Os Maias - Cap III

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    -Ah! Sr. Vilaa, isto agora outra coisa! At os canrios cantam! E tambm eu cantava, seainda pudesse.

    E foi saindo, subitamente comovida, j com vontade de chorar.O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia duma outra ponta dos seus

    altos colarinhos de mordomo.

    - Eu creio que prepararam o quarto azul ao Sr. Vilaa, hein? disse Afonso. No quarto emque voc costumava ficar dorme agora a viscondessa...

    Ento o Vilaa apressou-se a perguntar pela Sr. viscondessa. Era uma Runa, uma prima damulher de Afonso, que, no tempo em que os poetas de Caminha a cantavam, casara com um

    fidalgote galego, o Sr. visconde de Urigo-de-la-Sierra, um borracho, um brutal que lhe batia:depois, viva e pobre, Afonso recolhera-a por dever de parentela, e para haver uma senhora emSta. Olavia.

    Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relgio, Afonso interrompeu a relao dessesachaques.

    - Vilaa, v-se arranjar, depressa, que daqui a pouco o jantar.O administrador surpreendido olhou tambm o relgio, depois a mesa j posta, os seis

    talheres, o cesto de flores, as garrafas de Porto.

    - Ento V. Ex. agora janta de manh? Eu pensei que era o almoo...- Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regime. De madrugada est j na quinta; almoa ssete; e janta uma hora. E eu, enfim, para vigiar as maneiras do rapaz...

    - E o Sr. Afonso da Maia, exclamou Vilaa, a mudar de hbitos, nessa idade! O que serav, meu senhor!

    - Tolice! no isso... que me faz bem. Olhe que me faz bem!... Mas avie-se, Vilaa, avie-seque Carlos no gosta de esperar... Talvez tenhamos o abade.

    - O Custdio? Rica coisa! Ento, se V. Ex. me d licena...Apenas no corredor, o mordomo, ansioso por conversar com o Sr. administrador,

    perguntou-lhe, desembaraando-o do guarda sol e do chale-manta:- Com franqueza, como nos acha por c, pela quinta Sr. Vilaa?- Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir por gosto a Sta. Olavia.

    E, pousando familiarmente a mo no ombro do escudeiro, piscando o olho ainda hmido:- Tudo isto o menino. Fez reviver o patro! O Teixeira riu respeitosamente. O menino

    realmente era a alegria da casa...- Ol! Quem toca por c? exclamou Vilaa, parando nos degraus da escada, ao ouvir em

    cima um afinar gemente de rebeca.

    - o Sr. Brown, o ingls, o preceptor do menino... Muito habilidoso, um regalo ouvi-lo;toca s vezes noite na sala, o Sr. juiz de direito acompanha-o na concertina... Aqui, Sr. Vilaa, oquarto de V. S....

    - Muito bonito, sim senhor!O verniz dos mveis novos brilhava na luz das duas janelas, sobre o tapete alvadio

    semeado de florzinhas azuis: e as bambinelas, os reposteiros de cretone, repetiam as mesmasfolhagens azuladas sobre fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou o bom Vilaa.

    Foi logo apalpar os cretones, esfregou o mrmore da cmoda, provou a solidez dascadeiras. Eram as moblias compradas no Porto, hein? Pois, elegantes. E, realmente, no tinhamsido caras. Nem ele fazia ideia! Ficou ainda em bicos de ps a examinar duas aguarelas inglesasrepresentando vacas de luxo, deitadas na relva, sombra de runas romnticas. O Teixeira,observou-lhe, com o relgio na mo:

    - Olhe que V. S. tem s dez minutos... O menino no gosta de esperar.Ento o Vilaa decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois tirou o seu pesado colete de

    malha de l; e pela camisa entreaberta via-se ainda uma flanela escarlate por causa dosreumatismos, e os bentinhos de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias da maleta; aofundo do corredor, a rebeca atacara o Carnaval de Veneza; e atravs das janelas fechadas sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos campos, todo o verde de abril.

    Vilaa, sem culos, um pouco arrepiado, passava a ponta da toalha molhada pelo pescoo,por traz da orelha, e ia dizendo:

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    - Ento, o nosso Carlinhos no gosta de esperar, hein? J se sabe, ele quem governa...Mimos e mais mimos, naturalmente...

    Mas o Teixeira muito grave, muito srio, desiludiu o Sr. administrador. Mimos e maismimos, dizia s. S.? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se ele fossea contar ao Sr. Vilaa! No tinha a criana cinco anos j dormia num quarto s, sem lamparina; etodas as manhs, zs, para dentro duma tina de gua fria, s vezes a gear l fora... E outras

    barbaridades. Se no se soubesse a grande paixo do av pela criana, havia de se dizer que aqueria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensa-lo... Mas no, parece que erasistema ingls! Deixava-o correr, cair, trepar s rvores, molhar-se, apanhar soalheiras, comoum filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! S a certas horas e de certas coisas... E svezes a criancinha, com os olhos abertos, a guar! Muita, muita dureza.

    E o Teixeira acrescentou:- Enfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que ns aprovssemos a educao que tem

    levado, isso nunca aprovmos, nem eu, nem a Gertrudes.Olhou outra vez o relgio, preso por uma fita negra sobre o colete branco, deu alguns

    passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade, em quanto dizia, junto ao toucador

    onde o Vilaa acamava as duas longas repas sobre a calva:- Sabe V. S., apenas veio o mestre ingls, o que lhe ensinou? A remar! A remar, Sr. Vilaa,como um barqueiro! Sem contar o trapsio, e as habilidades de palhao; eu nisso nem gosto defalar... Que eu sou o primeiro a dize-lo: o Brown boa pessoa, calado, asseado, excelentemsico. Mas o que eu tenho repetido Gertrudes: pode ser muito bom para ingls, no paraensinar um fidalgo portugus... No . V V. S. falar a esse respeito com a Sr. D. Ana Silveira...

    Bateram de manso porta, o Teixeira emudeceu. Um escudeiro entrou, fez um sinal aomordomo, tirou-lhe do brao respeitosamente a sobrecasaca, e ficou com ela junto do toucador,onde o Vilaa, vermelho e apressado, lutava ainda com as repas rebeldes.

