sete) embora integrante de uma facção criminosa organizada, o grupo não contava com qualquer rede de proteção/aviso, de uso típico e frequente pelos grupos do crime organizado do Rio de Janeiro, inclusive pelo comando vermelho; (oito) uma testemunha presencia o fato e reconhece que Rafael Braga estava sozinho, não portava nenhuma sacola e foi levado para “a parte baixa da rua”, mediante agressões, em versão que se harmoniza à do réu, mas que é totalmente descarta-da na decisão; (nove) Rafael Braga estava sendo controlado eletronicamente pelo Departamento Penitenciário e a prova que confirmaria (ou não) a sua versão não é trazida aos autos; (dez) os policiais militares divergem (novamente) em relação ao trajeto pós-detenção, informando que Rafael teria sido encaminhado para a base da uPP ou para a Delegacia; (onze) o réu é condenado exclusivamente pelo depoimento dos policiais que realizaram a abordagem e que, logicamente, em decorrência da sua atividade, possuem interesse em validar a sua versão, visto que foram acusados de implantar droga e agredir Rafael Braga.

Pensamos que os elementos postos anteriormente são suficientes para proble-matizar a credibilidade da prova produzida e, no mínimo, produzem um estado de dúvida razoável acerca das circunstâncias fáticas que ensejaram a prisão, o que deveria direcionar a conclusão do julgamento em sentido oposto ao da condenação. em síntese, as várias cenas que compõem o cenário da prisão, analisadas em sua autonomia, formam um quadro em que emergem inúmeras dúvidas e que não sustentam, exatamente em decorrência da ausência de uma estabilidade fático--probatória, um juízo condenatório.

entre todos os elementos, a instabilidade probatória atinge a centralidade do argumento judicial que legitima a condenação: a súmula nº 70 do TJRJ. No caso, a relativização e o afastamento da súmula nº 70 são necessários em decor-rência de (primeiro) os depoimentos policiais não serem isolados, visto que havia outra testemunha presencial; (segundo) inexistir coerência entre os depoimentos policiais e entre o dos policiais e o da testemunha ocular; (terceiro) a testemunha ocular (bem como o réu) afirma terem os policiais agido com violência, o que de-nota o interesse dos agentes públicos na demanda; e, finalmente, (quarto) não ter sido contraditada a testemunha de defesa, o que significa que prestou testemu-nho sob compromisso e, assim sendo, não pode ser simplesmente desqualificada sua palavra com base na relação com a mãe do acusado.

As presunções – no caso, a da legalidade e moralidade dos agentes da Administração Pública – possuem uma função extremamente importante no pro-

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cesso, qual seja, a de fornecer critérios de decidibilidade quando instável a prova, notadamente em face da proibição do non liquet. Ullmann-Margalit afirma que

as presunções legais obrigam a tomar algo como verdadeiro sob determina-dos pressupostos; em certas ocasiões, o direito intervém e estabelece regras em forma de presunções em virtude das quais se “infere” um fato controvertido a partir de certos fatos básicos já estabelecidos, enquanto não sejam aportados elementos de prova suficientes em sentido contrário. Deste modo, as presun-ções indicam antecipadamente uma resposta possível à questão controvertida, no intuito de produzir uma decisão.44

As presunções, portanto, operam como regras de decisão sob determina-dos pressupostos. os pressupostos de validade para a aplicação da súmula nº 70 do TJRJ, que cria uma presunção de idoneidade do depoimento dos policiais, são (primeiro) a inexistência de outras provas e (segundo) a coerência entre as versões. Conforme visto antes, nenhum desses pressupostos de validade foram verifica-dos no caso de Rafael Braga: (primeiro) existe prova testemunhal que apresenta uma versão diversa daquela dos policiais; (segundo) os próprios depoimentos po-liciais são contraditórios e lacunares.

Decisões recentes do TJRJ expõem, com bastante propriedade, os limites de aplicação do enunciado.

APELAÇÃO CRIMINAL – PENAL E PROCESSO PENAL – DELITO DE TRÁFI-CO – DECRETO CONDENATÓRIO – IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA – PLEITO DE ABSOLVIÇÃO, DIANTE DA INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA – SUBSIDIA-RIAMENTE, REQUER A REDUÇÃO DA PENA BASE; RECONHECIMENTO DO TRÁFICO PRIVILEGIADO; APLICAÇÃO DO SURSIS OU SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR MEDIDAS RESTRITIVAS DE DI-REITOS; E FIXAÇÃO DE REGIME PRISIONAL MAIS BRANDO

In casu, a materialidade ficou patenteada nos autos, não só pelo auto de prisão em fla-grante, mas também pelo auto de apreensão de material entorpecente e laudos prévio e definitivo de exame de entorpecente, que atestaram 12g de cocaína, distribuídos em 18 sacolés. Com efeito, cumpre de antemão ressaltar que, além da cocaína, o auto de apre-ensão e laudos susomencionados referem-se ainda a 31g de maconha, distribuídos em 20 sacolés, e 6g de haxixe, distribuídos em 7 sacolés. Contudo, o Parquet, ao imputar o cri-me de tráfico, olvidou da existência de tais substâncias entorpecentes, não promovendo sequer o aditamento à denúncia para inseri-las como substâncias arrecadadas durante a diligência policial. Entrementes, verifica-se que a autoria, em que pese confirmada pelos agentes da lei em juízo, não ficou suficientemente comprovada. Ora, a Súmula nº 70 deste e. Tribunal não tem aplicação cogente e automática, devendo ser realizada uma análise pormenorizada dos depoimentos dos agentes da lei com o fito de ser conferida

44 Apud meNDoNÇA, Daniel. Presunciones. Doxa, universidade de Alicante, v. 21, p. 83, 1998 [tradução livre].

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a devida validade à prova oral. Por outro lado, não se desconhece que em crimes desse jaez a oitiva dos policiais acaba assumindo suma importância, notadamente diante da impossibilidade fática de serem arroladas outras testemunhas. Todavia, embora o mis-ter desempenhado seja árduo, diante das dificuldades estruturais sentidas na própria instituição, e das diligências realizadas em comunidades dominadas pelo narcotráfico, suas declarações devem ser coesas e harmoniosas entre si, bem como com o caderno pro-batório. In casu, verifica-se que os brigadinos, já em sede distrital, relataram a dinâmica delitiva de maneira idêntica, o que, de práxis, é até admissível, diante da necessária renovação da colheita de suas oitivas sob o crivo das garantias constitucionais. Porém, no caso, averígua-se que os depoimentos das ditas testemunhas de acusação foram idên-ticos também em sede judicial, não sendo crível sua utilização para emissão de uma condenação. É ressabido que a prova cabal acerca da prática do injusto deve revelar o máximo de verdade real possível, ou seja, deve revelar uma probabilidade de se conceber uma ideia, mais ou menos exata, sobre a ocorrência de prática tida como delituosa. Não parece legítima a condenação fulcrada em declarações idênticas, que foram copiadas e coladas. Ademais disso, ainda que admitisse a validade de tais declarações, sopesando as mesmas com a versão do apelante, verifica-se que não ficou suficientemente demonstra-do o delito de tráfico, na medida em que não conseguiram demonstrar que ele estivesse praticando a abjeta mercancia. Assim, cotejando as provas angariadas ao longo da ins-trução, tem-se que o Ministério Público não cumpriu satisfatoriamente com seu mis-ter constitucional, pairando dúvidas que comprometem a emissão do juízo de censura, razão pela qual, em homenagem ao princípio in dubio pro reo, impõe-se a absolvição. Recurso a que se dá provimento.45

No caso referido, a aplicação da súmula não é criticada em razão da ausên-cia de coerência, mas da idêntica reprodução dos testemunhos de acusação. No entanto, várias outras decisões, igualmente do mês de agosto de 2017, momento em que foi redigido o parecer, afastam a súmula nº 70 em razão da ausência de um conjunto probatório sólido e da falta de demonstração concreta do intuito mercantil, sendo, pois, aplicado o princípio da dúvida.

É indiscutível que a palavra de policiais tem tanta valia quanto de qualquer outra tes-temunha, mas é certo que é exigível que esteja em consonância com as demais provas coligidas, o que não é o caso dos autos, onde os depoimentos dos policiais não são cor-roborados por nenhuma outra prova, sendo certo que os milicianos não presenciaram por parte do acusado nenhum ato de mercancia de droga, inexistindo suporte probatório para que ficasse configurado que se dedicasse ao tráfico [...].Qualquer condenação exige um conjunto de provas sólido o bastante para deixar o jul-gador ao abrigo seguro de qualquer dúvida e o fato é que destes autos não deflui certeza segura, firme e serena de que o apelante se dedicava ao comércio ilícito da droga, de-sautorizando decreto condenatório a remeter o mesmo a mais de 06 anos de cárcere em regime fechado, conforme determinado na sentença guerreada.

45 TJRJ, Ac 0008566-87.2016.8.19.0028, 7ª câmara criminal, Relª Desª maria Angélica G. Guerra Guedes, J. 22.08.2017, grifou-se.

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Existindo duas versões para o fato, não há porque prevalecer a que menos favorece o acusado por isso que o princípio in dúbio pro reo determina que após esgotarem--se todos os meios de prova disponíveis e processualmente admissíveis que possam ser empregados pelo juiz, em seu dever de buscar a verdade real dos fatos, a sentença deve fundamentar-se na possibilidade mais favorável ao acusado.

Em síntese, caberia à acusação comprovar a prática do ilícito de tráfico de drogas, so-bretudo nas circunstâncias do caso sub judice, na qual é possível que o acusado tenha adquirido as drogas para consumo pessoal, restando não demonstrada, a meu juízo, a destinação mercantil sustentada pela acusação.

Diante de tais circunstâncias, conclui-se que há, no mínimo, incerteza quanto à tipificação apontada na denúncia. As provas indicam apenas que as drogas poderiam ser utilizadas pelo apelante para uso próprio.46

em sentido idêntico:Não se está a negar a validade do depoimento dos policiais, até mesmo diante da redação da Súmula 70, desta Corte, todavia, a esta prova deve ser atribuída um peso relativo de modo a ser analisada dentro do caderno probatório em que inserida.De se ver que o réu, durante todo o processo negou ser o proprietário das drogas e do radiotransmissor, o que foi confirmado pela testemunha arrolada pela acusação, Luiz Magno.Como se pode verificar, a acusação não logrou êxito em produzir elementos probatórios firmes e seguros, aptos a comprovar os termos da denúncia, restando dúvida sobre a autoria do crime de tráfico de drogas.Apesar dos policiais terem afirmado em juízo que Leandro, na data dos fatos, teria con-fessado a autoria do delito, assumindo, inclusive a posse da droga e dos demais bens que estava na sacola, esta versão não encontrou amparo nas demais provas produzidas no processo, as quais apontam para a sua absolvição.Tomando por base o fato de que no processo penal uma condenação deve ser lastreada em um juízo de certeza acerca da autoria e materialidade do crime, as provas acima destacadas demonstram que, de fato, não existiam condições seguras para alicerçar uma sentença condenatória.

Destarte, não há como persistir a imputação, em obediência ao princípio do in dubio pro reo, impondo-se, por conseguinte, a reforma total da sentença.47-48

46 TJRJ, Ac 0000082-80.2017.8.19.0050, 7ª câmara criminal, Rel. Des. siro Darlan de oliveira, J. 10.08.2017, grifou-se.

47 TJRJ, Ac 0006589-60.2016.8.19.0028, 5ª câmara criminal, Rel. Des. marcelo castro Anátocles da silva Ferreira, J. 06.08.2017, grifou-se.

48 No mesmo sentido, exemplificativamente, outros julgados deste ano do TJRJ: (a) TJRJ, Apelação nº 0004048, 7ª câmara criminal, Rel. Des. Joaquim Domingos de Almeida Neto, J. 10.08.2017; (b) TJRJ, Apelação nº 0004048-14.2016.8.19.0203, 7ª câmara criminal, Rel.

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Nota-se, dos julgados relacionados, que apenas em situações de estabi-lidade probatória teria aplicabilidade a súmula nº 70 do TJRJ. No caso – e in-felizmente em muitos outros similares no atual cenário de atuação da Polícia militar no eRJ –, essa presunção não pode ser transformada em uma crença, em um absoluto inquestionável, pois, na realidade concreta da vida, tem produzido situações teratológicas e de extrema injustiça. A condenação de Rafael Braga, no processo em análise, é certamente um exemplo dessas injustiças.

consiDeraÇÕes finais

15. o estudo dos autos, sobretudo da sentença condenatória, notadamente dos argumentos judiciais expostos para justificar o juízo de tipicidade dos crimes de tráfico de drogas e associação ao tráfico, permite-nos apresentar algumas con-clusões acerca (primeiro) dos pressupostos de validade da aplicação da súmula nº 70 do TJRJ e (segundo) se, no caso concreto, a aplicação da referida súmula respeitou os pressupostos legal e constitucional de validade.

em primeiro, é importante referir que construção de enunciados para orientar critérios de decidibilidade sustenta-se, invariavelmente, em situações ideais. Assim, esses critérios gerais devem necessariamente ser confrontados com a realidade. A súmula nº 70 do TJRJ, que admite a condenação com base exclusivamente em depoimentos de policiais militares, pressupõe, no plano po-lítico (e político-criminal), uma situação de efetividade democrática na qual as agências repressivas observem rigidamente os limites constitucionais de atua-ção. Por outro lado, no plano jurídico (processual penal), pressupõe (a) absoluta ausência ou a impossibilidade de outras provas, e (b) a coerência dos relatos dos agentes públicos (policiais).

em segundo, nota-se que, na sentença que condena Rafael Braga, não apenas está ausente o pressuposto que legitimaria a decisão no plano político criminal – qual seja, uma atuação regular e constante da Polícia militar do Rio de Janeiro em conformidade, sobretudo, com a legalidade, a impessoalidade, a moralidade e a publicidade dos atos –, como estão ausentes os critérios proces-

Des. Joaquim Domingos de Almeida Neto, J. 10.08.2017; (c) TJRJ, Apelação nº 00015199-44.2016.8.19.0213, 7ª câmara criminal, Rel. Des. Joaquim Domingos de Almeida Neto, J. 02.08.2017; (d) TJRJ, Apelação nº 004118-26.2015.8.19.0001, 7ª câmara criminal, Rel. Des. siro Darlan de oliveira, J. 07.06.2017; (e) TJRJ, Apelação nº 0003247-44.2015.8.19.0006, 7ª câmara criminal, Rel. Des. siro Darlan de oliveira, J. 06.06.2017; (f) TJRJ, Apelação nº 0004773-58.2016.8.10.0023, 7ª câmara criminal, Rel. Des. Joaquim Domingos de Almeida Neto, J. 30.05.2017; (g) TJRJ, Apelação nº 0045273-12.2015.8.19.0021, 7ª câmara criminal, Rel. Des. siro Darlan de oliveira, J. 09.03.2017.

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suais de validade da prova – a inexistência ou impossibilidade de produção de outras provas e a coerência entre as versões dos depoentes (policiais militares). conforme se percebe da instrução, existe prova testemunhal que apresenta uma versão diversa daquela dos policiais e os próprios depoimentos das autoridades públicas são contraditórios e lacunares. A divergência, a contradição e as lacunas percebidas na instrução conduzem a uma situação de, no mínimo, fragilidade probatória (dúvida razoável), o que indicaria a incidência do in dubio pro reo.

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a LegitimaÇÃo Dos Linchamentos a Partir Da narrativa miDiática: Uma anáLise Da ProDUÇÃo DiscUrsiva Do

“BanDiDo” como ser matáveLthe Legitimation of Lynchings in the narrative of

the meDia: an anaLysis of the DiscUrsive ProDUction of the “criminaL” as someone to Be kiLLeD

Felipe Machado Veloso*

huMBeRto RiBeiRo JúnioR**

Resumo: o presente artigo investiga a narrativa do Jornal A Gazeta acerca dos casos de linchamentos ocorridos entre os anos de 2004 a 2014 no estado do espírito santo. Foram analisadas diversas ca-racterísticas relevantes, como a motivação que teria levado os lin-chadores a cometerem o linchamento e a denominação que o jornal atribuiu à vítima do linchamento e aos participantes, entre outros aspectos gerais. Após essa análise inicial, foi utilizado o conceito do homo sacer de Giorgio Agamben para investigar como a vítima do linchamento foi considerada um ser indigno de viver e matável pelo Estado, pela mídia e pela sociedade, já que pôde ser verificado que o mero suspeito da prática de um crime é considerado como um “ban-dido”, sendo constatado que inexiste proteção jurídica e política em face desse sujeito.PAlAvRAs-chAve: linchamento; mídia; homo sacer; bandido.ABsTRAcT: This article investigates the narrative of the “A Gaze-ta” newspaper about the lynching that occurred from 2004 to 2014 in the state of espirito santo. several relevant characteristics were analyzed, such as motivations that would have led people to commit lynching, the name which the newspaper attributed to the victim of

* mestre em segurança Pública pela universidade vila velha, Bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa do espírito santo (Fapes), Advogado. E-mail: [email protected].

** Doutor em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF), Mestre em Filosofia e Teoria do Direito (PPGD/uFsc), Professor do mestrado em segurança Pública e do curso de Graduação em Direito da uvv. E-mail: [email protected].

veloso, Felipe machado; RIBeIRo JÚNIoR, humberto. A legitimação dos linchamentos a partir da narrativa midiática: uma análise da produção discursiva do “bandido” como

ser matável. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 68, p. 79-110, 2018.

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lynching and to the participants, among other general aspects. After this initial analysis, Giorgio Agamben’s concept of the “homo sacer” was used to investigate as the victims of the lynching was conside-red a being unworthy to live and to be killed by the state, the media and society, as it could be verified that the suspect of committing a crime is regarded as a criminal. It is observed that there is no legal protection and policy in face of this subject.

KeYWoRDs: lynching; media; homo sacer; criminal.

sumÁRIo: Introdução; 1 metodologia; 2 os linchamentos no espí-rito santo: uma análise inicial dos dados; 3 o homo sacer em Giorgio Agamben; 4 A transformação do “suspeito” da prática de um cri-me em homo sacer; 4.1 o “bandido” como homo sacer no discurso de imprensa; 4.2 o “bandido” como homo sacer sob a perspectiva dos linchadores e do estado; 4.3 o momento em que o suspeito de um crime se torna o “bandido” homo sacer; Considerações finais; Refe-rências.

introDUÇÃo

o linchamento é um fenômeno complexo em razão de sua espontaneidade e inúmeros fatores da sociedade relevantes, o que torna seu estudo e sua com-preensão estritamente necessários para o diagnóstico de muitos problemas so-ciais ou mesmo violações aos direitos humanos que ocorrem diariamente.

Além disso, no linchamento a população se apropria do poder do estado de realizar a devida persecução penal, que inclui o trâmite processual em que são garantidos ao acusado a ampla defesa e os demais direitos outorgados pela constituição, o que representa um grave problema de segurança pública.

com isso, a presente pesquisa buscará analisar um fenômeno social atual e que comporta uma amplitude grande de interpretações distintas com relação aos motivos que determinam sua ocorrência, assim como diversas características relevantes que indicassem e explicassem a maneira como a cena de acusação e as agressões ocorriam.

Em decorrência da inexistência de um estudo específico acerca dos lincha-mentos no estado do espírito santo que indicasse ao menos o número de casos ocorridos e demais características essenciais para uma análise aprofundada sobre o tema, entendeu-se relevante a realização de uma pesquisa no Jornal A Gazeta dos casos registrados no estado de 2004 a 2014, tendo em vista a inexistência de uma fonte de dados oficial.

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o estudo dos casos de linchamentos por meio dos recortes de jornais do referido periódico visa identificar, além de outros aspectos relevantes envolvidos nas ocorrências encontradas que serão analisados preliminarmente, a narrativa que a notícia jornalística utilizou para relatar as partes envolvidas e o ocorrido.

Na análise inicial das principais características sobre os linchamentos, serão verificados nas notícias de jornais aspectos como: a motivação que teria levado os agressores a cometerem o linchamento, a denominação que o jornal atribuiu à vítima do linchamento e aos agressores; e outros, como data do fato e da publicação, a idade das vítimas e o local das ocorrências.

Assim, a partir dessa base de dados inicial procuraremos desenvolver uma análise aprofundada sobre aspectos atribuídos à vítima do linchamento, uma vez que, no estudo preliminar das ocorrências, foram constadas diver-sas características em relação àquele indivíduo que mereciam um estudo mais aprofundado.

Para isso, será utilizado o conceito do homo sacer proposto por Giorgio Agamben (2007), além da relação desse agente com o soberano, com o fim de se investigar como ocorre a produção da matabilidade do indivíduo considerado “suspeito” da prática de um crime.

essa análise será realizada a partir dos recortes de jornais e sob três dife-rentes perspectivas: a da mídia, que é representada pela narrativa utilizada pelo Jornal A Gazeta para retratar o linchamento; a dos indivíduos, que promoveram o linchamento por meio do discurso que foi publicado nas notícias estudadas; e do estado, por meio das informações de prisões e de processamento penal dos linchadores.

O primeiro tópico verificará a narrativa produzida pela mídia e o título utilizado para noticiar o linchamento, principalmente em relação à denominação atribuída à vítima e aos seus agressores. Além disso, serão investigados outros aspectos relevantes, como o destaque dado para os antecedentes criminais da vítima do linchamento.

o segundo item estudado será a narrativa das pessoas que promoveram o linchamento ou que o testemunharam de acordo com o noticiado nos recortes de jornais, com o objetivo de investigar a razão pela qual tal ato foi praticado.

outrossim, também por meio de uma análise dos recortes de jornais será investigado se o estado legitimou o linchamento em certo ponto quando a polícia deixa de efetuar a prisão em flagrante dos linchadores ao presenciar a agressão à vítima do linchamento, além de não realizar a devida investigação e o processa-mento penal desses agressores.

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Ademais, o presente artigo pretende verificar em que circunstâncias os agressores e acusadores identificam que um indivíduo merece ser linchado. Des-sa forma, todos esses tópicos procuram analisar como a vida desse sujeito con-siderado “bandido” é irrelevante para a imprensa, a sociedade e o estado. em razão disso, a categoria fundamental que vai ser discutida é a perda da proteção jurídica da vida desse suspeito da prática de um crime e o discurso que faz com que tal individuo se torne matável.

Diante disso, o objetivo principal do presente texto, além de analisar di-versas características dos linchamentos registrados, é investigar, por intermédio da narrativa utilizada nos recortes de jornais estudados desse fenômeno, como o indivíduo considerado “bandido” (mero “suspeito” da prática de um crime) é tido como um ser matável (o homo sacer a que se refere Agamben) pela mídia, pela sociedade de um modo geral e pelo estado, na medida que pode ser morto, sem que tal ato seja considerado homicídio, o que mostra a inexistência de proteção jurídica e política em face desse sujeito.

1 metoDoLogia

A presente pesquisa foi realizada a partir de um levantamento no Jornal A Gazeta, com o auxílio da ferramenta de busca da biblioteca digital, em que foram inseridas as expressões “linchamento”, “lincha”, “linchou, “linchador”, “lincha-do” e “justiçamento” separadamente com o intuito de identificar os casos de lin-chamento noticiados por esse periódico entre os anos de 2004 e 2014.

A opção pela pesquisa em jornal se deve ao fato de que os linchamentos não são registrados nas ocorrências policiais, uma vez que não existe um tipo penal definido para isso. Desse modo, os casos de linchamento são classificados como lesão corporal, homicídio, tentativa de homicídio, entre outros. Tal aspecto impossibilita a utilização dos boletins de ocorrência ou outros dados estatais ofi-ciais como fonte para a pesquisa do fenômeno.

em razão disso, os pesquisadores da área consideram as notícias dos jor-nais a principal fonte de pesquisa para os linchamentos. De acordo com martins (1996, p. 15), os dados de jornais são a “única fonte minimamente sistemática disponível em escala nacional. Não há outra”.

Após ser realizada a referida coleta de dados, foi identificado um número de 64 casos de linchamento noticiados pelo Jornal A Gazeta no período estudado. Na análise desses registros foram encontradas inúmeras características relevan-tes para a compreensão do fenômeno no estado do espírito santo, tais como o crime que motivou o linchamento, o local das agressões, a idade e ocupação da vítima, entre outros, conforme será verificado.

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2 os Linchamento no esPírito santo: Uma anáLise iniciaL Dos DaDos

A pesquisa realizada no estado do espírito santo do ano 2004 a 2014 no Jornal A Gazeta localizou 64 casos de linchamento, sendo que 84,3% das ocor-rências, que correspondem a 54 registros, aconteceram na região metropolita-na da Grande vitória, que abrange vitória, vila velha, cariacica, serra, viana e Guarapari; e apenas 15,7% no interior do Estado, conforme tabela dos Municí-pios a seguir:

taBeLa 1 – DistriBUiÇÃo Por mUnicíPios

mUnicíPio nº De casos PercentUaLcariacica 17 26,56%vila velha 14 21,97%serra 9 14,06%vitória 9 14,06%Guarapari 4 6,25%viana 1 1,56%linhares 2 3,12%Jaguaré, Aracruz, sooretama, D. martins, cachoeiro do Itapemirim, são mateus e montanha

1 caso cada 10,93%

total 64 casos 100%

cariacica, com 17 casos, o que representa quase o dobro das ocorrências da capital, é o município do estado em que mais ocorreram linchamentos, seguido de vila velha com 14 e serra e vitória com 9 cada. Das cidades do interior do estado, apenas linhares registrou 2 casos.

cumpre ressaltar que, de todos os registros, apenas três casos ocorreram na região rural, o que equivale a 4,68% do registrado. Isso demonstra que o lin-chamento no espírito santo é um fenômeno tipicamente urbano. esses dados confirmam a tese de Martins (2015, p. 78), que destaca que “os linchamentos que podem ser estudados no Brasil constituem um fenômeno caracteristicamente ur-bano, que se dá num ambiente caracteristicamente anti-tradicionalista”.

contudo, as ocorrências de justiçamento no meio rural têm relação, se-gundo martins (2015), com os crimes de sangue ou violações à honra da família que mora no campo. em comparação aos casos ocorridos no meio rural e urbano, o referido autor (2015, p. 79) destaca que “essa prática de justiça popular não é própria nem típica do mundo rural, onde ainda operam sólidos mecanismos de solidariedade familiar e comunal”.

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esses dados também corroboram a perspectiva de Adorno (2002), segundo a qual a maior concentração das ocorrências de linchamento nos centros urbanos pode estar relacionada à violência existente nessas regiões, principalmente em comparação com o meio rural, o que estimula a prática dos linchamentos, uma vez que o estado não tem conseguido controlar os índices de criminalidade nas regiões metropolitanas e, ao mesmo tempo, promover um amplo acesso à justi-ça àquela população, que acaba buscando a chamada “justiça com às próprias mãos”.

em relação ao período estudado, não houve um aumento ou diminuição contínuo do número de casos dos linchamentos no espírito santo, mas sim varia-ções ano após ano. Apesar disso, alguns anos se destacaram pelo grande número de ocorrências em comparação com os demais, conforme gráfico anual a seguir:

gráfico 1 – Linchamentos no esPírito santo

o ano de 2005 foi o que apresentou uma maior quantidade de casos, che-gando a 12 (doze); seguido de 2009, com 10 (dez); e 2013, com 9 (nove) registros. Já os anos com o menor números de linchamentos registrados foram os de 2010 e 2014, com apenas 1 (um) e 2 (dois) casos, respectivamente. os referidos dados demonstram que, em média, pode-se esperar de 6 a 7 linchamentos por ano no estado do espírito santo.

A constante que pôde ser observada é que sempre após uma alta do nú-mero de casos de linchamento de um ano o seguinte mostra uma queda brusca. Isso ocorreu nos três anos, com uma maior quantidade de ocorrências, que foram seguidos pelos que apresentaram o menor número de casos, conforme se verifica nos anos 2005/2006, 2009/2010 e 2013/2014.

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Já, em relação à suposta conduta praticada pela vítima do linchamento que levou à agressão dos linchadores, 51,56% das ocorrências, que representam 33 casos, tiveram como motivação a acusação de crime praticado contra a pessoa, 42,18% que constituem 27 registros, de crime contra a propriedade, 3,12% de cri-me contra a propriedade e pessoa, e 3,12% por motivos desconhecidos, conforme tabela a seguir:

taBeLa 2 – motivaÇÕes

motivaÇÃo nº De casos

crimes contra a pessoa 33

crimes contra a propriedade 27

crimes contra a propriedade e pessoa 2

motivos desconhecidos 2

total 64 casos

com isso, percebe-se que a maioria dos casos de linchamento no espírito santo é ocasionada pela acusação da vítima do linchamento ter cometido um suposto crime contra a pessoa, que abrange desde homicídio a crimes sexuais, como estupro. No Brasil, de acordo com a pesquisa realizada por martins (2015), o índice de motivações ligadas a crimes contra a pessoa é de 45,7%, o que é um percentual 5,8% menor que encontramos nos dados coletados.

merece destaque que, dos 33 registros de linchamento por crime contra a pessoa, 19 casos tinham a motivação ligada a crimes sexuais supostamente prati-cados pela vítima do linchamento, o que corresponde a 57,5% desse tipo de ocor-rência1, sendo que, desses 19 registros, 8 (oito) tiveram como resultado a morte do suspeito e 3 (três) o estado grave da vítima do linchamento. Dessa forma, os crimes sexuais, sejam eles tentados ou consumados, são os que mais resultam em mortes por linchamento no estado do espírito santo.

De todos os 64 casos ocorridos, 15 resultaram em morte, o que representa 23,43% das ocorrências, sendo que 8 são por motivação decorrente de crimes sexuais, o que representa mais da metade do total das mortes. o repúdio pelos crimes sexuais na sociedade brasileira pode ser exemplificado na atitude de pre-sos ao lincharem outros presos acusados de cometer o crime de estupro, princi-palmente contra crianças, conforme ressalta José de souza martins:

1 linchamentos motivados por crimes cometidos contra a pessoa.

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os diferentes casos de linchamentos de presos por outros presos constituem uma expressão extrema dessa concepção. esses linchamentos atingem de ma-neira particularmente intensa os estupradores de crianças e mais gravemente quem tenha estuprado a própria filha. (Martins, 1996, p. 20)

Nesses casos, ainda segundo martins (1996, p. 20), os presos consideram os estupradores como pessoas que podem contaminá-los com a sua desumanidade, o que faz com que os outros presos se sintam “compelidos a traçar uma linha de sangue que separe humanos de não-humanos”. em razão disso, os estupradores são muitas vezes linchados, torturados e mortos, o que demonstra que, apesar de as regras e os valores na prisão serem diferentes em relação à sociedade livre, o repúdio por crimes sexuais se mantém, mesmo nessas condições.

com relação ao número de mortes em comparação com o de linchamentos, um estudo realizado no Brasil por souza e menandro (2002), de 1990 até 2001, concluiu que 43,7% dos casos resultaram em morte do acusado, um número bem superior ao registrado no Estado do Espírito Santo, que foi de 23,43%. Tal diver-gência pode ser explicada pela chegada da polícia após o início dos linchamen-tos. Em 32 casos, o que representa 50% do total dos registros, as agressões foram interrompidas em razão da chegada da polícia.

o rápido comparecimento da polícia ao local é fundamental para que se-jam evitados casos que resultem na morte do acusado, uma vez que não há como realizar diretamente a prevenção do linchamento, que é um fenômeno inespera-do, que depende de várias circunstâncias e pode se iniciar sem qualquer previsão.

outro ponto que merece destaque é a idade das pessoas que sofreram lin-chamentos, que foram divididas em seis faixas etárias para a análise: de 14 a 17 anos, 18 a 25 anos, 26 a 35 anos, 36 a 45 anos, 46 a 55 anos e acima de 56 anos, conforme a tabela que segue.

taBeLa 3 – iDaDe Das vítimas De LinchamentofaiXa etária nº De casos PercentUaL

14 a 17 anos 11 17,18%

18 a 25 anos 21 32,81%

26 a 35 anos 12 18,75

36 a 45 anos 7 10,93

46 a 55 anos 6 9,37%

Acima de 56 anos 2 3,12%

total 64 100%

De acordo com a Tabela 3, a faixa etária com maior número de ocorrências é a de 18 a 25 anos, com 32,81% dos casos, seguida da idade entre 26 e 35 anos,

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que representa 18,75% e de 14 a 17 com 17,18%. Apesar de não ser a faixa etária com um maior registro de ocorrências, chama a atenção o alto índice de vítimas de linchamentos adolescentes.

essa pesquisa também registrou que apenas um caso, o que representa 1,56% do total dos linchamentos ocorridos no Espírito Santo, teve como vítima do sexo feminino, os 98,44% restantes foram contra indivíduos do sexo masculi-no. os resultados encontrados por souza e menandro (2002) foram semelhantes, 97,3% das vítimas do seu estudo que abrangeu o território brasileiro eram do sexo masculino.

Tais dados não seriam uma surpresa, tendo em vista que “os homens en-volvem-se com a criminalidade violenta muito mais frequentemente do que as mulheres” (souza e menandro, 2002, p. 259). Ainda segundo os autores, “é forço-so reconhecer que existem barreiras culturais que reduzem as chances de intensa agressão grupal pública contra mulheres”.

Já os dados obtidos sobre os agentes sociais que cometeram o linchamento mostram que um maior número de ocorrências está ligado ao que o jornal chama de “moradores” ou “vizinhos”, que representam 42,18% do total. Além disso, em segundo lugar no número de ocorrências, com base no identificado pela notícia, estão os “populares” ou “população”, conforme tabela a seguir:

taBeLa 4 – grUPos LinchaDoresgrUPo sociaL nº De casos PercentUaL

“moradores” ou “vizinhos” 27 42,18%“Populares” ou “População” 20 31,25%Não informado ou desconhecido 8 12,5%outros 7 10,93“Presos” 2 3,12%total 64 100%

confrontando os referidos dados encontrados no estado do espírito santo com a pesquisa realizada por José de souza martins no Brasil, nas décadas de 80 e 90, percebe-se uma ínfima diferença (2%) em relação ao grupo de “moradores” e “vizinhos” encontrados no presente estudo, que representaram 44,8% das ocor-rências na pesquisa de martins (1996).

Dessa forma, os linchadores em média são vizinhos e moradores que são conhecidos. Nesse sentido, martins (1996, p. 17) destaca que “os linchadores vi-vem na mesma localidade e, de certo modo, são vizinhos, ainda que vizinhos distantes. seu dia a dia envolve grande probabilidade de reencontro, se é que não são ‘conhecidos de vista’”.

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Ainda segundo o autor, tal fato faz com que as pessoas se recusem a teste-munhar contra o vizinho/morador do mesmo bairro durante um inquérito poli-cial, uma vez que há um sentimento de pertencimento daquelas pessoas. Nesse sentido, Martins (1996, p. 17) defende que “80% dos linchamentos são praticados por agrupamentos de pessoas que se unem para linchar por motivos e relacio-namentos de tipo tradicional, comunitário e auto-defensivo, grupos com alguma estabilidade e continuidade”.

o referido dado percentual não pôde ser encontrado na presente pesquisa, uma vez que a notícia analisada se limitava a nomear os linchadores de alguma forma, como “populares”, por exemplo, o que dificultou a classificação, prin-cipalmente em razão da amplitude do termo utilizado. o número de 27 casos (42,8%) de linchamentos perpetrados por vizinhos ou moradores certamente é maior, haja vista que estes podem estar incluídos no que o jornal denomina de “populares”, ou mesmo nos que os motivos são desconhecidos. De qualquer for-ma, verifica-se que, na maioria dos casos de linchamento, as pessoas possuem algum vínculo de pertencimento entre elas, principalmente de vizinho, conforme resultado da Tabela 4.

outro dado encontrado que merece destaque é com relação ao número de participantes dos linchamentos, mesmo sendo essa informação fornecida pelo recorte de jornal em apenas 12 registros. Dessas ocorrências, apenas duas tiveram a participação de mais de 20 pessoas, sendo a maioria (8 casos) com cerca de 12 a 20 participantes, o que é semelhante ao resultado encontrado de martins (1996, p. 7), de que “a tendência é, portanto, de linchamentos praticados por grupos relativamente pequenos”.

outrossim, analisando a forma que a vítima de linchamento foi denomi-nada nos recortes de jornais realizados, percebeu-se a utilização de diversos es-tereótipos, como ladrão, bandido, assaltante, estuprador, menor, entre outros; o que demonstra que o jornal não apenas divulgou a informação do ocorrido, mas também promoveu o julgamento e a condenação das pessoas assim classificadas, antes mesmo da conclusão de qualquer investigação oficial.

Além disso, os linchadores são denominados pelo jornal como “morado-res” ou “populares”, enquanto a vítima do linchamento, mesmo em casos em que é espancada até morte, é chamada de “assaltante”, “bandido” e “ladrão”. Dos 64 casos registrados, é possível observar que em ao menos 22 casos a vítima de linchamento foi chamada pejorativamente, conforme gráfico a seguir:

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gráfico 2 – como a vítima Do Linchamento foi chamaDa

Outrossim, a vítima de linchamento foi classificada em outras 11 notícias como acusado/suspeito de um crime, o que faz das pessoas que agrediram fisi-camente esse “suspeito” apenas vítimas. De todos os 64 registros, apenas em um o linchado foi chamado de vítima pela reportagem, o que demonstra que, apesar de todas as agressões por ele sofridas que resultam muitas vezes na sua morte, o jornal considera a vítima do linchamento, ainda que indiretamente, como um criminoso que mereceu ser agredido ou morto.

Diante dos dados encontrados em relação à denominação atribuída às ví-timas de linchamento e às circunstâncias verificadas em torno dessas agressões, que, em muitos casos, terminavam em homicídios, percebeu-se a descartabilida-de dessas pessoas que são suspeitas da prática de um crime, o que resultou na busca de um aporte teórico que pudesse aprofundar e debater essa questão nos próximos tópicos.

3 o homo sacer em giorgio agamBen

entre os dados obtidos por meio da análise das notícias de linchamento, mostrou-se bastante relevante o encontrado em relação às vítimas de tal ato. es-sas pessoas não são denominadas de vítimas, mesmo que o linchamento ocasione a sua morte e seja brutal; não obstante, são chamadas de “bandido”, “ladrão” e “estuprador”, mesmo após sofrerem tamanha violência. Tais aspectos, somados ao tratamento de “moradores” ou “populares” atribuído aos seus agressores,

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gera um quadro complexo, fazendo que a análise, a partir de um aporte teórico desse resultado, seja necessária.

A partir dessas características identificadas nas notícias de linchamento, encontramos na filosofia política de Giorgio Agamben uma possibilidade de abordagem que permite problematizar a narrativa utilizada pela imprensa nos casos estudados. O filósofo italiano, na sua obra Homo sacer: o poder soberano e a vida nua (2007), apresenta a figura proveniente do direito arcaico romano deno-minada homo sacer. A pessoa que era assim considerada podia ser morta, sem que tal ato fosse considerado homicídio, mas, ao mesmo tempo, não era passível de sacrifício pelo rito religioso – uma vida sem proteção nem da esfera político--jurídica nem da esfera religiosa.

Nesse sentido, para que seja possível compreender essa punição romana, Agamben recorre ao conceito de vida nua. Na Grécia antiga, existiam duas pa-lavras para denominar, o que hoje chamamos de vida. Zoé, para os gregos, era considerado o simples viver, comum de todos os seres viventes, como animais e humanos. e bíos era o modo próprio de uma pessoa ou um grupo de viver (Agamben, 2007).

