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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes Introdução à questão do progresso em Augusto Comte Matheus Ichimaru Bedendo São Paulo 2019

O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

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Page 1: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas

O Comte republicano e a crítica

positivista das Luzes

Introdução à questão do progresso em Augusto Comte

Matheus Ichimaru Bedendo

São Paulo

2019

Page 2: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes
Page 3: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

Matheus Ichimaru Bedendo

O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes: introdução à

questão do progresso em Augusto Comte

Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação em

Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de

São Paulo para obtenção do título de mestre

Área de concentração:

Filosofia

Orientador:

Prof. Sérgio Cardoso

São Paulo

2019

Page 4: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação da publicação

Serviço de Biblioteca e Documentação

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Ichimaru, Matheus

I 426 c O Comte republicano e a crítica positivista das

Luzes: introdução à questão do progresso em Augusto

Comte / Matheus Ichimaru ; orientador Sérgio

Cardoso. – São Paulo, 2019.

147 f.

Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da Universidade de São

Paulo. Departamento de Filosofia. Área de

concentração: Filosofia.

1. Augusto Comte. 2. republicanismo francês. 3.

positivismo. 4. Progresso. I. Cardoso, Sérgio,

orient. II. Título.

Page 5: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

ICHIMARU, Matheus. O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes: introdução à questão do

progresso em Augusto Comte. Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação em

Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo.

Aprovado em: ____ /____ /________

Banca examinadora

Professor(a): ____________________ Instituição: ______________________

Julgamento: ____________________ Assinatura: ______________________

Professor(a): ____________________ Instituição: ______________________

Julgamento: ____________________ Assinatura: ______________________

Professor(a): ____________________ Instituição: ______________________

Julgamento: ____________________ Assinatura: ______________________

Page 6: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes
Page 7: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

ICHIMARU, Matheus. O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes: introdução à questão do

progresso em Augusto Comte. 2019. 147 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

Resumo: Partindo do “revivalismo republicano”, este trabalho tem por objetivo lançar as bases de uma investigação a respeito da “deriva ideológica” do pensamento republicano na França desde a Revolução, no final do século dezoito, até a consolidação da Terceira República, na segunda metade do século dezenove. Tomando a questão do progresso como fio-condutor de nossa investigação, pretendemos mostrar que o positivismo de Augusto Comte – base de sustentação filosófica da Terceira República –, ao elaborar sua crítica da noção de “perfectibilidade indefinida” – herdada das Luzes e, mais especificamente, de Condorcet –, a um só tempo (i) põe fim a uma querela que norteou a reflexão filosófica a respeito dos “progressos do espírito humano” desde o final do século dezoito; e (ii) fornece ao século dezenove um novo paradigma para pensar doravante o “desenvolvimento da humanidade”. Para isso, no entanto, nos esforçamos aqui em (i) justificar uma leitura republicana de Augusto Comte; (ii) esclarecer os sentidos e a indeterminação do pensamento republicano francês em que o autor se inscreve; e (iii) analisar o estatuto epistemológico da filosofia positiva a partir da crítica que faz aos dogmas da filosofia das Luzes – metafísica e revolucionária, aos seus olhos.

Palavras-chave: Augusto Comte; republicanismo francês; positivismo; progresso.

ICHIMARU, Matheus. The republican Comte and the positivist critique of Enlightenment: introduction

to the notion of progress in Auguste Comte. 2019. 147 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

Abstract: Departing from the “republican revival”, this work aims to settle the basis for an investigation about the “ideological drift” of republican thought in France since the Revolution, at the end of eighteenth-century, up to the consolidation of the Third Republic, at the second half of nineteenth-century. Taking the notion of progress as the guiding line of our investigation, we intend to show that Auguste Comte’s positivism – philosophical bedrock of Third Republic – in developing his critique of the “unlimited perfectibility” notion – inherited from Enlightenment and more specifically from Condorcet –, at the same time (i) put an end in a quarrel that guided the philosophical debate concerning “the progress of human mind” since the end of eighteenth-century; and (ii) gives nineteenth-century a new paradigm to think henceforth the “development of humanity”. To that end, nevertheless, we shall concentrate our efforts (i) on justifying a republican interpretation of Auguste Comte; (ii) on elucidating the meanings and the indetermination of the French republican thought in which the author is framed; and (iii) on analyzing the epistemological status of positive philosophy based on the critique that it develops towards the dogmas of Enlightenment philosophy – metaphysical and revolutionary, in its perspective.

Key-words: Auguste Comte; French republicanism; positivism; progress.

Page 8: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

ICHIMARU, Matheus. Le Comte républicain et la critique positiviste des Lumières : introduction à la

question du progrès chez Auguste Comte. 2019. 147 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

Résumé : En partant du « revivalisme républicain » ce travail a pour but de lancer les bases d’une recherche sur la « dérive idéologique » de la pensée républicaine en France depuis la Révolution, à la fin du dix-huitième siècle, jusqu’à la consolidation de la Troisième République, à la seconde moitié du dix-neuvième siècle. En envisageant la question du progrès comme fil-conducteur de notre recherche, on souhaite montrer que le positivisme d’Auguste Comte – base de sustentation philosophique de la Troisième République – en développant sa critique de la notion de « perfectibilité indéfinie » – héritée des Lumières et plus spécifiquement de Condorcet – en même temps (i) met fin à une querelle qui a guidée les réflexions philosophiques concernant les « progrès de l’esprit humain » depuis la fin du dix-huitième siècle ; et (ii) fournit au dix-neuvième siècle un nouveau paradigme pour penser désormais le « développement de l’humanité ». Pour cela, cependant, on s’efforcera ici pour (i) justifier une lecture républicaine d’Auguste Comte ; (ii) élucider les sens et l’indétermination de la pensée républicaine française à laquelle l’auteur s’inscrit ; (iii) examiner le statut épistémologique de la philosophie positive à partir de la critique qu’elle fait aux dogmes de la philosophie des Lumières – métaphysique et révolutionnaire, à son avis.

Mots-clés : Auguste Comte ; républicanisme français ; positivisme ; progrès.

Page 9: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

Para Santo e Darlene

que seguraram todas as pontas

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Page 11: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

Abreviações

Para as obras de Augusto Comte, as seguintes abreviações serão adotadas.

Sommaire Sommaire appréciation de l’ensemble du passé moderne (1820).

Plan Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société (1822).

CPSS Considérations philosophiques sur la science et les savants (1825).

CPS Considérations sur le pouvoir spirituel (1826).

Examen Examen du traité de Broussais sur l’irritation (1828). Os cinco textos acima serão citados a partir da edição brasileira dos Opúsculos de filosofia social.

EJ Écrits de jeunesse.

CPP Cours de philosophie positive (1830-42). Os tomos I, II, III, V e VI serão citados a partir da edição Hermann de 1975. Em especial, o tomo IV será citado a partir da edição Hermann de 2012.

Esprit Discours sur l’esprit positif (1844). Citado a parir da edição Vrin de 1990.

Ensemble Discours sur l’ensemble du positivisme (1848). Citado a partir da edição de 1851 do Sistema de política positiva, em que o texto é republicado como “discurso preliminar”.

SPP Système de politique positive (1851-54).

CG Correspondance générale et confessions.

Cat Catéchisme positiviste (1852).

SS Synthèse subjective (1856).

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A verdade, meu amor, mora num poço

é Pilatos lá na Bíblia quem nos diz

que também faleceu por ter pescoço

o autor da guilhotina de Paris

Vai, orgulhosa, querida

mas aceita esta lição:

no câmbio incerto da vida

a libra sempre é o coração

O amor vem por princípio, a ordem por base

o progresso é que deve vir por fim

desprezaste esta lei de Augusto Comte

e foste ser feliz longe de mim

Noel Rosa, Positivismo

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Sumário

Agradecimentos ....................................................................................................... 17

Introdução. Da perfectibilidade ao progresso: o itinerário filosófico do

republicanismo francês ........................................................................................... 22

1. Augusto Comte e o positivismo: um problema de exegese ........................... 36

1.1. A escrita comtiana ............................................................................................................................... 36

1.2. As leituras do positivismo .................................................................................................................. 43

1.2.1. Caricatura e espantalho: os problemas interpretativos .......................................................... 44

1.2.2. Friedrich Hayek: o positivismo como prefiguração do totalitarismo .................................. 49

1.2.3. Herbert Marcuse: o positivismo como apologia do capitalismo .......................................... 54

1.3. Em direção a uma leitura republicana de Augusto Comte ........................................................... 60

2. Comte republicano .............................................................................................. 63

2.1. Ser republicano na França pós-revolucionária ................................................................................ 63

2.1.1. República indeterminada ............................................................................................................ 64

2.1.2. O bem comum e a questão social ............................................................................................. 69

2.1.3. A propriedade como cerne da questão social .......................................................................... 73

2.2. O positivismo e a Terceira República .............................................................................................. 79

2.3. O republicanismo do jovem Comte ................................................................................................. 85

3. O positivismo e as Luzes ................................................................................... 90

3.1. Fundamentos epistemológicos do positivismo .............................................................................. 90

3.1.1. A lei dos três estados e a enciclopédia positivista ................................................................... 92

3.1.2. O espírito geral da metafísica ..................................................................................................... 96

3.1.3. O relativismo epistemológico .................................................................................................... 98

3.2. Positivismo crítico das Luzes ......................................................................................................... 107

3.2.1. A crítica da liberdade de consciência ..................................................................................... 109

3.2.2. A crítica da igualdade ............................................................................................................... 118

3.2.3. A crítica da soberania do povo ............................................................................................... 122

Considerações finais .............................................................................................. 125

Bibliografia ............................................................................................................. 130

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Agradecimentos

Este trabalho (que, agora vejo, apenas se inicia) começou a ser concebido no segundo

semestre de 2013. De lá para cá, carrega uma enorme dívida intelectual com Newton

Bignotto. Foi ele quem nos introduziu ao assunto quando o interesse pelo republicanismo

francês era ainda um misto de empolgação com o revivalismo republicano e um desejo

difuso de passar alguns meses em Paris, cursando um semestre letivo na Sorbonne. Seus

textos nos deram o caminho das pedras. Refiro-me, em primeiro lugar, ao capítulo do

Matrizes do republicanismo em que Bignotto trata especificamente do republicanismo

francês: fora nossa primeiríssima leitura a respeito do assunto. Desde então, não parei

mais de perturbá-lo. Perturbei-o primeiro quando esteve em São Paulo, a convite de

Sérgio Cardoso, proferindo algumas conferências a respeito do Renascimento italiano no

curso de pós-graduação de seu amigo e colega, no segundo semestre de 2013. Às minhas

esbaforidas indagações, suscitadas pela leitura de seu texto, Bignotto respondeu, ao longo

de algumas horas, com paciência e clareza características, ao final das quais me disse, com

modéstia: “Rapaz, você sabe que boa parte das perguntas que está me fazendo eu tentei

responder num livro que lancei recentemente...”.

Ele se referia ao As aventuras da virtude: as ideias republicanas na França do século XVIII,

resultado, segundo nos conta nos agradecimentos do livro, de um semestre sabático1 no

Centre de Recherches Politiques Raymond Aron, da École de Hautes Études en Sciences

Sociales, em Paris. Sua leitura me virou de cabeça para baixo. Lá o autor nos mostra quem

1 Que o público em geral não se surpreenda, mas, nos dias de hoje, é bastante comum que pesquisadores tirem “semestres sabáticos” para trabalhar.

Page 18: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

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(girondinos e jacobinos) foram os responsáveis por formular e ventilar as ideias

republicanas na França revolucionária e a partir de quais fontes teóricas (sobretudo

Montesquieu e Rousseau) se consolidaram o “léxico” e a “gramática” republicanas dos

revolucionários franceses. Embarquei para Paris com um projeto de pesquisa definido a

partir das diretrizes teórico-metodológicas fornecidas por Bignotto em seus textos (e

tendo em meu horizonte suas sugestões e insinuações).

Uma vez na Sorbonne, e sob a supervisão do professor Serge Audier, a quem dirijo aqui

também os mais sinceros agradecimentos, dediquei-me ao estudo de Condorcet e da

relação de seu pensamento com o ideário republicano francês. A escolha do autor, como

sede das investigações à época, veio como sugestão dos trabalhos de Bignotto e dos

apoios historiográficos por ele utilizados (que rapidamente foram também incorporados

à bibliografia de meu projeto). Àquela altura, Condorcet representava para mim uma

espécie de elo para compreender, na França, a passagem do republicanismo do século

dezoito ao republicanismo do século dezenove. A um só tempo, o entendia como o

“último dos philosophes” – segundo as famosas palavras de Jules Michelet – e como o

“predecessor imediato” do fundador do positivismo – como o próprio Augusto Comte

não se cansou de repetir. A questão do progresso, como fio condutor de minha

investigação, surgiu quase que naturalmente do diálogo travado entre Augusto Comte e

a filosofia condorcetiana, em seu Curso de filosofia positiva.

De volta ao Brasil, a pesquisa realizada na França serviu como ponto de partida para a

elaboração do projeto de mestrado que submeti, ainda no segundo semestre de 2015, à

avaliação do programa de pós-graduação do departamento de Filosofia da USP, e que

resulta agora nesta dissertação. Ao longo dos anos, muitas pessoas contribuíram, direta

ou indiretamente, para que esta pesquisa se tornasse possível. Devo a elas, portanto, os

meus mais sinceros agradecimentos. Em primeiro lugar, aos amigos queridos: Bruna,

Vitinho, Pedrão, Jorge, Ivanzito, Rafa, Michel, Juliana Martone, Thiago, Nathalia,

Carioca, Braga, as Marias (Sette e Aguilera), Juliana Giannini, João Pace, Sylvia, Ernst,

Mateus Toledo, Vitão, Mathinho, Melissa, Theus, Luana, Gui, Alline e tantos outros (que

é capaz que eu esteja esquecendo...), os meus mais sinceros agradecimentos pelo afeto e

pelas longuíssimas e intermináveis conversas que a um só tempo me distraíram e

formaram ao longo desses anos.

Page 19: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

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Penso que um agradecimento especial ao staff da Tia Bia, local em que esse grupo de

“iluminados” se reuniu com tamanha insistência e disciplina ao longo dos anos, deve ser

aqui também registrado. A quantidade de cigarros, cafés, pães de queijo, risadas, choros,

brigas, discussões, reconciliações, “chaves de Schwarz” e impropérios testemunhados

pelas abelhas, malucos habitués e guarda-sóis instáveis desta simpática cantina renderia,

talvez, um livro – seguramente não um bom livro, mas um no qual estariam depositadas

as nossas memórias e ao qual voltaríamos sempre com o coração aquecido.

À Laís, sou grato pelos tantos anos de companheirismo e por ter compartilhado comigo

o sentido do amor quando éramos jovens demais para entender o que ele era. À Adriana,

agradeço pela parceria intelectual e na militância política, pelo tempo em que nossas almas

se tocaram e pelas utopias compartilhadas que naquele momento nos fizeram sentido.

Por fim, à Milena, que me ensinou milhões de coisas, sou grato por corrigir minhas

vírgulas (literal e metaforicamente), por me deixar brincar com seu gato e por

ressignificar, em seu (agora um pouco meu) mundo de fantasia, todo tubinho de Eparema

e todo Toddynho que aparecesse pela frente.

Agradeço também à minha família, em especial meus pais e meu irmão, pelo apoio

incondicional que sempre me deram. A meus pais sou grato, sobretudo, por terem

reconhecido que o trabalho intelectual é, afinal de contas, trabalho, e que por detrás da

aparente “vida mansa” dos trabalhadores de gabinete, frequentemente fechados em suas

“torres de marfim”, se esconde um regime de dedicação e disciplina que não é de todo

modo desprezível. Agradeço-os também por terem frequentemente me liberado dos

inconvenientes da vida cotidiana, com grande generosidade, permitindo assim que eu

perseguisse, sem embaraço, objetivos comumente referidos apenas aos “bacanas”.

À Fabiane Secches e (sempre) à Luci Toqueci, meus agradecimentos mais ternos por

terem cuidado da minha saúde quando o mundo pareceu muito cinza ou simplesmente

insuportável.

Ao Sérgio Novaes, ao Pedro Mercadante, ao Eduardo Gregoris, à Sandra Padula e a toda

a equipe por eles comandada no SPRACE (São Paulo Research and Analysis Center)

preciso agradecer por terem não apenas me ensinado física de partículas, mas também

por terem contribuído para o desenvolvimento em mim da vocação para a pesquisa

acadêmica séria e compromissada. Talvez eles não saibam – e, talvez, até pouco tempo

nem eu mesmo soubesse – o quanto aqueles anos de iniciação científica (apesar de

Page 20: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

20

interrompidos depois) acabaram sendo decisivos para a consolidação de algumas

convicções a respeito mesmo do que eu gostaria de fazer da vida. À época, parecia ser a

física de altas energias. Por mais que não fosse – e o tempo se encarregou de mostrar que

não era – trago ainda hoje comigo muitos dos aprendizados que tive nas salas do Instituto

de Física Teórica, da saudosa Rua Pamplona, e, depois, da Rua Dr. Teobaldo Bento

Ferraz, no campus novo da Barra Funda.

Devo agradecê-los ainda pelas oportunidades e pelas portas abertas. Fora nos meses de

janeiro e fevereiro de 2010, em algum dos vários momentos contemplando o Monte Jura,

que paradoxalmente me dei conta de que estava no lugar onde sempre quisera estar, mas

que também era hora de trilhar novos caminhos. Agradeço especialmente ao Sérgio

Novaes pela compreensão e pelo acolhimento que deu à minha decisão de largar a física

e prestar novamente vestibular, dessa vez em filosofia. Lembro ainda hoje, saudoso, das

palavras que me dirigiu à época, e embora ele estivesse errado quanto às suas suposições,

penso ter sido muito importante escutá-las com atenção naquele momento.

À Marilena Chaui e (uma vez mais) ao Newton Bignotto, sou grato por terem aceito o

convite para participar da banca de qualificação deste trabalho: tê-los como interlocutores

– e o frio na barriga por tê-los como interlocutores – penso ter sido extremamente

importante para o amadurecimento da pesquisa. Ao Pedro Paulo Pimenta, à Angela

Alonso e ao Alexandre Carrasco agradeço pelos comentários e críticas que fizeram a meu

trabalho (que agora incorporo a essa versão corrigida) e, naturalmente, por terem aceito

o convite (em data bastante ingrata) para estar na banca de minha defesa. Agradeço, em

especial, ao Pedro Paulo pelo “iconoclasta”; à Angela pela censura e pelo rigor

cebrapianos; ao Alexandre pelas provocações marxistas e por ter corrigido meus “posto

que”.

Ao Ruy Fausto, grande especialista em Dr. Burdin, agradeço pela recepção e pela

companhia em Paris quando lá estive, numa quinzena de rara alegria, conhecendo a Casa

de Augusto Comte e seu acervo (e revisitando lugares da cidade outrora tão queridos ou

ainda desconhecidos). Agradeço-o também por ter me posto em contato com

especialistas em minha área de estudo, como é o caso de Juliette Grange, a quem sou

também profundamente agradecido pelos comentários e críticas que fez a esta pesquisa.

Ao Jean-Fabien Spitz, preciso agradecer pelas longas horas de conversa nas duas ocasiões

em que nos encontramos em São Paulo, nas quais pudemos discutir pontos bastante

Page 21: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

21

específicos do projeto inicial deste trabalho. Agradeço-o também pela generosidade e

pelo acolhimento cortês que sempre nos destinou (a mim e a esta pesquisa), indicando-

nos bibliografias, apresentando-nos a novos autores, redigindo cartas de recomendação,

etc. Ao Paulo Sérgio Pinheiro, agradeço por ter me emprestado um livro, com sua natural

generosidade e quando isto não era absolutamente necessário (o qual, se ele ainda estiver

de acordo, pretendo não mais devolver).

Por fim, ao Sérgio Cardoso, que não apenas orientou este trabalho, mas também me

orientou neste trabalho, sou grato por uma infinidade de coisas, difíceis de sintetizar aqui

(noto agora o quão difícil é mesmo agradecê-lo: o risco do sentimentalismo sopesado

pelo da ingratidão). Sou grato, em primeiro lugar, por ter me feito acreditar que o tempo

e a “paciência do conceito” ainda têm lugar na universidade nos dias de hoje; que há algo

do trabalho que fazemos que verdadeiramente fica, a despeito dos “critérios objetivos”,

tão necessários à boa governança do ambiente acadêmico, mas que por vezes nos

sufocam e tendem a engessar o livre espírito de pesquisa. Agradeço-o também por não

se conformar, por seguir acreditando (junto ao que há de melhor da tradição uspiana)

que o trabalho que conduzimos no interior da universidade não se desconecta do político

e do social. Sou grato, enfim, pela confiança, pela paciência, pela generosidade, pelos

ensinamentos, pelas tantas portas abertas, pelos conselhos, pelas reprimendas discretas,

pelas aprovações silenciosas e por tentar me fazer parar de fumar. Sou grato, sobretudo,

porque veio antes, e àqueles que vêm antes, me parece devido o nosso agradecimento

sincero. Há algo no Sérgio que sempre me encantou e que nunca soube ao certo o que

era. Penso hoje que por trás de sua aparente insistência em não se modernizar (apenas

aparente, pois não há ninguém mais moderno que o Sérgio) talvez tenha se conservado

algo que não se vê com tanta frequência nos dias de hoje: não sei bem se o espírito de

uma universidade que apenas existiu no passado ou se a centelha de uma outra que ainda

pode vir a existir no futuro.

À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior) e à Maison

Internationale d’Auguste Comte sou grato pelo apoio financeiro que me deram durante

a pesquisa.

Page 22: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

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Introdução. Da perfectibilidade ao progresso: o itinerário filosófico do republicanismo francês2

Na abertura de seu já célebre trabalho, A ideia republicana na França, Claude Nicolet nos

diz, numa longa passagem: “A França é uma República. Mas a República não é a França,

visto que, em sua história recente há pelo menos dois séculos, a França foi também uma

monarquia absoluta de direito divino; dois impérios; duas monarquias constitucionais;

um “Estado”; isso sem falar dos períodos em que ela não foi nada, vivendo sob governos

provisórios ou revolucionários. A França é uma República, mas dela conheceu-se

oficialmente ao menos cinco diferentes, numeradas como os prenomes de seus reis. [...]

De uma a outra, ainda que a cada vez o novo ordinal se apresentasse prontamente como

um retorno às origens, como o restabelecimento de uma legitimidade interrompida, ele

significou também mudanças na inspiração doutrinal e na prática institucional. A

República é, portanto, múltipla e avança encoberta. Ela se transformou duas vezes num

“Império”, por um encadeamento que alguns julgavam inevitável. Mais tarde, aliás, a de

nome Terceira se fez também imperial, num sentido um pouco diferente, pela conquista

colonial. [...] Tivemos as Repúblicas girondina, montanhesa, termidoriana, diretorial,

cesarista, imperial. Uma república dos duques, mas também (para esmiuçar os títulos de

livros célebres) uma República dos camaradas, dos comitês, dos professores, dos

2 Uma primeira versão deste texto foi apresentada, em Vitória no Espírito Santo, no encontro da Anpof (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia) de 2018, no grupo de trabalho “Rousseau e o Iluminismo”. Agradeço aos membros do GT e aos colegas que lá estiveram pela disposição em debatê-la e criticá-la comigo.

Page 23: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

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deputados; temos a República no vilarejo, a República rural, aquela da Comuna de Paris;

as Repúblicas conservadoras, oportunistas, liberais, radicais, democráticas; uma

República burguesa, mas também outras, sociais ou socialistas: a noiva é realmente muito

bela”3.

Se no plano institucional, pelas mais variadas razões, diversos regimes pretenderam

esposar a República, no plano das ideologias os pretendentes foram sempre mais

escassos. Bonapartistas, orleanistas, liberais e socialistas, das mais variadas tendências,

apesar das alianças táticas com os republicanos (a depender da conjuntura enfrentada),

recusaram por muitas vezes o epíteto de “republicano”4. Com efeito, a busca por um

sentido mais restrito para esse vocábulo se mostra, em nosso ver, menos árdua do que

aquela que intenciona fazer o mesmo para o caso de “República”. Seu campo semântico,

apesar de menos extenso, é, no entanto, ainda bastante complexo e nuançado.

Acreditamos que uma boa estratégia para conferir significado ao republicanismo francês

consista em acompanhar, junto às filosofias que lhe serviram de suporte teórico, a

evolução conceitual de seu vocabulário político. Nesse sentido, é preciso, de início,

identificar e isolar os principais atores políticos e intelectuais responsáveis pela produção

e ventilação dos ideais republicanos na França. O recorte temporal aqui utilizado é o que

vai da véspera da Revolução até a consolidação da Terceira República, isto é, da segunda

metade do século dezoito até a segunda metade do século dezenove (um período de

praticamente cem anos). A matriz francesa de pensamento republicano que se consolida

ao longo desse período pode ser subdividida, esquematicamente, em duas outras

menores: uma de fundo iluminista, que nutriu os discursos e as ações de girondinos e

jacobinos nos primeiros anos da Revolução5; e uma outra de fundo positivista, que

desempenhou papel análogo para os fundadores da Terceira República (Émile Littré,

Léon Gambetta, Jules Ferry, etc.)6.

Descendo ao plano estritamente filosófico do republicanismo francês, acreditamos que a

questão do progresso é aquela que, ao mesmo tempo, une e separa suas matrizes

iluminista e positivista – o progresso seria, portanto, a grande questão filosófica do

3 Claude Nicolet, L’idée républicaine en France (1789-1924): essai d’histoire critique, Paris, Gallimard, 1994, p. 9-10. 4 Ver Pamela Pilbeam, Republicanism in nineteenth-century France (1814-1871), Londres, Macmillan, 1995. 5 Ver Newton Bignotto, As aventuras da virtude: ideias republicanas na França do século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2010. 6 Ver Claude Nicolet, op. cit., p. 187 e ss.

Page 24: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

24

republicanismo na França, no período aqui considerado. Une, no sentido em que o

positivismo de Augusto Comte, a grande “filosofia da ação”7 dos fundadores da Terceira

República, retoma a questão do progresso tal como ela havia sido formulada por

Condorcet – o “soldado avançado” do iluminismo na Revolução –, em seu famoso Esboço

de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Separa, por outro lado, na medida em

que, a partir de Augusto Comte, os “progressos do espírito humano”, ou, mais

precisamente, o Progresso, no singular, não será mais pensado em termos da

perfectibilidade, conceito caro e central para a filosofia das Luzes, mas em termos apenas

do desenvolvimento.

Condorcet, ainda no prólogo de seu Esboço, nos diz, a respeito dos objetivos de sua obra,

que um quadro dos progressos do espírito humano “se forma pela observação sucessiva

das sociedades humanas nas diferentes épocas por elas percorridas. Ele deve, [portanto],

apresentar a ordem das mudanças, expor a influência que exerce cada instante sobre

aquele que o sucede e mostrar, assim, a partir das modificações recebidas pela espécie

humana ao se renovar incessantemente em meio à imensidão dos séculos, a marcha por

ela seguida, os passos por ela dados na direção da verdade ou da felicidade. Estas

observações, a respeito daquilo que o homem foi, a respeito daquilo que ele é hoje em

dia, conduzirão, em seguida, aos meios de assegurar e de acelerar os novos progressos

que sua natureza permite ainda esperar”8.

Se estes são os objetivos da obra de Condorcet (concebida sob as mais precárias

condições, enquanto o filósofo fugia de uma ordem de prisão expedida pelo Comitê de

Salvação Pública em 1794, durante o Terror jacobino), seus resultados, segundo

adiantados pelo autor também no prólogo a que nos referimos acima, consistem em

mostrar “pelo raciocínio e pelos fatos que não se marcou nenhum termo ao

aperfeiçoamento das faculdades humanas; que a perfectibilidade do homem é realmente

indefinida; que os progressos desta perfectibilidade, doravante independente de todo

poder que desejasse impedi-los, não têm outro termo senão a duração do globo em que

a natureza nos lançou. Sem dúvida, estes progressos poderão seguir uma marcha mais ou

menos rápida, mas ela jamais será retrógrada; ao menos enquanto a terra ocupar o mesmo

lugar no sistema do universo e enquanto as leis gerais desse sistema não produzirem sobre

7 A expressão é de Claude Nicolet, op. cit., p. 187. 8 Condorcet, Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, Paris, Flammarion, 1988, p. 80.

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25

este globo nem uma perturbação geral nem mudanças que impeçam a espécie humana

de nele se conservar, desenvolver as mesmas faculdades e encontrar os mesmos

recursos”9.

Os progressos de que nos fala Condorcet no Esboço “não são os dos homens, segundo

assinala Catherine Kintzler, mas os da espécie humana abstrata, do ‘espírito humano’

considerado como um objeto teórico”10. É por essa razão, ainda segundo a comentadora,

que Condorcet poderá afirmar, logo após ter reconhecido que sua marcha nunca pode

ser retrógrada, que “os progressos do espírito [humano] nem sempre foram seguidos do

progresso das sociedades em direção à felicidade e à virtude” 11 , sem que isto

necessariamente implique em contradição. Opondo-se a Rousseau, Condorcet irá afirmar

que a “passagem turbulenta e penosa de uma sociedade grosseira ao estado de civilização

dos povos esclarecidos e livres não é de forma alguma uma degeneração da espécie

humana, mas uma crise necessária em sua marcha gradual na direção de seu

aperfeiçoamento absoluto”12. Com efeito, para Condorcet, “não é o aumento das Luzes,

mas a sua decadência, que produziu os vícios dos povos policiados; e, [...] longe de os

corromper, elas [as Luzes] os fizeram mais dóceis, quando não puderam corrigi-los ou

transformá-los”13.

Ainda segundo Kintzler, a chave para a compreensão da formulação condorcetiana dos

progressos do espírito humano reside na ideia da “massa das verdades”14. “‘O espírito

humano’, nos diz a comentadora, não designa, portanto, nem uma realidade empírica

nem uma realidade psicológica; o termo nos remete a uma realidade epistemológica, a

um conjunto de procedimentos”15. A “massa das verdades”, segundo esta interpretação,

seria, portanto, “um conceito cuja substância se encontra depositada nos volumes da

Enciclopédia”16, e se, por um lado, ela aumenta sem jamais poder retroceder, o mesmo não

se verifica para o caso das inteligências humanas particulares, que permanecem, de forma

geral, estacionadas. “O vigor, a extensão real das cabeças humanas permanecerá a mesma;

mas os instrumentos que elas podem empregar serão multiplicados e aperfeiçoados; mas

9 Idem, ibidem, p. 81. 10 Catherine Kintzler, Condorcet: l’instruction publique et la naissance du citoyen, Paris, Minerve, 2015, p. 83. 11 Condorcet, op. cit., p. 102. 12 Idem, ibidem. 13 Idem, ibidem, p. 103. 14 Ver Catherine Kintzler, op. cit., p. 84. 15 Catherine Kintzler, op. cit., p. 84. 16 Idem, ibidem.

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26

a língua que fixa e determina as ideias poderá adquirir maior precisão, maior generalidade;

mas, ainda que na mecânica não se possa aumentar a força senão diminuindo a

velocidade, estes métodos, que dirigirão o gênio na descoberta das novas verdades,

aumentarão igualmente a força e a rapidez das suas operações”17.

Condorcet, com seu Esboço, vinculou de vez a ideia da perfectibilidade (doravante

indefinida), que ele reconhece ter tomado de Turgot18 e retrabalhado a seu modo, com a

tradição republicana e revolucionária francesa. Se o neologismo inventado por Rousseau

havia sido longamente debatido, a partir dos mais variados pontos de vista, por

praticamente todos os autores do iluminismo francês (mas não apenas francês), a partir

de Condorcet uma certa direção (ou uma certa inclinação política) foi preferencialmente

fixada. Condorcet deu o tom da discussão e acabou por atrair e simultaneamente afastar

de si partidários da República e defensores do Antigo Regime, respectivamente. Na

esteira deste debate, já num contexto de arrefecimento da Revolução e de fortalecimento

das forças conservadoras reunidas em torno de Napoleão Bonaparte, Germaine de Staël

publica, em 1800, o Da literatura considerada em suas relações com as instituições sociais, um

verdadeiro encômio do “sistema de perfectibilidade”, como a autora faz questão de frisar.

A reação é rápida e massiva: em jornais conservadores, em sua maioria católicos,

fervilham artigos hostis à obra de Staël.

Florence Lotterie, lembrando as palavras de Rœderer, sem, no entanto, citá-lo, se refere

a esse momento (em alusão explícita à querela dos antigos e dos modernos) como “a

querela da perfectibilidade”19. “A querela, nos diz a comentadora, é de início uma disputa

17 Condorcet, op. cit., p. 278. 18 Ver, sobretudo, os discursos proferidos (em latim) por Turgot na abertura e no encerramento das sorbônicas de 1750: Anne-Robert-Jacques Turgot, Discours sur les avantages que l’établissement du christianisme a procurés au genre humain e Tableau philosophique des progrès successifs de l’esprit humain, in: ______, Œuvres de Turgot et documents le concernant, v. 1, Paris, Félix Alcan, 1913, p. 194-214, p. 214-35. A título de curiosidade: as sorbônicas eram uma das três teses que os bacharéis eram obrigados a defender presencialmente ao longo de sua licence na Sorbonne. “A origem das sorbônicas, nos explica Bachaumont (a autoria do texto é controversa), vem de um certo cordelier [nome dado aos franciscanos estabelecidos na França] que, tendo sido reprovado em uma das teses, pediu para entrar em disputa e sustentar a discussão contra qualquer um que passasse, a respeito de qualquer assunto, das oito horas da manhã até às oito horas da noite; desde então, todo candidato é obrigado a passar por este exercício, muito conveniente ao peito de um cordelier, mas que se abrandou por aquilo que se chama a sopa; são duas horas de intervalo que se concede ao candidato para almoçar; mas, então, qualquer um sobe ao púlpito e luta para manter a assembleia aquecida; esta espécie de ginástica teológica se renova a cada dois anos por um discurso de gala”, Louis Petit de Bachaumont, Mathieu-François Pidansat Mairobert e Barthélemy-François-Joseph Mouffle d’Angerville, Mémoires secrets pour servir à l’histoire de la république des lettres en France, depuis MDCCLXII jusqu’à nos jours ou Journal d’un observateur, v. 19, Londres, John Adamson, 1794, [§ 16 Juillet 1770], p. 200. 19 Ver Florence Lotterie, Progrès et perfectibilité: un dilemme des Lumières françaises (1755-1814), Oxford, Voltaire Foundation, 2006, p. 137.

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27

de palavras, num momento em que se generaliza a constatação de que são numerosas

aquelas que perderam sua inocência durante o episódio montanhês”20. A interpretação

do Terror jacobino como um momento de grave crise da linguagem, segundo nos lembra

Lotterie, fora praticamente unânime no círculo de Coppet, do qual Staël fez ativamente

parte. “A perfectibilidade da espécie humana, nos diz Staël, se tornou objeto de sorrisos

indulgentes e zombeteiros por parte de todos aqueles que encaram as ocupações

intelectuais como uma espécie de imbecilidade do espírito e que levam em conta apenas

as faculdades que se aplicam instantaneamente aos interesses da vida”21.

A referência às “faculdades que se aplicam instantaneamente aos interesses da vida” não

é gratuita. Staël sabe da complexidade de sua tarefa: defender as Luzes, ao mesmo tempo

afastando-as (do ponto de vista político) do Terror jacobino e (do ponto de vista

filosófico) do sensualismo e do materialismo. “A condenação da perfectibilidade,

prossegue Lotterie em sua análise, repousa, com efeito, em parte sobre a condenação da

filosofia das Luzes, restrita, pelas necessidades da polêmica, ao ‘sensualismo’ de Condillac

e Helvétius: antropologia estreita e imoral, afirmam seus inimigos, incapaz de imputar os

progressos do espírito humano a outra coisa que não a busca egoísta da satisfação das

necessidades!”22

Duas críticas exemplares da obra de Staël, determinantes para a consolidação da querela

da perfectibilidade, são as publicadas por Louis de Fontanes e por François-René de

Chateaubriand no Mercure de France, ainda no ano de 1800. Os dois extratos de Fontanes23

e a carta de Chateaubriand a ele endereçada, para além do argumento misógino,

assemelham-se pela estratégia de rebaixar a filosofia dos modernos empoderando o

coração e desvinculando os progressos da ciência (que ambos prontamente reconhecem)

dos progressos morais ou sociais. “[O] primeiro erro [dos partidários do sistema de

perfectibilidade], nos diz Fontanes, vem de que eles confundem incessantemente os

progressos das ciências naturais com os da moral e da arte de governar. [...] Os

procedimentos, os novos instrumentos, sem dúvida conduziram as ciências modernas a

um patamar que de outra forma não poderiam atingir. Disso deve-se concluir que em

20 Florence Lotterie, op. cit., p. 137-8. 21 Germaine de Staël, De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, Paris, Flammarion, 1991, p. 406-7. 22 Florence Lotterie, op. cit., p. 138. 23 Em sua carta a Fontanes, Chateaubriand fala, em nota, de três (e não apenas dois) extratos críticos de seu interlocutor a respeito da obra de Staël. Não localizamos este que seria o terceiro extrato da série, apenas os dois primeiros. É possível, contudo, que o próprio autor tenha se equivocado.

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28

todo o resto raciocinamos de forma mais justa que os antigos porque somos melhores

geômetras e melhores físicos? Não, sem dúvida”24. A querela da perfectibilidade, como

se vê, não deve ser pensada de forma apartada da querela dos antigos e dos modernos,

mas, talvez mais adequadamente, como mais um de seus capítulos.

“Evitemos, portanto, prossegue Fontanes, calcular os progressos da razão humana e das

instituições sociais com base nos [progressos] das matemáticas e da física. Algumas artes

forneceram ao homem braços e olhos adicionais para movimentar os corpos e alcançar

as extremidades do céu; mas elas não acrescentaram molas à nossa alma, não

aperfeiçoaram de forma alguma o instinto ou descobriram novos sentimentos. [...] em

tudo aquilo que não concerne às ciências exatas, nada justifica o orgulho da sabedoria

moderna quando ela se pretende superior à sabedoria da antiguidade”25.

Se Fontanes opta por exaltar a eloquência e a poesia dos antigos, “as criações as mais

brilhantes e as mais duráveis”26, Chateaubriand, por sua vez, adotará estratégia diferente:

ao invés de afirmar, como faz Fontanes, que “o coração do homem [...] não muda de

forma alguma”27, permanecendo sempre o mesmo em todas as épocas, Chateaubriand

assentirá à tese staëliana de que o “nosso teatro [dos modernos] é superior ao teatro

antigo; [e que] essa superioridade decorre de um estudo mais aprofundado do coração

humano”28. No fundo, o próprio autor nos diz, Chateaubriand pretende mostrar “como

dois espíritos, partindo de dois pontos opostos, chegam por vezes aos mesmos

resultados”29. O autor, portanto, reconhece a superioridade dos modernos, não apenas

nas ciências naturais, mas também na literatura e no campo da moralidade; mas ao invés

de atribuir esse avanço do conhecimento do coração e da sensibilidade poética à filosofia,

como faz Staël, Chateaubriand afirmará que é à religião e mais especificamente ao

cristianismo que se deve nossa superioridade em comparação com os antigos. “Minha

loucura, reconhece o autor, é ver Jesus Cristo por toda parte, assim como a de Mme. de

Staël é ver a perfectibilidade”30.

24 Louis de Fontanes, De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, par Madame de Staël-Holstein: premier extrait, Mercure de France, n. 1, 1800, p. 21-2. 25 Idem, ibidem, p. 24. 26 Idem, ibidem, p. 22. 27 Idem, ibidem. 28 François-René de Chateaubriand, Lettre a M. de Fontanes sur la IIe édition de l’ouvrage de Mme. de Staël, in: ______, Œuvres complètes de M. le vicomte de Chateaubriand, v. 14, Paris, Ladvocat, Libraire, 1827, p. 285. 29 Idem, ibidem. 30 Idem, ibidem, p. 284-5.