    O Teixeira, da porta, disse com o relgio na mo:- o jantar. Tem V. S. dois minutos, Sr. Vilaa.E o administrador da a um momento abalava tambm, abotoando ainda o casaco pelas

    escadas.Os senhores j estavam todos na sala. Junto do fogo, onde as achas consumidas morriam

    na cinza branca, o Brown percorria o Times. Carlos, a cavalo nos joelhos do av , contava-lheuma grande histria de rapazes e de bulhas; e ao p o bom abade Custdio, com o leno de rapesquecido nas mos, escutava, de boca aberta, num riso paternal e terno.

    - Olhe quem ali vem, abade, disse-lhe Afonso.

    O abade voltou-se, e deu uma grande palmada na coxa:- Esta nova! Ento o nosso Vilaa? E no me tinham dito nada! Venham de l esses

    ossos, homem!...Carlos pulava nos joelhos do av, muito divertido com aqueles longos abraos que

    juntavam as duas cabeas dos velhos - uma com as repas achatadas sobre a calva, outra comuma grande coroa aberta numa mata de cabelo branco. E como eles, de mos dadas,continuavam a admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos anos, Afonso disse:

    - Vilaa! a Sr. viscondessa...O administrador porm procurou-a debalde, com os olhos abertos pela sala. Carlos ria,

    batendo as mos: - e Vilaa descobriu-a enfim a um canto, entre o aparador e a janela, sentadanuma cadeirinha baixa, vestida de preto, tmida e queda, com os braos rechonchudospousados sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e mole, branco como papel, as roscas do

    pescoo, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; no achou uma palavra para dizer ao Vilaa, eestendeu-lhe a mo papuda e plida, com um dedo embrulhado num pedao de seda negra.Depois ficou a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar, os olhos no regao,como exausta daquele esforo.

    Dois escudeiros tinham comeado a servir a sopa, o Teixeira esperava, perfilado por traz

    do alto espaldar da cadeira de Afonso.

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    Mas Carlos cavalgava ainda o av, querendo acabar outra histria. Era o Manuel, traziauma pedra na mo... Ele primeiro pensara ir s boas; mas os dois rapazes comearam a rir... Demaneira que os correu a todos...

    - E maiores que tu?- Trs rapages, vov, pode perguntar tia Pedra... Ela viu, que estava na eira. Um deles

    trazia uma foice...

    - Est bom, senhor, est bom, ficamos inteirados... V, desmonte, que est a sopa a esfriar.Upa! upa!

    E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarca feliz, veio sentar-se ao alto da

    mesa, sorrindo e dizendo:- J se vai fazendo pesado, j no est para colo...Mas reparou ento no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentao do procurador.- O Sr. Brown, o amigo Vilaa... Peo perdo, descuidei-me, foi culpa daquele cavalheiro l

    ao fundo da mesa, o Sr. D. Carlos de mata-sete!

    O preceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu toda a volta mesa, rgido e teso, para vir sacudir o Vilaa num tremendo shake-hands; depois, sem umapalavra, reocupou o seu lugar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidveis bigodes, e foi

    ento que disse ao Vilaa, com o seu forte acento ingls:- Muito belo dia... glorioso!- Tempo de rosas, respondeu o Vilaa, cumprimentando, intimidado diante daquele atleta.Naturalmente, nesse dia, falou-se da jornada de Lisboa, do bom servio da mala-posta, do

    caminho de ferro que se ia abrir... O Vilaa j viera no comboio at ao Carregado.- De causar horror, hein? perguntou o abade, suspendendo a colher que ia levar boca.O excelente homem nunca sara de Resende; e todo o largo mundo, que ficava para alm

    da penumbra da sua sacristia e das rvores do seu passal, lhe dava o terror duma Babel. Sobretudo essa estrada de ferro, de que tanto se falava...

    - Faz arrepiar um bocado, afirmou com experincia Vilaa. Digam o que disserem, fazarrepiar!

    Mas o abade assustava-se sobre tudo com as inevitveis desgraas dessas mquinas!

    O Vilaa ento lembrou os desastres da mala-posta. No de Alcobaa, quando tudo se virou,ficaram esmagadas duas irms de caridade! Enfim de todos os modos havia perigos. Podia-sequebrar uma perna a passear no quarto...

    O abade gostava do progresso... Achava at necessrio o progresso. Mas parecia-lhe que sequeria fazer tudo lufa-lufa... O pas no estava para essas invenes; o que precisava eram

    boas estradinhas...

    - E economia! disse o Vilaa, puxando para si os pimentes.- Bucelas? murmurou-lhe sobre o ombro o escudeiro.

    O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe luz a cor rica, provou-ocom a ponta do lbio, e piscando o olho para Afonso:

    - do nosso!- Do velho, disse Afonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom nctar?- Magnificente! exclamou o perceptor com uma energia fogosa.

    Ento Carlos, estendendo o brao por cima da mesa, reclamou tambm Bucelas. E a suarazo era haver festa por ter chegado o Vilaa. O av no consentiu; o menino teria o seu clicede Colares, como de costume, e um s. Carlos cruzou os braos sobre o guardanapo que lhependia do pescoo, espantado de tanta injustia! Ento nem para festejar o Vilaa poderiaapanhar uma gotinha de Bucelas? A estava uma linda maneira de receber os hospedes naquinta... A Gertrudes dissera-lhe que como viera o Sr. administrador, havia de pr noite parao ch o fato novo de veludo. Agora observavam-lhe que no era festa, nem caso para Bucelas...Ento no entendia.

    O av, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente um caro severo.- Parece-me que o senhor est palrando de mais. As pessoas grandes que palram mesa.

    Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito mansamente:- Est bom, vov, no te zangues. Esperarei para quando for grande...

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    Houve um sorriso em volta da mesa. A prpria viscondessa, deleitada, agitoupreguiosamente o leque: o abade, com a sua boa face banhada em xtase para o menino,apertava as mos cabeludas contra o peito, tanto aquilo lhe parecia engraado: e Afonso tossiapor traz do guardanapo, como limpando as barbas - a esconder o riso, a admirao que lhe

    brilhava nos olhos.

    Tanta vivacidade surpreendeu tambm Vilaa. Quis ouvir mais o menino, e pousando oseu talher:

    - E diga-me, Carlinhos, j vai adiantado nos seus estudos?O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as mos pelo cs das flanelas, e respondeu

    com um tom superior:- J fao ladear a Brigida.Ento o av, sem se conter, largou a rir, cado para o espaldar da cadeira:- Essa boa! Eh! Eh! J faz ladear a Brigida! E verdade, Vilaa, j a faz ladear... Pergunte

    ao Brown; no verdade, Brown? E a guasita uma piorrita, mas fina...- Oh vov, gritou Carlos j excitado, dize ao Vilaa, anda. No verdade que eu era capaz

    de governar o dog-cart?Afonso reassumiu um ar severo.