Diante disso, a vida considerada zoé é tida como o fato de “somente ter vida”, de respirar. Já a bíos é uma vida qualificada, em que está inserida a pólis (a política), sendo a relevância política a principal diferença entre essas duas cate-gorias. A política somente é inserida no âmbito da vida nua (zoé), como forma de exceção, pois o ordenamento somente dispõe a respeito da sua exclusão e mata-bilidade/insacrificabilidade (Agamben, 2007, p. 15).

Segundo o filósofo italiano, “a dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão” (Agamben, 2007, p. 16). A vida nua está desprovida de pro-teção e significado político. Agamben classifica como matável e insacrificável a vida do homo sacer, que “qualquer um podia matar impunemente” (2007, p. 79). com isso, a inexistência de proteção jurídica do homo sacer decorre da sua inex-pressão política, pois a sua vida não é a bíos, mas, tão somente, zoé.

em uma análise da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão promul-gada na França em 1789, Agamben (2007) verifica a diferença e o esforço dessa e outras disposições normativas em classificar qual homem seria cidadão ou não. Sendo constatado pelo filósofo italiano que o “cidadão” detém a vida qualificada politicamente (bíos) e que o “somente homem” constituiria a via nua e crua do homo sacer (zoé).

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Isso fica visível no interior da filosofia liberal, quando Cesare Beccaria, um expoente da racionalização do Direito Penal, dispõe sobre a punição do confisco dos bens e o banimento:

A perda total ocorrerá quando banimento previsto pela lei determine o rompi-mento de todos os laços entre a sociedade e um cidadão delinquente; morre en-tão o cidadão e permanece o homem, o que, com respeito ao corpo político, deverá produzir os mesmos efeitos que a morte natural. (1999, p. 88, grifo nosso)

essa diferença entre a vida bíos e zoé pode ser encontrada na maioria dos estados modernos, inclusive nas normas relativas aos direitos humanos e, tam-bém, em relação aos cidadãos da nação e os considerados refugiados, em que a diferença entre essas duas categorias de vida é visível (Agamben, 2007).

Em decorrência da insacrificabilidade da figura do homo sacer, Agamben enfrenta uma aparente contradição causada pelo fato de ser o indivíduo, ao mes-mo tempo, matável, porém insacrificável. Para ele, isso seria superado pela cons-tatação de que a morte do homo sacer é distinta das purificações rituais (2007, p. 79). A morte desse sujeito deve ser desprovida de qualquer significado político ou religioso.

Dessa forma, para o filósofo italiano, o homo sacer representaria uma exce-ção dupla: primeiro à justiça humana, pois a lei, nesse caso excepcional, se desa-plica e o torna matável; e, em seguida, à dimensão religiosa, pela vedação de seu sacrifício. com isso, o homo sacer não passaria da justiça humana para a divina, mas sim constituiria uma dupla exclusão nos dois casos (Agamben, 2007).

De acordo com Agamben (2007, p. 90),esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em re-lação a ele não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio. subtraindo-se as formas sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana, e que se trata aqui de tentar compreender.

Dessa forma, o homo sacer deixa de ser considerado um cidadão portador de proteção jurídica e política e passa a constituir uma classificação indetermina-da, uma vez que perde todos os seus direitos como pessoa e também toda prote-ção religiosa na forma de sua insacrificabilidade.

Sobre esse aspecto, Agamben (2007) resgata uma figura do Direito ger-mânico antigo similar ao homo sacer romano, que era o bandido ou fora da lei que podia ser morto, sem que tal ato fosse considerado homicídio. esse indivíduo era definido como homem-lobo ou lobisomem, um ser que não era “nem homem nem fera,

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que habita paradoxalmente ambos os mundos sem pertencer a nenhum” (p. 112), assim como o homo sacer, que não possui proteção no âmbito da justiça humana e divina, estando em tão íntima relação com a morte, “sem portanto pertencer ao mundo dos defuntos” (p. 107).

Deve-se considerar, no entanto, que a proteção religiosa, perdida pela ve-dação do sacrifício, e que era tão fundamental para a própria organização polí-tica do Direito romano arcaico, atualmente se verifica pela inaplicabilidade do ritual da pena de morte. Dessa forma, o homo sacer é matável, já que sua morte não constitui homicídio, e insacrificável, já que não será tampouco submetido ao ritual da pena de morte.

Por fim, a relação do soberano com o homo sacer faz parte essencial na de-finição do que seria essa figura, pois, segundo o filósofo italiano, é o soberano que detém o poder de decretar o estado de exceção em que a lei irá retirar a sua aplicação sobre determinada pessoa, tornando-a um homo sacer (Agamben, 2007).

A partir disso, Giorgio Agamben (2007, p. 91) estabelece que “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera”.

Assim, qualquer indivíduo pode ser considerado, em um dado momento, como um ser matável, uma vez que “o soberano é relação ao qual todos os ho-mens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos” (Agamben, 2007, p. 92).

Nesse sentido, segundo Agamben (2007, p. 146),

a vida sem valor (ou “indigna de ser vivida”) corresponde ponto por ponto... a vida nua do homo sacer. É como se toda valorização e toda “politização” da vida implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, e então somente “vida sacra” e, como tal, pode ser impunemente eliminada. Toda sociedade fixa este limite, toda sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus “homens sacros”.

com isso, inclusive as atuais sociedades, que se dizem estados Democráti-cos de Direito, elegem determinada vida que possa ser descartada sem qualquer punição, o que pode ser observado em estudos específicos realizados no Brasil. Inclusive, em uma análise do grande número de mortes perpetradas pela polícia do estado do Rio de Janeiro em “autos de resistência” e a possível eleição dessa classe vitimada (os moradores dos morros cariocas em sua grande maioria) como sendo um tipo moderno do que seria o homo sacer, Ribeiro Júnior (2009, p. 19) destacou:

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Nessa autoalegada situação de “guerra urbana”, aquele que é considerado bandido, vagabundo, traficante (ou apenas suspeito de envolvimento com o tráfico) é o alvo principal. Este famoso “bandido”, “traficante”, “vagabundo”, ou qualquer forma que seja chamado, é justamente a representação da figura anteriormente comentada, o homo sacer. Aquele cuja morte não é homicídio e nem pode obedecer a forma do rito.

Ademais, os campos de extermínio e concentração, sob a perspectiva de Agamben, não podem ser vistos como um fato histórico e remoto que já foi su-perado e que seria irrepetível, pois eles são o espaço de politização da vida e de produção do que seria o homo sacer moderno (Zaccone, 2015).

Assim, não se pode negar que a exceção que se estabelecia pelo Direito romano arcaico a determinado sujeito que praticou um crime existe, ainda que não autodeclarada, no suposto estado Democrático de Direito vigente no Brasil. E essa classe de pessoas vistas como bandidos, traficantes e ladrões é considerada de maneira visível pela mídia, o que Agamben denomina de “vida indigna de ser vivida”, uma vez que a sua morte não é tida como homicídio.

4 a transformaÇÃo Do sUsPeito Da Prática De Um crime em homo sacer

A partir dos dados de linchamento encontrados e da análise aprofundada das matérias jornalísticas desses registros, o objetivo do presente tópico é verifi-car em que medida o conceito do homo sacer de Giorgio Agamben pode ser apli-cado aos suspeitos da prática de um crime que foram vítimas de linchamento. A análise será realizada sob três diferentes perspectivas: da imprensa, da sociedade e do estado.

Para uma melhor apresentação do tema, fez-se necessária a divisão desse tópico em três partes, sendo o primeiro uma análise específica em relação ao discurso promovido pela imprensa na legitimação e criação do homo sacer nas notícias sobre os linchamentos. o segundo item tem o objetivo de mostrar como os linchadores ou a sociedade enxergam o suspeito da prática de um crime; e, por fim, em que momento a vítima do linchamento se tornou o “bandido” conside-rado matável.

4.1 o “bandido” como homo sacer no discurso da imprensa

Na análise das matérias jornalísticas encontradas sobre linchamentos, foi verificado que, ao menos, em 28 dos 64 casos a vítima do linchamento foi chama-da pejorativamente pela imprensa como bandido, assaltante, ladrão e estupra-dor; e, em outras 11 reportagens, denominado de suspeito. contudo, o que mais

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chama a atenção é que em apenas uma ocasião o linchado foi chamado de vítima, o que representa 98,43% dos casos.

segundo Boldt (2008), o discurso promovido pela mídia está dotado de preconceitos e cria determinados estereótipos, o que faz que esse indivíduo seja estigmatizado com o rótulo de bandido, ladrão e estuprador. Isso pôde ser cons-tatado em diversos títulos das reportagens analisadas: “enfermeira reage a assal-to em residência em vila velha e bandido por pouco não é linchado” (2005, p. 7), “moradores tentam linchar assaltante” (2012, p. 12) e “Povo se revolta com roubo e bate em ladrão” (2014, p. 13).

Percebe-se, apenas pela análise do título dessas notícias, que o jornal faz uso do “rótulo” de “bandido”, “assaltante” e “ladrão” para denominar a víti-ma do linchamento, mesmo sem a conclusão de qualquer investigação oficial ou a abertura de um processo criminal contra esse indivíduo. com isso, segun-do Boldt (2011, p. 635), a mídia direciona a opinião da maioria da população para a “guerra contra os bandidos” como a melhor maneira para se combater a violência, elegendo-os como “bodes expiatórios” que podem ser descartados, o que pôde ser visto na matéria intitulada “Povo se revolta com roubo e bate em ladrão” (2014, p. 13):

figUra 1 – Povo se revoLta com roUBo e Bate em LaDrÃo

Além da utilização dos estereótipos “ladrão” e “bandido”, o jornal, no tí-tulo, utiliza, em grandes letras, a expressão “povo”. o emprego dessa palavra conduz o leitor a acreditar estar vivendo nessa “revolta”, que constitui a guerra

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“povo x ladrão/bandido” (cidadão x vida nua – pólis x zoé), em que essa pessoa considerada criminosa é a principal inimiga.

segundo Zaccone (2015, p. 109), “entre os inimigos construídos na socieda-de, cuja genealogia remete à própria ideia do pacto social civilizatório da moder-nidade, encontra-se o criminoso, muitas vezes conhecido como delinquente, bár-baro ou estranho”. Assim, esse indivíduo (“bandido”, “ladrão” ou “assaltante”) é colocado pela imprensa como o responsável por todas as mazelas e problemas sociais existentes, tendo em vista que ele está em “guerra contra o povo”.

Ademais, por mais brutal e violento que possa ser o linchamento, as pessoas linchadas não são denominadas de vítimas, mas sim de “bandido”, “ladrão”, “assaltante” ou “estuprador”. em uma pesquisa sobre linchamentos realizada em um jornal de são luiz do maranhão, costa (2005, p. 131) consta-tou que,

de um modo geral, os agentes que sofrem a agressão de “bandidos” são iden-tificados como “cidadãos” ou “vítimas”. Porém, nos relatos de justiçamentos coletivos, os agredidos (“linchados”), em nenhum caso, foram denominados como “vítimas” da agressão. sobre eles recaem adjetivos pejorativos.

os justiçamentos coletivos a que se referem o citado autor são os lincha-mentos, sendo verificado o mesmo resultado obtido no presente trabalho: o de que as pessoas linchadas não são consideradas vítimas da ação dos agressores, mas sim como causadoras e merecedoras daquela punição, tendo em vista os seus atos pregressos.

Isso pôde ser verificado nos títulos e textos de diversas reportagens, como a publicada em 27 de maio de 2011, que teve como título “homem que estuprou idosa é linchado por vizinhos da vítima” (2011, p. 10). Nesse caso, apesar de a vítima de linchamento ser morta por pauladas e espancada por 20 pessoas, a matéria o denomina apenas de “homem/suspeito”. sendo que os agressores são chamados de vizinhos.

Dessa forma, em razão do cometimento de determinado crime, essas pes-soas são consideradas indignas de viver, podendo ressaltar o que Ribeiro Júnior (2009) constatou em sua pesquisa sobre os autos de resistência no Rio de Janeiro e sua aplicação a teoria do homo sacer de Agamben, de que “estamos diante da ma-tabilidade e insacrificabilidade, vidas que não merecem ser vividas e que, neste sentido, podem ser exterminadas sem que isso haja crime de homicídio doloso”.

Em um outro título publicado como “Ladrão invade fliperama e espanca idoso” (2007, p. 9), é possível observar que o jornal tenta demonstrar que a cri-minalidade está inerente ao caráter do sujeito, pois ele não é apenas um suspeito

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como em outros casos, ele é “ladrão” (como se o crime já estivesse com investi-gação concluída e sentença condenatória transitada em julgado), e novamente as pessoas que tentaram linchá-lo e matá-lo são “vizinhos/moradores”.

Em um texto de uma notícia com o título “Tio flagra abuso a criança”, o jornal assim escreveu:

[...] De acordo com o depoimento prestado aos policiais militares, o tio, de 18 anos, saiu de sua casa para visitar a mãe, que mora perto. Ao chegar reparou que a porta estava encostada. Ao entrar, flagrou G.A.S. tentando forçar a crian-ça a praticar sexo oral. Arrastado até a rua, o estuprador levou uma surra. logo os moradores descobriram o motivo e trataram de ajudar. (2009, p. 10)

Verifica-se que o jornal mais uma vez denomina o indivíduo, a vítima do linchamento, como “estuprador”, e os linchadores como “moradores” que “tra-taram de ajudar” a agredi-lo. Pode-se notar claramente que a violência cometida contra o “bandido/estuprador” é banalizada e minorada, não sendo considerada como um ato injusto e ilegal, visto que o jornal a considera uma “ajuda”, como se fosse um bem para a sociedade2. Já, em sentido oposto, os atos cometidos por esse “bandido” são ampliados e destacados.

em outra notícia com o título “Após assalto, ladrão é amarrado em poste e apanha”, o jornal considera uma “ironia” as vítimas do suposto assalto não desejarem e impedirem a morte do “ladrão”:

com os gritos, cerca de doze pessoas, entre comerciantes e populares consegui-ram alcançar o suspeito. Eles o amarraram em um poste com fita adesiva e o agrediram. Por ironia foram as vítimas do assaltante que o acudiram e impedi-ram que Washington fosse linchado pela população. (2010, p. 13)

A morte de uma pessoa foi evitada, e o jornal denomina isso de uma “iro-nia”, porque, por essa visão, se uma pessoa é assaltada, ela deseja a morte desse “ladrão”. e é isso que a notícia transparece nesse caso: de que, infelizmente, as vítimas impediram os “comerciantes” e “populares” (que são sempre tratadas como “pessoas de bem”) de continuarem agredindo e matarem o “ladrão”.

com isso, podemos constatar que o jornal, pelo seu texto, seus títulos e suas palavras utilizadas, identifica a vítima do linchamento como um homo sacer, um ser que pode ser morto sem que isso seja considerado homicídio. Isso porque se as pessoas podem espancar um indivíduo (que não é classificado como víti-

2 Também em outra notícia de título “Tentou assaltar e apanhou da vítima” (2008, p. 11) a reportagem destacou que pessoas “ajudaram” a linchar o indivíduo: “consultor de vendas reagiu a tentativa de assalto e lutou com acusado; testemunhas ajudaram a bater”.

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ma, e sim como ladrão, estuprador e bandido) até a morte e esse grupo é apenas identificado como “moradores”, “vizinhos” ou populares, estamos diante do que Agamben (2007, p. 146) denomina de “vida sem valor (ou ‘indigna de ser vivi-da’)”, que seria a vida do homo sacer.

Não se dá qualquer importância para a morte da pessoa linchada, pois “a vida do homo sacer, como tal, é matável e, diante da ocorrência da morte, nenhu-ma diferença se faz” (Ribeiro Júnior, 2009, p. 7). Além disso, a morte/espanca-mento desse ser identificado como “bandido” é considerada como uma “ajuda”, um bem para a sociedade, o que pôde ser verificado na notícia de título “Tio flagra abuso a criança” (2009, p. 10) anteriormente ressaltada.

como se não bastasse, o jornal procura, por meio de fatos pretéritos, justi-ficar o linchamento e a morte ou as agressões, sempre enfatizando que a pessoa linchada já tinha passagens pela polícia por algum crime ou estava foragida. Isso pode ser verificado na notícia intitulada “Linchado ao tentar estuprar criança”, haja vista que o Jornal A Gazeta destacou o seguinte: “segundo o centro Integra-do de operações e Defesa social (ciodes), o acusado já tem três passagens pela polícia: duas por estupro e uma por homicídio” (2007, p. 14). Tais detalhes sobre a vida pregressa do indivíduo, somados ao tratamento que se dá ao acusado (sempre o bandido/ladrão) e aos linchadores (vizinhos/populares), demons-tram o posicionamento de legitimar o linchamento.

em pesquisa realizada sobre os autos de resistência no estado do Rio de Janeiro, Grillo e Neri (2009, p. 27) perceberam que “a constatação de antecedentes criminais na vida pregressa da vítima confirma, na opinião dos operadores, a hi-pótese de que se tratava de um ‘criminoso’ ou, como nas palavras de um delega-do, ao referir-se a duas pessoas mortas: ‘notada e sabidamente marginais da lei’”.

em outro estudo sobre os autos de resistência perpetrados no estado do Rio de Janeiro, Zaccone (2015, p. 164) destacou que no procedimento de “juntar a folha de antecedentes criminais da vítima no inquérito que apura sua própria morte, opera-se uma transmutação em que autores viram vítimas de resistência e vítimas viram opositores da polícia”.

Da mesma forma que o Governo e o Poder Judiciário do estado do Rio de Janeiro utilizam, para justificar as mortes ocasionadas por autos de resistência, no caso da pesquisa anteriormente mencionada, a imprensa capixaba, mais es-pecificamente o Jornal A Gazeta, que é a fonte dos dados da presente pesquisa, faz uso para legitimar o linchamento e transformar os linchadores em vítimas da pessoa linchada.

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e, para que essa legitimação ocorra, o jornal procura demonstrar, por in-termédio de antecedentes, que a vítima do linchamento é um homo sacer, aquele ser matável, em que as pessoas que o fazem são consideradas como vizinhos/moradores, ou seja, pessoas que estão fazendo o bem para a sociedade em elimi-nar um ser indesejável.

Não obstante, o jornal não apenas enfatiza os antecedentes criminais da vítima do linchamento, como também apresenta o destaque de toda a notícia para a suposta ação do criminoso, com entrevistas que procuram demonstrar a sua agressividade e periculosidade, nunca dando qualquer ênfase à violência cometida em seu desfavor pelos “moradores”.

Na notícia intitulada “homem abusa de criança e é linchado” (2005, p. 8), o jornal destacou que “a violência chocou os moradores do bairro” e citou uma parte da entrevista da mãe da criança de seis anos que relatou que “ela estava com o rosto vermelho. Quando abaixei sua roupa, vi que havia sangue e sua va-gina estava roxa e inchada”. Por fim, a reportagem concluiu que “ele é procurado pela Justiça de minas Gerais e foragido da Justiça de são Paulo por causa de um homicídio”.

Pode-se perceber que o jornal conduz à desconstrução da imagem da ví-tima do linchamento para torná-lo o homo sacer. De acordo com Zaccone (2015, p. 165), “a legítima defesa dos policiais necessita da desqualificação da vítima, no sentido de identificação do morto como criminoso e da sua periculosidade da sua vida no ambiente social”. Nesse sentido, o jornal pretende desqualificar a vítima linchada, para fazer do linchamento uma “legítima defesa da sociedade”, con-duzindo, ainda que indiretamente, os seus leitores a compreender como justa/merecida a morte ou agressão de um “bandido”.

Até porque “a construção do inimigo passa pelo perigo que ele representa em vida a legitimar a sua própria morte” (Zaccone, 2015, p. 164). Assim, com todo esse destaque da periculosidade da vítima do linchamento, a notícia jorna-lística pretende legitimar a ação dos agressores, pelo fato de eles estarem promo-vendo uma “boa” limpeza social, em eliminar da sociedade um “criminoso” de “alta periculosidade”.

outrossim, constatou-se que o Jornal A Gazeta também reproduz o discur-so de que se faz necessário um aumento da punição e das penas dos crimes para que se resolva o problema da criminalidade. Na notícia de título “Tio flagra abu-so a criança” (2009, p. 10), o jornal proporciona grande destaque à pena máxima de 15 anos detenção para o crime de estupro de incapaz:

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figUra 2 – tio fLagra aBUso a crianÇa

No caso ressaltado, percebe-se que o destaque à pena máxima para o crime procura levar o leitor a ponderar a necessidade de um aumento dessa punição, pois a pena máxima seria de “apenas” 15 anos de detenção.

Portanto, de acordo com as palavras e a narrativa utilizada pela mídia nas notícias de linchamento estudadas, seria possível inferir que o suspeito da prá-tica de um crime, o denominado “bandido”, “ladrão”, “assaltante” ou “estupra-dor”, é tido como merecedor da morte, tendo em vista que ele é considerado um homo sacer.

4.2 o “bandido” como homo sacer sob a perspectiva dos linchadores e do estado

o jornal, conforme demonstrado, apresenta aos seus leitores o “bandido”, “estuprador” ou “ladrão” como um indivíduo que pode ser morto, sem que tal ato seja considerado homicídio, uma vez que seria uma “ajuda” à sociedade a sua morte. Analisando os recortes de jornais sob a perspectiva dos linchadores, serão examinadas algumas circunstâncias do linchamento, além de relatos de pessoas que o presenciaram ou participaram dele e que foram citados nas notícias estu-

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dadas. Tal investigação tem como intuito de verificar se a figura do homo sacer de Agamben novamente pode ser identificada.

segundo Agamben (2007), homo sacer é aquele ser que é matável e insa-crificável. A sua vida é tão indesejável pela sociedade que o seu assassinato não é considerado homicídio. Dentro desse conceito, o autor também destaca que a vida desse indivíduo é sem valor e indigna de ser vivida.

Foi possível constatar, nos casos estudados, que o motivo pelo qual as pes-soas cometem o linchamento é por considerarem o “ladrão”, “bandido” ou “es-tuprador” um ser que deve ser eliminado e, portanto, matável, o homo sacer. Isso pôde ser percebido no relato de um policial militar ao intervir durante a ocor-rência de um linchamento no bairro de Flor de Piranema, em cariacica. segundo ele: “Quando chegamos a população gritava deixa ele morrer” (suspeitos..., 2011, p. 7), o que demonstra o grande desejo de eliminar aquele indivíduo da sociedade.

Tal constatação, a de que no linchamento os linchadores procuram a morte do indivíduo, foi também encontrada por Rodrigues (2012, p. 156) em sua pes-quisa: “Por meio das entrevistas realizados ao longo desta pesquisa, o lincha-mento se mostrou como uma prática que pretende eliminar definitivamente, por ação da morte, aqueles que ferem regras morais consideradas fundamentais para um determinado grupo social”.

o desejo dos linchadores de eliminar esse “bandido”, “estuprador” ou “la-drão” pôde ser constatado na grande maioria dos casos. De todos os 64 registros de linchamento encontrados, constatou-se um número de 15 mortes. contudo, em 32 casos, as agressões foram interrompidas em razão da chegada da polícia. com isso, se a polícia não interrompesse esses linchamentos, é provável que es-ses casos também culminassem na morte do suspeito. se isso acontecesse, a cifra poderia ter chegado a 47 mortes, 73,43% dos registros.

os referidos dados demonstram que as pessoas no linchamento têm a in-tenção de eliminar aquele sujeito considerado criminoso e um dos elementos que essa pesquisa pôde identificar na matriz dessas condutas é a desconsideração da qualidade política da vida do suspeito (bíos), ou, em outras palavras, a sua carac-terização como zoé, que constitui a vida nua e crua do homo sacer.

Rodrigues (2012, p. 165) verificou, em uma pesquisa realizada sobre lin-chamentos, que, ao contrário do que a maioria dos autores que estudam o tema apontam, “o problema não é do sistema, mas do indivíduo, que é percebido como irrecuperável. então, como o problema está nele e é insolúvel, é ele que precisa ser exterminado, para que com isso também seja eliminado o incômodo”.

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Já pela entrevista da mãe de uma criança que foi estuprada e assassinada por um mecânico em vargem Alta, que veio a ser morto por linchamento pela população, pôde-se perceber como a vida dessas pessoas é considerada insigni-ficante, pois, segundo ela, “era para terem cortado a cabeça dele e chutado” (Ele morou..., 2013, p. 10).

Além disso, verificou-se que, em 7 (sete) casos, o jornal informou especi-ficamente que as pessoas linchadas que sobreviveram ao linchamento tinham ferimentos na cabeça, o que demonstra que não se queria apenas dar um castigo exemplar no indivíduo, mas sim a sua morte.

em uma ocasião, o desejo da população de ocasionar a morte de um ho-mem que começou a ser linchado e escapou fez com que os participantes e mora-dores o impedissem de ser socorrido:

mesmo ferido, matuso correu e se escondeu na casa de um morador, na esca-daria Pedro Américo. A Polícia militar foi chamada e teve de pedir ajuda ao Batalhão de missões especiais (Bme), pois os moradores não permitiram que o corpo de Bombeiros socorresse o motorista. cerca de 30 policiais participaram da operação. o resgate do motorista demorou cerca de duas horas, e mesmo depois disso a confusão não terminou. (morador..., 2007, p. 9)

Nesse caso, percebe-se que, tamanho era o desejo de eliminar o sujeito, os moradores e participantes do linchamento entraram em confronto com a polícia por cerca de duas horas. Aqui, a figura do homo sacer e o seu corpo, capturados pelo bando soberano, pode ser identificada, pois os moradores, nesse caso, enten-diam possuir o direito sobre o corpo sacro dessa vida nua.

Percebe-se que a morte/espancamento cometida contra essas pessoas es-tereotipadas (acusados de serem ladrões, bandidos e estupradores), via de re-gra, não é considerada como uma violência pela comunidade que a presenciou. Rodrigues (2012) verificou que os linchadores não sofrem qualquer estigmatiza-ção por parte das pessoas do bairro, nem é considerado que foi cometido homi-cídio ou qualquer outro crime.

Pelo contrário, a morte desse ser indesejável, o “bandido”, “ladrão” ou “estuprador”, que é o homo sacer, é considerada motivo de júbilo, o que pôde ser visto na fala de um perito da polícia civil que destacou que “a população carre-gou o corpo fazendo festa pela morte do rapaz” (homem..., 2011, p. 10) acusado de ter abusado sexualmente de uma idosa.

Dessa forma, os linchadores são tidos como heróis na comunidade, por te-rem feito um bem à sociedade e terem eliminado um ser indesejável, o que faz ser motivo de festa e comemoração. Rodrigues (2012, p. 168) também constatou tal fato em sua pesquisa, uma vez que o linchamento “é avaliado pelos linchadores

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e moradores que presenciaram a cena como um ato de heroísmo, já que livraria a comunidade de uma ameaça em potencial”.

De acordo com Zaccone (2015, p. 132), “a morte de anormais e degenera-dos passa a ser o impulso para a vida da espécie, na qual o exercício do poder soberano na forma do racismo de Estado configura uma tecnologia de poder”. É o que percebemos nos relatos dos linchamentos levantados pela pesquisa: esses atos pretendem excluir os “não humanos” e “degenerados” “bandidos” do con-vívio social.

e a morte desses “bandidos”, “ladrões” e “estupradores” é defendida abertamente pela maioria da população, pois eles são considerados um incô-modo para a sociedade. segundo Ribeiro Júnior (2016, p. 14), “a demanda pelo extermínio é constante e perceptível por meio de expressões enunciadas a todo momento, tais como ‘bandido bom é bandido morto’. O que mais significa isso senão a demanda pelo extermínio de pessoas consideradas indesejáveis?”

Percebe-se que o linchamento é utilizado como um meio de limpeza social, a limpeza daquele ser indesejável, que é o “bandido”, “ladrão” ou “estuprador”, que merece uma morte indigna. Assim, esse indivíduo não é outro senão aquele que tem a sua morte tão desejada, que é motivo de alegria e de aceitação, inclu-sive pelo estado.

Isso porque, como o linchamento é um fenômeno espontâneo e repentino, a única maneira de o Estado ratificar a não concordância com essa prática ilegal é por intermédio da investigação e punição (com todo o trâmite processual penal) dos responsáveis pelo linchamento.

Todavia, dos 64 casos estudados, em apenas três foi noticiada uma res-posta efetiva do estado no sentido de punir os linchadores, o que evidencia que o linchamento desse “ladrão”, “bandido” ou “estuprador” é tolerado e legiti-mado pela polícia e pelo estado. Tal constatação foi também feita por Danielle Rodrigues (2012, p. 171) em sua pesquisa sobre linchamentos:

segundo os próprios entrevistados, em nenhum momento a polícia retornou ao local para solicitar qualquer depoimento dos linchadores. eles disseram que os policiais, ao saírem com o suposto estuprador na viatura, ainda apertaram as mãos dos linchadores e disseram: “Valeu irmão”! Esta expressão pode signifi-car certo reconhecimento pela atitude de linchar, já que ela facilitou o trabalho policial, fazendo com que o estuprador fosse identificado, a vítima interrogada [pelos linchadores], a agressão que provavelmente os policiais conduziriam contra o estuprador, antecipada.

Tal narrativa, somada à inexistência de persecução penal aos linchadores, na grande maioria dos linchamentos, demonstra que o estado legitima a referida

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ação. Além disso, em 32 casos (50% do total), de acordo com o jornal, a polícia chegou ao local e presenciou o flagrante do linchamento, mas em nenhum des-ses os linchadores foram presos, e tão somente a vítima do linchamento que era apenas acusada por determinadas pessoas de ser bandido, ladrão ou estuprador.

Diante disso, o conceito de matabilidade, que é a morte, que não é consi-derada homicídio, pode ser claramente identificado, uma vez que, no momento em que o estado não processa penalmente os sujeitos que promoveram o lincha-mento, percebe-se que essa morte é algo sem relevância, totalmente desprotegida política e juridicamente.

o estado não considera essa vida relevante, pois, de acordo com Agamben (2007), o extermínio dela faz parte dos cálculos do estado moderno. Zaccone (2015) verificou, em sua pesquisa, que, muitas vezes, um suposto “ban-dido” é morto com vários tiros nas costas, e é considerado pelo ministério Pú-blico que o policial que participou dessa ação agiu em legítima defesa. Todos esses fatores demonstram a insignificância da vida desse grupo rotulado como “bandidos” e “criminosos”, que são tidos como matáveis pelo estado.

Na notícia intitulada “homem abusa de criança e é linchado”, pode-se verificar que a polícia presenciou as pessoas que estavam agredindo um deter-minado acusado, mas apenas prendeu em flagrante essa vítima do linchamento:

Nesse momento, um taxista passou próximo aos policiais e avisou que um ho-mem estava sendo linchado numa rua próxima. os Pms foram até o local e encontraram uma multidão espancando Walter [...] Walter foi autuado em fla-grante por atentado violento ao pudor. (2005, p. 8)

É evidente que a prisão de todas as pessoas pela polícia é dificultada em razão da desvantagem numérica, mas o fato de os indivíduos que são flagrados praticando o linchamento (crime de lesão corporal ou de tentativa de homicídio) nunca serem presos deve ser levado em consideração. conforme ressaltado, a morte desse “bandido” não é considerada homicídio pela sociedade e, de certa forma, pelo Estado, podendo ser visto que “a figura arcaica do homo sacer é re-dimensionada no pensamento político moderno. Cidadão e vida qualificada se contrapõem ao bárbaro e a vida nua” (Zaccone, 2015, p. 121).

Desse modo, com base nos discursos dos participantes dos linchamentos e pelas ações e omissões do Estado por meio das suas polícias verificadas, seria possível afirmar que a pessoa suspeita da prática de um crime é o homo sacer apresentado por Agamben, pois a morte desse considerado “bandido” não é ho-micídio, pois a sua vida é algo sem relevância e sem valor.

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4.3 o momento que o suspeito de um crime se torna o “bandido” homo sacer

Sendo verificado que, no linchamento, a pessoa linchada é o homo sacer, mister se faz investigar por qual razão e em que momento aquele indivíduo foi considerado um ser matável. Para isso, é essencial destacar um ponto que Agam-ben apresenta em relação ao homo sacer, que é a sua relação com o soberano. segundo ele, “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera” (Agamben, 2007, p. 91).

Portanto, merece ser investigado o momento em que esse indivíduo passa a ser matável e perante qual todos do bando se tornam soberanos sobre ele, po-dendo decidir sobre a sua vida. E verificou-se que isso ocorre no momento em que uma pessoa é mera suspeita de ter cometido um crime.

Dessa forma, ao haver pequenos indícios (como a alegação de uma pessoa) de que determinado indivíduo é “ladrão”, “bandido”, “assaltante” ou “estupra-dor”, esse “suspeito” se torna o homo sacer, pois a morte dele passa a não ser somente admitida, mas desejada.

Na notícia intitulada “Assaltante leva surra após roubar bolsa no centro”, foi destacado que, “depois que o bandido de afastou dela (a vítima), ela gritou ‘pega ladrão’ e pessoas perseguiram o assaltante. Quando os policiais encontra-ram João ele tinha uma lesão na cabeça” (2008, p. 9).

em uma outra matéria, a vítima de assalto comentou: “vi meu pai agarra-do ao assaltante, saí do carro e tentei tirá-lo dali. o homem saiu correndo e gritei pega ladrão, pega ladrão”. Após isso, o jornal continuou informando que, “com os gritos, cerca de doze pessoas, entre comerciantes e populares conseguiram alcançar o suspeito. Eles o amarraram em um poste com fita adesiva e o agredi-ram” (Após..., 2010, p. 13).

Dessa forma, observa-se que basta um simples “pega ladrão” para que o indivíduo acusado se torne passível de ser morto e agredido. e em outros casos analisados, como o publicado no dia 31 de maio de 2004 sob o título “Acusado de molestar criança é assassinado”, o jornal informa que um “boato” surgiu no bairro de que determinada pessoa teria praticado um crime, e isso foi suficiente para o seu linchamento e a sua morte. estamos diante do que Agamben (2007, p. 148) denomina de “vida indigna de ser vivida”, que é a vida do homo sacer, que passa a ser assim considerado ao receber o título de “ladrão” ou “assaltante”.

Diante disso, e em razão da espontaneidade do linchamento, muitas pes-soas que estão passando por um local podem ser confundidas com um “ladrão”

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que acabou de assaltar um local. ou com características físicas semelhantes de um suposto estuprador da região, o que pode ocasionar o seu linchamento, con-forme ocorreu em diversos casos espalhados pelo país. segundo Agamben (2007, p. 121):

Se é verdadeiro que a figura que o nosso tempo nos propõe é aquela de uma vida insacrificável, que, todavia, tornou-se matável em uma proporção inaudi-ta, então a vida nua do homo sacer nos diz respeito de modo particular. A sa-cralidade é uma linha de fuga ainda presente na política contemporânea, que, como tal, desloca-se em direção a zonas cada vez mais vastas e obscuras, até coincidir com a própria vida biológica dos cidadãos. se hoje não existe mais uma figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque somos todos virtualmente homines sacri.

Assim, segundo o filósofo italiano, todos podem ser virtualmente consi-derados homo sacer e, em determinado momento, ser tido pelo soberano ou pelo bando como um indigno de vida.

Em outro caso destacado pelo jornal isso pôde ser verificado. Um homem que foi preso por participar de um linchamento que resultou em morte concedeu entrevista explicando a razão pela qual aquela pessoa foi vítima do linchamento. De acordo com ele: “ouvi as pessoas chamando ele de estuprador e dei uns ta-pas” (Ajudei..., 2014, p. 13).

mais uma vez percebe-se, por esse discurso, que um indivíduo se torna homo sacer no momento em que é acusado de um crime, no momento em que é identificado como “estuprador” e não é exigido qualquer tipo de provas para que se mate aquela pessoa, bastando a simples alegação de desconhecidos.

Ocorre que, nesse caso, verificou-se que o acusado de estupro não tinha cometido qualquer ato. em razão disso, o homem entrevistado disse que havia se arrependido de ter contribuído para a morte de um inocente, o que motivou a pergunta e reposta a seguir: “e se ele fosse culpado? ‘Aí é outra coisa. Não iria passar a mão na cabeça dele. mereceria apanhar sim’” (Ajudei..., 2014, p. 13).

Percebe-se que a razão pela qual uma pessoa comum passa a ser consi-derada matável é o cometimento de um crime, pois esse indivíduo passa a ser “indigno de viver”, pois é “ladrão”, “bandido” ou “estuprador”. De acordo com Zaffaroni (2014, p. 18), essas pessoas somente são consideradas como “ente peri-goso ou daninho” sendo observadas como não humanas.

em sua análise sobre os autos de resistência que ocorrem no Rio de Janeiro, Ribeiro Júnior (2009, p. 20) ressaltou que “este famoso ‘bandido’, ‘traficante’, ‘va-gabundo’, ou qualquer forma que seja chamado, é justamente a representação da

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figura anteriormente comentada, o homo sacer. Aquele cuja morte não é homicídio e nem pode obedecer a forma do rito”.

Para o indivíduo entrevistado que era suspeito de ter participado no lin-chamento, se a pessoa linchada fosse culpada, ela merecia morrer, pois, nesse caso, ela não teria qualquer arrependimento, haja vista que o acusado seria o homo sacer e a sua morte não é considerada homicídio pela sociedade e na maioria das ocorrências pelo estado.

em outra reportagem estudada, podemos perceber, mais uma vez, o mo-mento em que um indivíduo se torna homo sacer:

Rosivaldo estava com um amigo na praia, quando um casal chegou perguntan-do se eles tinham visto uma carteira no local. os amigos responderam que não tinham encontrado nenhum objeto. Não convencido e depois de ter discutido com os amigos, o casal caminhou até um quiosque e lá instigaram os acusados, falando que os dois amigos os tinham assaltado. Armados com pedaços de madeira os cinco rapazes partiram para cima de Rosivaldo e do amigo dele. Rosivaldo não escapou da morte. (homem..., 2009, p. 11)

Basta a mera suspeita de outras pessoas de que um indivíduo é “ladrão” para que isso justifique o seu linchamento e a sua morte. E pode-se verificar, mais uma vez, que o momento em que a vítima do linchamento se tornou um verda-deiro homo sacer foi quando lhe foi imputada a prática de um crime, mesmo sem qualquer evidência.

Portanto, da análise dos recortes de jornais sobre notícias de linchamentos se pôde verificar que uma pessoa se torna matável (o homo sacer) no momento em que ela é “suspeita”/“acusada” de ser “bandido”, podendo ocorrer o seu lincha-mento e a sua morte com base em simples alegações de pessoas desconhecidas, o que mostra a inexistência de proteção jurídica e política que goza essas pessoas na sociedade atual.

consiDeraÇÕes finais

com base nos dados encontrados no Jornal A Gazeta sobre os linchamen-tos, constatou-se a ocorrência de 64 casos no estado do espírito santo de 2004 a 2014, o que faz com que, em média, 6 a 7 registros podem ser esperados anual-mente no Estado. Pôde também ser verificado que a maioria dos registros ocor-reu na Região metropolitana da Grande vitória, o que mostra que o linchamento é um fenômeno tipicamente urbano.

Além disso, percebeu-se que a acusação de crimes cometidos contra a pes-soa, que incluem homicídio, lesão corporal e crimes sexuais, é a que mais resulta em ocorrências de linchamento. contudo, o que chamou atenção foi que metade

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das mortes registradas ocorreu em casos de delitos sexuais, o que mostra a into-lerância por parte da sociedade a esse tipo de infração.

Foi ainda possível constatar que a classe denominada pelo jornal de “mo-radores” ou “vizinhos” foi a responsável pela maior parte dos linchamentos cometidos no período estudado. enquanto que, em diversos casos, a vítima do linchamento foi denominada pejorativamente pelo jornal como “assaltante”, “la-drão” ou “bandido”.