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29

Este é, portanto, o pano de fundo sobre o qual se desenrola, nas primeiras décadas do

século dezenove, a discussão a respeito dos progressos do espírito e da perfectibilidade

humana. O debate prossegue31, sobretudo (mas não apenas) no Círculo de Coppet e entre

os Ideólogos, representantes conjuntos de uma espécie de tardo iluminismo ou pré-

positivismo (as fronteiras entre as duas tradições se encontram borradas e em

constituição nesse momento). Num escrito, muito provavelmente de 180532, intitulado

Da perfectibilidade da espécie humana, Benjamin Constant desenvolve os argumentos de sua

amiga Germaine de Staël a respeito do “sistema de perfectibilidade”, numa visada agora

acentuadamente liberal. Num outro, publicado em três memorandos, entre 1833 e 1835,

na Revue Encyclopédique33 e intitulado posteriormente Da doutrina da perfectibilidade, Pierre

Leroux se aventura também no assunto, mas agora de uma perspectiva marcadamente

socialista (o autor é considerado por muitos o inventor do socialismo 34 , inicialmente

concebido apenas em oposição ao que ele nomeia individualismo35).

É possível entrever, a partir destes escritos, o alcance (tanto temporal como ideológico)

e o destino do conceito de perfectibilidade no século dezenove. A respeito de seu destino,

cumpre também enfatizar o papel determinante desempenhado por Augusto Comte no

sepultamento do conceito. Segundo Bertrand Binoche, a “perfectibilidade é, com efeito,

uma palavra da qual não apenas o surgimento se pode datar com precisão – em Rousseau

e Grimm, em 1755 –, mas também o desaparecimento – se se admite que Comte foi o

31 É preciso enfatizar que, mesmo antes da publicação do Da literatura..., alguns outros textos tiveram papel decisivo na constituição do caldo de cultura em que a querela da perfectibilidade, protagonizada por Staël e seus detratores, fora fermentada. A Investigação sobre a justiça política e sua influência na moral e na felicidade, publicada por William Godwin em 1793, é também, ainda que noutra direção, um capítulo importante deste transcurso (boa parte, por exemplo, das reflexões de Benjamin Constant a respeito do assunto vem do diálogo com o texto de Godwin, que o autor verteu para o francês). Ver William Godwin, Enquiry concerning political justice and its influence on morals and happiness, 2 vol., Londres, J. Watson, 1842 e Benjamin Constant, De Godwin et de son ouvrage sur la justice politique, in: ______, Écrits politiques, Paris, Gallimard, 1997, p. 679-88. Entre os Ideólogos, por sua vez, podemos encontrar, em 1799, um texto de Cabanis, publicado no jornal La Décade philosophique, intitulado Carta sobre uma passagem da ‘Décade philosophique’ e em geral sobre a perfectibilidade do espírito humano, em que o autor, chamando a atenção dos editores do jornal, coloca os partidários da perfectibilidade do espírito humano (que ele filia a Bacon, Buffon, Price, Smith, Priestley, Turgot e Condorcet) em franca oposição aos “defensores oficiais dos preconceitos”. Ver Cabanis, Lettre sur un passage de la ‘Décade philosophique’ et en général sur la perfectibilité de l’esprit humain, in: ______, Œuvres philosophiques de Cabanis, v. 2, Paris, PUF, 1954, p. 512-9. 32 Ver Benjamin Constant, Écrits politiques, Paris, Gallimard, 1997, p. 846, nota 1. 33 Ver o “aviso dos editores” em Pierre Leroux, De la doctrine de la perfectibilité, in: ______, Œuvres de Pierre Leroux (1825-1850), v. 2, Paris, Louis Nétré, Éditeur, 1851, p. 2. 34 Ver Bruno Viard, Anthologie de Pierre Leroux: inventeur du socialisme, Paris, Éditions Le Bord de l’Eau, 2007. 35 Ver Pierre Leroux, De l’individualisme et du socialisme, in: ______, De l’égalité, précédé de De l’individualisme et du socialisme, prefácio de Bruno Viard, Genebra, Éditions Slatkine, 1996, p. 39-72.

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30

seu coveiro, em 1838, na 48ª lição do Curso de filosofia positiva, depois da qual o termo, ao

menos entre os filósofos, praticamente não parece ter sido mais operante”36.

Binoche se refere à crítica da perfectibilidade indefinida elaborada por Augusto Comte

no quarto tomo de seu Curso de filosofia positiva (obra maior da “carreira científica” do

autor) e à mudança decisiva de vocabulário por ela operada. Ainda em sua 47ª lição,

Augusto Comte, referindo-se às “lacunas especulativas” do Esboço de Condorcet, nos fala

“destas vagas e irracionais concepções de perfectibilidade indefinida, nas quais [a]

imaginação [do autor], desprovida de qualquer guia ou de qualquer freio científicos,

emprestados das verdadeiras leis fundamentais da natureza humana, se entrega à vã

contemplação das esperanças as mais quiméricas e mesmo as mais absurdas”37. Augusto

Comte tem em mente substituir a doutrina da perfectibilidade herdada das Luzes por

uma “teoria positiva do progresso social, que, recusando todo vão pensamento a respeito

da perfectibilidade absoluta e ilimitada, deve naturalmente se reduzir à simples noção

deste desenvolvimento fundamental”38 – desenvolvimento esse que o autor compreende

como o movimento contínuo da sociedade (ou da humanidade).

A querela da perfectibilidade, que expusemos aqui de forma abreviada, foi seguramente

conhecida (apesar de não sabermos em que grau de extensão e de profundidade) por

Augusto Comte, mas prontamente recusada. No entendimento do autor, uma sociologia

dinâmica deve se limitar apenas a “estudar o incontestável desenvolvimento contínuo da

humanidade, [...] sem se pronunciar, de forma alguma, sobre a famosa questão do

aperfeiçoamento da humanidade”39, esta “vaga controvérsia metafísica sobre o aumento da

felicidade do homem nas diversas épocas da civilização”40. A recusa por completo da

querela da perfectibilidade, essencialmente metafísica, logo incompatível com os critérios

epistemológicos de uma verdadeira ciência positiva, se deixa acompanhar, nos escritos

de Augusto Comte, de uma recusa terminológica.

A respeito dos termos desenvolvimento e aperfeiçoamento, Augusto Comte nos diz: “Tem-se

[...] o direito racional de se admitir, em sociologia, a equivalência necessária destes dois

termos gerais, assim como se faz habitualmente, em biologia, no estudo comparativo do

36 Bertrand Binoche, Introduction: perfection, perfectibilité, perfectionnement, in: ______ (ed.), L’homme perfectible, Seyssel, Champ Vallon, 2004, p. 8. 37 CPP, IV, p. 128. 38 Ibidem, p. 154. 39 Ibidem, p. 176, grifo nosso. 40 Ibidem, p. 177.

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31

organismo animal. Entretanto, eu devo, assim me parece, persistir em empregar

sobretudo a primeira expressão, que, felizmente, não foi ainda arruinada por um uso

irracional e parece especialmente conveniente a uma destinação científica”41. O cuidado

de Augusto Comte em se desvencilhar de um vocabulário excessivamente desgastado

pelas tradições teológica e metafísica é patente ao longo de toda sua obra. A preferência

pelo termo desenvolvimento se dá, além desta razão, também por um aspecto prático: “ele

indica imediatamente o simples crescimento espontâneo, gradualmente secundado por

uma cultura conveniente, das faculdades fundamentais sempre pré-existentes que

constituem o conjunto de nossa natureza, sem nenhuma introdução qualquer de novas

faculdades”42. A respeito, portanto, do termo aperfeiçoamento, que, cumpre dizer, não

possui tal propriedade, restará ao espírito científico, “sem nenhuma afetação pedantesca,

renunciar a ele essencialmente”, adotando por fim o desenvolvimento “em sua inteira

extensão filosófica, seja científica, seja prática, agora suficientemente definida”43.

Se o Segundo discurso de Rousseau44 pode ser considerado, com razão, a certidão de

nascimento da perfectibilidade, enquanto conceito da filosofia, o Curso de Augusto

Comte deve ser entendido como seu atestado de óbito, porquanto é o autor o responsável

por jogar a última pá de cal sobre ela. A partir de Augusto Comte, o progresso não será

mais falado em termos da “perfectibilidade do espírito humano”, mas apenas em termos

do “desenvolvimento da humanidade” (pequena mudança em termos de vocabulário,

mas uma gigantesca mudança em termos filosóficos). Se estivermos corretos em nossa

hipótese, segundo a qual, reafirmamos, o progresso é a grande questão filosófica do

republicanismo francês, é de se esperar que uma mudança conceitual desta monta no

primeiro tenha graves implicações nos contornos ideológicos do segundo. Num certo

41 Ibidem, p. 180. 42 Ibidem. 43 Ibidem. Em nota de suas Considerações sobre o poder espiritual, Augusto Comte já havia assinalado: “A imperfeição da linguagem obriga-me a empregar as palavras aperfeiçoamento e desenvolvimento, das quais a primeira, e mesmo a segunda, conquanto mais clara, recorda ordinariamente ideias de bem absoluto e de melhoramento indefinido que não tenho a intenção de exprimir. Estas palavras apresentam, para mim, a simples finalidade científica de designar, em física social, certa sucessão de estados do gênero humano, efetuando-se segundo leis determinadas; trata-se de um uso exatamente análogo ao que delas fazem os fisiologistas no estudo do indivíduo, para indicar uma série de transformações a que não ligam, normalmente, qualquer ideia necessária de melhoramento ou de deterioração contínuos”, CPS, p. 200. Já não se esboça aqui, por detrás da escolha de vocabulário feita por Augusto Comte, a separação entre “fato” e “valor” que fez fortuna nos longos e acalorados debates da filosofia da ciência desde o final do século dezenove? Para uma recapitulação do problema e uma visão contemporânea acerca dele, ver Hilary Putnam, The collapse of the fact/value dichotomy and other essays, Cambridge, Harvard University Press, 2002. 44 Ver Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, in: ______, Œuvres complètes, v. 3, Paris, Gallimard, 1964, p. 110-94.

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32

sentido, para Augusto Comte, a ideia da perfectibilidade indefinida dá sustentação

filosófica a uma ideia de Revolução que flerta com a anarquia, uma vez que se limita

apenas a destruir o Antigo Regime e não se empenha em construir um novo sistema em

seu lugar.

Para Augusto Comte, é preciso frisar, o desenvolvimento da sociedade não é, sob

hipótese alguma, indefinido, mas limitado pelas leis da sociologia, que ditam o seu

crescimento. Com efeito, impõem-se barreiras, de saída, à própria ação política, que deve

ser, segundo o autor, sempre limitada, “abstração feita da determinação efetiva [destes

mesmos limites]”45 (isto é, sem que se estabeleça a priori quais são estes limites e qual o

grau de limitação que impõem à ação humana). A esta limitação (inerente ao homem) de

agir sobre a sociedade de maneira arbitrária, dá-se o nome, na sociologia comtiana, de

“princípio dos limites gerais de toda ação política”46. Este princípio é, na visão do autor,

uma “decorrência inevitável da própria existência de leis naturais”47, cuja abrangência

Augusto Comte amplia, no interior de sua enciclopédia positivista, de forma a acomodar

também (seguindo Montesquieu e Condorcet) o estudo da sociedade.

A construção, portanto, do novo sistema político, que deverá substituir o antigo

(necessária e inevitavelmente destruído pelos revolucionários franceses), deve partir do

conhecimento das leis sociológicas. As leis sociológicas, entretanto, dizem respeito não

apenas ao movimento contínuo da sociedade, mas também às suas condições de

existência. Se a dinâmica social diz respeito ao progresso, a estática social dirá respeito à

ordem. Ordem e Progresso, segundo assinala nosso autor (no início ainda do quarto

tomo de seu Curso) não poderão mais, na contemporaneidade, ser pensados de forma

separada. “Nenhuma ordem real pode mais se estabelecer, nem sobretudo durar, se não

for plenamente compatível com o progresso; nenhum grande progresso poderia ter

efetivamente se realizado se não tendesse finalmente à evidente consolidação da

ordem”48. É este, pois, o legado filosófico que Augusto Comte deixa aos pais fundadores

da Terceira República, que, não nos enganemos, o assimilam e reprocessam ao seu modo.

45 CPP, IV, p. 182. 46 Ver CPP, IV, p. 181 e ss. 47 CPP, IV, p. 182. 48 Ibidem, p. 31.

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33

O presente trabalho, é preciso dizer, se inscreve (ou anseia se inscrever) numa certa

tradição de estudos republicanos, iniciada na filosofia contemporânea por autores como

Hannah Arendt49 e Claude Lefort50, ainda nas primeiras décadas da segunda metade do

século vinte; secundada, então, por trabalhos seminais de historiadores do Renascimento

como Hans Baron51 e John Pocock52; e desenvolvida contemporaneamente por autores

do chamado “revivalismo republicano” (ou neorrepublicanismo), como Quentin

Skinner53, Philip Pettit54, Maurizio Viroli55 e Jean-Fabien Spitz56. No Brasil, seguimos a

senda aberta por Newton Bignotto, Sérgio Cardoso, Heloisa Starling e tantos outros, que

já há algumas décadas têm contribuído, coletivamente, para a consolidação dos estudos

republicanos no país. Seguimos, particularmente, a indicação teórica apresentada por este

grupo de estudiosos em seu Matrizes do republicanismo57, que, num certo sentido (esta é a

nossa interpretação), retoma, aprofunda e amplia o projeto teórico de Pocock.

Retoma-o, porquanto, apoiando-se em Maquiavel (o grande autor republicano para os

estudos contemporâneos), busca compreender na modernidade as transformações

sofridas pelo ideário republicano à luz de suas formulações renascentistas. Aprofunda-o,

uma vez que, ao retomar os casos já estudados por Pocock (isto é, a Florença

renascentista, a Inglaterra e os Estados Unidos revolucionários), o faz numa outra

perspectiva (mais próxima da filosofia, arriscaríamos dizer). E, finalmente, o amplia, na

medida em que, por um lado, se convence da necessidade de resgatar as raízes clássicas

do humanismo renascentista (operando assim um retorno consciente à Roma republicana

e às repúblicas gregas); e, por outro lado, se decide a cruzar a Mancha e a adentrar o

continente em sua investigação a respeito do republicanismo moderno (chegando, por

fim, à França revolucionária).

49 Ver Hannah Arendt, Sobre a revolução, São Paulo, Companhia das Letras, 2016. 50 Ver Claude Lefort, Le travail de l’œuvre: Machiavel, Paris, Gallimard, 1972. 51 Ver Hans Baron, The crisis of the early Italian Renaissance: civic humanism and republican liberty in an age of classicism and tyranny, Princeton, Princeton University Press, 1955. 52 Ver John G. A. Pocock, The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic republican tradition, Princeton, Princeton University Press, 1975. 53 Ver Quentin Skinner, The foundations of modern political thought, 2 vol., Cambridge, Cambridge University Press, 1978 e Liberty before liberalism, Cambridge, Cambridge University Press, 1998. 54 Ver Philip Pettit, Republicanism: a theory of freedom and government, Oxford, Oxford University Press, 1997. 55 Ver Maurizio Viroli, Republicanism, Nova Iorque, Hill and Wang, 1999. 56 Ver Jean-Fabien Spitz, La liberté politique: essai de généalogie conceptuelle, Paris, PUF, 1995 e Le moment républicain en France, Paris, Gallimard, 2005. 57 Ver Newton Bignotto (org.), Matrizes do Republicanismo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2013. Consultar também, do mesmo autor, Pensar a República, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000 e Sérgio Cardoso (org.), Retorno ao republicanismo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004, trabalhos que, de certa forma, “prepararam o terreno” para a chegada do primeiro.

Page 34: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

34

A busca por novos horizontes para o debate político contemporâneo (polarizado, talvez

excessivamente, em torno do liberalismo e do marxismo ao longo do último século)

orienta, grosso modo, esse movimento de retomada da tradição de pensamento

republicano, ao qual buscamos aqui nos unir (e, por conseguinte, nos orienta também em

nosso trabalho). Como já dissemos, Maquiavel e o Renascimento italiano representam

uma espécie de “epicentro” deste movimento, que em seguida se espraia,

esquematicamente, na direção da antiguidade clássica (em busca de suas raízes) e da

modernidade (buscando compreender seus desdobramentos). A era das revoluções

burguesas, no interior desse quadro, pode ser entendida, cronologicamente, como um

ponto de chegada: o momento em que a tradição republicana, apreendida do passado

pelos revolucionários, seja a partir dos antigos, seja a partir dos renascentistas, se

consolida como uma espécie de “gramática da liberdade”, durante o embate travado

contra as diferentes formas de tirania da época.

Nosso trabalho, portanto, pretende se inscrever nesse campo de pesquisa delimitado

pelas obras acima mencionadas como uma contribuição ao estudo do republicanismo na

modernidade; penetrando (e com isto já buscando ligações com a contemporaneidade) o

século dezenove francês, mas sem deixar de considerar suas raízes iluminista e

revolucionária do século precedente. A hipótese que nos guiará ao longo de toda nossa

investigação é a de que o republicanismo moderno (considerando-se, em primeira

aproximação, o caso francês) obedece a uma “deriva ideológica” ao longo de sua

consolidação. Se, na França, a Primeira República surge, ao final do século dezoito, num

polo revolucionário, a Terceira República se consolidará, ao final do século dezenove,

num polo conservador58.

É sob a República (e em nome da República, ousaríamos dizer) que se dão dois dos

maiores eventos (mais contraditórios entre si) da história política francesa: o regicídio,

em 1792, e a destruição da Comuna de Paris, em 1871. Simbolicamente, poderíamos

localizar também em torno destes dois marcos temporais (sem grandes distorções

históricas) o início e o fim de um processo, quase secular, de consolidação da República,

enquanto regime de governo, na França. Seguindo as pistas historiográficas fornecidas

58 Para uma interpretação da Terceira República que se alinha à nossa hipótese, consultar Marion Fontaine, Frédéric Monier e Christophe Prochasson (ed.), Une contre-histoire de la IIIe République, Paris, Éditions La Découverte, 2013. Para um trabalho de conjunto a respeito dos “fundadores intelectuais” da Terceira República, consultar Sudhir Hazareesingh, Intellectual founders of the Republic: five studies in nineteenth-century French political thought, Oxford, Oxford University Press, 2001.

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35

por Claude Nicolet, para quem “uma história ideológica séria da República na França

passa necessariamente pela referência ao positivismo”59, buscamos aqui compreender,

em primeiro lugar, como a filosofia positiva de Augusto Comte se inscreve na tradição

republicana e revolucionária francesa, e, em segundo lugar, de que maneira (a partir das

mudanças filosóficas por ela operadas com respeito à tradição iluminista que a antecedeu)

ela pode ter contribuído para transformar a República numa forma política conservadora.

59 Claude Nicolet, op. cit., p. 188.

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1. Augusto Comte e o positivismo: um problema de exegese

1.1. A escrita comtiana

Augusto Comte escreveu muito e escreveu mal. Se o filósofo de Montpellier tivesse se

dedicado apenas a escrever muito ou apenas a escrever – como disse certa vez Ernest

Renan60 – em “mal francês”, ainda assim, nos parece, a recusa de seus textos seria

compreensível. As duas proezas combinadas, entretanto, tornam o repúdio aos seus

escritos quase aconselhável. Sua prosa é dura, agreste, impenetrável. Períodos longos,

longamente meditados, carecem de travessões, parênteses ou mesmo pontos finais.

Reformulá-los, encurtando-os ou desmembrando-os, não parece, aos olhos do autor,

uma necessidade, tampouco uma vantagem. A escrita comtiana não tem respiros, parece

se dar num único fôlego. Comte tem pressa em escrever: a pressa de quem não duvida,

nem por um instante, ter diante de si uma missão tanto colossal quanto urgente61. Diante

60 A citação se dá de forma indireta, como uma menção no corpo do texto de Charles de Rouvre: “Experimentei uma espécie de aversão ao ver a reputação exagerada de Augusto Comte, alçado a grande homem de primeira ordem por ter dito, em mal francês, aquilo que todos os espíritos científicos, há duzentos anos, viram tão claramente quanto ele!...”, Ernest Renan, apud Charles de Rouvre, Auguste Comte et le catholicisme, Paris, Les Éditions Rieder, 1928, p. 21, grifo nosso. Renan parecia mesmo empenhado na tarefa de maldizer Augusto Comte. Noutra passagem que pudemos encontrar, nos diz: “Eu acabei por acreditar que M. Comte será um emblema no futuro e que ocupará um lugar importante nas futuras histórias da filosofia. Isto será um erro, eu reconheço, mas o futuro cometerá tantos outros erros”, apud Paul Dupuy, Le positivisme d’Auguste Comte, Paris, Félix Alcan, 1911, p. 1. 61 Para usar uma expressão de Henri Gouhier, um dos grandes estudiosos da vida e do pensamento de Augusto Comte, nosso autor toma para si a grande “missão do século dezenove”. Ver Henri Gouhier, La jeunesse d’Auguste Comte, v. 1, Paris, Vrin, 1933, p. 13 e ss. Com respeito ao aspecto religioso da “missão” dos reformadores sociais do dezenove francês, pensamos ser instrutivo consultar os trabalhos de Alphonse Aulard, Le culte de la raison et le culte de l’être suprême (1793-1794): essai historique, Paris, Félix Alcan, 1892, de Albert Mathiez, Les origines des cultes révlutionnaires (1789-1792), Paris, Georges Bellais, 1904 e de Michel Vovelle, 1793, la Révolution contre l’église: de la raison à l’être suprême, Bruxelas, Éditions Complexes, 1988. Tais estudos se propõem a

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37

da pressa, qualquer preocupação estilística se reduz a mera futilidade, distração ou lazer

caprichoso.

Comte reconhece, no prefácio do seu Sistema de política positiva (obra de maturidade em

que afirma instituir a religião da Humanidade), que até então nunca se preocupara com a

forma e a apresentação de seus textos. Refere-se, sobretudo, ao seu Curso de filosofia positiva,

obra maior daquilo que o próprio autor denomina sua primeira “carreira”. Envaidecido

e assoberbado, como de costume, nos faz saber da extrema precocidade de seus trabalhos

intelectuais. Precocidade, segundo narra, que lhe possibilitou a realização de duas

carreiras especiais ao longo da vida: na primeira delas, o próprio filósofo nos diz, seria

Aristóteles; na segunda, São Paulo. O tom de bazófia e de autoelogio acompanha os

escritos de Augusto Comte como a sombra segue um corpo.

Ainda que emancipado do jugo teológico no final da infância e prontamente iniciado nos

estudos positivos – o que, por sua vez, conferiu maior celeridade à sua “transição

metafísica” –, Comte nos sugere que sua segunda carreira não teria sido possível “sem a

enérgica resolução que [lhe] fez sacrificar toda vaidade literária em favor da necessidade

maior de terminar a tempo [sua] imensa tarefa objetiva”62. Sem isto, a redação do Curso,

que durou doze anos, teria durado, estima Comte, pelo menos mais seis. A decisão de

não mais revisar e reescrever os seus textos (como havia admitido fazer com seus escritos

de publicista), entregando-os ao prelo na forma de sua primeira redação, é, portanto,

deliberada e intencional. “Essa única precaução me teria preservado das principais

reprovações literárias endereçadas à minha obra fundamental por juízes muito pouco

atentos às explicações especiais de seu último prefácio” 63 . Discretamente ofendido,

Comte desafia os críticos de seu estilo a julgá-lo doravante a partir de seus opúsculos de

descortinar os aspectos religiosos da Revolução, no final do século dezoito, que são, em grande medida, legados aos reformadores do dezenove. Quem, pela primeira vez, sugere uma aproximação entre a religião da Humanidade de Augusto Comte e os cultos revolucionários é Henri Gouhier. Consultar, uma vez mais, Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 5-13. 62 SPP, I, Prefácio, p. 6-7. Nota técnica: os quatro tomos do Sistema possuem, cada um, um prefácio com numeração independente. À exceção do primeiro tomo, entretanto, em todos os demais, a paginação dos prefácios aparece em algarismos romanos, de forma a distinguir suas páginas das do corpo do livro, cuja paginação é feita com algarismos arábicos. No primeiro tomo, em particular, a paginação em algarismos romanos foi reservada à dedicatória da obra, fazendo com que o prefácio repetisse, em relação ao corpo do livro, o uso de algarismos arábicos (gerando, portanto, ambiguidade na hora de citar suas páginas). O mesmo problema ocorre nos casos do “Apêndice geral” e da “Tábua analítica” da obra, inseridos ao final de seu quarto e último tomo, cuja paginação também é independente e feita também em algarismos arábicos, a exemplo do corpo do livro. Nesses três casos, portanto, a fim de se evitar ambiguidades, explicitaremos nas notas (como fizemos aqui) se tratar do “Prefácio” do primeiro tomo, do “Apêndice geral” ou da “Tábua analítica” do quarto tomo. Não havendo indicação alguma, deve-se supor que a paginação se refere ao corpo do livro. 63 SPP, I, Prefácio, p. 7.

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filosofia social, reimpressos e inseridos ao final de sua nova obra. “Meus primeiros

opúsculos, reimpressos ao final do presente tratado, indicarão se o talento de escrever

me é realmente interdito quando me conformo às práticas que exige sempre o

aperfeiçoamento do estilo”64. Ainda que conservando traços comuns aos seus escritos de

maior envergadura, somos forçados a reconhecer que seus opúsculos de juventude (e

alguns outros escritos de intervenção política e de vulgarização da fé positivista) são

menos mal-ajambrados que suas obras maiores. A forma e a assinatura, contudo, nos

parecem ser essencialmente as mesmas.

Ao ler Augusto Comte, somos, pois, tomados pela impressão de um autor febril,

obsessivo, altamente sistemático e metódico – para não dizer maníaco 65 . A escrita

comtiana é não apenas extensa e volumosa, mas também repetitiva e fastidiosa. Comte

parece sofrer, em alguma medida, do mesmo mal saint-simoniano da escrita de

“programas e programas de programas”66 que tendem de forma perene a adiar sua plena

realização. Ideias são apresentadas sempre com a promessa de complementação futura.

Promessa que, para infortúnio do leitor, sempre se cumpre por meio da recapitulação –

e que não cessa de reaparecer. Pensamento que se constrói no ato mesmo da escrita.

Escrita, por sua vez, que nunca registra um pensamento acabado, mas o próprio ato de

pensar em movimento. Em jatos, o autor nos apresenta suas ideias, como um professor

de aritmética que lança, em modo frenético, suas equações sobre o quadro-negro. Há

certa displicência em relação ao leitor. Apesar do tom eternamente professoral e da

pretensão insistentemente pedagógica67 (por vezes quase pastoral) que o acompanham

até o final de sua vida, Augusto Comte, na maior parte das vezes, se porta mesmo como

64 Ibidem. 65 Augusto Comte chegou mesmo a ser diagnosticado, pelo Dr. Esquirol, como tendo “mania”. “Segundo Esquirol, mania era caracterizada por um ‘delírio generalizado’, uma ‘superexcitação de todas as funções’ e uma inabilidade de se concentrar: ‘Porquanto as relações naturais dos maníacos com o mundo exterior se encontram rompidas, todas as impressões que o paciente recebe são dolorosas; elas o irritam, o exasperam e o conduzem à violência e à fúria, especialmente se alguém nega os seus desejos, que são transientes na mesma medida em que enérgicos. A desordem da inteligência envolve a perversão dos afetos morais, de onde surgem a desconfiança, o distanciamento e o ódio por qualquer um que se aproxime do maníaco’”. Mary Pickering, Auguste Comte: an intellectual biography, v. 1, Cambridge, Cambridge University Press, 1993, p. 384. O caso clínico de Augusto Comte (em cotejo com o de seu mestre e posterior desafeto Henri de Saint-Simon) foi objeto de estudo de Georges Dumas, numa série de artigos depois convertidos em livro. Ver Georges Dumas, La folie d’Auguste Comte, Revue de Paris, n. 5, 1897, p. 321-45, L’état mental d’Auguste Comte, Revue philosophique de la France et de l’étranger, n. 45, p. 30-60, 151-80, 387-414 e, finalmente, Psychologie de deux messies positivistes: Saint-Simon et Auguste Comte, Paris, Félix Alcan, 1905. 66 EJ, p. 20. O comentário é de Paulo de Berrêdo Carneiro e Pierre Arnaud, no prefácio da obra. 67 Não nos esqueçamos que a principal obra científica de Comte se intitula “curso” e que seus capítulos são apresentados sempre na forma de “lições”. De fato, o Curso de filosofia positiva foi ministrado em aulas durante alguns anos para um público bastante seleto, tanto na casa do filósofo, na rua Monsieur-le-Prince, número 10, como no prestigiado Athénée de Paris. Ver Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 365 e ss., 427-8.

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um obscuro geômetra que, sofregamente, demonstra suas fórmulas diante de uma plateia

de alunos atônitos e confusos68. A opacidade dá vez ao desagrado.

Em carta a seu amigo Valat, datada de 8 de setembro de 1824, o futuro pontífice da

religião da Humanidade responde à última e “menos importante” das objeções de seu

conterrâneo (a que concerne ao seu estilo) com marcada indiferença e ares sobranceiros:

“Eu te diria que, a esse respeito, não posso atribuir valor algum a nenhuma opinião, seja

favorável, seja desfavorável; visto que se necessário fosse escutar a todos não se teria

estilo algum”69. Jacta-se, em seguida, de ter recebido os cumprimentos elogiosos de

eminentes literatos (ou ao menos assim por ele considerados) e se mostra satisfeito se seu

estilo for tido como superior ao dos “puros retóricos” e de mesmo nível que o de alguns

dos homens de ciência que mais admirava: Berthollet, Bichat e Cuvier. “Eu creio ter o

estilo próprio ao assunto, isto é, o estilo científico, e não aquele recomendado pelos

fazedores de retórica. [...] Eu escrevo sob a inspiração do meu pensamento e sem

nenhuma espécie de arte, que isto seja bom ou mau, eu posso te garantir (visto que disso

tenho profunda convicção) que me seria absolutamente impossível escrever de uma outra

maneira senão aquela que o momento me dita”70. Termina expondo sua convicção de

que o estilo, no fundo, é como uma assinatura do autor. Tão variegados, portanto, são

os estilos quanto o são os homens. Não se preocupa em mudar o seu, pois não se

preocupa em mudar a si mesmo. Afinal, “le style est l’homme même”71.

Três meses depois, aos 25 de dezembro de 1824, Comte torna a tangenciar esse mesmo

tema em suas conversações epistolares com Valat. “Tu não poderias acreditar quanto, em

uma ordem tão nova de ideias, sou contrariado a cada instante pela língua, pela

necessidade de novas expressões, livres do caráter teológico e metafísico sob a influência

do qual são formadas nossas línguas. [...] De resto, isto se tornará mais fácil quando a

política for geralmente concebida como uma ciência positiva e liberta de toda ligação

com o pedantismo literário: permitir-se-á, então, sem dúvida, as mesmas licenças que nas

68 A metáfora do “professor de matemática” que aparece ao longo de todo esse parágrafo a tomamos emprestada de Ernest Seillière, a quem fazemos aqui justiça transcrevendo o trecho que nos inspirou: “É certo que, de primeira, ele escrevia bastante mal e que prejudicou suas lições filosóficas ao imprimir, para ganhar tempo, a primeiríssima redação de seu Curso. Ele então expôs sua sociologia, pouco depois, como um professor de matemáticas especiais demonstra teoremas diante do quadro-negro (e se sabe que esse foi, durante muito tempo, o seu ganha-pão). Sua segunda obra, o Sistema de política positiva, é ainda mais cacográfica”. Ernest Seillère, Auguste Comte, Paris, Félix Alcan, 1924, p. 11. 69 CG, I, p. 130. 70 Ibidem. 71 Ibidem, p. 131.

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outras ciências, nas quais não nos constrangemos por criar uma nova palavra quando há

necessidade constatada”72. Vê-se daí o caráter de vanguarda que o próprio autor atribui

ao conjunto de seus escritos – vanguardismo que legitimaria sua excentricidade literária.

Seus escritos destoariam da maior parte dos escritos de seus contemporâneos justamente

em razão de seu caráter inovador e científico. No fundo, podemos ver, Auguste Comte

acredita sofrer as tais reprovações por conta apenas de sua superioridade intelectual; uma

última reação dos espíritos teológico e metafísico diante de sua irrefragável superação

pelo espírito positivo.

É curioso notar, contudo, que, apesar de divergirem quanto ao diagnóstico de fundo,

seus detratores e apologistas não deixarão de apontar para a dificuldade constitutiva da

escrita comtiana. Os primeiros a censurarão de modo severo, como vimos fazer acima

Renan. Os segundos encontrarão justificativas sutis para sua complexidade e aridez

estilística, tentando desembaraçá-la da acusação de ser mera algaravia. “Uma tal leitura,

nos diz Léon de Montesquiou (um positivista do início do século vinte, ligado à Action

Française), desgosta no primeiro contato. Reportaram-me, mas não pude verificar o fato,

que havia na Biblioteca Nacional um livro de Comte com essas palavras na margem,

assinadas por Taine: ‘É incompreensível, eu renuncio a ir adiante’. Se o diligente, o

consciencioso Taine, habituado como era aos duros trabalhos do espírito, pôde, todavia,

lançar esse grito de impaciência, o que pensará então o simples leitor de Comte?

Provavelmente, ele pensará que Taine tinha razão e fechará, após as primeiras páginas, o

livro começado”73. Aos olhos de Montesquiou, contudo, “não há, em Augusto Comte,

nada de incompreensível”. Tanto Taine quanto Renan (ou qualquer outro de seus críticos

desajuizados) apenas não teriam sido capazes de romper “uma casca tão resistente” para

poderem finalmente chegar “à seiva abundante e fecunda”74 contida em seu interior.

A metáfora do professor de matemáticas e essa agora, de Montesquiou, da casca e da

seiva deixam-se acompanhar, assim pensamos, da descrição que faz Thomas Carlyle (um

dos responsáveis pela recepção e difusão do saint-simonismo e do primeiro positivismo

na literatura inglesa pré-vitoriana 75 ) da escrita de seu estrambólico personagem, o

professor Teufelsdröckh. “De modo geral, o Prof. Teufelsdröckh não é um escritor

72 Ibidem, p. 150. 73 Léon de Montesquiou, Le système politique d’Auguste Comte, Paris, Nouvelle Librairie Nationale, s/d., p. vi. 74 Idem, ibidem. 75 Ver Friedrich Hayek, The counter-revolution of science: studies on the abuse of reason, Glencoe, The Free Press, 1952, p. 157.

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cultivado. Das suas sentenças, talvez não mais do que dezenove permaneçam de pé sobre

as suas próprias pernas; as demais se encontram num estado deveras oblíquo, sustentadas

por escoras de parênteses e travessões, ou ainda com uma ou outra porcaria dependurada;

algumas até mesmo se desfazem em esparramo pelos cantos, de forma modorrenta, assaz

desengonçadas e desmembradas”76. Apesar de mirar em Hegel e no idealismo alemão,

muito mais do que em Comte e no positivismo francês, acreditamos que Carlyle faz

encarnar em Diógenes Teufelsdröckh uma espécie de espírito difuso da época. Uma

época que vê surgir um novo tipo de intelligentsia na Europa: a dos escritores medíocres;

dos literatos cientistas; dos savants cultivados não mais nas letras clássicas (herança dos

humanistas que séculos atrás lhes servia de esteio), mas na ciência dura que viria a ocupar,

e cada vez mais, o seu lugar de prestígio nas nascentes sociedades modernas77. Comte,

embora não seja Teufelsdröckh, se insere (ainda que a contrapelo) no quadro em que ele

figurativamente está representado.

Não é o caso de ensaiarmos aqui uma explicação sociológica para o advento do

positivismo ou mesmo das figuras intelectuais da mesma geração78 de Augusto Comte,

ainda nas primeiras décadas do século dezenove francês. É sabido, contudo, e não

poderíamos deixar de mencionar, que a formação de Comte se deu nas salas de aula da

Escola Politécnica. O ancien élève de l’École Polytechnique, forma segundo a qual o próprio

autor referiu-se a si mesmo durante muitos anos, é, portanto, um dos primeiros frutos

intelectuais da reforma educacional pela qual passara a França desde a Convenção, em

179479. Os convencionais franceses, imbuídos do espírito de proteção nacional, fundam

a Escola Politécnica – bem como uma série de novas outras instituições de ensino – para

a formação e treinamento de engenheiros civis e militares80. Augusto Comte, portanto,

escreve com o refinamento de quem foi educado para construir pontes e minerar

76 Thomas Carlyle, Sartor Resartus, Oxford, Oxford University Press, 1987, p. 24. 77 A respeito do papel da ciência na fundação do Estado francês moderno, ver Nicole e Jean Dhombres, Naissance d’un nouveau pouvoir: sciences et savants en France (1793-1824), Paris, Payot, 1989. Para a contribuição da Escola Politécnica nesse processo, consultar Janis Langins, La République avait besoin des savants: les débuts de l’École polytechnique, l’École centrale des travaux publics et les cours révolutionnaires de l’an III, Paris, Belin, 1987 e Bruno Belhoste, La formation d’une technocratie: l’École Polytechnique et ses élèves de la Révolution au Second Empire, Paris, Belin, 2003. Para uma história geral da Escola Politécnica, consultar as obras homônimas de Ambroise Fourcy, Histoire de l’École Polytechnique, Paris, Belin, 1987 e de Gaston Pinet, Histoire de l’École Polytechnique, Paris, Librairie Polytechnique Baudry et Cie., 1887, ambos ex-bibliotecários da escola. 78 Para uma visão de conjunto do tema, consultar Alan Spitzer, The french generation of 1820, Princeton, Princeton University Press, 1987, que se arrisca a retomar, como ele próprio diz (relembrando as palavras de Pierre Nora), a “noção ilusória e necessária” de geração, para tratar das transformações culturais, políticas e socioeconômicas da França imperial reconvertida agora à monarquia por meio da Restauração. 79 Ver Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 23. 80 Idem, ibidem.

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montanhas. A dureza de seus escritos reflete a dureza do pensamento prático 81 . O

desprezo pela abstração inútil – de enfiada, o desprezo pela metafísica, eternamente a

soçobrar – nunca fora ocultado nas obras de Augusto Comte, aparecendo amiúde

afirmado com todas as letras.

Comte seguramente recusa o terreno pantanoso e cediço da metafísica, bem delimitado

e sinalizado algumas décadas antes por Kant. Busca, ao contrário, um terreno firme no

qual possa erigir uma filosofia que se sustente. Como bom engenheiro, Augusto Comte

dispensa os instrumentos tradicionais da filosofia e filosofa apenas com pá e carriola.

Nesse tocante, a filiação arcaica da palavra “positivo” (que adjetiva a filosofia comtiana)

com o ponere latino82 nos aparece com significação redobrada. A exemplo dos antigos

maçons83 – para os quais poser significava algo como “pôr as pedras sobre o solo de

maneira que lá permaneçam” –, Augusto Comte nos parece preocupado a todo momento

com a estabilidade e solidez de seu edifício intelectual. Isso se reflete, como acima

mencionado, em sua busca por um vocabulário adequadamente científico. Termos

fluidos e viciosamente desgastados pelas tradições teológica e metafísica devem ser a todo

custo evitados e substituídos por tijolos de textura científica – forma e matéria se

encontram, determinando-se mutuamente.