    - No o nego... Talvez o governasse, se lho consentissem. Mas faa-me favor de se nogabar das suas faanhas, porque um bom cavaleiro deve ser modesto... E sobre tudo noenterrar assim as mos pela barriga abaixo...

    O bom Vilaa, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma observao. No sepodia de certo ter melhor prenda que montar a cavalo com as regras... Mas ele queria dizer se oCarlinhos j entrava com o seu Fedro, o seu Tito Liviosinho...

    - Vilaa, Vilaa, advertiu o abade, de garfo no ar e um sorriso de santa malcia, no se devefalar em latim aqui ao nosso nobre amigo... No admite, acha que antigo... Ele, antigo ...

    - Ora sirva-se desse fricass, ande abade, disse Afonso, que eu sei que o seu fraco, e deixel o latim...

    O abade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaos de ave, iamurmurando:

    - Deve-se comear pelo latinzinho, deve-se comear por l... a base; a basezinha!- No! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro forra!

    Forra! Msculo...E repetiu, duas vezes, agitando os formidveis punhos:- Prrimeiro musculo, musculo!...

    Afonso apoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo de

    erudito... Nada mais absurdo que comear a ensinar a uma criana numa lngua morta quem foiFabio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e outros negcios duma nao extinta, deixando-o aomesmo tempo sem saber o o que a chuva que o molha, como se faz o po que come, e todas asoutras coisas do Universo em que vive...

    - Mas enfim os clssicos, arriscou timidamente o abade.- Qual clssicos! O primeiro dever do homem viver. E para isso necessrio ser so, e ser

    forte. Toda a educao sensata consiste nisto: criar a sade, a fora e os seus hbitos,desenvolver exclusivamente o animal, arm-lo duma grande superioridade fsica. Tal qualcomo se no tivesse alma. A alma vem depois... A alma outro luxo. um luxo de gentegrande...

    O abade coava a cabea, com o ar arrepiado.- A instruosinha necessria, disse ele. Voc no acha, Vilaa? Que V. Ex., Sr. Afonso da

    Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas enfim a instruosinha...- A instruo para uma criana no recitar Titire, tu patulae recubans... saber factos,

    noes, coisas teis, coisas praticas...Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, num sinal ao Vilaa, mostrou-lhe o neto que

    palrava ingls com o Brown. Eram de certo feitos de fora, uma histria de briga com rapazes

    que ele lhe estava a contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor aprovava,

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    retorcendo os bigodes. E mesa os senhores com os garfos suspensos, por traz os escudeiros dep e guardanapo no brao, todos, num silncio reverente, admiravam o menino a falar ingls.

    - Grande prenda, grande prenda, murmurou Vilaa, inclinando-se para a Viscondessa.A excelente senhora corou, atravs dum sorriso. Parecia assim mais gorda, toda acaapada

    na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a cada gole de Bucelas, refrescava-se languidamente

    com o seu grande leque negro e lentejoulado.

    Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Afonso fez uma sade ao Vilaa. Todos oscopos se ergueram num rumor de amizade. Carlos quis gritar Hurrah! O av, com um gestorepreensivo, imobilizou-o; e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse com uma grande

    convico:- Oh av, eu gosto do Vilaa. O Vilaa nosso amigo.- Muito, e h muitos anos, meu senhor! exclamou o velho procurador, to comovido que

    mal podia erguer o clice na mo.O jantar findava. Fora, o sol deixara o terrao e a quinta verdejava na grande doura do ar

    tranquilo, sob o azul ferrete. Na chamin s restava uma cinza branca: os lilases das jarrasexalavam um aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado de um fio de lim o:os criados, de coletes brancos, moviam o servio donde se escapava algum som argentino: e

    toda a alva toalha adamascada desaparecia sob a confuso da sobremesa onde os tons douradosdo vinho do Porto brilhavam entre as compoteiras de cristal. A Viscondessa afogueadaabanava-se. Padre Custdio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coada luzia naspregas das mangas.

    Ento Afonso, sorrindo ternamente, fez a ultima sade.- Viva V. S., Sr. Carlos de Mata-sete!

    - Sr. Vov! dizia o pequeno escorropichando o copo. A cabecinha de cabelos negros, avelha face de barbas de neve, saudavam-se das extremidades da mesa - em quanto todos

    sorriam, no enternecimento daquela cerimnia. Depois o abade, de palito na boca, murmurouas graas. A Viscondessa, cerrando os olhos, juntou tambm as mos. E Vilaa que tinha crenasreligiosas no gostou de ver Carlos, sem se importar com as graas, saltar da cadeira, vir atirar-se ao pescoo do av, falar-lhe ao ouvido.

    - No senhor! no senhor! dizia o velho.Mas o rapaz, abraando-o mais forte, dava-lhe grandes razes, num murmrio de mimo

    doce como um beijo, que ia pondo na face do velho uma fraqueza indulgente.- por ser festa, disse ele enfim vencido. Mas veja l, veja l...O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Vilaa pelos braos, f-lo redemoinhar, e foi

    cantando num ritmo seu:

    - Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Terezinha, inha, inha, inha!- a noiva, disse o av, erguendo-se da mesa. J tem amores, a pequena das Silveiras... O

    caf para o terrao, Teixeira.O dia fora convidava, adorvel, dum azul suave, muito puro e muito alto, sem uma

    nuvem. Defronte do terrao os gernios vermelhos estavam j abertos; as verduras dosarbustos, muito tenras ainda, duma delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro;

    vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado ao perfume adocicado das flores do

    campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina

    faiscava de leve aquele sol tmido de primavera tardia, que ao longe envolvia os verdes daquinta, adormecida a essa hora de sesta numa luz fresca e loura.

    Os trs homens sentaram-se mesa do caf. Defronte do terrao, o Brown, de bon escocsposto ao lado e grande cachimbo na boca, puxava ao alto a barra do trapsio para Carlos se

    balouar. Ento o bom Vilaa pediu para voltar as costas. No gostava de ver ginsticas; bemsabia que no havia perigo; mas mesmo nos cavalinhos, as cabriolas, os arcos, atordoavam-no;saa sempre com o estmago embrulhado...

    - E parece-me imprudente, sobre o jantar...

    - Qual! s balouar-se... Olhe para aquilo!