A partir das características identificadas na narrativa do jornal e em razão de muitos casos de linchamento resultarem em morte ou apresentarem indícios de violência exacerbada, percebeu-se que a vítima do linchamento que é suspeita da prática de um crime era observada como um ser descartável e matável, o que resultou na busca de um aporte teórico que pudesse dialogar com essas caracte-rísticas encontradas.

Diante disso, o conceito do homo sacer proposto por Giorgio Agamben, que considera a referida figura matável e insacrificável, foi essencial para uma análise aprofundada em relação à narrativa utilizada pelo Jornal A Gazeta para noticiar os casos de linchamento.

com isso, foi observado que foram utilizadas palavras como “assaltante”, “ladrão” ou “bandido” para nomear as vítimas de linchamento, enquanto que os seus agressores, mesmo em casos de excessiva violência, eram denominados de maneira abrandada como “vizinhos” e “moradores”. A referida constatação, so-mada ao fato de que em apenas um registro a vítima do linchamento foi chamada de “vítima” nas notícias estudadas, mostrou que o jornal considera a pessoa sus-peita da prática de um crime como insignificante.

Além disso, restou evidenciado, por intermédio dos títulos atribuídos às reportagens, pela narrativa utilizada para a descrição dos linchamentos e pelo destaque para os antecedentes criminais da pessoa que foi acusada, que o jornal conduz o seu leitor a considerar a vítima do linchamento como o homo sacer, um ser que pode ser morto, uma vez que isso seria uma “ajuda” para a sociedade.

outrossim, analisando a narrativa presente nas notícias de jornais de pes-soas que participaram ou presenciaram o linchamento, foi constatado que o ob-jetivo desse ato não é apenas de dar um castigo exemplar no indivíduo acusado de ter cometido um crime, mas sim de matá-lo, pois tal sujeito considerado “ban-dido” seria irrecuperável.

Foi ainda constatado que a morte desse considerado “bandido” é motivo de alegria e júbilo para a comunidade do local onde ocorreu o linchamento, sen-do aos agressores atribuído o título de herói, pois livraram a sociedade de um

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mal. Assim, pôde-se perceber que a vida da pessoa suspeita da prática de um crime é considerada indigna de ser vivida, não sendo esse indivíduo outro, senão o homo sacer.

Destarte, de todos os casos registrados pelo jornal, em apenas três foi pos-sível verificar uma atuação por parte do Estado em investigar e realizar a per-secução penal aos agressores, o que soma-se aos dados encontrados de que não houve prisão em flagrante de nenhum agressor. O fato de a polícia ter presen-ciado ao menos a metade dos linchamentos mostra como o estado percebe essa morte como algo sem relevância.

Por fim, pôde-se perceber, por meio das notícias estudadas, que uma pes-soa se torna matável no momento em que é considerada suspeita da prática de um crime pelos linchadores e, para que isso ocorra, basta meros indícios ou acu-sações genéricas de pessoas desconhecidas.

Portanto, restou constatado, por intermédio da narrativa utilizada nos re-cortes de jornais estudados do linchamento, que o indivíduo considerado “ban-dido” (mero “suspeito” da prática de um crime) é tido como um ser matável (o homo sacer de Agamben) pela mídia, pela sociedade de um modo geral e pelo estado, na medida em que pode ser morto sem que tal ato seja considerado ho-micídio, o que mostra a inexistência de proteção jurídica e política em face desse sujeito.

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“naDa PessoaL”: mULticULtUraLismo e crimes De ÓDio na eXPeriÊncia estaDUniDense

“not PersonaL”: mULticULtUraLism anD hate crimes in the north american eXPerience

BRuno heRingeR JúnioR*

* Doutor e mestre em Direito pela universidade do vale do Rio dos sinos (unisinos), Professor de Direito Penal e coordenador do curso de especialização em Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito da Fundação escola superior do ministério Público (FmP), Promotor de Justiça.

Resumo: o paradoxo de nossa época é que, ao mesmo tempo em que as sociedades se tornam cada vez mais multiétnicas e multi-culturais, a sensibilidade negativa contra a diferença ainda persista como um problema social relevante. hostilidades baseadas na raça, na etnia ou na religião da vítima continuam a ocorrer com frequência preocupante. No entanto, socialmente percebido o ódio como tal, tem-se verificado, também, uma mobilização pelo seu enfrenta-mento. Nos estados unidos, por exemplo, país com uma história significativa de manifestações de aversão das mais variadas, têm--se aprovado, como decorrência da pressão de movimentos sociais, inúmeras leis criminalizando delitos motivados pela intolerância e pelo preconceito.PAlAvRAs-chAve: multiculturalismo; religião, raça e etnia; cri-mes de ódio; estados unidos.ABsTRAcT: The paradox of our time consists on the fact that socie-ties today are becoming increasingly multiethnic and multicultural at the same time as they remain significantly sensitive to differences. hostilities based on the victim’s race, ethnicity or religion continue to occur with alarming frequency. however, since hatred has been socially perceived, it has also been noticed a mobilization against it. In the United States, for example, a country with a significant history of all sorts of aversion demonstrations, there has been approved nu-

heRINGeR JÚNIoR, Bruno. “Nada pessoal”: multiculturalismo e crimes de ódio na experiência estadunidense. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 68, p. 111-127, 2018.

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merous laws criminalizing acts motivated by intolerance and preju-dice, as a result of pressure derived from social movements.

KeYWoRDs: multiculturalism; religion, race and ethnicity; hate cri-mes; united states of America.

sumÁRIo: Introdução; 1 o ódio e o papel social do direito; 2 A per-cepção do ódio nos estados unidos; 3 A legislação criminal acerca do ódio nos estados unidos; 4 o discurso de ódio e a liberdade de expressão nos Estados Unidos; Considerações finais; Referências.

coNTeNTs: Introduction; 1 The hatred and the social role of law; 2 The perception of hatred in the united states; 3 The criminal legis-lation on hate in America; 4 hate speech and freedom of expression in the united states; Final considerations; References.

introDUÇÃo

o ódio parece acompanhar a história da humanidade. Insultos verbais, intolerância, perseguições, expulsões, agressões físicas, assassinatos e até mesmo massacres de populações inteiras são resultado, muitas vezes, de rivalidades ou aversões decorrentes da afiliação religiosa ou do pertencimento a alguma etnia ou raça das pessoas atingidas. como as identidades se constroem socialmente a partir do estabelecimento de diferenças – nós e os outros –, é até compreensível que tal fenômeno venha perdurando por tanto tempo.

o paradoxo de nossa época é que, ao mesmo tempo em que as sociedades se tornam cada vez mais multiétnicas e multiculturais, a sensibilidade negati-va contra a diferença ainda persista como um problema social relevante. com efeito, apesar do afluxo de migrantes e de refugiados e até mesmo do contato com culturas diversas propiciado pelo turismo e pelos meios de comunicação, o estranhamento entre pessoas e povos continua a promover atos de violência e humilhação.

A inconformidade com esse fenômeno, porém, vem proporcionando al-gumas reações jurídicas e sociais, suscitadas e fomentadas principalmente pela atuação de grupos de proteção às vítimas de tais hostilidades.

Nos Estados Unidos, por exemplo, país com uma história significativa de manifestações de intolerância das mais variadas, têm-se aprovado, como decor-rência da pressão de movimentos sociais, inúmeras leis criminalizando delitos motivados pelo ódio às vítimas exclusivamente por seu pertencimento a algum segmento social diverso ou por ostentar algum traço pessoal ou cultural desqua-lificador aos olhos do indivíduo ou do grupo ofensor.

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Descrever o fenômeno dos delitos de ódio, bem como indicar as medidas, principalmente jurídicas, que vêm sendo adotadas nos estados unidos para en-frentar esse problema constituem, assim, os objetivos do presente trabalho.

1 o ÓDio e o PaPeL sociaL Do Direito

muito do ódio que ainda impregna as relações sociais advém de aversões de caráter étnico, racial ou religioso, a revelar o protagonismo de questões relati-vas à identidade em tais conflitos.

o problema é que a identidade pressupõe a diferença, muitas vezes se es-tabelecendo socialmente uma oposição entre nós e eles (os outros). como aponta huntington, “nós só sabemos quem somos quando sabemos quem não somos e, muitas vezes, quando sabemos contra quem estamos”1.

essa oposição entre os de dentro e os de fora não constitui, porém, um fe-nômeno contemporâneo, sendo antes um traço de todo agrupamento humano. o etnocentrismo, aliás, é considerado onipresente: toda cultura se apresenta como superior às demais e, tipicamente, o nome tradicional que uma sociedade dá a si própria, em geral, se traduz como “verdadeiros seres humanos”2.

O que o mundo atual nos apresenta, diversamente, é uma dificuldade ainda maior no processo de construção das identidades individuais3. Verifica-se uma significativa contraposição entre o processo de globalização, que aproxima os povos e desenraiza as pessoas, e a busca por identidades culturais de âmbito local, devido à ansiedade e à insegurança provocadas por um fenômeno que não se compreende e não se controla, por ocorrer longe das atividades da vida ordi-nária4.

segundo castells, esse choque entre o global e o local tem gerado, na so-ciedade em rede, diferentes formas de identidade, basicamente redutíveis a três: legitimadora, de resistência e de projeto5. A primeira dá origem a uma socieda-

1 huNTINGToN, samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: objetiva, 2010. p. 23.

2 hAvIlAND, Willian A.; PRINs, harald e. l.; WAlRATh, Dana; mcBRIDe, Bunny. Princípios de antropologia. 2. ed. são Paulo: cengage learning, 2011. p. 205.

3 hAll, stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 12/13.

4 GIDDeNs, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. 2. ed. Rio de Janeiro/são Paulo: Record, 2002. p. 22/23.

5 cAsTells, manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. o poder da identidade. 3. ed. são Paulo: Paz e Terra, v. 2, 2002. p. 22/28.

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de civil, mais precisamente a um conjunto de organizações e instituições res-ponsáveis pela reprodução da forma social dominante. A segunda, a seu turno, leva à formação de comunidades, ou seja, diante da opressão e do esvaziamento dos canais tradicionais de emancipação (sindicatos, movimentos sociais, etc.), cons troem-se identidades defensivas, geralmente “essencializadas” em nacio-nalismos e fundamentalismos religiosos; seria esse o tipo mais importante de formação de identidades em nossa época. Por fim, a terceira, mais radical, foca a transformação total da sociedade a partir da atuação de sujeitos em regra gesta-dos no âmbito comunal, diversamente do que ocorria na modernidade; por isso, os projetos muitas vezes podem apresentar uma feição regressiva.

Não existe mais uma identidade-mestra, como a classe social, que possa amalgamar a variedade de identificações rivais e deslocantes6. os interesses das pessoas não são mais reconduzíveis a uma modalidade básica, capaz de mobi-lizar grandes contingentes de interessados. Ao contrário, as identidades encon-tram-se fraturadas.

Paradoxalmente, porém, essa fragmentação identitária mais que aproxi-mar as pessoas, devido à pluralidade dos interesses relevantes, tem-nas dividi-do, em decorrência do entrincheiramento existencial que opera toda vez que o self é colocado em risco. conforme aponta Bauman, as “batalhas de identidades não podem realizar a sua tarefa de identificação sem dividir tanto quanto, ou mais do que, unir”. Inclusão e exclusão, acolhimento e segregação caminham juntos.

o medo, assim, além de pressupor algum mal, segue ou precede o ódio. o “mal” é aquilo que “não podemos entender nem articular claramente”; o mal é inexplicável; o mal “desafia e explode essa inteligibilidade que torna o mundo suportável”7. Por isso, é compreensível que tudo o que ameace minha forma de ser e de ver o mundo possa provocar medo e, de alguma forma, promover o ódio.

o estranho e o estrangeiro, desse modo, passam a constituir o objeto do medo e, também, do ódio. Talvez sempre tenha sido assim. Apesar disso, a for-ma como as sociedades lidam com esse problema pode variar. o estímulo ao acolhimento, a aproximação dos diferentes, o combate ao preconceito, a punição dos intolerantes, são todos mecanismos que ajudam a minimizar os traumas e a evitar a ocorrência de hostilidades.

6 hAll, stuart. op. cit., p. 18/22.7 BAumAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 74.

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Nesse sentido, o direito tem um indispensável papel a desempenhar. como esclarece Geertz8, o direito “não é um simples apêndice técnico acrescen-tado a uma sociedade moralmente (ou imoralmente) pronta”; o direito é “uma parte ativa dessa sociedade”; o direito dá vida às comunidades onde existe – “e as transforma”.

2 a PercePÇÃo Do ÓDio nos estaDos UniDos

crimes de ódio9 são atos delitivos motivados, ao menos em parte, pela afiliação de grupo da vítima10.

Apesar de o ódio poder ser considerado onipresente na história dos es-tados unidos (contra índios, contra negros, contra judeus, contra latinos, contra japoneses, contra muçulmanos, contra mórmons, entre outros)11, a percepção do fenômeno como tal é mais recente, podendo ser datada do último quartel do século 20. com efeito, deve-se a um incidente ocorrido em howard Beach, na cidade de New York, na década de 1980 – ocasião em que um negro foi morto ao tentar escapar de uma turba de jovens que gritava slogans racistas12 –, o apareci-mento do termo hate crime13. Assim, somente quando a violência de ódio passou a constituir um problema real e distinto para a população e o governo, a expressão acabou integrando o vocabulário comum e os textos legais daquele país.

8 GeeRTZ, clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 6. ed. Petrópolis: vozes, 2003. p. 328/329.

9 A expressão hate crime talvez não seja a mais adequada, pois o ódio pode derivar de inúmeros motivos; mais correto seria falar em crime de preconceito, crime de discriminação ou crime de intolerância; apesar disso, a nomenclatura escolhida acabou se difundindo e se consolidando.

10 GeRsTeNFelD, Phyllis B. Hate crimes: causes, controls, and controversies. 3. ed. los Angeles: sage Publications, 2013. p. 11.

11 Como afirma um autor, porém, historicamente, “tais crimes têm sido ativamente encorajados, passivamente condenados ou simplesmente ignorados pelo governo, notadamente pelo sistema de justiça criminal” (mARoNeY, Terry A. The struggle against hate crimes: movement at a crossroads. Disponível em: <www.ssrn.com>. Acesso em: 10 jul. 2015).

12 Apesar disso, a popularização política e jurídica do termo decorreu de projeto de lei apresentado em 1985 na US House of Representatives, impondo ao Governo Federal a coleta de dados estatísticos acerca dos crimes de ódio (AlTschIlleR, Donald. Hate crimes: A reference handbook. 3. ed. santa Barbara/Denver: ABc-clIo, 2015. p. 5).

13 levIN, Jack; mcDevITT, Jack. hate crimes. In: KuRTZ, lester (ed.). Encyclopedia of violence, peace & conflict. 2. ed. san Diego: Academic Press, 2008. p. 915/922.

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evidentemente, as manifestações de intolerância são decorrência de pre-conceitos, repulsas e ressentimentos existentes na sociedade mais ampla14. É mui-to comum que, em situações de crise, as perseguições e agressões se incremen-tem, criando o contexto apropriado para as manifestações individuais ou grupais de ódio reprimido. em regra, os haters são pessoas comuns, não pertencentes a organizações extremistas, diversamente do que se supõe15.

Apesar de o ódio estar enraizado socialmente, nem todos passam ao ato; de fato, a maioria das pessoas, mesmo que compartilhem de algum sentimento disseminado de aversão a determinados grupos de pessoas, são incapazes de levar a cabo hostilidades, vandalismos ou agressões. Por isso, é importante com-preender o que conduz alguns à violência16.

levin e mcDevitt, em famoso estudo sobre a matéria realizado com base nos registros do Departamento de Polícia de Boston17 – revisitado após em outra obra18 –, oferecem uma tipologia dos criminosos, a qual, inclusive, é ensinada pelo Federal Bureau of Investigation (FBI) na sua Training Academy, em Quantico, na virginia. Distinguem eles quatro modalidades de crimes de ódio: atos orienta-dos pela emoção, atitudes de caráter defensivo, reações retaliatórias e campanhas motivadas por missão moral de eliminação do mal.

Thrill hate crimes são crimes de ódio inspirados pela aventura, geralmente definidos a partir de necessidades psicológicas e sociais dos agressores: insuflar um sentimento de superioridade sobre as vítimas e obter a aprovação dos pares. Excitação é o móvel primário de tais condutas, como se verifica em agressões a moradores de rua. Nenhum evento precipitante é necessário, pois o grupo está em busca de emoção e até mesmo se dirige para as áreas de circulação do públi-co-alvo. Geralmente praticados por grupos de jovens, esses delitos contam com alguma liderança sádica que exerce influência sobre os demais membros.

14 WANG, Lu-in. Hate crime and everyday discrimination: Influences of and on the social context. Disponível em: <www.ssrn.com>. Acesso em: 10 jul. 2015.

15 IGANsKI, Paul; levIN, Jack. Hate crimes: A global perspective. New York: Routledge, 2015. p. 50/51.

16 A teoria do autocontrole de Gottfredson e hirschi é apontada como uma explicação plausível do fenômeno (WAlTeRs, mark Austin. A general “theories” of hate crime? strain, doing difference and self control. Disponível em: <www.ssrn.com>. Acesso em: 10 jul. 2015).

17 levIN, Jack; mcDevITT, Jack. Hate crimes: The rising tide of bigotry and bloodshed. New York: Plenum Press, 1993. p. 45/98.

18 levIN, Jack; mcDevITT, Jack. Hate crimes revisited: America’s war on those who are different. Kindle edition. Boulder: Westview Press, 2002. p. 67/113.

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Defensive hate crimes, diversamente, são, em regra, praticados por indiví-duos adultos, que atuam solitariamente, sem se afastar da vizinhança, da escola ou do local de trabalho, contra pessoas pertencentes a algum grupo social deter-minado que represente uma ameaça, real ou imaginária, após eventos cataliza-dores do ódio: a chegada de uma família estrangeira a uma comunidade fechada, a ocorrência de uma crise econômica, uma onda de crimes atribuída a estrangei-ros, entre outros. como consequência, as vítimas selecionadas são tratadas como uma espécie de bode expiatório: todo estrangeiro recém-chegado é considerado um elemento estranho e inferior, que pode até mesmo desvalorizar o patrimônio dos residentes locais; todo imigrante em busca de trabalho constitui um estorvo, pois pode competir pelas poucas vagas de trabalho existentes em momentos crí-ticos; todo estrangeiro é visto como um criminoso potencial.

Também grupos ordinariamente vitimizados podem, eventualmente, pro-mover hostilidades, como atos de terrorismo ou até mesmo crimes de ódio contra a população majoritária. em resposta a tais situações – que podem nem mesmo ser reais –, costumam ocorrer retaliatory hate crimes, que constituem uma espécie de vingança. Revides como esses, os quais não deixam de ser uma modalidade defensiva do delito, geralmente são praticados por agentes que atuam indivi-dualmente e procuram a vítima no próprio território dela. Após o 11 de setem-bro, por exemplo, constatou-se um incremento significativo de ataques contra muçulmanos e árabes nos estados unidos.

Por fim, algumas pessoas dedicam suas vidas a livrar o mundo do mal – tal como por elas percebido –, voltando suas ações à eliminação e perseguição de elementos integrantes de grupos afastados da cultura e da etnia dominante, os quais são tidos como sub-humanos ou demoníacos. esses indivíduos passam o tempo difundido mensagens preconceituosas, criam organizações voltadas ao ódio – como a Ku Klux Klan e a White Aryan Resistence –, promovem encontros com outros simpatizantes, praticam atos de extrema violência contra integrantes dos grupos-alvo de sua aversão. seus atos delitivos são considerados, pelos auto-res, como mission hate crimes. Apesar do envolvimento intenso com a “causa” por seus perpetradores, tais infrações representam menos de 5% dos crimes conside-rados motivados pelo ódio.

os grupos intolerantes organizados ainda representam apenas uma pe-quena parcela da população – existiriam entre 35.000 e 50.000 membros nos esta-dos Unidos –, mas vêm modificando sua forma de atuação e de arregimentação de simpatizantes. Já não focam tanto os rituais e os uniformes como antigamente. Apesar de um grande número de adeptos ser constituído de jovens fracassados na escola e no trabalho, cada vez mais se constata a presença de supremacistas brancos entre pessoas bem-sucedidas profissionalmente e universitários. A lin-

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guagem das mensagens tornou-se mais sutil: o ódio é transmitido de forma su-bliminar, não abertamente. Algumas organizações, inclusive, têm associado sua atividade à defesa da tradição cristã, como as Identity Churches e as Aryan Nations, de modo que apenas estariam “fazendo a obra de Deus”. o uso de novas tecno-logias, como a Internet, por outro lado, tem facilitado a disseminação da causa, sem esquecer o apelo de bandas de white power music que vem explorando essa parcela específica do mercado; aliás, a National Alliance recentemente comprou a Resistence Records, com o objetivo exatamente de divulgar suas ideias entre os jovens por meio da música. Devido à crise econômica do início do século 21, os hate groups tiveram um sensível impulso. A sua estrutura, porém, vem mudando, tendo passado a predominar as pequenas células, fragilmente vinculadas umas às outras e sem liderança única, o que torna ainda mais difícil o controle policial, devido à impossibilidade de infiltração. As particularmente difíceis condições da área rural dos estados unidos, a seu turno, têm favorecido o aparecimento de alguns movimentos supremacistas, como o Posse Comitatus, formado por fa-zendeiros desamparados e residentes de pequenas cidades, os quais se voltam, principalmente, contra o Governo Federal, recusando-se a pagar tributos e defen-dendo alguma forma de poder local.

os autores enfatizam em sua obra o papel central do ressentimento nas manifestações de ódio19. em momentos de competição extremada por status, em-prego e acesso à universidade, por exemplo, é comum que se busquem bodes expiatórios para os problemas pessoais enfrentados. Assim, os judeus passam a ser insultados por uma suposta titularidade de riquezas injustificadas; os asiá-ticos são perseguidos pelo seu sucesso nas universidades; os imigrantes recém--chegados são atacados por representarem uma ameaça no mercado de trabalho; até mesmo uma miss latina ou negra pode afrontar o padrão de beleza do grupo dominante.

em situações de crise mais profundas, inclusive as minorias passam a se enfrentar entre si, uma culpando a outra pelas dificuldades enfrentadas. Mais surpreendente ainda emergem rivalidades internas aos próprios grupos: mexi-canos contra cubanos (latinos), chineses contra japoneses (asiáticos), sefarditas contra ashkenazis (judeus)...20

embora muito citada pela doutrina e utilizada pelas agências de controle do crime nos estados unidos, a tipologia de levin e mcDevitt vem sofrendo

19 levIN, Jack; mcDevITT, Jack. Hate crimes revisited, cit., p. 49/113.20 Idem, p. 133/142.

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críticas ultimamente. Gerstenfeld21, por exemplo, adverte que as modalidades delitivas sugeridas tiveram por base pesquisa realizada em uma cidade (Boston) apenas, não parecendo passível de generalização sem ulteriores investigações em outros lugares. Além disso, muitos crimes de ódio que ocorrem não se en-quadram em nenhum dos tipos sugeridos pelos autores, de modo que talvez fosse necessário ampliar a pesquisa para identificar mais precisamente outras modalidades delitivas. Por fim, mesmo que se considerasse adequada a tipologia sugerida, ainda não estariam evidenciadas a sua utilidade e o seu significado para o controle do crime.

o enfrentamento dos crimes de ódio, evidentemente, tem que se dar em diversas frentes. Preventivamente, é preciso que se criem programas sociais vol-tados à desconstrução de estereótipos negativos, à inclusão social de grupos mar-ginalizados, à promoção de integração comunitária, à educação voltada ao reco-nhecimento e ao respeito às diferenças, entre outras. Nesse aspecto, dois focos são indispensáveis: a comunidade, principalmente por meio de seus líderes, deve oferecer apoio às pessoas ofendidas e manifestar repúdio à ação dos agressores; além disso, jovens ainda em formação merecem atenção especial para evitar o aprofundamento do sentimento de aversão étnica ou cultural e para reverter ten-dências agressivas.

Isso, porém, não basta. medidas legais de caráter repressivo também se afiguram indispensáveis, as quais devem levar em conta as diversas formas de manifestação da violência de ódio.

3 a LegisLaÇÃo criminaL acerca Do ÓDio nos estaDos UniDos

os preconceitos disseminados em dada sociedade muito revelam acerca do caráter de um povo, mas a forma de reagir a tais preconceitos também des-vela o perfil de uma nação. Nos Estados Unidos, a mobilização social em torno do combate à violência discriminatória demonstra que, apesar da persistência de sentimentos de ódio em alguns segmentos populacionais, a democracia e a legalidade ainda constituem a melhor via para a repressão aos haters e para a promoção de uma convivência harmoniosa respeitadora das diferenças.

Alterada a percepção acerca do fenômeno da intolerância naquele país, passou-se a propugnar pelo recrudescimento da resposta estatal contra os in-tolerantes. Paulatinamente, assim, foram-se apontando as razões sociopolíticas

21 GeRsTeNFelD, Phyllis B. op. cit., p. 95/97.

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para a incriminação específica das hate offenses22. enfatizou-se que tais crimes são sensivelmente mais graves que os delitos comuns, pois se voltam contra todo um grupo de pessoas, que passa a se sentir vítima potencial das hostilidades. os crimes de ódio são, assim, considerados delitos de mensagem (message crimes23), pois se dirigem a todas as pessoas que compartilham a identidade da vítima efe-tiva, alertando: “o próximo pode ser você!”. Não há nada de pessoal no delito: o alvo é algum grupo racial, étnico ou religioso, ao qual a vítima, eventualmente, pertença.

os hate crimes, além de promoverem uma lesão imediata a algum bem jurídico da vítima – pessoal ou patrimonial –, atingem-na, em sua identidade, menosprezando-a pelo que é e, assim, vulnerando seus direitos básicos à existên-cia e à liberdade. Pesquisas de vitimização apontam que as pessoas hostilizadas, após o incidente, são tomadas por um pervasivo sentimento de medo e de im-potência, devido à aleatoriedade da agressão, contra a qual nada podem fazer, pois motivadas por traços pessoais seus sobre os quais, em regra, não conseguem dispor, como a cor da pele, para evitarem ulteriores ataques.

Além disso, as manifestações de ódio entranham um potencial de retalia-ção que pode conduzir a conflitos generalizados. De fato, os segmentos sociais atingidos, muitas vezes, em havendo oportunidade, podem se voltar contra in-divíduos do grupo ofensor, atingindo inocentes não responsáveis pelas condutas criminosas vingadas, o que pode desembocar em uma espiral de violência. Daí a necessidade de uma resposta estatal mais severa a tais comportamentos.

o primeiro passo para uma repressão penal adequada, porém, é a infor-mação. É preciso que se coletem dados estatísticos que permitam compreender o fenômeno da violência de ódio para, então, traçar as políticas criminais perti-nentes.

com esse objetivo, no âmbito federal norte-americano, inicialmente foi aprovado o Hate Crimes Statistics Act (hcsA), em 1990, determinando que fos-sem coletados e publicados dados acerca dos crimes de ódio ocorrentes em todo o território nacional24. Essa atividade ficou sob a responsabilidade do Federal Bureau of Investigation (FBI), o qual coordena o Uniform Crime Reporting Program (FBI UCR Program).

22 Idem, p. 18/24.23 IGANsKI, Paul; levIN, Jack. op. cit., p. 35 e 41.24 GeRsTeNFelD, Phyllis B. op. cit., p. 34.

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com base nos dados de 201425 (os últimos consolidados), por exemplo, naquele ano teriam ocorrido 6.385 crimes motivados pelo ódio, dos quais 48,3% de cunho racial, 17,1% de cunho religioso e 12,4% de cunho étnico. Os principais grupos de vítimas foram negros (63,5%), na categoria de motivação racial; judeus (58,2%), na religiosa; e latinos (47,6%26), na étnica. os principais delitos perpetra-dos foram intimidação (27,2%), danos e vandalismo (26,4%) e agressão simples (23,6%27). Registraram-se apenas 4 casos de homicídio e 9 de estupro.

Posteriormente, foi aprovado, em 1994, o Hate Crimes Enhancement Act, dis-pondo acerca do agravamento de penas pela prática de crimes federais motiva-dos pelo ódio. Já, em 1997, entrou em vigor o Church Arson Prevention Act, como reação às inúmeras igrejas incendiadas na década, principalmente de negros. Por fim, em 2009, foi sancionado o chamado Matthew Shepard and James Byrd, Jr. Hate Crimes Prevention Act, criminalizando atos de intolerância desencadeados não apenas devido à religião, à cor, à etnia e à origem nacional, mas também ao gênero, à orientação sexual, à identidade de gênero e à eventual deficiência da vítima, ampliando a competência federal para processar e julgar delitos dessa natureza28. contudo, considerando a primazia da jurisdição estadual, a aplicação dessa lei federal pressupõe a inércia ou o desinteresse do estado em perseguir judicialmente determinado crime inspirado pelo preconceito29.

Já os primeiros estados a editarem leis penais voltadas à perseguição da violência de ódio foram connecticut e massachusetts, ainda antes da década de 1980, mas a mobilização em torno da causa iria acelerar as alterações legislativas em todo o país.

A mudança de atitude decorreu muito da pressão dos movimentos so-ciais vinculados à proteção das vítimas das hostilidades. Importante papel, nesse sentido, exerceu a Anti-Defamation League (ADl), a qual, diante da inércia dos legisladores estaduais em incriminar as manifestações de ódio, redigiu, em 1981, um código modelo (model statute)30, o qual contribuiu significativamente para a propagação da legislação penal sobre a matéria.

25 Disponível em: <www.fbi.gov>. Acesso em: 23 maio 2016.26 A categoria “anti-não latinos” foi a majoritária, mas abarca todas as etnias residuais.27 somados, assault e aggravated assault alcançaram 35,6%.28 GeRsTeNFelD, Phyllis B. op. cit., p. 35/36.29 shAveRs, christine marie. Criminal Law dealing with hate crimes: Functional comparative

law: Germany vs. usA. Frankfurt am main: Peter lang Gmbh, 2014. p. 142/145.30 TuRPIN-PeTRosINo, carolyn. Understanding hate crimes: Acts, motives, offenders, victims,

and justice. New York: Routledge, 2015. p. 57/58.

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o esforço de conscientização surtiu efeito: poucos estados continham leis penais relativamente a delitos de ódio no início da década de 1980; em 1994, 34 estados e o District of columbia já contavam com atos normativos criminais31; em 2015, apenas cinco estados – Arkansas, Georgia, Indiana, south carolina e Wyoming – ainda não haviam regrado penalmente a matéria32.

Todos os estados que instituíram leis penais antidiscriminação combatem delitos praticados por motivo de religião, raça e etnia, mas muitos ainda esten-dem a proteção para gênero, deficiência e orientação sexual dos ofendidos.

o modelo de código oferecido pela Anti-Defamation League é bastante ob-servado pelos Estados, mas também se verificam redações originais, o que confe-re grande diversidade à legislação do país. Alguns estados apenas preveem uma agravante genérica incidente quando os crimes são praticados por motivo de ódio; outros instituem delitos autônomos pelos quais os agressores são condena-dos independentemente da punição por alguma outra infração comum. Alguns estados estabelecem que a agravante da intolerância se aplica a qualquer delito; outros delimitam o âmbito de abrangência a apenas algumas infrações penais33.

considerando o histórico de violência de ódio no país, algumas condutas específicas foram criminalizadas pelos Estados, como o uso de máscaras (voltada a organizações como a Ku Klux Klan) e a queima de cruz (também um símbolo da Ku Klux Klan)34.

Apesar de observar-se a existência de críticas35 à legislação antidiscrimi-nação, fundadas nas liberdades de expressão e de religião (tais leis limitariam os direitos de emitir opiniões e de propagar ideias religiosas), e no princípio da igual proteção (tais leis beneficiariam segmentos específicos da população em de-trimento de outros)36, a suprema corte tem considerado constitucionais esse atos

31 GeRsTeNFelD, Phyllis B. op. cit., p. 31.32 Disponível em: <www.adl.org>. Acesso em: 27 maio 2016.33 GeRsTeNFelD, Phyllis B. op. cit., p. 31/32.34 TuRPIN-PeTRosINo, carolyn. op. cit., p. 62/65.35 Também se aponta que a legislação criminal contra as manifestações de ódio exacerba,

em vez de minimizar, as diferenças culturais; tem aplicação desproporcional, afetando ainda mais as minorias, que constituem o alvo preferencial das ações policiais; enfatiza a motivação do crime como razão para o agravamento da pena, e não as consequências do ato para os ofendidos (lAWReNce, Frederick m. The hate crime project and its limitations: evaluating the social gains and risk in bias crime law enforcement. Disponível em: <www.ssrn.com>. Acesso em: 10 jul. 2015).

36 TuRPIN-PeTRosINo, carolyn. op. cit., p. 67/70.

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normativos37, desde que a motivação de ódio se concretize em alguma conduta que ultrapasse o mero exercício das liberdades de opinião e de crença.

evidentemente, a mera previsão legal de mecanismos para reprimir os de-litos de ódio não é suficiente. A legislação necessita ser efetivamente aplicada. Nesse ponto, o FBI tem oferecido treinamento aos estados com o objetivo de capacitar os agentes a detectarem os hate crimes e a conduzirem as investigações de maneira adequada. Além disso, alguns departamentos policiais criaram uni-dades especiais para o combate a essa modalidade de infração penal. Apesar disso, muito ainda há a ser feito: os registros e as notificações das ocorrências continuam a ser deficientes e, em regra, inexiste serviço de apoio às vítimas de hostilidades. e, como os crimes de ódio, apesar de graves, não são frequentes, também se constata certo despreparo dos profissionais em lidar com o tema. Não bastasse isso, outras dificuldades no enfrentamento do problema se verificam, principalmente no que concerne à resposta judicial. como os haters, em geral, são jovens sem registro policiais significativos, os juízes receiam impor-lhes penas muito severas que poderiam comprometer definitivamente a sua formação. Essa orientação é reforçada pela superlotação carcerária existente e pela divisão dos detentos em gangs por afiliação étnica ou racial, o que certamente facilitaria a cooptação do infrator e incentivaria a radicalização de seu comportamento. A al-ternativa tem sido a aplicação de medidas descarceradoras, as quais, porém, são tidas como muito lenientes pelas vítimas, pela comunidade e até mesmo pelos condenados38.

4 o DiscUrso De ÓDio e a LiBerDaDe De eXPressÃo nos estaDos UniDos

entre os direitos fundamentais reconhecidos nos estados unidos, é a liber-dade de expressão, sem dúvida, a que mais força normativa vem apresentando, moldando decisivamente o sistema jurídico-penal daquele país39.

Por essa razão, o discurso de ódio, em regra, não é criminalizado.

coube, basicamente, à Primeira emenda da constituição norte-americana resguardar formalmente o direito à liberdade de expressão, ao estabelecer que “Congress shall make no law... abridging the freedom of speech or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of

37 shAveRs, christine marie. op. cit., p. 167/170.38 levIN, Jack; mcDevITT, Jack. Hate crimes revisited, cit., p. 171/207.39 sARmeNTo, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. Disponível

em: <www.dsarmento.adv.br>. Acesso em: 14 maio 2016.

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grievances”40, tendo a suprema corte, em 1925, decidido encontrar-se tal direito protegido pela Décima Quarta emenda, sendo, assim, de observância obrigatória por todos os estados, devido à chamada incorporation theory.

A partir desse texto e das particularidades históricas da nação norte-ame-ricana, a liberdade de expressão assomou como característica essencial para uma sociedade democrática e um princípio a ser respeitado de forma quase absoluta41 por seus cidadãos e pelo próprio governo. A proteção reforçada de tal direito seria justificada, conforme se sustenta, porque favoreceria o aprimoramento in-dividual, fomentaria um vigoroso mercado de ideias, promoveria a estabilidade social e estimularia o governo a identificar e enfrentar novas questões sociais42.

em decorrência disso, os estados unidos reconheceram que coibir a li-berdade de expressão, proibindo o discurso, mesmo que ofensivo ou preconcei-tuoso, poderia colocar em risco a democracia, tendo em vista que obrigaria seus cidadãos a se reunirem secretamente para debater determinados temas, ao invés de abertamente exporem suas opiniões. Partindo de postulados liberais radicais, como os apregoados pelo filósofo inglês John Stuart Mill43, aquele país concluiu que a solução mais adequada para se contrapor a manifestações de ódio não esta-ria na sua vedação, mas na promoção do intercâmbio livre e aberto de ideias, de forma a propiciar a contestação de mensagens falsas e a instigar a compreensão mais qualificada dos conflitos humanos.

Desse modo, por mais intolerante que o discurso seja, ainda assim estará naquele país, na maioria dos casos, protegido pela constituição, sendo o sistema inteiramente baseado na possibilidade de um indivíduo se expressar livremente sem temer qualquer repressão estatal.

Contudo, em algumas situações específicas, entende-se que o discurso não estará protegido pela Primeira Emenda, podendo vir a configurar, inclusive, infração penal: os casos de threat, fighting words, obscenity e incitement to violent action44.

40 “o congresso não deve criar nenhuma lei... restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de reunir-se de forma pacífica e de formular pedido ao Governo para a reparação de queixas.” (tradução livre)

41 certamente gozando de uma posição preferencial: NoWAK, John e.; RoTuNDA, Ronald D. Constitutional Law. 6. ed. st. Paul: West Group, 2000. p. 1063/1065.

42 lIPPmAN, matthew. Contemporary Criminal Law: concepts, cases, and controversies. 2. ed. los Angeles: sage, 2010. p. 33.

43 sTuART mIll, John. On liberty. london: longmans, Green, and co., 1867.44 lIPPmAN, matthew. op. cit., p. 34/35.

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A primeira exceção ocorre na chamada true threat, a qual consiste em amea ças verossímeis de causar dano físico a outrem, gerando fundado receio no destinatário. mesmo assim, ainda cabe aos juízes sopesar as circunstâncias específicas de cada caso concreto, via balanceamento, a fim de apurar se de fato ocorreu uma ameaça real ou se se tratou de um mero exagero por parte do agen-te, principalmente nas manifestações politicamente motivadas.

No que tange à obscenidade, ainda se discute quanto a sua caracterização e como deve ser regulamentada. em 1973, no caso miller v. califórnia, a suprema corte formulou uma teste para a obscenity, exigindo para a sua configuração que a obra, tomada como um todo, à luz dos padrões comunitários contemporâneos, apele para interesses lascivos, seja patentemente ofensiva e careça de sério valor literário, científico, político ou artístico. Segundo o entendimento do Tribunal, todos os elementos devem se fazer presentes para configurar uma manifestação como obscena, tornando mais rígidas as exigências e, portanto, raras as situações em que os juízes reconhecem sua ocorrência.

Por fim, a última situação que não encontra amparo constitucional é a in-citação à violência (incitement to violent action), tidas pela suprema corte como qualquer forma de expressão capaz de provocar um perigo claro e imediato de tumulto, desordem, interferência com o tráfego nas vias públicas ou outra amea- ça imediata para a segurança, paz ou ordem públicas. muito próximas a esse conceito encontram-se as fighting words, especificamente definidas pela doutrina como toda forma de manifestação direcionada a um indivíduo ou a um grupo de indivíduos, em que o agente, consciente do seu conteúdo, sabe que pode gerar alguma forma de confronto ou de quebra da paz. contudo, há, apesar disso, uma grande tolerância dos tribunais relativamente à sua prática, com a exigência de padrões muito elevados para a configuração do ilícito e, consequentemente, com escassas imposições de sanções.