O caráter monumental e extremamente árido do corpus comtiano não é aqui aludido,

como se poderia a princípio pensar, com o intuito único de suscitar piedade no leitor em

relação a seu dedicado exegeta. Se o fazemos – ainda que, de maneira inconfessa (e mal

disfarçada), desejosos de compaixão por nossa tarefa inglória – é porque acreditamos

haver para isso uma razão primordial. A tradição de leitura e de interpretação dos textos

filosóficos, acostumada com certos padrões de forma e de conteúdo relativamente bem

assentados ao longo dos tempos, tende em alguns casos a ir mais longe do que o leitor

81 Não se deve pensar, contudo, que a formação recebida por Augusto Comte na Escola Politécnica fosse deficitária do ponto de vista teórico. Ao contrário, boa parte dos seus mestres estava na “linha de frente” da ciência teorética de seu tempo (e mesmo aqueles que se dedicavam majoritariamente à ciência experimental representavam o que havia de melhor na França e na Europa do período). Não obstante, a orientação curricular da escola voltava seus alunos muito mais à aplicação da ciência do que à sua produção propriamente dita. 82 “Comte não inventou a palavra ‘positivo’. Derivada de ponere, ela esteve em uso desde 1300 para descrever algo explicitamente ‘estabelecido’ (laid down). O significado de ‘relacionado a fatos’ data do século dezesseis, ao passo que seu uso comum em oposição a ‘metafísico’ tem origem no século dezoito”. Terence Wright, The religion of Humanity: the impact of Comtean positivism on Victorian Britain, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. 18. 83 A referência para todo esse parágrafo é a análise de Angèle Kremer-Marietti a respeito do “modelo da ciência positiva”, que, até onde nos foi dado saber, é a investigação mais cuidadosa e completa no que concerne ao amadurecimento terminológico do positivismo. Ver Angèle Kremer-Marietti, Le concept de science positive: ses tenants et ses aboutissants dans les structures anthropologiques du positivisme, Paris, L’Harmattan, 2007, p. 15 e ss.

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comum, negando a Augusto Comte não apenas a leitura de seus escritos, mas também

um lugar no panteão da filosofia. Pensamos ser Augusto Comte um exemplo

paradigmático do “filósofo maldito”. Seu pensamento não foi apenas marginalizado e

obscurecido no debate público, mas sobretudo no interior da própria academia. Por que

razão o maior nome da filosofia francesa do dezenove – e estamos cada vez mais

convencidos de que ele o é – teria sido completamente esquecido e desprezado?

Parece haver, aos nossos olhos, um descompasso entre a fortuna crítica do positivismo

nos meios eruditos e o alcance e amplitude de sua influência nos mais variados campos

da atividade intelectual. A fundação da sociologia e o impulso decisivo por ela conferido

à fundação das ciências sociais em geral; a fundamentação epistemológica da enciclopédia

positivista que, em grande medida, serve de esteio até os dias de hoje às ciências naturais

(e que encontra eco no, assim chamado, “positivismo lógico” do círculo de Viena84); a

influência (ainda hoje mal elucidada) sobre o que veio posteriormente a se chamar

“ciência econômica”; e, por fim, a fusão conceitual entre o positivismo e o positivismo

jurídico85 (a princípio coincidentes apenas quanto à sua raiz etimológica), nos levam a

pensar que a filosofia de Augusto Comte foi até então muito mal aquilatada pelos mui

judiciosos intérpretes e historiadores da filosofia. Um elogio do positivismo, sob suas

mais variadas faces, segue sendo, aos nossos olhos, um completo despropósito. Uma

defesa intelectual de suas ideias, contudo, nos parece não apenas aconselhável, mas

também necessária à própria compreensão dos tortuosos caminhos seguidos pela

filosofia (eternamente em crise) na contemporaneidade. Se Comte escreveu mal,

pensamos que ele não tenha sido melhor lido.

1.2. As leituras do positivismo

Nos parágrafos precedentes, esforçamo-nos em apresentar um Comte excessivamente

prolixo e obscuro como causa primeira dos problemas exegéticos que acreditamos cercar

84 Uma boa introdução ao assunto é o livro editado por Alfred Jules Ayer (ed.), Logical positivism, Glencoe, The Free Press, 1963, que conta – para além de uma introdução e de um artigo escritos pelo próprio editor – com textos seminais dos principais nomes associados ao Círculo de Viena, como Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Hans Hahn, Otto Neurath e Friedrich Waismann. 85 Para nós constitui fato notável que a divisão que faz Hans Kelsen (um dos maiores nomes, se não o maior, da filosofia do direito no século vinte) com respeito à “ciência jurídica” em sua obra fundamental, a Teoria pura do direito, seja praticamente uma cópia-carbono da que havia feito Augusto Comte (sob o patrocínio de Blainville) num primeiro momento para a biologia e num segundo momento para a sociologia, ainda na primeira metade do século dezenove. A “estática jurídica” e a “dinâmica jurídica” kelsenianas fazem ecoar no direito a “estática social” e a “dinâmica social” comtianas instituídas no campo da sociologia. Ver Hans Kelsen, Teoria pura do direito, São Paulo, Martins Fontes, 2009. p. 121 e ss., 215 e ss., e CPP, IV, p. 156 e ss., 170 e ss.

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sua obra. A partir de agora, nosso objetivo consistirá em promover uma espécie de

recenseamento, bastante esquemático, das diferentes linhas interpretativas (e seus

respectivos equívocos) que entendemos haver com respeito aos escritos do filósofo. Se

lá focalizamos os problemas de escrita, aqui focalizaremos os problemas de leitura.

Temos consciência de que não é privilégio da escrita comtiana nem a fria recepção dos

meios eruditos nem os comentários e interpretações descabidas e exageradas a seu

respeito. Pensamos, contudo, que o caso de Comte seja ainda mais peculiar. Se é verdade,

como nos diz Montaigne, que “a palavra é metade de quem fala metade de quem a

escuta”, é possível que estejamos aqui diante do caso-limite em que a comunicação não

se realiza: um mal enunciador e um receptor ainda pior.

1.2.1. Caricatura e espantalho: os problemas interpretativos

Se, na maior parte dos casos, leituras extravagantes e interpretações afetadas a respeito

de um determinado autor são, de certa forma, marginalizadas no campo do comentário,

porquanto existe um núcleo de trabalhos que, ainda que divergentes quanto a uma série

de questões mais sutis, gozam de reconhecimento mútuo para delimitar uma espécie de

“campo mínimo consensual” – no interior do qual o debate se trava de maneira séria e

consequente –, no caso de Comte, assim entendemos, esse campo ainda se encontra em

construção86. Não deixa, por exemplo, de nos surpreender que, ao fazermos um rápido

levantamento bibliográfico com respeito aos comentários da obra de Augusto Comte,

trabalhos como Aberrations: le devenir-femme d’Auguste Comte, de Sarah Kofman, apareçam

com considerável destaque, figurando com frequência na bibliografia de apoio de alguns

dos trabalhos mais sérios de que temos conhecimento. Tomamos aqui essa obra, caso

modelar das péssimas leituras existentes a respeito do assunto, como forma de ilustrar o

estado precário – em relação a outros autores de envergadura comparável à do próprio

Augusto Comte – em que se encontra o campo do comentário comtiano. Não só o

enfoque que a comentadora dá ao filósofo e seus textos nos parece despropositado; o

86 Nas últimas décadas, contudo, pensamos que os estudos comtianos tenham recebido uma valiosa contribuição conferida pelos trabalhos de uma nova geração de pesquisadoras, dispostas, como ressalta Hélgio Trindade, a romper seja com a “ortodoxia exacerbada de seus fiéis da religião da Humanidade”, seja com “seus adversários impiedosos”, adotando por fim uma atitude intelectual “serenamente acadêmica”. Ver Hélgio Trindade (org.), O positivismo: teoria e prática, Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1999, p. 9. Referimo-nos, sobretudo, aos trabalhos de Annie Petit, Mary Pickering, Mirella Larizza, Juliette Grange e Angèle Kremer-Marietti, que de certa forma vêm a se unir aos estudos pioneiros de um Lévy-Bruhl, de um Henri Gouhier ou mesmo de um Paul Arbousse-Bastide, ainda na primeira metade (ou nas primeiras décadas da segunda metade) do século vinte.

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livro é repleto de incongruências e erros primários, demostrando um conhecimento

bastante superficial da biografia do autor e uma leitura bastante ligeira de seus escritos.

Ainda nas primeiras páginas de seu trabalho, Kofman chega a confundir as duas carreiras

especiais de Augusto Comte (a científica, em que seria Aristóteles, e a religiosa, em que

seria São Paulo) com o exercício conjunto das, chamemos assim, atividades de pesquisa

e docência do filósofo. “A fim de se desculpar pelas ‘imperfeições literárias’ de seu

trabalho, nos diz Kofman, e de suscitar a indulgência do leitor, [Augusto Comte] invoca

ele próprio a falta de tempo: sua dupla jornada de ensino e de criação, conduzida com o

mesmo escrúpulo, não lhe concede nenhum descanso; seus perseguidores de todos os

partidos, ao impedirem-no de aceder à cadeira de matemática da Escola Politécnica, o

condenam a horas de ensino excessivas que o esgotam, deixando-lhe um tempo

derrisório para o essencial: a concepção de sua obra. Uma vez que é perseguido e que

deve, entretanto, se nutrir – e nutrir sua esposa –, ele é obrigado a negligenciar a ‘forma’,

a ‘acochambrar’ o estilo, a enviar para a impressão seus rascunhos, seu ‘primeiríssimo

esboço’”87. A comentadora adorna o texto com elementos que lhe são estranhos. Faz

crer que a pressa de Comte em escrever adviria de uma sobrecarga de trabalho, forçada

por sua não admissão para a cadeira de matemática da Escola Politécnica – que o filósofo,

de fato, ambicionou por muitos anos, e que seguramente lhe conferiria uma condição

material mais confortável –, e não, como dissemos de início, pela magnitude de suas

“duas carreiras especiais” (a científica e a religiosa).

Apesar de efetivamente se dividir entre as aulas particulares de matemática (como forma

de subsistência) e seus estudos e meditações filosóficas durante muitos anos, não nos

parece acurado dizer que essas atividades rivalizassem entre si – seguramente não a ponto

de prejudicar uma delas, como nos sugere Kofman. Ao comparar, por exemplo, os níveis

de instrução pública de Montpellier e Paris, em carta a Valat, datada de 29 de outubro de

1816, Augusto Comte nos diz: “Eu bem posso ver que a instrução pública não oferece

uma bela perspectiva em Montpellier, não mais do que a instrução particular: nossos

caros languedocianos acham que um professor de matemáticas não deve ser melhor

remunerado que um mau professor de dança, ou de esgrima. Em Paris, isto não é assim:

se pode viver bem honestamente dando duas ou três lições de matemáticas. Quanto a mim, não tenho

do que me queixar dos parisienses do lado de cá: se faz muito caso das ciências e daqueles

87 Sarah Kofman, Aberrations: le devenir-femme d’Auguste Comte, Paris, Aubier Flammarion, 1978, p. 13.

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46

que as ensinam”88. A imagem de um professor sobrecarregado por conta de suas aulas

particulares só pode mesmo surgir de uma mente bastante imaginativa, que preenche os

vazios de sua incompreensão com suposições infundadas.

Em seu estudo, valendo-se de uma espécie de derridianismo de matriz psicanalítica

(cravejado de insígnias de coloração pós-moderna), Kofman chega mesmo a sugerir que

o descompasso entre o caráter “viril” da escrita científica de Comte (na juventude) e o

sentimentalismo exacerbado e a exaltação do feminino em seus escritos religiosos (do

final da vida) seria revelador de uma homossexualidade inconfessada. “A distinção de

duas vias claramente clivadas, nos diz Kofman, a via masculina – científica, via da razão –

e a via feminina – a via do coração –, é a denegação da bissexualidade, possivelmente da

homossexualidade. [...] o estilo aqui é revelador de um homem que busca reprimir o mais

profundamente todo ‘germe’ de feminilidade e exibir à luz do dia, de maneira

excessivamente ruidosa para não ser suspeita, uma virilidade intacta, pura, um estilo que

opta apenas pela via masculina, desprovida de qualquer charme feminino sedutor.

Quando se adota como máxima de conduta: ‘viver às claras’, quando se clama bem alto

a vontade de nada esconder, é porque, sem dúvida, se tem algo a dissimular. O segredo

que concerne à conduta licenciosa de sua esposa é provavelmente um segredo que

mascara ele próprio um outro segredo, ainda mais reprimido, concernindo sua própria

sexualidade. E se, em definitivo, ele se envergonha de uma esposa ‘que ele não pode

admitir e manter à luz do dia’, é, talvez, porque as aberrações inadmissíveis de Caroline

[Massin], [sua esposa], sejam reveladoras de suas próprias aberrações, não menos

inconfessáveis”89.

As “aberrações inadmissíveis” de que nos fala Sarah Kofman dizem respeito ao fato de

Caroline Massin, esposa de Augusto Comte, ter sido, na juventude, prostituta90. A relação

88 CG, I, p. 15, grifo nosso. 89 Sarah Kofman, op. cit., p. 30. 90 Ao menos é o que nos revela Augusto Comte na “Adição Secreta” de seu Testamento. Ver Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 315. Pickering, entretanto, na introdução da Correspondência inédita: Augusto Comte/Caroline Massin, publicada em 2006 pela L’Harmattan – até então, apenas as cartas de Comte a Massin haviam sido publicadas, na sua Correspondência geral, mas as cartas de Massin a Comte haviam sido ignoradas por seus discípulos e estudiosos em geral –, nos diz que “depois [da morte de Augusto Comte], seus executores testamentários leram a mensagem que insinuava que Caroline havia sido prostituta. Os discípulos de Comte, ao escreverem sua biografia, reiteraram esta acusação. Mais tarde, os Positivistas garantiram que apenas a versão dos acontecimentos de Comte sobrevivesse, ao destruírem as cartas passíveis de esclarecer a história de Caroline. Assim, apenas a versão deles foi em todo caso considerada como legítima, mesmo por estudiosos reputados como Raymond Aron. Um único homem tomou a defesa de Caroline: Émile Littré. [...] A biografia de Comte, escrita por Littré, fornece, consequentemente, uma versão completamente diferente a respeito do meio que originou Caroline. Mas é possível que ela tenha sido tão deformada quanto as biografias escritas pelos discípulos

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47

do filósofo com prostitutas, aliás, parece ter sido frequente, ao menos em algumas épocas

de sua vida. Em correspondência com seu amigo Valat, por exemplo, Comte menciona

ter cometido “‘essas pequenas tolices [...] apenas três vezes’ nos últimos quatro meses”91.

Refere-se à sua busca esporádica por “‘prazeres físicos’ com as ‘repugnantes beldades da

galeria do Valois’, no Palais Royal” 92 . É nos arredores do Palais Royal, aliás, um

conhecido local de prostituição à época, que Comte conhece Caroline Massin. Com

efeito, nos parece estranho supor em Augusto Comte uma homossexualidade, a tal ponto

reprimida, que o obrigasse à prática compulsória heterossexual – talvez, como forma de

autoafirmação, se poderia supor. De todo modo, Kofman, se quisesse fugir da caricatura

grosseira (algo que, ademais, a autora não nos parece fazer), teria ainda de lidar com as

paixões heterossexuais do autor (o que ela também não faz): não apenas Caroline Massin

– por quem Augusto Comte se apaixona intensamente, antes do matrimônio –, mas

também Pauline – a pianista italiana por quem o autor se apaixona ainda na juventude –

e, claro, Clotilde de Vaux – a grande paixão de Augusto Comte, já no final da vida93.

Fora de um círculo de especialistas, cuja produção acadêmica, até o momento, é

relativamente pouco conhecida, a imagem que se tem de Augusto Comte e de sua

filosofia positiva, assim entendemos, é essencialmente caricata – o caso de Kofman

representando para nós sua máxima expressão. Não saberíamos elencar com precisão

todas as razões que teriam contribuído para isso. Certo predomínio de determinadas

correntes de pensamento (sobretudo o liberalismo e o marxismo, como falaremos mais

adiante) no debate político ao longo da maior parte do último século; os rumos

esdrúxulos seguidos pelas correntes ortodoxas do positivismo nos países em que teve

alguma penetração, com suas liturgias miméticas ao catolicismo e seu culto secularizado

(ou desteologizado) da Humanidade; e, por fim, o caráter impenetrável e cacofônico dos

mais fiéis de Comte. Em resumo, as hostilidades no seio da família de Comte e no interior de seu próprio movimento tornam extremamente problemática a reconstituição da vida de Caroline Massin. Conhecemo-la como a esposa do célebre Augusto Comte e como prostituta, mas isto é tudo. Portanto, quem é a verdadeira Caroline?”, Mary Pickering, Introduction, Correspondance inédite: Auguste Comte/Caroline Massin (1831-1851), Paris, L’Harmattan, 2006, p. 5. 91 Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 56. 92 Idem, ibidem. 93 Gostaríamos de enfatizar, por fim, que não desdenhamos o emprego da psicanálise na interpretação de textos literários ou mesmo na tarefa de elucidar a biografia e a obra de grandes figuras históricas. As Questões de método, de Sartre, e Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, de Freud, nos parecem exemplos notáveis de tentativas exitosas nessa direção. Nosso problema com Kofman, que fique claro, diz respeito somente à precária investigação conduzida pela autora a respeito da biografia e dos textos filosóficos de Augusto Comte. Inspirada, aliás, por Freud, Kofman parece criar, ingenuamente, uma caricatura do autor de forma a poder projetar nela o “seu próprio da Vinci” – em nosso ver, contudo, nem Comte é da Vinci, nem tampouco Kofman é Freud.

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48

escritos de seu pai fundador, nos parecem ser, contudo, um bom ponto de partida sobre

o qual podemos apoiar algumas de nossas hipóteses. Em resumo, para nós, Augusto

Comte é, ao mesmo tempo, uma figura obscura e obscurecida.

Pensamos que o próprio filósofo tenha contribuído, em grande medida, para sua

caricaturização, por conta não somente de sua escrita rebarbativa e pouco amigável, mas

também em virtude da suspeita, sempre presente, a respeito de sua sanidade mental.

Sofrera ao longo da vida algumas “crises cerebrais”, zelosamente tratadas por amigos

próximos e familiares94. Sua inclinação messiânica e seus rompantes megalomaníacos,

somados, talvez, a uma ingenuidade que por vezes beira mesmo o risível95, podem

também ter contribuído para a consolidação de uma imagem, no essencial, burlesca a seu

respeito; e consequentemente para seu descrédito nos meios acadêmicos. Acreditamos,

contudo, que o que mais contribuiu para a fixação de uma imagem equivocada do autor

e de sua filosofia positiva, tenham sido – apesar de seus méritos inegáveis – as leituras

críticas feitas a seu respeito pelas duas maiores correntes do pensamento político

hegemônico do século vinte (muito mais influentes em pautar o debate público do que

qualquer escrito dos adeptos do positvismo, ortodoxos ou heterodoxos96).

Marxistas e liberais interessaram-se, em maior ou menor medida, pelo pensamento de

Augusto Comte, sobretudo ao final da primeira metade e início da segunda metade do

século vinte, como forma, talvez, de explicar, teórica e historicamente, os horrores

cometidos pelo fascismo e totalitarismo do período que os antecedeu cronologicamente.

Pensamos que os trabalhos mais significativos de cada uma dessas grandes “famílias” do

pensamento político ocidental a respeito do positivismo sejam A contrarrevolução da ciência,

de Friedrich Hayek (pelo lado dos liberais) e o Razão e revolução de Herbert Marcuse (pelo

lado dos marxistas). Com efeito, nas próximas páginas, pretendemos analisar, de forma

breve, alguns dos pontos principais da leitura de cada um desses autores, expoentes da

filosofia política no século vinte, a respeito do positivismo de Augusto Comte. Nosso

intuito, com isto, é fundamentar a defesa, que faremos de maneira mais extensa no

94 Ver Mary Pickering, op. cit., p. 362 e ss., 477 e ss. 95 Em alguns momentos, devemos confessar, a leitura dos textos de Augusto Comte chega mesmo a ser cômica. O caso mais emblemático, diríamos, diz respeito às “festas positivistas” que o autor – mimetizando de maneira bastante ingênua o período revolucionário – propõe com o intuito de integrar a nascente sociedade positivista. Para celebrar o progresso, Augusto Comte almeja instituir as “festas dinâmicas” e para celebrar a ordem (são, literalmente, estas as suas palavras), o autor propõe a criação das “festas estáticas”. Ver Ensemble, p. 342. 96 Em geral, aqui entenderemos a ortodoxia do positivismo como a corrente de pensamento que aceita a “fase religiosa” de Comte (em oposição aos seus seguidores heterodoxos, que, em geral, ficam apenas com a “fase científica”, recusando a religião da Humanidade).

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49

próximo capítulo, de uma interpretação republicana do autor – em nosso ver, fundamental

não apenas à compreensão da questão que nos interessa neste trabalho, isto é, os rumos

da República e do republicanismo na França ao longo do século dezenove, mas também,

acreditamos, à correta assimilação da própria filosofia do autor, afastada, por fim, das

caricaturas e dos espantalhos argumentativos aos quais entendemos ter sido com

frequência identificada.

1.2.2. Friedrich Hayek: o positivismo como prefiguração do totalitarismo

A leitura que Friedrich Hayek faz de Augusto Comte e de seu positivismo, devemos

salientar, se inscreve no bojo da crítica que o autor dirige ao cientificismo e ao determinismo

histórico – ou historicismo. “Durante a primeira metade do século dezenove, nos diz Hayek,

uma nova atitude se fez conhecer. O termo ciência acabou por ser confinado, cada vez

mais, às disciplinas físicas e biológicas, que ao mesmo tempo passaram a reivindicar para

si um rigor e uma certeza especiais que as distinguiam de todas as outras. Seu sucesso foi

tão grande que estas disciplinas logo vieram a exercer uma extraordinária fascinação sobre

aqueles que trabalhavam em outras áreas e que, rapidamente, começaram a imitar seus

ensinamentos e vocabulário. Teve início, portanto, a tirania que os métodos e técnicas

das Ciências, no sentido preciso do termo, exerceram desde então sobre as demais

disciplinas. Estas, por sua vez, se tornaram progressivamente preocupadas em requisitar

seu status equivalente, mostrando, para isso, que seus métodos eram iguais aos de suas

irmãs brilhantemente exitosas, ao invés de adaptá-los cada vez mais aos seus problemas

particulares”97.

O que preocupa fundamentalmente Hayek não é certo intercâmbio (natural e até certo

ponto salutar) de ideias e métodos entre os diferentes campos do conhecimento humano,

ou, mais especificamente, entre as ciências naturais. É a “ambição em imitar a Ciência em

seus métodos mais que em seu espírito”98, que dominou, segundo o autor, “nos últimos

cento e vinte anos ou mais, [...] os estudos sociais”99, sem ter contribuído muito ou

mesmo nada “à nossa compreensão do fenômeno social” 100 que deveria ser, no

entendimento do autor, judiciosamente evitada. Hayek faz questão de salientar que não

97 Friedrich Hayek, op. cit., p. 13-4. 98 Idem, ibidem, p. 14. 99 Idem, ibidem. 100 Idem, ibidem.

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é à ciência, circunscrita adequadamente em seus próprios domínios, que ele se opõe, mas,

sim, a certa atitude, mimética e acrítica, dos teóricos sociais que reivindicam o status

científico pelo simples fato de aplicarem às questões da sociedade métodos retirados

inadvertidamente das ciências naturais. “Quase não é preciso enfatizar que nada do que

teremos a dizer se dirige contra os métodos da Ciência em suas esferas apropriadas, ou é

concebido com intenção de lançar a menor dúvida sobre seu valor. No entanto, com o

intuito de prevenir qualquer mal-entendido a esse respeito, devemos falar, sempre que

estivermos nos referindo não ao espírito geral da pesquisa desinteressada, mas à imitação

servil do método e da linguagem da Ciência, em ‘cientificismo’ ou em preconceito

‘cientificista’”101.

“Dever-se-ia notar, prossegue Hayek, que, no sentido em que usaremos estes termos, eles

descrevem, obviamente, uma atitude que é decididamente não-científica, no sentido

verdadeiro da palavra, na medida em que abrangem uma aplicação mecânica e acrítica de

hábitos de pensamento a campos diferentes daqueles em que foram formados. O ponto

de vista cientificista, distinto do ponto de vista científico, não constitui uma abordagem

isenta, mas uma bastante tendenciosa, que alega saber de antemão, sem ter previamente

considerado seu objeto de estudo, qual é o caminho mais apropriado para investigá-lo”102.

No entendimento do autor, a França pós-revolucionária e, mais precisamente, a Escola

Politécnica foram o berço da “húbris cientificista”. “O homem nunca penetrará tão

profundamente no erro do que quando ele prossegue pelo caminho que o havia

conduzido a grande sucesso. E nunca poderiam o orgulho das conquistas das ciências

naturais e a confiança na onipotência de seus métodos ter sido mais justificado do que

na virada dos séculos dezoito e dezenove, e em nenhum outro lugar mais do que em

Paris, que congregava quase todos os maiores cientistas da época. [...] As duas maiores

forças intelectuais que, no curso do século dezenove, transformaram o pensamento social

– o socialismo moderno e aquela espécie de positivismo moderno que preferimos chamar

de cientificismo – nasceram diretamente do corpo de cientistas profissionais e

engenheiros formados em Paris, e mais particularmente da nova instituição que

incorporou o novo espírito como nenhuma outra, a Escola politécnica”103.

101 Idem, ibidem, p. 15. 102 Idem, ibidem, p. 15-6. 103 Idem, ibidem, p. 105.

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Esboça-se já no parágrafo precedente a aproximação, tentada por Hayek ao longo de

toda sua obra, entre o positivismo (ou cientificismo) e o socialismo. Se aqui o autor nos

diz que, do ponto de vista histórico (e Hayek tem razão em afirmá-lo), o positivismo e o

socialismo na França estiveram próximos em seu início – ambos partem do entorno do

movimento saint-simoniano –, já na parte final de seu trabalho, o autor se esforçará em

mostrar que, do ponto de vista teórico, ambos também se aproximam. “As discussões de

todas as épocas, nos diz Hayek, estão preenchidas com as questões a respeito das quais

suas principais escolas de pensamento discordam. Mas a atmosfera intelectual geral do

período é sempre determinada pelas opiniões a respeito das quais as escolas rivais

concordam. Elas se tornam os pressupostos não ditos de todo pensamento, as fundações

comuns e inquestionavelmente aceitas a partir das quais toda discussão procede”104.

“Minha tese, prossegue o autor, será que no campo do pensamento social não apenas a

segunda metade do século dezenove mas também nosso próprio tempo deve muito de

sua abordagem particular ao acordo entre dois pensadores comumente referidos como

completos antípodas intelectuais: o ‘idealista’ alemão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, e

o ‘positivista’ francês, Augusto Comte”105. Hayek reconhece que sob muitos aspectos os

dois filósofos “de fato, representam completos extremos do pensamento filosófico, a tal

ponto que parecem pertencer a diferentes épocas e raramente falar a respeito dos mesmos

problemas”106. Entretanto, o autor diz estar interessado apenas na influência dos dois

autores sobre a teoria social. “É nesse campo, prossegue Hayek, que a influência [de suas]

ideias filosóficas pode ser mais profunda e mais duradoura. E não há, talvez, melhor

ilustração dos efeitos de longo alcance das ideias mais abstratas do que a que prendo

discutir”107.

A um só tempo, Hayek vê Comte e Hegel como herdeiros do empirismo racionalista de

Descartes108 – via Montesquieu, d’Alembert, Turgot e Condorcet, para o caso de Comte;

e via Herder, Kant e Fichte, para o caso de Hegel – e como os ancestrais comuns de

autores como Renan, Taine e Durkheim, na França; Feuerbach, Marx e Engels, na

Alemanha; Mazzini, na Itália; e Dewey e Croce, em seu tempo109. Aos olhos do autor, o

104 Idem, ibidem, p. 191. 105 Idem, ibidem, p. 192. 106 Idem, ibidem. 107 Idem, ibidem. 108 Ver Hayek, op. cit., p. 196. 109 Idem, ibidem, p. 194.

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ponto comum existente entre as doutrinas de Comte e Hegel “é um em que, a princípio,

elas podem parecer sustentar visões diametralmente opostas: sua atitude com respeito à

investigação empírica. Para Comte, nos diz Hayek, ela constitui a totalidade da ciência;

para Hegel, ela está completamente fora daquilo que ele chama de ciência, embora, de

forma alguma, ele subestime a importância do conhecimento factual dentro de sua esfera.

O que os une é sua crença em que a ciência empírica deve ser puramente descritiva,

restrita a estabelecer as regularidades do fenômeno observado. Ambos são estritos

fenomenalistas, neste sentido, negando que a ciência empírica possa proceder da

descrição à explicação. Que o positivista Comte conceba toda explicação, toda discussão

a respeito da maneira segundo a qual o fenômeno é produzido como fútil metafísica,

enquanto Hegel a reserve à sua filosofia da natureza idealística, isto é um outro assunto.

Em suas visões a respeito das funções da investigação empírica eles concordam quase

completamente, segundo Émile Meyerson o demonstrou de forma belíssima”110.

O empirismo racionalista herdado por Comte e Hegel da tradição cartesiana, converte-

se então, segundo Hayek, num intelectualismo fenomenalista, que quando aplicado às

concepções sociais de cada um dos filósofos desdobra-se, por sua vez, num determinismo

histórico (ou fatalismo histórico) e num relativismo moral. “Quando nos voltamos ao campo da

teoria social, nos diz o comentador, descobrimos que as ideias centrais que Hegel e

Comte têm em comum estão tão proximamente relacionadas que quase podemos

expressá-las numa única sentença, se dermos o devido peso a cada palavra

separadamente. Tal proposição deveria soar mais ou menos assim: o objetivo central de

todo estudo a respeito da sociedade deve ser o de construir uma história universal de

todo o gênero humano, entendido como um esquema do desenvolvimento necessário da

humanidade de acordo com leis reconhecíveis”111. As leis que ambos almejam encontrar

– e, segundo Hayek, pouco importa que para Comte elas sejam “leis naturais” e para

Hegel “princípios metafísicos” – “são, em primeiro lugar, afirma o comentador, leis do

desenvolvimento do espírito humano”112.

A suposição, portanto, de que “nossas mentes individuais, que contribuem para [o]

processo [de desenvolvimento do espírito humano], ao mesmo tempo são capazes de

110 Friedrich Hayek, op. cit., p. 195-6. 111 Idem, ibidem, p. 196-7. 112 Idem, ibidem, p. 197, grifo nosso.

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compreendê-lo”113, está na base, segundo Hayek, das filosofias de Comte e Hegel, e

constitui aquela espécie de “pressuposto não dito”, aceito inquestionavelmente por toda

a tradição da teoria social desde então, que o autor nomeará, seguindo Karl Popper114, de

historicismo. Aos expoentes do historicismo alemão, Marx, Schmoller ou Sombart – que

Hayek, no entanto, faz questão de distinguir da “escola histórica” de um Niebuhr ou de

um Ranke –, o comentador irá, na sequência do texto, contrapor David Hume. Se os

primeiros afirmavam “que os antigos escritores, em particular aqueles do século dezoito,

haviam sido ‘anistóricos’”115, Hayek nos diz, entretanto, que, em seu ver, Hume “tinha

muito mais justificativas quando acreditara ser sua ‘a época histórica e [sua] a nação

histórica”116.

Ao aproximar a lei dos três estados de Comte da dialética hegeliana, Friedrich Hayek nos

diz que “para ambos [os autores], a história conduz a um fim predeterminado, que [...]

pode ser interpretado de modo teleológico como a sucessão dos propósitos

alcançados”117. De acordo ainda com o comentador, “o determinismo histórico [de

Comte e Hegel] – segundo o qual devemos entender não apenas que os eventos históricos

são de algum modo determinados, mas também que nós somos capazes de reconhecer

porque eles estão ligados de modo a seguir um curso particular – implica,

necessariamente, num completo fatalismo: o homem não pode mudar o curso da história.

[...] Não há espaço algum para a liberdade num tal sistema: para Comte, a liberdade é ‘a

submissão racional à dominação das leis naturais’, que são, obviamente, suas leis naturais

do desenvolvimento inevitável; para Hegel, é o reconhecimento da necessidade. E uma

vez que ambos estão em posse do segredo da ‘unidade intelectual definitiva e permanente’

– da ‘verdade absoluta’, no sentido de Hegel, ou na direção da qual a evolução tende,

segundo Comte –, ambos reivindicam para si o direito de impor a nova ortodoxia”118.

Para Hayek, o positivismo de Comte e a dialética de Hegel falham ao não explicar de que

modo “a interação dos esforços individuais pode criar algo maior do que conhecem. [...]

E, enquanto o individualismo do século dezoito, essencialmente humilde em suas

113 Idem, ibidem. 114 Ver Karl Popper, A miséria do historicismo, São Paulo, Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1980 e The open society and its enemies, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2002. 115 Idem, ibidem, p. 199. 116 Idem, ibidem. A preferência do comentador pela tradição do iluminismo escocês e pela filosofia insular de um modo geral é patente ao longo de toda sua obra. 117 Friedrich Hayek, op. cit., p. 200. 118 Idem, ibidem.

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aspirações, visou compreender, tanto quanto possível, os princípios pelos quais os

esforços individuais se combinam para produzir uma civilização, com o intuito de

aprender quais eram as condições mais favoráveis para seu ulterior crescimento, Hegel e

Comte se tornaram a maior fonte da húbris coletivista que visa à ‘direção consciente’ de

todas as forças da sociedade”119.

Friedrich Hayek encerra sua obra afirmando que “foi sob o signo [do] historicismo criado

na Alemanha que, na segunda metade no século dezenove, o grande ataque à teoria social

individualista foi conduzido; que as próprias fundações da sociedade liberal e

individualista vieram a ser questionadas; e que tanto o fatalismo histórico quanto o

relativismo ético se tornaram tradições dominantes. E foi particularmente sob sua

influência que, de Marx a Sombart e Spengler, as ‘filosofias da história’ se tornaram a

expressão mais influente da atitude da época em relação aos problemas sociais. [...]

enquanto as ideias de Hume e Voltaire, de Adam Smith e Kant, produziram o liberalismo

do século dezenove, aquelas de Hegel e Comte, de Feuerbach e Marx, produziram o

totalitarismo do século vinte”120.

1.2.3. Herbert Marcuse: o positivismo como apologia do capitalismo

Se Friedrich Hayek, como vimos na seção anterior, opta por tratar de Comte e Hegel

num mesmo volume com o intuito de aproximá-los filosoficamente, Herbert Marcuse,

em seu Razão e revolução, pretende fazer justamente o contrário. Já na introdução de sua

obra, o autor afirma ser “a dialética [hegeliana] a oposição rigorosa a qualquer forma de

positivismo”121. Curiosamente, Marcuse se dedica – “taticamente”, poderíamos dizer – a

fazer justamente o oposto que fizera Hayek em A contrarrevolução da ciência. Se lá a

aproximação de Comte a Hegel se dava com o intuito de lançar o positivismo na direção

do marxismo – ou, mais conforme aos propósitos (também eles “táticos”) de Hayek:

lançar o marxismo na direção do positivismo – aqui o afastamento de Hegel com respeito

a Comte se dá com o intuito de lançar, contrariamente, o positivismo na direção do

liberalismo. Como se vê, Augusto Comte é uma espécie de “batata quente” que ninguém

quer segurar.

119 Idem, ibidem, p. 203-4. 120 Idem, ibidem, p. 205-6. 121 Herbert Marcuse, Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social, São Paulo, Paz e Terra, 2004, p. 34.

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O modo segundo o qual Marcuse, ao mesmo tempo, afasta Comte de Hegel e o lança de

volta122 na direção do liberalismo consiste em aproximá-lo do empirismo, das concepções

epistemológicas de Locke e Hume, por exemplo. Segundo o autor, os próprios “critérios

de validade da razão” – a universalidade e a necessidade – seriam negados pelos

empiristas123. Para Locke, nos diz Marcuse, “as ideias gerais [...] ‘são invenções e criaturas

do entendimento, por ele forjadas para uso próprio, tendo a ver apenas com símbolos...

Quando por meio delas abandonamos o particular, resta de geral apenas o que foi criado

por nós [mesmos]’”124. Já para Hume, Marcuse afirma que “as ideias gerais são abstraídas

do particular, e ‘representam’ o particular, e apenas o particular. Jamais poderiam fornecer

regras ou princípios universais. Se estivermos obrigados a concordar com Hume, conclui

o autor, teremos de desistir de uma realidade organizada, pois, como vimos, tal exigência

se funda na capacidade que tem a razão de atingir verdades cuja [validade] não foi

derivada da experiência, verdades que poderiam, até mesmo, contrariar a experiência”125.

Ao não conceder à razão autonomia frente à necessidade de verificar empiricamente a

validade de suas verdades, Marcuse entende que Hume – e a tradição empirista como um

todo – condena a própria razão ao dado, ao particular: “‘Não é a razão que guia a vida,

mas o hábito’”126.

Esta conclusão a que leva o empirismo, segundo Marcuse, “fez mais do que minar a

metafísica: ela confinou o homem aos limites do ‘dado’, à ordem existente das coisas e

dos acontecimentos. Com que direito, se pergunta o comentador, poderia o homem

superar não apenas algum aspecto particular desta ordem, mas a própria ordem, na sua

totalidade? Com que direito poderia submeter esta ordem ao julgamento da razão? Se a

experiência e o hábito fossem as únicas fontes do conhecimento e da fé, como poderia o

homem agir contra o hábito, como poderia agir de acordo com ideias e princípios ainda

122 Para sermos justos com Marcuse, é Hayek quem lança o positivismo “de volta” na direção do marxismo. A primeira edição do Razão e revolução é de 1941, ao passo que a primeira publicação de A contrarrevolução da ciência data apenas de 1952. Para sermos justos agora com Hayek, seria ainda preciso dizer que as duas maiores seções de seu trabalho foram publicadas originalmente como artigos, de 1941 a 1944, na revista Economica. No entanto, segundo o próprio autor reconhece, no prefácio da edição de seu livro de 1952, a terceira parte da obra (a que concerne finalmente à aproximação entre Comte e Hegel) fora publicada pela primeira vez apenas em 1951, também como artigo, dessa vez na revista Mesure, embora viesse sendo preparada a partir de notas acumuladas desde os mesmos anos da publicação de seus dois primeiros artigos – o que nos leva a concluir que os trabalhos de Hayek e Marcuse são praticamente contemporâneos, em sua execução. Apesar de posterior ao trabalho de Marcuse, não há indícios na obra de Hayek que nos permitam afirmar que o autor a concebe como uma resposta direta ao frankfurtiano. 123 Ver Herbert Marcuse, op. cit., p. 28. 124 Herbert Marcuse, op. cit., p. 28. 125 Idem, ibidem. 126 Idem, ibidem.

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56

não aceitos e estabelecidos? A verdade não poderia diferir da ordem estabelecida, nem a

razão a poderia contrariar. Daí [resulta] não só o ceticismo como também o [próprio]

conformismo” 127 . Surgem, portanto, no texto de Marcuse, referindo-se ainda o

comentador apenas aos autores do empirismo insular do século dezoito, dois aspectos

centrais do positivismo de Augusto Comte: a negação da metafísica e o tema da

“resignação” (traduzido aqui em termos do “conformismo”). Marcuse chega mesmo a

dizer que “se o conhecimento por meio da razão (conhecimento por meio de conceitos

não derivados da experiência) significa metafísica, então o ataque à metafísica [levado a

cabo pelo empirismo, e depois pelo positivismo] é, ao mesmo tempo, um ataque às

condições da liberdade humana, pois o direito que assiste à razão de dirigir a experiência

[constitui] um dos aspectos [destas] condições”128.

Se, por um lado, aos olhos da tradição empirista – e, portanto, aos olhos do positivismo

–, o ‘dado’ é, segundo Marcuse, o positivo, ou seja, a única realidade tangível, no interior

da dialética hegeliana, nos dirá o comentador, “o simplesmente dado é, de saída, negativo,

isto é, diferente de suas reais potencialidades. É no processo de superação desta

negatividade que ele se torna verdadeiro; o nascimento da verdade requer, pois, a morte

do estado, que é dado, [a morte] do ser”129. Nota-se que até mesmo em termos de

vocabulário, Marcuse se empenha em opor o hegelianismo ao positivismo, afirmando

que “a filosofia de Hegel é, na verdade, aquilo de que ela foi acusada por seus opositores

imediatos: uma filosofia negativa”130. “De Hume aos positivistas lógicos da atualidade,

prossegue o autor, o princípio de tal filosofia [o positivismo] tem sido o prestígio definitivo

do fato, e seu método fundamental de verificação, a observação do dado imediato”131.