    Mas Vilaa no se moveu, com a face sobre a chvena.O abade, esse, admirava, de lbios entreabertos, e o pires cheio de caf esquecido na mo.

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    - Olhe para aquilo Vilaa, repetiu Afonso. No lhe faz mal, homem!O bom Vilaa voltou-se, com esforo. O pequeno muito alto no ar, com as pernas retesadas

    contra a barra do trapzio, as mos s cordas, descia sobre o terrao, cavando o espaolargamente, com os cabelos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno sol;todo ele sorria; a sua blusa, os cales enfunavam-se aragem; e via-se passar, fugir, o brilhodos seus olhos muito negros e muito abertos.

    - No est mais na minha mo, no gosto, disse o Vilaa. Acho imprudente!Ento Afonso bateu as palmas, o abade gritou bravo, bravo. Vilaa voltou-se para aplaudir,

    mas Carlos tinha j desaparecido; o trapzio parava, em oscilaes lentas; e o Brown,retomando o Times que pusera ao lado sobre o pedestal dum busto, foi descendo para a quintaenvolvido numa nuvem de fumo do cachimbo.

    - Bela coisa, a ginstica! exclamou Afonso da Maia, acendendo com satisfao outrocharuto.

    Vilaa j ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abade, depois de dar um sorvo ao caf,de lamber os beios, soltou a sua bela frase, arranjada em mxima:

    - Esta educao faz atletas mas no faz cristos. J o tenho dito...- J o tem dito abade, j! exclamou Afonso alegremente. Diz-mo todas as semanas... Quer

    voc saber, Vilaa? O nosso Custdio mata-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilhaao rapaz. A cartilha!...Custdio ficou um momento a olhar Afonso, com uma face desconsolada e a caixa de rap

    aberta na mo; a irreligio daquele velho fidalgo, senhor de quasi toda a freguesia, era uma dassuas dores:

    - A cartilha, sim meu senhor, ainda que V. Ex. o diga assim com esse modo escarnica... A

    cartilha. Mas j no quero falar na cartilha... H outras coisas. E se o digo tantas vezes, Sr.Afonso da Maia, pelo amor que tenho ao menino.

    E recomeou a discusso, que voltava sempre ao caf, quando Custdio jantava na quinta.O bom homem achava horroroso que naquela idade um to lindo moo, herdeiro duma

    casa to grande, com futuras responsabilidades na sociedade, no soubesse a sua doutrina. Enarrou logo ao Vilaa a histria da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do

    escrivo, tendo passado diante do porto da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosae amiga de crianas como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o acto de contrico. E querespondeu o menino? Que nunca em tal ouvira falar! Estas coisas entristeciam. E o Sr. Afonsoda Maia achava-lhe graa, ria-se! Ora ali estava o amigo Vilaa que podia dizer se era caso para

    jubilar. No, o Sr. Afonso da Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas duma coisano o podia convencer, a ele pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, que houvessefelicidade e bom comportamento na vida sem a moral do catecismo.

    E Afonso da Maia respondia com bom humor:

    - Ento que lhe ensinava voc, abade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que se no deve roubaro dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os inferiores, por que isso contra osmandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno, hein? isso?...

    - H mais alguma coisa...- Bem sei. Mas tudo isso que voc lhe ensinaria que se no deve fazer, por ser um pecado

    que ofende a Deus, j ele sabe que se no deve praticar, por que indigno dum cavalheiro edum homem de bem...

    - Mas, meu senhor...

    - Oua abade. Toda a diferena essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor davirtude e honrado por amor da honra; mas no por medo s caldeiras de Pero Botelho, nem como engodo de ir para o reino do cu...

    E acrescentou, erguendo-se e sorrindo:

    - Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abade, quando vem, depois de semanas dechuva, um dia destes, ir respirar pelos campos e no estar aqui a discutir moral. Portanto arriba!e se o Vilaa no est muito cansado, vamos dar a um giro pelas fazendas...

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    O abade suspirou como um santo que v a negra impiedade dos tempos e Belzebutarrebatando as melhores rezes do rebanho; depois olhou a chvena e sorveu com delcias oresto do seu caf.

    Quando Afonso da Maia, Vilaa e o abade recolheram do seu passeio pela freguesia,escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado j as Silveiras, senhoras ricas da quinta daLagoaa.

    D. Ana Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da famlia, e era em pontosde doutrina e de etiqueta uma grande autoridade em Resende. A viva, D. Eugnia, limitava-sea ser uma excelente e pachorrenta senhora, de agradvel nutrio, trigueirota e pestanuda; tinhadois filhos, a Terezinha, a noiva de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabelos negroscomo tinta, e o morgadinho, o Euzebiosinho, uma maravilha muito falada naqueles stios.

    Quasi desde o bero este notvel menino revelara um edificante amor por alfarrbios e portodas as coisas do saber. Ainda gatinhava e j a sua alegria era estar a um canto, sobre umaesteira, embrulhado num cobertor, folheando in-flios, com o crniosinho calvo de sbiocurvado sobre as letras garrafais de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal propsito quepermanecia horas imvel numa cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nuncaapetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado,

    entre o pasmo da mam e da titi, passava dias a traar algarismos, com a linguasinha de fora.Assim na famlia tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro bacharel, edepois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia, a tia Anica instalava-o logo mesa, ao pdo candeeiro, a admirar as pinturas dum enorme e rico volume, os Costumes de todos os povos

    do Universo. J l estava essa noite, vestido como sempre de escocs, com o plaid de flamejantexadrez vermelho e negro posto a tiracolo e preso ao ombro por uma dragona; para que

    conservasse o ar nobre dum Stuart, dum valoroso cavaleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravamo bonet onde se arqueava com heroismo uma rutilante pena de galo; e nada havia mais

    melanclico que a sua facesinha trombuda, a que o excessode lombrigas dava uma moleza e uma amarelido de manteiga, os seus olhinhos vagos e

    azulados, sem pestanas como se a cincia lhas tivesse j consumido, pasmando com sisudezpara as camponesas da Siclia, e para os guerreiros ferozes do Montenegro apoiados a

    escopetas, em pncaros de serranias.Diante do canap das senhoras l se achava tambm o fiel amigo, o Dr. delegado, grave e

    digno homem, que havia cinco anos andava ponderando e meditando o casamento com aSilveira viva, sem se decidir - contentando-se em comprar todos os anos mais meia dzia delenis, ou uma pea mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras eramdiscutidas em casa das Silveiras, braseira: e as aluses recatadas, mas inevitveis, s duasfronhasinhas, ao tamanho dos lenis, aos cobertores de papa para os aconchegas de janeiro -em lugar de inflamar o magistrado, inquietavam-no. Nos dias seguintes aparecia preocupado -

    como se a perspectiva da santa consumao do matrimnio lhe desse o arrepio de uma faanhaa empreender, o ter de agarrar um touro, ou nadar nos caches do Douro. Ento, por qualquerrazo especiosa, adiava-se o casamento at ao S. Miguel seguinte. E aliviado, tranquilo, orespeitvel Dr. continuava a acompanhar as Silveiras a chs, festas de igreja ou psames,vestido de preto, afvel, servial, sorrindo a D. Eugnia, no desejando mais prazeres que osdessa convivncia paternal.

