Upload
others
View
3
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
ALEX WILHANS ANTONIO PALLUDETO
OS DERIVATIVOS COMO CAPITAL FICTÍCIO:
Uma interpretação marxista
Campinas 2016
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ECONOMIA
ALEX WILHANS ANTONIO PALLUDETO
Os derivativos como capital fictício: uma interpretação marxista
Prof. Dr. Rogerio Pereira de Andrade orientador
Prof. Dr. Nelson Prado Alves Pinto coorientador
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Ciências Econômicas, área de concentração: Teoria Econômica.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO ALEX WILHANS ANTONIO PALLUDETO E ORIENTADO PELO PROF. DR. ROGERIO PEREIRA DE ANDRADE E COORIENTADO PELO PROF. DR. NELSON PRADO ALVES PINTO.
CAMPINAS 2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq; CAPES
Ficha catalográficaUniversidade Estadual de CampinasBiblioteca do Instituto de EconomiaMirian Clavico Alves - CRB 8/8708
Palludeto, Alex Wilhans Antonio, 1986- P179d PalOs derivativos como capital fictício : uma interpretação marxista / Alex
Wilhans Antonio Palludeto. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.
PalOrientador: Rogerio Pereira de Andrade. PalCoorientador: Nelson Prado Alves Pinto. PalTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Economia.
Pal1. Derivativos (Finanças). 2. Capitalismo. 3. Economia marxista. 4. Questão
monetária. I. Andrade, Rogerio Pereira,1958-. II. Pinto, Nelson PradoAlves,1952-. III. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia.IV. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Derivatives as fictitious capital : an marxist interpretationPalavras-chave em inglês:Derivatives (Finance)CapitalismMarxian economicsMonetary questionÁrea de concentração: Teoria EconômicaTitulação: Doutor em Ciências EconômicasBanca examinadora:Rogerio Pereira de Andrade [Orientador]Daniela Magalhães PratesMaryse FarhiEduardo StrachmanCarlos Eduardo Ferreira de CarvalhoData de defesa: 29-02-2016Programa de Pós-Graduação: Ciências Econômicas
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)
http://www.tcpdf.org
TESE DE DOUTORADO
ALEX WILHANS ANTONIO PALLUDETO
Os derivativos como capital fictício: uma interpretação marxista
Defendida em 29/02/2016
COMISSÃO JULGADORA
Dedico este trabalho aos meus pais e à Maria
Priscila, pelo amor e carinho irrestritos.
Agradecimentos
Não seria justo e tampouco confortável para mim se aqui não constasse meu eterno
agradecimento Àquele que me criou, indispensável não apenas para a consecução desse
trabalho como também para minha própria existência: Deus.
Aos meus pais, que sempre com zelo e carinho não mediram esforços para me
amparar em todas as dificuldades.
Ao meu amor, Maria Priscila, pelo companheirismo e carinho, demonstrando-me
sempre que a vida pode ser muito mais do que aquilo que poderia ter imaginado.
Ao meu orientador, Rogério, pela paciência, prontidão e rigor em guiar-me nos
caminhos muitas vezes tortuosos da investigação científica.
Ao meu coorientador, Nelson Prado, pelos conselhos e questionamentos que
sempre me levaram a um olhar renovado sobre o objeto de estudo.
Em especial, aos professores do Ceri: Ana Rosa, Giuliano Contento, José Carlos
Braga e Simone Deos, pelo convívio fraterno e o diálogo sempre estimulante, que em muito
contribuíram para minhas pesquisas e, para além delas, para minha própria formação, em geral.
Aos demais professores do Programa de Pós-Graduação: Adriana Nunes,
Alexandre Gori, André Biancarelli, Bruno de Conti, Célio Hiratuka, Cláudio Dedecca, Daniela
Prates, David Dequech, Denis Maracci, Fernando Sarti, Pedro Paulo, Francisco Lopreato, José
Maria, Maryse Farhi, Maurício Coutinho, Paulo Fracalanza, Pedro Rossi, Ricardo Carneiro e
Rosangela Ballini.
A todos os funcionários do Instituto de Economia da Unicamp, sobretudo aos da
secretaria de pós-graduação e da biblioteca, pela dedicação e amizade, sem os quais a
consecução deste trabalho jamais teria sido possível.
Aos meus colegas da pós-graduação: Bruno, Caroline, Gabriela, Jamile, Marcelo,
Marcos, Patrícia, Paulo Ricardo, Paulo Wolf, Roney, Saulo, Tales e Tiago, pelos momentos de
descontração e as acaloradas discussões sobre os mais variados temas.
Aos meus familiares e demais amigos, que sempre me apoiaram em minhas
empreitadas.
Por fim, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo
apoio financeiro.
If the dialectics of forms is abandoned, there
can only remain an extremely static and poor
vision of capitalist social relations.
Tombazos, 2014
There is only one holistic system of systems, one
vast and immane, interwoven, interacting,
multi-variate, multi-national dominion of
dollars! Petro-dollars, electro-dollars,multi-
dollars! Reichmarks, rubles, rin, pounds and
shekels! It is the international system of
currency that determines the totality of life on
this planet! That is the natural order of things
today! That is the atomic, sub-atomic and
galactic structure of things today!
Chayefsky, 1976
Resumo
O objetivo deste trabalho é examinar os derivativos na economia contemporânea a
partir de uma abordagem centrada na categoria marxista de capital fictício. Em linhas gerais,
busca-se contribuir para o entendimento dos derivativos na economia capitalista atual com base
na hipótese de que os derivativos se apresentam como uma modalidade particular de capital
fictício, cuja especificidade reside no fato de constituírem-se na forma pela qual diversos
eventos considerados como riscos concretos à aplicação da riqueza capitalista tornem-se
comensuráveis em termos monetários. Desse modo, ao permitirem que diferentes combinações
de risco-retorno sejam imediatamente comparáveis nos mercados financeiros, os derivativos
possibilitam a avaliação da rentabilidade ajustada pelo risco de qualquer espécie de carteira e,
portanto, ampliam o horizonte espaço-temporal do cálculo capitalista. Nesse sentido,
argumenta-se que os derivativos estão intimamente associados ao processo de mercantilização
da reprodução material da sociedade, que atinge seu ápice no capitalismo contemporâneo.
A fim de cumprir o objetivo proposto, a tese divide-se em duas partes compostas
por dois capítulos cada. Na primeira delas, apresenta-se uma recuperação histórica dos
derivativos desde suas primeiras manifestações na Antiguidade, demonstrando que onde e
quando a atividade mercantil ocupa uma fração importante do processo de reprodução material,
em maior ou menor medida, os derivativos, mesmo os derivativos financeiros, estão presentes.
Por conseguinte, guardadas as devidas proporções, seria esperado que em uma sociedade
capitalista com uma regulação mais flexível e em que o fracionamento da produção atingiu
magnitudes sem paralelo na história, os derivativos estivessem em evidência. Na segunda parte,
por sua vez, faz-se, inicialmente, uma avaliação crítica da literatura marxista recente sobre os
derivativos, procurando avançar na concepção de que os derivativos se apresentam como
instrumento por meio do qual os inúmeros riscos concretos tornam-se comensuráveis e
precificados, convertidos, assim, em risco abstrato. Em seguida, a partir de uma reinterpretação
da categoria de capital fictício, apresenta-se como a capitalização se estabelece como princípio
a partir do qual o capitalista avalia sua riqueza e como, nesse contexto, os derivativos estendem
o horizonte do cálculo capitalista em relação à consideração do tempo-espaço.
Desse modo, conclui-se que, ao permitir que, a cada momento do tempo, a classe
capitalista tenha, sob a forma de um preço, uma avaliação objetiva da variabilidade potencial
de determinada variável, os derivativos, enquanto capital fictício, tornam-se parte constitutiva
das estimativas das diversas possibilidades de aplicação da riqueza privada, sobretudo quando
esta assume crescentemente a forma de títulos financeiros em um contexto de ampla e profunda
divisão internacional do trabalho, tal como a economia, hoje, apresenta-se.
Palavras-chave: Derivativos, dinheiro, capital fictício, comensurabilidade, cálculo capitalista,
Marx.
Abstract
The purpose of this work is to examine the role of derivatives in contemporary
economies based on the Marxist category of fictitious capital. Broadly speaking, the work seeks
to contribute to the understanding of derivatives based on the assumption that derivatives are a
particular form of fictitious capital, whose specificity lies in their being the way different events
taken as concrete risks to alternative allocation of capitalist wealth become measurable in
monetary terms. Thus, by making different risk-return combinations readily comparable in
financial markets, derivatives allow the assessment of risk-adjusted returns of any kind of
portfolio, and allows for the possibility of broadening the space-time horizon of capitalist
calculation. In this sense, it is argued that derivatives are closely associated with the
commodification process of the material reproduction of society, which reaches its peak in
contemporary capitalism.
In order to achieve its goal, the work is divided into two parts, consisting of two
chapters each. The first part covers the history of derivatives, from its first manifestations in
ancient times, demonstrating that where and when the commercial activity occupies an
important fraction of the material reproduction process, derivatives are present, even financial
derivatives, to a greater or lesser extent. Therefore, mutatis mutandis, it would be expected that
in modern capitalist economies, with a more flexible regulation, and in which the fragmentation
of production reached magnitudes unparalleled in history, derivatives were (are) in evidence.
