Os Maias - Cap Vii

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    OS MAIAS

    Captulo VII

    No Ramalhete, depois do almoo, com as trs janelas do escritrio abertas bebendo atpida luz do belo dia de maro, Afonso da Maia e Craft jogavam uma partida de xadrez ao pda chamin j sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva como um altar domstico.Numa faixa oblqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifcio, enorme e fofo, dormia deleve a sua sesta.

    Craft tornara-se, em poucas semanas, ntimo no Ramalhete. Carlos e ele, tendo muitassimilitudes de gosto e de ideias, o mesmo fervor pelo bric-a-brac e pelo bibelot, o uso

    apaixonado da esgrima, igual diletantismo de esprito, uniram-se imediatamente em relaes desuperfcie, fceis e amveis. Afonso, por seu lado comeara logo a sentir uma estima elevada

    por aquele gentleman de boa raa inglesa, como ele os admirava, cultivado e forte, de maneirasgraves, de h bitos rijos, sentindo finamente e pensando com rectido. Tinham-se encontradoambos entusiastas de Tcito, de Macaulay, de Burke, e at dos poetas lakistas; Craft era grandeno xadrez; o seu carcter ganhara nas longas e trabalhadas viagens a rica solidez dum bronze;para Afonso da Maia aquilo era deveras um homem. Craft, madrugador, saia cedo dosOlivais a cavalo, e vinha assim s vezes almoar de surpresa com os Maias; por vontade deAfonso jantaria l sempre; - mas ao menos as noites passava-as invariavelmente no Ramalhete,tendo enfim, como ele dizia, encontrado em Lisboa um recanto onde se podia conversar bem

    sentado, no meio de ideias, e com boa educao.Carlos saia pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquela revoada de clientela que lhe

    dera esperanas duma carreira cheia, activa, tinha passado miseravelmente, sem se fixar;restavam-lhe trs doentes no bairro; e sentia agora que as suas carruagens, os cavalos, oRamalhete, os h bitos de luxo, o condenavam irremediavelmente ao diletantismo. J o fino Dr.Teodosio lhe dissera um dia, francamente: voc muito elegante para mdico! As suasdoentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem o burgus que lhe vai confiar a esposa dentroduma alcova?... Voc aterra o pater-famlias! O laboratrio mesmo prejudicara-o. Os colegasdiziam que o Maia, rico, inteligente, avido de inovaes, de modernismos, fazia sobre osdoentes experincias fatais. Tinha-se troado muito a sua ideia, apresentada na Gazeta Medica,a preveno das epidemias pela inoculao dos vrus. Consideravam-no um fantasista. E ele,ento, refugiava-se todo nesse livro sobre a medicina antiga e moderna, o seu livro, trabalhadocom vagares de artista rico, tornando-se o interesse intelectual de um ou dois anos.

    Nessa manh, em quanto dentro prosseguia grave e silenciosa a partida de xadrez, Carlosno terrao, estendido numa vasta cadeira ndia de bambu, sombra do toldo, acabava o seu

    charuto, lendo uma Revista inglesa, banhado pela carcia tpida daquele bafo de primavera queaveludava o ar, fazia j desejar rvores e relvas...Ao lado dele, numa outra cadeira de bambu, tambm de charuto na boca, o Sr. Dmaso

    Salcede percorria o Figaro. De perna estirada, numa indolncia familiar, tendo o amigo Carlosao seu lado, vendo junto ao terrao as rosas das roseiras de Afonso, sentindo por trs, atravsdas janelas abertas, o rico e nobre interior do Ramalhete - o filho do agiota saboreava ali umadessas horas deliciosas que ultimamente encontrava na intimidade dos Maias.

    Logo na manh seguinte ao jantar do Central, o Sr. Salcede fora ao Ramalhete deixar osseus bilhetes, objectos complicados e vistosos, tendo ao ngulo, numa dobra simulada, o seuretratosinho em fotografia, um capacete com plumas por cima do nome - DAMASO CANDIDODE SALCEDE, por baixo as suas honras - COMMENDADOR DE CHRISTO, ao fundo a sua

    adresse - Rua de S. Domingos, Lapa; mas esta indicao estava riscada, e ao lado, a tinta azul,esta outra mais aparatosa - GRAND HOTEL, BOULEVARD DES CAPUCINES, CHAMBRE N.l03. Em seguida procurou Carlos no consultrio, confiou ao criado outro carto. Enfim, uma

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    tarde, no Aterro, vendo passar Carlos a p, correu para ele, pendurou-se dele, conseguiuacompanh-lo ao Ramalhete.