    Apenas Afonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o Dr. juiz de direitoe a senhora no podiam vir, por que o magistrado tivera a dor; e as Brancos tinham mandadorecado a desculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer dezassete anos quemorrera o mano Manuel...

    - Bem, disse Afonso, bem. A dor, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos ns umvoltaretesinho de quatro. Que diz o nosso Dr. delegado?

    O excelente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que estava s ordens.- Ento ao dever, ao dever! exclamou logo o abade, esfregando as mos, no ardor j da

    partida.

    Os parceiros dirigiram-se saleta do jogo - que um reposteiro de damasco separava dasala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos c rculos de luz que caam dos abat-jour

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    os baralhos abertos em leque. da a um momento o Dr. delegado voltou, risonho, dizendo queos deixara para um roquesinho de trs; e retomou o seu lugar ao lado de D. Eugnia,cruzando os ps debaixo da cadeira e as mos em cima do ventre. As senhoras estavam falandoda dor do Dr. juiz de direito. Costumava dar-lhe todos os trs meses: e era condenvel a suateima em no querer consultar mdicos. Quanto mais que ele andava acabado, ressequindo,amarelando - e a D. Augusta, a mulher, a nutrir larga, a ganhar cores!... A Viscondessa,enterrada em toda a sua gordura ao canto do canap, com o leque aberto sobre o peito, contouque em Espanha vira um caso igual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e a mulher umapipa; e ao principio fora o contrario; at sobre isso se tinham feito uns versos...

    - Humores, disse com melancolia o Dr. delegado.Depois falou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco, coitadinho, na flor de

    idade! E que perfeio de rapaz! E que rapaz de juizo! D. Ana Silveira no se esquecera, comotodos os anos, de lhe acender uma lamparina por alma, e de lhe rezar trs padre-nossos. Aviscondessa pareceu toda aflita por se no ter lembrado... E ela que tinha o propsito feito!

    - Pois estive para to mandar dizer! exclamou D. Ana. E as Brancos que tanto o agradecem,

    filha!- Ainda est a tempo, observou o magistrado.

    D. Eugnia deu uma malha indolente no crochet de que nunca se separava, e murmuroucom um suspiro:- Cada um tem os seus mortos.

    E no silncio que se fez, saiu do canto do canap outro suspiro, o da viscondessa, que decerto se recordara do fidalgo de Urigo de la Sierra, e murmurava:

    - Cada um tem os seus mortos...

    E o digno Dr. delegado terminou por dizer igualmente, depois de passar reflectidamente amo pela calva:

    - Cada um tem os seus mortos!Uma sonolncia ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles, as chamas das

    velas erguiam-se altas e tristes. Euzebiosinho voltava com cautela e arte as estampas dos

    Costumes de todos os Povos. E na saleta de jogo, atravs do reposteiro aberto, sentia-se a voz j

    arrenegada do abade, rosnando com um rancor tranquilo, passo, que o que tenho feito toda asanta noite!

    Nesse momento Carlos arremetia pela sala dentro arrastando a sua noiva, a Teresinha, todano ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas vozes reanimou o canap dormente.

    Os noivos tinham chegado duma pitoresca e perigosa viagem, e Carlos parecia descontente

    de sua mulher; comportara-se duma maneira atroz; quando ele ia governando a mala-posta, ela

    quisera empoleirar-se ao p dele na almofada... Ora senhoras no viajam na almofada.- E ele atirou-me ao cho, titi!- No verdade! De mais a mais mentirosa! Foi como quando chegmos estalagem...

    Ela quis-se deitar, e eu no quis... A gente, quando se apeia de viagem, a primeira coisa que faz tratar do gado... E os cavalos vinham a escorrer...

    A voz de D. Ana interrompeu, muito severa:

    - Est bom, est bom, basta de tolices! J cavalaram bastante. Senta-te a ao p da Sr.Viscondessa, Tereza... Olhe essa travessa do cabelo... Que despropsito!

    Sempre detestara ver a sobrinha, uma menina delicada de dez anos, brincar assim com oCarlinhos. Aquele belo e impetuoso rapaz, sem doutrina e sem propsito, aterrava-a; e pela suaimaginao de solteirona passavam sem cessar ideias, suspeitas de ultrages que ele poderiafazer menina. Em casa, ao agasalha-la antes de vir para Sta. Olavia, recomendava-lhe comfora que no fosse com o Carlos para os recantos escuros! que o no deixasse mexer-lhe nosvestidos!... A menina, que tinha os olhos muito langorosos, dizia: Sim, titi. Mas, apenas na

    quinta, gostava de abraar o seu maridinho. Se eram casados, por que no haviam de fazernen, ou ter uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas o violento rapaz s queriaguerras, quatro cadeiras lanadas a galope, viagens a terras de nomes brbaros que o Brown lhe

    ensinava. Ela, despeitada, vendo o seu corao mal compreendido, chamava-lhe arrieiro; eleameaava boxa-la, inglesa; - e separavam-se sempre arrenegados.

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    Nesse momento, o abade, suspeitando uma corrente de ar, erguera-se da mesa de jogo a

    fechar o reposteiro: ento, como Afonso j no podia ouvir, D. Ana ergueu a voz:- E olhe que o Custdio teve desgosto, Sr. Vilaa. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma

    palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar o que sucedeu com a Macedo.Vilaa j sabia.- Ah j sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contrico...A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao cu atravs do tecto.- Horroroso! continuou D. Ana. A pobre mulher chegou l a nossa casa embuchada... E eu

    fez-me impresso. At sonhei com aquilo trs noites a fio...Calou-se um momento. Vilaa, embaraado, acanhado, fazia girar a caixa de rap nos

    dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor de sonolncia passou na sala; D. Eugnia,com as plpebras pesadas, fazia de vez em quando uma malha mole no crochet; e a noiva deCarlos, estirada para o canto do sof, j dormia, com a boquinha aberta, os seus lindos cabelosnegros caindo-lhe pelo pescoo.