The second part, by its turn, begins with a critical evaluation of the recent Marxist
literature on derivatives, in order to advance the view that derivatives are instruments through
which the numerous concrete risks become commensurate and priced, thus converted in abstract
risk. Then, from a reinterpretation of the category of fictitious capital, it is argued how
capitalization is established as a principle from which capitalists evaluate their wealth and how,
in this context, derivatives extend the horizon of capitalist calculation in relation to
considerations of time-space.
Finally, the basic conclusion is that derivatives (as fictitious capital), by allowing
that at every point of time the capitalist class has, in the form of a price, an objective assessment
of the potential variability of a given variable, become a crucial constitutive ingredient of the
estimates of the several alternative allocations of private wealth, especially when they
increasingly take the form of financial securities in a context of broader and deeper international
division of labor, as well as in the presence of global finance, as capitalist economies can today
be characterized.
Keywords: Derivatives, money, fictitious capital, commensurability, capitalist calculation,
Marx.
Lista de figuras
Figura 1 – Contrato de compra futura. ..................................................................................... 45
Figura 2 – Opção de compra. ................................................................................................... 45
Figura 3 – Tamanho do mercado de derivativos: balcão e bolsa (1998-2015)......................... 59
Figura 4 – Valor bruto de mercado: derivativos de balcão (1998-2015).................................. 61
Figura 5 – Grau de alavancagem no mercado de derivativos de balcão (1998-2015).............. 62
Figura 6 – O mercado de derivativos de balcão por classe de ativo subjacente (06/2015). ..... 62
Figura 7 – Desdobramento da forma-valor: a sucessão de categorias em Marx. ................... 109
Lista de tabelas
Tabela 1 – Os três graus de separação entre capital e propriedade .......................................... 70
Tabela 2 – As quatro dimensões do capitalismo ...................................................................... 73
Sumário
Introdução..................................................................................................................................1
Parte 1: Um Panorama Histórico dos Derivativos
Capítulo 1: Da Antiguidade à Idade Moderna: Os derivativos nas sociedades pré-
capitalistas .................................................................................................................................. 9
1.1. Introdução ........................................................................................................................ 9
1.2. Derivativos: uma definição preliminar .......................................................................... 11
1.3. Os derivativos na Antiguidade ....................................................................................... 15
1.4. Os derivativos na Idade Média (476-1453) ................................................................... 20
1.5. Os derivativos na Idade Moderna (1453-1789) ............................................................. 27
Capítulo 2: Os derivativos na Idade Contemporânea ............................................................. 42
2.1. De Coffinière e Proudhon a Lefèvre e Moser ................................................................ 42
2.2. Os derivativos na economia norte-americana ................................................................ 46
2.3. Do fim do Regime de Bretton Woods à atualidade ....................................................... 55
2.4. Tamanho e composição do mercado de derivativos no período recente ....................... 59
Parte 2: Elementos para uma Economia Política dos Derivativos
Capítulo 3: Os derivativos na literatura marxista: uma crítica ................................................ 65
3.1. Introdução ...................................................................................................................... 65
3.2. Os derivativos como novo dinheiro global: o debate recente ........................................ 69
3.2.1. Uma nova forma de capital? ............................................................................... 70
3.2.2. O sistema de derivativos como âncora monetária do capitalismo
contemporâneo .................................................................................................................. 77
3.3. Capital fictício, risco e derivativos ................................................................................ 81
Capítulo 4: Os derivativos como uma forma de capital fictício ........................................... 100
4.1. Introdução .................................................................................................................... 100
4.2. O capital fictício na literatura marxista ........................................................................ 101
4.3. Do capital portador de juros ao capital fictício: a construção de uma categoria ......... 107
4.4. O capital fictício: definição e atributos ........................................................................ 114
4.4.1. Renda futura ..................................................................................................... 114
4.4.2. Mercados secundários....................................................................................... 117
4.4.3. Inexistência real ................................................................................................ 118
4.5. O capital fictício no processo de valorização da riqueza ............................................. 121
4.5.1. Os custos de circulação e a acumulação de capital .......................................... 121
4.5.2. Comensurabilidade, cálculo capitalista e alocação do trabalho social ............. 127
Considerações finais ............................................................................................................. 137
Referências bibliográficas .................................................................................................... 140
1
Introdução
Os contratos de derivativos ocupam, no período recente, uma posição de destaque
no cenário político-econômico. De modo geral, a profusão de estudos e comentários sobre o
tema tem sido pautada, nos últimos anos, pela maior ou menor importância que a ele se atribui
a Grande Recessão (2007-2009) e a Crise Econômica Europeia – iniciada em 2012 e ainda em
curso (2016). Com efeito, muitos foram aqueles que creditaram a turbulência recente ao uso –
ou suposto mau uso – dos derivativos, sobretudo relacionando-a ao ineditismo, complexidade
e falta de transparência das operações e à insuficiência e/ou inadequação do aparato regulatório
no qual são negociados (FCIC, 2011).
As posições mais difundidas apresentam, é verdade, matizes variadas, mas em
grande parte apontam para os derivativos como um dos principais componentes – senão o
principal – responsáveis pela crise. Schwartz (2009, p. 20, grifos meus), por exemplo, afirma
categoricamente que um dos fatores-chave que levou à crise foi “[…] the adoption of
innovations in investment instruments such as securitization, derivatives, and auction-rate
securities before markets became aware of the flaws in the design of these instruments”. Mais
adiante, nessa mesma direção, a autora sugere que os derivativos são uma “arte” que o mercado
ainda não soube dominar (SCHWARTZ, 2009, p. 21). Em um espectro teórico diverso, Crotty
(2009; 2013) também considera os derivativos um dos elementos que permitem compreender a
crise recente. A multiplicidade de contratos dessa natureza resulta da configuração do que o
autor denomina de “Nova Arquitetura Financeira”. Segundo Crotty (2009, p. 564), “[the] ‘New
Financial Architecture’ refers to the integration of modern day financial markets with the era’s
light government regulation”, processo que teria tomado corpo ao longo da década de 1980 com
o movimento de desregulamentação e liberalização financeiras e o correlato desenvolvimento
de várias formas de inovações financeiras, entre as quais os derivativos. De acordo com o autor,
além de estar fundamentada em um arcabouço teórico frágil, de teor “neoclássico”, e estimular
operações cada vez mais arriscadas, a Nova Arquitetura Financeira caracteriza-se por inovações
financeiras tão complexas e opacas que não podem ser precificadas corretamente (CROTTY,
2009, p. 566-567). Exemplo paradigmático desse processo são os derivativos de crédito, cujo
principal é o credit default swap1. Os derivativos de crédito, que tiveram um crescimento
1 O credit default swap é um derivativo de crédito pelo qual uma das partes acorda em compensar a outra, em troca
do pagamento de um prêmio (ou de um fluxo de prêmios regulares), caso ocorra inadimplência e/ou outro evento
relacionado ao crédito subjacente (como o rebaixamento da nota da empresa pelas agências de rating). Para
maiores detalhes, cf. Farhi (2009, p. 22-29).
2
acelerado na década de 2000, não apenas estavam relacionados a um crédito particular, mas,
muitas vezes, eram compostos por diversos créditos de entidades distintas – como dívidas
imobiliárias de alto risco, crédito estudantil etc. –, fato que problematizava sua precificação e,
por conseguinte, a avaliação dos riscos associados a esses contratos2. Nesse sentido, a falta de
transparência e a complexidade estariam associadas, sobretudo, aos derivativos de balcão (over-
the-counter, OTC), espaço no qual o credit default swap é negociado. Uma vez padronizados e
objeto de negociação em mercados organizados, os derivativos, segundo Crotty (2013), seriam
transacionados com uma baixa margem de lucro, fato que estimularia, portanto, a criação de
contratos crescentemente complexos e que, assim, permitissem uma remuneração mais elevada:
Exchange traded derivatives are sold in a highly competitive market, with low
profit margins. Thus, banks had a strong incentive to create products so
complex that they could not be sold on exchanges at all. […] The need for
investment banks to create ever more complex derivative products is a key
driver of financial bubbles. (CROTTY, 2013, p. 153)
Desse modo, ao invés de transferir o risco tomado como objeto da negociação para
aquele capaz de administrá-lo, esses contratos acabaram por transmiti-lo para aqueles que, de
fato, não tinham plena consciência da sua magnitude, dada a complexidade envolvida em sua
formulação e os encadeamentos entre os balanços dos agentes, que poderiam expressar até
mesmo um risco sistêmico mais elevado. Em outras palavras, o risco não foi disperso entre os
agentes de modo a mitigar a possibilidade de falências em cadeia. Pelo contrário, o risco
crescente se concentrou nas mãos de poucas grandes instituições financeiras. A acumulação
desses riscos de forma generalizada, parte componente da Nova Arquitetura Financeira,
conduziu, em última instância, à crise na medida em que variações nos preços dos ativos – neste
caso, particularmente no mercado de hipotecas subprime3 – expôs a fragilidade financeira de
várias instituições importantes – tais como o Northern Rock, o Bear Stearns, o Lehman Brothers
e a AIG.
