OS MAIAS - CAP VI

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  • 8/14/2019 OS MAIAS - CAP VI

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    OS MAIAS

    Captulo VI

    Carlos, nessa manh, ia visitar de surpresa a casa do Ega, a famosa Vila Balzac, que essefantasista andara meditando e dispondo desde a sua chegada a Lisboa, e onde se tinha enfim

    instalado.

    Ega dera-lhe esta denominao literria, pelos mesmos motivos porque a alugara numsubrbio longnquo, na solido da Penha de Frana, - para que o nome de Balzac, seupadroeiro, o silncio campestre, os ares limpos, tudo ali fosse favorvel ao estudo, s horas dearte e de ideal. Por que ia fechar-se l, como num claustro de letras, a findar as Memrias dumtomo! Somente, por causa das distncias, tinha tomado ao ms um coup da companhia.

    Carlos teve dificuldades em encontrar a Vila Balzac: no era, como tinha dito Ega no

    Ramalhete, logo adiante do largo da Graa um chaletsinho retirado, fresco, assombreado,sorrindo entre rvores. Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depois penetrava-senuma vereda larga, entre quintais, descendo pelo pendor da colina, mas acessvel a carruagens;e a, num recanto, ladeada de muros, aparecia enfim uma casota de paredes enxovalhadas, comdois degraus de pedra porta, e transparentes novos dum escarlate estridente.

    Nessa manh, porm, debalde Carlos deu puxes desesperados corda da campainha,martelou a aldraba da porta, gritou a toda a voz por cima do muro do quintal e das copas das

    rvores o nome do Ega: - a Vila Balzac permaneceu muda, como desabitada, no seu retirorstico. E todavia pareceu a Carlos que, justamente antes de bater, ouvira o estalar de rolhas deChampagne.

    Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado com os criados, que assimabandonavam a casa, lhe davam um ar suspeito de Torre de Nesle...

    - Vai l amanh, se ningum responder, escala as janelas, pega fogo ao prdio, como sefossem apenas as Tulherias.

    Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, j a Vila Balzac o esperava, toda em festa: porta o pajem, um garoto de feies horrivelmente viciosas, perfilava-se na sua jaqueta azulde botes de metal, com uma gravata muito branca e muito tesa; as duas janelas em cima,abertas, mostrando o reps verde das bambinelas, bebiam larga todo o ar do campo e o sol deinverno: e no topo da estreita escada, tapetada de vermelho, Ega, num prodigioso robe-de-chambre, de um estofo adamascado do sculo dezoito, vestido de corte de alguma das suasavs, exclamou dobrando a fronte ao cho:

    - Bem vindo, meu prncipe, ao humilde tugrio do filsofo!Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro de reps verde, dum verde feio e triste, e

    introduziu o prncipe na sala onde tudo era verde tambm: o reps que recobria uma mobliade nogueira, o tecto de tabuado, as listas verticais do papel da parede, o pano franjado da mesa,e o reflexo dum espelho redondo, inclinado sobre o sof.

    No havia um quadro, uma flor, um ornato, um livro - apenas sobre a jardineira umaestatueta de Napoleo I, de p, equilibrado sobre o orbe terrestre, nessa conhecida atitude emque o heri, com um ar panudo e fatal, esconde uma das mos por traz das costas, e enterra aoutra nas profundidades do seu colete. Ao lado uma garrafa de Champagne, encarapuada depapel dourado, esperava entre dois copos esguios.

    - Para que tens tu aqui Napoleo, John?- Como alvo de injurias, disse Ega. Exercito-me sobre ele a falar dos tiranos...Esfregou as mos, radiante. Estava nessa manh em alegria e em verve. E quis

    imediatamente mostrar a Carlos o seu quarto de cama: a reinava um cretone de ramagensalvadias sobre fundo vermelho; e o leito enchia, esmagava tudo. Parecia ser o motivo, o centroda Vila Balzac; e nele se esgotara a imaginao artstica do Ega. Era de madeira, baixo como

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    um div, com a barra alta, um roda-p de renda, e de ambos os lados um luxo de tapetes defelpo escarlate; um largo cortinado de seda da ndia avermelhada envolvia-o num aparato detabernculo; e dentro, cabeceira, como num lupanar, reluzia um espelho.

    Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse o espelho. Ega deu a todo o leito umolhar silencioso e doce, e disse depois do passar uma pontinha de l ngua pelo beio:

    - Tem seu chic...

    Sobre a mesinha de cabeceira erguia-se um monto de livros: a Educao de Spencer aolado de Beaudelaire, a Lgica de Stuart Mil por cima do Cavaleiro da Casa Vermelha. Nomrmore da cmoda havia outra garrafa de Champagne entre dois copos; o toucador, umpouco em desordem, mostrava uma enorme caixa de p de arroz no meio de plastrons egravatas brancas do Ega, e um mao de ganchos do cabelo ao lado de ferros de frisar.

    - E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande arte?- Ali! disse o Ega, alegremente, apontando para o leito.

    Mas foi mostrar logo o seu recantosinho estudioso, formado por um biombo, ao lado da

    janela, e tomado todo por uma mesa de p de galo, onde Carlos assombrado descobriu, entre obelo papel de cartas do Ega, um Dicionrio de Rimas...

    E a visita casa continuou.

    Na sala de jantar, quasi nua, caiada de amarelo, um armrio de pinho envidraadoabrigava melancolicamente um servio barato de loua nova; e do fecho da janela pendia umvesturio vermelho, que parecia roupo de mulher.

    - sbrio e simples - exclamou o Ega - como compete quele que se alimenta duma cdeade Ideal e duas garfadas de Filosofia. Agora, cozinha!...

    Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas janelas abertas; e entreviam-se

    rvores de quintal, um verde de terrenos vagos, depois l em baixo o branco de casariasrebrilhando ao sol; uma rapariga muito sardenta e muito forte sacudiu o gato do colo, ergueu-

    se, com o Jornal de Noticias na mo. Ega apresentou-a, num tom de farsa:- A Sr. Josefa, solteira, de temperamento sanguneo, artista culinria da Vila Balzac, e

    como se pode observar pelo papel que lhe pende das garras, cultora das boas letras!

    A moa sorria, sem embarao, habituada de certo a estas familiaridades bomias.

    - Eu hoje no janto c, senhora Josefa, continuava o Ega no mesmo tom. Este formosomancebo que me acompanha, duque do Ramalhete, e prncipe de Santa Olavia, d hoje depapar ao seu amigo e filsofo... E, como quando eu recolher, talvez a senhora Josefa estejaentregue ao sono da inocncia, ou viglia da devassido, aqui lhe ordeno que me tenhaamanh para meu lunch duas formosas perdizes.

    E subitamente, numa outra voz, com um olhar que ela devia perceber:

    - Duas perdisesinhas bem assadas e bem coradinhas. Frias, est claro... O costume.Travou do brao de Carlos, voltaram sala.- Com franqueza, Carlos, que te parece a Vila Balzac?Carlos respondeu como a respeito do episdio da Hebrea:- Est ardente.Mas elogiou o asseio, a vista da casa e a frescura dos cretones. De resto, para um rapaz,

    para uma cela de trabalho...

    - Eu, dizia o Ega, passeando pela sala, com as mos enterradas nos bolsos do seuprodigioso robe de chambre, eu no tolero o bibelot, o bric--brac, a cadeira arqueolgica, essasmoblias de arte... Que diabo, o mvel deve estar em harmonia com a ideia e o sentir do homemque o usa! Eu no penso, nem sinto como um cavaleiro do sculo XVI, para que me hei decercar de coisas do sculo XVI? No h nada que me faa tanta melancolia, como ver numa salaum venervel contador do tempo de Francisco I recebendo pela face conversas sobre eleies ealtas de fundos. Faz-me o efeito dum belo heri de armadura de ao, viseira cada e crenasprofundas no peito, sentado a uma mesa de voltarete a jogar copas. Cada sculo tem o seu gnioprprio e a sua atitude prpria. O sculo XIX concebeu a Democracia e a sua atitude esta... - Eenterrando-se de estalo numa poltrona, espetou as pernas magras para o ar. - Ora esta atitude

    impossvel num escabelo do tempo do Prior do Crato. Menino, toca a beber o Champagne.E como Carlos olhava a garrafa desconfiado, Ega acudiu:

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    - excelente, que pensas tu? Vem directamente da melhor casa de Epernay, arranjou-mo oJacob.

    - Que Jacob?

    - O Jacob Cohen, o Jacob.Ia cortar as guitas da rolha, quando o atravessou uma sbita recordao, e pousando a

    garrafa outra vez, entalando o monculo no olho:- verdade! Ento, noutro dia, que tal, em casa dos Gouvarinhos? Eu infelizmente no

    pde ir.Carlos contou a soire. Havia dez pessoas, espalhadas pelas duas salas, num zum-zum

    dormente, meia luz dos candeeiros. O conde maara-o indiscretamente com a poltica,admiraes idiotas por um grande orador, um deputado de Meso Frio, e explicaes sem fimsobre a reforma da instruo. A condessa, que estava muito constipada, horrorizou-o, dandosobre a Inglaterra, apesar de inglesa, as opinies da rua de Cedofeita. Imaginava que aInglaterra um pas sem poetas, sem artistas, sem ideais, ocupando-se s de amontoar libras...Enfim, secara-se.