    A, logo desde o ptio, rompeu em admiraes estticas, como dentro dum museu,lanando, diante dos tapetes, das faianas e dos quadros, a sua grande frase - chic a valer!Carlos levou-o para o fumoir, ele aceitou um charuto; e comeou a explicar, de perna traada,algumas das suas opinies e alguns dos seus gostos. Considerava Lisboa chinfrin, e s estava

    bem em Paris - sobre tudo por causa do gnero fmea de que em Lisboa se passavam fomes:ainda que nesse ponto a Providencia no o tratava mal. Gostava tambm do bric-a-brac; masapanhava-se muita espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo, no lhe pareciam cmodas para agente se sentar. A leitura entretinha-o, e ningum o pilhava sem livros cabeceira da cama;ultimamente andava s voltas com Daudet, que lhe diziam ser muito chic, mas ele achava-oconfusote. Em rapaz perdia sempre as noites, ats quatro ou cinco da madrugada, no delrio!Agora no, estava mudado e pacato; enfim, no dizia que de vez em quando no seabandonasse a um excessozinho; mas s em dias duples... E as suas perguntas foram terrveis. OSr. Maia achava chic ter um cab ingls? Qual era mais elegante, assim para um rapaz desociedade que quisesse ir passar o vero l fora, Nice ou Trouvile?... Depois ao sair, muito srio,quasi comovido, perguntou ao Sr. Maia (se o Sr.Maia no fazia segredo) quem era o seu alfaiate.

    E desde esse dia, no o deixou mais. Se Carlos aparecia no teatro, Dmaso imediatamentearrancava-se da sua cadeira, s vezes na solenidade duma bela ria, e pisando os botins doscavalheiros, amarrotando a compostura das damas, abalava, abria de estalo a claque, vinha-se

    instalar na frisa, ao lado de Carlos, com a bochecha corada, camlia na casaca, exibindo osbotes de punho que eram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entraracasualmente no Grmio, Dmaso abandonou logo a partida, indiferente indignao dosparceiros, para se vir colar ilharga do Maia, oferecer-lhe marrasquino ou charutos, segui-lo desala em sala como um rafeiro. Numa dessas ocasies, tendo Carlos soltado um trivial gracejo,eis o Dmaso rompendo em risadas soluantes, rebolando-se pelos sofs, com as mos nasilhargas, a gritar que rebentava! Juntaram-se scios; ele, sufocado, repetia a pilhria; Carlosfugiu vexado. Chegou a odi-lo; respondia-lhe s com monosslabos; dava voltas perigosas como dog-cart se lhe avistava de longe a bochecha, a coxa rolia. Debalde: Dmaso Cndido Salcede

    filara-o, e para sempre.Depois, um dia, Taveira apareceu no Ramalhete com uma extraordinria histria. Na

    vspera, no Grmio (tinham-lhe contado, ele no presenciara) um sujeito, um Gomes, numgrupo onde se comentavam os Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos era um asno!

    Dmaso, que estava ao lado mergulhado na Ilustrao, levantou-se, muito plido, declarou que,tendo a honra de ser amigo do Sr. Carlos da Maia, quebrava a cara com a bengala ao Sr. Gomes

    se ele ousasse babujar outra vez esse cavalheiro; e o Sr. Gomes tragou, com os olhos no cho, aafronta, por ser raqutico de nascena - e porque era inquilino de Dmaso e andava muitoatrasado na renda. Afonso da Maia achou este feito brilhante: e foi por desejo seu que Carlostrouxe o Sr. Salcede uma tarde a jantar ao Ramalhete.

    Este dia pareceu belo a Dmaso como se fosse feito de azul e oiro. Mas melhor ainda foi amanh em que Carlos, um pouco incomodado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entrerapazes... da datava a sua intimidade: comeou a tratar Carlos por voc. Depois, nessa semana,revelou aptides teis. Foi despachar alfndega (Vilaa achava-se no Alentejo) um caixote deroupa para Carlos. Tendo aparecido num momento em que Carlos copiava um artigo para aGazeta Medica ofereceu a sua boa letra, letra prodigiosa, de uma beleza litogrfica; e da pordiante passava horas banca de Carlos, aplicado e vermelho, com a ponta da l ngua de fora, oolho redondo, copiando apontamentos, transcries de Revistas, materiais para o livro... Tantadedicao merecia um tu de familiaridade. Carlos deu-lho.

    Dmaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade inquieta, desde a barba quecomeava agora a deixar crescer at forma dos sapatos. Lanara-se no bric-a-brac. Traziasempre o coup cheio de lixos arqueolgicos, ferragens velhas, um bocado de tijolo, a asarachada de um bule... E se avistava um conhecido, fazia parar, entreabria a portinhola como um

    dito de sacrrio, exibia a preciosidade:

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    - Que te parece? Chic a valer!... Vou mostra-la ao Maia. Olha-me isto, hein! Pura meia

    idade, do reinado de Lus XIV. O Carlos vai-se roer de inveja!Nesta intimidade de rosas havia todavia para Dmaso horas pesadas. No era divertido

    assistir em silncio, do fundo duma poltrona, s infindveis discusses de Carlos e de Craftsobre arte e sobre cincia. E, como ele confessou depois, chegara a encavacar um pouco quandoo levaram ao laboratrio para fazer no seu corpo experincias de electricidade... - Pareciamdois demnios engalfinhados em mim, disse ele Sr. condessa de Gouvarinho; e eu ento queembirro com o espiritismo!...

    Mas tudo isto ficava regiamente compensado, quando noite, num sof do Grmio, ou aoch numa casa amiga, ele podia dizer, correndo a mo

    pelo cabelo:

    - Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, bric-a-brac, discutimos... Um dia,chic! Amanh tenho uma manh de trabalho com o Maia... Vamos s colchas.

    Nesse domingo, justamente, deviam ir s colchas, ao Lumiar. Carlos concebera um boudoir, todo revestido de colchas antigas de cetim, bordadas a dois tons especiais, prola eboto de ouro. O tio Abrao esquadrinhava-as por toda a Lisboa e pelos subrbios; e nessamanh viera anunciar a Carlos a existncia de duas preciosidades, so beautiful! oh! so lovely!

    em casa de umas senhoras Medeiros que esperavam o Sr. Maia s duas horas...J trs vezes Dmaso tossira, olhara o relgio, - mas, vendo Carlos confortavelmentemergulhado na Revista, recaia tambm na sua indolncia de homem chic, investigando oFigaro. Enfim, dentro, o relgio Lus XV cantou argentinamente as duas...

    - Esta boa, exclamou Dmaso ao mesmo tempo, com uma palmada na coxa. Olha quemaqui me aparece! A Suzana! A minha Suzana!

    Carlos no despegara os olhos da pagina.- Oh Carlos, acrescentou ele, fazes favor? Ouve. Ouve esta que boa. Esta Suzana uma

    pequena que eu tive em Paris... Um romance! Apaixonou-se por mim, quis-se envenenar, odiabo!... Pois diz aqui o Figaro que debutou nas Folies-Bergeres. Fala nela... boa, hein? E erarapariguita chic... E o Figaro diz que ela teve aventuras, naturalmente sabia o que se passou

    comigo... Todo o mundo sabia em Paris. Ora a Suzana!... Tinha bonitas pernas. E custou-me a

    ver livre dela!- Mulheres! murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundo da Revista.

    Dmaso era interminvel, torrencial, inundante a falar das suas conquistas, naquelaslida satisfao em que vivia de que todas as mulheres, desgraadas delas, sofriam afascinao da sua pessoa e da sua toilete. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado nasociedade, com coup e parelha, todas as meninas tinham para ele um olhar doce. E no d mi-monde, como ele dizia, tinha prestgio a valer. Desde moo fora celebre, na capital, por porcasas a espanholas; a uma mesmo dera carruagem ao ms; e este fausto excepcional tornara-o

    bem depressa o D. Joo V dos prostbulos. Conhecia-se tambm a sua ligao com a viscondessada Gafanha, uma carcassa esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos os homens vlidos dopas: a nos cinquenta anos, quando chegou a vez do Dmaso - e no era decerto uma delcia ternos braos aquele esqueleto rangente e lbrica; mas dizia-se que em nova dormira num leitoreal, e que augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou Dmaso, e colou-se-lhes saias com uma fidelidade to sabuja, que a decrpita criatura, farta, enojada j, teve de oenxotar fora e com desfeitas. Depois gozou uma tragdia: uma actriz do Prncipe Real, umamontanha de carne, apaixonada por ele, numa noite de cime e de genebra, engoliu uma caixade fsforos; naturalmente da a horas estava boa, tendo vomitado abominavelmente sobre ocolete do Dmaso que chorava ao lado - mas desde ento este homem de amor julgou-se fatal!Como ele dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida quasi tremia, tremia

    verdadeiramente de fitar uma mulher...

    - Passaram-se cenas com esta Suzana! murmurou ele depois de um silncio em que estiveracatando pelculas nos beios.