Ademais, a preocupação – e, até certo ponto, deslumbramento – com os derivativos
em relação à crise não é exclusividade do meio acadêmico. Também no jornalismo econômico
é possível encontrar diversas ilustrações dessa posição. Na Forbes, por exemplo, lê-se que:
The problem at the core was a lack of transparency. After Lehman’s collapse,
no one could understand any particular bank’s risks from derivative trading
2 Para detalhes sobre o papel dos derivativos de crédito na ampliação da fragilidade financeira no contexto da crise
recente, veja-se Farhi (2013).
3 Acerca da dinâmica financeira que conduziu à crise do subprime e a converteu em uma crise financeira de grandes
proporções, cf. Prates e Farhi (2015).
3
and so no bank wanted to lend to or trade with any other bank. Because all the
big banks’ had been involved to an unknown degree in risky derivative
trading, no one could tell whether any particular financial institution might
suddenly implode. (DENNING, 2013)
Tomadas em conjunto, essas considerações sintetizam dois elementos recorrentes
nas análises sobre o mercado de derivativos que transcendem a crise econômica recente e
refletem a própria apreensão que, em geral, tem sido feita desses contratos.
Em primeiro lugar, o derivativo aparece como uma inovação – ou sucessão de
inovações ainda em curso –, resultado da combinação do desenvolvimento recente em
tecnologias da informação e a ânsia dos detentores de riqueza em proteger seu patrimônio e, ao
mesmo tempo, especular. De modo geral, esse processo estaria associado ao ambiente
macroeconômico marcado pela instabilidade com o fim do regime de Bretton Woods e as várias
rodadas de desregulamentação e liberalização dos mercados financeiros que se seguiram. O fim
dos regimes de câmbio fixo nas principais economias desenvolvidas ao longo das décadas de
1970 e 1980 e a maior liberdade dos fluxos de capitais estariam na base da emergência dessas
modalidades de contratos, sobretudo em relação às taxas de câmbio e de juros.
Em segundo lugar, pelo fato mesmo de serem considerados contratos
historicamente inéditos, a precificação dos derivativos aparece como um processo ainda
incompleto, uma vez que nem todas as informações relevantes estariam incorporadas nos preços
vigentes e a complexidade/opacidade de sua formatação, origem mesma dessa limitação, as
ocultariam àqueles que os transacionassem. A crise recente, assim, seria a manifestação dessa
dupla dimensão dos derivativos: contratos novos/complexos, cujos preços não refletem
adequadamente seus atributos e as condições de mercado realmente existentes. Isso se deve,
particularmente, à incerteza que permeia as decisões econômicas e que, como será visto adiante,
em diversos casos, não pode ser reduzida a um número, sob a forma de um risco probabilístico,
sem que se incorra em possíveis equívocos – ainda que esse procedimento de “redução” faça
parte das práticas dos mercados financeiros. Mal precificados, os derivativos não haveriam
sinalizado os riscos que lhes seriam inerentes e, assim, acabaram por estimular a tomada de
posições que, de outro modo, não teriam sido assumidas.
O papel dos derivativos na deflagração da crise recente parece relativamente
consensual e, de fato, evidencia a importância desses contratos na dinâmica econômica. No
entanto, para uma análise que pretenda ir além das flutuações macroeconômicas de curto-prazo
e busque apontar o papel dos derivativos na economia capitalista contemporânea, o foco em sua
novidade histórica e na complexidade das operações, ainda que elementos de extrema
relevância, aparenta ser insuficiente.
4
Nesse sentido que, segundo Esposito (2011, p. 98), esse tipo de avaliação é
revelador da fragilidade teórica que subjaz boa parte das análises que se debruçam sobre os
derivativos enquanto uma categoria econômica:
The widespread discourses about the ‘opaqueness’ of the new financial
instruments, which are so complex that they are misunderstood not only by
the uninitiated, but also by the operators, are indicative of the lack of an
appropriate and workable explanation of what is happening.
Na tentativa de contornar essas questões e fornecer uma abordagem teórica sólida,
consistente, a partir da qual se pudesse ter um entendimento mais preciso dos derivativos,
diversos autores buscaram nas contribuições de Marx – e da literatura de inspiração marxista
posterior, de modo geral – o aparato analítico que porventura faltasse às análises de outras
correntes teóricas sobre o tema. Com efeito, ao menos nos últimos dez anos, estudos de corte
marxista tem sido relativamente pródigos no tratamento dos derivativos como objeto de análise.
No entanto, como em diversos outros ramos do pensamento econômico marxista, a variedade
de contribuições tem sido ampla e dispersa, fato que se traduz em compreensões bastante
diversas daquilo que se sugere ser o aspecto distintivo dos derivativos no capitalismo
contemporâneo. As interpretações vão desde considerar os derivativos como uma forma própria
de capital, que não se confunde com o capital portador de juros ou o capital fictício, passando
por aquelas que os tomam como capital fictício e chegando até mesmo àquelas, emblemáticas
do debate marxista recente, que os consideram dinheiro.
Nesse contexto, o objetivo geral desta tese é contribuir para o entendimento dos
derivativos na economia capitalista atual, apresentando-os como uma modalidade particular de
capital fictício, cuja especificidade reside no fato de constituírem-se na forma pela qual diversos
eventos considerados como riscos concretos à aplicação da riqueza capitalista tornem-se
comensuráveis em termos monetários, tomando como fio condutor o processo de reprodução
material da sociedade. Desse modo, ao permitirem que diferentes combinações de risco-retorno
sejam imediatamente comparáveis nos mercados financeiros, os derivativos possibilitam a
avaliação da rentabilidade ajustada pelo risco de qualquer espécie de carteira e, portanto,
ampliam o horizonte do cálculo capitalista. Que essa avaliação se revele, no futuro, correta,
significa conceber um caminho histórico predeterminado, incompatível com a visão da história
como um sistema dinâmico aberto – visão esta, aliás, que também é suprimida nos modelos de
precificação utilizados no mercado financeiro. Desse modo, para os propósitos desta tese,
importa não que os derivativos ampliem a instabilidade do sistema, ainda que isto seja
verdadeiro, mas que, em meio a essa instabilidade, a qualquer ponto do tempo deem ao
capitalista individual uma medida do risco de determinada aplicação em termos monetários,
5
enquanto uma forma de capital fictício. Ainda que essa proposição possa ser encontrada em
alguns trabalhos de corte marxista, apresenta-se, em geral, de forma dispersa e pouco
desenvolvida.
Assim, busca-se examinar os derivativos a partir de uma abordagem centrada em
uma interpretação particular da categoria de capital fictício, indicando que sua pertinência no
capitalismo contemporâneo resulta da fração do processo de reprodução material que por eles
é informada. Ao permitir que, a cada momento do tempo, a classe capitalista tenha, sob a forma
de um preço, uma avaliação objetiva da variabilidade potencial de determinada variável, os
derivativos tornam-se parte constitutiva das estimativas das diversas possibilidade de aplicação
da riqueza privada, sobretudo quando esta assume crescentemente a forma de títulos financeiros
em um contexto de ampla e profunda divisão internacional do trabalho, tal como hoje se
apresenta. Por conseguinte, como uma forma de capital fictício, ao lado das demais – ações,
títulos de dívida etc. –, os derivativos manifestam-se como mediadores do processo de alocação
do trabalho social e, assim, da própria geração e apropriação de valor.
O argumento central é desenvolvido em 2 partes, compostas por dois capítulos cada
uma, que podem ser tomadas, sem muita dificuldade, quase que de forma independente, mas
cuja combinação é indispensável para o objetivo acima descrito: i) em primeiro lugar faz-se
uma recuperação histórica das operações com contratos de derivativos; ii) em seguida as
principais interpretações de inspiração marxista acerca dos derivativos são examinadas e, por
fim, a partir de uma reconsideração do capital fictício enquanto categoria, explora-se o modo
pelo qual os derivativos são dele uma forma. Por essa razão, este estudo apresenta um formato
peculiar, um meio-termo entre uma proposição teórica unificada e um conjunto de ensaios
autônomos. Com efeito, optou-se por uma configuração intermediária entre uma tese
convencional e o agrupamento, cada vez mais frequente nos meios acadêmicos, de trabalhos
que, embora circunscrevam um determinado tema geral, podem ser tomados de forma
completamente independente uns dos outros.
Os capítulos 1 e 2 propõem uma narrativa histórica dos derivativos apoiada na
literatura sobre o tema, que aponta para a existência de determinadas modalidades de contratos
que podem ser consideradas derivativos desde a Antiguidade. Especificamente, buscou-se
demonstrar que o processo de surgimento e desenvolvimento dos derivativos, incluindo os
derivativos financeiros, está intimamente associado à própria história do comércio4. Nesse
4 Por razões de espaço e relevância em termos da narrativa histórica que aqui se pretende construir, a pesquisa
manteve-se relativamente circunscrita à parte do globo que corresponde ao Oriente Médio e ao Ocidente, de forma
geral. Convém destacar, porém, que contratos de derivativos foram utilizados também nas regiões que atualmente
6
contexto, onde e quando a atividade mercantil ocupa uma fração importante do processo de
reprodução material, em maior ou menor medida, os derivativos estão presentes. Portanto, não
deveria parecer surpresa que, em uma sociedade mercantil-capitalista5 cuja regulação tem dado
sinais de crescente flexibilidade e em que o fracionamento geográfico da produção atingiu uma
magnitude sem paralelo na história da humanidade, ao mesmo tempo em que, como parte desse
mesmo movimento, a riqueza privada assume crescentemente a forma de ativos financeiros, os
derivativos não estivessem em evidência.