    - Que diabo! murmurou o Ega num tom de viva desconsolao.A rolha estalou, ele encheu os copos em silncio; e numa sade muda os dois amigos

    beberam o Champagne - que Jacob arranjara ao Ega, para o Ega se regalar com Rachel.Depois, de p, com os olhos no tapete, agitando de vagar o copo novamente cheio onde a

    espuma morria, Ega tornou a murmurar, naquela entoao triste de inesperadodesapontamento:

    - Que ferro!...E aps um momento:- Pois menino, pensei que a Gouvarinho te apetecia...Carlos confessou que nos primeiros dias, quando Ega lhe falara dela, tivera um

    caprichosinho, interessara-se por aqueles cabelos cor de brasa...- Mas agora, mal a conheci, o capricho foi-se...

    Ega sentara-se, com o copo na mo; e depois de contemplar algum tempo as suas meias deseda, escarlates como as dum prelado, deixou cair, muito srio, estas palavras:

    - uma mulher deliciosa, Carlinhos.E, como Carlos encolhia os ombros, Ega insistiu: a Gouvarinho era uma senhora de

    inteligncia e de gosto; tinha originalidade, tinha audcia, uma pontinha de romantismo muitopicante...

    - E, como corpinho de mulher, no h melhor que aquilo de Badajoz para c!- Vai-te da, Mefistfeles de Celorico!E Ega, divertido, cantarolou:

    Je suis Mefisto...

    Je suis Mefisto...Carlos no entanto, fumando preguiosamente, continuava a falar na Gouvarinho e nessa

    brusca saciedade que o invadira, mal trocara com ela trs palavras numa sala. E no era aprimeira vez que tinha destes falsos arranques de desejo, vindo quasi com as formas do amor,

    ameaando absorver, pelo menos por algum tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em tdio,em seca. Eram como os fogachos de plvora sobre uma pedra; uma fagulha ateia-os, nummomento tornam-se chama veemente que parece que vai consumir o Universo, e por fim fazemapenas um rastro negro que suja a pedra. Seria o seu um desses coraes de fraco, moles eflcidas, que no podem conservar um sentimento, o deixam fugir, escoar-se pelas malhas laasdo tecido reles?

    - Sou um ressequido! disse ele sorrindo. Sou um impotente de sentimento, como Satans...Segundo os padres da igreja, a grande tortura de Satans que no pode amar...

    - Que frases essas, menino! murmurou Ega.Como frases? Era uma atroz realidade! Passava a vida a ver as paixes falharem-lhe nas

    mos como fsforos. Por exemplo, com a coronela de hussards em Viena! Quando ela faltou ao

    primeiro rendez-vous, chorara lgrimas como punhos, com a cabea enterrada no travesseiro eaos coices roupa. E da a duas semanas, mandava postar o Baptista janela do hotel, para ele

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    se safar, mal a pobre coronela dobrasse a esquina! E com a holandesa, com Madame Rughel,

    pior ainda. Nos primeiros dias foi uma insensatez: queria-se estabelecer para sempre naHolanda, casar com ela (apenas ela se divorciasse), outras loucuras; depois os braos que ela lhedeitava ao pescoo, e que lindos braos, pareciam-lhe pesados como chumbo...

    - Passa fora, pedante! E ainda lhe escreves! gritou Ega.

    - Isso outra coisa. Ficamos amigos, puras relaes de inteligncia. Madame Rughel umamulher de muito esprito. Escreveu um romance, um desses estudos ntimos e delicados, comoos de Miss Brougton: chama-se as Rosas Murchas. Eu nunca li, em holands...

    - As Rosas Murchas! em holands! exclamou Ega apertando as mos na cabea.Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monculo no olho:- Tu s extraordinrio, menino!... Mas o teu caso simples, o caso de D. Juan. D. Juan

    tambm tinha essas alternaes de chama e cinza. Andava busca do seu ideal, da sua mulher,procurando-a principalmente, como de justia, entre as mulheres dos outros. E aprs avoircouch, declarava que se tinha enganado, que no era aquela. Pedia desculpa e retirava-se. EmEspanha experimentou assim mil e trs. Tu s simplesmente, como ele, um devasso; e hs-de vira acabar desgraadamente como ele, numa tragdia infernal!

    Esvaziou outro copo de Champagne, e a grandes passadas pela sala:

    - Carlinhos da minha alma, intil que ningum ande busca da sua mulher. Ela vir.Cada um tem a sua mulher, e necessariamente tem de a encontrar. Tu ests aqui, na Cruz dosQuatro Caminhos, ela est talvez em Pekin: mas tu, a a raspar o meu reps com o verniz dossapatos, e ela a orar no templo de Confcio, estais ambos insensivelmente, irresistivelmente,fatalmente, marchando um para o outro!... Estou eloquentssimo hoje, e temos dito coisasidiotas. Toca a vestir. E, em quanto eu adorno a carcassa, prepara mais frases sobre Satans!

    Carlos ficou na sala verde, acabando o charuto - em quanto dentro o Ega batia com asgavetas, lanando, a todo o desafinado da sua voz roufenha, a Barcarola de Gounod. Quandoapareceu, vinha de casaca, gravata branca, enfiando o palet - com o olho brilhante doChampagne.

    Desceram. O pajem l estava porta perfilado, ao p do coup de Carlos, que esperara. E asua fardeta azul de botes amarelos, a magnfica parelha baa reluzindo como um cetim vivo, as

    pratas dos arreios, a majestade do cocheiro louro com o seu ramo na libr, tudo ali fazia, juntoda Vila Balzac, um quadro rico que deleitou o Ega.

    - A vida agradvel, disse ele.O coup partiu, ia entrar no largo da Graa, quando uma caleche de praa, aberta, o cruzou

    a largo trote. Dentro um sujeito de chapu baixo ialendo um grande jornal.

    - o Craft! gritou Ega, debruando-se pela portinhola.O coup parou. Ega de um pulo estava na calada, correndo, bradando:- Oh Craft! oh Craft!Quando, da a um momento, sentiu duas vozes aproximarem-se, Carlos desceu tambm do

    coup, achou-se em face dum homem baixo, louro, de pele rosada e fresca, e aparncia fria. Sobo fraque correcto percebia-se-lhe uma musculatura de atleta.

    - O Carlos, o Craft, gritou o Ega, lanando esta apresentao com uma simplicidadeclssica.

    Os dois homens, sorrindo, tinham-se apertado a mo. E Ega insistia para que voltassemtodos Vila Balzac, fossem beber a outra garrafa de Champagne, a celebrar o advento do Justo!Craft recusou, com o seu modo calmo e plcido; chegara na vspera do Porto, abraara j onobre Ega, e aproveitava agora a viagem quele bairro longnquo para ir ver o velho Shlegen,um alemo que vivia Penha de Frana.

    - Ento outra coisa! exclamou Ega. Para conversarmos, para que vocs se conheam mais,venham vocs jantar comigo amanh ao Hotel Central. Dito,

    hein? Perfeitamente. s seis.Apenas o coup partiu de novo, Ega rompeu nas costumadas admiraes pelo Craft,

    encantado com aquele encontro que dava mais um retoque luminoso sua alegria. O que oentusiasmava no Craft era aquele ar imperturbvel de gentleman correcto, com que ele

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    igualmente jogaria uma partida de bilhar, entraria numa batalha, arremeteria com uma mulher,

    ou partiria para a Patagnia...- das melhores coisas que tem Lisboa. Vais-te morrer por ele... E que casa que ele tem nos

    Olivais, que sublime bric-a-brac!Subitamente estacou, e com um olhar inquieto, uma ruga na testa:

    - Como diabo soube ele da Vila Balzac?

    - Tu no fazes segredo dela, hein?- No... Mas tambm no a pus nos anncios! E o Craft chegou ontem, ainda no esteve

    com ningum que eu conhea... curioso!- Em Lisboa sabe-se tudo...- Canalha de terra! murmurou Ega.

    O jantar no Central foi adiado, porque o Ega, alargando pouco a pouco a ideia, convertera-o agora numa festa de cerimnia em honra do Cohen.

    - Janto l muitas vezes, disse ele a Carlos, estou l todas as noites... necessrio repagar ahospitalidade... Um jantar no Central o que basta. E para o efeito moral, pespego-lhe mesa omarqus e a besta do Steinbroken. O Cohen gosta de gente assim...

    Mas o plano teve ainda de ser alterado: o marqus partira para a Goleg, e o pobre

    Steinbroken estava sofrendo dum incomodo de entranhas. Ega pensou no Cruges e no Taveira -mas receou a cabeleira desleixada do Cruges, e alguns dos seus ataques de amargo spleen que

    estragaria o jantar. Terminou por convidar dois ntimos do Cohen; mas teve ento de suprimir oTaveira, que estava de mal com um desses cavalheiros por palavras que tinham trocado em casa

    da Lola gorda.Decididos os convidados, fixado o jantar para uma segunda feira, Ega teve uma

    conferencia com o maitre de hotel do Central, em que lhe recomendou muita flor, dois ananasespara enfeitar a mesa, e exigiu que um dos pratos do menu, qualquer deles, fosse la Cohen; eele mesmo sugeriu uma ideia: tomates farcies la Cohen...

    Nessa tarde, s seis horas, Carlos, ao descer a rua do Alecrim para o Hotel Central, avistouCraft dentro da loja de bric-a-brac do tio Abrao.

    Entrou. O velho judeu, que estava mostrando a Craft uma falsa faiana do Rato, arrancou

    logo da cabea o sujo barrete de borla, e ficou curvado em dois, diante de Carlos, com as duasmos sobre o corao.