    E, com um suspiro, retomou o Figaro. Houve outra vez um silncio no terrao. Dentro, a

    partida continuava. Para l da sombra do toldo, agora, o sol a aquecendo, batendo a pedra, osvasos de loua branca, numa refraco de ouro claro em que palpitavam as asas das primeiras

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    borboletas voando em redor dos craveiros sem flor: em baixo, o jardim verdejava, imvel naluz, sem um bulir de ramo, refrescado pelo cantar do repuxo, pelo brilho liquido da gua dotanque, avivado, aqui e alm, pelo vermelho ou o amarelo das rosas, pela carnao das ultimascamlias... O bocado de rio que se avistava entre os prdios era azul ferrete como o cu: e entrerio e cu o monte punha uma grossa barra verde-escura, quasi negra no resplendor do dia, comos dois moinhos parados no alto, as duas casinhas alvejando em baixo, to luminosas ecantantes que pareciam viver. Um repouso dormente de domingo envolvia o bairro: e, muito

    alto, no ar, passava o claro repique dum sino.- O duque de Norfolk chegou a Paris, disse Dmaso num tom entendido e traando a

    perna. O duque de Norfolk chic, no verdade, Carlos?Carlos, sem erguer os olhos, lanou para os cus um gesto, como exprimindo o infinito do

    chic!Dmaso largara o Figaro para meter um charuto na boquilha; depois desapertou os ltimos

    botes do colete, deu um puxo camisa para mostrar melhor a marca que era um S enormesob uma coroa de conde, e de plpebra cerrada, com o beio trombudo, ficou mamandogravemente a boquilha...

    - Tu ests hoje em beleza, Dmaso, disse-lhe Carlos que deixara tambm a Revista e o

    contemplava com melancolia.Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, meia cor de carne, e

    revirando para Carlos o bogalho azulado da rbita:- Eu agora ando bem... Mas, muito blaz.E foi realmente com um ar blaz que se ergueu a ir buscar a uma mesa de jardim, ao lado,

    onde estavam jornais e charutos, a Gazeta Ilustrada, para ver o que ia pela ptria. Apenas lhedeitou os olhos soltou uma exclamao.

    - Outro debute? perguntou Carlos.

    - No, a besta do Castro Gomes!A Gazeta Ilustrada anunciava que o Sr. Castro Gomes, o cavalheiro brasileiro que no

    Porto fora vtima da sua dedicao por ocasio da desgraa ocorrida na Praa Nova, e de que onosso correspondente J. T. nos deu uma descrio to opulenta de colorido realista, acha-se

    restabelecido e hoje esperado no Hotel Central. Os nossos parabns ao arrojado gentleman.- Ora est s. Ex. restabelecida! exclamou Dmaso, atirando para o lado o jornal. Pois deixa

    estar, que agora a ocasio de lhe dizer na cara o que penso... Aquele pulha!- Tu exageras, murmurou Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e relia a noticia.

    - Ora essa! exclamou Dmaso, erguendo-se. Ora essa! Queria ver, se fosse contigo... umabesta! um selvagem!

    E repetiu mais uma vez a Carlos essa histria que o magoava. Desde a sua chegada deBordus, logo que o Castro Gomes se instalara no Hotel Central, ele fora deixar-lhe bilhetesduas vezes - a ultima na manh seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, s. Ex. no se dignaraagradecer a visita! Depois eles tinham partido para o Porto; fora a que, passeando s na PraaNova, vendo a parelha de uma caleche desbocada, duas senhoras em gritos, Castro Gomes selanara ao freio dos cavalos - e, cuspido contra as grades, tinha deslocado um brao. Teve deficar no Porto, no Hotel, cinco semanas. E ele imediatamente (sempre com o olho na mulher)

    mandara-lhe dois telegramas: um de sentimento, lamentando, outro de interesse, pedindo

    noticias. Nem a um, nem a outro, o animal respondeu!- No, isso - exclamava Salcede, passeando pelo terrao, e recordando estas injurias - hei de

    lhe fazer uma desfeita!... No pensei ainda o qu, mas h de amargar-lhe... L isso,desconsideraes no admito a ningum! a ningum!

    Arredondava o olho, ameaador. Desde o seu feito no Grmio, quando o raquticoapavorado emudecera diante dele, Dmaso ia-se tornando feroz. Pela menor coisa falava emquebrar caras.

    - A ningum! repetia ele, com puxes ao colete. Desconsideraes, a ningum!Nesse momento ouviu-se dentro, no escritrio, a voz rpida do Ega - e quasi

    imediatamente ele apareceu, com um ar de pressa, e atarantado.- Ol, Dmasosinho!... Carlos, ds-me aqui em baixo uma palavra?