O terceiro capítulo, por sua vez, revisita o debate marxista em torno da tese de que
os derivativos são, simultaneamente, uma forma de capital e de dinheiro, apresentada no livro
Capitalism with Derivatives de Bryan e Rafferty, lançado em 2006. Com base nos aportes de
diversos outros autores que o tomam como principal interlocutor ou que tangenciam temas por
eles expostos, procura-se avançar no argumento de que os derivativos são uma forma de capital
fictício. Nesse sentido, os derivativos apresentam-se como instrumento por meio do qual os
inúmeros riscos concretos se tornam comensuráveis, precificados (convertidos em risco
abstrato) e, assim, ampliam a possibilidade de que o cálculo capitalista seja realizado em um
contexto de maior instabilidade. Em síntese, são os derivativos que permitem à classe capitalista
em seu conjunto avaliar qualquer modalidade de aplicação de riqueza em termos da combinação
risco-retorno almejada – i.e., convencionalmente aceita como satisfatória. Não constituem,
portanto, dinheiro e tampouco definem uma dimensão adicional do capitalismo, como sugerem
outros autores, mas aparecem como uma modalidade de capital fictício, resultado necessário de
uma economia mercantil-capitalista crescentemente complexa, na qual é progressiva a fração
da riqueza capitalista sob forma financeira6.
O último capítulo busca discutir e reinterpretar o conceito de capital fictício com
base em Marx e autores contemporâneos a fim de que se possa ter um entendimento mais
preciso do argumento de que os derivativos são uma forma de capital fictício. Assim, apresenta-
se como a capitalização se estabelece como princípio a partir do qual o capitalista avalia sua
equivalem à China e ao Japão. Conforme aponta Schaede (1989), exemplos dessas operações podem ser encontrados no mercado de arroz de Dōjima, no Japão, a partir do século XVII.
5 O termo mercantil se apresenta associado à palavra capitalista ao longo da tese nos contextos em que pareceu
necessário destacar a natureza eminentemente mercantil do sistema capitalista. Não representa, portanto, uma
qualificação teórica adicional, mas tão-somente uma forma de, em determinadas passagens, realçar esse traço
constitutivo do próprio capitalismo.
6 As evidências de que a riqueza sob forma financeira se concentra na fração mais rica da população – fato que
justifica, com base em Wolff e Zacharias (2013), considerá-la como capitalista –, é ampla. Para alguns exemplos,
veja-se Wolff (2015) para os Estados Unidos, Skopek (2015) para a Europa, e Credit Suisse (2015) para diferenças
na composição da riqueza entre os países.
7
riqueza e como, nesse contexto, os derivativos estendem o horizonte do cálculo capitalista em
relação à consideração do tempo-espaço uma vez que fornecem uma medida (capitalista)
objetiva dos riscos. Parafraseando Marx (1867, p. 780), o atual estágio de fracionamento global
da produção em um contexto no qual impera a flexibilidade do movimento dos capitais e em
que diversas moedas e taxas de juros compõe o cálculo capitalista seria impensável sem os
derivativos. Retoma-se, portanto, o fio condutor original: a reprodução material, ou antes quais
relações a informam; sugerindo que, hoje, os derivativos cumprem esse papel em escala
crescente.
Por fim, nas considerações finais, as principais conclusões são sintetizadas, à guisa
de conclusão.
8
Parte 1
Um Panorama Histórico dos Derivativos
9
Capítulo 1: Da Antiguidade à Idade Moderna: Os derivativos nas
sociedades pré-capitalistas
1.1. Introdução
Diversas das peculiaridades da configuração atual dos derivativos, o arcabouço
jurídico que os envolvem, o ambiente macroeconômico e mesmo a motivação das partes que os
transacionam podem, certamente, conter elementos historicamente novos. Sobretudo o
acelerado volume e desenvolvimento de diversas modalidades de contratos de derivativos que
combinam atributos de diversos ativos financeiros, como o credit default swap, atingiram uma
magnitude dificilmente vista em outras formas de contratos ao longo da história. No entanto,
conforme ilustram autores como Swan (2000) e Weber (2009), sua utilização geral pode ser
traçada desde os primórdios da própria atividade mercantil. À medida que as formas de
produção e circulação centradas no mercado se tornaram mais complexas, com o
aprofundamento da divisão do trabalho e o correlato estabelecimento de centros urbanos de
maior relevância, torna-se possível observar traços do que atualmente se consideram derivativos
em inúmeras formas de contrato. Apesar disso, é curioso observar o exíguo volume de trabalhos
sobre a história dos derivativos. Nesse sentido, o fascínio pelo que, a princípio, parece ser novo
pode, muitas vezes, não apenas ocultar certa desconsideração pelo passado, como, sobretudo,
impedir a apreciação daquilo que é propriamente novo, sua differentia specifica.
O propósito deste capítulo e do próximo é fornecer um panorama histórico dos
derivativos de modo que mais bem se possa situá-los no período recente, identificando, assim,
com maior exatidão aquilo que define, eventualmente, sua peculiaridade atual. A fim de
contornar uma possível arbitrariedade na seleção dos fenômenos históricos expostos adiante –
tanto quanto uma pesquisa possa não ser arbitrária – e evitar considerações atávicas, permeia o
presente capítulo a sugestão de Marx (1857-58, p. 105) de que “[the h]uman anatomy contains
a key to the anatomy of the ape”. Em outras palavras, “[…] the anatomy of the ape, although it
was formed earlier in time than the anatomy of man, nonetheless in a certain way plagiarizes
by anticipation the anatomy of man (ŽIŽEK, 2012, p. 221, grifos no original). Nesse contexto,
Marx (1857-58) indica que é o atual estágio em que se apresenta a sociedade que permite
identificar, no passado, as linhas mestras do fenômeno que se pretende avaliar e que o
conduziram ao presente. Observe que tal afirmação não pressupõe qualquer espécie de
determinismo ou mesmo aparenta esposar uma concepção teleológica da História – com
exceção daquela que é precondição para a própria existência da História, qual seja, a reprodução
10
material da sociedade. Segundo Mészáros (2008), os processos sociais em seu conjunto – que
ele denomina metabolismo social – não podem ser entendidos como uma progressão linear
rumo a um fim preestabelecido. Em suma, a História é um sistema dinâmico aberto. No entanto,
a história humana não é uma simples coleção de fenômenos heterogêneos e aleatórios; qualquer
tentativa de torná-la inteligível, destaca o autor, requer algum tipo de teleologia. O inescapável
provimento dos bens materiais necessários à reprodução do homem é o único fundamento
seguro sobre o qual, de acordo com o autor, se pode aventar uma interpretação de cunho
materialista da história7:
Indeed, human history is not intelligible without some kind of teleology. But
the only teleology consistent with the materialist conception of history is the
objective and dialectically open-ended teleology of labor itself. At the
fundamental ontological level, such teleology is concerned with the way in
which the human being – this unique ‘self-mediating being of nature’ – creates
and develops itself through its purposeful productive activity. (MÉSZÁROS,
2008, p. 138)
Assim, apenas se sugere que é a partir do presente que se pode identificar as
tendências do passado que antecipam – mas não determinam –, em potencial, o evento no
presente sob análise, tendo em mente a reprodução material da sociedade.
Para tanto, faz-se necessário, desde logo, adotar uma perspectiva histórica
abrangente, que não se atenha ao reduzido intervalo de algumas décadas, mas busque delinear
as tendências que se procura evidenciar ao longo de séculos, no lento – e repleto de marchas e
contramarchas – movimento histórico que as constituem. Assim, é pertinente a sugestão de
Braudel (1958, p. 727) de considerar “l'histoire de longue, même de très longue durée” [a
história do longo, mesmo do longuíssimo prazo]8.
Dessa forma, as considerações a seguir tomam os derivativos ao longo da história
pragmaticamente, orientadas pelo e para o período atual. Vale dizer que os elementos históricos
com referência aos derivativos serão apresentados com vistas ao entendimento de suas formas
contemporâneas e buscam compor uma narrativa, sem qualquer pretensão de originalidade, que
7 Sobre o mesmo tema, veja-se Lukács (1984).
8 A expressão “longue durée” designa a abordagem da Escola dos Analles, movimento da historiografia francesa
cujo principal veículo de divulgação foi a revista Annales d'Histoire Économique et Sociale, lançada em 1929 e
atualmente denominada Annales: Histoire, Sciences Sociales. Introduzida explicitamente enquanto método de
análise histórica por Braudel em seu livro de 1949, La Méditerranée et le monde méditerranéen à l'époque de
Philippe II, a abordagem foi teoricamente sintetizada pelo autor em ensaio publicado em 1958 – do qual provém
o excerto acima – fruto de uma controvérsia com Lévi-Strauss acerca do tempo histórico. Para maiores detalhes
sobre esse debate, veja-se Rodrigues (2009). Uma interessante tentativa de recolocar o longo prazo no centro da
investigação histórica, atualizando-o enquanto abordagem, encontra-se em Guldi e Armitage (2014).
