OS MAIAS - CAP IV

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    com um golpe de bisturi, as noites veladas beira de um leito, entre o terror de uma famlia,dando grandes batalhas morte. Como em pequeno o tinham encantado as formas pitorescasdas vsceras - atraiam-no agora estes lados militantes e hericos da cincia.

    Matriculou-se realmente com entusiasmo. Para esses longos anos de quieto estudo o avpreparara-lhe uma linda casa em Celas, isolada, com graas de cotage ingls, ornada depersianas verdes, toda fresca entre as rvores. Um amigo de Carlos (um certo Joo da Ega) ps-lhe o nome de Paos de Celas, por causa de luxos ento raros na Academia, um tapete na sala,poltronas de marroquim, panplias de armas, e um escudeiro de libr.

    Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos

    democratas; quando se soube porm que o dono destes confortos lia Proudhon, AugustoComte, Herbert Spencer, e considerava tambm o pas uma choldra ign bil - os mais rgidosrevolucionrios comearam a vir aos Paos de Celas to familiarmente como ao quarto doTrovo, o poeta bomio, o duro socialista, que tinha apenas por moblia uma enxerga e umaBblia.

    Ao fim de alguns meses, Carlos, simptico a todos, conciliara Dandis e Filsofos: e traziamuitas vezes no seu break, lado a lado, o Serra Torres, um monstro que j era adido honorrioem Berlim e todas as noites punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava a Morte de

    Satans, encolhido no seu gabo de Aveiro, com o seu grande barrete de lontra.Os Paos de Celas, sob a sua aparncia preguiosa e campestre, tornaram-se uma fornalhade actividades. No quintal fazia-se uma ginstica cientfica. Uma velha cozinha fora convertidaem sala de armas - porque naquele grupo a esgrima passava como uma necessidade social. noite, na sala de jantar, moos srios faziam um whist srio: e no salo, sob o lustre de cristal,com o Figaro, o Times e as Revistas de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho

    ao piano tocando Chopin ou Mozart, os literatos estirados pelas poltronas - havia ruidosos eardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o

    Amor, Hugo e a Evoluo, tudo por seu turno flamejava no fumo do tabaco, tudo to ligeiro evago como o fumo. E as discusses metafsicas, as prprias certezas revolucionarias adquiriamum sabor mais requintado com a presena do criado de farda desarrolhando a cerveja, ouservindo croquetes.

    Carlos, naturalmente, no tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seusexpositores de medicina. A Literatura e a Arte, sob todas as formas, absorveram-no

    deliciosamente. Publicou sonetos no Instituto - e um artigo sobre o Partenon: tentou, numatelier improvisado, a pintura a leo: e comps contos arqueolgicos, sob a influncia daSalamb. Alm disso todas as tardes passeava os seus dois cavalos. No segundo ano levaria umR se no fosse to conhecido e rico. Tremeu, pensando no desgosto do av: moderou adissipao intelectual, acantoou-se mais na cincia que escolhera: imediatamente lhe deram umacessit. Mas tinha nas veias o veneno do diletantismo: e estava destinado, como dizia Joo daEga, a ser um desses mdicos literrios que inventam doenas de que a humanidade papalva sepresta logo a morrer!

    O av, s vezes, vinha passar uma, duas semanas a Celas. Nos primeiros tempos a suapresena, agradvel aos cavalheiros da partilha de whist, desorganizou o cavaco literrio. Osrapazes mal ousavam estender o brao para o copo da cerveja; e os vossa excelncia isto, vossaexcelncia aquilo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porm, vendo-o aparecer em chinelas e decachimbo na boca, estirar-se na poltrona com ares simptico de patriarca bomio, discutir arte eliteratura, contar anedotas do seu tempo de Inglaterra e de Itlia, comearam a considera-locomo um camarada de barbas brancas. Diante dele j se falava de mulheres e de estroinices.Aquele velho fidalgo, to rico, que lera Michelet e o admirava - chegou mesmo a entusiasmar osdemocratas. E Afonso gozava ali tambm horas felizes, vendo o seu Carlos centro daquelesmoos de estudo, de ideal e de veia.

    Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, s vezes em Paris ou Londres; mas por Nataise Pscoas vinha sempre a Santa Olavia, que o av mais s se entretinha a embelezar com amor.As salas tinham agora soberbos panos de Arraz, paisagens de Rousseau e Daubigny, alguns

    mveis de luxo e de arte. Das janelas a quinta oferecia aspectos nobres de parque ingls: atravsdos macios tabuleiros de relva, davam curvas airosas as ruas areadas: havia mrmores entre as

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    pleurizes, ambos no entrudo: e j se no via tambm mesa a bondosa face do abade, que l jazia sob uma cruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o ano. O Dr. juiz de direito com

    a sua concertina passara para a Relao do Porto; D. Ana Silveira, muito doente, nunca saa; aTerezinha fizera-se uma rapariguinha feia, amarela como uma cidra; o Euzebiosinho, molengoe tristonho, j sem vestgios sequer do seu primeiro amor aos alfarrbios e s letras, ia casar naRgua. S o Dr. delegado, esquecido naquela comarca, estava o mesmo, mais calvo talvez,sempre afvel, amando sempre a pachorrenta Eugnia. E quasi todas as tardes, o velhoTrigueiros se apeava da sua gua branca ao porto para vir cavaquear com o colega.

    As ferias, realmente, s eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seuntimo, o grande Joo da Ega, a quem Afonso da Maia se afeioara muito, por ele e pela suaoriginalidade, e por ser sobrinho de Andr da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitasvezes outrora, hospede tambm em Santa Olavia.

    Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente - ora reprovado,ora perdendo o ano. Sua me, rica, viva e beata, retirada numa quinta ao p de Celorico de

    Basto com uma filha, beata, viva e rica tambm, tinha apenas uma noo vaga do que oJoozinho fizera, todo esse tempo, em Coimbra. O capelo afirmava-lhe que tudo havia deacabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o pap e como o titi: e estapromessa bastava boa senhora, que se ocupava sobretudo da sua doena de entranhas e dosconfortos desse padre Serafim. Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures,longe da quinta, que ele escandalizava com a sua irreligio e as suas faccias herticas.

    Joo da Ega, com efeito, era considerado no s em Celorico, mas tambm na Academiaque ele espantava pela audcia e pelos ditos, como o maior ateu, o maior demagogo, que jamaisaparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por sistema exagerou o seu dio Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes-mdias, o amor livre dasfices do matrimnio, a repartio das terras, o culto de Satans. O esforo da inteligncianeste sentido terminou por lhe influnciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura

    esgrouviada e seca, os plos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidroentalado no olho direito - tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satnico. Desde a suaentrada na Universidade renovara as tradies da antiga Bomia: trazia os rasges da batinacozidos a linha branca; embebedava-se com carrasco; noite, na Ponte, com o brao erguido,atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas

    de quinze anos, filhas de empregados, com quem s vezes ia passar a soire, levando-lhescartuchinhos de doce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o apetecido nas fam lias.

    Carlos escarnecia estes idlios futricas; mas tambm ele terminou por se enredar numepisdio romntico com a mulher dum empregado do governo civil, uma lisboetasinha, que oseduziu pela graa dum corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ela o que a fantasiarafora o luxo, o groom, a gua inglesa de Carlos. Trocaram-se cartas; e ele viveu semanas banhadona poesia spera e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente a rapariga tinha o nome

    brbara de Hermengarda; e os amigos de Carlos, descoberto o segredo, chamavam-lhe j Euricoo presbtero, dirigiam para Celas missivas pelo correio com este nome odioso.

    Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do governo civilpassou junto dele com o filhinho pela mo. Pela primeira vez via to de perto o marido deHermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adorvel, muitogordo, parecendo mais rolio por aquele dia de janeiro sob os agasalhos de l azul,tremelicando nas pobres perninhas roxas de frio, e rindo na clara luz - rindo todo ele, pelos

    olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pai amparava-o; e o encanto, o

    cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos. Era nomomento em que ele lia Michelet - e enchia-lhe a alma a venera o literria da santidadedomestica. Sentiu-se canalha em andar ali de cima do seu dog-cart, a preparar friamente a

    vergonha, e as lgrimas daquele pobre pai to inofensivo no seu palet coado! Nunca maisrespondeu s cartas em que Hermengarda lhe chamava seu ideal. Decerto a rapariga se vingou,

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    Depois comearam a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas sucessivas de livros, outras deinstrumentos e aparelhos, toda uma biblioteca e todo um laboratrio - que trazia o Vilaa,manhs inteiras, aturdido pelos armazns da alfndega.