Vemos, portanto, que já na introdução de sua obra o autor fixa ao positivismo o caráter

meramente apologético da ordem social vigente. Segundo Marcuse, uma tal característica

seria herdada diretamente, via epistemologia, da tradição do empirismo inglês, de acordo

com a qual, em linhas gerais, o conhecimento humano parte apenas da experiência, o que

acabaria por confinar a própria razão, segundo o autor, aos limites do imediatamente

dado. “O positivismo assumiu, em meados do século XIX, e principalmente em resposta

às tendências destrutivas do racionalismo, a forma de uma ‘filosofia positiva’ que

127 Idem, ibidem. 128 Idem, ibidem, p. 29. 129 Idem, ibidem, p. 33. 130 Idem, ibidem, grifo nosso. 131 Idem, ibidem, p. 34, grifos nossos.

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57

englobaria todo o saber, e que iria substituir a metafísica tradicional. As figuras mais

eminentes deste positivismo acentuaram com muito vigor a atitude conservadora e

acrítica de sua filosofia: o pensamento era por ela induzido a contentar-se com os fatos, a renunciar

a transgredi-los e a submeter-se à situação vigente”132.

As “figuras mais eminentes desse positivismo” no século dezenove são, segundo nos diz

o próprio Marcuse (no segundo capítulo da segunda parte de sua obra), Saint-Simon e

Augusto Comte na França. Tratando agora especificamente do positivismo de Comte, o

autor nos dirá que “‘a filosofia positiva’ é, em última análise, uma contradição in adjecto.

Ela se refere à síntese de todo conhecimento empírico ordenado em um sistema de

progresso harmonioso, seguindo um curso inexorável. Toda oposição às realidades

sociais é subtraída à discussão filosófica”133. A verdadeira filosofia, depreende-se do texto

de Marcuse, deveria, portanto, se opor às “realidades sociais”, ao invés de meramente

entendê-las – como o faz a filosofia positiva – como o produto inexorável do “progresso

harmonioso” da civilização. Falando agora da sociologia de Augusto Comte, o autor nos

dirá que ela “deve ligar-se aos fatos da ordem, social e vigente, e, embora não rejeite a

necessidade de correção e aperfeiçoamento, exclui qualquer movimento para superar ou negar

esta ordem. Em consequência, o interesse conceitual da sociologia positivista é ser

apologética e justificativa”134.

A sociologia de Augusto Comte, conforme veremos em mais detalhes nos próximos

capítulos, como consequência da própria organização enciclopédica das ciências naturais,

entende os fenômenos sociológicos como os mais complexos e os mais imperfeitos de

todos, exigindo da ação humana, em comparação aos demais fenômenos naturais, um

maior grau de intervenção sobre eles – no sentido, pois, de aperfeiçoá-los. No excerto

acima, Marcuse demonstra não desconhecer esta característica essencial da filosofia

positiva, que convoca, portanto, o homem à “correção” e ao “aperfeiçoamento” (nos

termos marcusianos) da ordem social vigente. Ora, aos olhos de Marcuse, “correção” e

“aperfeiçoamento” são ideias fundamentalmente distintas de “negação” e “superação”.

“Esta concepção [dos fenômenos sociológicos], prossegue o autor, permite a Comte

aparecer como um bravo lutador contra o ancien régime numa época em que, já há muito

132 Idem, ibidem, grifos nossos. 133 Idem, ibidem, p. 291. 134 Idem, ibidem, grifos nossos,

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58

tempo, o ancien régime havia sido derrubado, tendo a classe média, já há muito tempo

[também], consolidado seu poder econômico e social”135.

Em termos históricos, é preciso dizer, Marcuse parece, em nosso ver, se precipitar no

excerto acima. A “virada filosófica” de Augusto Comte, que marca o início de sua obra

visando à reorganização social da Europa, tem início apenas sob a Restauração. A volta

da dinastia Bourbon ao poder, embora limitada agora a uma monarquia constitucional,

representa, sob muitos aspectos, uma ressonância do Antigo Regime na França pós-

revolucionária. Afirmar, portanto, como faz Marcuse, que “já há muito tempo o ancien

régime havia sido derrubado”, nos parece algo exagerado, frente à complexidade dos

embates políticos, sociais e econômicos testemunhados pela França contemporânea aos

primeiros escritos de Comte. Neste ponto, é preciso salientar, Marcuse nos parece seguir

certa ortodoxia da “interpretação marxista”136 da Revolução francesa, que apenas os

trabalhos de gerações de historiadores posteriores, como a de um François Furet137, já no

final dos anos 1970, ousou sistematicamente contestar. Seguindo, portanto, esta

interpretação, Marcuse afirmará que a filosofia positiva “vem a ser uma defesa ideológica

da sociedade de classe média e, mais ainda, [que ela] abriga as sementes de uma

justificação filosófica do autoritarismo”138.

Ao consistir, teoricamente, numa ciência cuja validade das leis “devia ser análoga à das

leis físicas”139, Marcuse nos diz que a sociologia comtiana reduz, portanto, “a prática

social, especialmente no que se refere à transformação do sistema social, [à mera]

fatalidade”140. Com efeito, não há, para o autor, “nenhuma dúvida quanto aos grupos e

objetivos sociais em favor dos quais se mencionava a resignação” 141 no interior da

filosofia positiva de Augusto Comte. “Raramente, no passado, qualquer filosofia insistiu

com tanto vigor e tão abertamente em que ela mesma fosse utilizada para a manutenção

da autoridade dominante e para a proteção do interesse estabelecido, contra toda e

qualquer investida revolucionária”142. A filosofia positiva de Augusto Comte, portanto, é

135 Idem, ibidem, p. 297. 136 Para uma síntese do debate a respeito desta questão, ver Geoffrey Ellis, The “Marxist interpretation” of French Revolution, The English Historical Review, v. 93, n. 367, 1978, p. 353-76. 137 Ver, por exemplo, François Furet, Penser la Révolution française, in: ______, La Révolution française, Paris, Gallimard, 2007, p. 7-220. O texto é publicado, originalmente, em 1978. 138 Herbert Marcuse, op. cit., p. 292. 139 Idem, ibidem, p. 293. 140 Idem, ibidem, p. 293. 141 Idem, ibidem, p. 294. 142 Idem, ibidem, p. 294-5.

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entendida, por Marcuse, como representante do que a tradição marxista se acostumou a

chamar de “filosofia burguesa da história”, uma vez que nela “as leis do progresso são

parte do mecanismo da ordem estabelecida, de modo que esta [progrida] suavemente

para um estado mais alto, sem ter de começar por ser destruída”143.

Em nosso ver, a chave para a compreensão da interpretação marcusiana do positivismo,

enquanto apologia do capitalismo, está no fato de que, aos olhos do autor, “a ideia de

progresso, de Comte, exclui a revolução, isto é, a total transformação do sistema dado de

circunstâncias”144. Se transportada ao contexto político dos escritos de maturidade de

Augusto Comte, a “revolução”, de que nos fala Marcuse no excerto acima, não pode ser

entendida em sentido abstrato, mas, sim, num sentido bastante específico: é a revolução

socialista, visando à destruição do capitalismo e à construção da sociedade sem classes –

é a isto que Marcuse vê o positivismo se opondo frontalmente. Para o autor, a filosofia

positiva de Comte, ao recusar a via revolucionária, opta necessariamente pela conciliação

de proletários e capitalistas, desarticulando, por sua vez, os mecanismos necessários à

efetivação da luta de classes. “Numa filosofia que justificava o sistema social dominante,

o apelo à tolerância tornou-se cada vez mais útil aos que se beneficiavam do sistema”145.

É por essa razão, afinal, que Marcuse entenderá o positivismo como “a antítese [da]

crítica marxista”146.

Por fim, cumpriria dizer que o positivismo, aos olhos de Herbert Marcuse, para além de

representar uma apologia do capitalismo (a ordem social vigente da época), de um certo

modo contém também as sementes do autoritarismo que floresceriam, no século vinte,

sob as formas do totalitarismo e do fascismo. Com efeito, afirma o autor que “a ideia de

ordem, tão cara ao positivismo de Comte, tem um conteúdo totalitário no seu sentido

social e metodológico”147. Marcuse nos adverte também que “a felicidade sob a proteção

de um braço forte – atitude hoje tão característica das sociedades fascistas – está ligada

ao ideal positivista da evidência”148.

143 Idem, ibidem, p. 297. 144 Idem, ibidem, p. 300. 145 Idem, ibidem, p. 303. 146 Idem, ibidem, p. 304. 147 Idem, ibidem, p. 297. 148 Idem, ibidem, p. 299.

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60

1.3. Em direção a uma leitura republicana de Augusto Comte

Gostaríamos, por fim, de destacar que, apesar das flagrantes diferenças, há algo de

bastante similar nas obras de Hayek e de Marcuse que acabamos de analisar brevemente

nas seções anteriores. Em primeiro lugar, atentemos para o fato de que ambos se dedicam

(embora partindo de pressupostos diferentes e chegando a conclusões também elas

diversas) a tratar conjuntamente, numa mesma obra, o positivismo de Augusto Comte (e

Saint-Simon) e a dialética hegeliana – pensamos que isto não se dá ao acaso. Marcuse,

por um lado, se vê herdeiro (em algum grau) da tradição crítica inaugurada por Hegel, ao

passo que Hayek vê no hegelianismo uma espécie de compagnon de route do positivismo de

Augusto Comte – seguramente, não pelo conjunto de suas filosofias, que o autor sabe

serem distintas, mas sobretudo por seus princípios e suas consequências, consideradas

por Hayek essencialmente similares. Ambos, no entanto, afastam-se do positivismo num

duplo movimento: ao mesmo tempo em que o recusam tentam transportá-lo, por meio

desta própria recusa, ao que entendem ser o terreno de seus adversários políticos. No

caso de Hayek, como já dissemos, o positivismo como que é lançado na direção do

marxismo pelas aproximações que o autor faz entre o pensamento de Comte e Hegel.

No caso de Marcuse, tenta-se aproximar o positivismo do empirismo, o que acaba por

empurrar Augusto Comte de volta ao campo dos liberais – se não como um “puro-

sangue”, ao menos como um primo bastardo.

Como veremos no próximo capítulo, a filosofia de Augusto Comte, se entendida a partir

de seus princípios, não nos parece, ademais, inclinada a dar sustentação filosófica a um

regime totalitário, como defende – mais explicitamente – Hayek – e, de maneira indireta,

como sugere também Marcuse –, uma vez que a solução que o autor propõe para a

“questão social” é de natureza apenas moral, e, com efeito, recusa insistentemente a via

da força e do poder temporal, devendo se impor ao conjunto da sociedade por meio

exclusivamente do assentimento voluntário dos dois extremos da classe produtiva, isto é,

proletários e capitalistas. Deste ponto de vista, portanto, o positivismo nos parece

alérgico, por exemplo, à ideia de um “partido único” – no qual estariam fundidos, num

certo sentido, o poder temporal e o poder espiritual –, ou ainda ao emprego da força

como forma de impor a nova ortodoxia ao conjunto da sociedade.

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61

A crítica hayekiana do cientificismo, por sua vez, pensamos ser algo inadequada, se

empregada, em particular, ao positivismo de Augusto Comte. Para Hayek, como vimos,

o cientificismo deve ser entendido, fundamentalmente, como a aplicação acrítica a

determinado campo de estudo – no caso especificamente tratado pelo autor, ao campo

das ciências sociais – de métodos formados originalmente em outras áreas de investigação

do conhecimento humano – em seu caso específico, de novo, as demais ciências naturais

(a física, a biologia, etc.). Ora, pensamos que Augusto Comte não poderia concordar mais

com Hayek a esse respeito, posto afirmar, ainda na juventude, que “para que uma ciência

se torne positiva é preciso, em geral, que ela se funde apenas sobre observações; mas há,

nos diz Comte, uma certa ordem de observações que corresponde a cada ciência em

particular; pretender perturbar esta correspondência necessária, se esforçar em proceder numa ciência

pelas observações que convêm a uma outra, é uma ideia absolutamente falsa e viciosa, cuja

execução poderia apenas retardar os progressos do espírito humano”149.

Com respeito agora ao que defende Marcuse, diríamos que o positivismo de Comte não

recusa completamente a ideia de revolução em seu sentido negativo, isto é, destruidor da

ordem vigente; ele apenas entende a própria ideia de revolução, em sentido amplo –

seguindo nisto Saint-Simon –, como constituída de dois momentos distintos: um

negativo, destrutivo, mas também um positivo, orgânico. A ideia de revolução marxista,

ademais, nos parece essencialmente similar (no que toca essa questão) à ideia de revolução

positivista – ambas têm em vista a regeneração final da sociedade. A diferença entre o

positivismo e o marxismo, no entanto, reside no conteúdo final que cada um pretende

atribuir ao processo de dissolução da antiga ordem vigente e de construção da nova

ordem nascente: a sociedade positivista, no caso de Augusto Comte (hierarquizada

segundo o princípio da separação do poder temporal e do poder espiritual e devotada ao

bem comum); e o comunismo no caso de Marx (uma sociedade sem classes e sem a

propriedade privada dos meios sociais de produção)150.

Nosso intuito aqui, como destacado de início, não consiste, contudo, em esmiuçar as

críticas liberal ou marxista dirigidas ao positivismo de Augusto Comte, mas apenas em

149 EJ, p. 475, grifo nosso. 150 A diferença que acabamos de assinalar engendra, ela também, uma discordância (entre o positivismo e o marxismo) com relação ao momento histórico que vivem atualmente as sociedades modernas. Aos olhos do positivismo, a Revolução francesa representa o primeiro momento (negativo) da própria regeneração final da sociedade; ao passo que para o marxismo, ela está, num certo sentido, fora do escopo da revolução social (a verdadeira revolução, afinal), representando apenas o seu ponto de partida, isto é, o início da dominação burguesa sobre a classe proletária.

Page 62: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

62

apresentá-las, em suas linhas gerais, como forma de preparar nossa leitura a respeito do

autor. No próximo capítulo, portanto, pretendemos justificar uma interpretação

republicana de Augusto Comte. Em nosso ver, inscrever o autor nos quadros do

republicanismo francês consiste no primeiro passo para se compreender adequadamente

o conteúdo de sua filosofia política. Entendê-lo como republicano, por exemplo,

impediria que liberais e marxistas, transformando-o num espantalho argumentativo,

tentassem transportar seu positivismo ao campo de seus adversários políticos –

acreditamos não ser possível lançá-lo nem ao campo dos liberais nem ao campo dos

marxistas, uma vez que Comte é um republicano (a “batata quente”, portanto, deve arder

nas mãos dos republicanos, e como deve arder...) –, ao mesmo tempo em que permitiria,

em nosso ver, apreciar a crítica que lhe é dirigida por cada uma dessas famílias da filosofia

política de forma mais adequada: a crítica do positivismo, tanto a de verniz marxista

quanto a de coloração liberal, ganharia, portanto, maior contundência, bem como o

debate (epistemológico, filosófico e político) travado, ainda que de forma implícita, por

Hayek e Marcuse tenderia, em nosso ver, a se aclarar.

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63

2. Comte republicano

2.1. Ser republicano na França pós-revolucionária

“Senhor, um filósofo constantemente republicano endereça ao mais absoluto dos reis atuais

uma exposição sistemática da regeneração humana, tanto social quanto intelectual”151. É

dessa forma – “um filósofo constantemente republicano” – que Augusto Comte descreve

a si próprio em carta endereçada ao czar Nicolau I, imperador da Rússia, datada de 20 de

dezembro de 1852 (cinco anos antes, portanto, de sua morte) e reimpressa no prefácio

do tomo terceiro de seu Sistema de política positiva. A essa descrição de si próprio na velhice

vêm se juntar outras, feitas em correspondência a seus amigos e familiares, desta vez a

propósito do Comte ainda secundarista: “Desde a idade de quatorze anos eu havia

naturalmente cessado de acreditar em Deus”152. Essa emancipação religiosa, segundo

assinala Henri Gouhier, fora contemporânea de uma emancipação política, que o filósofo

designa “o republicanismo espontâneo de sua primeira juventude”153. Portanto, segundo os

depoimentos do próprio autor em suas cartas, deduzimos que ao menos dos quatorze

aos cinquenta e quatro anos, quase a totalidade de sua vida, Augusto Comte permaneceu

fiel à causa republicana na França. O que quer dizer isso em seu pormenor? Pergunta de

difícil solução.

151 SPP, III, p. xxxix, grifo nosso. 152 A citação é feita por Henri Gouhier a partir de trechos da correspondência de Augusto Comte publicados pela Revue Occidentale, no primeiro tomo do ano de 1909. O trecho em questão, datado de 26 de janeiro de 1857, aparece, segundo nota do comentador, tanto no extrato intitulado À son père, p. 15, como no intitulado À divers, p. 379. Ver Henri Gouhier, La jeunesse d’Auguste Comte, v. 1, Paris, Vrin, 1933, p. 71. 153 A citação agora se dá com respeito a carta de Augusto Comte endereçada a M. de Tholouze, datada de 17 de setembro de 1849, e publicada na Corréspondence inédite d’Auguste Comte, v. 3, Paris, Au Siège de la Société Positiviste, 1904, p. 83. Ver Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 71. O grifo na citação é nosso.

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64

2.1.1. República indeterminada

Ao se indagar a respeito de qual seria a forma de governo das sociedades no futuro, um

célebre autor francês, contemporâneo de Augusto Comte, em passagem memorável de

uma de suas obras mais famosas, no diz: “‘Mas’, como alguns dos meus leitores mais

jovens podem protestar, ‘você é um republicano’. Republicano sim, mas essa palavra não

define nada. Res publica; isto é, a coisa pública. Agora, não importa quem esteja concernido

com os afazeres públicos, sob não importa qual forma de governo, pode chamar a si

próprio um republicano. Mesmo reis são republicanos. ‘Bom, então, você é um

democrata?’. Não. ‘O quê?! Você é um monarquista?’. Não. ‘Um constitucionalista?’.

Deus me livre! ‘Então, é um aristocrata?’. De forma alguma. ‘Quer um governo misto?’.

Menos ainda. ‘Mas, então, o que você é?’. Eu sou um anarquista” 154 . A resposta

arrebatadora dada por Pierre-Joseph Proudhon, em seu O que é a propriedade?, publicado

pela primeira vez em 1840, a seu jovem e imaginário interlocutor, entra para a história

das ideias, é bem sabido, como o momento de fundação do anarquismo. Interessa-nos

aqui, entretanto, não esta última parte de sua resposta, mas a primeira dela, em que o

autor, recorrendo à etimologia, pretende conferir a “República” e a “republicano” um

significado mais preciso, logo depois de ter se assumido, ele próprio, um adepto da “coisa

pública”.

Aos olhos de Proudhon (autor relevantíssimo para o período, é preciso enfatizar), certa

indeterminação parece acompanhar os termos “republicano” e “República” no debate

político francês do século dezenove. Ao dizer que “agora, não importa quem [...], pode

chamar a si próprio um republicano, [...] mesmo reis”, o autor nos sugere certa

banalização do termo, que viria acompanhada, por sua vez, de um esgarçamento de seu

campo semântico e conceitual (considerado outrora mais restrito, é preciso supor). A

indeterminação do vocábulo “republicano” permite, neste caso, sua convivência em

harmonia com a designação (que Proudhon faz de si mesmo) de “anarquista”, sem que

um anule necessariamente o outro: o autor se diz, ao mesmo tempo, sublinhemos,

republicano e anarquista155. Não pretendemos aqui tomar esse caso fora dos limites estreitos

154 Pierre-Joseph Proudhon, What is property?, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 204-5. 155 Se há em Proudhon, como dissemos, um republicanismo anarquista, ou, de forma equivalente, um anarquismo republicano, segundo assinala agora Vincent Peillon, haveria também no período, sobretudo em Pierre Leroux, um republicanismo socialista ou um socialismo republicano (o que viria a corroborar a hipótese aventada por Proudhon a respeito da indeterminação do republicanismo francês). Ver Vincent Peillon, Actualisation du socialisme républicain: sécularisation, modernité et laïcité, in: Juliette Grange et Pierre Musso

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65

de sua particularidade, isto é, propor sua generalização como forma de explicar as diversas

outras ocorrências dos termos “republicano” e “República” no debate político francês da

época. Pensamos, entretanto, que ele nos é bastante útil para ilustrar um aspecto muito

saliente do republicanismo francês, frequentemente encontrado também nos

comentários de estudiosos do período.

Segundo Alan Spitzer, uma indeterminação semelhante a esta assinalada por Proudhon

em O que é a propriedade? apresenta-se também ao leitor de Victor Hugo em Os miseráveis

(ambientado ainda na Paris da Restauração), numa passagem – que, segundo o

comentador, “deixou um traço permanente na imaginação historiadora”156 – em que

Monsenhor Bienvenu Myriel, santo bispo de Digne, se apresenta para a extrema unção

de um homem em seu leito de morte. “O homem que ele vem a confrontar muito mais

do que reconfortar, nos diz Spitzer, mas ao qual, no fim, ele implora a bênção, é um

antigo jacobino, um convencional, um homem que, nos primeiros anos da Restauração,

se encontra rejeitado como um pária, culpado, pelo passado, dos mais horríveis crimes

políticos, inclusive, se acredita, do regicídio”157. O velho jacobino, entretanto, nega ter

votado a morte do rei, dizendo: “Eu não acredito ter o direito de matar um homem; mas

sinto ter o dever de exterminar o mal. Eu votei o fim do tirano. Isto é, o fim da

prostituição para a mulher, o fim da escravidão para o homem, o fim da noite para a

criança. Ao votar a república, foi isto que votei. Votei a fraternidade, a concórdia, a

aurora! Contribuí para a derrubada dos preconceitos e dos erros. A derrocada dos erros

e dos preconceitos é o que traz a luz. Nós fizemos cair o velho mundo, nós outros, e o

velho mundo, vaso de misérias, ao se derramar sobre o gênero humano, se tornou uma

urna de felicidade”158.

“Ao se orgulhar de uma vida devotada à República, prossegue Spitzer, o ancião não

anuncia nenhuma república particular; nenhum conteúdo institucional específico

preenche esta urna de alegria. Esta indeterminação, conclui o comentador, prefigura ela

também mais de um século de um republicanismo fundamentalmente caracterizado por

(org.), Les socialismes, Paris, Le Bord de l’Eau, 2012, p. 90-106, e Pierre Leroux et le socialisme républicain: une tradition philosophique, Paris, Le Bord de l’Eau, 2003. 156 Alan Spitzer, La république souterraine, in: François Furet & Mona Ozouf (org.), Le siècle de l’avènement républicain, Paris, Gallimard, 1993, p. 345. 157 Idem, ibidem. A respeito dos “regicidas” sob a Restauração, consultar Edgard Newman, Lost illusions: the regicides in France during the Bourbon Restauration, Nineteenth-century French Studies, v. 10, n. 1/2, p. 45-74, 1981-2. 158 Victor Hugo, Les misérables, in: ______, Œuvres complètes, edição de Jean Massin, Paris, Club Français du Livre, 1967-70, p. 11, 79, apud Alan Spitzer, op. cit., p. 346.

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66

sua natureza ambígua e proteiforme” 159 . Vemos, portanto, que os dois casos aqui

apresentados, tanto o de Proudhon como este agora de Victor Hugo, analisado por

Spitzer, parecem indicar que em sua gênese o republicanismo francês se afirmou

sobretudo por uma negação: a negação do absolutismo; a tirania de que nos fala o velho

jacobino. Tudo se passaria na França, segundo essa interpretação, como se a República

fosse gradualmente adquirindo um significado mais preciso somente à medida que se

apresentava como alternativa política (enquanto regime de governo) à monarquia

absoluta e como alternativa espiritual (em termos de valores e de costumes) ao Antigo

Regime160. “Mesmo reis são republicanos”, enfatizava Proudhon, acreditando com isso

evidenciar a indeterminação completa do vocábulo. Como se, finalmente, ao admitir sob

sua égide sua própria antítese, o republicanismo perdesse completamente seu significado

e sua pertinência enquanto designação política característica161.

Claude Nicolet, em seu trabalho seminal sobre A ideia republicana na França, faz coro

também à interpretação de que o vocabulário republicano francês é sensivelmente

indeterminado. Já na introdução de seu livro, como vimos, o historiador nos falava de

uma multiplicidade de sentidos para a República no ideário político nacional162. Mais à

frente, Nicolet afirmará também que, ao se situar no interior da Revolução, o

“republicanismo francês, à imagem do cristianismo, [adquire o caráter de] uma doutrina

histórica encarnada, que, a cada geração, reescreverá uma história sempre nova de um

evento considerado como um ponto zero absoluto”163. Neste trecho, é preciso enfatizar,

o historiador mobiliza duas noções muito recorrentes entre os intérpretes da Revolução

francesa e de sua tradição republicana: a primeira delas, a ideia de que na França a

Revolução adquire, segundo as palavras de François Furet, o estatuto de um “recomeço

da humanidade, que os franceses nomearão regeneração”164, fazendo, portanto, tábula rasa

159 Alan Spitzer, op. cit., p. 347. 160 Segundo as palavras de Pierre Rosanvallon, “a oposição monarquia-república não é compreendida na França como um problema histórico ou constitucional. Ela tem uma dimensão filosófica: a república é a antimonarquia radical”, Le sacre du citoyen: histoire du suffrage universel en France, Paris, Gallimard, 1992, p. 456-7. 161 Acreditamos, diferentemente de Proudhon, que a questão seja mais complexa (conforme pretendemos mostrar mais adiante). O tipógrafo parece, no trecho aqui em destaque, inclinado a identificar ao absolutismo qualquer forma de monarquia (o que não é necessariamente verdadeiro). Há muita fluidez nos termos associados à tradição republicana francesa no século dezenove, o que permite aos atores políticos (e Proudhon, no limite, é um desses atores), um emprego destes termos, a depender da conjuntura enfrentada, em sentidos muito variados. 162 Ver Claude Nicolet, L’idée républicaine en France (1789-1924): essai d’histoire critique, Paris, Gallimard, 1994, p. 9 e ss. 163 Claude Nicolet, op. cit., p. 57. 164 François Furet, L’idée française de la Révolution, in: ______, La Révolution française, Paris, Gallimard, 2007, p. 889.

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do passado e cristalizando em torno da República “a ideia de uma história originária, pela

qual a sociedade voltaria a ser conforme à natureza e à razão” 165 . A segunda ideia

mobilizada por Nicolet é que “Revolução” e “República” se confundem na história do

pensamento político francês. Nas palavras de Patrice Gueniffey, “a Revolução é desde o

início republicana”166, o que justificaria, ainda segundo o historiador, os revolucionários

terem situado o ano I de seu calendário em 1792, ano de fundação da Primeira República,

e não em 1789, ano da tomada da Bastilha, como forma de conferir, retrospectivamente

e a despeito de os acontecimentos políticos os contradizerem, um início republicano à

Revolução167.

Já para Pamela Pilbeam, merece destaque, de início, o caráter singular do republicanismo

francês: “[A] França, nos lembra a historiadora, foi o único grande estado europeu a

tentar substituir um governo monárquico por um republicano ao final do século

dezoito”168. Diferentemente dos Estados Unidos, cuja República se tornou estável já logo

depois da guerra de independência, para a França, entretanto, “foram necessárias três

revoluções, duas monarquias, dois impérios e a derrota na guerra de 1870 [para as tropas

de Bismarck] antes de uma república se tornar sustentável”169 em seu território. “Para os

republicanos, prossegue Pilbeam, a república veio a sumarizar o triunfo final, espiritual e

institucional, do homem em sociedade” 170. Seu longo processo de consolidação, no

entanto, acabou por lhe conferir características bastante particulares. A tese principal da

historiadora, que a norteará ao longo de toda sua investigação, é que a República se

desenvolveu na França, desde a Revolução até a sua consolidação nas décadas de 1870-

80, tendo por base três elementos principais: “a inspiração dos filósofos da ilustração, a

emergência de 1792, quando a tentativa de remodelar a sociedade estava em crise, e

[finalmente] a resposta ao impacto social das mudanças econômicas”171 ocorridas no país,

165 Idem, ibidem. 166 Patrice Gueniffey, Cordeliers et girondins: la préhistoire de la République?, in: François Furet & Mona Ozouf, op. cit., p. 206. 167 Gueniffey, com sua contundente afirmação, distorce levemente os fatos (de forma consciente, nos parece). O historiador se esforça em mostra que em espírito a Revolução era republicana já desde o seu início, apesar de não haver, segundo as famosas palavras de Camille Desmoulins, mais do que uma dezena de republicanos em Paris às vésperas do 14 de julho, e apesar de os debates iniciais do período revolucionário indicarem muito mais a monarquia limitada como saída constitucional para a crise política recém instaurada do que a via republicana. Ver, a esse respeito, Alphonse Aulard, Histoire politique de la Révolution française: origines et développement de la démocratie et de la République (1789-1804), Paris, Armand Colin, 1901, p. 5 e ss. 168 Pamela Pilbeam, Republicanism in nineteenth-century France (1814-1871), Londres, Macmillan, 1995, p. 1. 169 Idem, ibidem. 170 Idem, ibidem. 171 Idem, ibidem.

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resultantes do processo de industrialização e de avanço do capitalismo em suas

metrópoles, sobretudo Paris172.

Se Pamela Pilbeam está correta em sua análise, isto é, se o republicanismo francês de fato

se consolida, no século dezenove, a partir (i) da herança da filosofia das Luzes; (ii) da

memória da Primeira República (com seu espectro de autoritarismo se manifestando ora

na figura do Terror jacobino, ora na figura do cesarismo); e (iii) a partir daquilo que se

convencionou chamar, ainda à época, de a “questão social”173, precisamos estar atentos,

em nossa investigação particular a respeito do republicanismo de Augusto Comte, ao

modo segundo o qual o pensamento do autor se inscreve nesse quadro de questões. A

relação de Augusto Comte com a tradição iluminista e com os ecos da Primeira

República, teremos oportunidade de abordar, com maior riqueza de detalhes, mais à

frente nesta exposição. Nos próximos parágrafos, gostaríamos apenas de analisar de

forma breve, não mais do que isto, alguns aspectos bastante particulares da relação do

positivismo com a “questão social”, buscando retirar desta análise fundamentos para

nossa interpretação do republicanismo de Augusto Comte (que, com sorte, poderão

auxiliar também na tarefa, mais geral, de compreender o pensamento republicano francês

do século dezenove como um todo).

172 Para outros trabalhos de conjunto a respeito do republicanismo francês no século dezenove, consultar os estudos pioneiros de Georges Weil, Histoire du parti républicain en France (1814-1870), Paris, Félix Alcan, 1929 e de Iouda Tchernoff, Le parti républicain sous la Monarchie de Juillet: formation et évolution de la doctrine républicaine, Paris, A. Pedone, 1901 e Le parti républicain au coup d’État et sous le Second Empire, Paris, A. Pedone, 1906. A respeito do republicanismo francês sob a Restauração, consultar a tese não publicada de Edgard Newman, Republicanism during the Bourbon Restauration in France (1814-1830), Chicago, Universidade de Chicago, 1969. 173 A respeito da “questão social”, Robert Castel nos diz: “Essa questão foi explicitamente nomeada como tal, pela primeira vez, nos anos 1830. Foi então suscitada pela tomada de consciência das condições de existência das populações que são, ao mesmo tempo, os agentes e as vítimas da revolução industrial. É a questão do pauperismo. Momento essencial aquele em que pareceu ser quase total o divórcio entre uma ordem jurídico-política, fundada no reconhecimento dos diretos dos cidadãos, e uma ordem econômica que acarreta uma miséria e uma desmoralização de massa. Difunde-se então a convicção de que aí há de fato ‘uma ameaça à ordem política e moral’, ou, mais energicamente ainda: ‘É preciso encontrar um remédio eficaz para a chaga do pauperismo ou preparar-se para a desordem do mundo’. Entenda-se isso como o fato de que sociedade liberal corre o risco de explodir devido às novas tensões sociais que são a consequência de uma industrialização selvagem”, As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, Rio de Janeiro, Vozes, 2005, p. 30. Para outros estudos, já tidos como clássicos, a respeito do assunto, ver Louis Chevalier, Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris pendant la première moitié du XIXe siècle, Paris, Librairie Générale Française, 1978 e Jacques Donzelot, L’invention du social: essai sur le déclin des passions politiques, Paris, Fayard, 1984. Para um depoimento a respeito do tema, ainda no século dezenove, consultar Paul Deschanel, La question sociale, Paris, Calmann-Lévy, 1898. E, finalmente, para uma introdução do assunto ao leitor brasileiro, ver Maria Stella M. Bresciani, Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza, São Paulo, Brasiliense, 2004.

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69

2.1.2. O bem comum e a questão social

Pensamos que é em seu Discurso sobre o conjunto do positivismo, publicado em 1848 e

republicado (com algumas pequenas modificações) em 1851 como “discurso preliminar”

de seu Sistema de política positiva, que Augusto Comte expõe de maneira mais clara e

sistemática a posição de sua doutrina positivista frente à questão social, bem como sua

relação com elementos distintivos da tradição republicana consolidados ao longo dos

tempos. A referência explícita a termos como “República”, “republicanismo” e

“republicano” – segundo nos mostra a tábua analítica (elaborada por M. H. d’Olier) do

Sistema de política positiva174 –, viceja neste texto como em nenhum outro de seus escritos.

“O verdadeiro princípio republicano, nos diz Augusto Comte, consiste em fazer sempre

concorrer ao bem comum todas as forças quaisquer. Para isto, é preciso, de um lado,

determinar exatamente aquilo que exige, em cada caso, a utilidade geral e, de outro lado,

desenvolver por toda parte as disposições correspondentes”175.

Vê-se do trecho acima, essencial para nossa análise, que o positivismo de Augusto Comte

se vincula à tradição republicana a partir (ousaríamos dizer) de sua característica a mais

fundamental: a ideia do bem comum. O bem comum, entretanto, aparecerá em nosso autor,

como pretendemos mostrar adiante, entrelaçado à questão social, o que acaba por

conferir ao seu republicanismo um caráter bastante particular e inovador, em face da

tradição republicana que o antecedeu. “Descartando para sempre, nos diz o autor, a

mentira oficial pela qual a monarquia constitucional pretendia se erigir como o resultado

final da grande revolução, nossa república pode apenas proclamar, como irrevogável, seu único

princípio moral, a completa preponderância contínua do sentimento social, devotando diretamente ao bem

comum todas as forças reais. Tal é, nos dias de hoje, a única máxima verdadeiramente

definitiva [...]. Mas, quanto às doutrinas e, por via de decorrência, às instituições próprias

a organizar este reino direto da sociabilidade universal, nossa república permanece essencialmente

indeterminada, e comporta muitos regimes diferentes. Não há nada de politicamente

irrevogável senão a completa abolição da realeza, que, sob uma forma qualquer, constituía

há muito tempo na França, e mesmo em menor grau em todo o Ocidente, o símbolo da

retrogradação”176.

174 Ver SPP, IV, Tábua analítica, p. 30. 175 Ensemble, p. 163-4. 176 Ibidem, p. 118, grifo nosso.

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70

Notemos, em primeiro lugar, que a indeterminação da República, de que falamos

longamente no início desta exposição, reaparece ao final do exposto precedente de

maneira flagrante: em termos de doutrinas e de instituições, afirma Augusto Comte, a

única certeza que se tem é a abolição da monarquia. Notemos, em seguida, que o

“princípio moral” da república (seu único princípio moral, ademais) é entendido aqui

como a “preponderância do sentimento social”, que devota ao bem comum todas as

forças reais. O “comum” e o “social” aparecerão nesses escritos de Comte de tal forma

reunidos que não será mais possível, em nosso entendimento, conferir a cada um deles

um significado totalmente distinto, devendo-se, portanto, interpretá-los, na maior parte

das vezes, como sinônimos. Senão, vejamos: o autor afirma, noutra passagem do texto,

que “o abalo revolucionário, que impulsionou definitivamente a França, centro normal

do Ocidente, à busca de uma regeneração total”177, foi o responsável pela proclamação,

“sem nenhuma intervenção teológica, [do] verdadeiro princípio social, surgido de início na

Idade Média, sob a inspiração católica, mas não podendo prevalecer senão em

conformidade a uma melhor filosofia e num meio mais bem preparado”178.

Ora, se o autor nos afirma, no trecho em questão, que a Revolução proclamara o princípio

social, momentos antes no texto ele nos afirmava: “Em sua significação negativa, o

princípio republicano resume definitivamente a primeira parte da revolução, interditando

qualquer retorno de uma realeza que, desde a segunda metade do reino de Luís XIV,

aglutinava naturalmente todas as tendências retrógradas”179. Buscamos aqui, a partir do

cotejo destes dois últimos excertos, fundamentar a interpretação de que, no fundo, os

princípios “social” e “republicano”, de que nos fala Augusto Comte, podem ser

compreendidos como uma única e mesma coisa. Com efeito, segundo os próprios termos

do autor, a Revolução, por um lado, proclamou o princípio social (proclamara, também,

não nos esqueçamos, a própria República); por outro lado, a primeira parte da revolução

(em termos históricos, a própria Revolução180) pode ser resumida em termos do princípio

republicano (ainda que com respeito apenas à sua significação negativa). Em síntese: a

177 Ibidem, p. 62. 178 Ibidem, p. 71, grifo nosso. 179 Ibidem, p. 70. 180 Augusto Comte fala em “primeira parte da revolução” pois, em sua concepção, a verdadeira noção de revolução pressupõe sempre dois momentos distintos: um crítico, destrutivo, mas também um orgânico, construtivo (que, no caso da França, ainda estaria por vir). Carente deste segundo momento, a Revolução, aos olhos do autor, não passaria de mera anarquia; carente, por outro lado, do primeiro momento, ela seria simplesmente impossível.

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Revolução proclama o princípio social e o princípio republicano resume a Revolução

(respeitando absolutamente a letra do autor, é isto o que seu texto nos diz). Se quisermos

manter (por razões de acuidade exegética) a independência dos dois princípios, ou seja,

evitar a sua identificação completa, teremos aos menos de reconhecer a sua sobreposição

parcial, isto é, se o princípio social não se reduz completamente ao princípio republicano,

ao menos está por ele de alguma forma envelopado.

Já com respeito à sua significação positiva, Augusto Comte nos dirá que o princípio

republicano “inicia diretamente a regeneração final [da sociedade], proclamando a

subordinação fundamental da política à moral, segundo a consagração permanente de

todas as forças quaisquer a serviço da comunidade181. Sem dúvida, este princípio não

existe ainda senão em estado de sentimento; mas era assim que ele deveria surgir e é assim

mesmo que ele prevalecerá ainda depois de sua indispensável sistematização”182. Ainda

segundo o autor, “o conjunto do movimento [revolucionário] possuía, desde o início,

uma destinação essencialmente orgânica, sobretudo explícita a partir da preponderância

do espírito republicano” 183 . Essa regeneração social, entretanto – essencialmente

orgânica, responsável pela subordinação da política à moral e que em breve se propagará

no seio da sociedade (mesmo depois da sistematização de seus princípios) enquanto um

“sentimento” –, deverá ser levada a cabo, segundo Comte, não pelas classes que detêm o

poder temporal, mas justamente por aquelas cuja própria existência pressupõe a sua

destituição do poder.

“Um ativo egoísmo aristocrático, nos diz Augusto Comte, entrava ordinariamente a

preponderância real do sentimento social, princípio supremo de nossa reorganização.