11
apenas destaca seu vínculo estreito com formas mercantis de reprodução material. Propõe-se,
ainda que em breves pinceladas, observar o fenômeno dos derivativos a partir de uma
perspectiva de longo prazo, a fim de se evitar, para os propósitos da presente discussão, as
especificidades que necessariamente decorrem da contingência histórica e podem obscurecer o
traço mais geral que aqui se considera o fio condutor: a mercantilização do processo de
reprodução material da sociedade.
Com efeito, adotar uma perspectiva histórica mais abrangente permitirá
compreender com mais profundidade o próprio desenvolvimento dos derivativos na economia
contemporânea e, sobretudo, sua posição na estrutura econômica capitalista atual – da mesma
forma que o conhecimento sobre a história do dinheiro lança luz sobre as formas hodiernas nas
quais se apresenta, ainda que, evidentemente, não o esgote enquanto objeto de análise.
1.2. Derivativos: uma definição preliminar
A tentativa de construir uma narrativa histórica sobre os derivativos pressupõe,
desde logo, uma determinada definição do que eles consistem. Desse modo, ainda que uma
apreciação teórica mais rigorosa dos derivativos, tal como aquela à qual esta tese se propõe,
tenha lugar apenas no transcorrer das páginas seguintes, convém iniciar com uma definição
simples com o intuito de demarcar um recorte analítico básico para o tema.
A definição convencionalmente aceita de derivativo, presente na maior parte dos
livros-texto sobre o assunto, estabelece que o derivativo é “[...] a financial instrument whose
value depends on (or derives from) the values of other, more basic, underlying variables”
(HULL, 2015, p. 1) – de onde se origina, portanto, o termo “derivativo” para denominar esses
contratos. No entanto, assim definido, o derivativo embute uma relação de determinação do
mercado à vista em que se negocia o ativo subjacente para o mercado futuro, mercado de
derivativos, que nem sempre é comprovada por estudos empíricos. Essa definição, conforme
apontam Bryan e Rafferty (2006a, p. 11-12), indica que há um elemento real – o ativo
subjacente, seja ele qual for – em torno do qual os preços dos derivativos oscilam. Contudo,
segundo os mesmos autores, vários estudos empíricos indicam que quando não são
determinados simultaneamente, há casos em que é o mercado de derivativos que determina os
preços dos ativos subjacentes no mercado à vista. De fato, “[...] in actual derivative markets it
is apparent that prices do not in fact ‘derive’ from the original asset” (BRYAN; RAFFERTY,
2006a, p. 12).
Além disso, mesmo assumindo que o termo “deriva” seja utilizado de forma
maleável, indicando apenas que o preço do derivativo “depende” do preço do ativo subjacente,
12
à definição acima faltaria um componente importante na prática dos que operam nesses
mercados, a saber: a capacidade do agente de cumprir (perform) aquilo que foi definido em
contrato. Afinal, segundo Weber (2009, p. 433), “this definition of a derivative is incomplete
because it does not recognize the risk that the counterparty of a derivative contract may default”.
Desse fato resulta a maior importância das agências de classificação de risco de crédito, como
a Standard & Poor’s, Fitch e Moody's (conhecidas como Big Three), para determinadas formas
de derivativos, como os derivativos de crédito, cuja centralidade se evidenciou na crise recente.
A fim de contornar essa questão, define-se o derivativo como um contrato bilateral
no qual o resultado ou recompensa (payoff) depende da ocorrência de um evento específico
vinculado a uma variável subjacente (que pode ou não ser um ativo) e da capacidade da
contraparte de cumprir o contratado, sem que haja transferência do principal ou da propriedade
do objeto especificado no contrato. Em termos bastante gerais, portanto, o derivativo representa
a venda de uma promessa (SWAN, 2000, p. 17) em que, “[a]s a contract between two
counterparties to exchange payments based on underlying prices or yields, any transfer of
ownership of the underlying assets and cash flows becomes unnecessary” (BIS, 1995, p. 6-7).
Nesse sentido, os derivativos correspondem a uma promessa de entregar um ativo (não
necessariamente o ativo subjacente): “(1) at an agreed price, and (2) at an agreed future time,
which may be settled by choosing from agreed alternatives” (SWAN, 2000, p. 17). Definições
mais específicas certamente levariam a desconsiderar algumas modalidades de derivativos.
Atualmente, uma multiplicidade de variáveis pode ser utilizada como subjacente,
desde mercadorias agropecuárias até títulos financeiros, como ações, moedas nacionais diversas
e títulos de dívida. Além disso, mesmo elementos que não são propriamente ativos podem ser
objeto de transação envolvendo derivativos, como índices de bolsas de valores, índice
pluviométrico, temperatura, receitas do lançamento de filmes etc. – embora a parcela desses
contratos no total do mercado seja bastante pequena. De fato, “[...] derivatives can be dependent
on almost any variable, from the price of hogs to the amount of snow falling at a certain ski
resort” (HULL, 2015, p. 1).
Os derivativos podem ser negociados em mercados organizados – tipicamente
bolsas de mercadorias e futuros e, no período mais recente, bolsa de valores – ou mercados de
balcão (OTC). Segundo Culp (2010), as bolsas nas quais se negociam derivativos cumprem três
funções principais: padronizar os contratos; estabelecer um espaço (físico ou eletrônico) para
os negociantes; e fornecer serviços de divulgação dos preços. Além disso, as bolsas possuem
uma câmara de compensação (clearing house) e, assim, centralizam as operações,
apresentando-se como contraparte de todas as transações. Desse modo, os mercados
13
organizados permitem a transmissão de informações entre os operadores e buscam assegurar a
execução dos contratos acordados.
Os mercados de balcão, por sua vez, que correspondem a uma parcela significativa
do volume global de derivativos negociados, caracterizam-se pela negociação bilateral de
derivativos não padronizados – ainda que, recentemente, estejam cada vez mais padronizados
(DEUTSCHE BOERSE AG, 2008). Nesse contexto, os mercados de balcão possibilitam a
negociação de contratos de derivativos feitos sob medida (tailor-made), cujas configurações
visam atender necessidades específicas dos que nele operam. Bancos e grandes corporações são
os principais agentes desse mercado. Em sua formatação atual, uma operação de balcão pode
ser conduzida a uma contraparte central (central counterparty, CCP) ou liquidada entre as duas
partes de forma bilateral. De acordo com (HULL, 2015, p. 3):
A CCP is like an exchange clearing house. It stands between the two parties
to the derivatives transaction so that one party does not have to bear the risk
that the other party will default. When trades are cleared bilaterally, the two
parties have usually signed an agreement covering all their transactions with
each other. The issues covered in the agreement include the circumstances
under which outstanding transactions can be terminated, how settlement
amounts are calculated in the event of a termination, and how the collateral (if
any) that must be posted by each side is calculated.
É possível elencar ao menos quatro modalidades básicas de derivativos9, a partir
das quais outras combinações são formadas:
i) A termo (forward): mais antiga forma de derivativo, o contrato a termo designa
a compra ou venda de um ativo a certo preço em determinada data. Não
padronizados, são comumente negociados nos mercados de balcão;
ii) Futuro (future): à semelhança dos contratos a termo, os contratos futuros, ou
simplesmente futuros, também são um acordo de compra ou venda de um ativo
a certo preço em determinada data. Ao contrário dos contratos a termo, porém,
os futuros são padronizados, o que possibilita que sejam liquidados
antecipadamente fazendo a operação contrária, e em geral negociados em bolsas;
iii) Opções (options): contrato no qual o comprador paga ao vendedor um prêmio
em troca do direito, mas não da obrigação, de comprar (call option) ou vender
(put option) o ativo subjacente ao preço fixado durante um período de tempo
definido. As opções são negociadas em bolsas e em mercados de balcão;
9 Para uma análise sobre esses e outros tipos de derivativos, cf. Farhi (1998, cap. 1) e Hull (2015, cap. 1).
14
iv) Swaps: como o próprio termo inglês já denota, o swap é um contrato no qual se
define a troca “entre duas partes que se comprometem a intercambiar entre si
ativos ou fluxos financeiros num prazo predeterminado” (FARHI, 1998, p. 68).
Característicos dos mercados de balcão, os swaps principais são de juros e de
câmbio.
No que se refere aos agentes, pode-se identificar três comportamentos básicos em
relação aos derivativos: hedge, especulação10 e arbitragem (FARHI, 1998; HULL, 2015). Em
primeiro lugar, o derivativo pode servir como mecanismo de cobertura de risco (hedge). Nesse
caso, por exemplo, um agricultor que queira evitar a possível variação de preços de seus
produtos no momento da colheita pode vender antecipadamente sua produção a um preço
preestabelecido. Assim, o derivativo representa uma posição oposta àquela que o agricultor tem
no mercado à vista – ou seja, no momento da entrega, o agricultor possuirá os produtos
vendidos. Em segundo lugar, em virtude da alavancagem que permitem por envolverem poucos
recursos no momento em que se assume uma posição no mercado11, os derivativos podem ser
usados para a especulação, isto é, como forma de se beneficiar de uma variação, para cima ou
para baixo, dos preços. Por exemplo, se um agente espera que em determinado momento no
futuro o preço de certo ativo estará mais elevado do que aquele no qual é, no presente, negociado
em um contrato futuro para aquela data, adquirirá um contrato de compra e liquidará sua posição
realizando a operação contrária no momento do vencimento do contrato, embolsando a
diferença de preços. Por fim, os derivativos permitem também que se explorem possíveis
desigualdades de preços para um mesmo ativo em mercados diferentes ou em um mesmo
mercado para contratos com temporalidades diferentes de forma a obter um ganho livre de risco.