    Depois, numa linguagem extica, misturada de ingls, pediu ao seu bom senhor D. Carlosda Maia, ao seu digno senhor, ao seu beautiful gentleman, que se dignasse examinar uma

    maravilhasinha que lhe tinha reservada; e o seu muito generous gentleman tinha s a voltar osolhos, a maravilhasinha estava ali ao lado, numa cadeira. Era um retrato de espanhola,

    apanhado a fortes brochadelas de primeira impresso, e pondo, sobre um fundo audaz de corde rosa murcha, uma face gasta de velha gara, picada das bexigas, caiada, ressudando vcio,com um sorriso bestial que prometia tudo.

    Carlos, tranquilamente, ofereceu dez tostes. Craft pasmou duma tal prodigalidade; e obom Abrao, num riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande boca dum sdente, saboreou muito a chalaa dos seus ricos senhores. Dez tostesinhos! Se o quadrinhotivesse por baixo o nomesinho de Fortuny, valia dez continhos de ris. Mas no tinha essenomesinho bendito... Ainda assim valia dez notasinhas-de vinte mil ris...

    - Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! exclamou Carlos.E saram, deixando o velho intrujo porta, curvado em dois, com as mos sobre o

    corao, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos...- No tem uma nica coisa boa, este velho Abrao, disse Carlos.- Tem a filha, disse o Craft.

    Carlos achava-a bonita, mas horrivelmente suja.

    Ento, a propsito do Abrao, falou a Craft dessas belas coleces dos Olivais, que o Ega,apesar do desdm que afectava pelo bibelot e pelo mvel de arte, lhe descrevera como sublimes.

    Craft encolheu os ombros.

    - O Ega no entende nada. Mesmo em Lisboa, no se pode chamar ao que eu tenho umacoleco. um bric-a-brac de acaso... De que, de resto, me vou desfazer!

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    Isto surpreendeu Carlos. Compreendera das palavras do Ega ser essa uma colecoformada com amor, no laborioso decurso de anos, orgulho e cuidado duma existncia dehomem...

    Craft sorrio daquela legenda. A verdade era que s em 1872, ele comeara a interessar-sepelo bric-a-brac; chegava ento da Amrica do Sul; e o que fora comprando, descobrindo aqui ealm, acumulara-o nessa casa dos Olivais, alugada ento por fantasia, uma manh que aquelepardieiro, com o seu bocado de quintal em redor, lhe parecera pitoresco, sob o sol de abril. Mas

    agora se pudesse desfazer-se do que tinha, ia dedicar-se ento a formar uma colecohomognea e compacta de arte do sculo dezoito.

    - Aqui nos Olivais?- No. Numa quinta que tenho ao p do Porto, junto mesmo ao rio.Entravam ento no peristilo do Hotel Central - e nesse momento um coup da Companhia,

    chegando a largo trote do lado da rua do Arsenal, veio estacar porta.Um esplndido preto, j grisalho, de casaca e calo, correu logo portinhola; de dentro

    um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braos uma deliciosacadelinha escocesa, de pelos esguedelhados, finos como seda e cor de prata; depois apeando-se,indolente e poseur, ofereceu a mo a uma senhora alta, loura, com um meio vu muito apertado

    e muito escuro que realava o esplendor da sua carnao ebrnea. Craft e Carlos afastaram-se,ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita,deixando atrs

    de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de ouro, e um aroma no ar. Trazia um

    casaco colante de veludo branco de Gnova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou overniz das suas botinas. O rapaz ao lado, esticado num fato de xadresinho ingls, abrianegligentemente um telegrama; o preto seguia com a cadelhinha nos braos. E no silncio a vozde Craft murmurou:

    - Trs chic.Em cima, no gabinete que o criado lhes indicou, Ega esperava, sentado no div de

    marroquim, e conversando com um rapaz baixote, gordo, frisado como um noivo de prov ncia,de camlia ao peito e plastron azul celeste. O Craft conhecia-o; Ega apresentou a Carlos o Sr.

    Dmaso Salcede, e mandou servir vermute, por ser tarde, segundo lhe parecia, para esserequinte literria e satnico do absinto...

    Fora um dia de inverno suave e luminoso, as duas janelas estavam ainda abertas. Sobre orio, no cu largo, a tarde morria, sem uma aragem, numa paz elisea, com nuvensinhas muitoaltas, paradas, tocadas de cor de rosa; as terras, os longes da outra banda j se iam afogandonum vapor aveludado, do tom de violeta; a gua jazia lisa e luzidia como uma bela chapa deao novo; e aqui e alem, pelo vasto ancoradouro, grossos navios de carga, longos paquetesestrangeiros, dois couraados ingleses, dormiam, com as mastreaes imveis, como tomadosde preguia, cedendo ao afago do clima doce...

    - Vimos agora l em baixo, disse Craft indo sentar-se no div, uma esplndida mulher, comuma esplndida cadelinha grifon, e servida por um esplndido preto!

    O Sr. Dmaso Salcede, que no despegava os olhos de Carlos, acudiu logo:- Bem sei! Os Castro Gomes... Conheo-os muito... Vim com eles de Bordus... Uma gente

    muito chic que vive em Paris.

    Carlos voltou-se, reparou mais nele, perguntou-lhe, afvel e interessando-se:- O senhor Salcede chegou agora de Bordus?Estas palavras pareceram deleitar Dmaso como um favor celeste: ergueu-se

    imediatamente, aproximou-se do Maia, banhado num sorriso:

    - Vim aqui h quinze dias, no Orenoque. Vim de Paris... Que eu em podendo l que mepilham! Esta gente conheci-a em Bordus. Isto , verdadeiramente conheci-a a bordo. Masestvamos todos no Hotel de Nantes... Gente muito chic: criado de quarto, governanta inglesapara a filhita, femme de chambre, mais de vinte malas... Chic a valer! Parece incr vel, uns

    brasileiros... Que ela na voz no tem sotaque nenhum, fala como ns. Ele sim, ele muito

    sotaque... Mas elegante tambm, V. Ex. no lhe pareceu?- Vermute? perguntou-lhe o criado, oferecendo a salva.

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    - Sim, uma gotinha para o apetite. V. Ex. no toma, Sr. Maia? Pois eu, assim que posso, direitinho para Paris! Aquilo que terra! Isto aqui um chiqueiro... Eu, em no indo l todosos anos, acredite V. Ex., at comeo a andar doente. Aquele boulevarzinho, hein!... Ai, eu gozoaquilo!... E sei gozar, sei gozar, que eu conheo aquilo a palmo... Tenho at um tio em Paris.

    - E que tio! exclamou Ega, aproximando-se. Intimo de Gambeta, governa a Frana... O tiodo Dmaso governa a Frana, menino!

    Dmaso, escarlate, estourava de gozo.- Ah, l isso influncia tem. Intimo do Gambeta, tratam-se por tu, at vivem quasi juntos...

    E no s com o Gambeta; com o Mac-Mahon, com o Rochefort, com o outro de que meesquece agora o nome, com todos os republicanos, enfim!... tudo quanto ele queira. V. Ex.no o conhece? um homem de barbas brancas... Era irmo de minha me, chama-seGuimares. Mas em Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran...

    Nesse momento a porta envidraada abriu-se de golpe, Ega exclamou: Sade ao poeta!E apareceu um indivduo muito alto, todo abotoado numa sobrecasaca preta, com uma

    face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos, espessos, romnticos bigodesgrisalhos: j todo calvo na frente, os anis fofos duma grenha muito seca caam-lheinspiradamente sobre a gola: e em toda a sua pessoa havia alguma coisa de antiquado, de

    artificial e de lgubre.Estendeu silenciosamente dois dedos ao Dmaso, e abrindo os braos lentos para Craft,disse numa voz arrastada, cavernosa, ateatrada:

    - Ento s tu, meu Craft! Quando chegaste tu, rapaz? D-me c esses ossos honrados,honrado ingls!

    Nem um olhar dera a Carlos. Ega adiantou-se, apresentou-os:

    - No sei se so relaes. Carlos da Maia... Toms de Alencar, o nosso poeta...Era ele! o ilustre cantor das Vozes da Aurora, o estilista de Elvira, o dramaturgo do

    Segredo do Comendador. Deu dois passos graves para Carlos, esteve-lhe apertando muitotempo a mo em silncio - e sensibilizado, mais cavernoso:

    - V. Ex., j que as etiquetas sociais querem que eu lhe d excelncia, mal sabe a quemapertou agora a mo...

    Carlos, surpreendido, murmurou:- Eu conheo muito de nome...E o outro com o olho cavo, o lbio tremulo:- Ao camarada, ao insupervel, ao ntimo de Pedro da Maia, do meu pobre, do meu valente

    Pedro!

    - Ento, que diabo, abracem-se! gritou Ega. Abracem-se, com um berro, segundo asregras...

    Alencar j tinha Carlos estreitado ao peito, e quando o soltou, retomando-lhe as mos,sacudindo-lhas, com uma ternura ruidosa:

    - E deixemo-nos j de excelncias! que eu vi-te nascer, meu rapaz! trouxe-te muito ao colo!sujaste-me muita cala! Co'os diabos, d c outro

    abrao!Craft olhava estas coisas veementes, impossvel; Dmaso parecia impressionado; Ega

    apresentou um copo de vermute ao poeta:

    - Que grande cena, Alencar! Jesus, Senhor! Bebe, para te recuperares da emoo...Alencar esgotou-o dum trago: e declarou aos amigos que no era a primeira vez que via

    Carlos. J o admirara no seu faeton, muitas vezes, e aosseus belos cavalos ingleses. Mas no se quisera dar a conhecer. Ele nunca se atirava aos

    braos de ningum, a no ser das mulheres... Foi encher outro clice de vermute, e com ele namo, plantado diante de Carlos, comeou, num tom pattico:

    - A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das Almas! Estava eu no Rodrigues,esquadrinhando alguma dessa velha literatura, hoje to desprezada... Lembro-me at que eraum volume das clogas do nosso delicioso Rodrigues Lobo, esse verdadeiro poeta da natureza,

    esse rouxinol to portugus, hoje, est claro, metido a um canto, desde que para a apareceu oSatanismo, o Naturalismo e o Bandalhismo, e outros esterquilinios em ismo... Nesse momento

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    passaste, disseram-me quem eras, e caiu-me o livro da mo... Fiquei ali uma hora, acredita, apensar, a rever o passado...