    - O meu rapaz vem com grandes ideias de trabalho, dizia Afonso aos amigos.Havia catorze meses que ele o no via, o seu rapaz, a no ser numa fotografia mandada

    de Milo, em que todos o acharam magro e triste. E o corao batia-lhe forte, na linda manh deoutono, quando do terrao do Ramalhete, de binculo na mo, viu assomar vagarosamente, portraz do alto prdio fronteiro, um grande paquete do Royal Mail que lhe trazia o seu neto.

    noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o Vilaa - no se fartavamde admirar o bem que a viagem fizera a Carlos. Que diferena da fotografia! Que forte, quesaudvel!

    Era decerto um formoso e magnfico moo, alto, bem feito, de ombros largos, com umatesta de mrmore sob os anis dos cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistiveisolhos do pai, de um negro liquido, ternos como os dele e mais graves. Trazia a barba toda,

    muito fina, castanho-escura, rente na face, aguada no queixo - o que lhe dava, com o bonitobigode arqueado aos cantos da boca, uma fisionomia de belo cavaleiro da Renascena. E o av,cujo olhar risonho e hmido transbordava de emoo, todo se orgulhava de o ver, de o ouvir,

    numa larga veia, falando da viagem, dos belos dias de Roma, do seu mau humor na Prssia, daoriginalidade de Moscovo, das paisagens da Holanda...- E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silncio em que Carlos

    estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu fazer?

    - Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. Descansar primeiro edepois passar a ser uma gloria nacional!

    Ao outro dia, com efeito, Afonso veio encontra-lo na sala de bilhar - onde tinham sidocolocados os caixotes - a despregar, a desempacotar, em mangas de camisa e assobiando com

    entusiasmo. Pelo cho, pelos sofs, alastrava-se toda uma literatura em rimas de volumesgraves; e aqui e alm, por entre a palha, atravs das lonas descosidas, a luz faiscava num cristal,ou reluziam os vernizes, os metais polidos de aparelhos. Afonso pasmava em silncio paraaquele pomposo aparato do saber.

    - E onde vais tu acomodar este museu?Carlos pensara em arranjar um vasto laboratrio ali perto no bairro, com fornos para

    trabalhos qumicos, uma sala disposta para estudos anatmicos e fisiolgicos, a sua biblioteca,os seus aparelhos, uma concentrao metdica de todos os instrumentos de estudo...

    Os olhos do av iluminavam-se ouvindo este plano grandioso.- E que no te prendam questes de dinheiro, Carlos! Ns fizemos nestes ltimos anos de

    Santa Olavia algumas economias...- Boas e grandes palavras, av! Repita-as ao Vilaa.As semanas foram passando nestes planos de instalao. Carlos trazia realmente

    resolues sinceras de trabalho: a cincia como mera ornamentao interior do esprito, maisintil para os outros que as prprias tapearias do seu quarto, parecia-lhe apenas um luxo desolitrio: desejava ser til. Mas as suas ambies flutuavam, intensas e vagas; ora pensava numalarga clnica; ora na composio macia de um livro iniciador; algumas vezes em experinciasfisiolgicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou supunha sentir, o tumulto de uma for a,sem lhe discernir a linha de aplicao. Alguma coisa de brilhante, como ele dizia: e isto paraele, homem de luxo e homem de estudo, significava um conjunto de representao social e deactividade cientfica; o remexer profundo de ideias entre as influncias delicadas da riqueza; oselevados vagares da filosofia entremeados com requintes de sport e de gosto; um Claude

    Bernard que fosse tambm um Morny... No fundo era um diletante.Vilaa fora consultado sobre a localidade prpria para o laboratrio; e o procurador, muito

    lisongeado, jurou uma diligncia incansvel. Primeira coisa a saber, o nosso doutor tencionavafazer clnica?...

    Carlos no decidira fazer exclusivamente clnica: mas desejava de certo dar consultas,

    mesmo gratuitas, como caridade e como pratica. Ento Vilaa sugeriu que o consultrioestivesse separado do laboratrio.

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    - E a minha razo esta: a vista de aparelhos, mquinas, coisas, faz esmorecer os doentes...- Tem voc razo, Vilaa! exclamou Afonso. J meu pai dizia: poupe-se ao boi a vista do

    malho.