181 É curioso notar que quando se refere à comunidade (ou ao bem comum), nosso autor, na maior parte das vezes, utiliza termos associados também ao catolicismo. Ocorre aqui “consagração” (consécration); mais acima no texto víamos o aparecimento do termo “devotando” (vouant). Pensamos que nada disso é por acaso. Para além do elogio da Idade Média, como um período de grande progresso social, sobretudo pela superação da identidade entre “poder espiritual” e “poder temporal” (confundidos, para Comte, na Antiguidade), a exaltação de figuras da escola contrarrevolucionária, como Joseph de Maistre, é recorrente nos textos do autor. A admiração por Louis de Bonald e Lamennais, apesar de suas discordâncias teóricas, também nunca fora ocultada por Augusto Comte, que, em alguns momentos, chegou mesmo a manter relações de amizade com estes expoentes do pensamento neocatólico. Para a separação entre poder espiritual e poder temporal, ver CPS, passim. Para a relação de Comte com de Bonald e Lamennais, ver Mary Pickering, Auguste Comte: an intellectual biography, v. 1, Cambridge, Cambridge University Press, 1993, p. 117, 157, 307, 313, 668 e 265-6, 356, 391, respectivamente. Se o positivismo entretém, como mostraremos no capítulo seguinte, uma relação ambivalente com a escola revolucionária, supomos aqui que o mesmo se dá no caso da escola retrógrada. Com efeito, a junção da Ordem e do Progresso faz de nosso autor uma figura dividida em seu tempo, um reformador social que se esforçará, a todo custo, em compatibilizar duas coisas que insistem em se manter desconexas. Augusto Comte tem a um só tempo uma mente revolucionária e um coração do Antigo Regime. 182 Ensemble, p. 70. 183 Ibidem, p. 66.

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Não apenas não se deve contar com as classes cuja dominação foi para sempre destruída

no início da crise revolucionaria; mas nós devemos esperar uma repugnância [pelo

sentimento social] quase tão real, embora melhor dissimulada, naquelas [classes] que

obtiveram então a ascensão social que cobiçavam há muito tempo. Suas concepções

políticas se relacionam sobretudo à posse do poder, ao invés de concernir a sua

destinação e seu exercício. [...] Ambas estariam de acordo, sobretudo, em prolongar, tanto

quanto possível, sob novas formas, mesmo republicanas, o sistema de hipocrisia teológica

que constitui agora o único resquício efetivo do regime retrógrado”184. As classes às quais

se refere o autor no excerto são a antiga nobreza, os estamentos clericais e a burguesia

ascendente. Em seu ver, é preciso frisar, nenhuma delas deverá conduzir doravante o

processo derradeiro de consolidação da revolução, isto é, a regeneração final da

sociedade.

“[O] positivismo, prossegue Augusto Comte, não pode obter profundas adesões coletivas

senão no seio das classes que, estrangeiras a qualquer viciosa instrução de palavras ou de

entidades, e naturalmente animadas por uma ativa sociabilidade, constituem doravante

os melhores apoios do bom senso e da moral. Numa palavra, nossos proletários são os únicos

suscetíveis a se tornarem os auxiliares decisivos dos novos filósofos. A impulsão regeneradora

depende sobretudo de uma íntima aliança entre estes dois elementos extremos da ordem

final”185. O poder espiritual, condão da moralidade, suposto subjugar a política e o poder

temporal, deve ficar, segundo o autor, a cargo de uma classe de cidadãos composta por

proletários e filósofos. No limite, entende Augusto Comte, estas duas figuras sociais

tendem mesmo a se confundir, porquanto “todo proletário constitui, em muitos sentidos,

um filósofo espontâneo, bem como todo filósofo representa, sob diversos aspectos, um

proletário sistemático”186. Confundem-se elas também quanto à sua posição na sociedade

em relação à burguesia. “Estas duas classes extremas, arremata o autor, oferecerão,

ademais, disposições equivalentes com respeito à classe intermediária, que, sede

necessária da preponderância temporal, tem sob sua dependência normal a comum

existência pecuniária [de cada uma] delas”187.

184 Ibidem, p. 128-9. 185 Ensemble, p. 129, grifo nosso. 186 Ibidem, p. 130. 187 Ibidem.

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Sem restituir o Antigo Regime, Augusto Comte visa, entretanto, ao restabelecimento de

sua estrutura fundamental, isto é, a separação entre o poder temporal e o poder espiritual,

mas adequada agora às características de uma sociedade moderna, pós-revolucionária e

industrial188. Os proletários, “auxiliares indispensáveis do poder espiritual”189, ocupariam,

neste contexto, um lugar de destaque no processo de regeneração da sociedade. “Longe

de comprometer a ordem fundamental, afirma o autor, uma tal cooperação popular

constituirá sua mais firme garantia, pela simples razão de que ela não será política, mas

moral. [...] À turbulenta discussão dos direitos, substituiremos a tranquila determinação

dos deveres. Os vãos debates a respeito da posse do poder serão substituídos pelo exame

das regras relativas ao seu exercício”190. Na direção deste objetivo, assinala Augusto

Comte, os proletários franceses “já deram [...] um passo espontâneo, cuja importância é

ainda pouco sentida. Uma célebre utopia, que se propaga rapidamente, lhes serve, na falta

de uma melhor doutrina, para formular hoje em dia sua maneira própria de conceber a

principal questão social. Embora a experiência que resultou da primeira parte da revolução

não os tenha, de modo algum, desacorçoado completamente das ilusões políticas, ela os

conduziu a sentir que a propriedade lhes importava mais do que o poder propriamente dito.

Estendendo até ela [a propriedade] o grande problema social, o comunismo presta nos dias

de hoje um serviço fundamental que não é, no entanto, neutralizado pelos perigos

temporários inerentes a suas formas metafísicas”191.

2.1.3. A propriedade como cerne da questão social

Como visto, o cerne da questão social para Augusto Comte (bem como para a maior

parte de seus contemporâneos) é a propriedade. O deslocamento do debate do político

para o social, vale assinalar, é uma das características mais marcantes deste século

dezenove que nos arriscamos aqui a investigar (e nosso autor, como vemos, acompanha

este movimento). Note-se que a discussão a respeito das instituições e dos regimes de

governo – o “poder propriamente dito” – se torna absolutamente secundária neste caso

(como, ademais, em boa parte dos autores do período). Importa mais a organização do

188 Em nota de sua Sumária apreciação do conjunto do passado moderno, Augusto Comte nos diz: “A divisão da sociedade, e de tudo quanto lhe concerne, em temporal e espiritual, deve subsistir no sistema novo, como acontecia no antigo. Esta divisão, que não existia entre os romanos, é o mais importante aperfeiçoamento realizado pelos modernos na organização social. Foi ela que primitivamente possibilitou fazer da política uma ciência, permitindo tornar sua teoria distinta da prática”, Sommaire, p. 18. 189 Ensemble, p. 150. 190 Ibidem, p. 151. 191 Ibidem, p. 151-2, grifo nosso.

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trabalho, os direitos sociais, a participação dos indivíduos na produção e na distribuição

das riquezas geradas coletivamente. Augusto Comte saúda o comunismo justamente por

ter se dado conta disto e, consequentemente, por ter aberto os olhos dos proletários para

a questão social, sugerindo – apesar dos “perigos temporários inerentes a suas formas

metafísicas”, como diz o filósofo –, um afastamento da política e um redirecionamento

do debate para o campo estrito da moralidade.

É difícil afirmar o que exatamente nosso autor entende por “comunismo”, uma vez que

em seu texto o termo não vem acompanhado por citações ou referências diretas a outros

autores ou movimentos políticos específicos192. Ocorre na verdade o contrário: Augusto

Comte quando se refere (ainda que indiretamente) a outros autores do período, cujo

pensamento mesmo engendrou destacados movimentos políticos, o faz somente com o

intuito de afastá-los do comunismo. O autor nos diz que “esta utopia [o comunismo]

deve ser cuidadosamente distinguida das numerosas aberrações que, apelando às mais

difíceis especulações de espíritos incapazes ou mal preparados, fazem eclodir nossa

anarquia espiritual. Estas vãs teorias são tão pouco caracterizadas que se é conduzido a

designá-las pelo nome de seus autores”193. Comte se refere aqui, muito provavelmente,

ao saint-simonismo, ao fourierismo, ou ainda, aos icarianos de Cabet194. “O comunismo,

que não leva o nome de ninguém, prossegue o autor, não é absolutamente um produto

acessório de uma situação excepcional. É preciso encará-lo como o progresso

espontâneo, mais afetivo que racional, do verdadeiro espírito revolucionário, tendendo

192 Precisaríamos aqui, nos parece, avançar a tese segundo a qual o conhecimento de Augusto Comte a respeito do “comunismo” (e do que ele vem a chamar na sequência do texto de “socialismo”) se dá sobretudo de segunda mão. Isto porque, segundo nos conta Mary Pickering, desde 1838, e como medida de saúde auto infligida para o controle de suas “crises cerebrais”, nosso autor adotara “um novo regime intelectual, que chamou de ‘higiene cerebral’. Exasperado pelos ataques de jornalistas e saint-simonianos à sua criatividade, ele decidiu que precisava preservar sua ‘originalidade característica’. Portanto, se absteve de ler jornais, livros e revistas, exceto os boletins semanais da Academia de Ciências, pelos quais ele apenas passava os olhos irregularmente. Para relaxar, ele se permitiu, entretanto, ler ‘os grandes poetas de cada época e nação’”, Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 485. É bastante provável que, no caso específico do comunismo e do socialismo, Augusto Comte tenha se informado, sobretudo, a partir do diálogo travado com os próprios proletários, alguns dos quais frequentaram assiduamente seu curso de astronomia popular, ministrado pública e gratuitamente durante dezoito anos todos os domingos, ao meio-dia, na prefeitura do terceiro arrondissement de Paris. A respeito do curso de astronomia popular de Comte, consultar Carole Christen, Les leçons et traités d’astronomie populaire dans le premier XIXe siècle, Romantisme, n. 166, 2014, p. 13 e ss. 193 Ensemble, p. 152. 194 Ver a nota 154 de Annie Petit em Augusto Comte, Discours sur l’ensemble du positivisme, Paris, Flammarion, 1998, p. 443. Esta edição do discurso do filósofo, com introdução e notas excelentes da comentadora francesa, só não é por nós aqui adotada como referência para a citação do texto do autor pois ela suprime (ademais, de maneira incompreensível) trechos que Augusto Comte adicionara, em sua versão final de 1851, ao texto original de 1848. Por essa razão, seguimos adotando como referência o texto publicado como “discurso preliminar” do Sistema de política positiva, em 1851, valendo-nos, entretanto, quando necessário, do aparato crítico fornecido por Annie Petit na edição Flammarion.

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nos dias de hoje a se preocupar sobretudo com as questões morais [e] relegando ao

segundo plano as questões políticas propriamente ditas”195.

Apesar de elogiar o comunismo, por entendê-lo comprometido com o sentimento social,

Augusto Comte nos alerta para o fato de que “sem dúvida, a solução atual dos comunistas

permanece ainda essencialmente política, como em seus predecessores, visto que é

também pelo modo de posse [do poder ou da propriedade] que eles pretendem regular

[seu] exercício”196. Contrariamente, o autor, como vimos, entende que a solução para o

problema social experimentado pelos proletários é de natureza moral, e que não diz

respeito, portanto, ao poder temporal. Na versão de 1851 de seu discurso, o autor

acrescenta um parágrafo (neste momento do texto a que temos nos referido) saudando

dessa vez o “socialismo” por ter compreendido, melhor do que o comunismo, a natureza

moral da questão social. “Uma tal tendência [a submissão da política à moral] já se

manifestou claramente, desde a publicação inicial deste discurso, pela nova fórmula que

prevaleceu espontaneamente em nossos proletários. Adotando a afortunada expressão

de socialismo, eles a um só tempo aceitaram o problema dos comunistas e recusaram sua

solução [essencialmente política]”197.

Assim como havia feito com o comunismo, entretanto, agora também no caso do

socialismo, logo após saudá-lo pelo acento conferido, corretamente, à questão social,

Augusto Comte não deixará de fazer seu alerta: “Mas os socialistas atuais não evitam

realmente o comunismo senão permanecendo passivos ou críticos. Caso eles obtivessem

ascensão política antes que suas ideias tivessem atingido o [mesmo] nível de seus

sentimentos, eles seriam, num instante, necessariamente conduzidos [às mesmas]

aberrações anárquicas que seu instinto confuso reprova nos dias de hoje”198. No fundo,

para o autor, apenas o positivismo seria capaz de resolver a questão social e ao mesmo

tempo “preservar o Ocidente de toda grave tentativa comunista”199. A solução positivista

para o problema, prossegue Comte, “tornará em breve inúteis estas denominações

passageiras [isto é, o comunismo e o socialismo]. Definitivamente purificada, a antiga

denominação de republicanos bastará, em todo caso, para designar os verdadeiros

sentimentos regeneradores, ao passo que apenas o título de positivistas caracterizará as

195 Ensemble, p. 152. 196 Ibidem. 197 Ibidem, p. 153. 198 Ibidem, p. 153-4. 199 Ibidem, p. 154.

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opiniões, os costumes e mesmo as instituições correspondentes”200. O positivismo, para

Augusto Comte, é a única doutrina capaz de “sistematizar o princípio espontâneo do

comunismo sobre a natureza social da propriedade e sobre a necessidade de regulamentá-

la”201.

Nota-se, portanto, que a relação do positivismo com o comunismo e o socialismo é

ambivalente: ao mesmo tempo em que os saúda por avultar a questão social, tomando

por cerne a natureza social da propriedade e a necessidade de regulamentá-la, Augusto

Comte já parece entrever nestas “utopias” um potencial anárquico que as conduziria,

finalmente, a uma solução meramente política e temporal para os problemas morais da

época. A “tomada dos meios sociais de produção”, como se vê, está já de alguma maneira

delineada em nosso autor, na disposição por ele atribuída (ainda que em meio a

considerável confusão) a socialistas e comunistas em dar uma resposta temporal a um

problema que é de natureza essencialmente espiritual.

Se por um lado (à esquerda, poderíamos dizer), o republicanismo positivista de Augusto

Comte pretende definir sua posição doutrinária com respeito à questão social (isto é, a

propriedade) distinguindo-se do comunismo e do socialismo, por outro lado (à direita),

ele o fará também com respeito ao individualismo. “Os verdadeiros filósofos, nos diz o

autor, não hesitam de forma alguma a sancionar diretamente as reclamações instintivas

dos proletários com relação à viciosa definição adotada pela maior parte dos juristas

modernos, que atribuem à propriedade uma individualidade absoluta, como direito de usar e

abusar”202. Augusto Comte, no entanto, entende que “esta teoria antissocial [a teoria

individual da propriedade], historicamente [se deve] a uma reação exagerada [das classes

proprietárias] contra opressões excepcionais”203. O autor se refere aqui aos decretos

revolucionários que expropriaram arbitrariamente os bens da nobreza, ainda no final do

século dezoito. Apesar de entender a propriedade (enquanto individualidade absoluta)

como uma “reação exagerada” a “opressões excepcionais”, isto é, como o efeito perverso

200 Ibidem. 201 Ibidem. 202 Ibidem, grifo nosso. A ideia da propriedade como “o direito de usar e abusar” aparece também em Proudhon, que irá buscá-la no próprio direito romano, para ser logo em seguida, como se sabe, duramente recusada como “roubo”. Ver Pierre-Joseph Proudhon, op. cit., p. 35 e ss. 203 Ensemble, p. 154-5.

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77

de uma ação também ela perniciosa em sua origem, nosso autor não hesita em sentenciá-

la como “desprovida de justiça e de realidade”204.

A gênese da propriedade, para Augusto Comte, está apenas na “cooperação pública”,

razão pela qual “seu exercício não deve jamais ser puramente individual”205. “Sempre e

por toda parte, a comunidade interveio [na propriedade] para subordiná-la às

necessidades sociais. O imposto realmente associa o público a cada fortuna particular; e

a marcha geral da civilização, longe de diminuir essa participação, a aumenta

continuamente, sobretudo entre os modernos, desenvolvendo ainda mais o vínculo de

cada um a todos. Um outro uso universal prova que, em certos casos extremos, a

comunidade se crê mesmo autorizada a tomar para si, inteiramente, a propriedade”206. Se

na França, saída da Restauração e da Monarquia de Julho, o confisco da propriedade fora

provisoriamente abolido, Augusto Comte atribui esta arbitrariedade somente aos abusos

cometidos durante a Revolução: uma tal exceção não podendo “sobreviver por muito

tempo às lembranças que a inspiraram e ao poder que as introduziu”207.

A recusa do individualismo, manifesto na concepção jurídica da propriedade enquanto

direito de “usar e abusar” se dá, em Comte, acompanhada também da recusa da economia

política – associada, por sua vez, ao laissez-faire e ao liberalismo econômico208. “É preciso

admitir também, nos diz o autor, [a] crítica fundamental [que fazem os proletários aos]

economistas, cujas máximas metafísicas interditam toda regularização social das fortunas

pessoais. Esta aberração dogmática, suscitada, como a precedente, por viciosas

intervenções, é diretamente contrária à sã filosofia, embora pareça dela se aproximar ao

reconhecer a existência de leis naturais nos fenômenos sociais”209. Se, por um lado,

Augusto Comte não deixa de reconhecer o mérito da economia política em aderir ao

princípio segundo o qual os fenômenos sociais também são regidos por leis naturais, por

outro lado, não deixará de censurá-la de modo severo, por ter sido incapaz de

compreendê-lo inteiramente, uma vez que “não o apreciou, de início, em relação aos

menores fenômenos, antes de o estender aos mais elevados” 210 . Ao desviarem-se,

204 Ibidem, p. 155. 205 Ibidem. 206 Ibidem. 207 Ibidem. A “teoria positiva da propriedade” é discutida mais longamente por Augusto Comte no segundo capítulo do segundo volume do Sistema de política positiva. Ver SPP, II, p. 138-76. 208 Para a crítica de Augusto Comte à economia política, ver Roger Mauduit, Auguste Comte et la science économique, Paris, Félix Alcan, 1929. 209 Ensemble, p. 155. 210 Ibidem.

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78

portanto, da tarefa de erguer uma enciclopédia dos conhecimentos positivos antes de se

lançarem ao estudo das leis que regem a sociedade, nosso autor afirma que os

economistas “desconheceram assim, radicalmente, a tendência da ordem natural a se

tornar cada vez mais modificável à medida que se complica gradualmente”211.

Para Augusto Comte, como veremos em maiores detalhes no próximo capítulo, os

fenômenos naturais, apesar de regidos por leis invariáveis, não deixam, entretanto, de ser

modificáveis; e tanto mais são modificáveis quanto são mais complexos (e por serem

complexos são também, para o filósofo, imperfeitos). Os fenômenos sociais por serem,

segundo a hierarquia da enciclopédia positivista, os mais complexos e os mais imperfeitos

de todos são também os fenômenos mais modificáveis, segundo Augusto Comte. Ao não

reconhecer, portanto, esse princípio fundamental da ordem natural (a modificabilidade

crescente dos fenômenos), a economia política (essencialmente pré-científica, aos olhos

do autor) convalida a doutrina do laissez-faire, supondo, com efeito, toda tentativa humana

de intervenção nos fenômenos sociais como substancialmente funesta – e supondo os

próprios fenômenos sociais como que destinados a uma harmonia pré-estabelecida,

imanente à própria natureza. “Nada pode desculpar, nos diz Augusto Comte, a

reprovação doutoral que a metafísica econômica opõe à intervenção contínua do

conhecimento humano nas diversas partes do movimento social. As leis naturais às quais

este movimento está, com efeito, submetido, longe de nos desviar [da tarefa] de modificá-

lo incessantemente, devem, ao contrário, nos servir para nele aplicar melhor nossa

atividade, a qual, neste tocante, se encontra por sua vez mais eficaz e mais urgente do que

em relação a todos os outros fenômenos”212.

Vemos, portanto, a partir dos trechos analisados acima, que nosso autor, ao discutir a

questão social (entendendo-a, fundamentalmente, como a questão da propriedade), acaba

por circunscrever o terreno habitado por seu pensamento republicano. Augusto Comte

o faz, como vimos, estabelecendo uma distância segura, por um lado, do socialismo e do

comunismo; e, por outro lado, do individualismo e do liberalismo econômico. Aos olhos

do autor, a propriedade e seu uso se destinam apenas ao bem comum e não aos indivíduos

tomados como independentes da sociedade. Sob um outro aspecto, contudo, nosso autor

recusa a via do poder temporal como forma de regulamentar o uso social da propriedade,

211 Ibidem. 212 Ibidem, p. 156.

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considerando-a essencialmente anárquica e, portanto, contrária à natureza espiritual do

problema que atinge os proletários. Com efeito, o que faz, fundamentalmente, Augusto

Comte, é atualizar os conceitos da tradição republicana em face dos problemas de seu

tempo. Ser republicano, para o filósofo, é muito mais do que se identificar com um

particular regime de governo – é muito mais, portanto, do que adentrar o terreno do

poder temporal e apenas disputar o “poder propriamente dito”. Ser republicano é, antes

de mais nada, uma questão moral: é devotar-se, cada um dos cidadãos particulares, única

e exclusivamente ao bem comum de todos.

2.2. O positivismo e a Terceira República

A pista que nos levou à vinculação de Augusto Comte ao republicanismo francês nos foi

dada inicialmente por Claude Nicolet, em seu já mencionado trabalho A ideia republicana

na França. Lá se lê que “uma história ideológica séria da República na França passa

necessariamente pela referência ao positivismo”213. Nicolet se refere ao fato de que os

pais fundadores da Terceira República nas décadas de 1870-80 – trata-se, sobretudo, de

Léon Gambetta, Émile Littré e Jules Ferry –, se por um lado mantiveram-se ainda ligados

aos ideais iluministas consagrados pela Revolução, legado que o partido republicano

francês nunca esteve disposto a abandonar, por outro lado, construíram sua doutrina

política, ou, como diz Nicolet, a “filosofia de sua ação”, apoiados naquilo que eles

próprios chamaram “a maior filosofia do século”, a saber, o positivismo de Augusto

Comte214.

As décadas do Segundo Império que antecederam a Terceira República, segundo nos

conta Donald Charlton, pareceram “a seus futuros intérpretes supremamente como uma

‘era do positivismo’ na história do pensamento francês. Esta generalização, já prevalente

nos anos finais do século dezenove, persistiu até os dias presentes e historiadores, de

Brunetière215, Monod216, Lanson217 e Parodi218 a Thibaudet219, Jasinski220, Martino221 e

213 Claude Nicolet, op. cit., p. 188. 214 Ver Claude Nicolet, op. cit., p. 187. 215 Ver Ferdinand Brunetière, La renaissance de l’idéalisme, in: ______, Discours de combat, v. 1, Paris, Perrin et Cie., 1900, p. 4-5 e L’évolution de la poésie lyrique au dix-neuvième siècle, v. 2, Paris, Hachette et Cie, 1922, p. 114-49. 216 Ver Gabriel Monod, Les maîtres de l’histoire: Renan, Taine, Michelet, Paris, Calmann-Lévy, 1894, p. 138. 217 Ver Gustave Lanson, Histoire de la littérature française, Paris, Hachette et Cie, 1895, p. 1005-14. 218 Ver Dominique Parodi, Du positivisme à l’idéalisme: philosophies d’hier, Paris, Vrin, 1930, p. 7. 219 Ver Albert Thibaudet, Histoire de la littérature française de 1789 à nos jours, Paris, Éditions Stock, 1936, p. 407-9. 220 Ver René Jasinski, Histoire de la littérature française, v. 2, Paris, Boivin et Cie., 1947, p. 240. 221 Ver Pierre Martino, Parnasse et symbolisme (1850-1900), Paris, Armand Colin, 1947, p. 32.

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80

Philippe van Tieghem222, em anos mais recentes, concordaram que tanto a filosofia

quanto a literatura nesse período são dominadas pelo enfoque positivista”223. O prestígio

adquirido pelas ideias positivistas nesse período, segundo nos narra agora Terence

Wright, parece não ter se limitado à França, seu país de origem, penetrando também com

grande força os meios intelectuais da Inglaterra vitoriana. “Nenhum estudante, se

afirmava, ‘podia passar pelos anos sessenta intocado pela curiosidade sobre o novo

sistema filosófico’, e de 1860 a 1880 pareceu impossível, para qualquer grande figura

científica ou literária que se aventurasse no debate público, não defender sua posição em

relação ao Positivismo. Para John Seeley, recém-eleito Professor Régio de História

Moderna em Cambridge, em 1869, com claras instruções para combater essa ameaça, ‘o

próprio ar parecia repleto de Comtismo’, que aparecia ‘irresistivelmente triunfante’.

Jovens clérigos ardentes também se sentiram obrigados a empunhar os porretes contra

Comte, que continuou a ocupar um grande ‘espaço nas mentes dos jovens dos anos

oitenta’ e a provocar interesse geral até a virada do século”224.

Ainda a respeito da influência finissecular de Augusto Comte no dezenove, Émile Faguet

nos diz: “ela foi imensa. Adotado quase inteiramente por Stuart Mill; impondo-se, a

despeito do que ele [próprio] tenha dito, a Spencer, ou, de fato, coincidindo com ele e

nele se engrenando de maneira singularmente precisa; dominando de forma quase tirânica

o pensamento de Renan em suas primeiras démarches, como se vê em O futuro da ciência;

inspirando, até em seus detalhes, a investigação filosófica, histórica e literária de Taine;

combinando-se com o evolucionismo, que pode ser considerado como sendo apenas

uma transformação sua; o sistema de Comte preencheu toda a segunda metade do século

XIX e se o encontra, ou todo puro, ou apenas aumentado, ou levemente corrigido, ou

um pouco alterado, a cada passo que se dá no domínio do pensamento moderno. [...] É

algo, sobretudo, que dá o que pensar, e Augusto Comte é maravilhoso por causa disto: é

o semeador de ideias e o excitador intelectual mais poderoso que houve em nosso século,

o maior pensador, em minha opinião, que a França teve desde Descartes”225. A impressão

222 Ver Philippe van Tieghem, Petite histoire des grandes doctrines littéraires en France: de la pléiade au surréalisme, Paris, PUF, 1946, p. 242. 223 Donald Charlton, Positivist thought in France during the Second Empire (1852-1870), Oxford, Oxford University Press, 1959, p. 1. 224 Terence Wright, The religion of Humanity: the impact of Comtean positivism on Victorian Britain, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. 5. 225 Émile Faguet, Politiques et moralistes du dix-neuvième siècle, v. 2, Paris, Société Française d’Imprimerie et de Librairie, 1898, p. 368-9.

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81

que se tem, portanto, é que o positivismo, assim como diria Sartre algumas décadas mais

tarde a respeito do marxismo, representou uma espécie de “horizonte inultrapassável” de

seu tempo (entendendo-se por “seu tempo” a segunda metade do século dezenove).

É sob este clima intelectual, de intenso predomínio positivista, que a Terceira República

francesa é gestada e concebida. Uma tal atmosfera como que emana majoritária e

primitivamente do pensamento de Augusto Comte, mas mediada, de maneira imperiosa,

pelo pensamento e pela ação de terceiros, que, filtrando, modulando, realçando ou

mesmo enxertando suas ideias originais, contribuíram, ao mesmo tempo, para a

ressignificação e para a difusão e consolidação do positivismo enquanto filosofia

dominante do período. Segundo defende John Eros (e nisto o acompanhamos): “Um

estudo histórico detido dos movimentos políticos e sociais refuta a visão intelectualística

de que eles são dirigidos por ideias e doutrinas que são independentes de fatores políticos

e sociais. Similarmente, a noção materialística de que ideias não têm vida própria

independente, e são apenas um reflexo das disputas econômicas e sociais, parece

igualmente inaceitável. Portanto, quando tentamos delinear o desenvolvimento de um

dado movimento político, devemos proceder absolutamente sem teorias pré-concebidas.

Devemos analisar a vida das ideias elas próprias, a evolução dos movimentos político-

sociais e a inter-relação funcional cambiante entre todos eles”226.

No caso da França, segundo observa Claude Nicolet, é possível divisar ao menos duas

grandes correntes positivistas bastante atuantes e influentes no período aqui considerado.

“O positivismo – sem mesmo falar da obra do próprio Comte – é múltiplo: dividido em

duas escolas rivais, mas muito diversamente poderosas, a de Littré, Robin e Wyrouboff

de um lado, a de Pierre Laffitte, Robinet e Audiffrend de outro lado – sem contar os

inclassificáveis como Sémérié –, ele atinge também, por volta dos anos 1880, uma espécie

de estado de espírito difuso e seguramente insosso na massa da opinião republicana”227.

Apesar das polêmicas que dividem os positivistas franceses, como, por exemplo, a adoção

ou não na França do parlamentarismo, Nicolet nos alerta: “em todo caso, é preciso ainda

notar que, ao menos sobre um ponto, as duas escolas rivais, de Littré e de Robinet-

Laffitte, estavam de acordo, depois do final do Império (malgrado certos escritos

226 John Eros, The positivist generation of French republicanism, Sociological Review, v. 3, n. 2, 1955, p. 257. 227 Claude Nicolet, op. cit., p. 188.

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imprudentes de Comte228): o único regime que convinha à França era na verdade o regime

republicano. Apenas ele, com efeito, concilia a Ordem e o Progresso, apenas ele está em

condições de reunir os verdadeiros revolucionários e os ‘dignos conservadores’”229. Além

da profissão de fé republicana em comum, os “positivistas das duas obediências não

cessarão de denunciar os dois perigos simétricos da metafísica ‘retrógrada’ – monarquista

e clerical – e da metafísica ‘revolucionária’, isto é, jacobina, saída de Rousseau e fundada

sobre a soberania do povo, os direitos subjetivos e a lamentável predominância seja do

executivo, seja do legislativo, que saem um e outro de sua legítima esfera de ação”230.

Ainda que hesitemos em concordar com Nicolet a respeito da recusa, por ele tão

frontalmente formulada, da soberania popular e dos “direitos subjetivos” por parte dos

republicanos franceses de orientação positivista231, tendemos prontamente a lhe conceder

228 Nicolet se refere aqui ao entusiasmo inicial e ao apoio parcial dado por Augusto Comte ao golpe de Estado perpetrado por Napoleão sobrinho (evento inaugural do Segundo Império que pôs fim à Segunda República), motivo de sua ruptura definitiva, por exemplo, com Émile Littré. A relação de ambos já andava abalada desde que o mestre havia sinalizado a direção religiosa de sua doutrina positivista, severamente reprovada pelo discípulo, que a considerava uma verdadeira traição aos princípios científicos da filosofia positiva tão bem estabelecidos no Curso. Sobre o apoio de Comte à ditadura napoleônica e sua ruptura definitiva com Littré, consultar o último capítulo de Mirella Larizza, Bandiera verde contro bandiera rossa: Auguste Comte e gli inizi della Société positiviste (1848-1852), Bolonha, Il Mulino, 1999, p. 553-87. 229 Claude Nicolet, op. cit., p. 190. 230 Idem, ibidem, p. 190-1. 231 Pensamos que a questão seja mais complexa. Pierre Rosanvallon, falando deste mesmo tema, isto é, da relação dos positivistas republicanos com a questão da soberania popular na França, nos parece nuançar um pouco mais o problema do que Nicolet. Rosanvallon, de fato, afirma que “[os] sucessores [de Augusto Comte], embora ardentes republicanos, permanecem críticos no que diz respeito à ideia de soberania do povo e adotam uma atitude bastante reservada sobre o sufrágio universal, e isto a despeito da escola positivista de que se reclamam”. Na sequência, nos mostra que Littré e Sémérié (o segundo muito mais do que o primeiro), partindo de uma “visão capacitista da política”, se mantêm hostis ao sufrágio universal, embora Littré passe a aceitá-lo por volta do final do Segundo Império, “reconhecendo que o uso o havia de fato sancionado”. Em Sémérié, Rosanvallon nos diz que “o racionalismo positivista se mistura [...] a traços blanquistas para denunciar o malfeito do sufrágio universal, uma vez que ele é a expressão de vontades arbitrárias e autônomas”. No entanto, se pergunta o comentador: “Ferry et Gambetta [não seriam] exceções? Ou o positivismo deles é a tal ponto singular que se dissocia a esse respeito dos principais alunos do mestre?”. Reconhecendo “a flutuação filosófica dos republicanos” e a existência de “proposições aparentemente contraditórias” entre eles, Rosanvallon nos mostra que, ao menos no caso de Gambetta, a República não pode ser pensada apartada do sufrágio universal: “Não se compreende a República, nos diz Gambetta, em 1873, sem o sufrágio universal: são dois termos indivisivelmente ligados um ao outro, e abrir mão do sufrágio universal é abrir mão da República”. Ver Pierre Rosanvallon, op. cit., p. 453-6. Mona Ozouf, falando agora de Jules Ferry, a respeito ainda do sufrágio universal, nos diz: “Ele faz do sufrágio universal, única realidade sobrevivente do desastre de 1848, uma promessa, uma ‘garantia’ para os deserdados. Mas também o exercício efetivo da reconciliação de classes. Ele o faz fixar a ordem jurídica (a vida igual para todos), moral (a honra das multidões), religiosa (instituição sagrada). Ele o define como o direito, salvação por princípio. Mas ainda como o fato, salvação pela força das circunstâncias. Enfim, ele o representa como ‘inevitável’, fruto da irresistível maturação da opinião pública”. Neste excerto, a comentadora se refere à seguinte passagem do panfleto A luta eleitoral, publicado por Jules Ferry ainda em 1863: “O sufrágio universal não é apenas uma instituição sagrada e soberana. É toda uma política e quase um símbolo. Ele não é apenas o fato, o direito, a justiça, ele é também inevitável. Ele é todo o presente, ele é todo o futuro. O sufrágio universal é a honra das multidões, a garantia dos deserdados, a reconciliação das classes, a vida igual para todos”. Ver Mona Ozouf, Entre l’esprit des Lumières et la lettre positiviste: les républicains sous l’Empire, in: François Furet & Mona Ozouf (org.), op. cit., p. 415.

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a disposição deste mesmo grupo em desembaraçar a ideia republicana na França de seu

legado jacobino, irremediavelmente associado ao Terror. Durante muito tempo, o

jacobinismo impregnou, para o bem ou para o mal, a ideia republicana na França. Uma

boa maneira de se medir a impressão terrível deixada pela Primeira República (e pelos

excessos revolucionários cometidos em seu nome) em grande parte da sociedade francesa

é se dedicar à leitura dos reacionários católicos, no coração dos quais, sobretudo, o horror

pelo Terror jacobino ficou tão profundamente gravado. Para Chateaubriand, por

exemplo, expoente do movimento neocatólico, a própria ideia da República na França

aparece como “a decapitação da liberdade pela igualdade”232.

Sob um ponto de vista programático, portanto, o partido republicano francês do

dezenove, se quisesse ver a República consolidada enquanto regime de governo, deveria

forçosamente abrandar sua agenda política, ou pelo menos garantir às elites dirigentes do

país que uma nova experiência republicana seria possível, afastada agora das convulsões

sociais e instabilidades institucionais a que as duas anteriores haviam sido tão duramente

submetidas. “Na realidade, prossegue Nicolet, as duas escolas [a de Littré e a de Robinet-

Laffitte] afirmavam a necessidade de definir as condições ‘positivas’ de um verdadeiro

governo republicano. Tratava-se, tendo em conta o fato de que doravante a República

era ‘de direito científica e de direito histórica’, e que o sufrágio universal representava ‘a

única base possível de nossa organização política’, de fazer de tal forma que o partido

republicano, deixando de ser ‘revolucionário’, se tornasse um partido de governo,

garantidor ao mesmo tempo da Ordem e do Progresso”233.

Embora Nicolet distinga a existência de ao menos duas grandes correntes positivistas

republicanas combatendo-se mutuamente no período aqui considerado, o historiador

não deixa de reconhecer a predominância de uma delas sobre a outra. “Littré foi, em

todos os sentidos da palavra, o grande vulgarizador, o mediador se se quiser, do

positivismo nos anos em que este verdadeiramente se difunde e se faz conhecer fora do

cenáculo ou da Igreja propriamente dita; graças a ele é o comtismo ainda (ou já...!)

republicano, e não ainda constituído em religião, que, na realidade histórica, é conhecido

e difundido”234. O famoso petit livre vert de Littré, o seu Conservação, revolução e positivismo,

232 Ver Benoît Yvert, De la république selon Chateaubriand, in: François Furet & Mona Ozouf (org.), op. cit., p. 315 e ss. 233 Claude Nicolet, op. cit., p. 191. 234 Idem, ibidem, p. 200.

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exerceu considerável influência sobre a geração de chefes republicanos da qual fizeram

parte Gambetta, Ranc e Ferry235. Para nos expressarmos agora nos termos em que fala

Léon de Montesquiou – que, aliás, também divisa, a exemplo de Nicolet, a existência

(funesta, em sua opinião) destas mesmas escolas positivistas sucedendo a Augusto Comte

na França –, o littreísmo se sobrepõe ao laffittismo, superando-o236.

A pista, portanto, que nos fornece Nicolet deveria, em princípio, ser explorada em suas

duas extremidades: a primeira delas diz respeito, naturalmente, a Augusto Comte; a

segunda, como acabamos de ver, a Émile Littré. Se Comte, como já vimos, reservou sua

atuação apenas à reorganização “dos costumes e das opiniões” por meio de seu intenso

trabalho intelectual, Littré foi ao mesmo tempo teórico e homem de ação. Moveu-se

desimpedido entre as fronteiras do “poder temporal” e do “poder espiritual”, borrando-

as. Filólogo de formação, autor do conceituado dicionário Littré de língua francesa,

ocupou por diversas vezes cargos públicos, chegando a ser, inclusive, senador da

República. “Filho da Revolução, nos diz Renan a seu respeito, acreditou que nela estava

contida toda justiça. [...] No senhor Littré, o temperamento era sempre calmo; era o

espírito que era revolucionário; também não recuou jamais. [...] Na política, seguiu a regra

que deve se impor o patriota consciencioso: não solicitou nenhum mandato; não recusou

nenhum outro. [...] Em seus anos finais, viu a forma de governo pela qual havia sempre

combatido se tornar uma realidade. Credes, talvez, que ele vai triunfar. [...] Ele quase se

arrepende; me expresso mal; não, ele não se arrepende; mas se torna o sábio perfeito; faz

de si próprio o conselheiro, o moderador de seus companheiros de luta”237.

Embora reconheçamos, por questões de completude, a necessidade de nos debruçarmos,

em algum momento de nossa investigação, sobre os escritos e a figura intelectual de

Émile Littré (e de outros atores importantes da Terceira República) – como forma de

compreendermos integralmente a ligação entre o positivismo e o republicanismo na

França do dezenove –, neste trabalho, por razões práticas, nos dedicaremos apenas à

235 Ver Claude Nicolet, op. cit., p. 200. 236 Ver Léon de Montesquiou, Le système politique d’Auguste Comte, Paris, Nouvelle Librairie Nationale, s/d, p. 4 e ss. 237 Ernest Renan, Œuvres complètes, v. 1, Paris, Ed. H. Psichari, 1947, p. 762 e ss., 771 e ss., apud Claude Nicolet, op. cit., p. 195-6.

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85

investigação do pensamento de Augusto Comte, deixando a recepção de sua filosofia

positiva para estudos ulteriores238.

2.3. O republicanismo do jovem Comte

Como visto no início deste capítulo, o republicanismo de Comte – “espontâneo” em sua

origem, segundo as palavras do próprio autor – vem de muito longe: do final de sua

infância, começo da adolescência. Na primeira seção deste capítulo, esforçamo-nos em

mostrar de que maneira, em seus textos de maturidade, o pensamento republicano do

autor, ao articular-se às questões de seu tempo, adquiriu um significado mais preciso, a

despeito da indeterminação que sempre rondou a ideia de República na França, desde o

período revolucionário. Pensamos, entretanto, que seria instrutivo ainda analisarmos de

que maneira a relação deste “republicano sem data”239 com as instituições de seu tempo

contribuiu para moldar e galvanizar sua identidade política. Nas palavras de Lévy-Bruhl,

e nisto o acompanhamos, “para se chegar a uma compreensão tão completa quanto

possível [da] doutrina [de Augusto Comte]; para apreciar exatamente sua orientação geral;

para compreender a importância que o autor confere a esta ou àquela parte de sua

doutrina, [apenas] o estudo [de seu] texto não é suficiente. É preciso ainda ter em conta

as circunstâncias históricas em que a doutrina é concebida, o movimento geral das ideias

contemporâneas e as influências de toda sorte que agiram sobre o espírito do filósofo”240.