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    Desceram do terrao, penetraram no jardim, at junto de duas olaias em flor.- Tu tens dinheiro? - foi a logo a exclamao ansiosa do Ega.E contou a sua terrvel atrapalhao. Tinha uma letra de noventa libras que se vencia no

    dia seguinte. Alm disso, vinte e cinco libras que devia ao Euzebiosinho, e que ele lhe reclamaranuma carta indecente: e era isto que desesperava o Ega...

    - Quero pagar a esse canalha, e quando o vir colar-lhe a carta cara com um escarro. Almdisso a letra! E tenho para tudo isto quinze tostes...

    - O Euzebiosinho homem de ordem... Enfim, queres cento e quinze libras, disse Carlos.Ega hesitou, com uma cor no rosto. J devia dinheiro a Carlos. Estava-se sempre dirigindo

    quela amizade, como a um cofre inesgotvel...- No, bastam-me oitenta. Ponho o relgio no prego, e a pelia, que j no faz frio...Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque - em quanto Ega procurava

    cuidadosamente um bonito boto de rosa para florir a sobrecasaca. Carlos no tardou, trazendona mo o cheque, que alargara at cento e vinte libras, para o Ega ficar armado...

    - Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro, embolsando o papel, com um belo suspiro

    de alvio.Imediatamente trovejou contra o Euzebiosinho, esse vilo! Mas tinha j uma vingana. Ia

    remeter-lhe a soma toda em cobre, num saco de carvo, com um rato morto dentro, e umbilhete, comeando assim: - ascorosa lombriga e imunda osga, a te atiro ao focinho, etc....- Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras, respirando o teu ar, aquele ser

    repulsivo!...

    Mas era at sujo mencionar o Euzebiosinho!... Quis saber dos trabalhos de Carlos, dogrande livro. Falou tambm do seu tomo: - e, por fim, numa voz diferente, aplicando omonculo a Carlos:

    - Dize-me outra coisa. Porque no tens tu voltado aos Gouvarinhos?Carlos tinha s esta razo: no se divertia l.Ega encolheu os ombros. Parecia-lhe aquilo uma puerilidade...

    - Tu no percebeste nada, exclamou ele. Aquela mulher tem uma paixo por ti... Basta quese pronuncie o teu nome, sobe-lhe todo o sangue cara.

    E como Carlos ria, incrdulo, Ega, muito grave, deu a sua palavra de honra. Ainda navspera, estava-se falando de Carlos, e ele espreitara-a. Sem ser um Balzac, nem uma broca deobservao, tinha a viso correcta: pois bem, l lhe vira na face, nos olhos, toda a expresso deum sentimento sincero...

    - No estou a fazer romance, menino... Gosta de ti, palavra! Tem-la quando quiseres.Carlos achava deliciosa aquela naturalidade mefistoflica com que Ega o induzia a quebrar

    uma infinidade de leis religiosas, morais, sociais, domesticas...- Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa blague da cartilha e do cdigo, ento no

    falemos mais nisso! Se apanhaste a sarna da virtude, com comiches por qualquer coisa, entoera uma vez um homem, vai para a Trapa comentar o Eclesiastes.

    - No - disse Carlos, sentando-se num banco sob as rvores, ainda com uns restos dapreguia do terrao - o meu motivo no to nobre. No vou l, porque acho o Gouvarinho ummaador.

    Ega teve um sorriso mudo.

    - Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem maridos maadores...Sentou-se ao lado de Carlos, comeou a riscar em silncio o cho areado; e sem erguer os

    olhos, deixando cair as palavras, uma a uma, com melancolia:- Antes de ontem, toda a noite, a p firme, das dez uma, estive a ouvir a histria da

    demanda do Banco Nacional!

    Era quasi uma confidncia, e como o desabafo dos tdios secretos em que se debatia,naquele mundo dos Cohens, o seu temperamento de artista. Carlos enterneceu-se.

    - Meu pobre Ega, ento toda a demanda?- Toda! E a leitura do relatrio da assembleia geral! E interessei-me! E tive opinies!... A

    vida um inferno.

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    Subiram ao terrao. Dmaso reocupara a sua cadeira de vime, e, com um canivetesinho demadreprola, estava tratando das unhas.

    - Ento decidiu-se? perguntou ele logo ao Ega.- Decidiu-se ontem! No h cotilon.Tratava-se de uma grande soire mascarada que iam dar os Cohens, no dia dos anos de

    Rachel. A ideia desta festa sugerira-a o Ega, ao principio com grandes propores de galaartstica, a ressurreio histrica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depois viu-se que umatal festa era realizvel em Lisboa - e desceu-se a um plano mais s brio, um simples bailecostum, a capricho...