    - Separados, separados, meu senhor, afirmou o procurador num tom profundo.Carlos concordou. E Vilaa bem depressa descobriu, para o laboratrio, um antigo

    armazm, vasto e retirado, ao fundo de um ptio, junto ao largo das Necessidades.- E o consultrio, meu senhor, no aqui, nem acol; no Rossio, ali em pleno Rossio!Esta ideia do Vilaa no era desinteressada. Grande entusiasta da Fuso, membro do

    Centro progressista, Vilaa Junior aspirava a ser vereador da cmara, e mesmo em dias desatisfao superior (como quando o seu aniversario natalcio vinha anunciado no Ilustrado, ouquando no Centro citava com aplauso a Blgica) parecia-lhe que tantas aptides mereciam doseu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultrio gratuito, no Rossio, o consultrio do Dr.Maia, do seu Maia reluziu-lhe logo vagamente como um elemento de influncia. E tanto seagitou, que da a dois dias tinha l alugado um primeiro andar de esquina.

    Carlos mobilou-o com luxo. Numa antecmara, guarnecida de banquetas de marroquim,devia estacionar, francesa, um criado de libr. A sala de espera dos doentes alegrava com oseu papel verde de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Rouen, quadros de muita cor, e

    ricas poltronas cercando a jardineira coberta de coleces do Charivari, de vistasestereoscpicas, de lbuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente o ar triste deconsultrio at um piano mostrava o seu teclado branco.

    O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em veludo verde-negro,

    com estantes de pau preto. Alguns amigos que comeavam a cercar Carlos, Taveira, seucontemporneo e agora vizinho do Ramalhete, o Cruges, o marqus de Souzelas, com quempercorrera a Itlia - vieram ver estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominvel; Taveira absorveu-se nas fotografias de actrizes; e a nica aprovao franca veiodo marqus, que depois de contemplar o div do gabinete, verdadeiro mvel de serralho, vasto,voluptuoso, fofo, experimentou-lhe a doura das molas e disse, piscando o olho a Carlos:

    - A calhar.

    No pareciam acreditar nestes preparativos. E todavia eram sinceros. Carlos at fizera

    anunciar o consultrio nos jornais; quando viu porem o seu nome em letras grossas, entre o deuma engomadeira Boa Hora e um reclamo de casa de hospedes, - encarregou Vilaa de retiraro anuncio.

    Ocupava-se ento mais do laboratrio, que decidira instalar no armazm, s Necessidades.Todas as manhs, antes de almoo, ia visitar as obras. Entrava-se por um grande ptio, ondeuma bela sombra cobria um poo, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que aprendiam ao muro. Carlos j decidira transformar aquele espao em fresco jardinete ingls; e aporta do casaro encantava-o, ogival e nobre, resto de fachada de ermida, fazendo um acessovenervel para o seu sancturio de cincia. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim;sempre um vago martelar preguioso numa poeira alvadia; sempre as mesmas coifas deferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um carpinteiro esgrouviado e tristeparecia estar ali, desde sculos, aplainando uma tbua eterna com uma fadiga langorosa; e notelhado os trabalhadores que andavam alargando a clarabia, no cessavam de assobiar, no solde inverno, alguma lamria de fado.

    Carlos queixava-se ao Sr. Vicente, o mestre de obras, que lhe asseverava invariavelmentecomo da a dois dias havia de s. Ex. ver a diferena. Era um homem de meia idade, risonho,de falar doce, muito barbeado, muito lavado, que morava ao p do Ramalhete, e tinha no bairrofama de republicano. Carlos, por simpatia, como visinho, apertava-lhe sempre a mo: e o Sr.Vicente, considerando-o por isso um avanado, um democrata, confiava-lhe as suasesperanas. O que ele desejava primeiro que tudo era um 93, como em Frana...

    - O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada e rolia face do demagogo.- No, senhor, um navio, um simples navio...- Um navio?

    - Sim, senhor, um navio fretado custa da nao, em que se mandasse pela barra fora o rei,a famlia real, a cambada dos ministros, dos polticos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.

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    Carlos sorria, s vezes argumentava com ele.- Mas est o Sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada, como to exactamente diz,

    desaparecesse pela barra fora, ficavam resolvidas todas as coisas e tudo atolado em felicidade?

    No, o Sr. Vicente no era to burro que assim pensasse. Mas, suprimida a cambada, novia s. Ex.? Ficava o pas desatravancado; e podiam ento comear a governar os homens desaber e de progresso...

    - Sabe V. Ex. qual o nosso mal? No m vontade dessa gente; muita soma deignorncia. No sabem. No sabem nada. Eles no so maus, mas so umas cavalgaduras!

    - Bem, ento essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando o relgio e despedindo-sedele com um valente shake hands, veja se me andam. No lho peo como proprietrio, comocorreligionrio.