Hull (2015, p. 107) oferece o seguinte exemplo: considere que uma ação que não paga
dividendo custe, no mercado à vista, $40, que a taxa de juros de três meses seja 5% e que preço
futuro dessa ação esteja sendo negociado a $43 para entrega em três meses. Nesse caso, o agente
10 Quando a palavra especulação ou termos correlatos forem utilizados neste trabalho, deve-se considerá-los uma
generalização para os vários mercados da clássica definição dada por Kaldor (1939, p. 1), exceto quando
explicitamente outro sentido for adotado: “Speculation, for the purposes of this article, may be defined as the
purchase (or sale) of goods with a view to re-sale (re-purchase) at a later date, where the motive behind such
action is the expectation of a change in the relevant prices relatively to the ruling price and not a gain accruing
through their use, or any kind of transformation effected in them or their transfer between different markets”.
11 Conforme destaca Farhi (1998, p. 20): “Os mercados futuros constituem locais privilegiados para a especulação,
devido ao alto grau de alavancagem embutido em seus mecanismos e à sua virtualidade. Através da alavancagem,
o especulador se livra, por exemplo, dos custos de estocagem e do empate inicial de capital elevado que necessitaria
se operasse comprado no mercado físico, bastando que imobilize o montante determinado pela Bolsa ou sua
Câmara de Compensação para o depósito original. A virtualidade do mercado futuro lhe permite operar comprando
uma mercadoria ou um ativo que não deseja receber e/ou vendendo a descoberto algo que não possui de antemão”.
15
irá emprestar $40 a 5%, comprar uma ação no mercado à vista e comprometer-se a vender no
futuro a $43. O lucro da operação será igual a $43 - $40,5 = $2,5. Esse movimento continuará
até que essa diferença seja nula. Conforme aponta Farhi (1998, p. 29):
A generalização das operações de arbitragem tem por consequência o fato de
que é extremamente raro que a base entre os preços nos mercados à vista e as
cotações dos mercados futuros de ativos financeiros se distancie de forma
duradoura da taxa de juros prevalecendo no mercado monetário, no momento
da operação, para o prazo a decorrer até o vencimento dos contratos futuros.
Assim, a arbitragem é o mecanismo básico por excelência mediante o qual os preços
entre diferentes mercados e temporalidades se determinam mutuamente – a paridade entre uma
opção de venda e de compra, mencionada adiante, é um exemplo clássico desse processo em
relação aos derivativos.
Quanto à liquidação dos contratos, há duas formas básicas: a entrega física (physical
delivery) e a liquidação financeira (cash settlement). Enquanto naquela o ativo subjacente
especificado é efetivamente entregue no vencimento do contrato; nesta, simplesmente se
calcula, pela diferença, o quanto cabe a uma das partes em termos monetários. Nos dias de hoje,
apenas uma pequena fração dos contratos é liquidada pela entrega física. Segundo Millo (2007,
p. 201), esse processo tem origem na padronização dos contratos e, enquanto prática, estendeu-
se aos mercados de balcão:
The enormous success of standardized futures eroded the importance of
deliverability. Over the decades since the introduction of standardized futures
in the mid 19th century, the ratio of traders who actually took part in a delivery
of assets on expiration of the futures contracts dwindled constantly. By the
1950s the vast majority of futures contracts were not settled in delivery: most
estimates were that only in 3 to 5 per cent of transactions did products actually
change hands […] the actual practice in the markets rendered deliverability
and indeed the sheer physicality of assets irrelevant. Moreover, it was crucial
for the growth and prosperity of futures exchanges that deliverability would
be possible in principle, but that it would not be performed in practice in all
but a tiny minority of the transactions (MILLO, 2007, p. 201)
1.3. Os derivativos na Antiguidade
Conforme destaca Weber (2009), os contratos de derivativos emergiram tão logo se
tornou possível realizar promessas críveis sobre algum ativo e, ao mesmo tempo, registrá-las
de alguma maneira. Os primeiros contratos atualmente disponíveis aparecem em tabuletas de
argila em escrita cuneiforme oriundas da região da Mesopotâmia e geralmente referem-se a
contratos para entrega futura (a termo) de mercadorias combinados com um empréstimo. É
16
surpreendente observar que cerca de 85% dos documentos encontrados em Uruk12, região da
qual provém boa parte das tabuletas mais antigas, referem-se a temas econômicos,
particularmente relacionados às receitas e despesas dos templos da região (SWAN, 2000, p.
31). Esse fenômeno pode parecer, à primeira vista, apenas uma das dimensões da contabilidade
do soberano, uma vez que os templos eram, em geral, responsáveis pelo recebimento e
armazenamento do que cabia às autoridades políticas do período. No entanto, conforme destaca
Swan (2000), os templos na antiga Mesopotâmia serviam como espécies de clearing houses, de
modo não muito diverso daquelas de atualmente, e, desse modo, balizavam as transações
envolvendo derivativos:
Exchanges are, at their most basic, places where merchants regularly assemble
to do business. Temples were one of the important places for such activity.
More than that, they were also involved in derivatives transactions as
repositories of contracts, parties to contracts, and in providing grain
warehouse facilities. Temple granaries often provided space for private
storage of grain which was watched over by a special attendant. […] Temples
also provided quantity and quality measurement standards for deliverable
commodities. (SWAN, 2000, p. 37)
De fato, destaca o autor, o papel dos templos enquanto importantes centros de
negociação e regulação no período permitiu a formação de uma complexa teia de relações
comerciais, as quais muito possivelmente se valiam dos próprios templos para a liquidação das
posições entre os mercadores, de forma similar, ainda que limitada, àquela dos centros
comerciais e das feiras apontadas por Braudel (1982) durante a Idade Média. Há, assim, um
claro mecanismo de retroalimentação: a atividade comercial estimula o desenvolvimento desses
contratos e instituições, ao mesmo tempo em que a própria atividade comercial é estimulada
por eles.
Apesar de vinculados, sobretudo, à agricultura, subjazem aos contratos de
derivativos uma multiplicidade de ativos que vão desde madeira, cevada, grãos e até mesmo
escravos. Com efeito, Swan (2000) apresenta um contrato datado de 1750 a.C. no qual se
concede uma determinada quantidade de óleo em troca da entrega futura de escravos ou de
prata:
204 2/3 qu of oil in the measure of Shamash, to the value of 1/3 mina 2/3
shekels of silver, as the price for healthy slaves from Gutium, Warad-Marduk
son of Ibni-Marduk has received from Utul-Ishtar the troop-commander on
the authority of Lu-Ishurra son of Ili-usati. Within one month he shall bring
healthy slaves from Gutium. If he does not bring them within one month, Lu-
12 Antiga cidade da Suméria, a leste do Rio Eufrates, na região do atual Iraque.
17
Ishkurra son of Ili-usati will repay 1/3 mina 2/3 shekels of silver to the bearer
of this tablet. Before Ilshu-ibni son of Sineribam. Before Iluna son of Ipqusha.
Before Belshmu son of Ilshubani. Before Ipqatum son of Taribum. Month Ab,
6th day, year in which King Ammisaduqa, the faithful obedient shepard of
Shamash and Marduk, etc. (SWAN, 2000, p. 29)
Observe que os termos desse contrato apresentam ao menos três peculiaridades
bastante interessantes no que se refere aos derivativos contemporâneos. Em primeiro lugar, não
há a discriminação de escravos individuais. Vale dizer que “escravo saudável” aparece aqui já
como uma mercadoria relativamente homogênea, padronizada, fungível, como em geral
atualmente se dá com aquilo que é utilizado como ativo subjacente. Em segundo lugar, a opção
de pagamento em prata estabelece um piso para as eventuais perdas advindas com os escravos
e, portanto, define, como aponta Weber (2009), uma forma de seguro quanto ao risco, uma
modalidade de prêmio sobre os recursos originalmente adiantados. Por fim, em terceiro lugar,
e este é o fato mais distintivo quando se considera o período do qual provém, a expressão “to
the bearer of this tablet” sugere que o contrato possa ser transferido, indicando a existência,
ainda que incipiente, do que hoje se denomina um mercado secundário.
Outro exemplo da negociabilidade de determinados contratos de derivativos no
período encontra-se na transação abaixo:
2 kur 2 PI of barley.
lmgur-Ea
has obtained on (has good on)
Ea-rim-illi.
Imgur-Ea
does not know
Ea-rim-illi,
(but) Inbi-ilisu,
the son of Sin-ismeanni,
shall weigh out the barley in the month of Simanu.
Before Lustamar,
before Apil-ahi,
before Zablum,
before Sams-magir, the redû of Nabum-malik, the seals of the witnesses he
has impressed. In the month of Sabatu 25th day, of the year Samsuiluna, the
King, dug the Nagab-nuhsi-canal (SWAN, 2000, p. 41).
De acordo com Swan (2000), a expressão “Imgur-Ea does not know Ea-rim-illi”,
que, em síntese, significa que o credor não conhece o devedor, sugere que o portador do contrato
concorda em substituir o devedor. Por conseguinte, definem-se no próprio contrato um possível
substituto ao devedor original e, logo, a capacidade de transferência do contrato.