    - Tu, Carlos, j decidiste como vais?- De domin, um severo domin preto, como convm a um homem de cincia...- Ento, exclamou Ega se se trata de cincia, vai de rabona e chinelas de ourelo!... A cincia

    faz-se em casa e de chinelas... Nunca ningum descobriu uma lei do Universo metido dentro deum domin... Que sensaboria, um domin!...

    Justamente a Sr. D. Rachel desejava evitar, no seu baile, essa monotonia dos domins. Eem Carlos no havia desculpa. No o prendiam vinte ou trinta libras; e, com aquele esplndidofsico de cavaleiro da Renascena, devia ornar a sala pelo menos com um soberbo Francisco I.

    - nisto, ajuntava ele com fogo, que est a beleza de uma soire de mascaras! No lheparece voc, Dmaso? Cada um deve aproveitar a sua figura... Por exemplo, a Gouvarinho vaimuito bem. Teve uma inspirao: com aquele cabelo ruivo, o nariz curto, as mas do rostosalientes, Margarida de Navarra...

    - Quem Margarida de Navarra? perguntou Afonso da Maia, aparecendo no terrao comCraft.

    - Margarida, a duquesa de Angouleme, a irm de Francisco I, a Margarida das Margaridas,a prola dos Valois, a padroeira da Renascena, a Sr. condessa de Gouvarinho!...

    Rio muito, foi abraar Afonso, explicou-lhe que se discutia o baile dos Cohens. E apeloulogo para ele, para o Craft tambm, acerca do nefando domin de Carlos. No estava aquelemoceto, com os seus ares de homem de armas, talhado para um soberbo Francisco I, em toda aglria de Marignan?

    O velho deu um olhar enternecido beleza do neto.- Eu te digo, John, talvez tenhas razo; mas Francisco I, rei de Frana, no se pode apear de

    uma tipia e entrar numa sala, s. Precisa corte, arautos, cavaleiros, damas, bobos, poetas...Tudo isso difcil.

    Ega curvou-se. Sim senhor, de acordo! Ali estava uma maneira inteligente de compreender

    o baile dos Cohens!

    - E tu, de que vais? perguntou-lhe Afonso.Era um segredo. Tinha a teoria de que, naquelas festas, um dos encantos consistia na

    surpresa: dois sujeitos por exemplo que tendo jantado juntos, de jaqueto, no Bragana, seencontram noite, um na prpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta de bandido daCalabria...

    - Eu c no fao segredo, disse ruidosamente Dmaso. Eu c vou de selvagem.- N?- No. De Nelusko na Africana. Oh Sr. Afonso da Maia, que lhe parece? Acha chic?- Chic no exprime bem, disse Afonso sorrindo. Mas grandioso, , decerto.Quiseram ento saber como a Craft. Craft no a de coisa nenhuma; Craft ficava nos

    Olivais, de robe de chambre.Ega encolheu os ombros com tdio, quasi com clera. Aquelas indiferenas pelo baile dos

    Cohens feriam-no como injurias pessoais. Ele estava dando a essa festa o seu tempo, estudos na

    biblioteca, um trabalho fumegante de imaginao; e pouco a pouco ela tomava aos seus olhos aimportncia de uma celebrao de arte, provando o gnio de uma cidade. Os domins, asabstenes, pareciam-lhe evidencias de inferioridade de esprito. Citou ento o exemplo doGouvarinho: ali estava um homem de ocupaes, de posio poltica, nas vsperas de ser

    ministro, que no sa ao baile, mas estudara o seu costume: estudara, e a muito bem, a demarqus de Pombal!

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    - Reclame para ser ministro, disse Carlos.

    - No o precisa, exclamou Ega. Tem todas as condies para ser ministro: tem voz sonora,leu Mauricio Block, est encalacrado, e um asno!...

    E no meio das risadas dos outros, ele, arrependido de demolir assim um cavalheiro que seinteressava pelo baile dos Cohens, acudiu logo:

    - Mas muito bom rapaz, e no se d ares nenhuns! um anjo!Afonso repreendia-o, risonho e paternal:

    - Ora tu, John, que no respeitas nada...O desacato a condio do progresso, Sr. Afonso da Maia. Quem respeita decai. Comea-

    se por admirar o Gouvarinho, vai-se a gente esquecendo, chega a reverenciar o monarca, equando mal se precata tem descido a venerar o Todo-Poderoso!... necessrio cautela!