    - Daqui a dois dias h de V. Ex. ver a diferena, respondia o mestre de obras,desbarretando-se.

    No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoo. Carlos encontravaquasi sempre o av j na sala de jantar, acabando de percorrer algum jornal junto ao fogo,onde a tpida suavidade daquele fim de outono no permitia acender lume, mas verdejandotodo de plantas de estufa.

    Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no seu luxomacio e sbrio, as baixelas antigas; pelas tapearias ovais dos muros apainelados corriam cenasde balada, caadores medievais soltando o falco, uma dama entre pajens alimentando os cisnesde um lago, um cavaleiro de viseira calada seguindo ao longo dum rio; e contrastando com o

    tecto escuro de castanho entalhado a mesa resplandecia com as flores entre os cristais.O reverendo Bonifcio, que desde que se tornara dignitrio da igreja comia com os

    senhores, l estava j, majestosamente sentado sobre a alvura nevada da toalha, sombra dealgum grande ramo. Era ali, no aroma das rosas, que o venervel gato gostava de lamber, com oseu vagar estpido, as sopas deleite servidas num covilhete de Strasburgo, depois agachava-se,traava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos,todo ele uma bola entufada de pelo branco malhado de ouro, gozava de leve uma sesta macia.

    Afonso, - como confessava, sorrindo e humilhado - a-se tornando com a velhice um

    gourmet exigente; e acolhia, com uma concentrao de crtico, as obras de arte do chef francsque tinham agora, um cavalheiro de mau gnio, todo bonapartista, muito parecido com oimperador, e que se chamava Mr. Teodore. Os almoos no Ramalhete eram sempre delicados elongos; depois, ao caf, ficavam ainda conversando; e passava da uma hora, da hora e meia,quando Carlos, com uma exclamao, precipitando-se sobre o relgio, se lembrava do seuconsultrio. Bebia um clice de Chartreuse, acendia pressa um charuto:

    - Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.E o av, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquela ocupao, enquanto ele

    ficava ali a vadiar toda a manh...- Quando esse eterno laboratrio estiver acabado, talvez v para l passar um bocado,

    ocupar-me de qumica.- E ser talvez um grande qumico. O av tem j a feitio.O velho sorria.

    - Esta carcaa j no d nada, filho. Est pedindo eternidade!- Quer alguma coisa da Baixa, de Babilnia? perguntava Carlos, abotoando pressa as suas

    luvas de governar.

    - Bom dia de trabalho.- Pouco provvel...E no dog-cart, com aquela linda gua, a Tunante ou no faeton com que maravilhava

    Lisboa, Carlos l partia em grande estilo para a Baixa, para o trabalho.O seu gabinete, no consultrio, dormia numa paz tpida entre os espessos veludos escuros,

    na penumbra que faziam as estores de seda verde corridas. Na sala, porm, as trs janelasabertas bebiam farta a luz; tudo ali parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira

    estendiam os seus braos, amveis e convidativas; o teclado branco do piano ria e esperava,tendo abertas por cima as Canes de Gounod; mas no aparecia jamais um doente. E Carlos, -

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    exactamente como o criado que, na ociosidade da antecmara, dormitava sobre o Dirio deNoticias, acaapado na banqueta - acendia um cigarro Laferme, tomava uma Revista, eestendia-se no div. A prosa porm dos artigos estava como embebida do tdio moroso dogabinete: bem depressa bocejava, deixava cair o volume.

    Do Rossio, o rudo das carroas, os gritos errantes de preges, o rolar dos Americanos,subiam, numa vibrao mais clara, por aquele ar fino de novembro: uma luz macia,escorregando docemente do azul ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as copas

    mesquinhas das rvores de municpio, a gente vadiando pelos bancos: e essa susurrao lentade cidade preguiosa, esse ar validado de clima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouconaquele abafado gabinete e resvalando pelos veludos pesados, pelo verniz dos mveis,envolver Carlos numa indolncia e numa dormncia... Com a cabea na almofada, fumando, alificava, nessa quietao de sesta, num cismar que se a desprendendo, vago e tnue, como otnue e leve fumo que se eleva duma braseira meia apagada; at que com um esforo sacudiaeste torpor, passeava na sala, abria aqui e alm pelas estantes um livro, tocava no piano doiscompassos de valsa, espreguiava-se - e, com os olhos nas flores do tapete, terminava pordecidir que aquelas duas horas de consultrio eram estpidas!