Exceto nessas situações específicas, assim, o discurso de ódio (hate speech) – usualmente definido como aquele que menoscaba, humilha e ataca indivíduos em virtude de sua raça, religião, etnia, nacionalidade, gênero, sexualidade ou qualquer outra característica ou preferência pessoal – é protegido pela Primeira emenda.

Tal orientação jurídica extremamente liberal deriva, sem dúvida, da sin-gularidade histórica dos estados unidos, colônia de povoamento formada origi-nalmente por casais de minorias religiosas, dominada por uma cultura profun-damente individualista, em que a liberdade de expressão sempre exerceu impor-tante papel, principalmente durante a luta por independência travada contra a metrópole inglesa.

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consiDeraÇÕes finais

Talvez o ódio e a intolerância sejam inextirpáveis das sociedades huma-nas. A diferença assombra as pessoas e, por mais que os estados adotem políticas de reconhecimento e respeito ao outro, as aversões recalcadas voltam a aflorar de tempos em tempos, principalmente em momentos de crise.

muito já se avançou na matéria, porém. Internacionalmente, as nações vêm unindo esforços no combate à discriminação, já tendo sido aprovados inúme-ros tratados de direitos humanos voltados à proteção de minorias vulneráveis. Internamente, alguns países, como os estados unidos, vêm enfrentando o ódio enraizado com medidas legislativas, inclusive penais, e com políticas públicas adequadas.

mas talvez a atuação dos diversos movimentos de vítimas de discrimina-ção e a visibilidade do problema sejam os aspectos mais promissores desse início de milênio. os grupos hostilizados empoderaram-se, o que tem entrincheirado os haters. Pouco do que é feito de mal passa sem resposta ou, ao menos, sem re-percussão. e, nessa matéria, a vigilância constante é indispensável.

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a DecisÃo Da corte constitUcionaL itaLiana no “caso eternit-Bis”: qUestÕes

novas soBre as reLaÇÕes entre Bis in iDem ProcessUaL e concUrso formaL De crimes?*

the Decision of the itaLian constitUtionaL coUrt regarDing in “eternit-Bis case”: neW qUestions

aBoUt the reLations BetWeen ProceDUraL Bis in iDem anD formaL concUrrence of crimes?

BRuna cappaRelli**

Vinicius goMes de Vasconcellos***

Resumo: este trabalho pretende analisar os questionamentos ju-rídicos abordados recentemente pela corte constitucional italiana com a sentença nº 200, de 2016, em matéria de bis in idem processual e concurso formal de crimes. Tal decisão declarou ilegítimo o art. 649 cPP italiano na parte em que exclui que o fato seja o mesmo somente pela circunstância de que exista um concurso formal entre ilícitos já processados com sentença transitada em julgado e o crime pelo

* Texto desenvolvido a partir de comunicação feita no âmbito do ciclo de lições da Scuola di Specializzazione per le Professioni Legali a.a. 2016/2017 – Alma mater studiorum – Università degli Studi di Bologna sobre “Il ne bis in idem: la disciplina italiana e le sue evoluzioni alla luce della Giurisprudenza Europea”, encontro do dia 10 de outubro de 2016.

** PhD candidate em Direito Processual Penal pela Alma Mater Studiorum – università di Bologna (em cotutela com a PucRs), Graduada em Direito pela Alma Mater Studiorum – Università di Bologna, Qualificada ao exercício da profissão de advogada na Itália. Orcid.org/0000-0003-1249-2658.

*** Pós-Doutorando pela uFRJ, Doutor em Direito pela usP – com período de sanduíche (PDse/capes) na universidad complutense de madrid (esP), mestre em ciências criminais pela PucRs (com bolsa integral capes), Pesquisador visitante no max Planck Institute for Foreign and International criminal law (2014 e 2017), editor-chefe da Revista Brasileira de Direito Processual Penal (RBDPP) e editor-Assistente da Revista Brasileira de ciências criminais (RBccrim), Professor das Faculdades Integradas campos salles/sP. orcid.org/0000-0003-2020-5516.

cAPPARellI, Bruna; vAscoNcellos, vinicius Gomes de. A decisão da corte constitucional italiana no “caso eternit-Bis”: questões novas sobre as relações entre bis in idem processual

e concurso formal de crimes? Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 68, p. 129-151, 2018.

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qual iniciou-se o novo procedimento penal. Questiona-se, portanto, quais são os limites à finalidade perseguida pela justiça criminal, em alguns casos, para prevalecer sobre a estabilidade da garantia pro-cessual concernente à proibição de dupla persecução penal.PAlAvRAs-chAve: Processo penal; coisa julgada penal; bis in idem processual; concurso formal de crimes; Tribunal europeu de Direitos humanos.ABsTRAcT: The following contribution analyzes the juridical ques-tions recently set by the italian constitutional court with the sen-tence nº 200/2016 in the matter of procedural bis in idem and formal concurrence of crimes, which declare illegitimate the art. 649 cPP italian in the part that excludes the fact that is the same only by cir-cumstance there is a formal concurrence between other crimes alrea-dy processed with final judgment and the crime for which began the new criminal procedure. We ask ourselves, therefore, in what limits the purpose pursued by justice, in some cases, prevail over the sta-bility of the procedural safeguards concerning the double jeopardy prohibition.KeYWoRDs: criminal procedure; res iudicata; double jeopardy; for-mal concurrence of crime; european court of human Rights.sumÁRIo: Introdução; 1 Breve enquadramento sistemático; 2 Apro - ximações ao direito vivente sobre a noção de “idem”: “fato jurídico” e “fato histórico” entre o artigo 649 do cPP italiano e o artigo 4 do protocolo 7 da ceDh; 3 o “caso eternit-bis”; 4 A sentença corte Const. nº 200, de 2016; Considerações finais; Referências.

introDUÇÃo

o princípio do ne bis in idem representa, sem dúvidas, uma das questões atualmente mais debatidas tanto na reflexão científica quanto na prática judi- ciária, especialmente em consequência de algumas notórias sentenças das duas cortes europeias1 e da corte constitucional italiana2. De fato, foram muito explo-

1 A referência é, por um lado, à sentença da Corte di Giustizia ue, Grande sezione, 26 de fevereiro de 2013 na causa c-617/10, Åklagaren contra hans Åkerberg Fransson, e, por outro lado, à sentença da Corte europea dei diritti dell’uomo, 4 de março de 2014, Grande stevens e outros contra Itália.

2 veja-se também a ordinanza do juiz remitente do Tribunal de Torino, GuP, 24 de julho de 2015, na qual o magistrado considera existente o contraste entre a norma processual italiana, como interpretada pela Cassazione, na parte em que limita a aplicação do ne bis in idem processual somente aos procedimentos penais irrevogáveis que tenham julgado o mesmo “fato jurídico”, e a jurisprudência da corte eDh, sobre a qual o princípio em questão teria que ser estendido também aos procedimentos – concluído definitivamente – no qual o

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radas pela doutrina tanto a dimensão supranacional de tal princípio3 – há muito tempo consagrada no ordenamento jurídico de diversos estados europeus e den-tro de fontes euro-comunitárias4 – quanto à dimensão interna do impedimento

imputado tenha respondido pelo mesmo “fato histórico”, visto que sucessivamente como base para o procedimento.

3 Sobre os penetrantes influxos da CEDH em matéria de bis in idem sancionatório, e, em particular, em matéria penal tributária e bancária financeira, ao centro do debate científico italiano e europeu depois da notória sentença corte eDh, Grande stevens contra Itália (Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/>. Último acesso em: 23 out. 2016), ver: cAIANIello, michele. Ne bis in idem e illeciti tributari per omesso versamento dell’iva: il rinvio della questione alla corte costituzionale. Diritto Penale Contemporaneo, 18 maggio 2015; lAvARINI, Barbara. Il ne bis in idem convenzionale e “doppio binario” sanzionatorio: il problema del “doppio giudicato”. La Legislazione Penale, 14 marzo 2016; vIGANÒ, Francesco. Doppio binario sanzionatorio e ne bis in idem: verso una diretta applicazione dell’art. 50 della carta? Diritto Penale Contemporaneo, 3-4, p. 219 s., 2014; vIGANÒ, Francesco. Ne bis in idem e contrasto agli abusi di mercato: una sfida per il legislatore e i giudici italiani. Diritto Penale Contemporaneo, 8 febbraio 2016; vIGANÒ, Francesco. Doppio binario sanzionatorio e ne bis in idem: verso una diretta applicazione dell’art. 50 della carta? (A margine della sentenza Grande stevens della corte edu). Diritto Penale Contemporaneo, 3-4, p. 219 s., 2014; vIGANÒ, Francesco. Pena illegittima e giudicato. Riflessioni in margine alla pronuncia delle Sezioni unite che chiude la saga dei “fratelli minori” di scoppola. Diritto Penale Contemporaneo, 1, p. 250 s., 2014. Recentemente, interviu sobre o ponto até mesmo a corte de Justiça da união europeia de luxemburgo. A este propósito, ver, ainda: vIGANÒ, Francesco. A never-ending story? Alla corte di giustizia dell’unione europea la questione della compatibilità tra ne bis in idem e doppio binario sanzionatorio in materia, questa volta, di abusi di mercato. Diritto Penale Contemporaneo, 17 ottobre 2016. Na jurisprudência, sobre as resistências nacionais a se adequar aos standards supranacionais, ver, por exemplo: Tribunal de Brindisi, 17 de outubro de 2014: interpretação convencionalmente orientada do ne bis in idem interno, com proscioglimento de um detido pelo crime de dano, tendo esse pelos mesmos fatos já subido uma sanção disciplinar, e Tribunal de Bologna, de 21 de abril de 2015, junto com cassazione penale, v de novembro de 2014, chiarion casoni, que levantaram a questão de legitimidade constitucional decidida pela corte const. em 7 março 2016.

4 Entre que limites é proibido processar na Itália um sujeito já definitivamente absolvido ou condenado com sentença irrevogável pelo mesmo fato criminal que os querem imputar? A regra geral – esculpida no art. 11 do cP italiano – é que o cidadão ou estrangeiro que tenha cometido na Itália ou no exterior um dos crimes contidos nos arts. 6-10 do cP italiano possa (e, em alguns casos, deva) ser julgado no estado italiano até mesmo se já foi julgado no exterior. subsequentemente, segundo uma consolidada postura jurisprudencial, deriva- -se uma proibição de reiteração do julgamento celebrado no exterior e pode-se considerar positivamente existente no nosso ordenamento somente quando a regra do ne bis in idem encontre fundamentação em uma explícita disciplina pátria. Nessa limitada prospectiva, particular valor assumem os arts. 54-58 da convenção de Aplicação do Acordo de schengen e o art. 50 da Carta dei Diritti Fondamentali dell’Unione Europea.

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de submeter a novo processo penal pelo mesmo fato um sujeito já definitivamen-te julgado5.

o presente estudo concentra-se sobre a dimensão interna de dito princípio e, em particular, sobre os problemas retomados recentemente pela corte cons-titucional italiana com a sentença nº 200, de 20166, em matéria de relações entre bis in idem processual e concurso formal de crimes. Portanto, é necessário, em pri-meiro lugar, verificar se o bis in idem convencional em matéria penal no sentido do art. 4, protocolo 7, da ceDh7, tem efetivamente uma interpretação aplicati-va mais ampla e favorável ao imputado em relação ao correspondente princípio transposto pelo art. 649 do cPP italiano8.

em segundo lugar, é útil analisar se, com base em uma mais convincente interpretação do art. 649 do cPP italiano (infra § 1), em todas as hipóteses de concurso formal de crimes, é possível julgar mais de uma vez a mesma condu-ta, retendo a equação “fato = conduta + evento + nexo causal”, sobre a qual se apoiam as considerações feitas pela consolidada jurisprudência de legitimidade italiana ao longo dos anos9.

em terceiro lugar, considerada a metamorfose em curso entre as relações entre jurisprudência interna e aquela convencional, entre juízes e lei penal10, ocor-

5 ver: JANellI, enzo. la cosa giudicata. In: chIAvARIo, mario; mARZADuRI, enrico (org.). Giurisprudenza sistematica di diritto processuale penale, Le impugnazioni. Torino: utet, 2005. p. 637 s.

6 No caso, levanta-se questão de legitimidade constitucional do art. 649 do cPP italiano, na parte em que tal disposição limita a aplicação do princípio do ne bis in idem ao mesmo fato jurídico, nos seus elementos constitutivos, embora diferentemente qualificado, ao invés do mesmo fato histórico, com referência ao art. 117, inciso 1, da constituição italiana, em relação ao art. 4 do Protocolo 7 da convenção europeia.

7 “1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse estado. 2. As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento. 3. Não é permitida qualquer derrogação ao presente artigo com fundamento no art. 15.º da convenção.”

8 sobre isto, ver: infra § 2 e sent. corte const. italiana nº 200 de 2016, Considerato in Diritto, p. 17 s. (Disponível em: <www.giurcost.it>. Último acesso em: 2 set. 2016).

9 ver: infra §§ 1 e 3.10 Nesses mesmos termos: CAPRIOLI, Francesco. Giudicato e pena illegale: riflessioni a

margine di una recente sentenza della corte costituzionale. In: BARGIs, marta (org.). Studi in ricordo di Maria Gabriella Aimonetto. milano: Giuffrè, 2013. p. 263 s. Útil comparação pode

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re também examinar o que acontece na eventualidade em que, como no caso considerado, a disposição normativa interna seja abstratamente suscetível de in-terpretação convencionalmente conforme11, mas o “direito vivente” representa-do pela orientação consolidado da suprema corte contraste abertamente com os precedentes interpretativos ditados pela corte eDu12.

os problemas aqui delimitados são discutidos também em âmbito juris-prudencial e doutrinário no panorama brasileiro. A delimitação do conteúdo da proibição de dupla persecução penal é objeto de importantes estudos na ciência

ser feita com vIcolI, Daniele. le ricadute processuali del “caso schwibbert”: punti fermi e incertezze nelle prime applicazioni della giurisprudenza di legittimità. IUS 17, p. 39 s., 2009. Por outro lado, em termos amplos sobre os problemas estruturais concernentes à adaptabilidade da ceDh no ordenamento interno, ver a reconstrução de cAIANIello, Michele. Profili critici e ipotesi di sviluppo nell’adeguamento del sistema interno alle sentenze della corte europea dei diritti dell’uomo. In: mANes, vittorio; ZAGReBelsKY, Gustavo (org.). La Convenzione europea dei diritti dell’uomo nell’ordinamento italiano. milano: Giuffrè, 2011. p. 559 s.

11 Na doutrina, sobre a atividade hermenêutica no diálogo entre as cortes, ver: NIsTIcÒ, michele. L’interpretazione giudiziale nella tensione tra i poteri dello Stato. Torino: Giappichelli, 2015. p. 105 s.; e PIsToRIo, Giovanna. Interpretazione e giudici. Il caso dell’interpretazione conforme al diritto dell’Unione europea. Napoli: Editoriale Scientifica, 2012. p. 88-110. Para uma visão panorâmica sobre a corte de Justiça da ue, ver: PoZZo, Barbara. l’interpretazione della corte del lussemburgo del testo multilingue: una rassegna giurisprudenziale. In: PoZZo, Barbara; TImoTeo, marina. Europa e linguaggi giuridici. milano: Giuffrè, 2008. p. 383 s. em termos mais amplos e abstratos sobre a função da linguagem no processo penal, ver: cARoFIGlIo, Gianrico. linguaggio e verità. In: cARoFIGlIo, Gianrico. L’arte del dubbio. Palermo: sellerio, 2007. p. 13 s.

12 De extrema relevância, a propósito, a sentença da Grande câmera, 10 de fevereiro de 2009, Zolotoukhine contra Rússia, em que se estabelece que é caracterizável a identidade do fato quando mesma é a ação ou omissão pela qual a pessoa já foi definitivamente julgada. No caso específico, em aplicação dessa orientação, não obstaria a proibição de bis in idem, nem a diversidade do evento consequente à conduta, nem a configurabilidade de um concurso formal entre crimes. ver, além disto, a sentença de 4 de março de 2014, Grande stevens contra Itália; sentença 14 de abril de 2014, muslija contra Bosnia erzegovina, parágrafo 34; sentença 14 de abril de 2014, Khmel contra Rússia, paragrafo 65; sentença 23 de setembro de 2015, Butnaru e Bejan-Piser contra Romania, parágrafo 37 (Disponíveis em: <http://hudoc.echr.coe.int/eng>. Último acesso em: 23 out. 2016).

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jurídica nacional13, além de ensejar casos julgados pelos Tribunais superiores em diversas situações distintas14.

Ademais, o debate descrito em relação à conceituação do “fato” a ser per-seguido penalmente e à determinação da sua qualificação jurídica aporta impor-tantes consequências também para o estudo da correlação entre a acusação e a sentença, no âmbito dos institutos da emendatio e da mutatio libelli. A necessidade de uma compreensão ampla do fato penal, abarcando a sua qualificação jurídica como um crime específico a partir do modelo abstrato previsto normativamente, é ponto de intensa divergência doutrinária no cenário pátrio15.

o desacordo na doutrina brasileira em relação à ocorrência da proibição de dupla persecução (ne bis in idem) nos casos de concurso formal de crimes é marcante, de modo que tal assunto, objeto deste estudo a partir do caso italiano narrado, pode aportar contribuições relevantes. Por exemplo, Paulo Rangel afir-ma que, a partir de exemplo descrito, se com uma conduta o acusado pratica dois homicídios, mas o mP imputa inicialmente somente uma morte, “é um equívoco pensar que o fato de Tício ter sido acusado da morte de Pedro e condenado com sentença transitada em julgado impediria novo processo pela morte também de João”, pois, conforme o autor, “são dois fatos distintos ocorridos no mundo da vida”16.

Por outro lado, adotando postura que determina uma maior amplitude ao ne bis in idem, Gustavo Badaró assevera que, “como ninguém pode ser processa-do duas vezes pelo mesmo fato, e sendo o fato naturalístico um todo incindível, ele deve ser trazido ao processo em sua inteireza, pois não será possível um novo julgamento pelo mesmo fato, ou parcela daquele fato não incluída na denúncia

13 cRuZ, Rogério schietti m. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2008; sABoYA, Keity. Ne bis in idem. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2014.

14 Recentemente, no superior Tribunal de Justiça: hc 102.244/sP, 5ª Turma, Relª min. laurita vaz, J. 13.10.2009; hc 362.054/PB, 6ª Turma, Rel. min. Assis moura, J. 09.08.2016; hc 315.073/sP, 5ª Turma, Rel. min. soares da Fonseca, J. 23.02.2016; hc 307.820/sP, 5ª Turma, Rel. min. Felix Fischer, J. 01.10.2015; hc 320.626/sP, 6ª Turma, Rel. min. schietti cruz, J. 09.06.2015. Já no supremo Tribunal Federal: hc 97.237/sP, 2ª Turma, Relª min. cármen lúcia, J. 14.05.2013; hc 92.912, 1ª Turma, Relª min. cármen lúcia, J. 20.11.2007; hc 86.606/ms, 1ª Turma, Relª min. cármen lúcia, J. 22.05.2007.

15 BADARÓ, Gustavo h. Correlação entre acusação e sentença. 3. ed. são Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 99-138; loPes JR., Aury. Direito processual penal. 9. ed. são Paulo: saraiva, 2012. p. 1086-1108.

16 RANGel, Paulo. A coisa julgada no processo penal como instrumento de garantia. são Paulo: Atlas, 2012. p. 204.

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ou queixa”17. Igualmente assumindo tal visão, em exemplo que envolve situação semelhante à descrita por Rangel, lopes Jr. sustenta que “se mediante uma única ação culposa, mané atropela 4 pessoas que caminhavam pela margem de uma rodovia, mas a denúncia descreve apenas 3 crimes, não poderá, após a sentença transitar em julgado, ser (novamente) processado em relação ao fato não abran-gido pela denúncia”18.

Portanto, resta claro que o caso italiano exposto neste artigo se mostra fun-damentalmente pertinente ao estudo do direito processual penal brasileiro. os problemas e as teses expostos neste trabalho têm potencial para aportar impor-tantes contribuições ao cenário nacional.

1 Breve enqUaDramento sistemático

como é notório, proibindo o segundo julgamento até mesmo onde o fato seja diferentemente considerado pelo “título” ou pelo “grau”, o art. 649 do cPP italiano exclui que se possa voltar a processar não somente na hipótese na qual o Ministério Público deduza o erro de anterior qualificação jurídica, mas também nos casos em que a conduta objeto do primeiro julgamento seja efetivamente qualificável, em abstrato, a duas fattispecie criminosas19. conforme a redação ori-ginal do art. 649, “o imputado absolvido ou condenado com sentença ou decreto penal definitivo não pode ser novamente submetido a processo penal pelo mes-mo fato, nem se ele for qualificado diversamente pelo título, pelo grau ou pela circunstância, salvo o disposto nos arts. 69, alínea 2 e 345”.

como se lembrará, o fenômeno ora descrito se divide nas duas sub-hipóte-ses de concurso aparente de normas e de concurso formal de crimes (homogêneo ou heterogêneo). No primeiro caso, se verifica aquele que se pode definir como um bis in idem substancial: embora a conduta seja abstratamente qualificável em duas ou mais fattispecie criminosas, a lei substancial, corretamente compreendi-da, exige que o seu autor seja punido somente uma vez. No segundo caso, por outro lado, quando uma só conduta origina mais violações da mesma norma penal (concurso homogêneo) ou de diversas normas penais (concurso heterogê-

17 BADARÓ, Gustavo h. Correlação entre acusação e sentença. 3. ed. são Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 136. Assim também: sABoYA, Keity. Ne bis in idem. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2014. p. 192-193.

18 loPes JR., Aury. Direito processual penal. 9. ed. são Paulo: saraiva, 2012. p. 1116. Adotando visão semelhante na doutrina espanhola: ARmeNTA Deu, Teresa. Lecciones de Derecho procesal penal. 6. ed. madrid: marcial Pons, 2012. p. 260.

19 em análise ampla: cAPRIolI, Francesco. sui rapporti tra bis in idem processuale e concorso formale dei reati. Giurisprudenza Italiana, p. 1181 s., 2010.

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neo), cada uma delas deve ser punida, ainda que com pena reduzida ex art. 81.1 do cP italiano20.

Não se discute que, no primeiro caso (concurso aparente de normas), apli-ca-se o art. 649 cPP italiano. e não se tem nenhuma dúvida que a aplicação do art. 649 do cPP italiano evita, em alguns casos, também a violação do bis in idem substancial. como sustentado por uma autorevole opinião21, se pode considerar, “como regra geral, que onde exista o risco de uma violação do bis in idem subs-tancial, não possa não operar o bis in idem processual”22.

Todavia, “mesmo que se referindo às hipóteses de concurso aparente de crimes, o disposto do art. 649 cPP não pode ser considerado como a simples tradução em termos processuais do princípio do ne bis in idem substancial”23. Isso em relação à proibição de reprocessar pelo mesmo fato “opera até em caso de concurso aparente de normas em relação as quais inexiste o risco de um bis in idem substancial”24. Portanto, a relação entre bis in idem substancial e bis in idem processual parece ser configurável nos seguintes termos: onde ocorre o primeiro

é certamente destinado a operar também o segundo, mas o contrário não é ver-dadeiro: a proibição de processar novamente responde a exigências garantistas mais amplas em relação àquela que inspiram a proibição de condenar duas ve-zes o mesmo sujeito por uma conduta qualificável a mais fattispecies criminosas embora unitária sobre o perfil do desvalor penal.25

20 Especificamente, ver: CAPRIOLI, Francesco. Procedura penale dell’esecuzione. Torino: Giappichelli, 2011. p. 88 s.

21 Nesses termos, cAPRIolI, Francesco. Procedura, cit., p. 88.22 Idem, ibidem (tradução livre).23 Ibidem, p. 89 (tradução livre).24 Ibidem, p. 88 (tradução livre).25 Idem, ibidem (tradução livre). Também nessa mesma direção Franco cordero (Procedura

penale. milano: Giuffrè, 1991. p. 987), segundo o qual “até mesmo os penalistas postulam um ne bis in idem [...] [mas] a proibição de um segundo julgamento sobre a eadem res tem pouco a dividir, aliás nada, com estas máximas penalísticas (constituem um capítulo da lógica deôntica); é puro fenômeno judiciário, descrito por famosas metáforas: exercitando a ação, o ator a consome” (tradução livre). Acentua também a visão garantista desse princípio: coNso, Giovanni; GuARINIello, Raffaele. l’autorità della cosa giudicata penale. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, p. 47, 1975. sobre a correta tese segundo a qual o bis in idem represente um efeito do trânsito em julgado da sentença, direcionado a atribuir à decisão do juiz uma característica de intangibilidade, ver: loZZI, Gilberto. voz Giudicato. Enciclopedia del Diritto, XvII, p. 913, 1969. sobre isso, na doutrina brasileira: cRuZ, Rogério schietti m. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2008. p. 7-10.

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segundo Francesco caprioli26, demonstrado que o art. 649 do cPP italiano não se aplica somente onde se tenha que resguardar o fato imputado de um pas-sível bis in idem substancial, “perde valor – com referência à hipótese de concurso formal de crimes – a tese segundo a qual em tais hipóteses não operaria o ne bis in idem processual porque, precisamente, os dois crimes cometidos são autonoma-mente puníveis”27. De fato, “não importa que os respectivos títulos sejam compa-tíveis: o argumento pesaria se [o art. 649 cPP italiano] fosse aplicável somente na esfera do art. 15 cP italiano”28. Portanto, no caso de concurso formal de crimes, é proibido, normalmente, proceder por um dos crimes em concurso depois do trânsito em julgado da sentença relativa ao outro. No caso de concurso heterogê-neo, isso ocorre no mesmo art. 649 do cPP, na parte em que se julga irrelevante a mudança do título do crime. A esta referida conclusão induz a mesma ratio do instituto, que é, como se sabe, aquela de impedir uma reiterada perseguição cri-minal contra o mesmo sujeito29.

2 aProXimaÇÕes ao Direito vivente soBre a noÇÃo De “iDem”: “fato JUríDico” e “fato histÓrico” entre o artigo 649 Do cPP itaLiano e o artigo 4 Do ProtocoLo 7 Da ceDh

viu-se precedentemente (supra § 1) como a mudança do evento do crime em sentido naturalístico, segundo uma correta interpretação do art. 649 do cPP

26 cAPRIolI, Francesco. Procedura, cit., p. 88.27 Idem, ibidem (tradução livre).28 coRDeRo, Franco. Procedura penale, 1983, p. 1061 (tradução livre).29 sobre as exigências do sistema jurídico italiano subjacentes ao reconhecimento da proibição

de duplo processo, ver: loZZI, Gilberto. Profili di una indagine sui rapporti tra “ne bis in idem” e concorso formale di reati. milano: Giuffrè, 1974. p. 70; loZZI, Gilberto. voz Giudicato (dir. pen.). Enciclopedia del Diritto, milano, XvIII, p. 913, 1969; e RIvello, Pier P. Analisi in tema di ne bis in idem. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, p. 482 s., 1991. Acentos diferentes em Giuseppe De luca (concorso formale di reati e limiti oggettivi della cosa giudicata penale. Rivista proc. Pen., p. 201, 1960), o qual sustenta que a “a exigência de economia dos julgamentos faz sim que os dois crimes, do qual deriva o único fato histórico, e, portanto, os dois procedimentos subjetivamente conexos, sejam cumulados em um simultaneus processus. em outras palavras, a exigência de uma economia de julgamentos é tutelada em via preventiva para o cúmulo de procedimentos [...] mas não pode se empurrar até o ponto de deixar impune um crime, quando o cúmulo não seja disposto ou não tenha sido possível ordenar porque, por exemplo, faltavam as provas da existência deste último” (tradução livre). Também: De lucA, Giuseppe. voz Giudicato. Enciclopedia Giuridica, Roma, v. Xv, p. 2, 1988; De lucA, Giuseppe. Sui limiti soggettivi della cosa giudicata penale. milano: Giuffrè, 1963.

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italiano, não determina uma mudança do “fato”, mas somente uma diferente consideração em relação ao título e/ou ao grau, ou seja, à sua qualificação jurí-dica. seria, portanto, “proibido instaurar um novo processo em relação a mes-ma conduta modificando-o, na imputação, somente o dado relativo ao evento”30. essa visão, todavia, por anos foi contestada pela jurisprudência de legitimidade italiana.

De fato, segundo a Corte di Cassazione, “aos fins da preclusão do ne bis in idem, a identidade do fato existe quando tenha correspondência histórico-na-turalística na configuração do crime, considerado em todos os seus elementos constitutivos”31, isto é: conduta, evento, nexo causal. mudando o nexo causal ou o evento, mudaria o fato: seria, portanto, aceitável acusar novamente em relação a mesma conduta.

30 cAPRIolI, Francesco. Procedura, cit., p. 88 (tradução livre).31 entre as muitas decisões, por exemplo: cass, 18.04.2008, Agate; cass., 20.11.2006, verde;

cass, sez. un., 28.06.2005, Donati; cass, 18.01.2005, Romito; cass., 20.02.2006, mele. e também ver Cass, 07.03.2014, Tanzi, em Mass. Uff., n. 261937, segundo a qual “aos fins da preclusão conexa ao princípio do “ne bis in idem”, a identidade do fato existe quando tenha correspondência histórico-naturalística na configuração do crime, tendo que se considerar em todos os seus elementos constitutivos (conduta, evento, nexo causal) e com referência às circunstâncias de tempo, lugar e de pessoa”; Id., sez. v, 30 outubro 2014, savani, ivi, n. 261364 – fattispecie, na qual a corte excluiu a ocorrência da preclusão derivante da identidade do fato com resguardo ao procedimento relativo ao crime de homicídio preterintencional instaurado em seguida da morte da pessoa ofendida, superveniente depois que o agente foi condenado em relação a mesma conduta pelo crime de lesões pessoais; Id., sez. II, 6 fevereiro 2015, Alota e outros, ivi, n. 263543 – fattispecie, na qual a corte excluiu a violação do ne bis in idem no caso de configuração de circunstâncias agravantes não contestadas no primeiro procedimento; Id., sez. un., 28 de junho de 2005, Donati, ivi, n. 231799, a qual, estabelecendo que não pode ser novamente promovida a ação penal por um fato e contra uma pessoa pelos quais um processo esteja já pendente – até mesmo em fases ou graus diferentes – na mesma sede judiciária e sobre iniciativa do mesmo ufficio do mP – em modo que no procedimento eventualmente duplicado deve ser determinado o arquivamento, ou, então, se a ação tenha sido exercitada, deve ser revelada com sentença a relativa causa de improcedibilidade –, adere à visão jurisprudencial largamente majoritária, tendente a projetar sobre “fato histórico” as categorias do “fato jurídico”. veja-se, também, Id., sez. II, 21 de março de 2013, cuffaro, ivi, n. 255837; Id., sez. II, 27 de maio de 2010, Rapisarda e outros, ivi, n. 247849; Id., sez. I, 18 de abril de 1995, lazzarini, ivi, n. 201842, segundo a qual “a letra do art. 649 cPP, assim como do art. 90 do código anterior, é caríssima em limitar o efeito preclusivo do trânsito em julgado aos casos em que o novo procedimento tem por objeto ‘o mesmo fato’ sobre o qual estatuiu a precedente sentença irrevogável. Tal expressão refere-se a todos os elementos constitutivos da fattispecie – conduta, evento e nexo de causalidade – e as situações em que tenha completa identidade de condições de tempo, lugar e de pessoa”.

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De acordo com a jurisprudência italiana, portanto, quando com uma mes-ma conduta sejam cometidos dois crimes diferentes em concurso formal, cau-sando eventos naturalísticos diferentes, seria possível proceder em relação a um deles até mesmo quando o outro já tenha constituído o objeto de um julgamen-to definido por sentença transitada em julgado32. A jurisprudência chega a es-sas conclusões em tema de relações entre proibição de segundo julgamento e concurso formal de crimes “para justificar a instauração de um novo processo nas hipóteses em que a operatividade do ne bis in idem levaria a consequências absurdas”33.

vale citar, em relação a isso, pelo menos um exemplo: João é condenado por homicídio por ter causado com a própria conduta a morte de Pedro; subse-quentemente ao trânsito em julgado da primeira sentença, emerge que aquela mesma conduta provocou também a morte de marcus e de manuel34.

embora compreensível em suas intenções, a posição da jurisprudência de legitimidade é sujeita, todavia, a pelo menos duas objeções35. em primeiro lugar, a solução proposta acarreta consequências ao menos discutíveis se transferida ao plano de concurso aparente de normas36. caso admita-se que, ao mudar o evento, altera-se o “fato” nos sentidos do art. 649 do cPP e cai a proibição de dupla persecução, se deverá considerar legítima a hipótese do assim chamado crime progressivo, ou seja, a ação penal exercida pelo crime A que seja em concurso aparente com o crime B, já definitivamente julgado. Como evitar nesse caso uma indevida duplicação da sanção, onde Tício, já condenado por lesões, venha ser sucessivamente condenado também por homicídio, não sendo admitido no sis-tema italiano aplicar uma pena diminuída àquela já infligida? É o caso de notar,

32 ver, por exemplo, cass., 17.12.1996, Pasquini.33 loZZI, Gilberto. Lezioni di procedura penale. Torino: Giappichelli, 2010. p. 784 (tradução

livre).34 Por exemplo, “Tício, chefe de trabalho, consente dolosamente que na própria fábrica

sejam utilizados materiais de trabalho tóxicos, provocando o envenenamento do operário manuel. Depois do trânsito em julgado da sentença de condenação, outros operários contraem a doença e morrem” (tradução livre). Assim: cAPRIolI, Francesco. Procedura penale dell’esecuzione. Torino: Giappichelli, 2011. p. 91.

35 Já cAPRIolI, Francesco. sui rapporti tra bis in idem processuale e concorso formale di reati. Giurisprudenza Italiana, p. 1184-1186, 2010; e Id., Procedura, cit., p. 92-94.

36 cAPRIolI, Francesco. Sui rapporti tra, cit., p. 1184-1186. ver, também: cAPRIolI, Francesco. voz condanna (diritto processuale penale). Enciclopedia del Diritto, a. II, t. I, p. 101, 2008.

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portanto, que essa exegese leva a conclusões que determinam inevitáveis atritos entre ne bis in idem processual e ne bis in idem substancial37.

em segundo lugar, admitir o segundo julgamento em hipóteses como es-sas significa deixar de lado o dado normativo representado pela cláusula “diver-samente considerado pelo grau” contida no art. 64938, cujo significado, de fato, a corte de legitimidade não oferece qualquer explicação convincente.

Na tentativa de enfrentar essas duas objeções e evitar, ao mesmo tempo, as denunciadas consequências aberrantes em termos de justiça substancial que derivariam da exegese do art. 649 do CPP que identifica o fato com a conduta cri-minosa, Franco cordero sugere atualizar a equação “fato = conduta” em termos diferentes daqueles sugeridos pela jurisprudência de legitimidade. “Fato” – sus-tenta o autor – “significa conduta”: mas “essa estrutura nuclear inclui o objeto físico, onde exista um (crimes assim chamados materiais); as condutas transitivas são individuadas daquilo sobre o que esta [conduta] recai”39.

Dessa forma, é possível evitar as consequências aberrantes lamentadas pela jurisprudência em tema de ne bis in idem e concurso formal de crimes sem recair na obrigação de ignorar o art. 649 do cPP na parte em que alude ao fato “diversamente considerado pelo título ou pelo grau”, e sem ser forçados (tendo reconduzido o evento dentro da noção de fato) a admitir a inoperabilidade da proibição de dupla persecução nos casos de concurso aparente de normas.

Por sua parte, tentando responder a essas mesmas exigências garantistas, o sistema europeu de direitos humanos (art. 4, protocolo 7, da ceDh) se refere explicitamente à proibição de proceder por uma “infração” em relação a qual o sujeito já tenha sido absolvido ou condenado40. A utilização do termo “infração” legitimaria leituras do bis in idem sobre a identidade jurídica dos crimes contes-

37 Assim também outros: coRBI, Fabrizio. L’esecuzione nel processo penale. Torino: Giappichelli, 1992. p. 94 s.; coRBI, Fabrizio; NuZZo, Francesco. Guida pratica all’esecuzione penale. Torino: Giappichelli, 2003. p. 38; e TRANchINA, Giovanni. l’esecuzione. In: sIRAcusANo, Delfino; GALATI, Antonio; TRANCHINA, Giovanni; ZAPALÀ, Enzo (Org.). Diritto processuale penale. milano: Giuffrè, 2001. p. 594.

38 scARPARoNe, metello. Procedura penale, II. Torino: Giappichelli, 2008. p. 299 s.; e ceResA- -GAsTAlDo, massimo. esecuzione. In: coNso, Giovanni; GRevI, vittorio; BARGIs, marta. Compendio di procedura penale. Padova: cedam, 2016. p. 1104 s.

39 coRDeRo, Franco. Procedura penale, 2006, p. 1224 (tradução livre).40 Para um estudo pontual sobre a orientação da jurisprudência do TeDh, ver: AlleGReZZA,

silvia. Artigo 4, prot. 7. In: BARTole, sergio; coNFoRTI, Benedetto; ZAGReBelsKI, Gustavo. Commentario breve alla Convenzione europea dei diritti dell’uomo, 2012, p. 897 s.

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tados, considerando que a garantia não opere em caso de diversidade abstrata dos ilícitos.

A esse propósito, antes da sentença Zolotoukhine contra Rússia do dia 10 de fevereiro de 200941, os ditames provenientes do TeDh militavam em direção oposta. segundo essa postura interpretativa, a proibição de duplo julgamento ocorreria, em âmbito convencional, a partir do momento em que o segundo pro-cesso se baseie sobre fatos históricos idênticos sobreponíveis em relação àqueles que foram objeto do primeiro processo. Não se deve atribuir nenhuma relevân-cia à diferente qualificação jurídica: não importa a relação entre normas, mas a avaliação dos fatos. Dessa forma, a corte europeia visa a reforçar duas garantias: o direito de não ser indevidamente perseguido penalmente; o direito de não ser julgado e punido pelos mesmos fatos já anteriormente avaliados por um órgão judicante nacional. Trata-se, portanto, de uma proibição de dupla “ação”, antes mesmo que de duplo processo.

seguindo essa mesma perspectiva, a sentença Donati das seções unidas da suprema corte italiana chegou a legitimar a ampliação para horizontes mais garantistas em tema de bis in idem. Porém, na visão da corte italiana, essas pre-missas eram limitadas a casos de potenciais duplicações de procedimentos pen-dentes diante de juízes pertencentes ao mesmo ufficio judiciário.

Todavia, aderindo plenamente a essa noção substancialista de “mesmo fato” sustentada pelo TEDH, poderia ter sido ampliada a força extensiva das afir-mações expostas na sentença Donati pela suprema corte italiana, ou seja, seria possível impedir o exercício da ação penal em relação ao mesmo fato até mesmo em ausência de uma sentença passada em julgado. Relevante nesse ponto parece ser a sentença do TeDh de 23 de junho de 2015, no caso Butnaru et Bejan Piser c. Romania, em que se reafirma com força as posições expressas nos próprios precedentes jurisprudenciais, sublinhando que o ne bis in idem processual tende a proibir, além do duplo julgamento, a instauração de um duplo processo.