Mesmo que a transferência entre pessoas distintas seja um traço digno de nota
acerca dos derivativos na Mesopotâmia – ainda mais nos dias de hoje, em que a securitização
18
aparece como um fenômeno recente –, cabe reconhecer a existência de inúmeras outras formas
de contrato que, ainda que não transferíveis, indicam a relativa vitalidade dessas transações na
região no período. Muitos desses contratos eram dedicados ao comércio de longa distância,
como já seria de se esperar, uma vez que o volume de recursos despendido para a realização de
uma expedição comercial marítima, por exemplo, não era desprezível e tampouco a
possibilidade de que algum imprevisto levasse a cabo todo o empreendimento. Van de Mieroop
(2005, p. 21-22) apresenta uma ilustração de um desses derivativos que combina um
empréstimo em prata como forma de financiamento de uma expedição comercial e a entrega
futura de sementes de gergelim:
Six shekels’ silver as a šu-lá loan, Abuwaqar, the son of Ibqu-Erra, received
from Balnumamhe. In the sixth month he will repay it with sesame according
to the going rate. Before seven witnesses […]. These are the witnesses to the
seal. In month eleven of the year when king Rim-Sin defeated the armies of
Uruk, Isin, Babylon, Rapiqum and Sutium, and Irdanene, king of Uruk.
Outro registro da região no período advém de alguns contratos de derivativos
utilizados como forma de burlar as regulações que limitavam a taxa de juros sobre empréstimos.
Essas operações eram mais comuns em relação a transações envolvendo prata e grãos.
Conforme descreve Swan (2000, p. 45), essas operações consideravam o ciclo das colheitas de
grãos e a correlata variação de preço como forma de embutir um juro maior do que aquele
permitido oficialmente aos empréstimos concedidos:
Prior to the harvest, grain could be relatively scarce and high in price.
Therefore, it would benefit a clever speculator, making loans of grain, to have
the loans stated to be in silver. After a good harvest, the price of grain would
be lower in relation to silver than it had been before the harvest. Consequently,
a lender who stated a pre-harvest grain loan to be la loan of silver could get in
repayment far more grain than he would be entitled to under the permitted
interest rate for grain loans. In a poor harvest, he would probably break even.
For commercial grain dealers it was a very good way of evading interest rate
restrictions and getting larger supplies of grain at lower cost.
Os derivativos não atingiram a mesma extensão e profundidade, contudo, no Egito
e na Grécia Antigos. No Egito Antigo, a pequena relevância da propriedade privada associada
ao monopólio da produção e distribuição agrícola do faraó restringiu a participação dos
mercadores e, portanto, o próprio estabelecimento de contratos comerciais – ainda que exista
evidências de contratos para entrega futura a partir da conquista da região pelos gregos (SWAN,
2000, p. 63). Na Grécia Antiga, por sua vez, em que pese o fato de que o meio no qual os
contratos eram definidos não ser tão durável quanto os tabletes de argila (WEBER, 2009, p.
436), há claros indícios de que o costume e a legislação no período não viam com bons olhos
19
relações comerciais que não implicassem a entrega do objeto da transação – e, portanto, a
transferência imediata da propriedade sobre ele – no momento em que as mesmas eram
estabelecidas.
Greek sale implies transfer of ownership. Unascertained goods cannot be
transferred and therefore cannot be sold and bought. Their transfer is possible
in the future only after they have been specified. Liabilities for future
performance are not compatible with the Greek conception of sale.
(PRINGSHEIM, 1950, p. 47)
Apesar dessas limitações, o comércio de grãos constituía uma exceção importante
(SWAN, 2000, p. 61). Na medida em que os grãos eram a base da alimentação de boa parte da
população, a necessidade de fornecê-los continuamente para garantir a reprodução de grandes
centros urbanos, como Atenas, levou os gregos a permitirem contratos para a entrega futura,
ainda que rigorosamente regulados.
Quanto à Roma Antiga, apesar de inicialmente adotar uma legislação muito similar
à grega, limitando o uso de contratos de derivativos, gradativamente foi se abrindo a essa
atividade, sobretudo considerando a extensão de seu império e a necessidade de coordenar o
suprimento de mercadorias entre várias regiões do globo, a partir do terceiro século a.C.
(WEBER, 2009). Com o desenvolvimento da lei de contratos de venda nesse período, tornou-
se legalmente válido o estabelecimento de contratos sobre mercadorias que ainda iriam ser de
posse do mercador; ou seja, a própria venda de mercadorias para a entrega futura. No entanto,
conforme destaca Swan (2000), é apenas a partir de 200 d.C. que o arcabouço jurídico romano
confere uma institucionalidade própria aos derivativos. Sobressaem-se, nesse contexto, duas
modalidades de contrato para entrega futura: o primeiro, vendito re speratae, refere-se a um
contrato para a entrega futura que poderia ser anulado caso o vendedor não estivesse de posse
das mercadorias na data acordada, geralmente utilizado no comércio marítimo; o segundo,
vendito spei, refere-se a um simples contrato para entrega futura válido independente da
condição em que se encontraria o vendedor na data definida.
A importância desse sistema de contratos para a economia de Roma como um todo
é destacada por Swan (2000, p. 83) nos seguintes termos:
Almost any sort of futures contract came to be enforceable and, consequently,
a vehicle for adding income to the Roman economy and the tax base of Rome.
Considering the scale of the Roman economy, it is hard to overstate the
importance of allowing business in futures contracts to be conducted.
Apesar de uma posição relativamente encorajadora da legislação romana em
relação aos derivativos, esses contratos eram em sua maioria bilaterais, não transferíveis, ao
20
contrário de alguns dos exemplos da Mesopotâmia vistos acima. A negociabilidade dos
contratos de derivativos foi incorporada legalmente, tornando esses contratos executáveis por
terceiros, apenas já ao final do Império Romano (WEBER, 2009).
1.4. Os derivativos na Idade Média (476-1453)
O declínio do Império Romano marca a transição para um ambiente político-
institucional caracterizado pela mescla entre o aparato legal romano e a multiplicidade de
normas de origem germânica, em geral não codificadas, baseadas no costume, voltadas quase
exclusivamente à vida no campo. De fato, esse contexto não apenas reflete a atividade
eminentemente rural que compunha as sociedades germânicas que passaram a se espalhar pelo
território antes ocupado pelo Império Romano, como, também, o próprio declínio dos centros
comerciais urbanos diante da instabilidade política, econômica e militar do início da Idade
Média. Não por acaso, são parcas as menções a contratos comerciais e, quando existentes,
possuem conotação em geral negativa (SWAN, 2000). Por essa razão Weber (2009, p. 438)
sugere que “there was no further progress in the design of derivatives because there was not
much need for them in the Medieval economy which was both local and feudal”.
No entanto, ainda que restrito, o uso dos derivativos não está ausente, sobretudo
com a ascensão de algumas cidades italianas no comércio de longa distância a partir do século
X e, particularmente, no transcorrer dos três séculos seguintes, com as Cruzadas13. Nesse
quesito, destacam-se as cidades de Amalfi, Bari, Gênova, Nápoles e Veneza, que dominavam
as transações comerciais com o norte da Europa e no Mediterrâneo. Por exemplo, Swan (2000,
p. 98-99) apresenta o seguinte contrato para entrega e compra futura elaborado em Gênova em
1161:
Witnesses: Lamberts Filippi, Guido of Lodi, Oberto Trantavellate and Musso
de Sarega, Buongiovanni Lercari acknowledged that he is carrying to Bougie,
from the goods of Guglielmo Mallone, at the risk and fortune of the latter, 94
pounds in weight of silk and 10 pieces of Spanish linen of 43 cannae, all of
which Guglielmo himself values at £32. Buongiovanni himself is carrying
these goods to Bougie, and he is not to make any expenditures from them,
when going, for the vessel or for eating. [He is] to sell as best he can, to invest
[the proceeds] in wax or alum, whichever seems better to him, or, if neither
seems better, in gold, and to send back those wares as quickly as possible and
to deposit them witnesses being present under his own name. He is to have
13 De fato, a Primeira Cruzada (1096–1099) pode ser considerada um dos principais eventos históricos na
reativação do comércio europeu ao permitir a abertura (e reabertura) de rotas comerciais no interior da Europa e
entre a Europa e o mundo árabe.
21
and keep massamutini14 out of it. Done in the chapter house, 16 April 1161,
eighth indiction.
Com o acelerado desenvolvimento das atividades comerciais, novas modalidades
de contratos financeiros tornaram-se comuns em virtude da necessidade dos mercadores de
operarem com distintas moedas, geralmente emitidas por nobres e cidades-estados e, portanto,
de circulação restrita. Entre esses títulos financeiros, sobressai o cambium ou instrumentum ex
causa cambii. Conforme aponta Denzel (2010)15, o instrumentum ex causa cambii nada mais é
do que um precursor da letra de câmbio, que se tornaria um dos principais instrumentos de
crédito e meio de pagamento internacional ao longo dos séculos seguintes. Segundo o autor, a
diferença entre ambos se restringia à forma – e não propriamente ao conteúdo. Enquanto o
cambium consistia em uma promessa de pagamento na forma de um certificado de dívida escrita
por um notário, a letra de câmbio, na qual o cambium se converteria, refere-se a uma ordem de
pagamento, que não necessariamente passava pelas mãos de um notário, pois fundava-se na
rede de relacionamento entre os próprios negociantes na medida em que se ampliou a
regularidade com que operavam. De fato, “[t]his development was supported by the fact that
the emerging net of agents and correspondents, who knew each other personally, made notarial
certification obsolete” (DENZEL, 2010, p. xxvi). Desse modo, a letra de câmbio acabou por
conferir maior flexibilidade às transações comerciais ao possuir um menor custo de emissão e
pela facilidade com que podia ser operada quando comparada ao cambium. Por essa razão, seu
uso enquanto instrumento de crédito e meio de pagamento estendeu-se de forma acelerada nos
dois próximos séculos (KOHN, 1999b).