    - Est a o carro? a perguntar ao criado.

    Acendia bem depressa outro charuto, calava as luvas, descia, bebia um largo sorvo de luze ar, tomava as guias e largava, murmurando consigo:- Dia perdido!

    Foi uma dessas manhs que preguiando assim no sof com a Revista dos Dois Mundos namo, ele ouviu um rumor na antecmara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, quedizia por trs do reposteiro:

    - Sua Alteza Real est visvel?- Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do sof.E caram nos braos um do outro, beijando-se na face, enternecidos.- Quando chegaste tu?

    - Esta manh. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos ombros, o seuquadrado de vidro, e entalando-o enfim no olho. Caramba! Tu vens esplndido desses Londres,

    dessas civilizaes superiores. Ests com um ar Renascena, um ar Valois... No h nada como abarba toda!

    Carlos ria, abraando-o outra vez.- E de onde vens tu, de Celorico?

    - Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O fgado, o bao, uma infinidade devsceras comprometidas. Enfim, doze anos de vinhos e guas ardentes...

    Depois falaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa... Egavinha para sempre. Tinha dito do alto da diligncia, s vrzeas de Celorico, o adeus deeternidade.

    - Imagina tu, Carlos, amigo, a histria deliciosa que me sucede com minha me... Depois deCoimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com unsdinheiros largos. Qual, no caiu! Fiquei na quinta, fazendo epigramas ao padre Serafim e a todaa corte do cu. Chega julho, e aparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creioque vocs lhe chamam diftricas... A mam salta imediatamente concluso que a minhapresena, a presena do ateu, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que ofendeu Nosso Senhore atraiu o flagelo. Minha irm concorda. Consultam o padre Serafim. O homem, que no gostade me ver na quinta, diz que possvel que haja indignao do Senhor - e minha me vempedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arrune, mas queno esteja ali chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...

    - E a epidemia...

    - Desapareceu logo, disse o Ega, comeando a puxar devagar dos dedos magros uma longaluva cor de canrio.

    Carlos mirava aquelas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o cabelo que ele trazia

    crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de cetim uma ferradura de opalas! Era

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    outro Ega, um Ega dndi, vistoso, paramentado, artificial e com p de arroz - e Carlos deixouenfim escapar a exclamao impaciente que lhe bailava nos lbios:

    - Ega, que extraordinrio casaco!Por aquele sol macio e morno de um fim de outono portugus, o Ega, o antigo bomio de

    batina esfarrapada, trazia uma pelia, uma sumptuosa pelia de prncipe russo, agasalho detren e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados Brandeburgo, e pondo-lhe em tornodo pescoo esganiado e dos pulsos de fsico uma rica e fofa espessura de peles de marta.

    - uma boa pelia, hein? disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exibindo a opulncia doforro. Mandei-a vir pelo Strauss... Benefcios da epidemia.

    - Como podes tu suportar isso?- um bocado pesada, mas tenho andado constipado.Tornou a recostar-se no sof, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monculo

    no olho, examinou o gabinete.

    - E tu que fazes? conta-me l... Tens isto esplndido!Carlos falou dos seus planos, de altas ideias de trabalho, das obras do laboratrio...- Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega interrompendo-o, erguendo-se

    para ir apalpar o veludo dos reposteiros, mirar os torneados da secretria de pau preto.

    - No sei. O Vilaa que deve saber...E Ega, com as mos enterradas nos vastos bolsos da pelia, inventariando o gabinete, faziaconsideraes:

    - O veludo d seriedade... E o verde escuro a cor suprema, a cor esttica... Tem a suaexpresso prpria, enternece e faz pensar... Gosto deste div. Mvel de amor...

    Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho, estudando os ornatos.

    - Tu s o grandioso Salomo, Carlos! O papel bonito... E o cretonesinho agrada-me.Apalpou-o tambm. Uma begnia, manchada da sua ferrugem de prata, num vaso de

    Rouen, interessou-o. Queria saber o preo de tudo; e diante do piano, olhando o livro de msicaaberto, as Canes de Gounod, teve uma surpresa enternecida:

    - Homem, curioso... C me aparece! A Barcarola! deliciosa, hein?...Dites, la jeune belle,

    Ou voulez-vous aller?La voile...