Antes, portanto, de seguirmos caminho em direção, uma vez mais, aos seus textos de

maturidade, gostaríamos agora de passar em revista, de modo breve, alguns aspectos da

biografia intelectual do autor – que entendemos ser fundamentais para a compreensão

de seu pensamento republicano –, bem como nos determos em alguns trechos de sua

correspondência, reveladores dos caminhos que o ligaram à República.

238 Para trabalhos de conjunto a respeito dos pais fundadores da Terceira República, ver Pierre Barral, Les fondateurs de la Troisième République, Paris, Armand Colin, 1968 e Jérôme Grévy, La République des opportunistes (1870-1885), Paris, Perrin, 1998. Para um estudo a respeito de Émile Littré, consultar o primeiro capítulo de Sudhir Hazareesingh, Intellectual founders of the Republic: five studies in nineteenth-century French political thought, Oxford, Oxford University Press, 2001, p. 23-83. Para trabalhos a respeito de Jules Ferry, ver Mona Ozouf, Jules Ferry: la liberté et la tradition, Paris, Gallimard, 2014 e Jean-Michel Gaillard, Jules Ferry, Paris, Fayard, 1989. Por fim, para estudos a respeito de Léon Gambetta, consultar Jean-Marie Mayeur, Léon Gambetta: la patrie et la République, Paris, Fayard, 2008 e, uma vez mais, Pierre Barral, Léon Gambetta: tribun et stratège de la République (1838-1882), Paris, Privat, 2008. 239 A expressão é usada pelo próprio Comte em carta a M. Vieillard, datada de 22 de novembro de 1849, e citada por Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 73, a partir da Correspondance inédite d’Auguste Comte, v. 3, Paris, Au Siège de la Société Positiviste, 1904, p. 171. 240 Lucien Lévy-Bruhl, La philosophie d’Auguste Comte, Paris, Félix Alcan, 1900, p. 1-2.

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Embora de família monarquista e fortemente católica, este provençal de Montpellier,

prodígio intelectual desde a mais tenra idade, começou cedo a se opor às tradições

familiares – e a delas se afastar. É no liceu de sua cidade natal, criado pelo decreto do 16

Floreal ano XI (6 de maio de 1803), que o pequeno Comtou – forma carinhosa pela qual

Augusto Comte era chamado no seio de sua família – se vê iniciado, segundo assinala

Henri Gouhier, no “aprendizado da revolta”241. A instituição, militar e napoleônica por

excelência, não fomentava deliberada e intencionalmente a indisciplina e a desobediência

em seus jovens estudantes, muito pelo contrário. Mas sua estrutura rígida, fortemente

hierarquizada, repleta de “mestres de exercício”, “mestres de quartel”, “mestres de

estudo”, etc., acabaria por causar o efeito inverso ao desejado nas crianças que visava

educar. Parece ter sido precisamente esse o caso de Augusto Comte. “Maroto, pensador,

indisciplinado, Comte tornava dura a vida destes infelizes supervisores. [...] Também era

ele frequentemente punido. Havia a prisão, as revistas, a privação do porte do uniforme.

[...] A má conduta deste estudioso aluno não é, aliás, um fato excepcional. Em seus

relatórios de 1809, os inspetores assinalam uma verdadeira crise da disciplina; por todos

os lados, os alunos são barulhentos, contestadores, conduzidos por líderes, ‘jovens

insolentes [...] que ostentam a independência, desafiam a repreensão, fazem das punições

uma brincadeira, por vezes uma honraria’”242.

Os inspetores do liceu, segundo assinala Alphonse Aulard, pareciam gozar da mais pura

falta de autoridade diante de seus subordinados, talvez um resultado da reforma e da

rápida expansão das instituições de ensino que não foram acompanhadas pela formação

de quadros qualificados para ocupar seus postos de serviço. “Existe a esse respeito, nos

diz Aulard, um vício na própria instituição; estes postos não são nem tão estimados nem

pecuniariamente tão bem tratados para oferecer status ou esperanças a quem quer que se

considere possuidor dos meios e do talento na carreira dos estudos; eles se tornam,

portanto, uma segunda opção para os desafortunados que sabem um pouco de latim e

não possuem outros recursos. Jovens ainda, suscetíveis a todas as seduções, se exige deles

que contenham no dever uma classe inteira de alunos indômitos. Tamanha influência

escapa à natureza das coisas; eles estão fadados a se tornar as testemunhas secretas ou os

humildes delatores das desordens que não podem impedir” 243 . Com feito, segundo

241 Ver Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 69 e ss. 242 Idem, ibidem, p. 70. 243 Alphonse Aulard, Le culte de la raison et le culte de l’être suprême (1793-1794): essai historique, Paris, Félix Alcan, 1892, p. 271, apud Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 70.

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assinala novamente Henri Gouhier, o liceu é, sob Napoleão, uma instituição “feita por

homens que não são ainda feitos para ela”244. Desta forma, o interno Augusto Comte

vive sua infância “num mundo improvisado, em que a ordem é militar e a bandeira

revolucionária”245.

Embora Gouhier não hesite, falando ainda a respeito do Comte secundarista, em

caracterizá-lo como um legítimo “filho da Revolução”246, seria um exagero supor – algo

que, ademais, o comentador não faz em seu texto – que os liceus, sob Napoleão, fossem

um “antro de revolucionários”, isto é, instituições animadas por um espírito republicano

sobrevivente ao 9 Termidor e ao 18 Brumário. Embora a “cultura política da Revolução”,

para usar uma expressão cara à historiadora Lynn Hunt247, permanecesse ainda viva na

França imperial (e mesmo depois, apesar de clandestina, sob a Restauração), ela

experimentaria ao longo dessas primeiras décadas do século dezenove uma espécie de

“exílio interior”248. A flama da Revolução se conservou acesa nesse período, sobretudo,

no seio de famílias ligadas umbilicalmente aos processos revolucionários, mas também

no interior de algumas instituições públicas, como é o caso da Escola Politécnica.

“Tu sabes bem, aliás, que a república é o governo preferido do aluno politécnico”249, diz

Augusto Comte a seu amigo Pouzin, em carta datada de 26 de novembro de 1814. Poucos

meses depois, aos 2 de janeiro de 1815, dirigindo-se dessa vez a Valat, nosso autor

escreve: “Tu não poderias acreditar quão bom espírito reina entre os alunos da Escola; a

mais perfeita união existe entre nós, e ela foi cimentada com força pelo cessar dos

balanços250 que foi efetuado solenemente em 31 de dezembro. Cada sala de recrutas

enviou deputados às salas dos veteranos, que estavam perfeitamente decoradas e

representavam quase todas o senado de um povo livre: os veteranos responderam aos

244 Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 70. 245 Idem, ibidem, p. 71. 246 “A necessidade de regeneração política e filosófica estava em sua alma de quatorze anos bem menos clara do que à época do Curso; mas um fato subsiste independentemente das explicações que o filósofo tira de seu sistema: Comte é um filho da Revolução e ele reconhece isto no momento mesmo em que os senhores do Estado deixam a Revolução para trás, junto à sua juventude”. Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 72, grifo nosso. 247 Ver Lynn Hunt, Política, cultura e classe na Revolução Francesa, São Paulo, Companhia das Letras, 2007. 248 A expressão dessa vez é de Claude Nicolet, op. cit., p. 133-57. 249 CG, I, p. 4. 250 Os “balanços” (bascules) aos quais se refere Comte, segundo nos explica Henri Gouhier, eram uma espécie de ritual de iniciação ao qual os recrutas (conscrits) da Escola Politécnica eram submetidos, por seus alunos veteranos. “Os veteranos os fazem balançar sobre uma prancha seguindo um rito minucioso. Essa operação não é do agrado de Comte nem de sua mamãe, que se inquieta fortemente. Mas depois, como todos os outros, o recruta Comte é balançado; ele se dá conta de que isso não faz mal e diz a si mesmo que chegará o dia em que ele será veterano”. Henri Gouhier, La vie d’Auguste Comte, Paris, Vrin, 1965, p. 54.

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discursos proclamando a mais perfeita igualdade entre todos os alunos e jurando a união

e a fraternidade, cuja garantia eles nos deram abraçando nossos oradores. [...] Estas

cerimônias comovem fortemente, eu te garanto; é bonito ouvir falar assim de liberdade

e de igualdade no momento em que todos os nossos concidadãos correm à escravidão e

ao despotismo. [...] Tu vês pelo pouco que te digo que todos os nossos atos solenes lembram bastante

a república: é este o espírito geral da Escola, e se alguns não vão até à república ao menos

destes não há um sequer que não seja um ardente amigo da liberdade, que nós sabemos

muito bem distinguir da anarquia”251.

O tríptico revolucionário – liberdade, igualdade e fraternidade –, aparece, como se vê,

espargido no trecho em questão. A referência, já no final do excerto, à anarquia, como

oposta à liberdade, também nos parece merecer destaque: ela reaparecerá, como veremos

no próximo capítulo, nos escritos de maturidade do autor, constituindo, com efeito, um

dos temas mais importantes de sua filosofia política. Por sua vez, o elogio direto – e

entusiasmadíssimo – da Revolução vem ao final da carta supracitada, como post scriptum:

“A geração que se forma [agora nos liceus] será ainda mais embrutecida do que a geração

atual; a partir de então, não mais esperança, a liberdade de minha pátria estará perdida

sem volta; o despotismo real renascerá tal como era antes da sublime insurreição de 1789, e

ainda pior!!! Pobre França!, infelizes amigos da liberdade! Os nobres esforços que fizestes

sob o risco de vossa vida para dar a meus concidadãos a posse de seus direitos legítimos

tornar-se-ão inúteis, e talvez tenhais morrido vítimas de vosso devotamento à causa da

razão e da Humanidade! Deus!, se o espírito fosse por todos os lados como na

Escola!...”252.

É possível ainda encontrar no Comte politécnico, para além do elogio da Revolução e da

república a que dá origem, grande simpatia pela revolução americana, sua república e seus

pais fundadores253. Em carta a Valat, datada de 13 de outubro de 1816, Comte comunica

a seu amigo, solicitando sigilo com relação a seus pais, a oportunidade surgida, por

intermédio do general Campredon e do general Bernard – ambos ex-alunos da Escola

251 CG, I, p. 6-7, grifo nosso. 252 Ibidem, p. 7-8, grifo nosso. 253 Sobre a influência da Revolução Americana no imaginário político francês, consultar os artigos de Philippe Raynaud, L’idée républicaine et “Le Fédéraliste”; de Judith Shklar, Thomas Jefferson et une république étendue; e de Bernard Vincent, Thomas Paine, républicain de l’univers, in: François Furet & Mona Ozouf (org.), op. cit., p. 57-79, 81-100, 101-126. Para um estudo de conjunto (embora questionável em suas conclusões) a respeito das revoluções e das repúblicas americanas e francesas, consultar Patrice Higonnet, Sister republics: the origin of French and American republicanism, Cambridge, Harvard University Press, 1988.

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Politécnica, e este último (desdenhado pelo governo francês) recém-nomeado chefe da

engenharia americana –, de embarcar, num futuro não muito distante, com destino aos

Estados Unidos. A promessa com que sonha o jovem Comte durante alguns meses diz

respeito à fundação, em terras de além-mar, de uma escola bastante análoga à Escola

politécnica, e de sua provável contratação para o ensino da geometria descritiva pura e

aplicada – esta “bela ciência”, totalmente desconhecida pelos engenheiros americanos.

Augusto Comte se entusiasma com a possibilidade de ganhar um bom ordenado – algo

em torno de vinte mil francos – e de ocupar um cargo “honorável” numa instituição de

grande prestígio, em que lhe seria possível, finalmente, levar a esses republicanos uma

ciência completamente nova.

Frente à possibilidade nunca concretizada de se mudar para os Estados Unidos, nosso

autor inicia nessa época uma série de estudos a respeito das constituições americanas e

de algumas obras históricas apropriadas a lhe conferir, segundo o seu juízo, uma “ideia

exata deste país”. Surge em sua correspondência com Valat nesse período o elogio da

figura de Benjamin Franklin254 – segundo as palavras do autor, o “Sócrates moderno” –

e das “belas instituições” americanas, “fruto do gênio e da virtude” de seu povo. A

exaltação da liberdade e da igualdade, vistas por Comte como valores fundantes também

da república americana, é frequente ao longo da correspondência. “Ah, deus!, que delícia

quando eu tocar esta terra onde a liberdade e a igualdade não são nomes vãos e repousam

sobre uma base inabalável: a íntima convicção e o patriotismo arrazoado de todos os

habitantes!...”255. Apesar do desejo latente de, em seis ou sete meses, se ver abraçado com

seu amigo aos pés da estátua de Benjamin Franklin, o projeto de se mudar para os Estados

Unidos nunca saiu do papel, e o destino acabou por reservar a Augusto Comte caminhos

bem mais penosos na França.

254 Há, por parte de Augusto Comte, uma enorme projeção de sua própria imagem na figura de Benjamin Franklin. O filósofo relembra seu amigo Valat que “Franklin foi ajudante de impressão até a idade de vinte e quatro ou vinte e cinco anos, e ele nos ensina ele próprio, diz Augusto Comte, que durante esse tempo almoçava um pedaço de pão em todas as refeições; e ele morreu confortável, cercado das bênçãos de seus concidadãos e da estima de todos os homens, depois de ter restituído a liberdade a seu país. Este exemplo é primoroso para nos encorajar”. Na sequência da carta, o autor atribui sua “conversão” à filosofia, em parte, à influência de Franklin: “Quanto a mim, meu caro amigo, eu me tornei completamente filósofo: tu sabes que eu já o era em teoria, e no presente eu começo a sê-lo na prática. Tu me acusarás, talvez, de presunção, mas malgrado isto, como não desejo esconder nada de ti, te confiarei que tomei por modelo de conduta o homem ilustre, o homem divino de quem te falava há pouco: busco imitar o Sócrates moderno, não por seus talentos, mas por seus costumes. Tu sabes que aos vinte e cinco anos ele concebeu o projeto de se tornar perfeitamente sábio, e que ele o executou: quanto a mim, ousei empreender a mesma coisa, e não tenho ainda vinte anos. Sua vida está em meu modesto gabinete, e a cada dia leio uma de suas páginas para me encorajar”. CG, I, p. 16. 255 CG, I, p. 17.

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3. O positivismo e as Luzes

3.1. Fundamentos epistemológicos do positivismo256

A compreensão exata do estatuto filosófico do positivismo passa necessariamente, em

nosso ver, pela avaliação equilibrada de sua relação com a filosofia das Luzes. A relação

do positivismo, por sua vez, com a filosofia das Luzes é complexa e se dá, como é comum

acontecer na história da filosofia, sob o signo da herança e do parricídio. Não seria

equivocado atribuir, em parte, a complexidade da relação entre positivismo e iluminismo

à própria complexidade da filosofia das Luzes: etiqueta vaga e abrangente, sob a qual

costumeiramente se colocam autores e filosofias díspares, antípodas entre si e por vezes

mesmo inimigos pessoais. Os conflitos latentes entre as filosofias que constituíram o

próprio tecido do iluminismo, talvez represados pela conjuntura política da época, que

forçosamente as aglutinava num mesmo campo, em oposição a um inimigo comum,

256 O mais preciso aqui seria falar em fundamentos da “filosofia positiva”, ao invés de fundamentos do “positivismo”; as duas coisas, entretanto, são comumente referidas como uma só. Como nos lembra Annie Petit, há, de 1844 a 1848 (acompanhando os eventos políticos do período), uma mudança significativa de vocabulário nos textos de Augusto Comte, sintetizada, sobretudo, pelos títulos dos dois discursos por ele publicados em cada um desses anos. Em 1844, temos a publicação do Discurso sobre o espírito positivo e, em 1848, a publicação do Discurso sobre o conjunto do positivismo. “Do ‘positivo’ ao ‘positivismo’, nos diz a comentadora, se organiza [...] a articulação do ‘espontâneo’ e do ‘sistemático’. A ‘filosofia positiva’ é o produto do ‘espírito positivo’ que ela, ao mesmo tempo, consolida. Comte se vê, de uma só vez, como seu herdeiro, porta-voz e organizador; mas se pretende o fundador do ‘positivismo’: ele forja a palavra e quer sistematizar a coisa”, Annie Petit, Introduction, Esprit, p. 31. Na abertura de seu discurso de 1848, Augusto Comte nos diz que “o positivismo se compõe essencialmente de uma filosofia e de uma política, que são necessariamente inseparáveis, como constituindo uma a base e a outra o objetivo de um mesmo sistema universal”, Ensemble, p. 2. A filosofia positiva está apresentada no Curso de filosofia positiva (que o autor rebatiza posteriormente de Sistema de filosofia positiva) e resumida mais tarde no discurso de 1844, ao passo que a política positiva se encontra exposta no Sistema de política positiva e como que antecipada sinteticamente no discurso de 1848; as duas, conjuntamente, compõem o positivismo. A filosofia positiva, portanto, é parte constitutiva do positivismo. Daí podermos falar em “fundamentos do positivismo” quando, na verdade, estamos expondo, mais especificamente, os fundamentos da filosofia positiva.

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como que eclodem no final do século dezoito e no início do século dezenove de maneira

irreconciliável, em decorrência dos eventos revolucionários e da reação conservadora que

os sucede.

O iluminismo, num certo sentido, confere unidade artificial a uma multiplicidade de

filosofias (ou de etiquetas filosóficas) como o racionalismo, o romantismo, o humanismo,

o materialismo, o sensualismo, o enciclopedismo, o empirismo, etc., que em larga medida

polinizaram também as filosofias do século dezenove, entre elas o positivismo, mas

depuradas agora por um debate que se orientou majoritariamente pela sucessão de

eventos políticos desencadeados pela Revolução. Com efeito, qualquer estudo a respeito

das filosofias do século dezenove francês257 se beneficia enormemente do cotejo com a

tradição iluminista que as antecedeu e de sua adequada inscrição no debate político da

época, herdeiro compulsório dos eventos revolucionários. Com respeito especificamente

ao positivismo de Augusto Comte, é possível identificar em sua obra um núcleo de

críticas à tradição iluminista e aos seus mais eminentes autores. Como dito de início, a

crítica positivista das Luzes se faz aqui num duplo registro: ao mesmo tempo em que se

entende sucessora desta tradição, a filosofia positiva identifica e nela recusa elementos

que não apontam para sua consolidação enquanto termo final de um longo processo de

desenvolvimento do espírito humano.

Sob o ponto de vista político, o positivismo, em sua relação ambivalente com as Luzes,

elabora uma crítica do que considera ser os seus dogmas fundamentais: a liberdade de

consciência, a igualdade e a soberania do povo. A crítica de cada um destes dogmas consiste na

verdade numa única crítica, uma vez que, como veremos a seguir, Augusto Comte

compreende a igualdade e a soberania do povo como meros desdobramentos (ou como

manifestações tardias) da liberdade de consciência. A ambivalência que habita a relação

do positivismo com a tradição iluminista se expressa no fato de que, para nosso autor, é

257 Um dos grandes estudos de conjunto a respeito do assunto é o de Paul Bénichou, Les temps de prophètes: doctrines de l’âge romantique, Paris, Gallimard, 1977, em que o autor, partindo dos liberais “doutrinários” (Guizot e Jouffroy), passando em seguida pelo movimento neocatólico (Ballanche, Chateaubriand e Lamennais), pelos reformadores sociais de viés científico (Comte e Saint-Simon), pelos pensadores “utópicos” (Leroux e Fourier) e chegando, finalmente, aos grandes historiadores do movimento humanitário (Quinet e Michelet), cobre um período e um arco de autores de fundamental importância para a constituição do pensamento político francês da época. Consultar também o clássico trabalho (um pouco datado, mas ainda utilíssimo) de Émile Faguet, Politiques et moraliste du dix-neuvième siècle, 3 vol., Paris, Lecène, Oudin et Cie./Société Française d’Imprimerie et de Librairie, 1891-1900, em que o autor trata de de Maistre, de Bonald, Mme. de Staël, Benjamin Constant, Royer-Collard e Guizot (no primeiro volume); Saint-Simon, Fourier, Lamennais, Ballanche, Quinet, Cousin e Augusto Comte (no segundo volume); e, finalmente, Stendhal, Tocqueville, Proudhon, Sainte-Beuve, Taine e Renan (em seu terceiro e último volume).

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a um só tempo indispensável e deplorável que cada um desses dogmas citados adquira um

caráter absoluto e permanente no interior da “filosofia metafísica”, identificada

inequivocamente com a tradição iluminista. Segundo Augusto Comte, a “absolutização”

destes dogmas é indispensável uma vez que “sem um tal atributo a metafísica

revolucionária teria sido necessariamente impotente para cumprir sua função essencial

contra o antigo sistema político”258, que com facilidade a anularia. Por outro lado, à

medida que os dogmas da metafísica revolucionária se tornam absolutos ela acaba por

representar “o governo como sendo, por sua natureza, o inimigo necessário da sociedade,

contra o qual esta última deve se constituir diligentemente em estado contínuo de

suspeição e vigilância, disposta, sem cessar, a restringir cada vez mais sua esfera de

atividade, a fim de impedir suas intromissões, tendendo, por fim, a não lhe conferir outras

atribuições reais senão as meras funções de polícia geral, sem nenhuma participação

essencial na suprema direção da ação coletiva e do desenvolvimento social”259.

Do ponto de vista da filosofia positiva, portanto, a “negação sistemática de todo governo

verdadeiro” 260 é entendida como necessária à filosofia metafísica para suplantar, de

maneira definitiva, a filosofia teológica e o antigo regime. Deste mesmo ponto de vista (e

é aqui que reside a ambivalência), ela é também deplorável, na medida em que, uma vez

suplantada a filosofia teológica, a filosofia crítica passa a se opor não apenas às tentativas

de restauração do antigo sistema político, mas também às tentativas de instauração do

novo sistema político, cuja chegada ela própria esteve preparando (aparentemente sem

saber). Esta interpretação teleológica do iluminismo como um interregno que separa a

escolástica do positivismo está assentada na lei dos três estados, pedra angular de toda a

filosofia positiva.

3.1.1. A lei dos três estados e a enciclopédia positivista

Segundo a lei dos três estados, formulada por Augusto Comte ainda em seu opúsculo

fundamental de 1822261, em um gênero qualquer de especulações, a razão humana passa,

necessariamente, por três estados gerais: primitivamente pelo estado teológico ou fictício;

258 CPP, IV, p. 45. 259 Ibidem. 260 Ibidem. 261 Sobre o “opúsculo fundamental”, ver Henri Gouhier, L’opuscule fondamental, Les Études philosophiques, n. 3, 1974, p. 325-37.

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transitoriamente pelo estado metafísico ou abstrato; até chegar, finalmente, ao estado

científico ou positivo262.

No estado teológico, o espírito humano fundamentalmente antropomorfiza a natureza,

atribuindo a cada um de seus fenômenos seja a ação voluntária dos objetos materiais eles

próprios, seja a ação de divindades, cuja vontade é a causa essencial da produção dos

fenômenos. Nas palavras de Augusto Comte, nesse estado em particular “ideias

sobrenaturais servem para ligar o pequeno número de observações isoladas de que se

compõe então a ciência. Em outros termos, os fatos observados são explicados, isto é,

vistos a priori de conformidade com fatos inventados”263. No estado metafísico, faz-se a

abstração dos seres sobrenaturais e opera-se apenas com “abstrações personificadas”,

segundo as palavras do próprio autor. “Seu caráter é bastardo, liga os fatos segundo ideias

que não são mais de todo sobrenaturais, mas não são ainda inteiramente naturais”264. Nas

abstrações personificadas, nos diz Augusto Comte, “o espírito pode ver, à vontade, ou o

nome místico de uma causa sobrenatural, ou o enunciado abstrato de uma simples série

de fenômenos, segundo o estado teológico ou científico de que mais se aproxima”265. Por

fim, no estado positivo, cessam todas as buscas por causas últimas e primeiras, limitando-

se o espírito humano ao estabelecimento de leis que descrevem satisfatoriamente os

fenômenos naturais a partir apenas de sua observação, isto é, sem a necessidade de uma

validação externa, transcendente. “Os fatos se ligam então segundo ideias ou leis gerais

de ordem inteiramente positiva, sugeridas ou confirmadas pelos próprios fatos, e que

muitas vezes mesmo não são mais do que simples fatos bastante gerais para se tornarem

princípios”266.

262 Ver Plan, p. 82. 263 Plan, p. 82. Do opúsculo fundamental de 1822 ao Discurso sobre o espírito positivo de 1844, Augusto Comte sofistica sua descrição do estado teológico, dotando-o de uma gradação que torna sua transição ao estado metafísico mais suave. A primeira “forma principal” do estado teológico é o fetichismo; a segunda o politeísmo; e a terceira (e última) o monoteísmo. O fetichismo consiste “sobretudo em atribuir a todos os corpos exteriores uma vida essencialmente análoga à nossa, mas quase sempre mais enérgica, segundo sua ação ordinariamente mais poderosa”, Esprit, p. 45. No politeísmo – forma privilegiada, segundo o autor, para o estudo do espírito teológico, porquanto é nela que se verifica sua grande ascensão tanto mental como social –, “a vida é finalmente retirada dos objetos materiais para ser misteriosamente transportada a diversos seres fictícios, habitualmente invisíveis, cuja a ativa intervenção contínua se torna doravante a fonte direta de todos os fenômenos externos, e mesmo em seguida dos fenômenos humanos”, Esprit, p. 47. No monoteísmo, o número de seres fictícios é reduzido à unidade e é nessa forma teológica, segundo Augusto Comte, que “começa o inevitável declínio da filosofia inicial”, uma vez que “a razão vem a restringir cada vez mais a dominação anterior da imaginação, permitindo gradualmente se desenvolver o sentimento universal, até então quase insignificante, da subordinação necessária de todos os fenômenos naturais a leis invariáveis”, Esprit, p. 48. 264 Plan, p. 82. 265 Ibidem. 266 Ibidem.

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No interior do pensamento comtiano, a cada um desses estados mentais está associada

uma filosofia, que, por sua vez, engendra uma política característica. Dessa forma,

enquanto dominaram na Europa as concepções teológicas a respeito do mundo natural

e, por conseguinte, a respeito das sociedades humanas, um tipo de política (teológica)

persistiu. A partir do momento em que as concepções a respeito do mundo natural

começaram a se alterar – como consequência da chegada gradual das ciências particulares

(a astronomia, a física, a química, etc.) ao estado positivo –, as concepções filosóficas em

geral foram também afetadas, engendrando a seguir transformações correspondentes na

sociedade e na política. Os eventos políticos que revolucionaram o Ocidente ao longo

dos três séculos que antecederam os escritos de Augusto Comte (a Reforma protestante

e as revoluções americana e francesa, sobretudo) são exemplos históricos que balizam a

reflexão política do autor, e sobre os quais ele apoia a maior parte de suas hipóteses –

noutras palavras, são estes os seus objetos de observação.

No entanto, a chegada de cada uma das ciências particulares ao estado positivo não se dá

de maneira uniforme, mas de acordo com o grau de generalidade ou de complexidade

dos seus fenômenos. A filosofia positiva se organiza de maneira enciclopédica, mas,

diferentemente da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, a enciclopédia positivista é, em

primeiro lugar, muito mais enxuta e, em segundo lugar, hierarquizada. Augusto Comte

considera poder organizar todo o saber positivo a partir de seis ciências particulares: a

matemática, a astronomia, a física267, a química, a biologia e, por fim, a sociologia268. Os

fenômenos de cada uma dessas ciências (excetuando-se, naturalmente, a matemática, que

não possui algo como um “fenômeno matemático” para ser observado e tem, portanto,

um estatuto apenas de propedêutica das demais ciências no interior da enciclopédia

267 Um olhar contemporâneo sobre a classificação da enciclopédia positivista naturalmente estranha a separação entre física e astronomia, contemporaneamente subsumidas uma à outra (a astronomia como um domínio da física). É preciso ter em mente, no entanto, que no momento em que escreve Augusto Comte, apesar dos inestimáveis avanços teóricos da mecânica celeste, os instrumentos de observação do cosmos são ainda muito rudimentares. O aperfeiçoamento da espectroscopia, por exemplo, que nos permite inferir a composição química dos astros, só se dá efetivamente na segunda metade do século dezenove e no começo do século vinte. Para se ter uma ideia do estado de coisas à época, a descoberta de Netuno data apenas de 1846 e é causa de grande excitação para o filósofo. 268 Para um panorama da construção da enciclopédia positivista, consultar Annie Petit, História de um sistema: o positivismo comtiano, in: Hélgio Trindade (org.), O positivismo: teoria e prática, Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1999, p. 13-47. Nesse artigo, a comentadora acompanha a evolução do vocabulário de Augusto Comte e seu impacto na organização da enciclopédia positiva. De início, por exemplo, Augusto Comte utiliza, ao invés do termo biologia (cujo emprego estava ainda se fixando na época), o termo fisiologia. A sociologia, de início chamada também de “física social”, se estabelece tendo em vista certo afastamento do fisicismo saint-simoniano, do qual o autor buscava se desvencilhar. Por fim, cumpre dizer, a título de completude, que a fase religiosa do positivismo (que não será aqui nosso objeto de estudo) adiciona uma última ciência à enciclopédia positivista: a moral.

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positivista), apresentam, segundo Augusto Comte, graus diferentes de generalidade,

complexidade, imperfeição e modificabilidade.

Da astronomia à sociologia, portanto, os fenômenos se tornam gradualmente menos

gerais, mais complexos, mais imperfeitos e mais modificáveis. As leis que descrevem esses

fenômenos, por sua vez, são gradualmente menos precisas269 e a capacidade humana de

intervenção nesses fenômenos, e de sua correção, aumenta proporcionalmente à

imprecisão das leis. É preciso também salientar, o que confere à enciclopédia positivista

o seu caráter verdadeiramente hierárquico, a submissão das ciências menos gerais às

ciências mais gerais. Com efeito, os fenômenos sociológicos encontram-se submetidos

não apenas às leis sociológicas, mas também às leis biológicas, químicas, físicas, etc. Há

aqui, num certo sentido, uma inversão da pirâmide de generalidade dos fenômenos

naturais: quanto mais alta for a posição de um determinado fenômeno nessa pirâmide,

menor será o seu grau de submissão a todos os outros fenômenos. A sociologia não

poderá, portanto, violar as leis biológicas; a biologia não poderá violar as leis químicas; a

química não poderá violar as leis físicas; e assim sucessivamente.

No contexto, portanto, da lei dos três estados, as ciências mais gerais atingem o estado

positivo antes das ciências menos gerais. No momento em que escreve, Augusto Comte

entende que a astronomia e a física tenham já chegado ao estado positivo e que a química

e a biologia estão em vias de atingi-lo (a química num estágio mais avançado do que a

biologia). A fundação da sociologia, objetivo maior dos tomos quatro, cinco e seis de seu

Curso270, constitui, aos olhos de Comte, um estágio necessário para a transição definitiva

da política ao estado positivo. São com estes pressupostos, portanto, que nosso autor

lança seu olhar sobre a tradição iluminista que o antecedeu, buscando identificar nela os

elementos de transição previstos por sua teoria.

269 Menos precisas, porém não menos certas. São exatamente esses os termos empregados por Augusto Comte no Curso. É preciso interpretar o vocabulário comtiano da seguinte maneira: embora uma lei possa ser menos precisa do que outra (as leis sociológicas, por exemplo, são menos precisas do que as leis biológicas e as leis biológicas menos precisas do que as leis químicas e assim sucessivamente) não é menos certo que diferentes observadores, munidos dos mesmos instrumentos de observação, cheguem a um acordo a seu respeito (inclusive quanto ao seu grau de precisão). A certeza de uma lei, portanto, não diz respeito à sua capacidade de previsão dos eventos futuros, mas apenas à sua adequada fundamentação epistemológica. Essa diferenciação, acreditamos, é fundamental para se compreender coerentemente o positivismo. 270 Os tomos um, dois e três do Cusrso, por sua vez, se ocupam da matemática (tomo 1); da astronomia e da física (tomo 2); e da química e da biologia (tomo 3).

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3.1.2. O espírito geral da metafísica

Uma vez que compreendemos, em linhas gerais, a estrutura da enciclopédia positivista e

a relação de suas ciências particulares com a lei dos três estados, a tarefa de interpretar a

crítica positivista da tradição iluminista se torna mais fácil, porquanto se evidencia o

caráter transitório que a filosofia crítica ou revolucionária tem no interior da formulação

positivista. “Sob qualquer aspecto que se o considere, nos diz Augusto Comte, o espírito

geral da metafísica revolucionária consiste sempre em erigir sistematicamente em estado

normal e permanente a situação necessariamente excepcional e transitória que deveria se

desenvolver nas nações mais avançadas, desde que a impotência da antiga ordem política

para dirigir então o movimento social havia começado a se tornar irrecusável até à

manifestação suficientemente caracterizada de uma nova ordem”271.

No entendimento do autor, portanto, houve um certo momento da história em que se

tornou irrecusável o fato de que a antiga ordem política havia se tornado impotente para

conduzir, dali em diante, o movimento da sociedade na direção de seus fins. Desde esse

momento até o instante em que uma nova ordem se fizesse manifestar claramente, seria

necessário, ainda segundo o autor, que um certo estado de coisas excepcional e transitório

se desenvolvesse no seio das nações mais avançadas. O espírito geral da metafísica, sob

qualquer aspecto que se o analise, consiste justamente em alçar, de maneira sistemática,

esse estado de coisas excepcional e transitório ao estado de normalidade. Tomar por

normal o excepcional e por permanente o transitório: eis a essência do espírito metafísico

e revolucionário aos olhos de Augusto Comte.

Atentemos para o fato de que, no trecho analisado acima, os dois marcos temporais

aludidos por Augusto Comte são algo vagos e que sua vagueza deriva dos próprios

termos empregados pelo autor: “irrecusável” no primeiro caso e “manifestação

suficientemente caracterizada” no segundo. É preciso se perguntar, com efeito, a quem

a impotência do antigo sistema para dirigir a sociedade começou a aparecer como um

dado “irrecusável” e, igualmente, para quem o surgimento do novo sistema se

manifestará de forma “suficientemente caracterizada”. É crucial entendermos aqui que

para Augusto Comte essas não são questões de mera opinião, mas questões de

conhecimento científico272. “Não há, de forma alguma, liberdade de consciência em

271 CPP, IV, p. 45. 272 O antigo e infindável debate a respeito da diferenciação entre doxa e espisteme reaparece em Augusto Comte com ares inegavelmente modernos.

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97

astronomia, em física, em química, mesmo em fisiologia, no sentido (que qualquer um

acharia absurdo) de não acreditar, por confiança, nos princípios estabelecidos nessas

ciências pelos homens competentes. Se na política isto se dá de outra forma, é unicamente

porque, tendo sido derrubados os antigos princípios, e os novos não estando ainda

formados, não há neste intervalo, propriamente falando, princípios estabelecidos”273.

As questões que formulamos acima, com o intuito de melhor compreender a letra do

autor, são respondidas de maneira categórica no interior da filosofia positiva: o sociólogo,

é a ele que estarão referidos os critérios epistemológicos capazes de delimitar com

precisão não apenas os marcos temporais de que trata o excerto em questão, mas também

todo o conjunto de interrogações de natureza política (assim como caberia, em todas as

outras ciências particulares de que se compõe a enciclopédia positivista, ao astrônomo,

ao físico, ao químico e ao biólogo semelhante incumbência). Notemos, no entanto, que

a delimitação precisa dos marcos temporais em questão tem implicações dramáticas no

próprio “movimento da sociedade”, de que nos fala Augusto Comte. Estabelecer os

limites do transitório implica em estabelecer também o que é, afinal, o novo e o antigo.

Esta absolutização do transitório, no entanto, levada a efeito pelo espírito metafísico, é

apenas criticável, no entendimento do autor, se se conhece o verdadeiro movimento da

sociedade. Em outros termos, o conhecimento é a condição mesma de possibilidade da

crítica. Logo depois de lamentar a “subversão direta e total das noções políticas as mais

fundamentais”274, levadas a efeito pela metafísica revolucionária, Augusto Comte nos dirá

que “a doutrina crítica seria bastante imperfeitamente julgada se esta negação sistemática

de todo verdadeiro governo, depois de ter sido vista como uma consequência inevitável

da decadência do regime antigo, não fosse considerada também como uma condição

temporariamente indispensável à plena eficácia da luta que deveria preparar a chegada do

regime novo”275. Para preparar, portanto, a chegada do novo regime, Augusto Comte nos

afirma ser necessário destruir o antigo. A destruição do antigo regime, entretanto, só seria

possível, ainda segundo o autor, se as mentes da época se convencessem da necessidade

de negar sistematicamente toda forma de governo. A negação sistemática de todo

273 CPP, IV, p. 46-7n. 274 Ibidem, p. 45. 275 Ibidem.

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98

verdadeiro governo constituirá, por sua vez, um novo obstáculo à chegada do novo

regime. Como resolver o impasse?

Aos olhos de Augusto Comte, seria impossível evitar o que temos chamado aqui de

absolutização do transitório. Seria o mesmo que admitir a violação da lei dos três estados:

um salto do estado teológico diretamente ao estado positivo, sem passar pelo estado

metafísico. “Entretanto, nos diz o autor, este grave inconveniente deve parecer, do ponto

de vista filosófico, lamentavelmente inseparável de nossa fraca natureza”276. Não apenas

a debilidade da natureza humana é invocada por Augusto Comte para justificar os erros

por ela cometidos no estado metafísico, mas também a longa duração do processo de

transição ao estado positivo. “Uma operação social, se pergunta o filósofo, cuja realização

deveria requerer dois ou três séculos, teria podido, mesmo no estado mais avançado da

razão pública, não passar por absoluta e definitiva aos olhos do vulgar?”277. A solução

para o impasse, afirmará a filosofia positiva, deve passar necessariamente pela instância

do conhecimento. “A verdadeira natureza do sistema novo, afirma Augusto Comte, [é]

profundamente desconhecida”278 no estado metafísico. Ela só passa a ser conhecida (e,

ainda assim, gradualmente) à medida que o espírito humano executa seu movimento na

direção do estado positivo, ou seja, a descoberta do novo só se dá, gradualmente, ao

longo do percurso que nos conduz coletivamente (isto é, enquanto sociedade) a ele. Não

se conhece, portanto, o novo a priori e isto deve ser entendido como uma espécie de

corolário do relativismo epistemológico positivista. Façamos agora uma breve digressão em

nossa exposição, no intuito de melhor compreender esse conceito-chave da filosofia

positiva.

3.1.3. O relativismo epistemológico

No prefácio especial do apêndice geral do quarto (e último) volume do Sistema de política

positiva – no qual Augusto Comte finalmente traz a público seus opúsculos de juventude

– o autor nos diz, a respeito de seus “escritos prematuros” (ele se refere à fase em que

trabalhou como secretário de Saint-Simon): “dessas produções efêmeras só incluo aqui

duas indicações decisivas de minha tendência contínua para a religião positiva. A primeira

surgiu em 1817, desta sentença característica, no meio de vã publicação: ‘tudo é relativo,

276 Ibidem. 277 Ibidem. 278 Ibidem.

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eis o único princípio absoluto’”279. A “vã publicação” de que nos fala Augusto Comte é

o terceiro tomo de L’Industrie, jornal fundado por Saint-Simon e para o qual nosso autor

colaborou durante algum tempo. No segundo caderno da publicação, encontramos a

seguinte passagem: “Não se trata mais de dissertar a perder de vista para saber qual é o

melhor dos governos; não há nada de bom, não há nada de mau, falando

absolutamente280; tudo é relativo, eis a única coisa absoluta; tudo é relativo sobretudo ao tempo,

no que concerne às instituições sociais. A monarquia ilimitada foi boa numa certa época,

um governo representativo livre será instituído na sequência, não há dúvida sobre isso;

mas hoje aquilo de que precisamos é a monarquia representativa, o governo parlamentar;

e é este regime que nos convém, não porque seja em si mesmo o melhor de todos, não é

este o ponto, mas porque ele é o meio de se passar do sistema antigo ao sistema novo”281.