    E atirou o vermute s goelas. Ega, impaciente, olhava o relgio. Um criado, entrando,acendeu o gs; a mesa surgiu da penumbra, com um brilho de cristais e louas, um luxo decamlias em ramos.

    No entanto Alencar (que luz viva parecia mais gasto e mais velho) comeara uma grandehistria, e como fora ele o primeiro que vira Carlos depois de nascer, e como fora ele que lhedera o nome.

    - Teu pai, dizia ele, o meu Pedro, queria-te pr o nome de Afonso, desse santo, desse varode outras idades, Afonso da Maia! Mas tua me que tinha l as suas ideias teimou em quehavias de ser Carlos. E justamente por causa dum romance que eu lhe emprestara; nesses

    tempos podiam-se emprestar romances a senhoras, ainda no havia a pstula e o pus... Era umromance sobre o ultimo Stuart, aquele belo tipo do prncipe Carlos Eduardo, que vocs, filhos,conhecem todos bem, e que na Esccia, no tempo de Lus XIV... Enfim, adiante! Tua me, devodize-lo, tinha literatura e da melhor. Consultou-me, consultava-me sempre, nesse tempo eu era

    algum, e lembro-me de lhe ter respondido... (Lembro-me apesar de j l irem vinte e cincoanos... Que digo eu? Vinte e sete! Vejam vocs isto, filhos, vinte e sete anos!) Enfim, voltei-me

    para tua me, e disse-lhe, palavras textuais: Ponha-lhe o nome de Carlos Eduardo, minha ricasenhora, Carlos Eduardo, que o verdadeiro nome para o frontispcio dum poema, para a famadum heroismo ou para o lbio duma mulher!

    Dmaso, que continuava a admirar Carlos, deu bravos estrondosos; Craft bateuligeiramente os dedos; e o Ega, que rondava a porta, nervoso, de relgio na mo, soltou de lum muito bem desenxabido.

    Alencar, radiante com o seu efeito, derramava em roda um sorriso que lhe mostrava osdentes estragados. Abraou outra vez Carlos, atirou uma palmada ao corao, exclamou:

    - Caramba, filhos, sinto uma luz c dentro!A porta abriu-se, o Cohen entrou, todo apressado, desculpando-se logo da sua demora -

    enquanto Ega, que se precipitara para ele, lhe ajudava a despir o palet. Depois apresentou-o aCarlos - a nica pessoa ali de quem o Cohen no era ntimo. E dizia, tocando o boto da

    campainha elctrica:- O marqus no pde vir, menino, e o pobre Steinbroken, coitado, est com a sua gota, a

    gota de diplomata, de lord e de banqueiro... A gota que tu hs-de ter, velhaco!Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suissas to pretas e luzidias que

    pareciam ensopadas em verniz, sorria, descalando as luvas, dizendo, que, segundo os ingleses,havia tambm a gota de gente pobre; e era essa naturalmente a que lhe competia a ele...

    Ega, no entanto, travara-lhe do brao, colocara-o preciosamente mesa, sua direita:depois ofereceu-lhe um boto de camlia dum ramo: o Alencar floriu-se tambm - e os criadosserviram as ostras.

    Falou-se logo do crime da Mouraria, drama fadista que impressionava Lisboa, uma

    rapariga com o ventre rasgado navalha por uma companheira, vindo morrer na rua emcamisa, dois faias esfaqueando-se, toda uma viela em sangue - uma sarrabulhada como disse o

    Cohen, sorrindo e provando o Bucelas.

    Dmaso teve a satisfao de poder dar detalhes; conhecera a rapariga, a que dera asfacadas, quando ela era amante do visconde da Ermidinha... Se era bonita? Muito bonita. Umasmos de duquesa... E como aquilo cantava o fado! O pior era que mesmo no tempo do visconde,quando ela era chic, j se empiteirava... E o visconde, honra lhe seja, nunca lhe perdera aamizade; respeitava-a, mesmo depois de casado a v-la, e tinha-lhe prometido que se elaquisesse deixar o fado lhe punha uma confeitaria para os lados da S. Mas ela no queria.Gostava daquilo, do Bairro Alto, dos cafs de lepes, dos chulos...

    Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer um estudo, um romance... Istolevou logo a falar-se do Assomoir, de Zola e do realismo: - e o Alencar imediatamente,

    limpando os bigodes dos pingos de sopa, suplicou que se no discutisse, hora asseada do

    jantar, essa literatura latrinaria. Ali todos eram homens de asseio, de sala, hein? Ento, que seno mencionasse o excremento!

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    Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de

    edies; essas rudes analises, apoderando-se da igreja, da Realeza, da Burocracia, da Finana, detodas as coisas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a leso, como a cadveresnum anfiteatro; esses estilos novos, to precisos e to dcteis, apanhando em flagrante a linha, acor, a palpitao mesma da vida; tudo isso (que ele, na sua confuso mental, chamava a Ideianova) caindo assim de chofre e escangalhando a catedral romntica, sob a qual tantos anos eletivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e tornara-se o desgosto

    literrio da sua velhice. Ao principio reagiu. Para pr um dique definitivo torpe mar, comoele disse em plena Academia, escreveu dois folhetins cruis; ningum os leu; a mar torpealastrou-se, mais profunda, mais larga. Ento Alencar refugiou-se na moralidade como numarocha slida. O naturalismo, com as suas aluvies de obscenidade, ameaava corromper opudor social? Pois bem. Ele, Alencar, seria o paladino da Moral, o gendarme dos bonscostumes. Ento o poeta das Vozes da Aurora, que durante vinte anos, em canoneta e ode,propusera comrcios lbricos a todas as damas da capital; ento o romancista de Elvira que, emnovela e drama, fizera a propaganda do amor ilegtimo, representando os deveres conjugaiscomo montanhas-de tdio, dando a todos os maridos formas gordurosas e bestiais, e a todos osamantes a beleza, o esplendor e o gnio dos antigos Apolos; ento Toms Alencar que (a

    acreditarem-se as confisses autobiogrficas da Flr de Martrio) passava ele prprio umaexistncia medonha de adultrios, lubricidades, orgias, entre veludos e vinhos de Chipre - deora em diante austero, incorruptvel, todo ele uma torre de pudiccia, passou a vigiaratentamente o jornal, o livro, o teatro. E mal lobrigava sintomas nascentes de realismo num

    beijo que estalava mais alto, numa brancura de saia que se arregaava de mais - eis o nossoAlencar que soltava por sobre o pas um grande grito de alarme, corria pena, e as suasimprecaes lembravam (a acadmicos fceis de contentar) o rugir de Isaias. Um dia porm,Alencar teve uma destas revelaes que prostram os mais fortes; quanto mais ele denunciavaum livro como imoral, mais o livro se vendia como agradvel! O Universo pareceu-lhe coisatorpe, e o autor de Elvira encavacou...

    Desde ento reduziu a expresso do seu rancor ao mnimo, a essa frase curta, lanada comnojo:

    - Rapazes, no se mencione o excremento!Mas nessa noite teve o regozijo de encontrar aliados. Craft no admitia tambm o

    naturalismo, a realidade feia das coisas e da sociedade estatelada nua num livro. A arte era umaidealizao! Bem: ento que mostrasse os tipos superiores duma humanidade aperfeioada, asformas mais belas do viver e do sentir... Ega horrorizado apertava as mos na cabea - quandodo outro lado Carlos declarou que o mais intolervel no realismo eram os seus grandes arescientficos, a sua pretensiosa esttica deduzida duma filosofia alheia, e a invocao de ClaudeBernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mil e de Darwin, a propsito dumalavadeira que dorme com um carpinteiro!

    Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente o fraco do realismo estava em

    ser ainda pouco cientfico, inventar enredos, criar dramas, abandonar-se fantasia literria! aforma pura da arte naturalista devia ser a monografia, o estudo seco dum tipo, dum vcio,duma paixo, tal qual como se se tratasse dum caso patolgico, sem pitoresco e sem estilo!...

    - Isso absurdo, dizia Carlos, os caracteres s se podem manifestar pela aco...- E a obra de arte, acrescentou Craft, vive apenas pela forma...Alencar interrompeu-os, exclamando que no eram necessrias tantas filosofias.- Vocs esto gastando cera com ruins defuntos, filhos. O realismo critica-se deste modo:

    mo no nariz! Eu quando vejo um desses livros, enfrasco-me logo em gua de colnia. Nodiscutamos o excremento.

    - Sole normande? perguntou-lhe o criado, adiantando a travessa.

    Ega a fulmin-lo. Mas, vendo que o Cohen dava um sorriso enfastiado e superior a estascontrovrsias de literaturas, calou-se; ocupou-se s dele, quis saber que tal ele achava aquele St.Emilion; e, quando o viu confortavelmente servido de sole normande, lanou com grande

    alarde de interesse esta pergunta:- Ento, Cohen, diga-nos voc, conte-nos c... O emprstimo faz-se ou no se faz?

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    E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questo do emprstimo eragrave. Uma operao tremenda, um verdadeiro episdio histrico!...