    D. Ana, depois de bocejar de leve, retomou a sua ideia:

    - Sem contar que o pequeno est muito atrasado. A no ser um bocado de ingls, no sabenada... Nem tem prenda nenhuma!

    - Mas muito esperto, minha rica senhora! acudiu Vilaa.- possvel, respondeu secamente a inteligente Silveira.E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado dela, quieto como se fosse de

    gesso:

    - Oh filho, dize tu aqui ao Sr. Vilaa aqueles lindos versos que sabes... No sejas atado,anda!... V, Euzbio, filho, s bonito...

    Mas o menino, molengo e tristonho, no se descolava das saias da titi: teve ela de o pr dep, ampara-lo, para que o tenro prodgio no alusse sobre as perninhas flcidas; e a mamprometeu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...

    Isto decidiu-o: abriu a boca, e como duma torneira lassa veio de l escorrendo, num fio devoz, um recitativo lento e babujado:

    noite, o astro saudoso

    Rompe a custo um plmbeo cu,Tolda-lhe o rosto formoso

    Alvacento, hmido vu...Disse-a toda - sem se mexer, com as mozinhas pendentes, os olhos mortios pregados na

    titi. A mam fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, comum sorriso de quebranto, banhada no langor da melopeia, ia cerrando as plpebras.

    - Muito bem, muito bem! exclamou o Vilaa, impressionado, quando o Euzebiosinhofindou coberto de suor. Que memria! Que memria! um prodgio!...

    Os criados entravam com o ch. Os parceiros tinham findado a partida; e o bom Custdio,de p, com a sua chvena na mo, queixava-se amargamente da maneira porque aquelessenhores o tinham esfolado.

    Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras retiraram-se s nove emeia. O servial Dr. delegado dava o brao a D. Eugnia; um criado da quinta alumiava adiantecom o lampio; e o moo das Silveiras levava ao colo o Euzebiosinho que parecia um fardoescuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabea.

    Depois da ceia Vilaa acompanhou ainda um momento Afonso da Maia livraria, onde,antes de recolher, ele tomava sempre inglesa o seu cognac e soda.

    O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo, estava adormecido

    tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas, um resto de lume na chamin ,e o globo do candeeiro pondo a sua claridade serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os

    repuchos cantavam alto no silncio da noite.Enquanto o escudeiro rolava para o p da poltrona de Afonso, numa mesa baixa, os cristais

    e as garrafas de soda, Vilaa, com as mos nos bolsos, de p e pensativo, olhava a brasa da acha

    que morria na cinza branca. Depois ergueu a cabea, para murmurar, como ao acaso:- Aquele rapazito esperto...

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    - Quem? O Euzebiosinho? disse Afonso, que se acomodava junto ao fogo, enchendoalegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver c, Vilaa! O Carlos no gosta dele, e tivemos a umdesgosto horroroso... Foi j h meses. Havia uma procisso e o Euzebiosinho ia de anjo... AsSilveiras, excelentes mulheres, coitadas, mandaram-no c para o mostrar viscondessa, jvestido de anjo. Pois senhores, distramo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se dele,leva-o para o sto, e, meu caro Vilaa... Em primeiro lugar ia-o matando porque embirra comanjos... Mas o pior no foi isso. Imagine voc o nosso terror, quando nos aparece o Euzebiosinhoaos berros pela titi, todo desfrizado, sem uma asa, com a outra a bater-lhe os calcanharesdependurada de um barbante, a coroa de rosas enterrada at ao pescoo, e os gales de ouro, ostules, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!... Enfim, um anjo depenado esovado... Eu ia dando cabo do Carlos.

    Bebeu metade da sua soda, e passando a mo pelas barbas, acrescentou, com umasatisfao profunda:

    - levado do diabo, Vilaa!O administrador, sentado agora borda de uma cadeira, esboou uma risadinha muda;

    depois ficou calado, olhando Afonso, com as mos nos joelhos, como esquecido e vago. Ia abriros l bios, hesitou ainda, tossiu de leve; e continuou a seguir pensativamente as fascas que

    erravam sobre as achas.Afonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeara a falar do

    Silveirinha. Tinha trs ou quatro meses mais que Carlos, mas estava enfezado, estiolado, poruma educao portuguesa: daquela idade ainda dormia no choco com as criadas, nunca olavavam para o no constiparem, andava couraado de rolos de flanelas! Passava os dias nassaias da titi a decorar versos, paginas inteiras do Catecismo de Perseverana. Ele porcuriosidade um dia abrira este livreco e vira l, que o sol que anda em volta da terra (comoantes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhs d as ordens ao sol, para onde h-de ir eonde h-de parar etc., etc. E assim lhe estavam arranjando uma almasinha de bacharel...

    Vilaa teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente decidido, ergueu-se, fezestalar os dedos, disse estas palavras:

    - V. Ex. sabe que apareceu a Monforte?

    Afonso, sem mover a cabea, reclinado para as costas da poltrona, perguntoutranquilamente, envolvido no fumo do cachimbo:

    - Em Lisboa?- No senhor, em Paris. Viu-a l o Alencar, esse rapaz que escreve, e que era muito de

    Arroios... Esteve at em casa dela.E ficaram calados. Havia anos que entre eles se no pronunciara o nome de Maria

    Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia, a preocupao ardente de Afonsoda Maia fora tirar-lhe a filha que ela levara. Mas a esse tempo ningum sabia onde Maria serefugiara com o seu prncipe: nem pela influncia das legaes, nem pagando regiamente apolcia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se pde descobrir a toca da fera como diziaento o Vilaa. Ambos decerto tinham mudado de nome; e, dadas essas naturezas bomias,quem sabe se no errariam agora pela Amrica, pela ndia, em regies mais exticas? Depois,pouco a pouco, Afonso da Maia descoroado com aqueles esforos vos, todo ocupado do netoque crescia belo e forte ao seu lado, no enternecimento continuo que ele lhe dava foi esquecendo

    a Monforte e a sua outra neta, to distante, to vaga, a quem ignorava as feies, de quem malsabia o nome. E agora de repente a Monforte aparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro

    estava morto! e aquela criana que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua me...Erguera-se, passeava na livraria, pesado e lento, com a cabea baixa. Junto mesa, ao p do

    candeeiro, o Vilaa ia percorrendo um a um os papis da sua carteira.- E est em Paris com o italiano? perguntou Afonso do fundo sombrio do aposento.O Vilaa ergueu a cabea de sobre a carteira, e disse:- No senhor, est com quem lhe paga.E como Afonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, Vilaa, dando-lhe um papel

    dobrado, acrescentou:

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    - Todas estas coisas so muito graves, Sr. Afonso da Maia, e eu no quis fiar-me s naminha memria. Por isso pedi ao Alencar, que um excelente rapaz, que me escrevesse numacarta tudo o que me contou. Assim temos um documento. Eu no sei mais do que a est escrito.Pode V. Ex. ler...

    Afonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma histria simples, que o Alencar, opoeta das Vozes da Aurora, o estilista de Elvira, ornara de flores e de gales dourados comouma capela em dia de festa.

    Uma noite, ao sair da Maison d'Or, ele vira a Monforte saltar dum coup com dois homensde gravata branca; tinham-se logo reconhecido: e um momento ficaram hesitando, um defronte

    do outro, debaixo do candeeiro do gs, no trotoir. Foi ela que, muito decidida, rindo, estendeu amo ao Alencar, pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a adresse, o nome por que devia perguntar:Mme. de l'Estorade. E no seu boudoir, na manh seguinte a Monforte falou largamente de si:vivera trs anos em Viena de ustria com Tancredo, e com o pap que se lhes fora reunir - e quel continuava de certo, como em Arroios, refugiando-se pelos cantos das salas, pagando astoiletes da filha, e dando palmadinhas ternas no ombro do amante como outrora no ombro do

    marido. Depois tinham estado em Mnaco; e a, dizia o Alencar, num drama sombrio depaixo que ela me fez entrever o napolitano fora morto em duelo. O pap morrera tambm

    nesse ano, deixando apenas da sua fortuna uns magros contos de ris, e a moblia da casa emViena: o velho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de Tancredo ao bacarat. Passara ento um tempo em Londres: e da viera habitar Paris, com Mr. de l'Estorade,um jogador, um espadachim, que acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse

    nome de l'Estorade, que lhe era a ele de ora em diante intil porque passava a adoptar outromais sonoro de Vicomte de Mandervile. Enfim, pobre, formosa, doida, excessiva, lanara-se naexistncia daquelas mulheres de quem, dizia o Alencar, a plida Margarida Gautier, a gentilDama das Camlias o tipo sublime, o smbolo potico, a quem muito ser perdoado porquemuito amaram. E o poeta terminava: ela est ainda no esplendor da beleza, mas as rugasviro, e ento que avistar em redor de si? As rosas secas e ensanguentadas da sua coroa deesposa. Sa daquele boudoir perfumado, com a alma dilacerada, meu Vilaa! Pensava no meupobre Pedro, que l jaz sob o raio de luar, entre as raizes dos ciprestes. E, desiludido desta cruel

    vida, vim pedir ao absinto, no boulevard, uma hora de esquecimento.Afonso da Maia deu um repelo carta, menos enojado das torpezas da histria, que

    daqueles lirismos relambidos.E recomeou a passear, enquanto o Vilaa recolhia religiosamente o documento que tinha

    relido muitas vezes, na admirao do sentimento, do estilo, do ideal daquela pagina.- E a pequena? perguntou Afonso.

    - Isso no sei. O Alencar no lhe falaria na filha, nem ele mesmo sabe que ela a levou.Ningum o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou desapercebido no grande escndalo.Mas enquanto a mim, a pequena morreu. Seno, siga V. Ex. o meu raciocnio... Se a meninafosse viva, a me podia reclamar a legitima que cabe criana... Ela sabe a casa que V. Ex. tem;h de haver dias, e so frequentes na vida dessas mulheres, em que lhe falte uma libra... Com opretexto da educao da menina, ou de alimentos, j nos tinha importunado... Escrpulos notem ela. Se o no faz que a filha morreu. No lhe parece a V. Ex.?

    - Talvez, disse Afonso.

    E acrescentou, parando diante de Vilaa - que olhava outra vez a brasa morta tirandoestalinhos dos dedos:

    - Talvez... Suponhamos que morreram ambas, e no se fale mais nisso.Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que Vila a

    passou em Sta. Olavia no se proferiu mais o nome de Maria Monforte.Mas, na vspera da partida do administrador para Lisboa, Afonso subiu ao quarto dele, a

    entregar-lhe as amndoas da Pscoa que Carlos mandava a Vilaa Junior, um alfinete de peitocom uma magnfica safira - e disse-lhe em quanto o outro, sensibilizado, balbuciava osagradecimentos:

    - Agora outra coisa, Vilaa. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu primo Noronha, aoAndr que vive em Paris como voc sabe, pedir-lhe que procure essa criatura, e que lhe oferea

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    dez ou quinze contos de ris, se ela me quiser entregar a filha... No caso, est claro, que estejaviva... E quero que voc saiba desse Alencar a morada da mulher em Paris.

    O Vilaa no respondeu, ocupado a meter entre as camisas, bem no fundo da maleta, acaixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou diante de Afonso, a coar reflectidamente oqueixo.

    - Ento que lhe parece, Vilaa?- Parece-me arriscado.

    E deu as suas razes. A menina devia ir nos seus treze anos. Estava uma mulher, com o seutemperamento formado, o carcter feito, talvez os seus h bitos... Nem falaria o portugus. Assaudades da me haviam de ser terrveis... Enfim, o Sr. Afonso da Maia trazia uma estranhapara casa...

    - Voc tem razo, Vilaa. Mas a mulher uma prostituta, e a pequena do meu sangue.Nesse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vov, precipitou-se no quarto,

    esguedelhado, escarlate como uma rom. - O Brown tinha achado uma corujazinha pequena!Queria que o vov viesse ver, andara a busca-lo por toda a casa... Era de morrer a rir... Muitopequena, muito feia, toda pelada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia oninho...

    - Vem depressa, vov! Depressa, que necessrio ir p-la no ninho, por causa da corujavelha que se pode afligir... O Brown est-lhe a dar azeite. Oh Vilaa vem ver! vov, pelo amorde Deus! Tem uma cara to engraada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha pode darpela falta!...

    E impaciente com a lentido risonha do vov, tanta indiferena pela inquietao da corujavelha, abalou atirando com a porta.

    - Que bom corao! exclamou o Vilaa comovido. A pensar nas saudades da coruja... Ame dele que no tem saudades! Sempre o disse, uma fera!