    - Vai-te embora, John, vai-te embora! Tu s o prprio Anti-Cristo...Ega a responder, exuberante e em veia - mas dentro o tinir argentino do relgio Lus XV,

    com o seu gentil minuete, emudeceu-o.

    - O que? quatro horas!

    Ficou aterrado, verificou no seu prprio relgio, deu em redor rpidos, silenciosos apertosde mo, desapareceu como um sopro.

    Todos de resto estavam pasmados de ser to tarde! E assim passara a hora de ir ao Lumiarver as colchas antigas das senhoras Medeiros...- Quer voc ento meia hora de florete, Craft? perguntou Carlos.- Seja: e necessrio dar a lio ao Dmaso...- verdade, a lio... - murmurou Dmaso sem entusiasmo, com um sorriso murcho.A sala de esgrima era uma casa trrea, debaixo dos quartos de Carlos, com janelas

    gradeadas para o jardim, por onde resvalava, atravs das rvores, uma luz esverdinhada. Emdias enevoados era necessrio acender os quatro bicos de gs. Dmaso seguiu, atrs dos dois,com uma lentido de rs desconfiada.

    Aquelas lies, que ele solicitara por amor do chic, iam-se-lhe tornando odiosas. E nessatarde como sempre, apenas se enchumaou com o plastro de anta, se cobriu com a caraa dearame, comeou a transpirar, a fazer-se branco. Diante dele Craft de florete na mo, parecia-lhe

    cruel e bestial, com aqueles seus ombros de Hercules sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferrosrasparam. Dmaso estremeceu todo.

    - Firme, gritou-lhe Carlos.O desgraado equilibrava-se sobre a perna rolia; o florete de Craft vibrou, rebrilhou, voou

    sobre ele; Dmaso recuou, sufocado, cambaleando e com o brao frouxo...- Firme! berrava-lhe Carlos.

    Dmaso, exausto, abaixou a arma.- Ento que querem vocs, nervoso! por ser a brincar... Se fosse a valer, vocs veriam.Assim acabava sempre a lio; e ficava depois abatido sobre uma banqueta de marroquim,

    arejando-se com o leno, plido como a cal dos muros.- Vou-me at casa, disse ele da a pouco, fatigado de tanto cruzar de ferro. Queres alguma

    coisa, Carlinhos?

    - Quero que venhas c jantar amanh... Tens o marqus.- Chic a valer... No faltarei.Mas faltou. E, como toda essa semana aquele moo pontual no apareceu no Ramalhete,

    Carlos sinceramente inquieto, julgando-o moribundo, foi uma manh a casa dele, Lapa. Masai, o criado (um galego achavascado e triste, que, desde as suas relaes com os Maias, Dmasotrazia entalado numa casaca e mortalmente aperreado em sapatos de verniz) afirmou-lhe que o

    Sr. Dmasosinho estava de boa sade, e at sara a cavalo. Carlos veio ento ao tio Abrao; o tioAbrao tambm no avistara, havia dias, aquele bom senhor Salcede, that beautiful gentleman!A curiosidade de Carlos levou-o ao Grmio: no Grmio nenhum criado vira ultimamente o Sr.Salcede. Est por a de lua de mel com alguma bela andaluza pensou Carlos.

    Chegara ao fim da rua do Alecrim quando viu o conde de Steinbroken que se dirigia ao

    Aterro, a p, seguido da sua vitria a passo. Era a segunda vez que o diplomata fazia exercciodepois do seu desgraado ataque de entranhas. Mas no tinha j vestgios da doena: vinha

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    todo rosado e loiro, muito slido na sua sobrecasaca, e com uma bela rosa de ch na botoeira.Declarou mesmo a Carlos que estava mais forrte. E no lamentava os sofrimentos, porqueeles lhe tinham dado o meio de apreciar as simpatias que gozava em Lisboa. Estava

    enternecido. Sobretudo o cuidado de S. M. - o augusto cuidado de S. M. - fizera-lhe melhor quetodos os drogues de botique! Realmente nunca as relaes entre esses dois pases, toestreitamente aliados, Portugal e Finlndia, tinham sido ms firmes, pur assi dizerre msintimes, que durrante seu ataque de intestinais!

    Depois, travando do brao a Carlos, aludiu comovido ao oferecimento de Afonso da Maia,que pusera sua disposio Sta. Olavia, para ele se restabelecer nesses ares fortes e limpos doDouro. Oh esse convite tocara-o au plus profond de son coeur. Mas, infelizmente, Sta. Olaviaera longe, to longe!... Tinha de se contentar com Sintra, de onde podia vir todas as semanas,uma, duas vezes, vigiar a Legao. C'tait enuyeux, mais... A Europa estava num dessesmomentos de crise, em que homens de estado, diplomatas, no podiam afastar-se, gozar asmenores ferias. Precisavam estar ali, na brecha, observando, informando...