3 o “caso eternit-Bis”

com a decisão de 24 julho de 2015, o juiz da audiência preliminar do Tri-bunal de Torino questiona a legitimidade constitucional do art. 649 do cPP ita-liano, segundo a constante e unívoca interpretação deste último oferecida pela jurisprudência da Corte di Cassazione42. em particular, o juiz solicita ao Tribunal

41 TeDh, Grande câmara, serguei Zolotoukhine, cit.42 Para uma pontual reconstrução do caso objeto de análise, ver, por exemplo: ZIRulIA,

stefano. Processo eternit: il dispositivo della sentenza d’appello. Diritto Penale

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constitucional para que se pronuncie sobre a possível violação do art. 117, 1º inciso, const., em relação ao bis in idem estabelecido pelo art. 4, prot. 7, da ceDh a respeito do art. 649 do cPP italiano. o juiz considera, portanto, que existe um contraste entre a norma processual interna, conforme a interpretação da supre-ma corte na parte em que limita a aplicação do bis in idem processual somente aos procedimentos penais definitivos que tenham tido como objeto o mesmo “fato jurídico”; e, por outro lado, a jurisprudência do TeDh, sobre a qual o princípio em questão deveria ser estendido até mesmo aos processos em que o imputado tenha sido chamado a responder pelo mesmo “fato histórico” colocado sucessi-vamente como base da segunda acusação.

A particularidade é caracterizada, portanto, pela circunstância de que o contraste entre norma interna e norma convencional (esta última possuidora de parâmetro interposto de constitucionalidade a partir do art. 117, inciso 1, const.) existe em razão de que os órgãos encarregados a efetuar a uniformização no sis-tema interno e supranacional divergem em modo evidente sobre a extensão que se deve atribuir à proibição de dupla persecução em matéria penal.

A situação processual sobre a qual nasce o caso em exame é inerente ao processo penal atualmente em curso diante do juiz de Torino, que vê como úni-co imputado stephan schmidheiny, o qual – em qualidade de responsável pela gestão da sociedade dependente do grupo eternit spa, exercendo a atividade de produção e elaboração de amianto – teria causado, na visão acusatória, volunta-riamente e por mera finalidade lucrativa, a morte de 258 pessoas (entre trabalha-dores, habitantes da zona situada em proximidade aos estabelecimentos).

Todavia, anteriormente stephan schmidheiny já tinha sido chamado a res-ponder por condutas que, como evidenciado, se demonstraram ser quase total-mente identificáveis àquelas que são objeto do segundo processo. De fato, em 2009, o réu foi submetido a julgamento pelos crimes de desastre doloso inomina-do, agravado pela verificação do desastre, e omissão dolosa de cautelas contra os infortúnios no trabalho, agravado pela sua realização.

o caso processual delineado, todavia, conclui-se com a declaração de ex-tinção de ambas imputações pela ocorrência da prescrição dos crimes. subse-

Contemporaneo, 5 giugno 2013; ZIRulIA, stefano. Processo eternit: a che punto siamo? Diritto Penale Contemporaneo, p. 1 s., 2013; ZIRulIA, stefano. caso eternit: luci ed ombre nella sentenza di condanna in primo grado. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, p. 471-509, 2013; e ZIRulIA, stefano. Ne bis in idem: la consulta dichiara l’illegittimità dell’art. 649 cPP nell’interpretazione datane dal diritto vivente italiano (ma il processo eternit bis prosegue). Diritto Penale Contemporaneo, 24 luglio 2016.

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quentemente, seguiu-se um intenso debate jurídico e midiático sobre as múlti-plas perspectivas, humanas e jurídicas, ligadas ao “caso eternit”.

em seguida, concluído o primeiro processo, o ministério Público de Torino decide modificar a qualificação jurídica dos acontecimentos concretos, imputando a schmidheiny o diferente e mais grave crime de homicídio doloso. Isso se deu com a razoável convicção de que uma simples requalificação norma-tiva dos fatos fosse suficiente para superar o obstáculo representado pela proi-bição de bis in idem. Por outro lado, dita visão era amplamente amparada pela consolidada orientação jurisprudencial italiana, tendente a excluir, aos fins da caracterização do ne bis in idem, a identidade dos fatos diante de condutas iden-tificáveis entre elas.

ora, é facilmente perceptível a estratégia processual utilizada pelo órgão da acusação piemontes no primeiro processo: a imputação do crime de homicídio teria requerido a demonstração do nexo causal intercorrente entre a exposição às fibras de amianto e os inúmeros eventos-morte verificados ao longo dos anos. Diante de tal obstáculo, que certamente teria alongado os tempos processuais, foi feita uma escolha processualmente mais “cômoda”, preferindo a opção da imputação de um crime de perigo cuja prova seria mais fácil.

Por sua parte, durante o processo eternit-bis, e, em específico, durante a fase da audiência preliminar, a defesa do imputado avaliou como adequado o momento para requerer a revisão dessa interpretação restritiva e muito pouco garantista por parte da acusação, formulando ao juiz a quo dois pedidos alterna-tivos. em primeiro lugar, a defesa requereu a pronúncia sentença de non luogo a procedere ex arts. 425 e 649 do cPP italiano por violação da proibição do bis in idem, tratando-se dos mesmos fatos do primeiro processo, embora diferentemen-te qualificados juridicamente. Em segundo lugar, em via subordinada, a defesa pediu um reenvio prejudicial à corte de Justiça da união europeia, para que essa última se pronunciasse sobre a correta interpretação atribuível ao art. 50 da carta de Nizza.

Ao decidir, o juiz piemontes negou a segunda solicitação da defesa, afir-mando que os fatos considerados não entravam na esfera de competência de aplicação do diretiva ue e que, portanto, não era pertinente ao caso a eventu-al aplicação da carta de Nizza. Por outro lado, o magistrado adotou as con-siderações da defesa em relação ao idem dos fatos contidos nas duas imputa-ções, revelando a existência de um contraste entre a norma nacional contida no art. 649 do CPP, assim como pacificamente interpretada pela Corte di Cassazione, e o art. 4, do protocolo 7, da ceDh, sobre a interpretação consolidada da corte de

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estrasburgo43. De fato, a disposição convencional impede processar novamente o mesmo sujeito por fatos que se revelem idênticos ou substancialmente corres-pondentes àqueles na origem do primeiro crime. Daqui nascia o contraste enfo-cado sobre a noção de “mesmo fato” com a consequente proposição da questão de legitimidade constitucional do art. 649 do cPP italiano.

esclarecidos, portanto, os termos gerais das questões sobre as quais a cor-te constitucional italiana foi chamada a se pronunciar, em seguida analisa-se a sua decisão.

4 a sentenÇa corte const. nº 200, De 2016

com a sentença nº 200/2016, a consulta se alinhou à jurisprudência de estrasburgo e optou pela solução do “fato histórico”, declarando a ilegitimidade do art. 649 do cPP italiano44. A pergunta, portanto, é: em face da declaração de ilegitimidade constitucional do critério do idem legal, o processo eternit-bis pode prosseguir ou deve ser considerado um bis in idem?

A resposta mais plausível é considerar que se pode prosseguir, pelo menos em parte. sobre esse ponto é relevante a passagem na qual a corte constitu-cional declarou, até mesmo diante da ausência de unívocas indicações de finais divergentes na jurisprudência do TEDH, que na definição do conceito de “fato histórico” concorrem não somente a conduta do réu, mas também o evento e o nexo causal (ver: §§ 4-5 do Considerato in Diritto). em coerência com tal princípio, a corte constitucional instruiu o juiz remetente da seguinte forma:

com base na tríade conduta-nexo causal-evento naturalístico, o magistrado pode afirmar que o fato objeto do novo julgamento é o mesmo somente se considerar a coincidência de todos esses três elementos, assumidos em uma dimensão empírica, de modo que não deveriam existir dúvidas sobre a diver-sidade dos fatos, por exemplo, quando de uma única conduta derive a morte

43 Sobre a obrigação do juiz nacional de verificar a existência de uma orientação consolidada do TEDH aos fins do dever de conformação do direito nacional, ver: Corte Const. nº 49, de 2015 (Disponível em: <http://www.giurcost.it/>. Último acesso em: 23 out. 2016). Nessa ocasião, a Corte afirma “o predomínio axiológico” da Constituição sobre a CEDH e que “somente no caso em que se encontre diante a um ‘direito consolidado’ ou um leading case, o juiz italiano será vinculado a receber a norma individuada pelo TeDh, adequando a esta o seu critério de julgamento para superar eventuais contrastes sobre uma lei interna, principalmente por meio de qualquer instrumento hermenêutico a sua disposição, ou então, se isto não fosse possível, recorrendo ao incidente de legitimidade constitucional” (tradução livre).

44 sobre o tema, ver também: lABIANcA, Daniele. Ne bis in idem: una questione “eterna” all’esame della corte costituzionale. Archivio Penale, 2, p. 1 s., 2016.

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ou a lesão da integridade física de uma pessoa não considerada no precedente julgamento, e portanto um novo evento em sentido histórico.45

Dessa passagem se pode concluir que o bis in idem certamente não subsiste com referência às 72 pessoas ofendidas no procedimento eternit-bis (sobre 258 totais) que não apareciam entre as vítimas na primeira acusação, e que, portanto, pelo menos em relação a essas, o posterior processo por homicídio voluntário poderá continuar.

como é notório, a disposição convencional impede de processar novamen-te o mesmo sujeito por fatos que se revelem idênticos ou “substancialmente” cor-respondentes àqueles na origem do primeiro crime. Disso decorre o debate enfo-cado sobre a noção de “mesmo fato”, com a subsequente proposição da questão de legitimidade constitucional do art. 649 do cPP. Nessa hipótese, o juiz conclui, em concordância com o requerido em via principal pela defesa, que naquele caso concreto os fatos materiais são os mesmos já avaliados no primeiro processo, por diversas razões.

Em primeiro lugar, idêntica é a qualificação subjetiva revestida pelo im-putado no grupo eternit. Idênticos são os quatro estabelecimentos produtivos onde teriam ocorrido os fatos imputados, além da parcial coincidência entre os sujeitos cuja influência teria agravado os crimes contestados no primeiro proces-so e as pessoas ofendidas pelo crime de homicídio doloso. e, ainda, reforçando a visão do juiz da audiência preliminar, nota-se que no primeiro processo os juízes consideraram existente o dano causado pela conduta do réu, pois foi decidido que os casos de mesotelioma pleurico dos quais eram afetos os cidadãos residentes nas zonas limítrofes eram axiologicamente reconduzíveis à exposição ao amianto produzido nos estabelecimentos.

A lógica conclusão do iter argumentativo, seguido pelo órgão judicante, deveria ser a pronúncia de sentença de non luogo a procedere46 por não procedibi-

45 Considerato in Diritto, p. 28 (tradução livre).46 No ordenamento jurídico italiano, a fórmula de absolvição é uma das duas espécies de

proscioglimento (a outra é a fórmula “não se deve prosseguir” ex art. 529 do cPP italiano) com a qual o juiz declara o imputado não culpado em relação aos fatos objeto da imputação. A diferença substancial em relação à formula de “não se deve prosseguir” consiste no fato de que na sentença de absolvição o juiz realiza um accertamento sobre a existência ou inexistência do fato criminoso atribuído ao imputado e conclui que nesse caso o imputado não pode ser condenado; com a fórmula “não se deve prosseguir” o juiz proscioglie o imputado sem entrar no mérito do objeto do processo. em particular, os motivos pelos quais o juiz utiliza uma fórmula de absolvição podem ser cinco, os quais são elencados no art. 530 do cPP italiano: (1) porque o fato não subsiste; (2) porque o imputado não cometeu

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lidade da ação penal, tendo sido o imputado já julgado, pelos mesmos fatos, com sentença penal irrevogável. Todavia, segundo o juiz de Torino, para isso obstam dois empecilhos incontornáveis.

em primeiro lugar seria representado pela jurisprudência da Corte di Cassazione, a qual limita a operatividade do ne bis in idem em relação aos standards supranacionais, considerando que, “mesmo diante de uma formulação literal da norma claramente voltada a comparar o fato histórico, o direito vivente [interno] exigiria, em sentido diverso, a identidade do fato jurídico, ou seja, ‘a coincidên-cia de todos os elementos constitutivos do crime e dos bens jurídicos’”47; não operando essa regra nos casos de mera identidade dos fatos históricos objetos de subsequentes e diferentes imputações, formalizadas e examinadas em dois distintos processos.

Além disso, “a convenção impõe aos estados membros aplicar a proibição de bis in idem com base em uma concepção naturalística do fato, mas não de res-tringir a este último na esfera somente da ação ou omissão”48. subsequentemente, resulta que, segundo a Corte, inexiste o primeiro perfil de contraste apontado pelo juiz a quo entre o art. 649 do cPP e a normativa convencional, visto que ambas recebem o critério do idem factum como conceito que abarca “conduta + nexo causal + evento”. Nessa primeira perspectiva, a questão de legitimidade foi, portanto, considerada infundada.

o fato; (3) porque o fato não constitui crime; (4) porque o fato não é previsto pela lei como crime; (5) porque o crime foi cometido por uma pessoa não imputável ou não punível por uma outra razão. Em específico, as duas primeiras fórmulas (porque “o fato não subsiste” e porque “o imputado não cometeu o fato”) caracterizam a assim chamada absolvição plena, porque libera completamente o imputado de qualquer responsabilidade, enquanto a fórmula de absolvição porque “o fato não constitui crime” se utiliza diante de causas que excluem a antijuridicidade do fato, transformando-o em lícito. Por outro lado, a fórmula porque “o fato não é previsto pela lei como crime” configura uma mera absolvição in iure, e, portanto, em face da lei; enquanto a fórmula porque “o crime foi cometido por uma pessoa não imputável ou não punível por outra razão” representa evidentemente a forma de absolvição mais desfavorável para o réu. Para uma ampla reconstrução sistemática do julgamento penal italiano, ver: IllumINATI, Giulio. Il giudizio. In: coNso, Giovanni; GRevI, vittorio; BARGIs, marta. Compendio di procedura penale. Padova: cedam, 2016. p. 689 s.; e, em geral: GIAluZ, mitja. The Italian code of criminal procedure: a reading guide. In: GIAluZ, mitja; luPARIA, luca; scARPA, Francesco. The Italian code of criminal procedure. critical essays and english Translation. milano: cedam, 2014. p. 17 s.

47 Considerato in Diritto, p. 12-13 (tradução livre).48 Ibidem, p. 18 (tradução livre).

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A tese do juiz remetente vem, por outro lado, endossada pela corte cons-titucional na parte em que revela o contraste entre o art. 649 do cPP e o art. 4, prot. 7, da CEDH, o que acarreta questionamento da regra definida pelo direito vivente nacional que impede o princípio do ne bis in idem, em que o crime já jul-gado seja cometido em concurso formal com aquele objeto de nova iniciativa do ministério Público, ainda que haja identidade do fato.

em segundo lugar, como atesta a corte, o direito vivente consolidou o perfil substancial do concurso formal de crimes com aquele processual do ne bis in idem, exonerando o juiz de verificar a identidade empírica do fato para aplica-ção do art. 649 do cPP. Nessa perspectiva, portanto, a corte considera fundada a questão, não impondo ao juiz, todavia, aplicar automaticamente o bis in idem pela exclusiva razão de que os crimes concorram formalmente:

A existência ou não do concurso formal entre os crimes objeto da res iudicata e da res iudicanda é um fator não determinante da aplicação do art. 649 cPP, uma vez que esta disposição seja reconduzível à conformidade constitucional, e a não influência joga em ambas as direções porque é permitido, mas não é pres-crito, ao juiz excluir a igualdade do fato, onde os crimes foram cometidos em concurso formal. Aos fins da decisão sobre a aplicabilidade da proibição do bis in idem é relevante de fato somente o juízo sobre o fato histórico.49

A violação se origina, segundo o juiz remetente, não de uma diferença na redação das duas normas, o art. 649 do cPP e o art. 4 do protocolo 7 da ceDh, cujas formulações são identificáveis, ao passo que ambas proíbem a submissão de um sujeito já julgado com sentença definitiva a um novo processo penal pelo mesmo fato, mas à distinta extensão dada ao princípio: a Corte di Cassazione e o TeDh adotam visões diametralmente opostas sobre o “mesmo fato” ao qual se vale em um segundo processo penal, determinando a violação do princípio em questão.

A jurisprudência da Corte di Cassazione é, de fato, absolutamente unívoca, como demonstrado pelas numerosas pronúncias citadas na ordinanza do juiz re-metente50, quando circunscreve a aplicação do princípio do ne bis in idem somen-te aos casos nos quais se encontre a coincidência do “fato jurídico”, ou seja, da fattispecie abstrata, compreensiva de todos os elementos constitutivos do crime e dos bens jurídicos tutelados. consequentemente, se o mesmo fato material, pelo

49 Ibidem, p. 13 (tradução livre).50 ver, por exemplo, corte const. nº 1, de 1969; em seguida, sentença nº 219, de 2008

(Disponíveis em: <http://www.giurcost.it/>. Último acesso em: 23 out. 2016); lAvARINI, Barbara. Artigo 649. In: BelluTA, hervé; GIAluZ, mitja; luPARIA, luca. Codice sistematico di procedura penale. Torino: Giappichelli, 2016. p. 626 s.

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qual um sujeito tenha sido julgado, resulte em um segundo momento qualificá-vel também em uma diversa fattispecie abstrata, e, portanto, em um diverso “fato jurídico”, o início do novo processo pelo diferente crime não constituirá violação do ne bis in idem.

A bem ver, isso equivale a sustentar a absoluta não operatividade da proi-bição do bis in idem em caso de concurso formal de crimes: se, de fato, com uma mesma ação ou omissão se violam mais normas jurídicas, não somente se poderá proceder à simultânea acusação das diferentes violações, mas será também pos-sível as suas persecuções separadas no curso de tantos processos subsequentes quantas forem as normas violadas, sem por isso violar o dispositivo do art. 649 do cPP italiano, exatamente porque os elementos constitutivos e os bens jurídi-cos tomados em consideração serão necessariamente diferentes de um processo a outro.

consiDeraÇÕes finais

sobre a orientação da Corte di Cassazione em tema de relações entre bis in idem processual e concurso formal de crimes, debate retomado pela corte consti-tucional com a sentença em análise, mostra-se necessária uma última considera-ção. Depois de ter afirmado que “a preclusão com base no art. 649 CPP não pode ser invocada no caso em que se configure a hipótese de concurso formal, pois a fattispecie pode ser reexaminada sobre o perfil de uma diferente violação de lei derivada do mesmo fato”51, a Corte Constitucional reafirmou que tal princípio de direito vale “com o único e razoável limite de que o segundo julgamento se po-nha em uma situação de incompatibilidade lógica com o primeiro: isso poderia se verificar quando no primeiro julgamento seja declarada a insubsistência do fato ou a não comissão deste por parte do imputado”52.

segundo a corte, em outras palavras, nada impediria de processar Tício pelo crime A cometido em concurso formal com o crime B já definitivamente jul-gado, embora tratando-se da mesma conduta: mas se, no processo concernente o crime B, a conduta constitutiva de A e B fosse considerada inexistente ou não imputável a Tício – com consequente absolvição do imputado com as fórmulas “porque o fato inexiste” ou “por não ter cometido o fato” –, retornaria a operar a proibição de segundo julgamento com referência ao crime A.

Trata-se de uma especificação que revela a fragilidade e a contrariedade da posição amplamente assumida na matéria pela jurisprudência italiana ao longo

51 cass., 02.04.2004, Aldini (tradução livre).52 Idem, ibidem (tradução livre).

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dos anos. se realmente o A e B fossem diferentes no sentido do art. 649 do cPP italiano, por que deveria ter relevância, no processo concernente ao segundo des-tes, a declaração de inexistência do primeiro? “sobre fatos diversos inexiste bis in idem; dada essa premissa, N pode ser processado sobre Y, de qualquer forma resulte julgado sobre X; por outro lado, se exclui um segundo julgamento do ab-solvido com dadas fórmulas; portanto estamos diante do mesmo fato”53.

o exame da jurisprudência interna e convencional, portanto, conduz ine-vitavelmente o juiz a revelar a existência de um contraste entre o ne bis in idem in-terno a partir do art. 649 do cPP italiano e o ne bis in idem convencional, previsto no art. 4, prot. 7, da ceDh.

De fato, o conceito de idem factum no sentido do art. 4, prot. 7, ceDh, ad-verte a corte, não deve ser circunscrito somente à conduta do agente compreen-dida qual ação ou omissão, tendo que abranger o objeto físico da conduta e tam-bém o evento, desde que transposto com rigor somente na dimensão material:

Com base na tríade conduta-nexo causal-evento naturalístico, o juiz pode afir-mar que o fato objeto do novo julgamento é o mesmo somente caso se encontre a coincidência de todos esses elementos, assumidos em uma dimensão empí-rica, de forma que não deveriam existir dúvidas, por exemplo, sobre a diver-sidade dos fatos, quando de uma única conduta derive a morte ou a lesão da integridade física de uma pessoa não considerada no precedente julgamento, e portanto um novo evento em sentido histórico.54

Note-se: a presumida violação da ceDu, no raciocínio do judicante, não consistiria na incompatibilidade abstrata entre as formulações expressas das duas disposições normativas, mas na divergência hermenêutica consequente às diferentes posições assumidas pela Corte de Cassazione e pelo TeDh em relação à noção de “mesmo fato”. consideração, esta última, que poderia (ou deveria?) ter levado o juiz requerente a escolher a via da interpretação convencionalmente conforme do enunciado normativo, para resolver ele mesmo o possível contras-te e consentir a introdução direta, no ordenamento nacional, dos princípios da ceDh em tema de ne bis in idem.

No caso do art. 649 do cPP, porém, como dito anteriormente, não é o texto da disposição que inibe a interpretação convencionalmente conforme, mas a pos-tura consolidada pela própria Cassazione, concernente a um específico aspecto da disposição em análise: uma diferença que não conta pouco, que teria consentido

53 coRDeRo, Franco. Procedura penale, 2006, p. 1229 (tradução livre).54 Considerato in Diritto, p. 13 (tradução livre).

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ao judicante o recurso a soluções mais alinhadas com os princípios constitucio-nais em matéria processual.

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terrorismo, inimigo e eXceÇÃo: o caso BrasiLeiro e a aProvaÇÃo Da Lei

antiterrorismo (Lei nº 13.260/2016)terrorism, enemy anD eXcePtion: the BraziLian case anD

the aPProvaL of the antiterrorism LaW (LaW nº 13.260/2016)FiaMMetta BonFigli*

RodRigo luz peixoto**

Resumo: o trabalho propõe uma análise, a nível teórico, da lei Antiterrorismo brasileira (13.260/2016). Buscamos verificar se a lei pode ser compreendida a partir de um referencial teórico baseado na relação entre os conceitos de estado de exceção e direito penal do inimigo. Não se restringindo a uma mera análise técnico-jurídica da legislação, também procede uma abordagem sociopolítica, com-preendendo o contexto da norma por meio do histórico de debates internacionais e nacionais sobre o conceito de “terrorismo”. A hipó-tese é de que a lei Antiterrorismo brasileira se insere no contexto do avanço internacional do estado de exceção, adotando aspectos de direito penal do inimigo e constituindo uma ameaça para as liberda-des políticas (como as de associação, manifestação e privacidade da comunicação), sobretudo no caso de movimentos sociais.PAlAvRAs-chAve: legislação antiterrorismo; estado de exceção; direito penal do inimigo; Brasil.ABsTRAcT: The present work proposes an analysis, on theoretical level, of the brazilian Antiterrorism law (13.260/2016). We seek to verify if it is possible to understand the legislation within a theore-tical framework based on the relation between the concepts of state of exception and criminal law of the enemy. Not restricting itself to a simple technical-juridical analysis of the legislation, it also pro-

* Pós-Doutorado em Direito e sociedade pela unilasalle canoas, Doutorado em sociologia Jurídica pela Università degli Studi di Milano (Itália). Endereço eletrônico: fiammetta- [email protected].

** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Direito da universidade Federal do Rio Grande do sul (uFRGs), mestre em Direito pela universidade Federal do Rio Grande do sul, Bacharel em ciências Jurídicas e sociais pela universidade do Rio Grande do sul, Advogado. endereço eletrônico: [email protected].

BoNFIGlI, Fiammetta; PeIXoTo, Rodrigo luz. Terrorismo, inimigo e exceção: o caso brasileiro e a aprovação da lei antiterrorismo (lei nº 13.260/2016). Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 68, p. 153-174, 2018.

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ceeds towards a sociopolitical approach, understanding the context of the norm trough an analysis of the history of the international and national debates on the concept of “terrorism”. The hypothesis is that the Brazilian antiterrorism law situates itself in the context of an international advancement of the state of exception, adopting aspects of criminal law of the enemy, and constituting a menace to political freedoms (such as the freedom of association, freedom of manifestation and communications privacy), particularly in the case of social movements.KeYWoRDs: Antiterrorism legislation; state of exception; criminal law of the enemy; Brazil.sumÁRIo: Introdução; o debate internacional sobre o terrorismo; o conceito de terrorismo no Brasil: autoritarismo e anistia como es-quecimento; Terrorismo, exceção e direito penal do inimigo; A lei Antiterrorismo brasileira; conclusão; Referências.

introDUÇÃo

o objetivo do presente trabalho é analisar a lei Antiterrorismo recente-mente aprovada no Brasil (13.260/2016), situando-a no contexto do debate inter-nacional sobre o tema. Busca-se um desenvolvimento teórico que permita conjec-turar indicativos de como a lei pode ser compreendida, ainda que nada possa ser concluído em definitivo, uma vez que a lei ainda carece de aplicação.

Nossos questionamentos se constroem a partir das perplexidades que sur-gem da aprovação de uma Lei Antiterrorismo em um País como o Brasil. Afinal, o País não possui nenhum grau de ameaça real e presente de “terrorismo”, em parte em razão de uma política externa pacífica e amigável com a maioria dos pa-íses, em parte pela ausência do fenômeno do “terrorismo islâmico” na realidade próxima à brasileira, de modo que o País dificilmente seria alvo de um “ataque terrorista”. Nossa hipótese vai no sentido de que, dada a ausência de experiên-cias terroristas recentes no Brasil, a aprovação da lei Antiterrorismo é marcada como efeito da realização de megaeventos internacionais no território brasileiro (como a olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro). em sede de hipótese, entendemos que essa demanda gerada pelos megaeventos internacionais se articula, por um lado, com um temor quanto à ocorrência de fenômenos similares às Jornadas de Junho de 2013, como contestação às violações causadas para a realização de even-tos de tal porte. Por outro lado, sugerimos que essa demanda também se articula com a ausência de uma justiça de transição completa na saída do regime militar, resultando em uma falta de aprendizado e repetição de questões ligadas ao pas-sado autoritário. Para compreender essas relações entre megaeventos internacio-nais, justiça de transição, autoritarismo e “combate ao terrorismo”, entendemos que se necessita de um referencial teórico embasado nos conceitos de estado de

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exceção (conforme teorizado por Agamben) e de uma crítica ao direito penal do inimigo, uma vez que a legislação antiterrorismo surge como uma das formas que traz evidentes conflito com os direitos e as garantias constitucionais (como a liberdade de expressão, de associação, de assembleia, entre outros).

Assim, a estrutura desse trabalho inicia com alguns apontamentos sobre o desenvolvimento do conceito de terrorismo no plano nacional, colocando o problema desde esse plano. Após, abordamos as especificidades do caso brasi-leiro, com um breve histórico da evolução do conceito de terrorismo no País, em especial com relação ao seu papel na Ditadura militar e na transição controlada imposta ao final desta. A partir daí, a terceira parte do artigo relaciona esses desenvolvimentos do conceito de terrorismo com o referencial teórico proposto, explorando suas relações com o estado de exceção e com a ideia de direito penal do inimigo. Com isso, é possível realizar na seção final desta investigação uma análise da lei Antiterrorismo brasileira de maneira mais fundamentada teorica-mente, para buscar alguns indicativos de seu significado.

o DeBate internacionaL soBre terrorismo

No âmbito internacional, a definição de terrorismo é sempre suficiente-mente ampla e indefinida para poder ter efeito de transportabilidade e aplicabi-lidade flexível.

Antonio Cerella (2010) identifica dois principais problemas na questão da definição do conceito de terrorismo: um problema ético-ideológico e outro metodológico-conceitual. o autor ressalta, como uma das regras fundamentais para que um conceito possa ser relevante do ponto de vista científico, a sua trans-portabilidade, ou seja, a capacidade de um conceito ser aplicado em um contexto internacional e global. se, portanto, o conceito “terrorismo” não fosse uma classi-ficação valorativa, se fosse usado de forma específica, perderia sua transportabi-lidade entre várias áreas geográficas e ideológicas.

Jorg Friedrichs (2006), em um artigo para o Leiden Journal of International Law, identifica duas principais épocas de debate sobre a questão do terrorismo: o primeiro debate se desenvolve entre 1972 (depois das olimpíadas de munique) e 1979, o segundo entre 2000-2005 e protagonizado pela visão da Guerra ao Terror pós-World Trade center.

A primeira vez em que o termo “terrorismo” foi utilizado em uma co-notação jurídica ao nível internacional deu-se na III conferência Internacional para a Unificação do Direito Penal em Bruxelas, 1930. Durante os debates da Conferência, emergiu uma polarização entre as duas principais formas de definir terrorismo: uma noção “clássica” – de aterrorizar a população com atos violentos

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indiscriminados com um objetivo político-ideológico –, e uma noção “reacioná-ria” – com o objetivo de reprimir os fenômenos sociais considerados hostis para o Estado, definindo o terrorismo pela sua finalidade revolucionária. Essas duas noções não são rigidamente separadas na normativa internacional, contribuindo, assim, para a ambiguidade do termo (Pisapia, 1975).

outro exemplo nesse sentido é a convenção para a Prevenção e Punição do Terrorismo, elaborada em 1937, em Genebra, e nunca aplicada. segundo a Convenção, o terrorismo é identificado como ato criminoso contra o Estado.

As iniciativas nos anos seguintes renunciam a uma definição geral do fe-nômeno e se ocupam apenas da repressão de específicas modalidades da vio-lência política. uma explicação histórica pode ser procurada na contraposição entre os dois blocos da Guerra Fria em uma época caracterizada por instâncias de libertação nacional, anticolonial e anti-imperialista que assumem importância geopolítica internacional. É assim que o termo “terrorismo” vem sempre mais associado a esses fenômenos.

A convenção para a repressão do terrorismo apresentada pelos estados unidos às Nações unidas em 1972, depois do atentado nas olimpíadas de muni-que, não foi aprovada pelo receio de que fosse utilizada contra as reivindicações do povo palestino. Assim foi aprovada a Resolução nº 3.034 (com a oposição dos Países ocidentais), que reconhecia entre as causas do terrorismo, “[...] a miséria, a frustração, o reclamo e o desespero que induzem certos indivíduos ou grupos a sacrificar vidas humanas, inclusive a própria, para conseguir mudanças radicais” (Palumbo, 2005, p. 3)1, condenando os atos de terrorismo com que os estados re-primem a luta de libertação anticolonial e a autodeterminação dos povos.

Neste contexto político-histórico da Guerra Fria, a dificuldade de chegar--se a um acordo entre os vários âmbitos leva a uma série de acordos regionais: um exemplo é a convenção de estrasburgo de 1977 no âmbito do conselho de europa que, excluindo o terrorismo de estado, se preocupa só com o fenômeno do “terrorismo político” (Di lazzaro, 2011).

Uma definição geral volta com a resolução do Parlamento Europeu de 30 de janeiro de 1997, ou seja, em um contexto político mudado depois do fim do Bloco soviético:

constitui ato de terrorismo cada delito cometido por indivíduos ou grupos através da violência ou ameaça da mesma e voltado contra um País, as suas Instituições, a sua população em geral ou contra indivíduos específicos, que,

1 “[...] la miseria, frustrazione, lamentela e disperazione e che inducono alcune persone a sacrificare vite umane, inclusa la propria, nel tentativo di provocare cambiamenti radicali.” (Tradução livre)

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motivado por aspirações separatistas, por ideologias extremistas, ou fanatismo, ou inspirado por movimentos irracionais e subjetivos, quer submeter os pode-res públicos, alguns indivíduos ou grupos sociais ou, mais em geral, a opinião pública, a um clima de terror. (união europeia, 1997)

voltam aqui alguns dos aspectos mais “reacionários” da noção de terroris-mo e que se misturam com uma concepção “clássica”, se considera como terroris-mo qualquer violência ou ameaça contra a “população em geral” ou “indivíduos específicos” ou abstrações como o “País” e as suas “instituições”.

Quantos comportamentos individuais ou movimentos sociais podiam ser incluídos de forma abstrata na categoria da violência contra um País ou as suas instituições? É suficiente querer aterrorizar a “opinião pública”? Enfim, parece que a única tranquilidade garantida é a dos “Poderes Públicos”. A motivação ideológica torna-se fundamental: “aspirações separatistas”, “fanatismo”, “moti-vações irracionais e subjetivas”.

Enfim, depois do atentado de Nova Iorque em 2001, a União Europeia ela-bora uma normativa sobre terrorismo que impõe mais obrigações aos estados--membros. Também essa definição é mais orientada para a tutela dos Poderes Públicos.

A Decisão-Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002 define os atos terroristas da seguinte forma:

[...] tal como se encontram definidos enquanto infrações pelo direito nacional, que, pela sua natureza ou pelo contexto em que foram cometidos, sejam susce-tíveis de afetar gravemente um país ou uma organização internacional, quando o seu autor os pratique com o objetivo de:

– Intimidar gravemente uma população, ou

– constranger indevidamente os poderes públicos, ou uma organização inter-nacional, a praticar ou a abster-se de praticar qualquer ato, ou

– Desestabilizar gravemente ou destruir as estruturas fundamentais políticas, constitucionais, econômicas ou sociais de um país, ou de uma organização in-ternacional:

a) as ofensas contra a vida de uma pessoa que possam causar a morte;

b) as ofensas graves à integridade física de uma pessoa;

c) o rapto ou a tomada de reféns;

d) o fato de provocar destruições maciças em instalações governamentais ou públicas, nos sistemas de transporte, nas infraestruturas, incluindo os sistemas informáticos, em plataformas fixas situadas na plataforma conti-nental, nos locais públicos ou em propriedades privadas, susceptíveis de

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pôr em perigo vidas humanas, ou de provocar prejuízos econômicos con-sideráveis;

e) A captura de aeronaves e de navios ou de outros meios de transporte coleti-vos de passageiros ou de mercadorias;

f) o fabrico, a posse, a aquisição, o transporte, o fornecimento ou a utilização de armas de fogo, de explosivos, de armas nucleares, biológicas e químicas, assim como a investigação e o desenvolvimento de armas biológicas e quí-micas;

g) A libertação de substâncias perigosas, ou a provocação de incêndios, inun-dações ou explosões, que tenham por efeito pôr em perigo vidas humanas;

h) A perturbação ou a interrupção do abastecimento de água, eletricidade ou de qualquer outro recurso natural fundamental, que tenham por efeito pôr em perigo vidas humanas;

i) A ameaça de praticar um dos comportamentos enumerados. (conselho da união europeia, 2002)

concluindo, cabe destacar a convenção Interamericana contra o Terroris-mo, que, não definindo o crime de terrorismo, invoca a cooperação entre os Esta-dos para combater e “erradicar” o terrorismo e seu financiamento:

cada estado parte, na medida em que não o tiver feito, deverá estabelecer um regime jurídico e administrativo para prevenir, combater e erradicar o financia-mento do terrorismo e lograr uma cooperação internacional eficaz a respeito, a qual deverá incluir:

a) um amplo regime interno normativo e de supervisão de bancos, outras ins-tituições financeiras e outras entidades consideradas particularmente sus-cetíveis de ser utilizadas para financiar atividades terroristas. Este regime destacará os requisitos relativos à identificação de clientes, conservação de registros e comunicação de transações suspeitas ou incomuns.

b) medidas de detecção e vigilância de movimentos transfronteiriços de dinhei-ro em efetivo, instrumentos negociáveis ao portador e outros movimentos relevantes de valores. estas medidas estarão sujeitas a salvaguardas para garantir o devido uso da informação e não deverão impedir o movimento legítimo de capitais.

c) medidas que assegurem que as autoridades competentes dedicadas ao com-bate dos delitos estabelecidos nos instrumentos internacionais enumerados no art. 2 tenham a capacidade de cooperar e intercambiar informações nos planos nacional e internacional, em conformidade com as condições pres-critas no direito interno. Com essa finalidade, cada Estado parte deverá es-tabelecer e manter uma unidade de inteligência financeira que seja o centro nacional para coleta, análise e divulgação de informações relevantes sobre lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Cada Estado parte de-

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verá informar o secretário-Geral da organização dos estados Americanos sobre a autoridade designada como sua unidade de inteligência financeira. (oAs, 2002)

o conceito De terrorismo no BrasiL: aUtoritarismo e anistia como esqUecimento

se analisarmos a evolução genealógica do conceito de terrorismo na América latina, só veremos esse conceito surgir de maneira discursivamente significativa a partir do século XX. Anteriormente, há apenas poucas referências esparsas ao termo “terror”, mas nada de significativo. O caso brasileiro não é diferente, sendo que o desenvolvimento do conceito de terrorismo acompanha as tendências gerais da região, com algumas particularidades.

As primeiras referências ao termo “terrorismo” podem ser vistas ainda no regime autoritário do estado Novo (1937-1945), em especial na legislação sobre extradição. Destaca-se o Decreto-lei nº 394/1938, editado pelo presidente-dita-dor Getúlio vargas, que criava uma série de exceções à proibição de extradição por crime político (então estabelecida no Direito brasileiro assim como no Direito Internacional em geral). Com isso, definia como não sendo crimes políticos, além do terrorismo, os “atos de anarquismo”, os “atentados” contra autoridades, a sabotagem e a “propaganda de processos violentos para subverter a ordem po-lítica e social”. Além dessa, há apenas duas outras menções ao termo terrorismo na legislação do estado Novo, em um tratado com a venezuela sobre extradição, que reproduzia a mesma cláusula sobre crime político, e na lei de Acidentes do Trabalho (Decreto-lei nº 7.036/1944), enquadrando como tais os “atos de terro-rismo” sofridos no local de trabalho. o que é importante observar é que, desde o início, o conceito de “terrorismo” se coloca estruturalmente como o oposto do crime político. Ao passo que o crime político é um crime que tem tratamento privilegiado pela sua motivação política, o crime de terrorismo surge como um crime (indefinido) que tem um tratamento menos benéfico em razão de sua mo-tivação política. ou seja, graças à indeterminação desses conceitos, nos casos em que a motivação política do agente é valorada positivamente, advém o tratamen-to como crime político. Nos casos em que a motivação política é valorada negati-vamente, receberá a etiquetagem de terrorismo. Ao fim e ao cabo, fica a cargo da ideologia política do julgador fazer o juízo de valor que diferencia o terrorismo do crime político.

Apesar dessa menção ao “terrorismo” marcar simbolicamente, com a vin-culação ao crime político, a primeira aparição do termo no discurso estatal brasi-leiro, o volume de menções ao conceito de terrorismo ainda é muito pequeno. o “terrorismo” apenas passa a ser uma categoria de importância no discurso estatal

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brasileiro a partir do golpe de 1964. com o golpe, o Brasil passou a ser governado por um regime militar de fato, o qual se guiava por uma ideologia oficial, que pode ser denominada Doutrina de segurança Nacional. A Doutrina de seguran-ça Nacional é uma visão de mundo baseada em um arranjo de conceitos criados por agências de segurança externa dos estados unidos no contexto da Guerra Fria, e repassadas ao militares latino-americanos por meio de “programas de trei-namento” como a famosa escola das Américas (comblin, 1980).