    O Cohen colocou uma pitada de sal beira do prato, e respondeu, com autoridade, que oemprstimo tinha de se realizar absolutamente. Os emprestamos em Portugal constituam hojeuma das fontes de receita, to regular, to indispensvel, to sabida como o imposto. A nicaocupao mesmo dos ministrios era esta - cobrar o imposto e fazer o emprstimo. E assim sehavia de continuar...

    Carlos no entendia de finanas: mas parecia-lhe que, desse modo, o pas ia alegremente elindamente para a banca-rota.

    - Num galopesinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso,ningum tem iluses, meu caro senhor. Nem os prprios ministros da fazenda!... A banca-rota inevitvel: como quem faz uma soma...

    Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen.

    Ega, depois de lhe encher o clice de novo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhoras palavras.

    - A banca-rota to certa, as coisas esto to dispostas para ela - continuava o Cohen - queseria mesmo fcil a qualquer, em dois ou trs anos, fazer falir o pas...

    Ega gritou sofregamente pela receita. Simplesmente isto: manter uma agitaorevolucionaria constante; nas vsperas de se lanarem os emprstimos haver duzentosmaganes decididos que cassem pancada na municipal e quebrassem os candeeiros comvivas Repblica; telegrafar isto em letras bem gordas para os jornais de Paris, Londres e doRio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brasileiro, e a banca-rota estalava. Somente,como ele disse, isto no convinha a ningum.

    Ento Ega protestou com veemncia. Como no convinha a ningum? Ora essa! Erajustamente o que convinha a todos! banca-rota seguia-se uma

    revoluo, evidentemente. Um pas que vive da inscrio, em no lha pagando, agarra nocacete; e procedendo por principio, ou procedendo apenas por vingana - o primeiro cuidadoque tem varrer a monarquia que lhe representa o calote, e com ela o crasso pessoal doconstitucionalismo. E passada a crise, Portugal livre da velha divida, da velha gente, dessa

    coleco grotesca de bestas...A voz do Ega sibilava... Mas, vendo assim tratados de grotescos, de bestas, os homens de

    ordem que fazem prosperar os Bancos, Cohen pousou a mo no brao do seu amigo e chamou-oao bom-senso. Evidentemente, ele era o primeiro a dize-lo, em toda essa gente que figurava

    desde 46 havia medocres e patetas, - mas tambm homens de grande valor!- H talento, h saber, dizia ele com um tom de experincia. Voc deve reconhece-lo, Ega...

    Voc muito exagerado! No senhor, h talento, h saber.E, lembrando-se que algumas dessas bestas eram amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes

    talento e saber. O Alencar porm cofiava sombriamente o bigode. Ultimamente pendia paraideias radicais, para a democracia humanitria de 1848: por instincto, vendo o romantismodesacreditado nas letras, refugiava-se no romantismo poltico, como num asilo pararelo: queriauma repblica governada por gnios, a fraternizao dos povos, os Estados Unidos da Europa...Alm disso, tinha longas queixas desses politiquotes, agora gente de Poder, outrora seuscamaradas de redaco, de caf e de batota...

    - Isso, disse ele, l a respeito de talento e de saber, histrias... Eu conheo-os bem, meuCohen...

    O Cohen acudiu:- No senhor, Alencar, no senhor! Voc tambm dos tais... At lhe fica mal dizer isso...

    exagerao. No senhor, h talento, h saber.E o Alencar, perante esta intimao do Cohen, o respeitado director do Banco Nacional, o

    marido da divina Rachel, o dono dessa hospitaleira casa da rua do Ferregial onde se jantava tobem, recalcou o despeito - admitiu que no deixava de haver talento e saber.

    Ento, tendo assim, pela influncia do seu Banco, dos belos olhos da sua mulher e da

    excelncia do seu cozinheiro, chamado estes espritos rebeldes ao respeito dos Parlamentares e

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    venerao da Ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o pasnecessitava reformas...

    Ega porm, incorrigvel nesse dia, soltou outra enormidade:- Portugal no necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa a invaso espanhola.Alencar, patriota antiga, indignou-se. O Cohen, com aquele sorriso indulgente de homem

    superior que lhe mostrava os bonitos dentes, viu ali apenas um dos paradoxos do nosso Ega.

    Mas o Ega falava com seriedade, cheio de razes. Evidentemente, dizia ele, invaso nosignifica perda absoluta de independncia. Um receio to estpido digno s de uma sociedadeto estpida como a do Primeiro de Dezembro. No havia exemplo de seis milhes dehabitantes serem engolidos, de um s trago, por um pas que tem apenas quinze milhes dehomens. Depois ningum consentiria em deixar cair nas mos de Espanha, nao militar emartima, esta bela linha de costa de Portugal. Sem contar as alianas que teramos, a troco dascolnias - das colnias que s nos servem, como a prata de famlia aos morgados arruinados,para ir empenhando em casos de crise...

    No havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invaso, num momento de guerraeuropeia, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnizao, perdermosuma ou duas provncias, ver talvez a Galiza estendida at ao Douro...

    - Poulet aux champignons, murmurou o criado, apresentando-lhe a travessa.E em quanto ele se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via ele a salvao do pas,

    nessa catstrofe que tornaria povoao espanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, bero deheris, bero dos Egas...

    - Nisto: no ressuscitar do esprito publico e do gnio portugus! Sovados, humilhados,arrasados, escalavrados, tnhamos de fazer um esforo desesperado para viver. E em que belasituao nos achvamos! Sem monarquia, sem essa caterva de polticos, sem esse tortulho dainscrio, porque tudo desaparecia, estvamos novos em folha, limpos, escarolados, como senunca tivssemos servido. E recomeava-se uma histria nova, um outro Portugal, um Portugalsrio e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilizao como outrora...Meninos, nada regenera uma nao como uma medonha tareia... Oh Deus de Ourique, manda-nos o castelhano! E voc, Cohen, passe-me o St. Emilion.

    Agora, num rumor animado, discutia-se a invaso. Ah, podia-se fazer uma bela resistncia!Cohen afianava o dinheiro. Armas, artilharia, iam comprar-se Amrica - e Craft ofereceu logoa sua coleco de espadas do sculo XVI. Mas generais? Alugavam-se. Mac-Mahon, porexemplo, devia estar barato...

    - O Craft e eu organizamos uma guerrilha, gritou Ega.

    - s ordens, meu coronel.- O Alencar, continuava Ega, encarregado de ir despertar pela provncia o patriotismo,

    com cantos e com odes!

    Ento o poeta, pousando o clice, teve um movimento de leo que sacode a juba:- Isto uma velha carcassa, meu rapaz, mas no est s para odes! Ainda se agarra uma

    espingarda, e como a pontaria boa, ainda vo a terra um par de galegos... Caramba, rapazes,s a ideia dessas coisas me pe o corao negro! E como vocs podem falar nisso, a rir, quandose trata do pas, desta terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja m, de acordo, mas, caramba! a nica que temos, no temos outra! aqui que vivemos, aqui que rebentamos... Irra,falemos de outra coisa, falemos de mulheres!

    Dera um repelo ao prato, os olhos humedeciam-se-lhe de paixo patritica...E no silncio que se fez Dmaso, que desde as informaes sobre a rapariga do Ermidinha

    emudecera, ocupado a observar Carlos com religio, ergueu a voz pausadamente, disse, comum ar de bom senso e de finura:

    - Se as coisas chegassem a esse ponto, se pusessem assim feias, eu c, cautela, ia-meraspando para Paris...

    Ega triunfou, pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no l bio sinttico de Dmaso, o gritoespontneo e genuno do brio portugus! Raspar-se, pirar-se!...

    Era assim que de alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desdeEl-Rei nosso Senhor at aos cretinos de secretaria!...

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    - Meninos, ao primeiro soldado espanhol que aparea fronteira, o pas em massa fogecomo uma lebre! Vai ser uma debandada nica na histria!

    Houve uma indignao, Alencar gritou:- Abaixo o traidor!Cohen interveio, declarou que o soldado portugus era valente, maneira dos turcos - sem

    disciplina, mas teso. O prprio Carlos disse, muito srio:- No senhor... Ningum h de fugir, e h de se morrer bem.Ega rugiu. Para quem estavam eles fazendo essa pose herica? Ento ignoravam que esta

    raa, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses sagues da Baixa,educada na piolhice dos liceus, roda de sfilis, apodrecida no bolor das secretaras, arejadaapenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o musculo como perdera o carcter, e era amais fraca, a mais covarde raa da Europa?...

    - Isso so os lisboetas, disse Craft.- Lisboa Portugal, gritou o outro. Fora de Lisboa no h nada. O pas est todo entre a

    Arcada e S. Bento!...

    A mais miservel raa da Europa! continuava ele a berrar. E que exercito! Um regimento,depois de dois dias de marcha, dava entrada em massa no hospital! Com seus olhos tinha ele

    visto, no dia da abertura das Cortes, um marujo sueco, um rapago do Norte, fazer debandar, asocos, uma companhia de soldados; as praas tinham literalmente largado a fugir, com apatrona a bater-lhe os rins; e o oficial, enfiado de terror, meteu-se para uma escada, a vomitar!...

    Todos protestaram. No, no era possvel... Mas se ele tinha visto, que diabo!... Pois sim,talvez, mas com os olhos falazes da fantasia...

    - Juro pela sade da mam! gritou Ega furioso.Mas emudeceu. O Cohen tocara-lhe no brao. O Cohen a falar.O Cohen queria dizer que o futuro pertence a Deus. Que os espanhis porm pensassem

    na invaso isso parecia-lhe certo - sobretudo se viessem, como era natural, a perder Cuba. EmMadrid todo o mundo lho dissera. J havia mesmo negcios de fornecimentos entabulados...