Ainda que mais restrito, o instrumentum ex causa cambii, porém, podia assumir a
forma de um contrato de derivativo. Uma ilustração dessa possível modalidade de relação
financeira vem de Gênova do ano de 1182:
Witnesses: Coenna of Lucca, Girardo Encina, Giovanni Corrigia. I, Alcherio,
banker, have received from you, Martina Corrigia, a number of deniers for
which I promise to pay, personally or through my Messenger to you or your
accredited messenger, £9 s. 13 ½ Pavese before the next feast of St. Andrew
[30 November]. Otherwise I promise you, making the stipulation, the penalty
of the double, etc. Done in Genoa, in front of the house of Barucio, in the
bank of Alcherio, the last day of January. (SWAN, 2000, p. 104)
14 Denominação para moedas de ouro do norte da África e da Espanha.
15 A Introdução deste livro é um retrato bastante profundo do mercado cambial ao longo da história.
22
Cabe notar que, embora à primeira vista essa operação possa parecer uma simples
concessão de crédito a ser pago em outra localidade, ao envolver moedas distintas, esse contrato
pode muito bem representar uma espécie de derivativo cambial associado a um empréstimo.
Desse modo, a depender da variação da relação de troca entre as moedas de Gênova e Veneza
em relação à taxa corrente – uma vez que o contrato não define nenhuma taxa específica –
haverá ganho ou perda de uma das partes. Ademais, o fato de que, além da taxa de câmbio, não
se define também o montante exato de recursos adiantados pode ser interpretado como um dos
inúmeros expedientes então comuns para contornar a lei da usura estabelecida pela Igreja, que
só foi flexibilizada apenas ao final da Idade Média (BRUNDAGE, 1996). Nesse sentido,
apontam Bell, Brooks e Dryburgh (2007, p. 362): “Many of the financial instruments employed
were motivated by the illegality of interest payments on loans (usury) at that time, creating a
need for relatively complex transactions that paid an implicit interest”.
Ao lado do instrumentum ex causa cambii, outra inovação que merece ser destacada
em relação à sua utilização sob alguma forma de derivativo são os títulos de dívida do
governo16. No decorrer do século XII, também em cidades como Gênova e Veneza – nas quais
as atividades mercantis se desenvolviam em um ritmo mais acelerado –, foram emitidos títulos
de dívida adquiridos por grupos de investidores denominados monti. No século seguinte, esses
títulos passaram a ser negociados a partir da criação de mercados secundários, fato que acabou
estimulando seu uso em contratos de derivativos e, também, como meio de pagamento, graças
à liquidez relativamente elevada que possuíam (WEBER, 2009).
By the beginning of the thirteenth century, these monti credits were negotiable
and could be sold in the market to third parties. Their market value fluctuated,
depending on such things as the ability of the city to meet interest and
redemption payments and its success in war or peace. The shares were valued
in round numbers, they were (unlike most other contemporary objects of trade)
fungible, and they frequently began to be used as payment for goods or
services instead of cash. (SWAN, 2000, p. 121)
Um aspecto relevante das atividades comerciais em geral na Idade Média é o papel
exercido pela Igreja Católica. Nesse quesito, dois pontos merecem destaque em relação ao tema
ora tratado. Em primeiro lugar, a legislação canônica, ao conservar elementos da lei romana,
possibilitou a formação de um arcabouço jurídico privado relativamente favorável acerca das
16 Curiosamente, Swan (2000) considera os títulos de dívida, em si mesmos, como uma forma de derivativo posto
que representam uma transação envolvendo as receitas futuras do governo e, assim, seu valor em dado momento
está sujeito à variação destas – tomadas, portanto, como ativo subjacente. Nesse caso, porém, toda forma de crédito
deveria ser tomada como um derivativo pois é a avaliação que se faz da performance futura do devedor que irá
ditar o valor (leia-se juros) do crédito. No entanto, não é essa a apreensão aqui proposta, tal como visto na seção
1.1.
23
atividades comerciais, que, em linhas gerais, se assemelhava ao do passado. Ademais, em
virtude do poder adquirido pela Igreja, não raramente a mesma atribuiu-se jurisdição para
assuntos comerciais (BRUNDAGE, 1996). Em segundo lugar, uma vez que a Igreja
concentrava, ela própria, parcela importante da produção, acabou por tornar-se a principal
instituição a organizar o ambiente comercial, participando ativamente dos negócios e definindo
os locais e o calendário em que ocorriam. De acordo com Swan (2000, p. 125) caberia também
tomar até mesmo a venda de indulgências como uma relevante contribuição da Igreja para o
desenvolvimento dos derivativos, não pelo conteúdo da negociação, evidentemente, mas pela
forma com que era conduzida. A promessa de que, por um determinado pagamento no presente,
haveria o perdão dos erros cometidos pelo contratante, reduzindo, assim, a pena que lhe caberia
no pós-vida, foi acompanhada por uma institucionalidade que muito se assemelharia àquela que
orientará a atividade mercantil entre os séculos XII e XIV. De fato, a Igreja estabeleceu um
sistema de regulação relativamente completo para a venda de indulgências a fim de evitar
fraudes. O sistema contemplava um conjunto definido de instituições às quais era concedido o
direito de negociar indulgências. Tais instituições, como monastérios e hospitais, funcionavam,
portanto, como brokers. Por sua vez, esses brokers contratavam uma espécie de representante
comercial – conhecidos como questors ou pardoners – com o intuito de expandir as
negociações. Assim, a Igreja, de certo modo, forneceu os elementos básicos sobre como poderia
se estruturar um mercado para um contrato qualquer.
Quanto à sua participação em certas modalidades de derivativos, convém destacar
o comércio de lã de monastérios cistercienses na Inglaterra. De acordo com Swan (2000, p.
106):
Almost without exception, the monasteries entered into contracts for the sale
of their entire wool production for delivery years in the future. Some contracts
were for 15 or 20 years. These agreements contained the classic elements of
futures contracts: the merchants paid large sums in advance and were
promised future delivery of specific amounts of wool.
Ademais, os monastérios não apenas vendiam antecipadamente toda sua produção,
resguardando-se, assim, de qualquer movimento adverso dos preços da lã no futuro, como
negociavam um volume maior do que aquele que produziam. Desse modo, esperavam adquirir
dos pequenos produtores locais a lã que lhes faltaria no momento de realizar a entrega. Os
monastérios serviam, assim, como uma espécie de market maker para a produção da região,
vinculando-a, ainda que indiretamente, aos próprios contratos de venda futura que celebravam.
Esse fato sugere que, além de protegerem-se da variação dos preços, os monastérios buscavam,
sobretudo, recursos para reequilibrar suas finanças. Conforme aponta Kohn (1999a, p. 10):
24
While these transactions may have shifted the risk of price movements –
protecting purchasers against a rise and sellers against a fall – this was
certainly not their main motivation: the monasteries were in chronic financial
distress and desperately needed the funds.
Na mesma direção, Bell, Brooks e Dryburgh (2007, p. 365) destacam que:
For the monasteries, their gains from the contract could be two-fold. First,
they would have known in advance how much money they would obtain for
their wool for several years into the future, which would have enabled them
to plan financially. Second, and almost certainly more importantly, they
obtained large up front payments that could be put to immediate use for
building works and the dual burden of royal and papal tax payments. Even
though they were theoretically very wealthy in terms of their assets, many
monasteries found themselves in dire financial straits, with large debts, and
they were therefore in desperate need of cash.
A Igreja também foi central na organização dos espaços e das datas em que se
realizavam os principais eventos de comércio da Idade Média: as feiras. De fato, além das
pousadas e hospedarias que se tornaram comumente locais de negociação pelo encontro regular
de mercadores e peregrinações de fiéis – muitas vezes até mesmo entre cristãos e muçulmanos17
–, as feiras não apenas eram reguladas pelo calendário religioso como também, muitas vezes,
gerenciadas pelo clero, tanto pelo aparato jurídico que mantinham como pela disponibilidade
de armazenamento das mercadorias.
A relevância de feiras como a de Champagne no século XIII, por exemplo, para o
desenvolvimento comercial da Europa – e, no que se refere ao tema deste texto, para a
negociação de formas de contratos de derivativos – não pode ser subestimada. Segundo Hunt e
Murray (1999, p. 192), as feiras “formed one of the key institutional building blocks in the
enormous growth of the European economy prior to the Black Death [1348]”. Ainda que as
feiras fossem compostas por uma multiplicidade de tipos de mercadorias, sobretudo aquelas de
maior valor unit