    Estou um bocado rouco... Era a nossa cano na Foz!Carlos teve outra exclamao, e cruzando os braos diante dele:- Tu ests extraordinrio, Ega! Tu s outro Ega!... A propsito da Foz... Quem essa

    Madame Cohen, que estava tambm na Foz, de quem tu, em cartas sucessivas, verdadeirospoemas, que recebi em Berlim, na Haia, em Londres, me falavas como os arroubos do C nticodos Cnticos?

    Um leve rubor subiu s faces do Ega. E limpando negligentemente o monculo ao leno deseda branca:

    - Uma judia. Por isso usei o lirismo bblico. a mulher do Cohen, hs-de conhecer, um que director do Banco Nacional... Demos-nos bastante. simptica... Mas o marido uma besta...Foi uma flitartion de praia. Voila tout.

    Isto era dito aos bocados, passeando, puxando o lume ao charuto, e ainda corado.

    - Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocs no Ramalhete? O av Afonso? Quem vaipor l?...

    No Ramalhete, o av fazia o seu whist com os velhos parceiros. Ia o D. Diogo, o decrpitoleo, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes... Ia o Sequeira, cada vez maisatarracado, a estoirar de sangue, espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken...

    - No conheo. Refugiado?... Polaco?...- No, ministro da Finlndia... Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou esta simples

    transaco com tantas finuras diplomticas, tantos documentos, tantas coisas com o selo real daFinlndia, que o pobre Vilaa aturdido, para se desembaraar, remeteu-o ao av. O av,

    desnorteado tambm, ofereceu-lhe as cocheiras de graa. Steinbroken considera isto um servio

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    feito ao rei da Finlndia, Finlndia, vai visitar o av, em grande estado, com o secretario dalegao, o cnsul, o vice-cnsul...

    - Isso sublime!- O av convida-o a jantar... E como o homem muito fino, um gentleman, entusiasta da

    Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma autoridade no whist, o av adopta-o. No sai doRamalhete.

    - E de rapazes?

    De rapazes, aparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no Tribunal deContas: um Cruges, que o Ega no conhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com umapontinha de gnio; o marqus de Souzelas...

    - No h mulheres?- No h quem as receba. um covil de solteires. A viscondessa, coitada...- Bem sei. Um apoplet...- Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos tambm o Silveirinha, chegou-nos ultimamente

    o Silveirinha...

    - O de Resende, o cretino?- O cretino. Enviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado fsico, todo carregado de luto...

    Um fnebre.O Ega, repoltreado, com aquele ar de tranquila e slida felicidade que Carlos j notara,disse puxando lentamente os punhos:

    - necessrio reorganizar essa vida. Precisamos arranjar um cenculo, uma bomiasinhadourada, umas soires de inverno, com arte, com literatura... Tu conheces o Craft?

    - Sim, creio que tenho ouvido falar...

    Ega teve um grande gesto. Era indispensvel conhecer o Craft! O Craft era simplesmente amelhor coisa que havia em Portugal...

    - um ingls, uma espcie de doido?...Ega encolheu os ombros. Um doido!... Sim, era essa a opinio da rua dos Fanqueiros; o

    indgena, vendo uma originalidade to forte como a de Craft, no podia explica-la seno peladoidice. O Craft era um rapaz extraordinrio!... Agora tinha ele chegado da Sucia, de passar

    trs meses com os estudantes de Upsala. Estava tambm na Foz... Uma individualidade deprimeira ordem!

    - um negociante do Porto, no ?- Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face, enojado de

    tanta ignorncia. O Craft filho dum clergiman da igreja inglesa do Porto. Foi um tio, umnegociante de Calcut ou de Austrlia, um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grandefortuna. Mas no negocia, nem sabe o que isso . D largas ao seu temperamento byroneano, oque faz. Tem viajado por todo o universo, colecciona obras de arte, bateu-se como voluntrio naAbissnia e em Marrocos, enfim vive, vive na grande, na forte, na herica acepo da palavra. necessrio conhecer o Craft. Vais-te babar por ele... Tens razo, caramba, est calor.

    Desembaraou-se da opulenta pelia, e apareceu em peitilho de camisa.- O que! tu no trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem colete?- No; ento no a podia aguentar... Isto para o efeito moral, para impressionar o

    indgena... Mas, no h nega-lo, pesada!E imediatamente voltou sua ideia: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se,

    organizava-se um Cenculo, um Decameron de arte e diletantismo, rapazes e mulheres - trs ouquatro mulheres para cortarem, com a graa dos decotes, a severidade das filosofias...