Vê-se, portanto, que de um excerto a outro (trinta e sete anos os separam no tempo,

aproximadamente) uma ideia particular, usada num contexto bastante específico, ganha

o estatuto de “princípio” e passa a fundamentar todo o sistema filosófico do autor. Toda

a filosofia positiva, é preciso salientar, está apoiada em seu “princípio de relatividade”. Já

no Curso de filosofia positiva, em sua 24ª lição, Augusto Comte, ao discutir a validade da lei

da gravitação, nos diz: “as noções absolutas me parecem de tal maneira impossíveis que

eu não ousaria mesmo garantir de forma alguma, por mais verossímil que isto me pareça,

a perpetuidade necessária e inalterável da teoria da gravitação, [...] se viermos um dia, o

que é, ademais, muito difícil de admitir, a aperfeiçoar a precisão das nossas observações

atuais tanto quanto nós o fizemos em comparação às de Hiparco. Mas, e isto poderia

nunca acontecer, [se] fosse preciso então construir uma outra lei da gravitação,

permaneceria eternamente verdadeiro, de forma necessária, que a lei atual satisfaz às

observações contentando-se com a precisão de segundos, [...] propriedade que basta

completamente, sem dúvida, às nossas necessidades reais282. É assim que, malgrado a

279 SPP, IV, Apêndice geral, p. ii. 280 Como não ouvir aqui o ranger de dentes de Nietzsche ecoando algumas décadas mais tarde? O “canto de galo do positivismo”, “primeiro bocejo da razão”, não prenuncia, afinal, a dissolução da própria moralidade? Ver Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos ou Como se filosofa com um martelo, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, [§ 4, aforismo n. 4], p. 32. Para aproximações entre o positivismo de Augusto Comte e o niilismo do fim do século, ver Angèle Kremer-Marietti, Nietzsche et l’épistémologie réfléchissante. Revue Internationale de Philosophie, v. 54, n. 211, p. 163-82, 2000. 281 EJ, p. 71, grifo nosso. 282 A teoria da gravitação newtoniana funcionava (e segue funcionando) perfeitamente bem para descrever a ocorrência de eclipses, o fenômeno das marés, as estações do ano, etc. Alguns outros fenômenos, entretanto, lhe escapam (e já lhe escapavam há algum tempo). A precessão do periélio de Mercúrio talvez seja o exemplo mais conhecido (embora sem grandes implicações em nossa vida diária). O funcionamento de alguns equipamentos eletrônicos, no entanto, entre eles o GPS (Global Positioning System), já inseridos em nosso dia a

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100

natureza necessariamente relativa de nossos conhecimentos positivos, nossas teorias

apresentam, em meio a suas variações inevitáveis, e por sua própria subordinação aos

fatos observados, um caráter fundamental de estabilidade real, apropriado para prevenir

a vacilação de nossas inteligências”283.

Da mesma forma que, no escrito de juventude, os regimes de governo eram avaliados em

relação ao seu tempo (sua adequação, portanto, não estava condicionada a um padrão

absoluto, mas a um paradigma imanente da época), a lei da gravitação no Curso tem sua

validade relacionada a critérios locais, ou seja, ao grau de precisão que uma determinada

época é capaz de conferir às suas observações experimentais. Se todo conhecimento

positivo parte apenas das observações e as observações, por sua vez, admitem graus de

precisão (isto é, há observações mais ou menos precisas), segue-se daí que o próprio

conhecimento, as próprias leis, estarão também sujeitas a uma gradação no que concerne

a sua precisão. As leis positivas, portanto, serão sempre imprecisas, na medida em que

sempre se admite a possibilidade de aperfeiçoamento das observações. Note-se,

entretanto, que a imprecisão das leis só se mostra à luz de leis mais precisas e é justamente

isto que, no entendimento do autor, confere estabilidade ao edifício do conhecimento

positivo (o edifício não desaba nunca, uma vez que a cada viga obsoleta que dele se retira,

uma mais robusta é colocada em seu lugar).

A validade, portanto, de nossas teorias científicas estará sempre assegurada, uma vez que

sua imprecisão só se manifestará, de maneira incontornável, no momento em que elas já

tiverem se tornado obsoletas, isto é, quando novas leis, mais precisas, já tiverem sido

formuladas em seu lugar. Com efeito, a observação de fenômenos que contrariam nossas

leis atuais (fruto do aperfeiçoamento das próprias observações), ao invés de ensejar o

abandono imediato dessas leis, apresenta-se como ocasião para a formulação de leis mais

precisas284. As leis antigas, entretanto (e Augusto Comte insiste nesse ponto), continuarão

dia, dependem, para o seu bom funcionamento, de um grau de precisão que só a teoria da relatividade einsteiniana foi capaz de conferir à nossa descrição dos fenômenos físicos. É curioso observar, acompanhando Comte em sua argumentação, como o desenvolvimento da ciência, impulsionando o desenvolvimento tecnológico, foi capaz, em tão pouco tempo, de alterar drasticamente o que Comte nomeia “as nossas necessidades reais”. Ações cotidianas, como, por exemplo, chamar um Uber, já completamente naturalizadas na vida das grandes metrópoles, dependem, para sua realização, de algo extraordinariamente sofisticado como a teoria da relatividade. 283 CPP, II, p. 392. 284 Em carta a Valat, datada de 8 de setembro de 1824, Augusto Comte diz: “não se abandona um sistema por outro a não ser quando este último permite conceber de uma maneira mais ampla os fatos gerais que são o essencial da ciência, cujo número é muito claro que, em meio a todas as incertezas pelas quais te lamentas, aumentou consideravelmente nesses últimos tempos, e aumenta a cada dia”, CG, I, p. 124.

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101

válidas dentro do regime de precisão em que haviam sido previamente estabelecidas. O

que muda, devemos enfatizar, é justamente o escopo do regime, que passa agora a ser

mais amplo; sua ampliação acompanhando, portanto, o redimensionamento do nosso

próprio universo de observações – e forçando, de enfiada, o aperfeiçoamento contínuo

de nossas teorias científicas.

Antes de retornarmos à discussão que deixamos em suspenso, seria instrutivo ainda

analisarmos brevemente de que maneira Augusto Comte sintetiza, em seu Discurso sobre o

espírito positivo, de 1844, suas ideias a respeito do princípio de relatividade, uma vez que

sua escrita (e a essa altura isto já não deveria mais nos surpreender) de certa forma

mimetiza o próprio desenvolvimento contínuo das ciências positivas, ou seja, retoma a si

própria incessantemente e se pretende aperfeiçoar a cada vez que o faz. “Para caracterizar

suficientemente esta natureza relativa de todos os nossos conhecimentos reais, nos diz

Augusto Comte, é importe ter consciência, ademais, do ponto de vista o mais filosófico,

que se todas as nossas concepções devem ser consideradas elas mesmas como fenômenos

humanos, tais fenômenos não são simplesmente individuais, mas também e sobretudo

sociais, porquanto resultam, com efeito, de uma evolução coletiva e contínua, da qual

todos os elementos e todas as fases são essencialmente conexas”285.

Ao afirmar que todas as nossas concepções devem ser consideradas como fenômenos

humanos, Augusto Comte acaba por fazer das próprias ciências positivas (constituídas,

afinal, de “nossas concepções”) objetos de estudo, e por inverter momentaneamente os

papéis: as instâncias analisadoras dos fenômenos naturais passam a ser elas próprias

fenômenos a serem analisados. Tais instâncias, contudo, são objetos de estudo somente

à medida que se as considera como o produto do trabalho coletivo da humanidade286 e

não apenas enquanto manifestações das mentes individuais. Augusto Comte nos diz,

portanto, que a “fenomenologização” de nossas concepções só se dá à medida que se as

coloca em perspectiva histórico-sociológica, ou seja, quando não se desconsidera sua

“evolução coletiva e contínua”. É, unicamente, a partir desta perspectiva que nossas

285 Esprit, p. 69. 286 A ideia da humanidade como um homem coletivo, que se desenvolve ao longo dos séculos analogamente aos indivíduos, vem de Pascal: “[...] o conhecimento do progresso das ciências pôde unicamente inspirar a Pascal este admirável aforismo, para sempre fundamental: ‘toda a sucessão dos homens, durante a longa sucessão dos séculos, deve ser considerada como um único homem, que subsiste sempre, e que aprende continuamente’”, CPP, IV. p. 119. A passagem exata, como nos alertam os editores do Curso, se encontra no Prefácio do Tratado sobre o vazio: “De sorte que toda a sucessão de homens, ao longo do curso de tantos séculos, deve ser considerada como um mesmo homem que subsiste sempre e aprende continuamente”, Blaise Pascal, Œuvres complètes, v. 1, Paris, Gallimard, 1998, p. 456.

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concepções podem almejar o estatuto de fenômeno científico, isto é, de objeto passível

de ser conhecido por uma ciência positiva.

“Se, portanto, prossegue o autor, sob o primeiro aspecto, se reconhece que nossas

especulações devem sempre depender das diversas condições essenciais de nossa

existência individual, é preciso igualmente admitir, sob o segundo, que elas não são

menos subordinas ao conjunto da progressão social, de forma a não poderem jamais

comportar esta fixidez absoluta que os metafísicos supuseram”287. Nesta passagem, se

Augusto Comte reconhece, por um lado, que a existência individual é condição necessária

para a manifestação de nossas especulações (isto é, as ideias precisam, em todas as épocas,

de cabeças individuais bem constituídas para abrigá-las e desenvolvê-las), ele nos adverte,

por outro lado, que disto não decorre a independência completa do indivíduo (no que

diz respeito à própria formulação de suas especulações) com relação ao “conjunto da

progressão social”. Da subordinação das especulações individuais ao conjunto das

especulações coletivas (ou seja, da subordinação intelectual do indivíduo à sociedade),

nosso autor deriva o caráter relativo de todas as nossas concepções e justifica, portanto,

a impossibilidade de o conhecimento atingir o grau de fixidez almejado pela metafísica.

As ciências positivas, diante da metafísica, revelam toda a sua precariedade, mas é

justamente sua precariedade que as tornam, em primeiro lugar, possíveis e dignas de

confiança (ao contrário da metafísica: impossível, por definição, e eternamente suspeita).

Nota-se que, em termos epistemológicos, a recusa do absoluto está por trás, para o

positivismo, da recusa da metafísica. Ainda a esse respeito, num trecho fundamental para

se compreender adequadamente a posição filosófica do positivismo frente à possibilidade

mesma do conhecimento, Augusto Comte nos dirá que “a lei geral do movimento

fundamental da humanidade consiste [...] em que nossas teorias tendam cada vez mais a

representar exatamente os objetos externos de nossas constantes investigações sem que,

entretanto, a verdadeira constituição de cada um deles possa, em nenhum caso, ser

plenamente apreciada; a perfeição científica devendo se limitar a se aproximar deste limite

ideal tanto quanto o exigem nossas diversas necessidades reais”288. As teorias científicas

(positivas), nos diz Augusto Comte, tendem, segundo a lei dos três estados, a representar

de maneira cada vez mais exata seus objetos de investigação. À “representação” dos

287 Esprit, p. 69-70. 288 Ibidem, p. 70.

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objetos exteriores, nosso autor irá contrapor, logo em seguida no texto, “sua verdadeira

constituição”, esta última impossível de ser por nós “plenamente apreciada”. O

aperfeiçoamento das ciências, portanto, tem como objetivo não a transposição de um

limiar que nos separaria da verdadeira constituição dos objetos externos, mas uma

aproximação assintótica deste limite ideal, efetuada por meio de representações289. O

conhecimento, portanto, não é, para Augusto Comte, um “desvelamento do ser”, mas

um caminhar progressivo na direção de um absoluto inalcançável, e que se orienta não

por qualquer inclinação ou vaidade pessoal, mas (o que é sensivelmente diferente) por

nossas “diversas necessidades reais” – o caráter prático da filosofia positiva se manifesta

aqui de maneira exemplar.

Ao falar da “representação exata” de “objetos exteriores” cuja “verdadeira constituição”

está vedada à nossa “plena apreciação”, o autor parece sugerir, afinal, a existência de um

absoluto transcendente290, ainda que reconhecendo a impossibilidade de a razão humana,

condenada à experiência, acessá-lo plenamente. A mesma sugestão nos parece ser dada

em passagem anterior deste mesmo discurso, em que o autor, falando ainda do espírito

teológico, afirma: “seria, em primeiro lugar, supérfluo insistir na tendência involuntária

que, mesmo nos dias de hoje, nos arrasta todos evidentemente às explicações

essencialmente teológicas, tão logo desejamos penetrar diretamente o mistério inacessível do modo

fundamental de produção de fenômenos quaisquer, e sobretudo com respeito àqueles cujas leis

naturais nós ainda ignoramos” 291 . Em nota deste excerto, Annie Petit nos diz: “A

referência ao ‘mistério’ – ou ao ‘misterioso’ – não deve certamente ser compreendida em

Comte como [se estivesse] preparando um mundo sobrenatural possível. A partir de uma

tal interpretação se pôde falar do positivismo como um ‘agnosticismo’ que, situando um

real para além de nossas possibilidades de conhecimento, deixaria um lugar possível para

a metafísica. Mas é claro que em Comte se trata apenas de insistir na modéstia exigida do

espírito positivo”292.

289 Em geometria, diz-se “assíntota” uma reta que é tangente de uma curva no infinito, ou seja, que, prolongada, indefinidamente, aproxima-se cada vez mais do ponto de tangência da curva, mas sem jamais encontrá-lo. Embora Augusto Comte não empregue este vocabulário para falar do “absoluto”, nos pareceu bastante intuitivo fazê-lo (sobretudo tendo-se em vista a formação matemática do autor). 290 Augusto Comte, enfatizemos, não utiliza, em momento algum de seus textos, a palavra “transcendente”. O fazemos aqui, entretanto, com o intuito deliberado de sugerir uma aproximação (ademais, em nada original, pensamos) entre a reflexão epistemológica do positivismo e os problemas atacados pela filosofia crítica kantiana. 291 Esprit, p. 50, grifo nosso. 292 Ibidem, p. 50n.

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Esta interpretação canônica do positivismo, seguida pela comentadora, pode ser também

encontrada no discípulo mais ilustre de Augusto Comte. Émile Littré, em seu Prefácio de

um discípiculo, nos diz, a respeito da recusa do absoluto em Augusto Comte: “Não se pode

repetir em demasia o anátema pronunciado por M. Comte contra as hipóteses

inverificáveis. A grandeza da ciência não está no esforço impotente e subjetivo de

conhecer aquilo que ela não pode conhecer; ela está no labor, bem recompensado até o

presente, que interroga objetivamente a natureza, e que dela retira noções relativas, sem

dúvida, mas pelo menos porções seguras e obtidas de uma verdade crescente e de um

encadeamento metódico de concepções cada vez mais complicadas”293. Mais à frente no

texto, ao analisar certas passagens de um comentário da obra de Herbert Spencer, em

que se tangencia estas mesmas questões colocadas pela epistemologia positiva294, Émile

Littré nos diz: “Segundo M. Spencer, a religião, tendo por função essencial impedir o

homem de ser completamente absorvido naquilo que é relativo e imediato, e nele

despertar a consciência de qualquer coisa mais elevada, tem por objeto o incognoscível. De

seu lado, a ciência chega ao incognoscível. A religião e a ciência se confundem neste ponto,

em que elas não são senão duas faces diferentes de uma mesma doutrina”295.

Littré, entretanto, a respeito desta questão, discorda de Spencer, sobretudo no que diz

respeito à identificação entre “o objeto da fé e o resultado da ciência”296. Além do mais,

na sequência do texto, o discípulo enunciará a paternidade do positivismo de Augusto

Comte sobre a noção spenceriana do “incognoscível”, afirmando que “até então ela não

existia filosoficamente”297. “Anteriormente à firme discussão de M. Comte, prossegue

Littré, havia dois domínios bastante distintos: [em primeiro lugar], o da fé e o da

metafísica (neste contexto eles [os domínios da fé e da metafísica] se confundem); neles

o incognoscível, longe de ser desconhecido, havia encontrado determinações bastante

precisas sobre Deus, sobre seus atributos, sobre sua personalidade, sobre sua providência,

sobre a origem do mundo, sobre o estado depois da morte e depois da consumação dos

séculos. O outro domínio era o das ciências positivas; mas elas não se elevavam de forma

293 Émile Littré, Préface d’un disciple, in: Auguste Comte, Principes de philosophie positive, Paris, J. B. Baillière et Fils, 1868, p. 43. 294 Trata-se de um artigo de 1864 publicado na Revue des deux mondes, de autoria de Auguste Laugel. Ver Auguste Laugel, Les études philosophiques en Angleterre: M. Herbert Spencer, Revue des deux mondes, v. 49, n. 2, 1864, p. 930-57. 295 Émile Littré, op. cit., p. 62. 296 Idem, ibidem. 297 Idem, ibidem.

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alguma à ideia do incognoscível, aceitando aquilo que ensinavam a fé e a metafísica, ou ao

menos não acreditando que em seu próprio nome se poderia estabelecer um incognoscível.

M. Comte foi quem primeiro, estendendo o método positivo à filosofia, inseriu na

consciência filosófica a noção do incognoscível, subtraindo-a ao mesmo tempo da

competência provisória da metafísica e da incompetência também provisória da

ciência”298.

Aos olhos de Émile Littré, como vemos, o incognoscível da religião e da metafísica, a

bem dizer, é uma contradição em termos, visto que se enuncia a seu respeito uma série

de atributos que, por definição, seriam impossíveis de se conhecer. “Em meu ver, a

reunião que [M. Spencer] faz de dois incognoscíveis sob uma mesma rubrica é antes nominal

do que real, o incognoscível da fé sendo o objeto mesmo da fé, e o incognoscível da ciência

sendo um limite no qual ela se detém. Ser objeto ou ser limite são duas noções bastante

distintas” 299 . O incognoscível da ciência, arremata o autor, “é verdadeiramente o

desconhecido; e sobre o desconhecido nada pode ser fundado”300. O incognoscível

spenceriano, que Littré filia finalmente à estirpe do positivismo, traduzir-se-ia, ainda

segundo o discípulo, em termos de sua própria noção de imensidão: “Aquilo que está para

além do saber positivo, seja, materialmente, o fundo do espaço sem borda, seja,

intelectualmente, o encadeamento de causas sem termo, é inacessível ao espírito humano.

Mas inacessível não quer dizer nulo ou não existente. A imensidão, tanto material quanto

intelectual, retém num vínculo estreito nossos conhecimentos e se torna por essa aliança

uma ideia positiva e de mesma ordem; quero dizer que, ao tocá-los e ao abordá-los, essa

imensidão aparece sob um duplo caráter, a realidade e a inacessibilidade”301. Para Littré,

portanto, o “absoluto” de Augusto Comte, o “incognoscível” de Spencer e seu conceito

de “imensidão” são uma mesma e única coisa: “É um oceano que vem tocar nosso litoral,

e para o qual nós não temos nem barco nem vela, mas cuja clara visão é tanto salutar

quanto formidável”302.

298 Idem, ibidem, p. 62-3. 299 Idem, ibidem, p. 64, grifo nosso (em “um limite”). 300 Idem, ibidem. 301 Idem, Auguste Comte et la philosophie positive, Paris, Hacehette et Cie., 1863, p. 529, apud ______, op. cit., p. 67. 302 Idem, ibidem. Como não lembrar aqui (ficando ainda nas metáforas náuticas) de Kant? Na Crítica da razão pura, o filósofo de Königsberg diz existir, cercando a ilha do conhecimento, “um vasto e tormentoso oceano que é o verdadeiro lugar da ilusão, onde muitos bancos de névoa e blocos de gelo prestes a derreter simulam novas terras e, enganando incessantemente, com esperanças vazias, o navegador errante que sai em busca de descobertas, atraem-no para aventuras que ele não consegue evitar, mas que, ao mesmo tempo, nunca consegue

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Se quisermos seguir a interpretação de Littré a respeito da epistemologia positiva, seria

preciso antes fazer uma distinção importante. Isto porque, como acabamos de ver, o

discípulo afirma, com base na filosofia do mestre, que o absoluto recusado pelo

positivismo aparece, finalmente, sob um duplo caráter, “a realidade e a inacessibilidade”.

Em carta a Valat, entretanto, datada de 8 de setembro de 1824, Augusto Comte, nos diz:

“Numa palavra, o absoluto, em qualquer sentido que seja, não apenas não existe, mas não

pode mesmo ser imaginado por nós, e tal tem sido até aqui o vício fundamental da

filosofia. Mas, ao adentrar a condição real das coisas e dos homens, se trata, quando se

fala de método, não de saber se o melhor que os homens podem empregar é

necessariamente bastante imperfeito, mas unicamente de decidir qual de todos aqueles

que o espírito humano pode conceber é o mais vantajoso às suas pesquisas, ou, se

quisermos, o menos pior. Toda discussão que não trata disto é inútil e quimérica por sua

natureza”303.

Com efeito, se o discípulo afirma o caráter “real” do absoluto, o mestre, antes, havia

afirmado a sua “inexistência”. A chave para a compreensão da questão, em nosso

entendimento, reside na relação que a epistemologia positiva entretém com a

possibilidade mesma de uma ontologia. A compatibilização das afirmações do discípulo e

do mestre só se dá ao se admitir a separação entre o “ser” e o “real”, isto é, entre a

“existência” e a “realidade”. Afirmemos sem rodeios: a epistemologia positiva implica na

supressão completa da ontologia, entendendo-se esta última no sentido de uma ciência

do ser (e entendendo-se a “ciência do ser” no sentido de um “desvelamento do ser”). Em

nosso ver, Augusto Comte, ao dizer que o absoluto “não existe”, está apenas reafirmando

que a possibilidade de conhecê-lo (advogada quimericamente pela teologia e pela

metafísica) nos está vedada, pela própria natureza relativa do conhecimento. O

conhecimento positivo (único possível, aos olhos de Comte) parte do fenômeno e fica

no fenômeno, resistindo à tentação infantil de penetrar seus modos secretos de produção.

Num certo sentido, entretanto – puramente fenomênico –, poderíamos dizer (sem

agredir as concepções do autor), que o absoluto existe, mas apenas de forma relativa

(enquanto fenômeno), isto é, ele nos aparece (assim como os demais objetos exteriores)

levar a cabo”. Immanuel Kant, Crítica da razão pura, Tradução de Fernando Costa Mattos, Rio de Janeiro, Vozes, 2013, p. 242 303 CG, I, p. 123, grifo nosso. Para discussões complementares a respeito do relativismo epistemológico em Augusto Comte, ver Henri Gouhier, La jeunesse d’Auguste Comte et la formation du positivisme, v. 3, Paris, Vrin, 1941, p. 183 e ss.; Léon Brunschvig, La raison et la religion, Paris, PUF, 1964, p. 164 e ss.; e Jean Delvolvé, Réflexions sur la pensée comtienne, Paris, Félix Alcan, 1932, p. 58.

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107

enquanto representação (de um limite), o que não é o mesmo que afirmar sua existência

absoluta: um “ser em si” (e não em relação a um observador)304.

Por outro lado, Émile Littré, ao dizer que o absoluto é uma “realidade”, está apenas

reafirmando (lembremo-nos de sua concepção do incognoscível) a realidade de um limite,

e não a de um objeto situado para além desse limite (as duas coisas são absolutamente

distintas para o autor). Neste sentido, o absoluto é real e mesmo Augusto Comte,

negando-lhe a existência (ao afirmar a impossibilidade de conhecê-lo), deverá concordar

com tal afirmação. Desta feita, o positivismo estará condenado a afirmar que só existe

aquilo que se conhece, não existindo, portanto, objeto anterior à observação (a mera

indagação a respeito da existência de algo que não pode ser observado parece absurda

aos olhos de nosso autor). Num certo sentido, para o positivismo é o próprio

conhecimento que cria a existência. O conhecimento, entretanto, é um aproximar-se

assintótico de um limite inalcançável, o que faz da própria existência (e do próprio ser)

um conceito relativo e, por via de decorrência, também precário. A ruptura que o

positivismo opera, via epistemologia, com praticamente toda a tradição filosófica (desde

Platão) é, como se vê, muito mais profunda do que se poderia pressupor à primeira vista.

O que o positivismo recusa não é apenas a metafísica e o absoluto; o positivismo recusa,

de maneira dramática e irreconciliável, uma concepção de conhecimento que

acompanhou o pensamento ocidental desde os tempos imemoriais e à qual certas

filosofias do início do século vinte305 tentarão desesperadamente retornar: a ideia de que

a filosofia, para conhecer, precisa acessar o ser das coisas.

3.2. Positivismo crítico das Luzes

Como vimos na seção anterior, à medida que se penetra a crítica positivista das Luzes –

cuja ressonância, em última instância, se manifesta no plano da política – em busca de

304 Aos olhos do positivismo, a própria ideia de um “ser em si” poderia ser compreendida como mais uma manifestação (agora no campo da ontologia) da tendência irresistível do espírito teológico em antropomorfizar seus objetos de observação. A ideia de um “ser em si”, cuja existência estaria assegurada de forma independente de qualquer experiência sensível, poderia ser entendida, aos olhos do positivismo, como uma atribuição, aos objetos exteriores, de alguma forma, ainda que rudimentar, de subjetividade (uma instância, intrínseca ao objeto, garantidora de sua própria existência, ou, falando de forma ainda mais descuidada, uma espécie de cogito primordial imanente a todos os objetos de nossa experiência sensível). Supor a existência dos objetos exteriores apartada de nossa observação (isto é, aceitar a ideia mesma do “ser em si”) seria o mesmo, segundo esta interpretação, que lhes atribuir uma característica essencialmente humana: uma forma primitiva de “experiência em primeira pessoa”, no essencial, diria o positivismo, equivalente àquela que o espírito teológico, ainda na infância da razão, atribuía aos objetos naturais para explicar os seus fenômenos (uma espécie, portanto, de “fetichismo ontológico”, severamente censurado pelo espírito positivo). 305 Referimo-nos, naturalmente, a Heidegger – “com seu cajado, pastoreando o ser na floresta negra” –, muito provavelmente (e com razão) o maior nome da filosofia no século vinte.

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108

seus elementos fundamentais, chega-se, contudo, à epistemologia. Do ponto de vista

epistemológico, é preciso frisar que o conhecimento científico – grande organizador da

política para o positivismo – se funda apenas na observação. Para Augusto Comte, não é

possível conhecer a priori o movimento futuro da sociedade (isto é, sem antes observá-

la), mas isto não é o mesmo que alegar a impossibilidade completa de prevê-lo, ainda que

a previsão, como tudo que toca o relativismo científico, esteja envolta em considerável

precariedade. A chave para a compreensão da questão está no fato de que a previsão

científica, diferentemente da previsão teológica ou metafísica, apoia-se apenas na

observação e nunca na imaginação306. Deste ponto de vista, compreende-se porque nosso

autor entende a absolutização do transitório como algo inevitável: o movimento da

sociedade na direção de seus fins (e, no limite, seus próprios fins307) não está dado de

antemão, mas revela-se ao observador atento da história dinamicamente, isto é, à medida

que se progride temporalmente.

O conjunto do passado histórico, portanto, determina, de alguma forma e em algum grau,

o futuro da humanidade. É preciso conhecê-lo para que se possa, ao mesmo tempo,

prever o futuro e atuar no presente308. O conhecimento da história, entretanto, é condição

necessária, mas não suficiente para se conhecer o movimento futuro da humanidade

(caso contrário a própria fundação da sociologia seria absolutamente desnecessária). Aos

olhos de Augusto Comte, a história não é científica e constitui apenas uma espécie de

repertório empírico309 (no mais das vezes incoerente) ao qual o sociólogo deve recorrer

306 Para uma separação clara entre observação e imaginação em Augusto Comte, conferir o Examen, passim. 307 A discussão a respeito do positivismo como uma filosofia finalista é controversa e complicadíssima (melhor seria dizer controversa porque complicadíssima). Se olharmos, no entanto, apenas para os fundamentos epistemológicos do positivismo nos parece possível afirmar que não se deve, de modo algum, falar de “fins” em Augusto Comte de maneira absoluta, mas apenas de maneira relativa. Mesmo a lei dos três estados, pedra angular de todo o edifício positivista, deve estar submetida a este pressuposto. A sociologia comtiana, a exemplo das ciências modernas, tem de estar disposta, contínua e eternamente, a abandonar seus paradigmas científicos (desta feita, eles não são absolutos aos olhos do positivismo). Pressupõe-se, portanto, ao menos em termos epistemológicos, a falibilidade das leis sociológicas, mas isto não implica (ou não deveria implicar) em arbitrariedade de princípios. As leis, com efeito, podem e devem cair, mas desde que leis mais gerais (que incorporem as leis antigas como casos particulares) sejam postas em seu lugar. Este mesmo critério se aplicaria, portanto, aos “fins” de que temos falado: são fins temporários (pontos de paragem), relativos (relativos ao tempo) e não absolutos, definitivos, intemporais. 308 “Em resumo, nos diz Augusto Comte, ciência, donde previsão; previsão, donde ação: tal é a fórmula bastante simples que exprime, de maneira exata, a relação geral da ciência e da arte, tomando estas duas expressões em sua acepção total”. CPP, I, p. 45. 309 O empirismo tem, na obra de Augusto Comte, um estatuto recorrentemente pejorativo, pré-científico. Refere-se, de modo geral, ao acúmulo desordenado de conhecimentos particulares carentes de generalizações capazes de expressá-los, cientificamente, na forma de leis.

Page 109: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

109

para, reorganizando seus dados, deduzir as leis que regem o verdadeiro movimento da

sociedade.

3.2.1. A crítica da liberdade de consciência

A crítica positivista das Luzes, tanto em seu aspecto epistemológico como em seu aspecto

político, pode ser traduzida em termos da crítica do absoluto. O absoluto epistemológico

engendra, aos olhos de Augusto Comte, um absoluto político. A recusa de um, portanto,

deve implicar na recusa do outro. “Considerando, [...] nos diz o filósofo, a doutrina crítica

sob um ponto de vista mais especial, é evidente que o direito absoluto de livre exame, ou o

dogma da liberdade ilimitada de consciência, constitui seu princípio mais estendido e mais

fundamental, sobretudo se não o separarmos das suas mais imediatas consequências,

relativas à liberdade de imprensa, de ensino, ou de qualquer outro modo de expressão e

de comunicação das opiniões humanas”310. Notemos, em primeiro lugar, a identificação

operada pelo autor entre “direito de livre exame” e “liberdade de consciência” – as duas

expressões são apresentadas como sinônimas pelo filósofo. Em segundo lugar, atentemos

para o fato de que o par conceitual já aparece, no texto do autor, adjetivado pelos termos

“absoluto” e “ilimitada”, respectivamente. Augusto Comte parece inclinado, portanto, a

não considerar, de saída, a possibilidade de o direito de livre exame e a liberdade de

consciência se expressarem sob uma forma não absoluta – relativa – e limitada. Aos seus

olhos, somos levados a concluir, estes dogmas da filosofia crítica já se expressam,

enquanto fenômeno social, absolutos e ilimitados no momento em que escreve – se não

de fato, isto é, como realidade empírica manifesta em todos os casos particulares que

compõem o próprio fenômeno social, ao menos como tendência global suficientemente

consolidada (voltaremos a essa questão nos próximos parágrafos).

O direito absoluto de livre exame, ou dogma da liberdade ilimitada de consciência, ganha

o estatuto de princípio “mais estendido e mais fundamental” da filosofia crítica, segundo

o filósofo, por sua grande capilaridade e seu alto grau de enraizamento nas instituições e

sociedade da época. As liberdades de imprensa, de ensino, de expressão, etc., são

apresentadas como manifestações da vitalidade e do alcance do dogma. Para o autor,

portanto, a própria instituição desse conjunto de “liberdade civis” no seio da sociedade

está ancorada na liberdade ilimitada de consciência, “e é essencialmente por meio dela,

complementa Augusto Comte, que todas as inteligências, quaisquer que sejam suas vãs

310 CPP, IV, p. 46, grifo nosso.

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110

intenções especulativas, [acabaram por aderir], de uma forma mais ou menos explícita,

ao espírito geral da doutrina revolucionária, do qual fazem assim, umas conscientemente

outras em contradição com suas próprias teorias, um uso espontâneo e contínuo”311.

Se esmiuçarmos agora o texto do autor, poderemos notar a existência de uma gradação

no que se refere à explicitude com que “as inteligências da época” aderem, via liberdade

de consciência, ao “espírito geral da doutrina revolucionária”; o filósofo nos diz, no

excerto, que elas o fazem “de uma forma mais ou menos explícita”. Por outro lado,

quanto ao uso que essas mesmas inteligências da época fazem do espírito da doutrina

revolucionária, Augusto Comte admite, curiosamente, que algumas delas o façam de

forma não plenamente consciente, logo em contradição com suas próprias teorias. Em

resumo: “graus de explicitude” e “níveis de consciência”; fazendo uso, portanto, destas

categorias o autor nuança o fenômeno a ser estudado. No fundo, se poderia argumentar,

Augusto Comte não afirma que o direito de livre exame e a liberdade de consciência

tenham já nascido absoluto e ilimitada – no contexto da Reforma protestante –, nem que

em todas as ocasiões em que se manifestam contemporaneamente eles sejam assim

entendidos e proclamados – daí termos falado, em parágrafo precedente, em “tendência

global suficientemente consolidada”, ao invés de atribuirmos ao autor uma concepção

estanque do fenômeno que buscava descrever.

No limite, nos parece adequado dizer que para uma descrição acurada do fenômeno

observado – isto é, a adesão das inteligências da época ao dogma da liberdade ilimitada

de consciência –, não há a necessidade, para o autor, de que os predicados do próprio

fenômeno sociológico se manifestem em todos os casos particulares que o compõem,

bastando, ao contrário, que, uma vez tomados em conjunto, estes mesmos casos

particulares expressem ao longo do tempo uma tendência (suficientemente caracterizada)

na direção da manifestação plena do fenômeno, tal como o descreve o autor, isto é,

absoluto e ilimitado. Com efeito, Augusto Comte poderia dizer – caso confrontado por

seus opositores – que, ainda que nenhum dos autores ou atores políticos do período

advogue o direito de livre exame e a liberdade de consciência de forma radicalizada (ou

seja, de forma absoluta e ilimitada), a tendência expressa por eles, do ponto de vista

sociológico, consiste ainda assim na aproximação gradual deste limite ideal. Acreditamos

311 Ibidem.

Page 111: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

111

que interpretar a letra do autor sob esse ponto de vista implica numa mudança radical do

sentido atribuído à sua filosofia.

Na sequência do texto, Augusto Comte nos dirá: “O direito individual de exame soberano

sobre todas as questões sociais devia adular demais a orgulhosa fraqueza de nossa

inteligência para que os conservadores mais sistemáticos do antigo regime social

pudessem eles próprios resistir a um tal engodo e se resignassem a permanecer, apenas

eles, humildes e submissos em meio a espíritos completamente abandonados ao ímpeto

irresistível de sua completa emancipação”312. Notemos que, uma vez mais, a fraqueza do

espírito humano é invocada pelo autor para justificar a inevitabilidade de sua transição ao

estado metafísico. Augusto Comte argumenta que a possibilidade de se tornar senhor de

si mesmo no que se refere a questões sociológicas – noutras palavras, fazer de si próprio

a instância verificadora da validade das opiniões em matéria de política – seria sedutora

demais, mesmo para os espíritos mais sistemáticos, para que se pudesse resistir a ela. A

situação se tornaria ainda mais grave, nos diz o autor, à medida que a expansão do direito

de livre exame se generalizasse: resistir, então, à tentação de “sua completa emancipação”

seria quase impossível, uma vez que todas as inteligências se permitiriam esta mesma

licença.

No momento em que escreve, Augusto Comte diz existir também na escola retrógrada

este mesmo espírito crítico que atribui à sua rival, a escola revolucionária. “Na vida

cotidiana, os mais zelosos partidários da política teológica não se mostram, de ordinário,

quase nunca menos dispostos agora do que seus adversários a julgar exclusivamente

segundo suas luzes pessoais, pondo fim, com não menos audácia e leviandade, aos

debates os mais difíceis, e sem testemunhar mais deferência real em relação a seus

verdadeiros superiores intelectuais” 313 . A “irritante infalibilidade”, afirma o autor,

referindo-se ao dogma da “infalibilidade papal” 314 , é sempre invocada pela escola

retrógrada como justificação para a imposição de suas convicções sobre as opiniões de

seus adversários. “Assinalo, conclui o filósofo, preferencialmente no partido retrógrado

esta inversão geral do espírito crítico – que caracteriza a doutrina revolucionária

312 Ibidem. 313 Ibidem. 314 Sobre a infalibilidade papal, ver o primeiro capítulo de Joseph de Maistre, Du pape, Paris, J. B. Pélagaud, 1857, p. 17 e ss.

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112

propriamente dita –, a fim de melhor ressaltar a extensão e a gravidade de uma tal situação

das inteligências”315.

Se por um lado, como vimos, Augusto Comte afirma que o dogma da liberdade ilimitada

de consciência engendra socialmente diversas outras formas de liberdade (de imprensa,

de ensino, de expressão, etc.), por outro lado, o autor nos dirá, na sequência do texto,

que este dogma, por sua vez, deve ser entendido como “a consagração, sob a forma

viciosamente abstrata, comum a todas as concepções metafísicas, do estado passageiro

de liberdade ilimitada em que o espírito humano foi espontaneamente colocado – como

resultado necessário da irrevogável decadência da filosofia teológica –, e que deve durar

naturalmente até o advento social da filosofia positiva” 316 . Trata-se, portanto, de

fenômeno mais amplo: o aumento desenfreado da própria liberdade humana (sendo a

liberdade de consciência apenas a sua primeira forma de expressão). A expansão

desmesurada da liberdade, por sua vez, traduz-se, para o autor, na própria ideia de

progresso advogada pela escola revolucionária, que consiste, segundo suas próprias

palavras, na “plena extensão contínua da liberdade, isto é – em termos mais positivos –,

do desenvolvimento gradual das faculdades humanas”317. No entanto, nos lembra o

autor, esta concepção de liberdade “é [sobretudo] uma noção negativa, [que reitera]

essencialmente uma supressão crescente de diversas resistências” 318 . Aos olhos de

Augusto Comte, contrariamente, “a verdadeira liberdade não [poderia] consistir [...] senão

na submissão racional à preponderância, convenientemente constatada, apenas das leis

fundamentais da natureza, ao abrigo de todo comando pessoal arbitrário”319.

O que se pretende mostrar com a análise do parágrafo precedente é que o desacordo do

autor com o que ele próprio chama de “escola revolucionária” – cujos dogmas, como

vimos, acredita já terem se difundido de maneira irrevogável na sociedade contemporânea

– se reduz, em última análise, a um desacordo, mais fundamental, a respeito da ideia

mesma de liberdade. A concepção de liberdade advogada pelo autor – de fundo estoica, é

preciso frisar – diz respeito não à mera supressão das “diversas resistências” que

315 CPP, IV, p. 46. 316 Ibidem, grifo nosso. 317 Ibidem, p. 103, grifo nosso. 318 Ibidem, p. 103-104. É curioso notar o quanto esta noção de liberdade, que Augusto Comte atribui à escola revolucionária, se aproxima da concepção de “liberdade negativa” formulada contemporaneamente por Isaiah Berlin, em seus famosos ensaios sobre a liberdade. Consultar Isaiah Berlin, Two concepts of liberty, in: ______, Liberty, Oxford, Oxford University Press, 2002, p. 166-217. 319 CPP, IV, p. 104.