    Afonso encolheu tristemente os ombros. Iam j no corredor quando ele, parando ummomento, baixando a voz:

    - Tem-me esquecido de lhe contar, Vilaa, o Carlos sabe que o pai que se matou...Vilaa arredondou os olhos de espanto. Era verdade. Uma manh entrara-lhe pela livraria,

    e dissera-lhe: - vov, o pap matou-se com uma pistola! - Naturalmente algum criado que lhocontara...

    - E vossa excelncia?- Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me

    pediu, nessas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou. Quis ser enterrado em Sta. Olavia,

    a est. No queria que o filho jamais soubesse da fuga da me; e por mim, de certo, nunca osaber. Quis que dois retratos que havia dela em Arroios fossem destruidos; como voc sabe,obtiveram-se e destruiram-se. Mas no me pediu que ocultasse ao rapaz o seu fim. E por isso,disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que num momento de loucura, o pap tinha dado um tiroem si...

    - E ele?- E ele, replicou Afonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-

    me toda uma manh para lhe dar tambm uma pistola... E a est o resultado dessa revelao: que tive de mandar vir do Porto uma pistola de vento...

    Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo av, os dois apressaram-se a iradmirar a corujazinha.

    Vilaa ao outro dia partiu para Lisboa.Passadas duas semanas, Afonso recebia uma carta do administrador, trazendo-lhe, com a

    adresse da Monforte, uma revelao imprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta,recordando outros incidentes da sua visita a Mme. de l'Estorade, contara-lhe que no boudoir

    dela havia um adorvel retrato de criana, de olhos negros, cabelo de azeviche, e uma palidezde ncar. Esta pintura ferira-o, no s por ser dum grande pintor ingls, mas por ter, pendentesob o caixilho como um voto funerrio, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. No

    havia outro quadro no boudoir: e ele perguntara Monforte se era um retrato ou uma fantasia.Ela respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. Esto assim dissipadas

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    todas as dvidas, acrescentava o Vilaa. O pobre anjinho est numa ptria melhor. E para ela,bem melhor!

    Afonso, todavia, escreveu a Andr de Noronha. A resposta tardou. Quando o primo Andrprocurara Mme.de l'Estorade, havia semanas que ela partira para Alemanha, depois de vendermoblia e cavalos. E no Club Imperial, a que ele pertencia, um amigo que conhecia bem Mme.de l'Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catani,

    acrobata do Circo de Inverno nos campos Elseos, homem de formas magnficas, um Apolo defeira, que todas as cocotes se disputavam e que a Monforte empolgara. Naturalmente corriaagora a Alemanha com a companhia de cavalinhos.

    Afonso da Maia, enojado, remeteu esta carta ao Vilaa sem um comentrio. E o honradohomem respondeu: Tem V. Ex. razo, atroz: e mais vale supor que todos morreram, e nogastar mais cera com to ruins defuntos... E depois num post-scriptum acrescentava: Parececerto abrir-se em breve o caminho de ferro at ao Porto: em tal caso, com permisso de V. Ex.,a irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias de hospitalidade.

    Esta carta foi recebida em Sta. Olavia um domingo, ao jantar. Afonso lera alto o P.S. Todos

    se alegraram-na esperana de ver o bom Vilaa em brevena quinta; e falou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima.

    Mas, tera feira noite, chegava um telegrama de Manuel Vilaa anunciando que o paimorrera, nessa manh, duma apoplexia: dois dias depois vinham mais longos e tristespormenores. Fora depois do almoo que, de repente, Vilaa se sentira muito sufocado e comtonturas: ainda tivera foras de ir ao quarto respirar um pouco de ter: mas ao voltar salacambaleava, queixava-se de ver tudo amarelo, e caiu de bruos, como um fardo, sobre o canap.O seu pensamento, que se extinguia para sempre, ainda nesse momento se ocupou da casa que

    h trinta anos administrava: balbuciou, a respeito duma venda de cortia, recomendaes que ofilho j no pde perceber: depois deu um grande ai; e s tornou a abrir os olhos, paramurmurar no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: Saudades ao patro!

    Afonso da Maia ficou profundamente afectado, e em Sta. Olavia, mesmo entre os criados, a

    morte de Vilaa foi como um luto domstico. Uma dessas tardes, o velho, muito melanclico,estava na livraria com um jornal esquecido nas mos, os olhos cerrados - quando Carlos, que ao

    lado rabiscava carantonhas num papel, veio passar-lhe um brao pelo pescoo, e comocompreendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o Vilaa no voltaria a v-los quinta.

    - No filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a ver.O pequeno, entre os joelhos e os braos do velho, olhava o tapete, e, como recordando-se,

    murmurou tristemente:

    - O Vilaa, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vov, para onde o levaram?- Para o cemitrio, filho, para debaixo da terra.Ento Carlos desprendeu-se devagar do abrao do av, e muito srio, com os olhos nele:- vov! porque no lhe mandas fazer uma capelinha bonita, toda de pedra, com uma

    figura, como tem o pap?O velho achegou-o ao peito, beijou-o, comovido:- Tens razo, filho. Tens mais corao que eu!Assim o bom Vilaa teve no cemitrio dos Prazeres o seu jazigo - que fora a alta ambio

    da sua existncia modesta.Outros anos tranquilos passaram sobre Santa Olavia.Depois uma manh de julho, em Coimbra, Manuel Vilaa (agora administrador da casa)

    trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Afonso se hospedara com o neto, e entrava-lhepela sala, vermelho, suando, berrando:

    - Nemin! Nemin!Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha acompanhado os

    senhores de Santa Olavia correu porta, abraou-se quasi chorando no menino, agora mais altoque ele, e muito formoso na sua batina nova.

    Em cima no quarto, Manuel Vilaa, soprando ainda, limpando as bagas de suor,

    exclamava:

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    - Ficou tudo espantado, Sr. Afonso da Maia! Os lentes at estavam comovidos. Ih Jesus!que talento! Vem a ser um grande homem, o que todo o mundo disse... E que faculdade vai eleseguir, meu senhor?

    Afonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso:- No sei, Vilaa... Talvez nos formemos ambos em Direito.Carlos assomou porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro escudeiro - que trazia

    champagne numa salva.

    - Ento venha c, seu maroto, disse Afonso muito branco, com os braos abertos. Bomexame, hein?... Eu...

    Mas no pde prosseguir: as lgrimas, duas a duas, corriam-lhe pela barba branca.

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