Nessa ideologia, o conceito de “terrorismo” é central. A visão da Doutri-na de segurança Nacional se articula a partir da compreensão do antagonismo entre estados unidos e união soviética enquanto uma “guerra total”, a qual é ideológica, opondo “ocidente” e “comunismo”, e é ilimitada, porque total, sem qualquer restrição aos conceitos tradicionais de guerra ou ao direito de guerra. Não há nem mesmo limites entre política e guerra, uma vez que a própria é en-tendida como simples continuação da guerra (total) por outros meios. Toda a ação do estado é guiada com base nos “objetivos nacionais”, isto é, em determi-nadas metas arbitrariamente definidas como estrategicamente úteis nessa guerra. A essa guerra total no plano internacional corresponde à crença em uma guerra revolucionária pressuposta no plano interno, em que os “subversivos” ou “ini-migos internos” agem para tomar o poder. Aí entra o terrorismo, pois o regime pressupõe que os “inimigos internos” agirão por meio do “terrorismo”, coloca-do como qualquer meio disponível, para conduzir a guerra revolucionária. Nem essa guerra revolucionária nem o “terrorismo” precisam existir de fato, eles são pressuposições da estrutura ideológica que independem de qualquer compro-vação fática para os seguidores da Doutrina de segurança Nacional. o “inimigo interno” é identificado em qualquer um que apresente qualquer oposição política ao regime de segurança nacional, e é apresentado por isso como um “terrorista” em potencial, no mínimo. A esse terrorismo pressuposto ideologicamente, o re-gime de segurança nacional responde com o que chama de “contraterrorismo”, mas que na prática consiste na simples prática de terrorismo de estado, na forma de desaparecimentos forçados, assassinados, sequestros e tortura. Ao fim e ao cabo, é a resposta a um terrorismo idealizado e somente pressuposto por meio da prática real daquelas ações pelo estado. o contraterrorismo não é a oposição ao terrorismo, mas a busca do regime pelo monopólio total dos atos terroristas.

com esse pano de fundo, a produção estatal de normas sobre terrorismo ganha uma maior dimensão durante a Ditadura militar brasileira. com a cria-ção da lei de segurança Nacional (lsN), instrumento jurídico do regime para a criminalização dos seus “inimigos internos”, no Decreto-lei nº 314/1967, o terrorismo passa a ser um tipo penal indefinido, punido juntamente com tipos penais, como saque, incêndio, sabotagem, sequestro, entre outras expressões

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mais ou menos indefinidas. Com alterações na extensão da pena, o terrorismo permaneceu um tipo penal indefinido na LSN até a última versão desta em 1983. Além disso, a lsN obrigava os juízes a seguirem estritamente os conceitos da Doutrina de segurança Nacional na interpretação jurídica de qualquer norma, com uma exposição detalhada dos conceitos dessa doutrina nos arts. 1º a 4º da lsN. Além das várias versões dessa lei, mais tantos outros dispositivos menores foram inseridos na legislação que tinham o terrorismo como suporte fático, in-clusive repetindo as questões de extradição já colocadas desde o estado Novo, em um evidente aproveitamento da instrumentação repressiva do regime auto-ritário anterior pelo posterior, tanto mais diante do caráter anticomunista e anti--anarquista de ambos regimes.

Ao longo de todo a Ditadura militar brasileira, pode-se observar a utili-zação do conceito de terrorismo como tipo penal para criminalizar opositores políticos, aproveitando-se de sua definição em aberto. Além disso, temos a prá-tica de gravíssimas violações de direitos humanos, pelos agentes do regime, que poderiam talvez ser entendidas como terrorismo de estado. Porém, esse passado do conceito de terrorismo não alcança produzir um aprendizado frutífero sobre o conceito na tradição jurídica brasileira, em razão da ignorância forçada quanto ao período da Ditadura militar, mantida como uma grave falha de memória e verdade enquanto comunidade política nacional. o exemplo máximo disso é a questão da anistia. os movimentos sociais de luta pela anistia podem ser divi-didos em três fases, cada uma com suas características: anistia como liberdade, anistia como reparação e anistia como justiça e verdade (Abrão e Torelly, 2013). Na primeira fase, os movimentos sociais demandavam por uma anistia “ampla, geral e irrestrita” para os presos políticos, para que eles pudessem ser libertados dos cárceres, do exílio e da clandestinidade. em um segundo momento, que toma impulso a partir da constituição de 1988, a anistia passa a ser entendida como um dever de reparação às vítimas das violências do estado autoritário que o País buscava superar. Na fase atual, tocada por uma nova geração, a demanda por anistia se converte em uma demanda por memória e verdade, para conhecer aquelas narrativas que o regime reprimiu e escondeu sob uma “verdade” única imposta, e para que sejam legalmente punidos, como forma de justiça, os agen-tes públicos que violaram direitos humanos durante a Ditadura. essas concep-ções de anistia dos movimentos da sociedade civil se contrapõem à concepção de “anistia como esquecimento” imposta pelos militares durante a transição contro-lada, e que implica na ideia de que, para alcançar uma determinada pacificação da sociedade, seria imposto um “esquecimento” supostamente mútuo sobre a história durante o período em questão. Na lei de Anistia (lei nº 6.683/1979), que acabou dando a direção da transição brasileira, o regime conseguiu garantir que ao lado da anistia aos presos políticos figurasse uma outra, a autoanistia dos

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agentes do regime, a qual é oposta àquela do movimento pela anistia. Não há uma verdadeira anistia bilateral ou um acordo, pois a lei de Anistia não consa-grou um reconhecimento entre partes em conflito, mas simplesmente colocou um esquecimento (silva Filho, 2015), que, inclusive, impede qualquer reconheci-mento. ou seja, sob o disfarce de uma “anistia bilateral”, na verdade o governo militar (que controlava o parlamento por meio de expedientes antidemocráticos como os “senadores biônicos”, indicados pelo governo) conseguiu impor um es-quecimento como sua condição para permitir a libertação dos presos políticos, a qual não foi tampouco “ampla, geral e irrestrita”. entre as limitações consagra-das na lei de Anistia estava, logo no seu art. 1º, § 2º, a que impedia os acusados de sequestro, atentado pessoal e terrorismo de serem beneficiados por aquela lei. ou seja, justamente o terrorismo, tipo penal simbólico da criminalização política da Ditadura, enquanto princípio ideológica do regime de “segurança nacional”, era excluído dessa anistia. Porém, era imposto por meio da autoanistia o mais completo esquecimento.

um dos quatro pilares da Justiça de Transição é a memória e verdade, pois se trata de um elemento essencial para que se tenha um adequado processo de transição desde um regime violador de direitos humanos para um estado de Direito Democrático que se pretenda capaz de evitar que os direitos humanos sejam violados em massa (Torelly, 2012; sooka, 2010). A memória e verdade é especialmente importante, pois não busca a construção de um único discurso ofi-cial, mas busca que ressurja uma série de narrativas reprimidas e de “verdades” históricas diversas, por vezes até mesmo divergentes e opostas entre si, mas que eram apagadas pela violência do regime anterior, que impôs o seu discurso ofi-cial como “verdade” única. como consequência da falha em memória e verdade, uma série de discursos e narrativas que poderiam preencher os conceitos com melhores sentidos, derivados do aprendizado histórico, é perdida. com isso, os conceitos gerados no discurso do regime violador permanecem no discurso ju-rídico do País, como verdadeiros “entulhos autoritários”, cascas vazias sem sen-tido, mas que seguem produzindo os efeitos jurídicos normatizantes. Quando tratamos de conceitos extremamente abertos, como o terrorismo, esse efeito é desastroso a ponto de deixar o conceito de terrorismo ininteligível. Não há como compreender o conceito de terrorismo sem compreender o passado histórico e a genealogia sobre os quais este se sustenta, e uma tal compreensão é limitada ao máximo pela falha de memória e verdade que representa a manutenção da com-preensão de anistia como esquecimento. como demonstraremos mais adiante no presente trabalho, o conceito de terrorismo no Brasil, mesmo na legislação atual, é gravemente afetado pela desorientação causada por esse efeito do esquecimen-to imposto.

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terrorismo, eXceÇÃo e Direito PenaL Do inimigoNão existe na história dos homens parênteses inexplicáveis. e é precisamente nos períodos de “exceção”, nesses momentos incômodos e desagradáveis que as sociedades pretendem esquecer, colocar entre parênteses, onde aparecem sem mediações nem atenuantes, os sequestros e as vergonhas do poder cotidia-no. (calveiro, 2014, p. 28)2

Uma definição da ideia de terrorismo é necessariamente valorativa, ambí-gua e estabelecida por meio do clima histórico e político. Neste capítulo tenta-se reconstruir teoricamente o nexo que existe entre terrorismo, estado de exceção e direito penal do inimigo, entendendo a normativa antiterrorismo como uma ma-nifestação do estado de exceção, assim como foi teorizado por Giorgio Agamben (2004, 2005), e como um dos exemplos mais evidentes do direito penal do inimigo sustentado pelo Jurista Günther Jakobs (Jakobs e cancio melia, 2007).

Junto com Antonio Cerella (2010) podemos definir dois problemas princi-pais na definição do terrorismo: o “que” (objeto) e o “quem” (sujeito).

O “que” é definido no contexto da “Guerra ao Terror” após o 11 de Setem-bro de 2001, pela Resolução oNu nº 1.566, de 08.10.2004:

[...] atos criminosos, inclusive contra civis, cometidos com a intenção de causar morte ou lesões corporais graves, ou a tomada de reféns, com o propósito de provocar um estado de terror no público em geral ou em um grupo de pessoas ou pessoas particulares, intimidar uma população ou compelir um governo ou uma organização internacional a fazer ou deixar de fazer qualquer ato, o que constitui ofensas dentro do escopo de e como definido nas convenções e pro-tocolos internacionais relativos a terrorismo. (organização das Nações unidas. conselho de segurança, 2004)3

Se aceitarmos essa definição, suficientemente ampla e genérica para incor-porar esse critério de “transportabilidade” mencionado, a questão do “o que”, que pode ser considerada um “ato terrorista”, parece estar aparentemente resol-

2 “No existen en la historia de los hombres paréntesis inexplicables. Y es precisamente en los periodos de ‘excepción’, en esos momentos molestos y desagradables que las sociedades pretenden olvidar, colocar entre paréntesis, donde aparecen sin mediaciones ni atenuantes, los secuestros y las vergüenzas del poder cotidiano.” (Tradução livre)

3 “[...] criminal acts, including against civilians, committed with the intent to cause death or serious bodily injury, or taking of hostages, with the purpose to provoke a state of terror in the general public or in a group of persons or particular persons, intimidate a population or compel a government or an international organization to do or to abstain from doing any act, which constitute offences within the scope of and as defined in the international conventions and protocols relating to terrorism.” (Tradução livre)

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vida. os maiores problemas conceituais, jurídicos e éticos surgem no momento da definição do “quem”, o agente do ato, o “sujeito terrorista”.

Além de todas as manifestações históricas do fenômeno terrorista, o que têm em comum todas as ações, as organizações e, em geral, todos os agentes do terror é “o objetivo violento político referível as categorias amigo-inimigo” (cerella, 2010, p. 6)4.

essa categoria amigo-inimigo pode ser encontrada na obra de carl Schmitt (1988), no momento em que o Estado consegue reafirmar a validade da sua norma legal e a sua unidade política enquanto enfrenta um “inimigo”. esse “inimigo” – interno ou externo – é o sujeito que o estado enfrenta por meio de uma ruptura da sua própria ordem constitucional.

Zaffaroni (2007) descreve como a categoria do inimigo elaborada pelo schmitt acha seu fundamento na partição entre inimicus e hostis própria do Direi-to romano, se o primeiro pode ser definido como inimigo pessoal, é só o segundo que representa a categoria do inimigo político. A essência do inimigo chega a ser a do “estrangeiro” como símbolo do perigo do desconhecido, da incomunicabi-lidade, de quem está fora da comunidade e que responde a códigos de conduta diferentes:

o estrangeiro (hostis alienigena) é o núcleo troncal que abarcará todos os que in-comodam o poder, os insubordinados, indisciplinados ou simples estrangeiros, que, como estranhos, são desconhecidos, como todo desconhecido, inspiram desconfiança e, por conseguinte, tornam-se suspeitos por serem potencialmen-te perigosos [...] o inimigo declarado (hostis judicatus) configura o núcleo do tronco dos dissidentes ou inimigos abertos do poder de plantão, do qual partici-parão os inimigos políticos puros de todos os tempos. (Zaffaroni, 2007, p. 22-23)

o autor ressalta como, se o poder punitivo sempre se caracteriza por tratar alguns sujeitos como “não pessoas”, este tratamento diferenciado por parte do Direito é o que aproxima mais o estado de Direito ao estado absoluto, com uma contradição gritante entre esta doutrina jurídico-política que legitima a categoria do inimigo e os princípios constitucionais internacionais.

Podemos reforçar essa ideia dizendo que essa convivência entre estado de Direito e estado absoluto é uma característica permanente que vira predominan-te e evidente nos momentos “emergenciais”, nas fases de pânico moral (cohen, 2002) institucionalizado.

4 “[...] il loro scopo violentamente politico riconducibile alle categorie amico vs. nemico.” (Tradução livre)

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A definição do sujeito terrorista como inimigo interno-externo, que tem que ser enfrentado pela comunidade internacional, gera, dentro do estado, uma situação de “emergência” e de “exceção” interna.

A situação de emergência tem sido definida não só dentro do âmbito aca-dêmico, mas também dentro do mundo intelectual-militante. cabe destacar o trabalho do Projeto italiano “Luther Blisset”, que, identificando na Itália o labo-ratório político do estado de emergência europeu, destaca:

Chamamos de “emergência” uma continua redefinição instrumental do “ini-migo público” por parte dos poderes constituídos. Graças ao conceito de emer-gência, para os olhos da opinião pública, vira aceitável não só a violação, mas também a suspensão das liberdades fundamentais protegidas pela constitui-ção e pelas cartas dos direitos humanos. Aceitável? Ainda mais: necessária e oportuna para “defender a democracia” [...] o estado trabalha para destruir as vanguardas dos trabalhadores em luta, usando as “forças subversivas” como bode expiatório, confinando o conflito social dentro das esferas penais e judiciá - rias [...] A emergência vira permanente e sobre tudo molecular. (luther Blisset Project, 2002, p. 3)5

Dentro dessa análise pode-se destacar como o terrorismo, mais que uma prática de indivíduos ou grupos pequenos, é, historicamente, uma prática de go-verno, uma técnica estrutural de violência estatal:

o terrorismo é uma enfurecida estratégia político-militar própria também de indivíduos ou grupos, mas que na realidade é sistematicamente utilizada pelas organizações estatais. Não queremos aqui sustentar que o terrorismo tem sido historicamente só o estatal [...] o ponto que queremos destacar é um outro: o estatal é a forma típica de terrorismo. o terrorismo é uma pratica de governo. (Prison Break Project, 2014, p. 4-5)6

5 “Chiamiamo ‘emergenza’ una continua ri-definizione strumentale del ‘nemico pubblico da parte dei poteri costituiti’. Grazie all’emergenza, agli occhi della fantomatica ‘opinione pubblica’ viene resa accettabile non solo la violazione ma la vera e própria sospensione delle libertà formalmente sancite dalle costituzioni e dalle carte dei diritti umani. Accettabile? Di più: necessaria e auspicabile al fine di ‘difendere la democrazia’ [...] lo Stato si muove per sidtruggere le avanguardie dei lavoratori in lotta, usando le ‘forze eversive’ come capro espiatorio, confinando il conflitto sociale alla sfera del penale e del giudiziario [...] l’emergenza diviene permanete e soprattutto molecolare.” (Tradução livre)

6 “[...] il terrorismo è un’efferata strategia politico-militare che viene portata avanti anche da singoli e gruppi, ma che in realtà è sistematicamente usata delle organizzazioni statali. Non vogliamo quindi sostenere che il terrorismo è stato storicamente solo quello di stato, poiché certamente pratiche terroristiche sono state adottate anche da gruppi e/o individui privi di potere [...] Il punto che ci preme qui sottolineare è però un altro: quella statale è la forma prototipica di terrorismo, il terrorismo per eccellenza. Il terrorismo è insomma prevalentemente una pratica di governo.” (Tradução livre)

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entendendo como a recente história ditatorial latino-americana é uma mostra evidente de como o terrorismo é associado à ação estatal (Duhalde, 2013), cabe aprofundar o conceito de “estado de exceção” abordado diferentemente por carl schmitt (1988) e por Giorgio Agamben (2004, 2005).

embora se possa entender o estado de exceção como produto de uma so-ciedade totalitária, Giorgio Agamben coloca o estado de exceção dentro da tra-dição democrática revolucionária-burguesa, que teve origem na França, pelo de-creto da Assembleia Constituinte de 8 de julho 1791, adquirindo a fisionomia de Estado de Sítio Político, finalmente, com o decreto napoleônico de 1811.

Neste contexto, a exceção em si não está em contradição com a existência do sistema democrático de estado, sendo, antes, um aperfeiçoamento desse sis-tema. Nas palavras de carl schmitt (1988, p. 40):

[...] nisso encontra-se a essência da soberania estatal, que então não tem que ser definida como monopólio da sanção ou do poder, mas como monopólio da decisão [...] A exceção mostra claramente a essência da autoridade estatal. [...] a exceção é mais interessante do que o caso normal. este último não prova nada, a exceção prova tudo.7

Agamben entende a exceção não como o caos antes da ordem, mas a situa-ção que resulta da sua suspensão. Não é a exceção que se retira da regra, mas é a regra que, suspendendo a si mesma, dá lugar à exceção, e só assim consegue manter-se como regra. o estado de exceção não é um direito especial, mas pode ser identificado como a suspensão da sua ordem jurídica.

o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico [...] a suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia ins-taurada por ela não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica [...] O estado de exceção enquanto figura da necessidade, apresenta-se, pois, ao lado da revolução e da instauração de fato de um ordena-mento constitucional, como uma medida “ilegal”, mas perfeitamente “jurídica e constitucional”, que se concretiza na criação de novas normas. (Agamben, 2004, p. 39-44)

entendemos a normativa antiterrorista como a criação de um espaço de exceção que, ao mesmo tempo, parece violar o estado de Direito e sustentar o poder estatal e seu ordenamento jurídico criando a necessidade da luta contra o

7 “[...] in ció sta l’essenza della sovranitá statale, che quindi propriamente non dev’essere definita come monopolio della sanzione o del potere, ma come monopolio della decisione [...] Il caso d’eccezione rende palese nel modo più chiaro l’essenza della sovranità statale [...] L’eccezione é più interessante del caso normale. Quest’ultimo non prova nulla, l’eccezione prova tutto.” (Tradução livre)

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inimigo: o sujeito “terrorista” definido de forma discricionária e dependente da necessidade do poder de governo.

o apoio teórico maior à “guerra contra o terror” vem do Jurista Gunther Jakobs, que estabelece e fundamenta a partição dentro da ordem jurídica entre as “pessoas” e os “inimigos”. os inimigos, na teoria do jurista alemão, são os objetos de um direito penal diferenciado. um direito penal que não é mais garante dos direitos constitucionais previstos no seu ordenamento para os sujeitos que ele considera “inimigos”.

essa concepção de direito penal do inimigo pode também ser resumida do seguinte modo:

Quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. esta guerra tem lugar com um legítimo di-reito dos cidadãos, em seu direito à segurança; mas diferentemente da pena, não é Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrário, o inimigo é excluído. (Jakobs, 2007, p. 49)

Assim, o sujeito é culpado sem que o fato criminoso tenha acontecido. o sujeito é definido culpado com base na sua periculosidade social e seu tratamento jurídico é diferenciado em relação aos demais cidadãos. como assevera Baratta (2001, p. 19):

os mecanismos discriminatórios na administração dos direitos fundamentais a favor de cidadãos “respeitáveis” e às custas dos excluídos (imigrantes, desem-pregados, indigentes, toxicômanos, jovens marginalizados, etc.) condicionam uma redução da segurança jurídica que, por sua vez, alimenta o sentimento de insegurança na opinião pública. o resultado é uma forma de estilização sele-tiva das áreas de risco de violação dos direitos, onde a parte não está no todo, senão em lugar do todo ou, diretamente, contra o todo, entendido o todo como os direitos fundamentais e todas as pessoas.8

esse tipo de situação e tratamento parece ser pertinente com as legislações antiterrorismo e a sua aplicação.

8 “Los mecanismos discriminatorios en la administración de los derechos fundamentales a favor de ciudadanos ‘respetables’ y a costa de los excluidos (inmigrantes, parados, indigentes, toxicómanos, jóvenes marginados, etc.) condicionan una reducción de la seguridad jurídica que, a su vez, alimenta el sentimiento de inseguridad en la opinión pública. El resultado es una forma de estilización selectiva de las áreas de riesgo de violación de los derechos, donde la parte no está en el todo, sino en lugar del todo o, directamente, contra el todo, entendido el todo como los derechos fundamentales y todas las personas.” (Tradução livre)

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Entende-se esse tipo de situação como uma peça fundamental do conflito entre liberdade e segurança. Quanta liberdade, entendida como soma dos direi-tos fundamentais invioláveis, estamos dispostos a ceder em troca de mais “segu-rança”? A segurança é real ou simbólica? Aparentemente essa dialética funciona em conflito constante e se fundamenta no mecanismo da exclusão, da partição entre “pessoas” e “inimigos”.

a Lei antiterrorismo BrasiLeira

como a atual legislação brasileira pretende estabelecer essa partição? Para responder essa pergunta, a qual corresponde à definição do sujeito etiquetado como “terrorista”, é preciso compreender o contexto da lei nos planos social e histórico em que esta se coloca.

Desde a redemocratização do País, uma série de propostas para definir a legislação sobre terrorismo foram movidas no congresso. Porém, nenhuma das tentativas de alteração alcançou causar mobilizações significativas para possi-bilitar sua aprovação. A partir de 2013, porém, a situação se alterou. com os movimentos populares contra o aumento das tarifas de transporte coletivo to-mando grandes dimensões e a presença de uma miríade de pautas plurais anexas a esse movimento, a cobertura midiática tradicional etiquetava muitas vezes os movimentos em questão como terroristas, especialmente quanto ao uso da tática de black blocks por parte desses movimentos. com isso, um novo conjunto de propostas legislativas surgiu, aumentando a pressão por uma tipificação clara do terrorismo no Brasil. Nenhuma das propostas, porém, demonstra qualquer acúmulo com relação à experiência do “contraterrorismo” da Ditadura militar, muitas vezes repetindo os mesmos erros (com tipos abertos ou indefinidos, por exemplo). Apenas em 2015, porém, uma articulação teve sucesso na aprovação de um projeto de lei tipificando o terrorismo. Principalmente, o projeto foi apro-vado em razão de sua origem, vindo da própria Presidenta da República. As motivações para a aprovação de tal projeto são diversas, mas giram em torno do cumprimento de vários acordos internacionais sobre terrorismo previamente aprovados, da garantia de determinadas medidas para as olimpíadas no Rio de Janeiro em 2016. em suma, o projeto visa atender, principalmente, uma demanda internacional, descuidando em grande medida da realidade política nacional.

o Projeto de lei nº 2.016/2015, que criminaliza o terrorismo, apresenta uma técnica legislativa muito própria. ele buscava alterar a lei nº 12.850/2013, conhecida como lei de organizações criminosas (loc), para incluir a “organi-zação terrorista” como espécie de organização criminosa. A consequência, além da tipificação, é que também são afetadas as garantias processuais, pois a LOC prevê uma série de medidas excepcionais de investigação, como a colaboração

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premiada, a interceptação de comunicações e a infiltração da polícia nas orga-nizações investigadas, entre outras medidas. Nesse ponto, reflete o uso da cate-goria “terrorismo” para afastar a função de garantia do processo penal no dito estado de Direito. Assim, o tipo criminalizado é a participação na “organização terrorista”, definida como organização que prática ato com três elementos defini-dores: fim desejado pelo agente, fundamento da ação e forma praticada.

O “fim desejado pelo agente” seria a finalidade do ato de “causar terror” ou “coagir autoridade a fazer ou deixar de fazer algo” (a coação de autoridade foi retirada do texto final aprovado no Congresso). O “fundamento da ação” seria a motivação do agente para o ato, no caso quando motivado por razões de precon-ceito étnico-racial, religioso ou de gênero (o preconceito de gênero foi retirado do texto final, possivelmente graças à atuação das bancadas mais conservadoras no congresso), assim como motivação ideológica ou política (a motivação ideo-lógica ou política foi retirada no texto final). A “forma praticada” é a parte mais concreta da definição, e ainda assim é pouco definida, pois apenas determina que o ato é “terrorista” quando expõe a perigo pessoa, patrimônio ou paz pública. em suma, o sujeito é criminalizado pela participação na organização, a qual é defini-da como terrorista quando ocorrem concomitantemente os três elementos defini-dores. Também são criminalizados o financiamento da “organização terrorista” e uma série de condutas que constituem atos preparatórios para um suposto ato terrorista.

Algumas críticas à desorientação que a lei Antiterrorismo representa transparecem já aqui no projeto de lei. A definição do tipo continua extrema-damente aberta, mesmo com os três elementos típicos, demonstrando que não houve o aprendizado com a experiência do autoritarismo militar quanto ao risco à democracia que representa um tipo aberto de terrorismo. “Finalidade de causar terror” e “expor a perigo” são categorias bastante indefinidas, deixando muita coisa a discricionariedade do julgador. Além disso, no projeto de lei há um trata-mento indistinto entre pessoas e patrimônio, tratados como o mesmo bem jurídi-co protegido, ao lado da paz pública, o que representa um evidente problema de proporcionalidade ao tratar o dano (ou perigo) à propriedade com a mesma gra-vidade do dano (ou perigo) à pessoa. Por fim, há uma indefinição de limites, na medida em que todos os participantes da organização são punidos, e não apenas aqueles de fato envolvidos no “ato terrorista”, deixando um espaço aberto a uma possível pena coletiva que venha atingir pessoas não envolvidas no ato em si.

o projeto transparece claramente que não foi elaborado com vistas à so-ciedade brasileira, mas como resposta a pressões internacionais. Não há nenhum ato recente que possa ser chamado de “terrorismo” no sentido do projeto, nem qualquer organização que possa ser enquadrada nos seus requisitos, salvo por

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meio de uma interpretação extremamente forçada das categorias colocadas. Tan-to mais a presença do preconceito religioso entre os fundamentos da ação, que transparece a preocupação europeia e norte-americana com o dito “terrorismo islâmico”, mas que não tem nenhuma raiz na realidade brasileira, onde a comu-nidade islâmica jamais entrou em qualquer conflito com os demais agrupamen-tos religiosos. A criminalização detalhada do financiamento se apresenta como forma de responder aos tratados internacionais contra o financiamento do ter-rorismo, capitaneados pelos países da europa ocidental e pelos estados unidos. Tanto é uma resposta à questão financeira internacional que o projeto de lei foi redigido não apenas pelo ministro da Justiça, mas também pelo ministro da Fa-zenda, sendo que eles assumem a pressão internacional à ausência de relação com o contexto brasileiro na própria justificativa do projeto de lei:

As organizações terroristas caracterizaram-se nos últimos anos em uma das maiores ameaças para os direitos humanos e o fortalecimento da democracia. Atentados em grande escala, praticados por grupos bem treinados, ou mesmo atos individuais, exercidos por pessoas sem qualquer ligação com um deter-minado grupo, aterrorizaram populações inteiras ou determinadas minorias.

Diante desse cenário, como um dos principais atores econômicos e políticos das relações internacionais, o Brasil deve estar atento aos fatos ocorridos no exterior, em que pese nunca ter sofrido nenhum ato em seu território. (Brasil, Justificativa do Projeto de Lei nº 2.016, de 2015)

Finalmente, um ponto presente no projeto de lei que causou certa polêmi-ca foi a previsão de uma excludente da tipificação como organização terrorista destinada a resguardar, em teoria, os movimentos sociais. esse parágrafo previa que não seriam consideradas organizações terroristas as manifestações políticas e os movimentos sindicais ou sociais que fizessem reivindicações com o “ob-jetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades constitucionais”. Apesar de que essa cláusula enfrentou forte crítica da bancada oposicionista conservadora de então, ela acabou sobrevivendo para ser incluída no art. 2º, § 2º, da lei Antiterrorismo. Tal cláusula, porém, não representa qualquer garantia real contra a criminalização dos movimentos, pois a definição de movimento e de sua relação com direitos fundamentais constitucionais serão dependentes da discricionariedade do aplicador da lei. Assim, dependendo da ideologia do julgador, podemos ter variadas formas de ação social, sendo excluídas ou inclu-ídas nessa cláusula. mais uma vez, apresenta-se o problema da textura excessi-vamente aberta da norma.

A lei nº 12.560/2016 (lei Antiterrorismo) foi aprovada com várias alte-rações, mas na sua essência manteve muitos dos problemas do projeto inicial. Porém, alguns avanços ocorrem, como a definição mais explícita das condutas

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que constituem “atos de terrorismo”, o veto presidencial à inclusão de certos atos contra o patrimônio (melhorando a proporcionalidade entre a resposta penal e os bens jurídicos supostamente defendidos), à criação do crime de apologia ao terrorismo (que criaria uma grave restrição à liberdade de expressão) e ao crime de abrigar pessoa que venha a praticar terrorismo. Porém, apesar desses avanços pontuais, persiste a criminalização com um tipo penal ainda muito indefinido e a subsequente possibilidade de criminalização baseada na ideologia política do julgador. Persiste, acima de tudo, uma visão desorientada e alheia à realidade so-cial em que se vai aplicar a lei, o que demonstra um reflexo da falha de memória e verdade na transição brasileira, que já mencionamos, causada pela aceitação da proposta de anistia como esquecimento. sem que houvesse a ruptura com esse paradigma, os discursos estatais sobre terrorismo (inclusive a lei Antiter-rorismo) refletem apenas uma internalização acrítica das definições internacio-nais no que estas têm de mais problemático. Diante da ignorância histórica, não há uma tradição ou um horizonte comum sobre o qual se possa compreender o terrorismo na sua relação com a específica realidade brasileira, de modo que este fica incompreensível, sendo substituído pela adoção irrefletida de qualquer paradigma de compreensão que seja pressionada. Assim, as falhas de memória e verdade introduzidas pela Lei de Anistia se refletem na postura vacilante e deso-rientada das autoridades responsáveis pela lei Antiterrorismo, bem como pela subsequente adoção de um paradigma de compreensão do terrorismo totalmente alheio à realidade social em que se dará a aplicação da lei.

concLUsÃo

com isso, podemos fazer alguns apontamentos sobre a atual lei Antiter-rorismo do Brasil. em primeiro lugar, vemos que ela adota um conceito interna-cional de terrorismo, com a abertura necessária à transportabilidade deste para diversas culturas. Assim, não é um desenvolvimento originado da experiência brasileira, mas das demandas exteriores geradas pelos megaeventos.

Apontamos também que esse apelo a definições internacionais abertas se dá diante de uma desorientação com relação ao histórico autoritário do “combate ao terrorismo” no Brasil, profundamente ligado à repressão da Ditadura militar. Desorientação essa causada, em grande medida, pela imposição da anistia como esquecimento e falhas na justiça de transição brasileira, de modo que se mantém muito do marco da Ditadura militar e de sua ideologia de segurança nacional no tratamento normativo do “terrorismo”, ainda que de maneira velada ou mesmo ignorante.

Por isso, a lei Antiterrorismo toma formas de direito penal do inimigo, seguindo certas tendências do plano internacional, que, por sua vez, refletem

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um desgaste dos direitos e das garantias fundamentais frente ao avanço de um estado de exceção cada vez mais alargado a nível global. Ou seja, reflete-se a construção do “terrorista” alvo da legislação como um inimigo a ser combatido, ao qual não cabe aplicar-se o direito ordinário com suas garantias, de modo que se coloca esse sujeito diante de um estado de exceção, que busca retirar seus di-reitos e suas garantias enquanto pessoa. Vemos refletido aqui o aspecto caracte-rístico do direito penal do inimigo, ao tratar seus alvos como “não pessoas”, pelo que cabe colocar-se aqui uma crítica a essa distinção entre “inimigo” e “pessoa”, que se coloca como expressão de um conflito entre liberdade e segurança. Ainda que muitas coisas possam mudar na aplicação da lei Antiterrorismo, acredita-mos que ao menos em abstrato a lei traz em si questões problemáticas no plano teórico. com isso, vislumbramos um indicativo do potencial que uma aplicação de tal lei pode ter, sendo agora necessários futuros estudos aprofundados para verificar que forma tomará a aplicação da legislação na prática. Por certo, o avan-ço do estado de exceção e o desenvolvimento do direito penal do inimigo que se podem ver aí refletidos representam um risco relevante às liberdades e garantias, em face do qual acreditamos que esses breves apontamentos podem ser relevan-tes para futuras análises.

concluindo, concordamos com o Professor edson Passetti em interpretar a lei Antiterrorismo como uma peça fundamental da ação do estado que, na ópti-ca da governamentalidade, jamais será isento de dispositivos de exceção, confor-me dito em entrevista para machado e Fachim (2015):

É preciso deixar claro que ao se falar de liberdade no capitalismo se está dizen-do, antes de tudo, segurança para essa liberdade. Portanto, a democracia no capitalismo não é determinante, mas uma variável no governo do estado. Do mesmo modo, a democracia representativa e pluralista jamais estará isenta de dispositivos de exceção. Dito isso, o terrorismo sempre é definido pelo Estado como uma prática que lhe é exterior e contra seu governo; que visa alterá-lo e, no limite, abolir o estado. Dessa maneira, tudo o que não for reconhecido pelo Estado e pelas forças que o sustentam como legal, normal ou legítimo fica pas-sível de ser compreendido como prática terrorista.

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a resPonsaBiLiDaDe Do estaDo em face Da cUstÓDia De PresiDiários: Uma

ProPosta De DiáLogo entre a corte interamericana De Direitos hUmanos

e o sUPremo triBUnaL feDeraLstate’s resPonsiBiLity face of cUstoDU inmates: a

ProPosaL of DiaLogUe BetWeen inter-american coUrt of hUman rights anD the BraziLian sUPreme coUrt

Manuella cRuz noBRe*

Resumo: o presente artigo tem por escopo abordar a responsabi-lidade do estado considerando as precárias condições de vida pro-porcionadas aos detentos dos estabelecimentos prisionais no Brasil. Verificou-se que os presos vivem em condições degradantes e desu-manas, corolário da péssima atenção despendida pelo Poder Público junto aos presídios. Desse modo, fez-se um estudo da real situação das cadeias brasileiras, analisando as teorias de responsabilidade do estado nos âmbitos nacional e internacional. Após a análise das legislações brasileiras e dos tratados internacionais do qual o Bra-sil é signatário, concluiu-se pela necessidade de realização de um controle de convencionalidade das leis e dos atos normativos nacio-nais, bem como de utilização das decisões da corte Interamericana de Direitos humanos como fundamento das decisões do supremo Tribunal Federal, inclusive por meio do caso Pacheco Teruel vs. honduras, entendendo-se pela responsabilização objetiva do estado.PAlAvRAs-chAve: Responsabilidade objetiva do estado; condi-ções dos presídios brasileiros; corte Interamericana de Direitos hu-manos; supremo Tribunal Federal.ABsTRAcT: The purpose of this article is to address the responsibility of the state in view of the precarious living conditions afforded to inmates of prisons in Brazil. It was found that the prisoners live in degrading and inhuman conditions, corollary of the terrible attention

* Pós-Graduada em Direito Processual civil pela Instituição luis Flávio Gomes, Bacharela em Direito pela universidade Federal do Pará – uFPA, Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do estado do Pará.

NoBRe, manuella cruz. A responsabilidade do estado em face da custódia de presidiários: uma proposta de diálogo entre a corte Interamericana de Direitos humanos e o supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 68, p. 175-210, 2018.

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paid by the Public Power to the prisons. In this way, a study was made of the real situation of the Brazilian chains, analyzing theories of state responsibility at the national and international levels. After analyzing the Brazilian laws and international treaties to which Brazil is a signatory, it was concluded that there is a need to carry out a control of the conventionality of national laws and normative acts, as well as the use of decisions of the Inter-American court of human Rights as a basis of the decisions of the Federal supreme court, including, through the Pacheco Teruel vs. honduras, being understood by the objective responsibility of the state.KeYWoRDs: state’s objective responsibility; conditions of brasilian prisons; Inter-American court of human Rights; Brazilian supreme court.sumÁRIo: Introdução; 1 A responsabilidade do estado nos siste-mas nacional e internacional; 1.1 A responsabilidade do estado no âmbito nacional; 1.2 Da realidade dos estabelecimentos prisionais brasileiros; 1.3 Responsabilidade do estado no âmbito internacional; 2 os tratados internacionais de direitos humanos e o Direito brasi-leiro; 2.1 os tratados internacionais; 2.2 o controle de convencio-nalidade no Brasil; 3 o caso Pacheco Teruel vs. honduras e o sTF; conclusão; Referências.

introDUÇÃoA constituição Federal determina, em seu art. 37, § 6º, que as pessoas ju-

rídicas de direito público, bem como aquelas de direito privado prestadoras de serviço público, responderão pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

observa-se, então, que, atualmente, vigora, no ordenamento jurídico bra-sileiro, a teoria do risco administrativo, isto é, o estado responde objetivamente pelos seus atos comissivos ou omissivos que causem danos a terceiros; porém, admite causas excludentes e/ou atenuantes de responsabilidade, quais sejam, força maior, caso fortuito, culpa de terceiro, culpa exclusiva da vítima e culpa concorrente da vítima.

com efeito, em alguns casos se admite a teoria do risco integral, como, por exemplo, os danos advindos de acidentes nucleares. essa teoria é, de certo modo, aplicável ao caso das pessoas sob a guarda do estado, o qual deve ser objetiva-mente responsável pelos danos provocados dentro dos estabelecimentos prisio-nais, inclusive aqueles resultantes das péssimas condições de sobrevivência.

Todavia, em que pese a responsabilidade do estado em face da custódia de presidiários ser objetiva, observa-se que o Brasil vem transgredindo seu dever de guarda e proteção dessas pessoas, pondo-as em risco, em situação degradante e desumana.

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Infelizmente, essa situação é visualizada em muitos estabelecimentos pri-sionais brasileiros, não havendo, conquanto, qualquer perspectiva de melhorá--lo. cumpre registrar, no entanto, que o supremo Tribunal Federal e o superior Tribunal de Justiça já adotaram o entendimento que o estado deve ser responsa-bilizado em caso de morte (homicídio ou suicídio) dentro dos estabelecimentos prisionais, não tendo a suprema corte, entretanto, decidido quanto à responsa-bilização do Poder Público ante as péssimas condições de vida proporcionadas pelos cárceres do País.

condições de vida digna, preservação da integridade física e psíquica, acesso à saúde, alimentação, entre outros, são direitos previstos tanto na cons-tituição Federal e em leis brasileiras, quanto na convenção Americana sobre Di-reitos Humanos, a qual foi ratificada pelo Brasil em 1992. Com efeito, o Brasil vem descumprindo com os regramentos nacional e internacional, razão pela qual está sendo demandado perante os tribunais internacionais (caso da Penitenciária urso Branco, caso da Penitenciária de Araraquara/sP, caso do Presídio central de Porto Alegre – corte Interamericana e comissão Interamericana) e seus entes perante os tribunais brasileiros (Recursos extraordinários nºs 580.252 e 637.526 e Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5170, do sTF).