    - Espanholadas, galegadas! rosnou Alencar, por entre dentes, sombrio e torcendo os

    bigodes.

    - No Hotel de Paris, continuou Cohen, em Madrid, conheci eu um magistrado, que medisse com um certo ar que no perdia a esperana de se vir estabelecer de todo em Lisboa;tinha-lhe agradado muito Lisboa, quando c estivera a banhos. E em quanto a mim, estou queh muitos espanhis que esto espera deste aumento de territrio para se empregarem!

    Ento Ega caiu em xtase, apertou as mos contra o peito. Oh que delicioso trao! Oh queadmiravelmente observado!

    - Este Cohen! exclamava ele para os lados. Que finamente observado! Que trao adorvel!Hein, Craft?

    Hein, Carlos? Delicioso!Todos cortesmente admiraram a finura do Cohen. Ele agradecia, com o olho enternecido,

    passando pelas suissas a mo onde reluzia um diamante. E nesse momento os criados serviamum prato de ervilhas num molho branco, murmurando:

    - Petits pois a la Cohen.

    A la Cohen? Cada um verificou o seu menu mais atentamente. E l estava, era o legume:petit pois a la Cohen! Dmaso, entusiasmado, declarou isto chic a valer! E fez-se, com oChampagne que se abria, a primeira sade ao Cohen!

    Esquecera-se a banca rota, a invaso, a ptria - o jantar terminava alegremente. Outrassades cruzaram-se, ardentes e loquazes: o prprio Cohen, com o sorriso de quem cede a umcapricho de criana, bebeu Revoluo e Anarquia, brinde complicado, que o Ega erguera, jcom o olho muito brilhante. Sobre a toalha, a sobremesa alastrava-se, destroada; no prato doAlencar as pontas de cigarros misturavam-se a bocados de anans mastigado. Dmaso, tododebruado sobre Carlos, fazia-lhe o elogio da parelha inglesa, e daquele faeton que era a coisamais linda que passeava Lisboa. E logo depois do seu brinde de demagogo, sem razo, Ega

    arremetera contra Craft, injuriando a Inglaterra, querendo exclui-la de entre as naes

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    pensantes, ameaando-a de uma revoluo social que a ensoparia em sangue: o outro respondiacom acenos de cabea, imperturbvel, partindo nozes.

    Os criados serviram o caf. E como havia j trs longas horas que estavam mesa, todos seergueram, acabando os charutos, conversando, na animao viva que dera o Champagne. Asala, de tecto baixo, com os cinco bicos de gs ardendo largamente, enchera-se de um calorpesado, onde se ia espalhando agora o aroma forte das chartreuses e dos licores por entre a

    nvoa alvadia do fumo.Carlos e Craft, que abafavam, foram respirar para a varanda; e a recomeou logo, naquela

    comunidade de gostos que os comeava a ligar, a conversa da rua do Alecrim sobre a belacoleco dos Olivais. Craft dava detalhes; a coisa rica e rara que tinha era um armrio holandsdo sculo XVI; de resto, alguns bronzes, faianas e boas armas...

    Mas ambos se voltaram ouvindo, no grupo dos outros, junto mesa, estridncias de voz, ecomo um conflito que rompia: Alencar, sacudindo a grenha, gritava contra a palhada filosfica;e do outro lado, com o clice de cognac na mo, Ega, plido e afectando uma tranquilidadesuperior, declarava toda essa babuge lrica que por a se publica digna da polcia correcional...

    - Pegaram-se outra vez, veio dizer Dmaso a Carlos, aproximando-se da varanda. porcausa do Craveiro. Esto ambos divinos!

    Era com efeito a propsito de poesia moderna, de Simo Craveiro, do seu poema a Mortede Satans. Ega estivera citando, com entusiasmo, estrofes do episdio da Morte, quando ogrande esqueleto simblico passa em pleno sol no Boulevard, vestido como uma cocote,arrastando sedas rumorosas

    E entre duas costelas, no decote,Tinha um bouquet de rosas!

    E o Alencar, que detestava o Craveiro, o homem da Ideia nova, o paladino do Realismo,triunfara, cascalhara, denunciando logo nessa simples estrofe dois erros de gramtica, um versoerrado, e uma imagem roubada a Beaudelaire!

    Ento Ega, que bebera um sobre outro dois clices de cognac, tornou-se muito provocante,muito pessoal.

    - Eu bem sei por que tu falas, Alencar, dizia ele agora. E o motivo no nobre. por causa

    do epigrama que ele te fez:O Alencar de Alenquer,

    Aceso com a primavera...- Ah, vocs nunca ouviram isto? continuou ele voltando-se, chamando os outros.

    delicioso, das melhores coisas do Craveiro. Nunca ouviste, Carlos? sublime, sobre tudo estaestrofe:

    O Alencar de AlenquerQue quer? Na verde campina

    No colhe a tenra boninaNem consulta o malmequer...

    Que quer? Na verde campinaO Alencar de Alenquer

    Quer menina!

    Eu no me lembro do resto, mas termina com um grito de bom senso, que a verdadeiracritica de todo esse lirismo pandilha:

    O Alencar de Alenquer

    Quer cacete!Alencar passou a mo pela testa lvida, e com o olho cavo fito no outro, a voz rouca e lenta:- Olha, Joo da Ega, deixa-me dizer-te uma coisa, meu rapaz... Todos esses epigramas,

    esses dichotes lorpas do raqutico e dos que o admiram, passam-me pelos ps como um enxurrode cloaca... O que fao arregaar as calas! Arregao as calas... Mais nada, meu Ega. Arregaoas calas!

    E arregaou-as realmente, mostrando a ceroula, num gesto brusco e de del rio.

    - Pois quando encontrares enchurros desses, gritou-lhe o Ega, agacha-te e bebe-os! Do-tesangue e fora ao lirismo!

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    Mas Alencar, sem o ouvir, berrava para os outros, esmurrando o ar:

    - Eu, se esse Craveirete no fosse um raqutico, talvez me entretivesse a rola-lo aospontaps por esse Chiado abaixo, a ele e versalhada, a essa lambisgonhice excrementcia comque seringou Satans! E depois de o besuntar bem de lama, esborrachava-lhe o crnio!

    - No se esborracham assim crnios, disse de l o Ega num tom frio de troa.Alencar voltou para ele uma face medonha. A clera e o cognac incendiavam-lhe o olhar;

    todo ele tremia:

    - Esborrachava-lho, sim, esborrachava, Joo da Ega! Esborrachava-lho assim, olha, assimmesmo! - Rompeu a atirar patadas ao soalho, abalando a

    sala, fazendo tilintar cristais e louas. - Mas no quero, rapazes! Dentro daquele crnio sh excremento, vomito, pus, matria verde, e se lho esborrachasse, por que lho esborrachava,rapazes, todo o miolo podre saa, empestava a cidade, tnhamos o clera! Irra! Tnhamos apeste!

    Carlos, vendo-o to excitado, tomou-lhe o brao, quis calma-lo:- Ento, Alencar! Que tolice... Isso vale l pena!...O outro desprendeu-se, arquejante, desabotoou a sobrecasaca, soltou o ultimo desabafo:- Com efeito, no vale a pena ningum zangar-se por causa desse Craveirote da Ideia nova,

    esse caloteiro, que se no lembra que a porca da irm uma meretriz de doze vintns em Marcode Canavezes!- No, isso agora de mais, pulha! gritou Ega, arremeando-se, de punhos fechados.Cohen e Dmaso, assustados, agarraram-no. Carlos puxara logo para o vo da janela o

    Alencar que se debatia, com os olhos chamejantes, a gravata solta. Tinha cado uma cadeira; acorrecta sala, com os seus divs de marroquim, os seus ramos de camlias, tomava um ar detaverna, numa bulha de faias, entre a fumaraa de cigarros. Dmaso, muito plido, quasi semvoz, a dum a outro:

    - Oh meninos, oh meninos, aqui, no Hotel Central! Jesus!... Aqui no Hotel Central!...E, de entre os braos do Cohen, Ega berrava, j rouco:- Esse pulha, esse covarde... Deixe-me, Cohen! No, isso hei de esbofete-lo!... A D. Ana

    Craveiro, uma santa!... Esse caluniador... No, isso hei de esgana-lo!...

    Craft, no entanto, impassvel, bebia aos golos a sua chartreuse. J presenciara, mais vezes,duas literaturas rivais engalfinhando-se, rolando no cho, num latir de injurias: a torpeza doAlencar sobre a irm do outro fazia parte dos costumes de critica em Portugal: tudo isso odeixava indiferente, com um sorriso de desdm. Alm disso sabia que a reconciliao notardaria, ardente e com abraos. E no tardou. Alencar saiu do vo da janela, atrs de Carlos,abotoando a sobrecasaca, grave e como arrependido. A um canto da sala, Cohen falava ao Ega

    com autoridade, severo, maneira dum pai: depois voltou-se, ergueu a mo, ergueu a voz,disse que ali todos eram cavalheiros: e como homens de talento e de corao fidalgo os doisdeviam abraar-se...

    - V, um shake-hands, Ega, faa isso por mim!... Alencar, vamos, peo-lho eu!O autor de Elvira deu um passo, o autor das Memrias dum tomo estendeu a mo: mas o

    primeiro aperto foi gauche e mole. Ento Alencar, generoso e rasgado, exclamou que entre ele eo Ega no devia ficar uma nuvem! Tinha-se excedido... Fora o seu desgraado gnio, esse calorde sangue, que durante toda a existncia s lhe trouxera lgrimas! E ali declarava bem alto queAna Craveiro era uma santa! Tinha-a conhecido em Marco de Canavezes, em casa dosPeixotos... Como esposa, como me, Ana Craveiro era impecvel. E reconhecia, do fundo daalma, que o Craveiro tinha carradas de talento!...