    Carlos ria-se desta ideia do Ega. Trs mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornarum cenaculo! Lamentvel iluso de um homem de Celorico! O marqus de Souzela tinhatentado, e para uma vez s, uma coisa bem mais simples - um jantar no campo com actrizes.Pois fora o escndalo mais engraado e mais caracterstico: uma no tinha criada e queria levarconsigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia que, aceitando, o brasileiro lhe tirasse a

    mesada; uma consentiu, mas o amante, quando soube, deu-lhe uma coa. Esta no tinha vestido

    para ir; aquela pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalizou com oconvite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos, os pulhas, complicaram

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    medonhamente a questo; uns exigiam ser convidados, outros tentavam desmanchar a festa;houve partidos, fizeram-se intrigas, - enfim esta coisa banal, um jantar com actrizes, resultou emo Tarqunio do Ginsio levar uma facada...

    - E aqui tens tu Lisboa.- Enfim, exclamou o Ega, se no aparecerem mulheres, importam-se, que em Portugal

    para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos,

    estticas, cincias, estilo, indstrias, modas, maneiras, pilhrias, tudo nos vem em caixotes pelopaquete. A civilizao custa-nos carssima com os direitos da alfndega: e em segunda mo,no foi feita para ns, fica-nos curta nas mangas... Ns julgamo-nos civilizados como os negrosde S. Tom se supem cavalheiros, se supem mesmo brancos, por usarem com a tanga umacasaca velha do patro... Isto uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?

    Desembaraado da majestade que lhe dava a pelia o antigo Ega reaparecia, perorandocom os seus gestos aduncos de Mefistfeles em verve, lanando-se pela sala como se fosse voarao vibrar as suas grandes frases, numa luta constante com o monculo, que lhe caa do olho,que ele procurava pelo peito, pelos ombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como

    mordido por bichos. Carlos animava-se tambm, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo,Gambeta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e uma, malharam sobre o pas...

    Mas o relgio ao lado bateu quatro horas; imediatamente Ega saltou sobre a pelia,sepultou-se nela, aguou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraado nos seusalamares, saiu com um arzinho de luxo e de aventura.

    - John, disse Carlos que o achava esplndido e o ia seguindo ao patamar, onde ests tu?- No Universal, esse santurio!Carlos abominava o Universal, queria que ele viesse para o Ramalhete.

    - No me convm...- Em todo o caso vais hoje l jantar, ver o av.- No posso. Estou comprometido com a besta do Cohen... Mas vou l amanh almoar.

    J nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monculo, gritou para cima:- Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!

    - O qu! est pronto? exclamou Carlos, espantado.

    - Est esboado, brocha larga...O Livro do Ega! Fora em Coimbra, nos dois ltimos anos, que ele comeara a falar do seu

    livro, contando o plano, soltando ttulos de captulos, citando pelos cafs frases de grandesonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se j o livro do Ega como devendo iniciar, pelaforma e pela ideia, uma evoluo literria. Em Lisboa (onde ele vinha passar as ferias e davaceias no Silva) o livro fora anunciado como um acontecimento. Bacharis, contemporneos ouseus condiscpulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas provncias e pelas ilhas a famado livro do Ega. J de qualquer modo essa noticia chegara ao Brasil... E sentindo esta ansiosaexpectativa em torno do seu livro - o Ega decidira-se enfim a escrev-lo.

    Devia ser uma epopeia em prosa, como ele dizia, dando, sob episdios simblicos, ahistria das grandes fases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memrias dum tomo,e tinha a forma duma autobiografia. Este tomo (o tomo do Ega, como se lhe chamava a srioem Coimbra) aparecia no primeiro captulo, rolando ainda no vago das Nebulosas primitivas:depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra:

    enfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda mole do globo. Desdeento, viajando nas incessantes transformaes da substncia, o tomo do Ega entrava na rudeestrutura do Orango, pai da humanidade - e mais tarde vivia nos lbios de Plato. Negrejava no

    burel dos santos, refulgia na espada dos heris, palpitava no corao dos poetas. Gota de guanos lagos de Galileia, ouvira o falar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apstolos recolhiamas redes; n de madeira na tribuna da Conveno, sentira o frio da mo de Robespierre. Erraranos vastos anis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-no orvalhado, ptalaresplandecente de um dormente e lnguido lrio. Fora omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da pena do Ega, e cansado desta jornada atravs do Ser, repousava -

    escrevendo as suas Memrias... Tal era este formidvel trabalho - de que os admiradores doEga, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:

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    - uma Bblia!

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