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113

impediriam o “desenvolvimento gradual das faculdades humanas”, mas à conformação

dos indivíduos e da sociedade ao império de leis naturais. Para Augusto Comte, portanto,

ser livre não é viver sem limites – e sem a resistência por eles imposta ao desenvolvimento

das faculdades humanas –, ser livre, para o autor, é viver conforme à lei natural. Se

lembrarmos agora que, em matéria de política, o positivismo entende o estabelecimento

de leis naturais como uma competência exclusiva da sociologia, teremos como corolário

da própria formulação da ideia de liberdade positivista o fato de que caberá ao sociólogo

– e apenas ele – a delimitação precisa das fronteiras da própria liberdade humana – o

projeto político do positivismo (ambiciosíssimo) articula-se, como se vê, ainda em sua

fase estritamente científica.

Cumpre enfatizarmos, no entanto, que a reprovação do autor com respeito à escola

revolucionária, no que toca a questão da liberdade de consciência, repousa apenas no

caráter “ilimitado” ou “absoluto” que esta tende a atribuir-lhe. É porque concebe, em

primeiro lugar, a própria ideia de liberdade de maneira ilimitada que a escola

revolucionária, segundo Augusto Comte, tenderá a conceber, logo em seguida, a

liberdade de consciência também de maneira ilimitada. O filósofo, portanto, não recusa

a ideia mesma da liberdade de consciência; nas sociedades modernas, contudo, acredita

que seus limites estejam mal definidos (ou tão rarefeitos que tenderiam mesmo a

desaparecer). Com efeito, o autor nos diz que “quando [os] princípios [da filosofia

positiva] tiverem sido então estabelecidos, sua irresistível preponderância tenderá, enfim,

a reconduzir o direito de exame a seus limites verdadeiramente normais e

permanentes” 320 . Logo a seguir no texto, Augusto Comte afirmará que tais limites

“consistem, em geral, em discutir, sob as condições intelectuais convenientes, a ligação

real das diversas consequências com as regras fundamentais uniformemente

respeitadas”321. O trecho, devemos reconhecer, é de notável obscuridade: não fica claro,

a princípio, a respeito de quais “consequências” Augusto Comte está a falar; nem qual é

o conteúdo das tais “regras fundamentais” às quais estas consequências deveriam se ligar;

muito menos, por fim, por quem elas são (ou deveriam ser) “uniformemente

respeitadas”.

320 Ibidem, p. 47. 321 Ibidem.

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114

Algumas suposições – que, acreditamos, se justificarão na sequência do texto –, devem,

portanto, ser feitas aqui, com vistas a uma melhor compreensão da letra do autor. Em

primeiro lugar, nos parece apropriado supor que as “consequências” de que nos fala

Augusto Comte são as consequências das diversas opiniões particulares, em matéria de

política. Se nos fosse permitido alterar levemente o vocabulário empregado pelo autor,

diríamos, talvez de forma mais explícita, se tratar aqui das diversas prescrições que as

inteligências particulares fazem aos problemas de natureza política (e, portanto, o trecho

trataria das respectivas consequências destas prescrições na esfera social). Já com respeito às

“regras fundamentais uniformemente respeitadas”, nos parece existir, à primeira vista,

dois caminhos possíveis de interpretação: ou bem se as entende como as próprias leis

naturais, derivadas da observação do sociólogo com respeito ao fenômeno social; ou bem

se as entende como o “senso comum”, como o conjunto de normas – igualmente claras

e acessíveis ao sábio e ao cidadão comum – que constitui o próprio costume de um povo.

No caso de Augusto Comte, pensamos ser problemático adotar a segunda interpretação,

uma vez que o positivismo nos parece ser tudo, menos uma filosofia do senso comum

(em seu sentido consuetudinário). A primeira interpretação, contudo, na ausência de

complemento, não nos parece também dar conta do problema. Cairíamos, então, num

círculo vicioso (algo que o pensamento do autor toma muito cuidado para não fazer): as

regras que decidiriam, em última instância, que as opiniões do sociólogo deveriam,

finalmente, se sobrepor às demais opiniões particulares seriam elas próprias as opiniões

do sociólogo (isto é, as leis derivadas de suas observações).

Dada a complexidade da questão, propomos, portanto, uma interpretação que, num certo

sentido, combina as duas interpretações indicadas acima. Embora nos pareça equivocado,

como dissemos, identificar ao senso comum, de imediato, as “regras fundamentais

uniformemente respeitadas” de que nos fala Augusto Comte no excerto, nos pareceria

também um equívoco supor no autor a supressão completa do senso comum – se o

fizéssemos, seu esquema teórico, em nosso entendimento, simplesmente não funcionaria.

Expliquemos: as regras que devem reger o debate público (e, portanto, limitar

adequadamente a liberdade de consciência) são elas próprias, para Augusto Comte,

fenômenos sociais, logo objetos de conhecimento científico do sociólogo. Deriva-se

disto a inacessibilidade imediata de tais regras ao senso comum, mas não a sua

inacessibilidade completa. Segundo Augusto Comte, nem todos os cidadãos (e nem

mesmo todos os cientistas) são capazes de deduzir todas as leis naturais que compõem o

Page 115: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

115

conjunto do conhecimento humano (e que estariam depositadas, esquematicamente, na

enciclopédia positivista). No entanto, isto não impede que todos os cidadãos (e todos os

cientistas) acreditem, por confiança, nos resultados obtidos pela ciência, ou seja, em suas

leis – em algum grau, portanto, o senso comum deve estar operando na sociedade descrita

pelo autor. Com efeito, as “regras fundamentais” que devem reger o debate público (de

início, inacessíveis ao senso comum) deverão ser, inescapavelmente – a exemplo de todas

as outras leis naturais –, descobertas pela competência científica (neste caso específico,

pelo sociólogo). Uma vez descobertas, contudo, elas se tornariam, em seguida, acessíveis

ao senso comum (por confiança); e, uma vez acessíveis ao senso comum, tenderiam a se

tornar “uniformemente respeitadas” pelo conjunto da sociedade (assim como qualquer

outra lei científica). Em resumo, portanto, “as regras fundamentais uniformemente

respeitadas” deveriam ser, segundo esta interpretação, as regras, em primeiro lugar,

estabelecidas pelo sociólogo (enquanto leis naturais) e uniformemente respeitadas, em

seguida, pelo público em geral segundo o senso comum.

Reconstruindo, portanto, à luz de nossa interpretação, o parágrafo que originou nosso

breve excurso da exposição, nos caberia por fim dizer que, segundo Augusto Comte, os

limites “verdadeiramente normais e permanentes” da liberdade de consciência

consistiriam na discussão a respeito da ligação entre as diversas prescrições que fazem as

inteligências particulares (aos mais variados problemas sociais) e as regras fundamentais

estabelecidas pela sociologia com respeito ao debate público, aqui devidamente assentidas

pelo senso comum. Noutras palavras, para o autor, as consciências podem ser livres até

onde vai a liberdade humana, isto é, até onde permite a lei natural (devidamente

estabelecida pelo sociólogo). Recupera-se, dessa forma, o direito de livre exame, mas

limitado agora por critérios científicos que extrapolariam o caráter individual – e,

portanto, arbitrário – das inteligências particulares.

Até que chegue, no entanto, o momento em que os novos princípios sociais estejam

estabelecidos pela sociologia e aceitos unanimemente pelo senso comum, nosso autor

entende que essas “mesmas opiniões, que mais tarde [seriam] efetivamente destinadas a

submeter as inteligências a uma exata disciplina contínua, [...] não [poderiam], de início,

se manifestar senão sob o título universal de simples pensamentos individuais, produzidos [eles

também] em virtude do direito absoluto de exame, uma vez que sua legítima supremacia

não [poderia] ulteriormente resultar senão do assentimento voluntário pelo qual o público

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116

os [consagraria], enquanto resultado final da mais livre discussão”322. O assentimento

público e voluntário dos indivíduos aos princípios que devem, de modo geral, reger a

sociedade é uma das características essenciais da filosofia política de Augusto Comte323.

Ela implica, com efeito, na recusa da via temporal – da imposição por meio da força –,

solução, aos olhos do autor, “extremamente perigosa”, posto consistir apenas “na vã

esperança de antecipar, por meio de uma política completamente material, a instituição

de uma [...] unidade [das inteligências], [o que acabaria por sujeitar] o exercício do direito

de livre exame a regulamentações arbitrárias, antes mesmo que o desenvolvimento

espontâneo da razão pública tivesse gradualmente estabelecido seus princípios

correspondentes”324.

O problema da liberdade de consciência em Augusto Comte, quando submetido a uma

análise mais cuidadosa, se reduz, portanto, ao problema do estabelecimento de princípios

comuns capazes de garantir a esta entidade, a razão pública, o exame adequado das diversas

opiniões particulares em matéria de política. Com efeito, verifica-se, uma vez mais, que

o direito de livre exame não é recusado por completo pela filosofia positiva. Segundo o

autor, as inteligências individuais podem (e mesmo devem) examinar a todo momento os

pressupostos da sociedade. A exigência feita pelo positivismo, no entanto, consiste em

que o exame não se prolongue indefinidamente, o que exige, por sua vez, a adoção de

critérios comuns que devem ser escrupulosamente respeitados por todos e aos quais

todas as opiniões devem se submeter. Admite-se, assim, o direito de livre exame apenas

enquanto meio e nunca como fim – enquanto meio, cumpre enfatizar, que sempre nos

conduziria, em segurança, de certezas antigas a certezas novas.

A própria ideia de “exame” em Augusto Comte nos parece ser uma noção exclusivamente

transitória: uma espécie de “hiato cético” que interpolaria sempre dois dogmatismos

antitéticos – estes sim (os dogmatismos) pontos estáveis e “permanentes”325 aos quais

tenderiam incessantemente o espírito humano. “Em um caso qualquer, nos diz o autor,

seja privado, seja público, o estado de exame não poderia ser evidentemente senão

provisório, como que indicando a situação de espírito que precede e prepara uma decisão

322 Ibidem, grifo nosso. 323 Ver, a esse respeito, Mary Pickering, Augusto Comte e a esfera pública de Habermas, in: Hélgio Trindade (org.), op. cit., p. 59-70. 324 CPP, IV, p. 48. 325 As aspas em “permanentes” indicam que o adjetivo deve ser compreendido aqui da mesma maneira relativa que compreendíamos os “fins” alguns parágrafos acima. Ver supra, nota 307.

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117

final, na direção da qual tende, sem cessar, nossa inteligência no momento mesmo em

que ela renuncia a antigos princípios a fim de formar para si mesma os novos”326. A

suspenção do juízo, para Augusto Comte, ao contrário do que diriam os antigos

pirrônicos, longe de conduzir o espírito humano à ataraxia – o estado de perfeita

imperturbabilidade –, nos lança, desguarnecidos, nas águas tormentosas da angústia,

forçando-nos, rapidamente, a buscar a porção de terra mais próxima em que possamos

novamente nos fixar em segurança.

Na sequência do texto, Augusto Comte afirmará mesmo que na “razão humana – que

apesar de tudo, precisa de pontos fixos, os únicos capazes de reunir utilmente seus

esforços espontâneos –, o ceticismo produzido momentaneamente pela passagem, mais

ou menos difícil, de um dogmatismo a outro constitui uma espécie de perturbação

doentia, que não poderia se prolongar, sem graves perigos, para além dos limites naturais

da crise a que corresponde”327. A analogia entre o corpo social e o organismo biológico

fica aqui evidente: Augusto Comte circunscreve o ceticismo ao campo do patológico, ao

mesmo tempo em que reserva ao dogmatismo, de maneira exclusiva, o estatuto de

normalidade328. “Examinar sempre, sem se decidir jamais, seria quase taxado de loucura,

na conduta privada. Como, se pergunta o autor, a consagração dogmática de uma

semelhante disposição, em todos os indivíduos, poderia constituir a perfeição definitiva

da ordem social, com respeito a ideias cuja fixidez é ao mesmo tempo muito mais

essencial e, de outro modo, extremamente difícil de estabelecer?”329.

À luz dos parágrafos precedentes, pensamos que a ambivalência que habita a relação de

Augusto Comte com os dogmas da tradição iluminista se mostra agora de maneira ainda

mais evidente. Mais do que apenas ressaltar o caráter ambivalente da crítica positivista

das Luzes, pensamos, entretanto, que a discussão empreendida nas últimas seções nos

fez também compreendê-la (a própria crítica) em maior profundidade. Sob o ponto de

vista do relativismo epistemológico, por exemplo, acreditamos que o duplo caráter –

indispensável e deplorável – da absolutização do transitório (levada a efeito pela filosofia

326 Ibidem, p. 48. 327 Ibidem. 328 As “metáforas do organismo”, aliás, segundo assinala Judith Schlanger, em estudo clássico a respeito do assunto, não são exclusivas de Augusto Comte, tendo sido frequentes ao longo de todo o século dezenove. Ver Judith Schlanger, Les métaphores de l’organisme, Paris, L’Harmattan, 1995. Consultar, também, a respeito da oposição normal/patológico, Guillaume le Blanc, L’invention de la normalité, Esprit, n. 284, 2002, p. 145-64 e, claro, Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique, Paris, PUF, 1984. 329 CPP, IV, p. 48.

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118

crítica, segundo o positivismo) perde sua aparência de paradoxo. Lembremo-nos, a esse

respeito, do que diz Augusto Comte: “falando absolutamente, não há nada de bom, não

há nada de mau”. Logo, o próprio valor que se atribui aos fenômenos sociais deverá ser

tomado de forma relativa e nunca de maneira absoluta. É precisamente o que faz Augusto

Comte, no caso em discussão. Falando da “consagração absoluta de um aspecto

transitório da sociedade moderna”330, nosso autor dirá que “quando se a aplica (em

conformidade à sua destinação histórica) apenas à demolição do antigo sistema

político”331, uma tal fórmula se mostra “eminentemente salutar e mesmo estritamente

indispensável”332. No entanto, quando “mal transportada à concepção da nova ordem

social”333, revela-se, então, seu caráter deplorável, visto que agora “tende a entravá-la [a

nova ordem social] radicalmente, conduzindo à negação indefinida de todo verdadeiro

governo”334.

Em si mesma, portanto, a absolutização do transitório não possui um valor definido, é

apenas quando situada no interior de um certo paradigma, relativo, por sua vez, a um

determinado momento histórico, que, segundo o autor, ela adquire valor. Como se vê,

todo o problema, para o positivismo, consiste no estabelecimento de critérios científicos

capazes de garantir que os paradigmas políticos do tempo (no interior dos quais se dá a

valoração dos fenômenos sociais) não sejam alvos de infindáveis disputas arbitrárias, e

possam, assim como os demais paradigmas científicos, ser aceitos por unanimidade –

tanto quanto possível (isto é, de acordo com o grau de precisão que a sociologia for capaz

de conferir às suas leis).

3.2.2. A crítica da igualdade

Como vimos na seção anterior, a um mesmo fenômeno social, Augusto Comte será capaz

de atribuir valores distintos e mesmo contrários entre si – a um só tempo, sublinhemos,

nosso autor afirma, por exemplo, que a absolutização do transitório é salutar e deplorável.

O caráter antinômico, entretanto, desta proposição se mostra apenas epidérmico, uma

vez que o autor recusa, de início, toda forma de absolutismo. O relativismo

epistemológico, por sua vez, jamais deveria conduzir, nos adverte Comte, à arbitrariedade

330 Ibidem, p. 51. 331 Ibidem. 332 Ibidem. 333 Ibidem. 334 Ibidem.

Page 119: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

119

de princípios. O conhecimento, para o autor – noutros termos, a própria ciência –, é a

condição mesma de possibilidade da atribuição do valor. É porque conhece o movimento

da sociedade, que o sociólogo é capaz de atribuir corretamente valor aos fenômenos

sociais – e afirmar, portanto, que a absolutização do transitório é salutar, sob um ponto

de vista, e deplorável, sob outro ponto de vista. Se o valor está fundado no conhecimento

e se o conhecimento, por sua vez, está fundado apenas na observação e nunca na

imaginação, a certeza do conhecimento científico assegurará, segundo o filósofo, a

correta atribuição de valor aos fenômenos sociais – a construção de uma moralidade

científica, como se vê, já está de algum modo esboçada no Curso335.

Os aspectos essenciais da crítica positivista das Luzes, pensamos já terem sido expostos

e analisados nas seções anteriores. Cumpriria ainda, no entanto, por razões de

completude, examinar de modo sucinto os dois desenvolvimentos mais fundamentais,

aos olhos do autor, do dogma da liberdade de consciência: a igualdade e a soberania do

povo. Posto decorrem do dogma anteriormente analisado, não surgirão, em nosso ver,

grandes novidades da análise de cada um desses novos dogmas. De todo modo, investigá-

los nos será útil não apenas para avaliarmos a extensão da crítica positivista das Luzes,

mas também para nos certificarmos de que os aspectos da filosofia positiva ressaltados

em nossa análise da liberdade ilimitada de consciência foram corretamente analisados.

Em verdade, pensamos que as consequências políticas (ou mesmo ideológicas) da crítica

positivista da igualdade e da soberania do povo são o que nos interessarão de preferência

a partir de agora – a “igualdade”, não nos esqueçamos, figura até hoje na divisa adotada

pela República francesa; e a “soberania popular”, a despeito das críticas que o positivismo

lhe dirigiu, acabou por ser incorporada, de maneira decisiva, à tradição democrática e

republicana ocidental.

A respeito do dogma da igualdade, portanto, Augusto Comte nos diz ser “o mais essencial

e o mais ativo depois [do princípio da liberdade ilimitada de consciência], [com o qual],

aliás, está em relação necessária [e] donde deveria evidentemente resultar a proclamação,

imediata embora indireta, da igualdade a mais fundamental, a das inteligências”336. Da

liberdade ilimitada de consciência à igualdade e à soberania do povo, segundo veremos

com mais detalhes logo a seguir, Augusto Come entende que o espírito metafísico

335 A construção de uma moral científica, sob o nome de “religião da Humanidade”, consistirá, de fato, no objetivo dos quatro tomos do Sistema de política positiva. 336 CPP, IV, p. 51.

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120

descreve um movimento gradual que vai da ordem intelectual à ordem política, do plano

do poder espiritual ao plano do poder temporal. Da igualdade das inteligências,

consequência imediata, como vimos, da liberdade ilimitada de consciência, o espírito

metafísico deriva, segundo o autor, a igualdade política. “É, portanto, nos diz Comte,

apenas em nome da completa igualdade política que fora possível até aqui lutar com

sucesso contra as antigas desigualdades, que, depois de terem secundado, durante muito

tempo, o desenvolvimento das sociedades modernas, haviam terminado por se tornar,

em sua inevitável decadência, realmente opressivas”337.

Nota-se que o caráter ambivalente – salutar e deplorável – que Augusto Comte atribui

aos dogmas da filosofia metafísica, aparece aqui também no caso da filosofia teológica: o

autor afirma que as “antigas desigualdades” (anteriores à Revolução e, portanto, situadas

ainda na fase teológica do espírito humano) cumpriram durante muito tempo o papel

salutar de secundar o desenvolvimento das sociedades modernas. Ainda segundo o autor,

tais desigualdades só se tornaram “realmente opressivas” no momento de decadência do

espírito teológico – já em sua transição para o estado metafísico. A exemplo do que havia

dito no caso do dogma da liberdade ilimitada de consciência, Augusto Comte afirma

agora que a absolutização da igualdade, se considerada apenas com respeito à sua

destinação histórica, isto é, presidir a dissolução do antigo sistema político, se mostra não

menos necessária. “Sem este indispensável preâmbulo, as forças destinadas a se tornar

em seguida os elementos de uma nova organização não teriam podido se desenvolver

convenientemente e sobretudo não poderiam adquirir o caráter diretamente político que

devera lhes faltar até então”338.

Em seguida, como esperado, Augusto Comte nos alerta, entretanto, que se aplicado à

construção da nova ordem social, “este dogma enérgico [...] tende, por sua vez, a impedir

toda verdadeira reorganização, [uma vez que], prolongada além da medida, sua atividade

destrutiva, na falta de alimento conveniente, se dirige cegamente contra as bases mesmas

de uma nova classificação social” 339 . Pensamos merecer destaque, neste trecho, o

vocabulário empregado pelo autor: ao se referir ao novo sistema político enquanto uma

nova “classificação social”, Augusto Comte nos sugere seu caráter necessariamente

hierárquico. “Qualquer que possa ser o seu princípio, esta classificação será certamente

337 Ibidem. 338 Ibidem. 339 Ibidem.

Page 121: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

121

inconciliável com esta pretendida igualdade [advogada pela escola revolucionária], a qual,

para todos os bons espíritos, não poderia verdadeiramente significar, hoje em dia, senão

o triunfo necessário das desigualdades desenvolvidas pela civilização moderna sobre

aquelas cuja preponderância devera até então ser mantida pela infância da sociedade”340.

Com efeito, o dogma da igualdade, para Augusto Comte, se traduz em desigualdade: o

triunfo necessário da desigualdade dos modernos sobre a desigualdade dos antigos.

“É evidente, nos diz o autor, que os homens não são nem iguais entre eles, nem mesmo

equivalentes, e não poderiam, como consequência disto, possuir, na associação, direitos

idênticos, salvo, naturalmente, o direito fundamental, necessariamente comum a todos,

do livre desenvolvimento normal da atividade pessoal, uma vez convenientemente

dirigida”341. Em sociedade, portanto, Augusto Comte afirma que todos os homens têm

o direito fundamental de se desenvolver enquanto pessoa, desde que certos limites,

comuns a todos homens, sejam observados. Para além desse direito fundamental, com

relação ao qual todos os homens são equivalentes, nosso autor defende, contudo, que,

acompanhando certa dessemelhança intrínseca aos homens, os demais direitos dos

cidadãos não poderão jamais ser idênticos entre si. “Para qualquer um que estudou

judiciosamente a verdadeira natureza humana, as desigualdades intelectuais e morais são

certamente muito mais pronunciadas, entre os diversos organismos, do que as simples

desigualdades físicas, que preocupam tanto o observador vulgar”342. Augusto Comte

sugere, portanto, que por maiores que sejam as desigualdades físicas ou materiais, a

distância que separa o mais forte (ou o mais veloz) dos homens da média dos outros

homens tende a ser desprezível frente à distância que separa o sábio do homem comum

ou o homem civilizado do selvagem. Embora o autor não afirme explicitamente,

entendemos ficar sugerido, a partir das linhas acima, que a distribuição dos direitos (e

também dos deveres) em sociedade deve corresponder à distribuição dos méritos de cada

cidadão.

“Ora, conclui o autor, o progresso contínuo da civilização, longe de nos aproximar de

uma igualdade quimérica, tende, ao contrário, por sua natureza, a desenvolver

extremamente estas diferenças fundamentais [as desigualdades intelectuais e morais], ao

mesmo tempo em que atenua bastante a importância das distinções materiais, que de

340 Ibidem, p. 51-2. 341 Ibidem, p. 52. 342 Ibidem.

Page 122: O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes

122

início as mantinham comprimidas”343. Segundo o autor, portanto, nos estágios primitivos

da civilização, as desigualdades físicas e materiais seriam mais relevantes socialmente do

que as desigualdades morais e de talento. A tendência verificada, contudo, no progresso

contínuo da civilização é tanto uma inversão completa deste cenário primitivo como uma

negação da própria ideia de igualdade. Com efeito, o progresso, para Augusto Comte,

longe de tornar os homens iguais, tende a torná-los, em talento, cada vez mais desiguais,

ao mesmo tempo em que atenua as desigualdades físicas e materiais. É por considerar

que esta tendência, verificada no progresso das civilizações, deve ser consagrada no

interior da nova classificação social, que Augusto Comte afirmará, logo na sequência do

texto, que o “dogma absoluto da igualdade assume, então, um caráter essencialmente

anárquico, e se levanta diretamente contra o verdadeiro espírito de sua instituição

primitiva, no exato momento em que, deixando de enxergar nele um simples solvente

transitório do antigo sistema político, se o concebe também como indefinidamente

aplicável ao novo sistema”344.

3.2.3. A crítica da soberania do povo

As mesmas características essenciais presentes nos dogmas da liberdade ilimitada de

consciência e da igualdade, Augusto Comte entende se manifestarem agora no “dogma

da soberania do povo, segunda consequência geral, não menos necessária, do princípio

fundamental da liberdade ilimitada de consciência, assim finalmente transposto da ordem

intelectual à ordem política”345. Uma vez que o direito absoluto de livre exame acaba por

proclamar a igualdade das inteligências, e que a igualdade das inteligências, por sua vez,

estendendo-se aos demais talentos do espírito humano, proclama a igualdade política do

homem em sociedade, não restará mais, aos olhos do autor, fundamento adequado para

sustentar a hierarquia da antiga ordem social, fazendo ruir, de forma necessária e salutar,

as antigas soberanias vigentes (espirituais e temporais). O único candidato possível, que

emerge desta imensa demolição da antiga ordem social, a ocupar o lugar do soberano

deposto é, portanto, a massa dos cidadãos artificialmente considerados como iguais –

noutras palavras, o povo.

Se o povo não fosse finalmente alçado ao posto de soberano, nos adverte Augusto

Comte, a antiga ordem social não poderia ser completamente posta abaixo, e, portanto,

343 Ibidem. 344 Ibidem. 345 Ibidem.

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123

ainda que abalada em suas estruturas, seria capaz, reiteradamente, de se recompor,

impedindo assim a chegada do novo sistema. “Na medida em que a natureza desta ordem

final, nos diz o autor, não era, de modo algum, conhecida, os povos modernos não

podiam comportar senão instituições puramente provisórias, com respeito às quais

deviam se atribuir o direito absoluto de transformá-las à vontade, sem o qual, [ademais],

a supremacia do antigo sistema, posto derivarem apenas dele todas as restrições [ao

surgimento da nova ordem], teria se encontrado, por isso mesmo, mantida, e a grande

revolução social teria sido necessariamente abortada”346. Vê-se, a partir do excerto, que a

soberania popular é identificada pelo autor ao direto absoluto do povo de transformar as

instituições sociais de acordo com sua própria vontade347. Se nos detivermos também no

início do parágrafo, veremos que há, em Augusto Comte, uma justificativa epistemológica

para a instituição da soberania do povo entre os modernos: é por não conhecerem, de

modo algum, a natureza da ordem final da sociedade que os povos modernos acabam

por adotar instituições puramente provisórias, como é o caso da soberania popular.

No entanto, na sequência do texto, Augusto Comte afirmará que “quando a renovação

intelectual [das sociedades modernas] estiver suficientemente avançada, [as diversas

tentativas políticas revolucionárias] resultarão enfim na instalação de um verdadeiro

sistema de governo, capaz de fixar regularmente, ao abrigo de qualquer arbítrio, as

condições permanentes e a extensão normal das diversas soberanias”348. Se o advento da

nova ordem social não se desse deste modo bifásico e antitético, isto é, consistindo numa

fase revolucionária e destrutiva, que se opõe radicalmente ao antigo sistema vigente para,

logo em seguida, ser negada e substituída por uma fase orgânica e construtiva, a própria

346 Ibidem. Neste parágrafo, devemos enfatizar, os problemas da escrita comtiana, por nós aludidos no primeiro capítulo desta apresentação, aparecem de maneira exemplar. O encadeamento de ideias se dá em cascata, desrespeitando em certos momentos a própria sintaxe da frase, o que dificulta sobremaneira a sua compreensão. Segue, para a apreciação do leitor, o período original: “Tant que la nature de cet ordre final n’était point assez connue, les peuples modernes ne pouvaient comporter que des institutions purement provisoires, qu’ils devaient s’attribuer le droit absolu de changer à volonté, sans quoi, toutes les restrictions ne dérivant dès lors que de l’ancien système, sa suprématie se serait trouvée, par cela seul, maintenue, et la grande révolution sociale eût nécessairement avorté”. CPP, IV, p. 52. 347 Desde o Contrato social de Rousseau, a ideia da soberania do povo esteve, na França, associada à ideia da vontade geral, que o autor, no entanto, insiste, em seu texto, em afastar da mera vontade de todos, ou da vontade da maioria. Ver Jean-Jacques Rousseau, Du contract social ou Principes du droit politiques, in: ______, Œuvres complètes, v. 3, Paris, Gallimard, 1964, p. 371 e ss. No trecho aqui analisado, contudo, Augusto Comte nos parece ignorar esta importante distinção. 348 CPP, IV, p. 52-3.

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124

“reorganização política”, nos diz o autor, seria impossível, visto que deveria exigir então

“a utópica participação desinteressada dos próprios poderes que [deveria] extinguir”349.

Como havia feito nos dois casos anteriores, Augusto Comte encerra também a análise do

dogma da soberania do povo alertando o leitor a respeito do perigo da anarquia que o

cerca: “apreciando, como convém, o ofício transitório deste dogma revolucionário,

nenhum verdadeiro filósofo poderia desconhecer nos dias de hoje a fatal tendência

anárquica de uma tal concepção metafísica, quando, em sua aplicação absoluta, ela se

opõe a toda instituição regular, condenando indefinidamente todos os superiores a uma

dependência arbitrária com respeito à multidão de seus inferiores, por uma espécie de

transferência aos povos do direito divino tantas vezes reprovado nos reis”350.

349 Ibidem, p. 53. 350 Ibidem.

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125

Considerações finais

“Povo, lembra-te que, se na República a justiça não reina com império absoluto, e se esta

palavra não significa o amor à igualdade e à pátria, a liberdade é apenas um nome vão!

Povo, tu que és temido, adulado e desprezado; tu, soberano aclamado, sempre tratado

como escravo, lembra-te que por toda parte em que não reina a justiça, são as paixões os

magistrados, e que o povo trocou de correntes, mas não de destino!

Lembra-te que existe em teu seio uma liga de escroques que luta contra a virtude pública,

e que tem mais influência que tu mesmo sobre teus próprios negócios, que teme a ti e

que te adula em massa, mas que te bane em detalhe na pessoa de todos os bons cidadãos!

Relembra-te que, longe de sacrificar esta nuvem de vigaristas à tua felicidade, teus

inimigos desejam te sacrificar a este punhado de biltres, autores de todos os nossos males,

e os únicos obstáculos à prosperidade pública!

Sabe que todo homem que se levantar para defender a tua causa e a moral pública será

enxovalhado por infâmias e proscrito pelos escroques; sabe que todo amigo da liberdade

será sempre colocado entre um dever e uma calúnia; que aqueles que não puderem ser

acusados de ter traído serão acusados de ambição; que a influência da probidade e dos

princípios será comparada à força da tirania e à violência das facções; que tua confiança

e tua estima serão os títulos de proscrição para teus amigos; que os gritos do patriotismo

oprimido serão chamados de gritos de sedição, e que, não ousando atacar-te a ti mesmo

em massa, te banirão em detalhe na pessoa de todos os bons cidadãos, até o momento

em que os ambiciosos tenham organizado sua tirania. Tal é o império dos tiranos armados

contra nós, tal é a influência de sua aliança com todos os homens corrompidos, sempre

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126

a postos para lhes servir. Assim, portanto, os celerados nos impõem a lei de trair o povo,

sob pena de sermos chamados de ditadores! Subscreveremos nós esta lei? Não!

Defendamos o povo, sob o risco de sermos por isso estimados; que corram eles ao

cadafalso pela via do crime e nós pela da virtude”351.

“Com a ordem, nossos ateliês se reabriram, os braços retomaram sua atividade, os capitais

retornaram a nós, a calma reapareceu com o trabalho, e já a França levanta a cabeça, e –

coisa mais surpreendente ainda! – uma forma de governo, que ordinariamente a ameaçava

profundamente, começa, pouco a pouco, a adentrar os seus hábitos, não a impede de

retornar à vida, à esperança, à confiança. E, uma vez que toco inevitavelmente nos

assuntos candentes do dia, eu diria àqueles que desde há muito tempo têm dado sua fé à

República, como ao ideal de governo o mais conforme a seu pensamento, e o mais

apropriado à marcha das sociedades modernas, eu lhes diria: ‘É sobretudo por vós que a

ordem deve ser apaixonadamente desejada, visto que, se a República, já ensaiada duas

vezes sem sucesso, pode se estabelecer dessa vez, é à ordem que vós o deveis.

Fazei dela, portanto, vossa obra, vossa preocupação de todos os dias! Se o exercício de

certos direitos que pertencem aos povos livres pode inquietar o país, sabei renunciá-lo

momentaneamente e fazei à seguridade pública um sacrifício que beneficiará sobretudo

à República [...].

Os acontecimentos produziram a República, e voltar às suas causas para discuti-las e

julgá-las seria hoje em dia uma tarefa tanto perigosa quanto inútil. A República existe, ela

é o governo legal do país, desejar outra coisa seria uma nova revolução e a mais temível

de todas. Não percamos nosso tempo em proclamá-la, mas o empreguemos em lhe

imprimir seus caracteres desejáveis e necessários. Uma comissão por vós nomeada lhe

deu o título, há alguns meses, de República conservadora. Apropriemo-nos deste título e

deixemos uma marca sobretudo para que seja merecido. Todo governo deve ser

conservador e nenhuma sociedade poderia viver sob um governo que não o fosse de

modo algum. A República será conservadora ou ela não será.

351 Maximilien Robespierre, Œuvres de Maximilien Robespierre, v. 10, Paris, PUF, 1967, p. 575.

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127

A França não pode viver em contínuos alarmes: ela deseja poder viver em repouso, a fim

de trabalhar para se nutrir, para fazer frente a seus imensos encargos [...]. O número, ele

mesmo, tem necessidade de repouso, de segurança, de trabalho. Ele pode viver de

agitações alguns dias, delas não vive por muito tempo. Depois de ter incutido medo nos

outros, ele toma horror de si mesmo; se atira nos braços de um mestre aventureiro e

paga, qualquer dia, vinte anos de escravidão por uma desastrosa licença [...].

Não nos esqueçamos destes termos tão terrivelmente ligados um ao outro: República

agitada de início, depois retorno a um poder que se chama forte, visto que é sem controle;

rompamos a cadeia fatal que liga estes termos funestos entre si e nos acalmemos em lugar

de nos agitarmos [...].

Quanto a mim, não compreendo, não admito a República senão a tomando como ela

deve ser, como o governo da nação que, tendo desejado por muito tempo e de boa fé

conceder a um poder hereditário a direção compartilhada de nossos destinos, mas não o

tendo conseguido, por erros impossíveis de se ajuizar hoje em dia, toma então o partido

de se reger por conta própria, por meio de seus eleitos – livremente, sabiamente

designados –, sem aceitação de partidos, de classe, de origem, não os buscando nem em

cima, nem embaixo, nem à direita, nem à esquerda, mas nesta luz da estima pública, em

que os caráteres, as qualidades, os defeitos se desenham em traços impossíveis de se

desconhecer, e escolhendo-os com esta liberdade que não se pode gozar senão no seio

da ordem, da calma e da segurança!

Dois anos decorridos sob vossos olhos, sob vossa influência, sob vosso controle, numa

calma quase completa, podem nos dar a esperança de fundar esta república

conservadora”352.

Os dois trechos acima, retirados, respectivamente, de discursos proferidos por duas das

mais importantes figuras políticas da França pós-revolucionária, nos servem aqui, por sua

contrastante oposição, como forma de encerrar esta apresentação. Os dois discursos,

sublinhemos, se dão sob a República, em nome da República e são dirigidos, por meio

352 Adolphe Thiers, Discours parlementaires de M. Thiers, v. 15, Paris, Calmann-Lévy, 1883, p. 25-31, grifo nosso.

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de seus representantes, ao povo francês. O primeiro deles, chamado de Último discurso do

cidadão Robespierre, foi proferido pelo próprio Robespierre na Convenção, aos 26 de julho

de 1794, dois dias antes de sua decapitação e pouco mais de um ano depois da decapitação

do rei; o segundo, intitulado (mais sobriamente) Mensagem do presidente da República, foi lido

por Adolphe Thiers na Assembleia Nacional, aos 13 de novembro de 1872, pouco mais

de um ano depois da destruição da Comuna de Paris – comandada em maio de 1871, de

Versalhes, pelo próprio Thiers, que seria eleito, ainda em agosto daquele ano, presidente

da República. Simbolicamente, cada um desses discursos representa também um

momento bastante específico da história do republicanismo francês: o primeiro, o fim da

Primeira República e a queda de Robespierre; o segundo, o início da Terceira República

e a ascensão de Adolphe Thiers.

Aproximadamente oitenta anos separam, na França, a República jacobina de Robespierre

da República conservadora de Thiers. Pensamos, contudo, que, mais do que os anos que

as separam no tempo, há também entre elas uma grande distância do ponto de vista

ideológico. No primeiro excerto, Robespierre, tuteando o povo, o convoca a se levantar;

no segundo, Thiers, mantendo o tratamento formal, recomenda que o povo não seja

atiçado. De um certo modo, a própria vida da República depende, no primeiro caso, da

ação virtuosa do povo, ainda que representado, em detalhe, pela figura do bom cidadão;

já no segundo caso, nos adverte Thiers, a ação do povo pode significar a própria morte

da República. “Escroques” associados a “homens corrompidos” dão lugar ao “número”

atirado nos braços de um “mestre aventureiro”: são essas as figuras que em cada um dos

discursos simbolizam, segundo seus autores, os grandes inimigos da República.

A filosofia das Luzes e sobretudo Rousseau estariam por trás, segundo os historiadores,

das palavras de Robespierre; o positivismo e a figura de Augusto Comte, gostaríamos

agora de afirmar, se encontram refletidos nas palavras de Adolphe Thiers. Entender, a

partir da filosofia, como se efetua a passagem de um discurso a outro (ou ainda, de uma

República a outra), constitui o horizonte geral deste trabalho. Pensamos que as filosofias

que servem de base, em cada um dos casos, aos discursos de seus respectivos atores

políticos não deveriam ser entendidas, contudo, enquanto causas eficientes, mas, talvez

de forma mais adequada, apenas como condições de possibilidade. Nossa hipótese,

devemos uma vez mais lembrar, é que o positivismo de Augusto Comte desempenhou

um papel decisivo na “deriva ideológica” do republicanismo na França – deriva

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129

representada aqui a partir do contraste entre os discursos de Robespierre de Thiers. Ao

recuperar das Luzes, numa visada essencialmente crítica, o debate filosófico a respeito

dos progressos do espírito humano e, em seguida, ao reformulá-lo, no interior de sua

filosofia positiva, em termos apenas de “desenvolvimento” – fundindo doravante o

“progresso” (no singular) à noção de “ordem” e sepultando, por completo, a noção

iluminista de “perfectibilidade” –, acreditamos que Augusto Comte tenha estabelecido os

princípios de uma filosofia política cujas ressonâncias ideológicas conferiram à Terceira

República, ainda em seu nascedouro, seu caráter eminentemente conservador.

Neste trabalho que aqui se encerra, acreditamos, portanto, ter lançado as bases para uma

investigação a respeito da noção de progresso em Augusto Comte. Os primeiros passos

nessa direção consistiram em justificar, teórica e historicamente, uma interpretação

republicana do autor – à luz, evidentemente, de suas leituras contemporâneas mais

significativas (as críticas liberal e marxista do positivismo). Em segundo lugar, nos foi

preciso analisar a relação do positivismo com a tradição iluminista que o antecedeu,

dirigindo nossa atenção, num primeiro momento, aos seus aspectos epistemológicos, em

nosso ver, inseparáveis de seus aspectos políticos e ideológicos. Uma vez compreendida

a ruptura epistemológica que o positivismo entende operar não apenas com a tradição

iluminista (metafísica, aos seus olhos), mas também com toda a tradição filosófica

anterior (teológica, segundo seu vocabulário), dedicamo-nos, na sequência, a analisar o

núcleo verdadeiramente político da crítica positivista das Luzes, isto é, a crítica da

liberdade consciência, da igualdade e da soberania do povo. As etapas do trabalho que

conduzimos até aqui, sumarizadas acima e apresentadas nos capítulos anteriores,

entendemos ser um pré-requisito indispensável para a investigação (que pretendemos

conduzir futuramente) a respeito da noção de progresso em Auguste Comte – e que nos

permitirá, finalmente, melhor compreender os rumos do republicanismo na França.

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130

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