    Encheu um copo de Champagne, ergueu-o alto, diante do Ega, como um clice de altar:- tua, Joo!Ega, generoso tambm, respondeu:- tua, Toms!Abraaram-se. Alencar jurou que ainda na vspera, em casa de D. Joana Coutinho, ele

    dissera que no conhecia ningum mais cintilante que o Ega! Ega afirmou logo que em poemas

    nenhuns corria, como nos do Alencar, uma to bela veia lrica. Apertaram-se outra vez, compalmadas pelos ombros. Trataram-se de irmos na arte, trataram-se de gnios!...

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    - So extraordinrios, disse Craft baixo a Carlos, procurando o chapu. Desorganizam-me,preciso ar!...

    A noite alongava-se, eram onze horas. Ainda se bebeu mais cognac. Depois Cohen saiu

    levando o Ega. Dmaso e Alencar desceram com Carlos - quea recolher a p pelo Aterro. porta, o poeta parou com solenidade.- Filhos, exclamou ele tirando o chapu e refrescando largamente a fronte, ento? Parece-

    me que me portei como um gentleman!Carlos concordou, gabou-lhe a generosidade...

    - Estimo bem que me digas isso, filho, porque tu sabes o que ser gentleman! E agoravamos l por esse Aterro fora... Mas deixa-me ir ali primeiro comprar um pacote de tabaco...

    - Que tipo! exclamou Dmaso, vendo-o afastar-se. E a coisa a-se pondo feia...E imediatamente, sem transio, comeou a fazer elogios a Carlos. 0 Sr. Maia no

    imaginava h quanto tempo ele desejava conhece-lo!- Oh senhor...

    Creia V. Ex.... Eu no sou de sabujices... Mas pode V. Ex. perguntar ao Ega, quantas vezeso tenho dito: V. Ex. a coisa melhor que h em Lisboa! Carlos, baixava a cabea, mordendo o

    riso. Dmaso, repetia, do fundo do peito.- Olhe que isto sincero, Sr. Maia! Acredite v Ex. que isto do corao!Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava Lisboa, tivera ali, naquele moo gordo e

    bochechudo, sem o saber, uma adorao muda e profunda; o prprio verniz dos seus sapatos, acor das suas luvas eram para o Dmaso motivo de venerao , e to importantes comoprincpios. Considerava Carlos um tipo supremo de chic, do seu querido chic, um Brumel, umd'Orsay, um Morny, - uma destas coisas que s se vem l fora, como ele dizia arregalando osolhos. Nessa tarde sabendo que vinha jantar com o Maia, conhecer o Maia, estivera duas horas

    ao espelho experimentando gravatas, perfumara-se como para os braos duma mulher; - e porcausa de Carlos mandara estacionar ali o coup, s dez horas, com o cocheiro de ramo ao peito.

    - Ento essa senhora brasileira vive aqui? perguntou Carlos, que dera dois passos, olhavauma janela alumiada no segundo andar.

    Dmaso seguiu-lhe o olhar.- Vive l do outro lado. Esto aqui h quinze dias... Gente chic... E ela de apetecer, V. Ex.

    reparou? Eu a bordo atirei-me... E ela dava cavaco! Mas tenho andado muito preso desde quecheguei, jantar aqui, soire acol, umas aventurasitas...No tenho podido c vir, deixei-lhes s

    bilhetes; mas trago-a de olho, que ela demora-se... Talvez venha c amanh, estou c agora asentir umas ccegas... E se me pilho s com ela, zs, ferro-lhe logo um beijo! Que eu c, no seise V. Ex. a mesma coisa, mas eu c, com mulheres, a minha teoria esta: atraco! Eu c, logo: atraco!

    Nesse momento Alencar voltava do estanco, de charuto na boca. Dmaso despediu-se,atirando muito alto ao cocheiro, para que Carlos ouvisse, a adresse da Moreli, segunda dama de

    S. Carlos.- Bom rapaz, este Dmaso, dizia Alencar, travando de brao de Carlos, ao seguirem ambos

    pelo Aterro. l muito dos Cohens, muito querido na sociedade. Rapaz de fortuna, filho dovelho Silva, o agiota, que esfolou muito teu pai; e a mim tambm. Mas ele assina Salcede; talveznome da me; ou talvez inventado. Bom rapaz... O pai era um velhaco! Parece que estou a ouviro Pedro dizer-lhe com o seu ar de fidalgo, que o tinha e do grande: Silva judeu, dinheiro, e a

    rodo!... Outros tempos, meu Carlos, grandes tempos. Tempos de gente!E ento por esse longo Aterro, triste no ar escuro, com as luzes do gs dormente luzindo

    em fila de enterro, Alencar foi falando desses grandes tempos da sua mocidade e da

    mocidade de Pedro; e, atravs das suas frases de lrico, Carlos sentia vir como um aromaantiquado desse mundo defunto... Era quando os rapazes ainda tinham um resto de calor dasguerras civis, e o calmavam indo em bando varrer botequins ou rebentando pilecas de sejes em

    galopadas para Sintra. Sintra era ento um ninho de amores, e sob as suas romnticas ramagens

    as fidalgas abandonavam-se aos braos dos poetas. Elas eram Elviras, eles eram Anthonys. Odinheiro abundava; a corte era alegre; a Regenerao literata e galante ia engrandecer o pas,

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    belo jardim da Europa; os bacharis chegavam de Coimbra, frementes de eloquncia; osministros da coroa recitavam ao piano; o mesmo sopro lrico inchava as odes e os projectos delei...

    - Lisboa era bem mais divertida, disse Carlos.- Era outra coisa, meu Carlos! Vivia-se! No existiriam esses ares cientficos, toda essa

    palhada filosfica, esses badamecos positivistas... Mas havia corao, rapaz! Tinha-se faisca!Mesmo nessas coisas da poltica... V esse chiqueiro agora a, essa malta de bandalhos... Nessetempo a-se ali cmara e sentia-se a inspirao, sentia-se o rasgo!... Via-se luz nas cabeas!... Edepois, menino, havia muitssimo boas mulheres.

    Os ombros descaam-lhe na saudade desse mundo perdido. E parecia mais lgubre, com asua grenha de inspirado saindo-lhe de sob as abas largas do chapu velho, a sobrecasaca coadae mal feita colando-se-lhe lamentavelmente s ilhargas.

    Um momento caminharam em silncio. Depois, na rua das Janelas Verdes, o Alencar quisrefrescar. Entraram numa pequena venda, onde a mancha

    amarela dum candeeiro de petrleo destacava numa penumbra de subterrneo, alumiandoo zinco hmido do balco, garrafas nas prateleiras, e o vulto triste da patroa com um lenoamarrado nos queixos. Alencar parecia ntimo no estabelecimento: apenas soube que a Sr.

    Cndida estava com dor de dentes, aconselhou logo remdios, familiar, descido das nuvensromnticas, com os cotovelos sobre o balco. E quando Carlos quis pagar a cana branca zangou-se, bateu a sua placa de dois tostes sobre o zinco polido, exclamou com nobreza:

    - Eu que fao a honra da bodega, meu Carlos! Nos palcios os outros pagaro... C nataberna pago eu!

    porta tomou o brao de Carlos. Depois de alguns passos lentos no silncio da rua, paroude novo, e murmurou numa voz vaga, contemplativa, como repassada da vasta solenidade danoite:

    - Aquela Rachel Cohen divinamente bela, menino! Tu conhece-la?- De vista.

    - No te faz lembrar uma mulher da Bblia? No digo l uma dessas viragos, uma Judit,uma Dalila... Mas um desses lrios poticos da Bblia... serfica!

    Era agora a paixo platnica do Alencar, a sua dama, a sua Beatriz...- Tu viste h tempos, no Dirio Nacional, os versos que eu lhe fiz?Abril chegou! S minhaDizia o vento rosa.No me saiu mau! Aqui h uma maliciasinha: Abril chegou, s minha... Mas logo: dizia o

    vento rosa. Compreendes? Calhou bem este efeito. Mas no imagines l outras coisas, ou quelhe fao a corte... Basta ser a mulher do Cohen, um amigo, um irmo... E a Rachel, para mim,coitadinha, como uma irm... Mas divina. Aqueles olhos, filho, um veludo liquido!...

    Tirou o chapu, refrescou a fronte vasta. Depois noutro tom, e como a custo:- Aquele Ega tem muito talento... Vai l muito aos Cohens... A Rachel acha-lhe graa...Carlos parara, estavam defronte do Ramalhete. Alencar deu um olhar severa frontaria de

    convento, adormecida, sem um ponto de luz.

    - Tem bom ar esta vossa casa... Pois entra tu, meu rapaz, que eu vou andando por aqui

    para a minha toca. E quando quiseres, filho, l me tens narua do Carvalho, 52, 3. andar. O prdio meu, mas eu ocupo o terceiro andar. Comecei

    por habitar no primeiro, mas tenho ido trepando... A nica coisa mesmo que tenho trepado,meu Carlos, de andares...

    Teve um gesto, como desdenhando essas misrias.- E hs-de ir l jantar um dia. No te posso dar um banquete, mas hs-de ter uma sopa e

    um assado... O meu Mateus, um preto, (um amigo!) que

    me serve h muito ano, quando h que cozinhar, sabe cozinhar! Fez muito jantar a teu pai,ao meu pobre Pedro... Que aquilo foi casa de alegria, meu rapaz. Dei l cama e mesa, e dinheiropara a algibeira, a muita dessa canalha que hoje por a trota em coup da companhia e de

    correio atrs... E agora, quando me avistam, voltam para o lado o focinho...- Isso so imaginaes, disse Carlos com amizade.