Portanto, considerando que o supremo Tribunal Federal ainda não ado-tou posicionamento acerca da responsabilidade ou não do estado em razão das precárias condições de vida que o sistema penitenciário brasileiro oferece aos detentos, necessário se faz que adote como razão de decidir entendimentos já firmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos semelhantes, interpretando os dispositivos da convenção Americana sobre Direitos humanos da qual o Brasil é signatário.

Recentemente, no caso Pacheco Teruel e outros vs. honduras, a corte Interamericana de Direitos humanos proferiu outra sentença condenatória, responsabilizando o estado pela morte de 107 detentos, decorrente, também, das péssimas condições de vida dos presídios hondurenhos. o referido caso, embora ocorrido em honduras, se assemelha muito com a realidade carcerária brasileira, podendo e devendo ser adotada essa decisão pelo supremo Tribunal Federal.

Há, no entanto, certa timidez e dificuldade na promoção de um diálogo entre as decisões proferidas pela corte Interamericana de Direitos humanos e das decisões proferidas pelo supremo Tribunal Federal, em razão da necessidade de uma ampla ratificação dos tratados de direitos humanos internacionais, de sua incorporação com status privilegiado no ordenamento jurídico interno, do fomento da realização de um controle de convencionalidade, entre outros.

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com efeito, o supremo Tribunal Federal já decidiu no Recurso extraor-dinário nº 466.343, de 3 de dezembro de 2008, que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm natureza de norma supralegal, isto é, acima das leis nacionais, mas abaixo da constituição Federal.

Com essa delimitação, a eficácia do direito internacional e o sistema in-ternacional de proteção dos direitos humanos passam a ter maior proteção no sistema jurídico interno e a exercer um papel mais significativo, permitindo que as decisões da suprema corte, inclusive, os tenham como razão de decidir.

1 a resPonsaBiLiDaDe Do estaDo nos sistemas nacionaL e internacionaL

1.1 a responsabilidade do estado no âmbito nacional

A responsabilidade do estado, ou, como preferem alguns, a responsabi-lidade civil da Administração Pública1, consiste na obrigação de reparar danos patrimoniais e morais, materiais ou jurídicos, suportados por alguém em decor-rência da ação ou omissão, lícita ou ilícita, imputada ao estado2.

segundo ensina hely lopes meirelles3, a evolução doutrinária acerca das teorias da responsabilidade civil aconteceu aos poucos, passando da teoria da irresponsabilidade, adotada nos estados absolutistas, até a teoria da responsabi-lidade pública, aplicada atualmente.

No intuito de analisar a responsabilidade do ente público, surgiram as te-orias publicistas divididas, segundo classificação de Hely Lopes Meirelles4, da seguinte maneira: a) teoria da culpa administrativa; b) teoria do risco administra-tivo; c) teoria do risco integral.

A teoria da culpa administrativa estabeleceu o binômio “falta do serviço--culpa da Administração”5. conforme essa teoria, se o serviço público funcionar

1 hely lopes meirelles (1975, p. 587) prefere essa nomenclatura, pois aduz que, normalmente, a responsabilidade surge de atos provenientes da Administração, e não do estado como entidade política.

2 mello, celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 26. ed. rev. e atual. são Paulo: malheiros, 2009. p. 983.

3 meIRelles, hely lopes. Direito administrativo brasileiro. 3. ed. ref. são Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 558.

4 Ibidem, p. 589.5 Idem, ibidem.

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mal, funcionar atrasado ou não funcionar quando deveria, estará caracterizada a culpa do ente público. cumpre destacar que, nos termos aduzidos por celso Antônio Bandeira de mello6, a responsabilidade baseada na teoria da culpa admi-nistrativa não se enquadra como uma modalidade da responsabilidade objetiva, mas sim na responsabilidade subjetiva, visto utilizar como parâmetro a culpa/dolo.

Assim, têm-se como modalidades de responsabilidade objetiva as teorias do risco administrativo e do risco integral. observa-se que há alguns doutrina-dores que utilizam essas duas teorias como sinônimas, não as diferenciando7. entende-se, contudo, preferível adotar a distinção entre as teorias objetivas feita por hely lopes meirelles.

ensina esse doutrinador que a teoria do risco administrativo implica na obrigação que o estado tem de indenizar um terceiro quando presentes apenas o dano e o nexo causal, isto é, basta a existência de um ato lesivo e injusto ao bem jurídico da vítima imputável ao estado que este tem o dever de repará-lo. Aqui, portanto, exige-se apenas o “fato do serviço”8.

No entanto, a referida teoria admite excludentes ou atenuantes da res-ponsabilidade9, quais sejam: a) força maior; b) caso fortuito; c) culpa de terceiro; d) culpa exclusiva da vítima; e) culpa concorrente da vítima.

A força maior é caracterizada como uma força da natureza irresistível, im-previsível e estranha à vontade das partes10. Já, no caso fortuito, o dano é decor-rente de um ato humano ou uma falha da Administração11. Quanto à culpa exclu-

6 mello, op. cit., p. 993.7 como exemplo, cita-se José cretella Júnior e Yussef said cahali. este, por sua vez, critica a

distinção entre as duas teorias (cahali, 1995, p. 40).8 meirelles, op. cit., p. 589-590.9 Acerca do tema, vide mello, 2009, p. 1013-1015; Di Pietro, 2014, p. 724-727; meirelles, 1975,

p. 590 e 595-596; Justen Filho, 2006, p. 817-819; cunha Júnior, 2009, p. 371-372.10 mello, op. cit., p. 1015. Nesse sentido, celso Antônio Bandeira de mello e maria sylvia

Zanella Di Pietro. Por sua vez, Diogenes Gasparini e Dirley da cunha Júnior atribuem os conceitos de forma oposta, isto é, por força maior entendem o conceito aqui empregado para caso fortuito e vice-versa. Já hely lopes meirelles, em sua obra original, não emprega os termos de força maior e caso fortuito, mas apenas seus conceitos. Finalmente, marçal Justen Filho e José dos santos carvalho Filho utilizam-os como sinônimo. Aqui preferiu-se adotar o conceito utilizado por celso Antônio e Di Pietro.

11 DI PIeTRo, maria sylvia Zanella. Direito administrativo. 27. ed. são Paulo: Atlas, 2014. p. 725.

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siva ou concorrente da vítima, maiores considerações não há, cabendo pontuar apenas o fato de que se a vítima produzir o evento danoso por ato exclusivo seu, elide a responsabilidade do estado; porém, se concorrer para a sua produção, apenas atenua a responsabilidade do ente público.

Assim, ocorrendo qualquer das causas indicadas anteriormente, o estado estaria isento do ressarcimento dos prejuízos suportados pelo indivíduo ou, no último caso, teria reduzido o grau de sua responsabilidade. contudo, quadra registrar que, para celso Antônio Bandeira de mello12 e maria sylvia Zanella Di Pietro13, o caso fortuito não constitui uma causa excludente da responsabilidade, uma vez que o comportamento defeituoso do estado não tem o condão de que-brar o nexo de causalidade entre o caso fortuito ocorrido e o evento danoso.

maria sylvia Zanella Di Pietro14 aduz, ainda, que a culpa de terceiro tam-bém não tem muita força diante da já adotada súmula nº 187 do supremo Tribu-nal Federal – sTF15 e das inovações trazidas pelo código civil de 2002, pois em muitos casos cabe ação regressiva. Assim, se o ato de terceiro, ligado a algum fato da Administração, vier a provocar danos a alguém, ela pode vir a responder, desde que caiba ação regressiva contra esse terceiro.

Por sua vez, a teoria do risco integral, a qual também utiliza o critério obje-tivo para a caracterização da responsabilidade civil do estado, isto é, basta estar presente o dano e o nexo causal, diferencia-se da teoria do risco administrativo apenas quanto à adoção das causas excludentes de responsabilidade que são pre-sentes nesta e ausentes naquela.

Por essa razão, a teoria do risco integral não foi adotada em muitos países, já que geraria grandes danos aos cofres públicos, visto que o estado teria que responder até quando não tivesse concorrido para a produção do evento danoso.

No Brasil, o art. 37, § 6º, da cRFB/1988, estabelece que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos res-ponderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

segundo os doutrinadores administrativistas, o Brasil é adepto, em regra, à teoria do risco administrativo. Isto porque, excepcionalmente, o ordenamento

12 mello, op. cit., p. 1015.13 Di Pietro, op. cit., p. 725.14 Idem, ibidem, p. 726.15 súmula nº 187: “A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o

passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”.

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jurídico brasileiro adota a teoria do risco integral, não admitindo a utilização de qualquer excludente para eximir o estado de sua responsabilidade. É o caso dos danos causados por acidentes nucleares16 previstos no art. 21, XXIII, d, da cRFB/1988.

Nesse aspecto, ensina celso Antônio Bandeira de mello17 que a lesão de-riva de uma situação criada pelo próprio estado, razão pela qual, mesmo que indiretamente, é quem propicia a possibilidade de ocorrência do dano.

com efeito, o ponto central deste trabalho reside na responsabilidade do estado em face da custódia de presidiários. Acerca do tema, celso Antônio Bandeira de mello18 também destaca que a guarda de pessoas perigosas enseja a responsabilidade objetiva do estado, visto que expõe terceiros a risco. Isso impli-ca dizer que o estado será responsável tanto pelos danos ocorridos em virtude da evasão dos detentos quanto pelos ocorridos dentro do recinto prisional.

É importante frisar que, da mesma forma que o estado é responsável pelo dano nuclear experimentado pelas pessoas ao redor do local de sua produção, pois consiste em uma situação criada por esse ente público, os danos suportados pelos detentos também decorrem de situações propiciadas pela própria Admi-nistração Pública. Assim, bem acertada a lição de celso Antônio Bandeira de mello ao entender pela aplicação da responsabilidade objetiva.

Nesse particular, deve-se questionar qual das teorias deve ser aplicada em relação às lesões provocadas nos presídios em razão da custódia de pessoas: se a teoria do risco integral ou a teoria do risco administrativo.

celso Antônio Bandeira de mello19 afirma que, nos casos de guarda de pes-soas perigosas, é aplicável a excludente de força maior. Portanto, se um raio cair em um presídio, o estado responderá pelos danos de forma subjetiva, adotando a teoria da culpa administrativa (se o serviço falhou, atrasou ou não funcionou), inclusive se não tiver providenciado as cautelas normais contra acidentes dessa ordem. entretanto, discorda-se desse exemplo citado, pois, considerando que a

16 Neste sentido, celso Antônio Bandeira de mello (2009, p. 1008-1009) e maria sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 720-721). maria sylvia Zanella Di Pietro ainda adverte sobre a utilização da teoria do risco integral nos casos de danos decorrentes de atos terroristas, de guerra ou relacionados, contra aeronaves de empresas aéreas brasileiras, nos termos das leis nº 10.309/2001 e nº 10.744/2003, bem como em algumas relações obrigacionais dispostas no código civil de 2002, nos arts. 246, 393 e 399.

17 mello, op. cit., p. 1009.18 Ibidem, p. 1008.19 Ibidem, p. 1009-1010.

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presença de para-raios nos presídios teria potencial de afastar a ocorrência do dano, a sua ausência também deve ser enquadrada em responsabilidade objetiva do estado, visto não ser um fato totalmente imprevisível ao ser humano.

Para Justen Filho20, deve haver um tratamento unitário para as condutas comissivas e omissivas. expõe que há dois tipos de omissão: a) aquelas decor-rentes da infração direta do dever jurídico – ilícito omissivo próprio; e b) aquelas decorrentes da ausência de adoção de cautelas necessárias a evitar o dano – ilícito omissivo impróprio. em ambos os casos, o estado deve responder objetivamente. o primeiro caso (omissão própria) é equiparado às condutas comissivas, visto que se a Administração Pública é obrigada a agir de certa forma e não o faz, deve responder, sem dúvida, pela sua omissão. Já o segundo caso (omissão imprópria), desde que presentes os elementos fáticos indicativos de risco de consumação do dano e desde que a Administração Pública não providencie meios aptos a evitar uma provável lesão, sendo sua atribuição impedi-la, deve ser responsabilizada objetivamente pela sua conduta.

Assim, a ocorrência de força maior somente impede a responsabilização quando totalmente imprevisível ou, quando previsível, o estado tiver providen-ciado meios potencialmente capazes de evitar o dano.

Portanto, acompanham-se os ensinamentos de celso Antônio Bandeira de mello quanto à utilização dessa excludente, com a ressalva feita antes, visto que se compartilha da lição de Justen Filho em enquadrar tanto as condutas comissi-vas quanto as omissivas na responsabilidade objetiva.

Todavia, acredita-se que essa é a única excludente capaz de afastar a res-ponsabilidade do estado dentro do estabelecimento penal. Isto porque o caso fortuito, como exposto anteriormente, decorre da ação do homem ou de uma falha da Administração Pública, não podendo esse ente se eximir por erro seu.

o ato provocado por terceiro também não se pode aplicar, pois ou será produzido por um agente público ou por outro detento e, como dito anterior-mente, uma vez que foi o próprio estado que proporcionou a convivência de pessoas perigosas no mesmo local, deve preservar a integridade física de todos que ali se encontram.

Da mesma forma não se entende pela possibilidade de utilização da ex-cludente relativa à culpa da vítima, tanto exclusiva quanto concorrente. explica--se: o estado cerceia o direito à liberdade do preso de forma lícita, quando este

20 JusTeN FIlho, marçal. Curso de direito administrativo. 2. ed. rev. e atual. são Paulo: saraiva, 2006. p. 813-814.

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comete um crime ao qual é aplicada a pena privativa de liberdade. com efeito, deve assegurar ao detento condições dignas de vida, o respeito a sua integridade física, psíquica e moral (art. 1º, III, e art. 5º, caput, III, XlvII, e, XlIX, todos da cRFB/1988), bem como a assistência à saúde, material, jurídica, educacional, so-cial, religiosa (arts. 11 a 24 e 41, vII, ambos da lei nº 7.210/1984 – lei de execução Penal – leP); à alimentação, ao vestuário, ao trabalho remunerado, à previdência social, entre outros (art. 41 da leP), e, ainda, cada preso deve ser colocado em sela individual com dormitório, sanitário e lavatório (art. 88 da leP), e o estabele-cimento penal deve ter lotação compatível com sua estrutura e finalidade (art. 85 da leP). logo, importante preservar tais direitos, mesmo que contra a vontade do preso, por comando constitucional e legal.

somente deve chegar às mãos do preso materiais entregues pelos agentes públicos21. se, de outra forma o detento tiver acesso a outros objetos, e vier a pro-vocar algum dano a si mesmo, tal fato também deve ser imputado ao estado, pois foi omisso no seu dever de vigilância.

Assim, no caso de suicídio de um presidiário, que é uma das mais graves violações à vida, o ente público deve ser responsabilizado objetivamente sem a admissão de qualquer excludente, visto que esse fato decorre apenas de atos comissivos (proporcionou condições de vida degradantes à integridade física e psicológica da vítima que desencadeou o dano) e omissivos seus (agentes peni-tenciários não impediram o fato, bem como se observa a ausência de acompanha-mento psicológico/psiquiátrico apto a evitar o dano).

Diante do ora exposto, percebeu-se que no caso analisado (guarda de pes-soas perigosas) não se aplica nem a teoria do risco integral, por se admitir uma única excludente de responsabilidade, porém também não se aplica, na íntegra, a teoria do risco administrativo, pela mesma razão: utilizar-se apenas uma única excludente. considerando esse fato, entende-se que no caso de custódia de pre-sidiários há a adoção de uma teoria intermediária, mais próxima, no entanto, da teoria do risco integral.

Desse modo, o estado brasileiro é responsável objetivamente por todos os danos suportados por um detento, tanto em relação aos homicídios e suicí-

21 segundo o art. 50 da leP, o preso comete falta grave nas seguintes situações: a) incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; b) fugir; c) possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem; d) provocar acidente de trabalho; e) descumprir, no regime aberto, as condições impostas; f) inobservar os deveres previstos nos incisos II e v do art. 39 desta lei; g) tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.

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dios praticados pelos próprios presos quanto em relação às condições precárias, cruéis, subumanas e degradantes às quais são submetidos.

1.2 Da realidade dos estabelecimentos prisionais brasileiros

embora seja responsável objetivamente, mediante a adoção da teoria inter-mediária nos casos relacionados aos detentos, o Brasil, ao invés de providenciar meios capazes de assegurar os direitos dos presos, de modo, inclusive, a evitar possíveis reparações por ações ou omissões a si imputadas, “prefere” permane-cer inerte diante da tamanha e permanente violação de direitos humanos nos cár-ceres brasileiros que, registre-se logo, são protegidos tanto por diplomas legais nacionais quanto internacionais.

A realidade dos recintos prisionais brasileiros não é novidade e vem sendo muito divulgada. o Brasil conta com grandes e graves exemplos de violação de direitos humanos, em virtude do abandono do sistema prisional pela Adminis-tração Pública do País.

No Pará, foram realizadas, a partir do ano de 2012, vistorias nos estabe-lecimentos penais pelo conselho Penitenciário da superintendência do sistema Penitenciário do estado do Pará22.

Foram visitados, até hoje, os seguintes estabelecimentos: Penitenciário metropolitano I – Pem I (marituba), centro de Reeducação Feminino – cRF (Ananindeua), centro de Recuperação Penitenciário do Pará I, centro de Recu-peração Regional de castanhal, centro de Recuperação de Altamira, centro de Recuperação do coqueiro – cRc (Belém) e centro de Recuperação Regional de Paragominas.

Todos, sem exceção, contam com superlotação de presos. Além disso, fo-ram constatadas as precárias condições de vida às quais são submetidos os deten-tos, pois possuem instalações elétricas aparentes com evidente risco de incêndio, infiltrações que promovem a propagação de limo e mofo nos ambientes em que moram, bem como há lixo e esgoto a céu aberto, gerando a proliferação de doen-ças infectocontagiosas. Averiguou-se, ainda, a ausência de artigos de higiene pes-soal e de limpeza, de cama e de colchões, a existência de alimentos apodrecidos, medicamentos vencidos, precária prestação de atendimento à saúde e assistência

22 os relatórios encontram-se disponíveis em: <http://www.prpa.mpf.mp.br/institucional/controle-externo-da-atividade-policial/institucional/controle-externo-da-atividade- -policial/sobre-a-atuacao-do-mpf-no-controle-externo-da-atividade-policial>. Acesso em: 27 set. 2014.

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judiciária. soma-se a isso a grande quantidade de baratas, ratos, moscas e mos-quitos com os quais os internos precisam conviver diariamente.

É inacreditável, ainda, que, mesmo diante dessa realidade, o conselho Pe-nitenciário tenha relatado que houve uma redução de 24% (vinte e quatro por cento) no fornecimento de alimentos para o centro de Reeducação Feminina em razão do Decreto nº 503, de 29 de agosto de 2012.

Registra-se, também, que muitos presídios contam com o modelo de con-tainers, que é um sistema humilhante e degradante à condição de ser humano, existentes em quase todos os presídios visitados pelo conselho Penitenciário. em suma, as condições das casas de detenção paraenses são subumanas, degradan-tes, insalubres, humilhantes, desrespeitando violentamente os direitos humanos assegurados a todos.

contudo, a referida realidade não existe somente nas cadeias paraenses, mas, infelizmente, condiz com a maioria dos recintos prisionais brasileiros.

caso emblemático diz respeito ao Presídio urso Branco23 (casa de Deten-ção José mário Alves), situado em Porto velho/Rondônia. Diante das precárias condições de vida e existência humana, os internos rebelaram-se, mutilando e degolando uns aos outros, pois existiam grupos rivais dentro do referido esta-belecimento.

o constante número de mortes dentro da casa de Detenção de urso Bran-co chamou a atenção das autoridades públicas, que, no entanto, mesmo vendo o caos do sistema prisional ali instalado, nada fez para melhorá-lo. De 2002 a 2004, os presos se rebelaram, mataram 45 presos, fizeram 300 pessoas de refém na ten-tativa de negociar com o Poder Público melhores condições de existência dentro do Presídio de urso Branco.

Todavia, considerando a inércia do estado brasileiro em promover melho-res condições de vida, integridade física, psíquica e moral, bem como de assegu-rar uma vida digna para os presos, o Brasil foi demandado internacionalmente perante a corte Interamericana de Direitos humanos, a qual determinou uma série de medidas cautelares a serem adotadas pelo Brasil para tentar reverter essa situação que assola a população carcerária do País.

23 As informações referentes ao presídio de urso Branco foram obtidas por meio da leitura do seguinte artigo eletrônico: KosTeR, Julia Impéria. caso Presídio urso Branco e a corte Interamericana de Justiça – Direitos humanos. Disponível em: <http://www.ambito- -juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6784>. Acesso em: 27 set. 2014.

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A primeira medida provisória da corte Interamericana de Direitos hu-manos sobre o caso da Penitenciária de urso Branco ocorreu em 2002. Porém, constantemente a corte vem editando medidas provisórias para que o Brasil cumpra suas determinações e estabeleça condições adequadas à vida e dignida-de dos presos. em 2005, a corte Interamericana editou nova medida provisória, determinando o envio do 11º Relatório sobre o cumprimento das determinações efetuadas pela corte24.

cumpre advertir que não é somente em relação ao Presídio de urso Bran-co que o Brasil já foi demandado internacionalmente, mas também o foi em face da Penitenciária “Dr. sebastião martins silveira”, situada em Araraquara/são Paulo25 e, recentemente, em 10 de janeiro de 2013, referente ao Presídio central de Porto Alegre26.

Quando a consequência é a morte do preso27, desde 2001 o supremo Tribu-nal Federal28 e desde 2005 do superior Tribunal de Justiça – sTJ29 entendem pela

24 Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_05_portugues.pdf>. Acesso em: 27 set. 2014.

25 o processo encontra-se arquivado, pois o estado brasileiro cumpriu com as medidas cautelares ordenadas pela corte Interamericana de Direitos humanos, reformando a Penitenciária de Araraquara (Penitenciária Dr. sebastião martins silveira), adequando a quantidade de presos a sua capacidade, bem como proporcionando assistência médica, alimentação, vestuário, acessórios de higiene adequados a uma vida digna na prisão (Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/araraquaraju_se_05_por. -pdf>. Acesso em: 27 set. 2014).

26 A cIDh também já determinou medida liminar para que o Brasil adote as medidas necessárias para salvaguardar a vida e a integridade física e moral (Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/sitenovo/wp-content/uploads/2014/01/medida-cautelar-Pres%C3%ADdio-Central-30-12-2013.pdf>. Acesso em: 27 set. 2014).

27 As pesquisas jurisprudenciais foram feitas nos sítios dos Tribunais mencionados (STF: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>; e STJ:<http: //www.stj.jus.br/scoN/>) utilizando-se os seguintes termos em ambos: “Responsabili- dade e estado e morte e preso”, “responsabilidade e objetiva e estado e morte e preso” e “responsabilidade e subjetiva e estado e morte e preso”. Neste último caso, encontrou-se apenas uma decisão do sTF em dezembro de 2005 – AI 512698 –, e no sTJ uma decisão de maio de 2009 – Resp 1095309 –, que, no entanto, não alteram o entendimento majoritário dos Tribunais em adotar a responsabilidade objetiva nesses casos.

28 vide AI 343129-AgRg/Rs, 2ª Turma, Rel. min. maurício corrêa, J. 23.10.2001, DJ 14.12.2001.29 vide Resp 713682/RJ, 2ª Turma, Rel. min. João otávio de Noronha, J. 01.03.2005,

DJ 11.04.2005, p. 286.

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responsabilidade objetiva por parte da Administração Pública, aplicando a pena pecuniária indenizatória tanto no caso de homicídio quanto de suicídio30.

com efeito, ainda há certa divergência entre os magistrados brasileiros em conceder indenização pelas condições precárias dos estabelecimentos prisionais do País. Isso porque muitos defendem a que a insuficiência dos recursos finan-ceiros impede a responsabilização do ente público pelas condições carcerárias. Discorda-se dos julgadores que defendem essa linha, pois há que se preservar o mínimo existencial das pessoas. Nesse sentido é o entendimento perfilhado pelo ministro Teori Albino Zavascki, no Resp 1.051.023/RJ31, em seu voto-vista (vencedor)32.

Como bem afirmou o Ministro, não cabe a alegação da reserva do possí-vel em face dos danos provocados pelo próprio estado, o qual deve responder objetivamente perante as lesões provocadas. Nesse caso, há violação de direitos humanos protegidos, devendo o estado ser responsabilizado nacional e interna-cionalmente.

30 Nesse sentido, citam-se os seguintes precedentes: STF, ARe 700.927-AgRg/Go, 2ª Turma, Rel. min. Gilmar mendes, J. 28.08.2012; e STJ, Resp 1.014. 520/DF, 1ª Turma, Rel. min. Francisco Falcão, J. 02.06.2009, e eDcl-AgRg-Resp 1305259/sc, 2ª Turma, Rel. min. mauro campbell marques, J. 15.08.2013, DJe 22.08.2013.

31 sTJ, Resp 1.051.023/RJ, 1ª Turma, Rel. min. Francisco Falcão, Rel. p/o Ac. min. Teori Albino Zavascki, J. 11.11.2008, DJ 01.12.2008. Ficou assim ementado: “coNsTITucIoNAl – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – INDENIZAÇÃO – DETENTO – ENCAR-CERAMENTO EM CONDIÇÕES TIDAS COMO CAÓTICAS – DANOS MORAIS – PRIN- CÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL – INVIABILIDADE DA INVOCAÇÃO NAS SITUA- ÇÕES PREVISTAS NO ART. 37, § 6º, DA CF – 1. o dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente causados por ato dos agentes estatais ou pela inadequação dos serviços públicos decorre diretamente do art. 37 § 6º da constituição, dispositivo auto-aplicável, não sujeito a intermediação legislativa ou administrativa para assegurar o correspondente direito subjetivo à indenização. Não cabe invocar, para afastar tal responsabilidade, o princípio da reserva do possível ou a insuficiência de recursos. Ocorrendo o dano e estabelecido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado, caso em que os recursos financeiros para a satisfação do dever de indenizar, objeto da condenação, serão providos na forma do art. 100 da constituição. 2. Recurso especial improvido” (grifos inexistentes no original) (Disponível em: <http://www.stj.jus.br/scoN/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&processo=1051023&b=AcoR&thesaurus=JuRIDIco>. Acesso em: 27 set. 2014).

32 embora o sTJ tenha adotado esse entendimento nesse julgado, infelizmente não foi a posição adotada por esse Tribunal nos julgamentos posteriores de casos análogos. Acerca do tema, ver julgamento dos embargos de Divergência em Recurso especial nº 962.934/ms, 1ª seção, Rel. min. humberto martins, J. 23.05.2012, DJe 30.05.2012.

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Acerca do assunto, no entanto, não há qualquer decisão final do Supre-mo Tribunal Federal33, porém esse órgão já considerou a repercussão geral da questão no Re 580.252-RG/ms, Relator ministro Ayres Britto, julgamento em 17.02.2011. seria salutar que o sTF adotasse o mesmo fundamento utilizado pelo ministro Teori Zavascki.

1.3 responsabilidade do estado no âmbito internacional

somente após a segunda Guerra mundial, em 1945, se iniciou, com mais vigor, a preocupação com os direitos humanos. Assim, devido às atrocidades que o mundo vivenciou, passou-se a dar maior importância ao ser humano. Neste contexto, o indivíduo tornou-se expressa e legalmente titular de direitos sem os quais não pode mais viver ou desenvolver-se dignamente.

ensina André de carvalho Ramos34 que, a partir do momento em que um estado aceita a obrigação internacional de velar e proteger os direitos humanos, deve fazê-lo, importando a sua violação em responsabilização internacional. Não pode, diante dessa situação, alegar “domínio reservado” em tais matérias, ou seja, não se permite suscitar o direito interno para se eximir de um dever assu-mido internacionalmente. Portanto, a ordem internacional independe da ordem interna, possuindo suas próprias características.

Assim, aduz André de carvalho Ramos35 que não há um acordo bilateral entre os estados que assinaram determinada convenção ou tratado internacional, mas sim uma obrigação objetiva, sendo uma garantia coletiva.

A responsabilidade internacional, de forma similar à anteriormente expli-cada, caracteriza-se pela violação de um estado a um fato internacionalmente ilí-cito ao qual se comprometeu em não praticar. logo, conforme salienta André de carvalho Ramos36, “qualquer descumprimento de uma obrigação internacional gera a obrigação de efetuar a reparação”.

Destarte, da mesma forma como indicado ao norte, a violação de direi-tos humanos no plano internacional também adota a responsabilidade objetiva, cabendo apenas averiguar a existência do dano e do nexo causal, não tendo re-

33 outro processo que também se encontra pendente de julgamento perante o sTF é o Re 637.526.

34 RAmos, André de carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos: seus elementos, a reparação devida e sanções possíveis – Teoria e prática do direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 33-34.

35 Ibidem, p. 39-40.36 Ibidem, p. 72.

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levância o dolo/culpa do estado37. Isso porque os tratados internacionais de di-reitos humanos não indicam a necessidade da existência de culpa para a aferição da responsabilidade do ente violador.

Aponta, ainda, André de carvalho Ramos38 que, como aqui já defendido anteriormente, os casos de omissão do estado, quando este deveria agir, como, por exemplo, o dever de vigilância, implica a adoção da responsabilidade objeti-va, e não subjetiva.

No caso dos presídios brasileiros, observa-se a violação de vários direitos consagrados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH, ratifi-cada pelo Brasil em 1992 (Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992). entre eles cita-se, primeiramente, o art. 1.139, pois o estado brasileiro não está respeitando os direitos e as liberdades reconhecidos nesse diploma internacional.

há, também, violação do direito à vida (art. 4.1 da convenção), à integri-dade pessoal (art. 5 da convenção), à proteção da honra e da dignidade (art. 11.1 do Pacto), à igualdade perante à lei (art. 24 da convenção). Diante de tantas vio-lações, o Brasil deve ser responsabilizado internacionalmente para que, além de pagar indenização aos presos ou às suas famílias pelos danos provocados dentro do estabelecimento penal, também invista em políticas públicas aptas a propor-cionar condições dignas aos próximos detentos.

Não muito distante, a corte Interamericana de Direitos humanos – corte IDh já apreciou situação semelhante à dos presídios brasileiros no caso Pacheco Teruel e outros vs. honduras40, no qual o estado foi obrigado a reparar os danos sofridos pelas mortes de 107 detentos em virtude das péssimas condições habi-tacionais e de infraestrutura dos presídios deste país41. Nesse caso, havia vários fios elétricos aparentes e grande sobrecarga de energia, que culminou em um curto-circuito no sistema elétrico, dando início a um incêndio na entrada da cela nº 19, o que impediu que os internos conseguissem sair do recinto (essa entrada também era a única saída da referida cela prisional).

37 Ibidem, p. 91.38 Ibidem, p. 97.39 “Art. 1.1. os estados-partes nesta convenção comprometem-se a respeitar os direitos e

liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer condição social.”

40 ver infra.41 sentença disponível em: <http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_241_esp.pdf>.

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Nota-se que as péssimas condições carcerárias são uma realidade existente não só no Brasil, como também em outros países da América latina, que, inclusi-ve, já foram responsabilizados internacionalmente.

cumpre registrar que, conforme ensinamento de Antonio moreira maués42, a corte IDh não se limita a proteger a vida apenas no seu sentido biológico, mas também inclui a dimensão da dignidade humana com estreita ligação com o di-reito à integridade física, moral e psíquica. Assim, um estado pode ser respon-sabilizado internacionalmente tanto pela “falta de diligência para prevenir a vio-lação ou por não havê-la sancionado nos termos requeridos pela convenção”43.

Assevera, ainda, que, nos casos Neira Alegría (el Frontón) e Durand, o estado (Peru) foi responsabilizado internacionalmente em virtude da morte de vários detentos que tinham se rebelado. Isso porque, mesmo que o estado deva garantir a segurança dentro dos presídios, a corte IDh entende que ele não pode violar direitos humanos mesmo em situação de emergência, razão pela qual o condenou pelas mortes dos presos que se encontravam no pavilhão que as forças de segurança explodiram44.

Neste contexto, Antonio moreira maués45 adverte que o estado deve ga-rantir uma vida digna a todos os seus cidadãos, de forma a abster-se de reali-zar atos que coloquem em risco a vida de alguém, bem como deve providenciar meios de prevenção e reparação dos direitos humanos.

Registra, ainda, que a corte IDh reconhece o direito do detento a viver em condições compatíveis com sua dignidade pessoal, cabendo ao estado uma “po-sição especial de garantia”, visto o grande domínio que possui sobre os presos. Nas suas palavras: “caso o estado não assuma esta responsabilidade, a privação de liberdade implicaria restringir direitos humanos que em nenhuma hipótese podem ser restringidos ou cuja restrição não é permitida como consequência da detenção”46.

Assim, considerando o entendimento da corte, bem como o fato de o su-premo Tribunal Federal ainda não ter se pronunciado definitivamente sobre o

42 mAuÉs, Antônio moreira. o direito à vida na jurisprudência da corte Interamericana de Direitos humanos. In: sÁNcheZ, miguel Revenga; GARcÉs, Andrée viana (org.). Tendencias Jurisprudenciales de la Corte Interamericana y el Tribunal Europeo de Derechos Humanos. valencia: Tirant lo Blanch, 2008. p. 3.

43 Ibidem, p. 5.44 Ibidem, p. 7.45 Ibidem, p. 23.46 Ibidem, p. 25.

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assunto, entende-se que a suprema corte brasileira deve adotar esse posiciona-mento defendido pela corte IDh, em verdadeira incorporação dos precedentes internacionais, ou seja, deveria utilizar esses precedentes da corte IDh para de-terminar a responsabilidade do estado em face das péssimas condições de sobre-vivência nos presídios brasileiros impostas aos detentos.

com efeito, há no país uma grande resistência quanto à utilização dos precedentes jurisprudenciais da corte IDh, embora tenha reconhecido a obri-gatoriedade de sua competência em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da convenção Americana de Direitos humanos desde 199847.

A referida resistência deriva, segundo ensina André Ramos48, da adoção da corrente dualista49 pelo sTF, isto é, primeiro o direito internacional deve ser incorporado como direito interno (por meio de norma nacional) para, posterior-mente, ser utilizado como razão de decidir.

Para o referido autor, deve haver uma compatibilidade entre as normas constitucionais brasileiras com a “normatividade internacional de proteção aos direitos humanos como presunção absoluta, em face dos princípios da constitui-ção de 1988”50. ora, acertadamente André de carvalho Ramos apresenta referi-do entendimento, pois não há como se aceitar que a constituição da República seja um empecilho à concretização dos direitos humanos, mesmo que a proteção esteja prevista apenas em norma internacional, desde que, claro, o País tenha ratificado essa norma.

entender de forma diversa seria ferir a própria constituição da República, visto que determina, em seu art. 5º, § 2º: “os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

com efeito, na lição de Flávia Piovesan51, para se desenvolver o diálogo entre a jurisdição regional da corte Interamericana de Direitos humanos e o sis-

47 Decreto nº 4.463, de 8 de novembro de 2002.48 Ramos, op. cit., p. 117-118.49 consoante ensina André de carvalho Ramos (2004, p. 117), a teoria monista caracteriza-se

pela “possibilidade de aplicação direta e automática das normas do direito internacional pelos agentes do poder estatal (autoridades administrativas, membros do ministério Público e juízes)”.

50 Ramos, op. cit., p. 127.51 PIovesAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo jurisdicional no contexto latino-americano.

In: BoGDANDY, Armin von; PIovesAN, Flávia; ANToNIAZZI, mariela morales

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tema nacional, no intuito de fortalecer a proteção de direitos humanos, devem-se enfrentar alguns desafios, e entre eles citam-se: a) a ampla ratificação dos trata-dos de direitos humanos internacionais; b) a incorporação desses tratados com status privilegiado no ordenamento jurídico nacional; c) fomentar a cultura jurí-dica orientada pelo controle da convencionalidade52; d) aprimorar o mecanismo de implementação das decisões internacionais no âmbito interno.

Observa-se, pois, que o Brasil até tem ratificado diversos diplomas inter-nacionais, satisfazendo o primeiro desafio encontrado no tocante à efetivação da proteção dos direitos humanos. Por sua vez, os demais aspectos demandam um aprofundamento maior de como são enfrentados no ordenamento jurídico brasi-leiro, os quais serão analisados a seguir.

2 os trataDos internacionais De Direitos hUmanos e o Direito BrasiLeiro

2.1 os tratados internacionais

como dito, um dos obstáculos enfrentados nos dias de hoje para a efetiva-ção do diálogo entre a jurisdição internacional e a jurisdição nacional brasileira diz respeito, como assinalado por Flávia Piovesan53, ao status normativo atribuí-do às normas internacionais de direitos humanos.

conforme ensina Antonio moreira maués54, com a promulgação da nova ordem constitucional e a previsão em seu art. 5º, § 2º, de que os direitos e as ga-rantias previstos em tratados internacionais de que o Brasil fosse parte não eram

(coord.). Direitos humanos: democracia e integração jurídica: emergência de um novo direito público. Rio de Janeiro: elsevier, 2013. p. 405.

52 Acerca do tema, Flávia Piovesan (2013, p. 406-407) enfatiza importante entendimento da Corte Interamericana: “Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato do estado, também estão submetidos a ela, o que lhes obriga a zelar para que os efeitos dos dispositivos da convenção não se vejam mitigados pela aplicação de leis contrárias a seu objeto, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. [...] o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de ‘controle da convencionalidade das leis’ entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a convenção Americana sobre Direitos humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que do mesmo tem feito a corte Interamericana, intérprete última da convenção Americana”.

53 Piovesan, op. cit., p. 405.54 mAuÉs, Antônio moreira. supralegalidade dos tratados internacionais de direitos

humanos e interpretação constitucional. In: loPes, Ana maria D’Ávila; mAuÉs, Antônio

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excluídos por aqueles previstos na lei maior, criou-se uma expectativa de que o entendimento adotado pelo sTF pudesse ser alterado, o que, contudo, não veio a se concretizar tão cedo.

A primeira aparição de um entendimento diferente do que vinha sendo adotado pelo sTF surgiu somente no ano de 2000 com o julgamento do hc 79.785. Nele, o Relator Ministro Sepúlveda Pertence, à fl. 301, consignou que deveria ser aceita a “outorga de força supra-legal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até, se necessário, contra a lei ordi-nária – sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes”. contudo, a suprema corte ainda continuava adotando o entendimento de que as normas internacionais ti-nham status de lei ordinária.

com efeito, no ano de 2004 foi promulgada a emenda constitucional nº 45, que trouxe três inovações no ordenamento jurídico constitucional brasileiro no que tange aos direitos humanos. A primeira, que acrescentou o § 3º ao art. 5º da cRFB/1988, diz respeito à incorporação de um tratado de direitos humanos com status equivalente à emenda constitucional, desde que aprovado em cada casa do congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respecti-vos membros, o que atribui natureza formal e materialmente constitucional aos tratados.

A segunda inovação trata da adesão do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, incluída no art. 5º, § 4º, da cRFB/1988, o que mostra uma maior integração com o ordenamento jurídico internacional e a disposição do Brasil em efetivar as decisões dos tribunais internacionais.

A terceira alteração consiste na chamada federalização dos direitos huma-nos. Acrescentando o § 5º no art. 109 da cRFB/1988, a emenda consignou que o Procurador-Geral da República, nas hipóteses de grave violação de direitos hu-manos, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, pode requerer perante o sTJ o deslocamento de competência para a Justiça Federal em qualquer fase do inquérito ou do processo.