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    - No so, Carlos, respondeu o poeta, muito grave, muito amargo. No so. Tu no sabes aminha vida. Tenho sofrido muito repelo, rapaz. E no o merecia! Palavra, que o no merecia...

    Agarrou o brao de Carlos, e com a voz abalada:- Olha que esses homens que por a figuram embebedavam-se comigo, emprestei-lhes

    muito pinto, dei-lhes muita ceia... E agora so ministros, so embaixadores, so personagens,so o diabo. Pois ofereceram-te eles um bocado do bolo agora que o tm na mo? No. Nem amim. Isto duro, Carlos, isto muito duro, meu Carlos. E que diabo, eu no queria que mefizessem conde, nem que me dessem uma embaixada... Mas a alguma coisa numa secretaria...Nem um chavelho! Enfim, ainda h para o bocado do po, e para a meia ona do tabaco... Masesta ingratido tem-me feito cabelos brancos... Pois no te quero maar mais, e que Deus te faafeliz como tu mereces, meu Carlos!

    - Tu no queres subir um bocado, Alencar?Tanta franqueza enterneceu o poeta.

    - Obrigado, rapaz, disse ele, abraando Carlos. E agradeo-te isso, porque sei que vem docorao... Todos vocs tm corao... J teu pai o tinha, e largo, e grande como o dum leo! Eagora cr uma coisa: que tens aqui um amigo. Isto no palavriado, isto vem de dentro... Poisadeus, meu rapaz. Queres tu um charuto?

    Carlos aceitou logo, como um presente do cu.- Ento a tens um charuto, filho! exclamou Alencar com entusiasmo.E aquele charuto dado a um homem to rico, ao dono do Ramalhete, fazia-o por um

    momento voltar aos tempos em que nesse Marrare ele estendia em redor a charuteira cheia, com

    o seu grande ar de Manfredo triste. Interessou-se ento pelo charuto. Acendeu ele mesmo umfsforo. Verificou se ficava bem aceso. E que tal, charuto razovel? Carlos achava um excelentecharuto!

    - Pois ainda bem que te dei um bom charuto!

    Abraou-o outra vez; e estava batendo uma hora, quando ele enfim se afastou, mais ligeiro,mais contente de si, trauteando um trecho de fado.

    Carlos no seu quarto, antes de se deitar, acabando o pssimo charuto do Alencar estiradonuma chaise-longue, em quanto Baptista lhe fazia uma chvena de ch, ficou pensando nesse

    estranho passado que lhe evocara o velho lrico...E era simptico o pobre Alencar! Com que cuidado exagerado, ao falar de Pedro, de

    Arroios, dos amigos e dos amores de ento, ele evitara pronunciar sequer o nome de MariaMonforte! Mais de uma vez, pelo Aterro fora, estivera para lhe dizer: - podes falar da mam,amigo Alencar, que eu sei perfeitamente que ela fugiu com um italiano!

    E isto f-lo insensivelmente recordar da maneira como essa lamentvel histria lhe forarevelada, em Coimbra, numa noite de troa, quasi grotescamente. Por que o av, obedecendo carta testamentria de Pedro, contara-lhe um romance decente: um casamento de paixo,incompatibilidades de naturezas, uma separao corts, depois a retirada da mam com a filhapara a Frana, onde tinham morrido ambas. Mais nada. A morte de seu pai fora-lhe apresentadasempre como o brusco remate duma longa nevrose...

    Mas Ega sabia tudo, pelos tios... Ora uma noite tinham ceado ambos; Ega muito bbedo, enum acesso de idealismo, lanara-se num paradoxo tremendo, condenando a honestidade dasmulheres como origem da decadncia das raas: e dava por prova os bastardos, sempreinteligentes, bravos, gloriosos! Ele, Ega, teria orgulho se sua me, sua prpria me, em lugar deser a santa burguesa que rezava o tero lareira, fosse como a me de Carlos, uma inspirada,que por amor dum exilado abandonara fortuna, respeitos, honra, vida! Carlos, ao ouvir isto,ficara petrificado, no meio da ponte, sob o calmo luar. Mas no pde interrogar o Ega, que jtaramelava, agoniado, e que no tardou a vomitar-lhe ign bilmente nos braos. Teve de oarrastar casa das Seixas, despi-lo, aturar-lhe os beijos e a ternura borracha, at que o deixouabraado ao travesseiro, babando-se, balbuciando - que queria ser bastardo, que queria que amam fosse uma marafona!...

    E ele mal pudera dormir essa noite, com a ideia daquela me, to outra do que lhe haviam

    contado, fugindo nos braos dum desterrado - um polaco talvez! Ao outro dia, cedo, entravapelo quarto do Ega, a pedir-lhe, pela sua grande amizade, a verdade toda...

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    Pobre Ega! Estava doente: fez-se branco como o leno que tinha amarrado na cabea companos de gua sedativa: e no achava uma palavra, coitado! Carlos, sentado na cama, como nasnoites de cavaco, tranquilizou-o. No vinha ali ofendido, vinha ali curioso! Tinham-lhe ocultadoum episdio extraordinrio da sua gente, que diabo, queria sabe-lo! Havia romance? Para ali oromance!

    Ega, ento, l ganhou animo, l balbuciou a sua histria - a que ouvira ao tio Ega - a paixode Maria por um prncipe, a fuga, o longo silncio de anos que se fizera sobre ela...

    Justamente as ferias chegavam. Apenas em Sta. Olavia, Carlos contou ao av a bebedeirado Ega, os seus discursos doidos, aquela revelao vinda entre arrotos. Pobre av! Ummomento nem pde falar - e a voz por fim veio-lhe to dbil e dolente como se dentro do peitolhe estivesse morrendo o corao. Mas narrou-lhe, detalhe a detalhe, o feio romance todo atquela tarde em que Pedro lhe aparecera, lvido, coberto de lama, a cair-lhe nos braos,chorando a sua dor com a fraqueza duma criana. - E o desfecho desse amor culpado,acrescentara o av, fora a morte da me em Viena da ustria, e a morte da pequenita, da netaque ele nunca vira, e que a Monforte levara... E eis a tudo. E assim, aquela vergonha domesticaestava agora enterrada, ali, no jazigo de Sta. Olavia, e em duas sepulturas distantes, em pa sestrangeiro...

    Carlos recordava-se bem que nessa tarde, depois da melanclica conversa com o av, deviaele experimentar uma gua inglesa: e ao jantar no se falou seno da gua que se chamavaSultana. E a verdade era que da a dias tinha esquecido a mam. Nem lhe era possvel sentir poresta tragdia seno um interesse vago e como literrio. Isso passara-se havia vinte e tantos anos,numa sociedade quasi desaparecida. Era como o episdio histrico de uma velha crnica defamlia, um antepassado morto em Alccer-Quibir, ou uma das suas avs dormindo num leitoreal. Aquilo no lhe dera uma lgrima, no lhe pusera um rubor na face. De certo, prefeririapoder orgulhar-se de sua me, como duma rara e nobre flor de honra: mas no podia ficar todaa vida a amargurar-se com os seus erros. E porque? A sua honra dele no dependia dosimpulsos falsos ou torpes que tivera o corao dela. Pecara, morrera, acabou-se. Restava, sim,aquela ideia do pai, findando numa poa de sangue, no desespero dessa traio. Mas noconhecera seu pai: tudo o que possua dele e da sua memria, para amar, era uma fria tela mal

    pintada, pendurada no quarto de vestir, representando um moo moreno, de grandes olhos,com luvas de camura amarelas e um chicote na mo... De sua me no ficara nem umdaguerretipo, nem sequer um contorno a lpis. O av tinha-lhe dito que era loura. No sabiamais nada. No os conhecera; no lhes dormira nos braos; nunca recebera o calor da suaternura. Pai, me, eram para ele como smbolos dum culto convencional. O pap, a mam, osseres amados, estavam ali todos - no av.

    Baptista trouxera o ch, o charuto do Alencar acabara; - e ele continuava na chaise-longue,como amolecido nestas recordaes, e cedendo j, num meio adormecimento, fadiga do longo

    jantar... E ento, pouco a pouco, diante das suas plpebras cerradas, uma viso surgiu, tomoucor, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde morria numa paz elisea. O peristilo do Hotel

    Central alargava-se, claro ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no colo. Umamulher passava, alta, com uma carnao ebrnea, bela como uma Deusa, num casaco de veludo

    branco de Guinava. O Craft dizia ao seu lado trs-chic. E ele sorria, no encanto que lhe davamestas imagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a colorao de coisas vivas.

    Eram trs horas quando se deitou. E apenas adormecera, na escurido dos cortinados deseda, outra vez um belo dia de inverno morria sem uma aragem, banhado de cor de rosa: o

    banal peristilo de Hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com acadelinha nos braos; uma mulher passava, com um casaco de veludo branco de Gnova, maisalta que uma criatura humana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno que

    remonta ao Olimpo: a ponta dos seus sapatos de verniz enterrava-se na luz do azul, por trs assaias batiam-lhe como bandeiras ao vento. E passava sempre... O Craft dizia trs-chic. Depoistudo se confundia, e era s o Alencar, um Alencar colossal, enchendo todo o cu, tapando o

    brilho das estrelas com a sua sobrecasaca negra e mal feita, os bigodes esvoaando ao vendaval

    das paixes, alando os braos, clamando no espao:Abril chegou, s minha!

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