Tais alterações constitucionais foram de extrema importância para o en-frentamento da questão internacional no ordenamento interno brasileiro. Nesse sentido, entendem Antônio moreira maués e George Galindo55 que as inovações

moreira (org.). A eficácia nacional e internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro: lumen Juris, 2013. p. 29.

55 GAlINDo, George; mAuÉs, Antônio moreira. o caso brasileiro. In: GAlINDo, George Rodrigo Bandeira; uRueÑA, René; PÉReZ, Aida Torres (coord.). Proteção multinível dos

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da ec 45/2004, embora tratassem de matérias distintas, apresentavam um ponto em comum: “A valorização constitucional dos tratados de direitos humanos”, uma vez que eles poderiam ser equiparados à emenda constitucional; o Brasil passava a se sujeitar à jurisdição de mais um tribunal internacional e estava im-plementando formas de efetivar as normas de tratados e convenções ratificados pelo Brasil.

Diante dessas alterações constitucionais, bem como que em 1998 o Brasil reconheceu a jurisdição da corte Interamericana de Direitos humanos, no ano de 2008, isto é, 20 anos após a promulgação da cRFB/1988 e 10 anos após o reco-nhecimento da competência da corte IDh, o sTF, no julgamento do Re 466.34356, mudou seu posicionamento, passando a conferir aos tratados internacionais o status de norma supralegal, isto é, abaixo da constituição Federal, porém acima das demais leis infraconstitucionais.

conforme resume Antonio moreira maués57 para a minoria dos ministros do sTF, liderada pelo entendimento defendido pelo ministro celso de mello, os tratados de direitos humanos integram o chamado “bloco de constitucionalida-de”, isto é, possuem natureza materialmente constitucional, mesmo que fossem ratificados anteriormente à inovação do art. 5º, § 3º, da CRFB/1988. Isso porque essa inovação adicionou o caráter formalmente constitucional dos tratados de direitos humanos, os quais já possuíam o caráter material. Assim, a novidade implementada pela ec 45/2004 teria vindo para reforçar o caráter constitucional dos tratados de direitos humanos, até porque não seria razoável que normas que tratem da mesma matéria, qual seja, direitos humanos, tenham níveis hierárqui-cos diversos dentro do mesmo ordenamento jurídico.

com efeito, a maioria optou pela adoção da tese da supralegalidade pelas seguintes razões: a) a constituição Federal goza de supremacia formal e material perante todo o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive por ser o parâmetro de controle de constitucionalidade das leis e, também, dos tratados internacionais; b) a adoção do caráter constitucional dos tratados poderia ampliar de forma ina-dequada a expressão “direitos humanos”, permitindo a elaboração de normas sem a devida averiguação de conformidade com a lei maior; c) e que o art. 5º, § 3º, da cRFB/1988, na verdade, importou reconhecer que somente poderiam ter

direitos humanos. manual Dhes. Red de Direitos humanos e educação superior, 2014. p. 299.

56 Esse processo tratava da possibilidade de prisão civil por dívida do depositário infiel que está prevista na cRFB/1988 e proibida na cADh.

57 maués, op. cit., p. 32.

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caráter constitucional os tratados incorporados nos seus termos, razão pela qual os ratificados anteriormente não poderiam ser caracterizados como constitucio-nais por ausência de previsão58.

Destarte, os tratados de direitos humanos, agora com status de norma su-pralegal nos termos do entendimento do sTF, revogam todas as disposições le-gais com eles conflitantes, porém devem obediência à Constituição Federal, não podendo contrariá-la.

em que pese o sTF ter adotado o posicionamento de que as normas de tratados de direitos humanos internacionais sejam infraconstitucionais, embora supralegais, doutrinadores, como valerio de oliveira mazzuoli, compartilham do mesmo posicionamento perfilhado pelo Ministro Celso de Mello, isto é, en-tende que, desde a promulgação da constituição de 1988, os tratados de direitos humanos internacionais têm caráter materialmente constitucional.

Isso porque, conforme dito antes, o art. 5º, § 2º, da cRFB/1988 consig-nou que os direitos e as garantias previstos na própria constituição não excluem outros provenientes de tratados internacionais. Implica dizer que a cRFB/1988, desde sua origem, autoriza que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil integrem o ordenamento jurídico pátrio como se na Cons-tituição estivesse escrito. Assim, pode-se afirmar que, já que tais direitos ampara-dos apenas em diplomas internacionais não são excluídos pelos direitos previs-tos na cRFB/1988, essa passa a “os incluir no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu ‘bloco de constitucionalidade’”59.

entender que os tratados internacionais de direitos humanos possuem ca-ráter materialmente constitucional não significa que ele irá anular ou modificar as normas escritas no texto constitucional. Pelo contrário, apenas reforça-as de modo a proteger ainda mais o ser humano. Nesse sentido, valerio de oliveira mazzuoli60 leciona que, quando houver conflito entre um direito previsto na cRFB/1988 e outro previsto no tratado internacional de direitos humanos, deve--se optar pela norma mais favorável ao indivíduo (princípio pro homine). Des-tarte, caso um direito previsto na Constituição seja mais benéfico para a pessoa humana que aquele disciplinado no tratado internacional de direitos humanos, será a constituição que prevalecerá, sendo o inverso também verdadeiro.

58 Ibidem, p. 32.59 mAZZuolI, valerio de oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 3. ed.

rev., atual. e ampl. Coleção Direitos e Ciências Afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 4, 2013. p. 35.

60 Ibidem, p. 36.

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Por sua vez, a ec 45, ao incluir o § 3º no art. 5º da cRFB/1988, veio tão somente acrescentar a possibilidade de um instrumento internacional de prote-ção de direitos humanos ser incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não somente com o caráter material, mas também formal, visto que será equivalente à emenda constitucional, caso aprovado com o quorum ali estabelecido61.

cumpre registrar, então, que, para valerio de oliveira mazzuoli, enten-dimento este do qual aqui se compartilha, os tratados internacionais de direitos humanos, por força do art. 5º, § 2º, da cRFB/1988, possuem caráter de norma materialmente constitucional e aqueles que forem incorporados nos termos do art. 5º, § 3º, da cRFB/1988 possuem natureza de norma material e formalmente constitucional. Interpretar dessa maneira evita que normas que tratam sobre o mesmo assunto (direitos humanos) tenham status normativo diferentes, isto é, que umas sejam supralegais e outras constitucionais. entender de forma diferen-te seria “prestigiar a incongruência”62.

Com efeito, conforme verificou Antonio Moreira Maués63, em que pese o sTF ter adotado a tese da supralegalidade, os efeitos da sua decisão proferida no Re 466.343 foram muito semelhantes aos que decorreriam da adoção da tese da constitucionalidade material.

Isso porque a constituição expressamente prevê a hipótese da prisão civil do depositário infiel que era regulada por lei infraconstitucional. Com o novo entendimento do sTF em 2008, a convenção Americana de Direitos humanos passou a ter status de norma supralegal, revogando as disposições contidas na lei infraconstitucional que regulamentava o permissivo constitucional da prisão civil do depositário infiel.

contudo, não poderia contrariar dispositivo da constituição. então perma-necia o impasse de saber se era ou não permitida a prisão civil por dívida do de-positário infiel, visto ser essa modalidade de prisão compatível com a CRFB/1988 e incompatível com a cADh. A solução encontrada pela suprema corte foi in-terpretar a constituição Federal com base no que disciplinava a cADh, isto é, passou-se a ser proibida a modalidade de prisão civil do depositário infiel, tendo o sTF, inclusive, editado uma súmula vinculante a respeito64.

61 Ibidem, p. 60.62 Ibidem, p. 75.63 maués, op. cit., p. 33.64 Súmula Vinculante nº 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a

modalidade do depósito”.

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Portanto, o que se sucedeu foi que, embora tenha se adotado a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, o próprio sTF passou a interpretar a cRFB/1988 com base nos diplomas internacionais65, dando aplicabilidade ao princípio pro homine, ou seja, adotando o entendimento jurídico que seja mais benéfico ao ser humano.

observa-se, então, que, mesmo que não tenha adotado a tese da natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, a decisão profe-rida pelo sTF foi salutar e de grande importância para o avanço da garantida dos direitos previstos nestes diplomas, mormente considerando que em determina-das situações a própria constituição pode vir a ser interpretada “à luz” destes.

Diante deste cenário, outro aspecto relevante, além de definir o nível hie-rárquico dos tratados internacionais de direitos humanos, é o de incluir as dis-posições da CADH com integralidade, isto é, além de ratificar, incorporar e de-terminar o seu status normativo, o estado-membro deve acatar a “interpretação internacional sobre estes direitos”66.

No caso da cADh, compete à corte IDh interpretar seus direitos, deven-do os estados-membros, como o Brasil, adotar a interpretação feita por essa cor-te, inclusive por já ter aceitado a sua jurisdição desde 1998.

Nesse particular, assevera André de carvalho Ramos67 que “não seria ra-zoável, por exemplo, que, ao julgar a aplicação de determinado artigo de Conven-ção Americana de Direitos Humanos, o sTF optasse por interpretação não acolhida pela própria corte Interamericana de Direitos humanos, abrindo a possibilidade de eventual sentença desta corte contra o Brasil”.

De fato, não se mostra plausível que os estados-membros atribuam uma interpretação dos dispositivos da cADh diversa daquela adotada pela própria corte IDh, que é a intérprete máxima da convenção e que exerce o verdadeiro controle de convencionalidade, isto é, analisam a validade das normas internas de um determinado estado-parte em face das disposições da cADh.

65 Acerca do assunto, valiosas são as palavras de Antonio moreira maués (2013, p. 34): “A análise da decisão do caso do depositário infiel evidencia que, apesar das diferenças entre a tese da constitucionalidade e da supralegalidade, ambas as hipóteses abrem a possibilidade que a constituição – e não apenas as leis infraconstitucionais – seja interpretada de maneira compatível com os tratados internacionais de direitos humanos”.

66 Ramos, op. cit., p. 22.67 Ibidem, p. 24.

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corrobora com esse entendimento Antonio moreira maués68, para quem o dinamismo criado com o desenvolvimento dos sistemas regionais de proteção não pode ser ignorado pelos sistemas nacionais, razão pela qual estes devem cumprir com as decisões proferidas por aqueles no que tange à aplicação dos tra-tados internacionais. E, considerando o entendimento firmado pela Corte IDH, os próprios juízes e tribunais devem fazer um prévio controle de convencionali-dade.

2.2 o controle de convencionalidade no Brasil

conforme dito no capítulo anterior, fomentar a cultura jurídica orientada pelo controle da convencionalidade é uma das dificuldades encontradas para de-senvolver o diálogo entre a jurisdição regional da corte Interamericana de Direi-tos humanos e o sistema nacional, no intuito de fortalecer a proteção de direitos humanos69.

Acerca desse assunto, assevera valerio de oliveira mazzuoli70 que o tri-bunal internacional somente deveria realizar o controle de convencionalidade após manifestação dos juízes e tribunais internos, isto é, “as cortes internacionais somente controlarão a convencionalidade de uma norma interna caso o Poder Judiciário de origem não tenha controlado essa mesma convencionalidade, ou a tenha realizado de maneira insuficiente”.

o referido controle interno sobre a convencionalidade das normas nacio-nais é de suma importância para a aplicação e efetivação dos direitos previs-tos nos diplomas internacionais. Nesse particular, já se manifestou a corte IDh proferindo o seguinte entendimento defendido no caso Almonacid Arellano e outros vs. chile, julgado em 26.09.200671:

124. La Corte es consciente que los jueces y tribunales internos están sujetos al imperio de la ley y, por ello, están obligados a aplicar las disposiciones vigentes en el ordena-miento jurídico. Pero cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convención no se vean mermadas por la aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que desde un inicio carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial

68 maués, op. cit., p. 43.69 Piovesan, op. cit., p. 406.70 mazzuoli, op. cit., p. 90-91.71 Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>,

p. 53. Acesso em: 7 nov. 2014.

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debe ejercer una especie de “control de convencionalidad” entre las normas ju-rídicas internas que aplican en los casos concretos y la convención Americana sobre Derechos humanos. En esta tarea, el Poder Judicial debe tener em cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana. (grifou-se)

Assim, a corte IDh propõe que seja realizado um controle difuso de con-vencionalidade nos estados-membros, isto é, todos os juízes e tribunais devem verificar a compatibilidade da norma local em relação tanto à Constituição Fede-ral quanto aos tratados de direitos humanos.

Para George Rodrigo Bandeira Galindo72 esse posicionamento perfilha-do pela corte IDh pode ser perigoso em certos casos, na medida em que, se for obrigatório que os juízes e tribunais adotem normas dos tratados de direitos humanos, bem como decisões proferidas em relação a outro país, sob pena de desencadear a responsabilidade internacional do estado, “pode gerar situações flagrantes de injustiça ou grande instabilidade social”, e continua: “Impor o cum-primento de tais decisões leva adiante a ideia (também kelseniana) de que se existe uma soberania, ela é única e pertence ao direito internacional”.

Todavia, não se propõe que a utilização das decisões da corte IDh seja obrigatória sob pena de responsabilidade internacional do Brasil, mas sim que haja um diálogo entre as decisões proferidas naquela corte e as proferidas pelo Poder Judiciário brasileiro.

Isso porque o controle de convencionalidade realizado pelos juízes e tri-bunais pátrios deve sempre ter em mente o princípio pro homine, isto é, adotar a norma que seja mais favorável ao indivíduo, e, se a decisão proferida pela corte não for adequada (o que é difícil acontecer, mas não impossível), os juízes inter-nos não devem utilizá-la como razão de decidir, devendo, sim, aplicar o direito de acordo com as normas internas, sem que isso implique responsabilidade in-ternacional do estado.

ora, a própria cADh, por exemplo, dispõe em seu art. 29.b que nenhu-ma norma da própria convenção pode limitar o gozo e o exercício de qualquer direito ou liberdade previsto em qualquer lei de qualquer estado-parte, razão pela qual não se mostra razoável responsabilizar estado-parte que tão somente não utilizou decisão previamente proferida pela corte. Deve-se analisar o caso

72 GAlINDo, George Rodrigo Bandeira. o valor da jurisprudência da corte Interamericana de Direitos humanos. In: GAlINDo, George Rodrigo Bandeira; uRueÑA, René; PÉReZ, Aida Torres (coord.). Proteção multinível dos direitos humanos. manual Dhes. Red de Direitos humanos e educação superior, 2014. p. 251.

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concreto diante do qual foram postos os tribunais e ver se foi ou não aplicada a norma que assegure maior proteção ao direito da pessoa humana, e, somente após a análise dos documentos e argumentos, se verificaria se o Estado deve ou não ser responsabilizado.

com efeito, ressalte-se que, se for responsabilizado, não o será por não ter adotado como razão de decidir jurisprudência firmada pela Corte, mas sim por ter desrespeitado a convenção Americana de Direitos humanos. A utilização da jurisprudência da corte ajudaria a evitar possível responsabilização por descum-primento, registre-se mais uma vez, da convenção.

Destarte, aqui compartilhamos da proposição feita por André de carvalho Ramos73, de “um diálogo entre as cortes”, uma vez que tanto o sTF quanto a corte IDh têm por dever garantir o respeito à dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais.

Portanto, mostra-se plausível e necessária a convergência das decisões proferidas pelo sTF e da corte IDh, mas sempre em atenção ao princípio pro homine. Assim,

a postura do sTF será plenamente condizente com os compromissos interna-cionais de adesão à jurisdição internacional de direitos humanos assumidos pelo Brasil, superando a tradicional fase da “ambiguidade”, na qual o Brasil ra-tifica os tratados de direitos humanos, mas não consegue cumprir seus comandos normativos interpretados pelos órgãos internacionais.74

com efeito, ainda se mostra difícil encontrar no sTF, por exemplo, reper-cussão das decisões e opiniões consultivas fornecidas pela corte IDh. conforme aduz André de carvalho Ramos75, no ordenamento jurídico interno não se pro-cura saber qual a interpretação dada pela corte IDh a determinada disposição da convenção Americana de Direitos humanos, embora o Brasil tenha aceitado a jurisdição deste tribunal internacional desde 1998. então, urge que os Tribunais brasileiros verifiquem a interpretação dada pela Corte IDH quando demandados sobre direitos garantidos na cADh.

No caso das condições carcerárias não é diferente. Acerca dessa situação, a corte IDh já proferiu sentença contra honduras, a qual deve ser estudada pela suprema corte brasileira, visto que, como dito anteriormente, tanto o sTF quanto

73 Ramos, op. cit., p. 25.74 Ibidem, p. 26.75 Ibidem, p. 847.

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a própria corte IDh já foram acionados para decidir quanto às situações de pre-sídios brasileiros que se encontram em condições precárias e desumanas.

um estudo de como um diálogo entre as decisões dessas duas cortes pode funcionar será analisado no tópico seguinte.

3 o caso Pacheco terUeL vs. honDUras e o stf

Conforme afirmado anteriormente, os presídios brasileiros carecem de condições dignas de vida. Por essa razão, o Brasil e os seus agentes têm sido demandados nacional e internacionalmente para que promovam a reparação dos danos causados aos detentos que vivem sob as condições precárias, desumanas e degradantes que o sistema penitenciário do País lhes oferece.

com efeito, o sTF já foi acionado por via de Recurso extraordinário nº 580.252 (no qual reconheceu a sua repercussão geral) e, recentemente, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5170 proposta pelo con-selho Federal da ordem dos Advogados do Brasil76, para que se posicione acerca do tema.

A referia ADI 5170 visa dar interpretação conforme a constituição aos arts. 43, 186 e 927, todos do código civil (lei nº 10.406/2002), para que o sTF declare que o estado é civilmente responsável pelos danos morais causados aos detentos quando os submete à prisão em condições subumanas, insalubres, de-gradantes ou de superlotação.

o motivo pelo qual o conselho Federal da oAB ingressou com a ação foi o fato de que o sTJ77 vem adotando entendimento contrário ao aqui defendido, isto é, embora reconheça a existência de condições violadoras dos direitos humanos impostas aos presos, acredita que indenizar os detentos implicaria em reduzir os investimentos no sistema penitenciário, o que seria inviável.

ocorre que, como bem mencionado na petição inicial da referida ADI, nem os detentos estão sendo indenizados, nem o estado está investindo em melhorias

76 A ADI 5170 foi ajuizada no dia 20.10.2014. ver petição inicial disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/consultarProcessoeletronico.jsf?seqobjetoincidente=4655662>.

77 A petição inicial da ADI 5170 faz menção aos embargos de Divergência em Recurso especial nº 962.934/ms. cumpre registrar que, embora essa tenha sido a orientação seguida pelo sTJ, o entendimento não é unânime, visto que, como indicado anteriormente, o próprio sTJ já decidiu pela possibilidade de responsabilização do estado em face das precárias condições dos estabelecimentos prisionais no Resp 1.051.023/RJ, voto-vista do ministro Teori Albino Zavascki.

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do sistema penitenciário do País. Portanto, necessário se faz que o estado seja responsabilizado pelos danos causados aos presos em razão das péssimas condi-ções de vida, ou, melhor, de sobrevivência dos estabelecimentos prisionais.

Assim, imprescindível é a intervenção do sTF para que nasça uma “‘cons-ciência dos direitos do detento e de sua tutela’, idônea a realizar o princípio pelo qual o ‘cárcere não deve ser lugar de opressão ou de degradação da personalida-de, mas lugar em que a pessoa, respeitada como tal, cumpre uma pena legalmen-te aplicada’” (p. 16 da petição inicial da ADI 5170).

A responsabilização do estado nesse caso será útil, inclusive, para efetivar os investimentos públicos nos presídios, já que é melhor aplicar recursos nos presídios garantindo a todos condições dignas de vida, do que pagar indenização por danos morais a todos os presos do País que se encontrem nessa situação.

Destarte, como já mencionado, a corte IDh, no caso Pacheco Teruel e ou-tros vs. honduras78, determinou a responsabilização do estado pela morte de 107 presos devido a um incêndio desencadeado por meio de um curto-circuito do sistema elétrico que ficava exposto aos detentos da cela nº 19 do Centro Penal de são Pedro sula.

o caso foi primeiramente submetido à comissão Interamericana de Direi-tos humanos em 14 de julho de 2005 pelas organizações: Pastoral Penitenciária, Caritas Sampedrana e Equipe de Reflexão, e Investigação e Comunicação “ERIC”. em 17 de outubro de 2008, a cIDh aprovou o Relatório de Admissibilidade nº 78/08 e no dia 22 de outubro de 2010 emitiu o Relatório de Fundo nº 118/10, de acordo com o art. 50 da CADH, notificando o Estado de Honduras a informar sobre o cumprimento das recomendações no prazo de dois meses. contudo, o estado de honduras permaneceu inerte, razão pela qual a cIDh logo submeteu o caso à corte IDh em 11 de março de 2011, em virtude da necessidade de obter justiça, bem como uma justa reparação.

De acordo com a cIDh, o referido caso se relaciona com a responsabilida-de internacional do estado pela morte de 107 detentos, em 17 de maio de 2004, na cela nº 19 do centro Penal de são Pedro sula, como resultado direto de uma série de deficiências estruturais presentes no mencionado centro penitenciário, as quais eram de conhecimento das autoridades competentes. A cIDh indicou que os internos falecidos eram membros de “maras” (gangues), os quais eram mantidos isolados do resto da população carcerária e confinados em um recinto

78 Disponível em: <http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_241_esp.pdf>. Acesso em: 14 out. 2014.

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inseguro e insalubre. Indicou, também, que a deficiência estrutural é do próprio sistema penitenciário hondurenho como um todo.

A cIDh solicitou, então, a declaração de violação dos arts. 1.1 (obriga-ção de respeitar os direitos), 2 (dever de adotar disposições de direito interno), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade física), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 9 (princípio da legalidade e da retroatividade) e 25 (proteção judicial) da convenção Americana de Direitos humanos.

com efeito, em 28 de fevereiro de 2012, durante a audiência pública do caso, as partes apresentaram ao Tribunal um acordo de solução amistosa, ce-lebrado entre o estado de honduras e os representantes das vítimas. A cIDh, por sua vez, manifestou sua conformidade com esse acordo na mesma audiência pública. No referido acordo, o estado reconheceu sua responsabilidade inter-nacional, os atos e as violações que foram descritos no Relatório de Fundo da comissão Interamericana de Direitos humanos, restando acordadas as medidas de reparação para o caso.

Averiguou-se que, como indicado pela cIDh, o sistema penitenciário hon-durenho apresentava diversas deficiências estruturais. Isso porque os centros pe-nais deste país encontravam-se superlotados, insalubres e contaminados, o que provocava desacordo entre os detentos, bem como antagonismos e enfrentamen-tos. Além disso, as instalações elétricas, de água potável e sanitárias, entre outras, estavam arruinadas. Afirma a sentença que o sistema penitenciário hondurenho se apresenta em estado de “emergência penitenciária”.

o centro Penal de são Pedro sula tinha capacidade de abrigar 1.500 (mil e quinhentos) detentos, porém no momento do incêndio alojava 2.081 (dois mil e oitenta e um) internos. Portanto, as revoltas e os conflitos eram recorrentes no presídio. observa-se, assim, que todos os problemas estruturais existentes nesse estabelecimento penal foram acentuados em razão da superlotação nesse local.

A sentença registra, também, que os internos controlavam o centro penal, o que, de certo modo, era permitido pelas autoridades penitenciárias que não supervisionavam a introdução de armas e bombas no local, colocando em risco a população carcerária e, inclusive, seus visitantes.

As condições do sistema elétrico do estabelecimento prisional de são Pedro sula também eram deploráveis e representavam um risco latente de in-cêndio. A pessoa encarregada da manutenção das instalações elétricas era um dos internos. Infelizmente, essa situação era de conhecimento das autoridades do centro. soma-se a isso o fato de que o diretor do centro penal autorizava a entrada de aparelhos eletrodomésticos, sem, no entanto, averiguar a quantidade exata dos bens que estavam na posse dos detentos.

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Especificamente em relação à cela nº 19, onde ocorreu o incêndio que vi-timou 107 detentos dos 183 indivíduos ali reclusos, notou-se que havia internos com idades que oscilavam entre 18 a 40 anos, bem como que havia presos provi-sórios e condenados.

o espaço físico da cela era de 200 metros quadrados e, considerando que havia 183 internos nessa cela, cada um tinha, aproximadamente, 1 metro quadra-do, para dividir, ainda, com as camas e os eletrodomésticos. Não havia ventilação natural e toda a iluminação era artificial. A cela apresentava apenas uma única porta de saída que era a mesma porta de entrada.

Diante das precárias condições habitacionais da cela nº 19 (e de todo o estabelecimento prisional), no dia 17 de maio de 2004 houve uma sobrecarga no sistema elétrico do local, em virtude do excesso de aparelhos conectados, geran-do um curto-circuito e dando início ao incêndio no local. Devido à demora na abertura da porta da cela, que, como dito, era a única saída daquele recinto, 107 detentos vieram a óbito.

Assim, considerando que o estado de honduras reconheceu sua respon-sabilidade internacional no caso, a Corte IDH apenas ratificou quais foram os direitos violados, a fim de consignar e reafirmar seu posicionamento nesse caso. Portanto, no tópico das “considerações da corte a respeito dos arts. 4, 5, 7, 9, 8 e 25 em relação com os arts. 1.1 e 2 da convenção Americana”, restou consignado que o estado se encontra em uma posição especial de garante em relação às pes-soas privadas de sua liberdade, devendo proporcionar a elas condições dignas de vida.

A corte IDh estabeleceu, em conformidade com os arts. 5.1 e 5.2 da cADh, que toda pessoa privada de liberdade tem o direito de viver em condi-ções de detenção compatíveis com a sua dignidade pessoal. Ademais, o estado deve garantir o direito à vida e a integridade pessoal daquelas pessoas privadas de liberdade, em razão de que aquele se encontra em posição especial de garante em relação a essas pessoas, porque as autoridades penitenciárias exercem um controle total sobre essas áreas.

Afirma, ainda, que, ante essa relação e interação especial de sujeição en-tre o interno e o estado, este último deve assumir uma série de responsabilida-des particulares e tomar diversas iniciativas especiais para garantir aos reclusos as condições necessárias para desenvolver uma vida digna e contribuir para o gozo efetivo daqueles direitos que, em nenhuma circunstância, podem ser restringidos ou daqueles cuja restrição não deriva necessariamente da privação de liberdade.

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Além disso, a corte IDh já incorporou em sua jurisprudência as principais normas sobre as condições carcerárias79 e o dever de prevenção que o estado deve garantir em favor dos detentos, quais sejam (p. 21-22 da sentença):

a) a superlotação constitui em si mesma uma violação à integridade pes-soal, bem como obstaculiza o normal desempenho das funções essen-ciais nos centros penitenciários;

b) uma separação por categorias deve ser realizada entre os processados e os condenados, entre os menores e os adultos, com o objetivo de que os presos recebam tratamento adequado a sua condição;

c) todo preso terá acesso à água potável para consumo e água para uso pessoal; a falta de água potável constitui falta grave do estado para com seus deveres de garantia dos direitos dos detentos;

d) a alimentação fornecida, nos centros penitenciários, deve ser de boa qualidade e deve ter valor nutritivo suficiente;

e) o atendimento médico deve ser proporcionado regularmente, forne-cendo tratamento adequado que seja necessário e a cargo de pessoal médico especializado quando o caso requeira;

f) a educação, o trabalho e a recreação são funções essenciais dos centros penitenciários, as quais devem ser fornecidas a todas as pessoas priva-das de liberdade com o fim de lhe promover a reabilitação e a readap-tação social dos internos;

g) as visitas devem ser garantidas nos centros penitenciários. A reclusão com um regime de visitas restrito pode ser contrária à integridade pes-soal em determinadas circunstâncias;

79 As normas que embasaram sua decisão encontram-se na nota de rodapé nº 60, conforme segue: “60. Cfr. ONU, Reglas mínimas para el tratamiento de los reclusos. Adoptadas por el Primer Congreso de las Naciones Unidas sobre Prevención del Delito y Tratamiento del Delincuente, celebrado en Ginebra en 1955, y aprobadas por el Consejo Económico y Social en sus resoluciones 663C (XXIV) de 31 de julio de 1957 y 2076 (LXII) de 13 de mayo de 1977; ONU, Conjunto de Principios para la protección de todas las personas sometidas a cualquier forma de detención o prisión. Adoptado por la Asamblea General de la ONU en su Resolución 43/173, de 9 de diciembre de 1988; ONU, Reglas de las Naciones Unidas para la protección de los menores privados de libertad. Adoptadas por la Asamblea General de la ONU en su Resolución 45/113 de 14 de diciembre de 1990. Ver también: ONU, Observación General nº 21 del Comité de Derechos Humanos. 10 de abril de 1992. A/47/40/(SUPP), Sustituye la Observación General nº 9, Trato humano de las personas privadas de libertad (art. 10): 44º período de sesiones 1992, y CIDH, Principios y buenas prácticas sobre la protección de las personas privadas de libertad en las Américas. Adoptados durante el 131º Período de Ordinario de Sesiones, celebrado del 3 al 14 de marzo de 2008”.

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h) todas as celas devem contar com luz natural ou artificial, ventilação e adequadas condições de higiene;

i) os serviços sanitários devem contar com condições de higiene e priva-cidade;

j) os Estados não podem alegar dificuldades financeiras para justificar condições de detenção que não cumpram com as mínimas normas in-ternacionais e que não respeitem a dignidade inerente ao ser humano;

k) as medidas disciplinares que constituam trato cruel, desumano ou de-gradante, inclusos os castigos corporais, a reclusão em isolamento pro-longado, assim como qualquer outra medida que pode por em grave perigo a saúde física e mental do recluso são estritamente proibidas.

Portanto, a decisão da corte IDh apresenta importante entendimento acerca da responsabilidade do estado em casos das péssimas condições carce-rárias, a qual é de grande valia para o avanço na proteção dos direitos humanos dos detentos, bem como para o sTF, que deverá enfrentar essa questão em breve.

Assim, o sTF, considerando a responsabilidade objetiva do estado em face da custódia de presidiários, bem como as normas constitucionais, o status pri-vilegiado da cADh e as decisões da corte IDh a respeito do tema, deve julgar procedente a ADI 5170, a fim de assegurar e garantir os direitos humanos dos detentos, visto que são direitos inerentes a todos os seres humanos.

concLUsÃo

As teorias da responsabilidade civil do Estado nos levam a entender que, no caso de guarda de pessoas perigosas, como são as pessoas privadas de liber-dade, o Poder Público deve responder objetivamente pelos danos causados aos internos nos estabelecimentos prisionais, admitindo como excludente de respon-sabilidade tão somente a força maior, porém desde que o estado tenha adotado mecanismos preventivos em relação a eventos da natureza que são prováveis de ocorrer.

Portanto, nos casos de lesão em decorrência das péssimas condições de sobrevivência das casas penais, o estado deve ser responsabilizado a pagar uma indenização justa aos internos até que consiga assegurar e promover o desenvol-vimento de uma vida digna dentro das penitenciárias.

Diante dos relatórios apresentados pelo conselho Penitenciário da supe-rintendência Penitenciária do estado do Pará, percebe-se que os estabelecimen-tos prisionais do Pará se transformaram em verdadeira pena de tortura para os detentos, pois vivem sem estruturas básicas para uma vida digna, como, por

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exemplo, alimentação, saúde, lazer, privacidade e higiene, e a superlotação gera, também, a proliferação de doenças entre os internos.

No que tange às péssimas condições das casas penais, a corte IDh já se pronunciou condenando o estado de honduras ao ressarcimento dos danos cau-sados aos detentos que, em virtude dessas péssimas condições, vieram a óbito. Referida decisão deve ser adotada pelo supremo Tribunal Federal, que recente-mente vem sendo instigado a se posicionar acerca do tema. Isso porque o Brasil é signatário da convenção Americana sobre Direitos humanos, bem como já reco-nheceu a competência da corte Interamericana de Direitos humanos.

contudo, ainda se observa uma timidez na utilização das decisões da cor-te IDH pelo STF. O diálogo entre as decisões dessas cortes encontra certa difi-culdade, em razão da necessidade de definição do status normativo dos tratados internacionais, bem como da realização de um controle de convencionalidade pelos tribunais e juízes locais.

Embora o STF já tenha afirmado que o status de um tratado tem natureza supralegal, observou-se que na prática ele apresenta efeitos semelhantes aos que decorreriam da adoção da natureza constitucional dos tratados, uma vez que a própria constituição pode vir a ser interpretada à luz das disposições contidas nos tratados, como a cADh, por exemplo.

com efeito, registrou-se, neste trabalho, a importância da natureza cons-titucional dos tratados de direitos humanos, visto que esses diplomas tratam de direitos inerentes à condição de ser humano, bem como a própria constituição Federal traz dispositivos que implicam nessa interpretação, como o seu art. 5º, § 2º.

conforme entendimento proferido pela corte IDh, os tribunais e juízes internos devem fazer um prévio controle de convencionalidade, isto é, devem analisar o direito local em comparação com a CADH e verificar se há violação dos dispositivos desse diploma, sempre em atenção à interpretação já feita pela corte IDh, que é o órgão competente para tanto.

Isso permite uma maior abertura ao diálogo entre as decisões da corte IDh e do sTF, necessária, inclusive, para que a suprema corte do país concretize um de seus deveres que é a garantia do respeito à dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.

Assim, considerando que o sTF ainda não se pronunciou acerca do tema, inclusive foi demandado por meio da ADI 5170 a firmar seu entendimento, mis-ter que adote como razão de decidir as interpretações dadas pela corte IDh a casos semelhantes, visto ser a atitude que mais assegure os direitos dos cidadãos.

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TeReZo, cristina Figueiredo. Sistema interamericano de direitos humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. curitiba: Appris, 2014.

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Diretrizes De PUBLicaÇÃo e avaLiaÇÃo De artigos

1) Das normas Para PUBLicaÇÃo

1.1 o envio de material editorial para a Revista de Estudos Criminais pressupõe a aceitação das diretrizes de publicação e avaliação de artigos. Da mesma for-ma, implica a cessão dos direitos autorais do material enviado para a Revista de Estudos Criminais. uma vez enviado o material, cabe à Revista decidir as características editoriais e gráficas, os modos de distribuição e disponibiliza-ção bem como a data em que o artigo será veiculado. A única contraprestação financeira pela cessão dos direitos autorais será o envio ao autor de um exem-plar da Revista em que o seu trabalho for publicado. em caso de artigo em coautoria, cada coautor receberá um exemplar. A Revista de Estudos Criminais fica autorizada a proceder modificações e correções para a adequação do tex-to às normas de publicação.

1.2 os textos enviados para a Revista de Estudos Criminais deverão ser inéditos no Brasil, levando em consideração qualquer forma de publicação impressa e/ou digital, sendo vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.

1.3 o envio dos artigos deverá ser realizado unicamente por correio eletrôni-co. os trabalhos deverão ser endereçados diretamente à Diretoria da Revis-ta, para o endereço eletrônico [email protected]. Recomenda-se que os textos sejam enviados em arquivos de editor de texto com as extensões *.doc, *docx, *.rtf ou *.odt. Textos em formatos que não permitem modificações, a exemplo do Portable Document Format (extensão *.pdf), não serão aceitos.

1.4 os artigos preferencialmente devem possuir o máximo de 03 autores, sendo pelo menos um deles portador do título de doutor. considerando o alto grau de exogenia (mínimo de 75%), artigos de autores oriundos do Rio Grande do sul não possuem prioridade de publicação.

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1.5 os artigos deverão ser enviados com uma folha de rosto na qual constem os dados pessoais do autor. Os dados exigidos são: nome completo; qualificação (incluindo a universidade, instituto ou fundação ao qual o autor esta vincula-do); endereço completo; telefone; endereço eletrônico.

1.6 os trabalhos deverão ter de 12 a 20 páginas. casos excepcionais serão anali-sados pela Diretoria da Revista, no controle preliminar. Deverá ser utilizada a fonte Times New Roman, tamanho 12, no corpo do texto. Ainda, deverá ser utilizado espaçamento entrelinhas de 1,5, com margens superior e inferior 2,0 cm e laterais 3,0 cm. A formatação do tamanho do papel deverá ser A4 e o texto deverá estar justificado.

1.7 os textos poderão estar em língua portuguesa, espanhola, italiana ou inglesa.

1.8 No que pertine à qualificação do autor, deverá ser iniciada por suas titulações acadêmicas e atividade de magistério, informando a existência de possível vínculo com algum órgão financiador. Em seguida, deverá ser complementa-da pelas atividades jurídicas práticas do autor.

1.9 os textos deverão ser precedidos de um resumo de 05 a 10 linhas. Deverá constar uma versão do título e do resumo em língua portuguesa e uma em língua inglesa.

1.10 os trabalhos deverão ser precedidos, ainda, de 04 a 06 palavras-chaves, as quais devem constar também em língua inglesa, e de um sumário nume-rado.

1.11 As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/2002 (Norma Brasileira da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT – Anexo I). As referências devem ser citadas em notas de rodapé ao final de cada página de maneira uniforme.

1.12 caso o autor queira dar destaque ao texto, deverá utilizar itálico e não negri-to ou sublinhado. o uso de aspas deverá ser feito para a citação de outros autores.

1.13 No que concerne à referência legislativa, não há necessidade da citação do diploma legal, seja no rodapé, seja na bibliografia ao final do texto.

1.14 A Diretoria da Revista de Estudos Criminais não se compromete a efetuar complementação dos requisitos de publicação não atendidos. os trabalhos enviados sem o atendimento às normas de publicação da Revista não serão aceitos.

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Revista de estudos CRiminais 68 diRetRizes de PubliCação e avaliação de aRtigos JaneiRo/maRço 2018

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2. Da anáLise e seLeÇÃo Dos traBaLhos

2.1 os trabalhos serão analisados e avaliados, tanto em forma, como em conteú-do, pelo Comitê Científico da Revista de Estudos Criminais.

2.2 Recebido o trabalho pela Diretoria da Revista, o autor será imediatamente informado, presumindo-se a cessão de seus direitos autorais e a aceitação das diretrizes de publicação e avaliação de artigos. será realizado um controle preliminar formal dos trabalhos anterior à avaliação por pares.

2.3 A avaliação será realizada pelo sistema de pareceres double-blind peer-review. Para tanto, será suprimido do texto qualquer elemento que possa identifi-car o autor e, após, o trabalho será enviado para dois pareceristas anônimos, membros do Comitê Científico da Revista de Estudos Criminais. os pareceristas poderão aprovar o texto, não aprovar ou aprovar com ressalvas.

2.4 Os pareceres anônimos ficarão à disposição do autor, que será informado do resultado da avaliação e das recomendações para adequação do texto em caso de aprovação com ressalvas.

2.5 em caso de haver dois pareceres discordantes sobre a publicação do trabalho, o texto será encaminhado para um terceiro parecerista.

2.6 sendo o artigo aprovado sem ressalvas, ou realizada a adequação do texto pelo autor em caso de aprovação com ressalvas, a Diretoria da Revista avalia-rá a pertinência e a oportunidade para a publicação. A decisão final sobre a publicação do texto será da Diretoria da Revista de Estudos Criminais.

2.7 A par do sistema de pareceres double-blind peer-review, em casos excepcionais, a Diretoria da Revista poderá aceitar trabalhos de autores convidados quando considerar sua contribuição científica de grande relevância para o tema em questão.

2.8 A Diretoria da Revista de Estudos Criminais ficará à disposição dos auto-res para qualquer queixa e/ou esclarecimento sobre a publicação ou não de seus trabalhos. o contato deverá ser feito, sempre, pelo endereço eletrônico: [email protected].

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