    - C'est trs grave, murmurou ele, parando, com um pavor vago no olhar azulado... C'estexcessivement grave!

    Pediu a Carlos que olhasse em torno de si para a Europa. Por toda a parte uma confus o,

    um gachis. Aqui a questo do Oriente; alem o socialismo; por cima o Papa, a complicar tudo...Oh, trs grave!- Tenez, la France, par exemple... D'abord Gambeta. Oh, je ne dis pas non, il est tr s fort, il

    est excessivement fort... Mais... Voil! C'est trs grave...Por outro lado os radicais, les nouveles couches... Era excessivamente grave...- Tenez, je vais vous dire une chose, entre nous!

    Mas Carlos no escutava, nem sorria j. Do fim do Aterro aproximava-se, caminhandodepressa, uma senhora - que ele reconheceu logo, por esse andar que lhe parecia de uma deusa

    pisando a terra, pela cadelinha cor de prata que lhe trotava junto s saias, e por aquele corpomaravilhoso, onde vibrava, sob linhas ricas de mrmore antigo, uma graa quente, ondeante enervosa. Vinha toda vestida de escuro, numa toilete de serge muito simples que era como o

    complemento natural da sua pessoa, colando-se bem sobre ela, dando-lhe, na sua correco, um

    ar casto e forte; trazia na mo um guarda-sol ingls, apertado e fino como uma cana; e toda ela,adiantando-se assim no luminoso da tarde, tinha, naquele cais triste de cidade antiquada, um

    destaque estrangeiro, como o requinte raro de civilizaes superiores. Nenhum vu, nessatarde, lhe assombreava o rosto. Mas Carlos no pde detalhar-lhe as feies; apenas de entre oesplendor ebrneo da carnao sentiu o negro profundo de dois olhos que se fixaram nos seus.Insensivelmente deu um passo para a seguir. Ao seu lado Steinbroken, sem ver nada, estava

    achando Bismark assustador. maneira que ela se afastava, parecia-lhe maior, mais bela: eaquela imagem falsa e literria de uma deusa marchando pela terra prendia-se-lhe imaginao. Steinbroken ficara aterrado com o discurso do Chanceler no Reichstag... Sim, era

    bem uma deusa. Sob o chapu numa forma de trana enrolada, aparecia o tom do seu cabelocastanho, quasi louro luz; a cadelinha trotava ao lado, com as orelhas direitas.

    - Evidentemente, disse Carlos, Bismarck inquietador...Steinbroken porm j deixara Bismark. Steinbroken agora atacava lord Beaconsfield.- Il est trs fort... Oui, je vous l'acorde, il est excessivement fort... Mais voil... O va-t-il?Carlos olhava para o cais de Sodr. Mas tudo lhe parecia deserto. Steinbroken antes de

    adoecer, justamente, tinha dito ao ministro dos negcios estrangeiros aquilo mesmo: lordBeaconsfield muito forte, mas para onde vai ele? O que queria ele?... E s. Ex. tinha encolhidoos ombros... S. Ex. no sabia...

    - Eh, oui! Beaconsfield est trs fort... Vous avez lu son speech chez le Lord-Maire? Epatant,mon cher, epatant!... Mais voil... O va-t-il?

    - Steinbroken, no me parece que seja prudente deixar-se estar aqui a arrefecer no Aterro...- Devrras? exclamou o diplomata, passando logo a mo rapidamente pelo estmago e

    pelo ventre.

    E no se quis demorar um instante mais! Como Carlos a recolher tambm, ofereceu-lheum lugar na vitria at ao Ramalhete.

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    - Venha ento jantar conosco, Steinbroken.- Charm, mon cher, charm...A vitria partiu. E o diplomata agasalhando as pernas e o estmago num grande plaid

    escocs:- Ps, Maia, fezemos um belo passo... Mas este Atrro no deverrtido.No era divertido o Aterro!... Carlos achara-o nessa tarde o mais delicioso lugar da terra!Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns passos entre as rvores, viu-a logo.

    Mas no vinha s; ao seu lado o marido, esticado, apurado numa jaqueta de casimira quasi branca, com uma ferradura de diamantes no cetim negro da gravata, fumava, indolente e

    lnguido, e trazia a cadelinha debaixo do brao. Ao passar, deu um olhar surpreendido a Carlos- como descobrindo enfim entre os brbaros um ser de linha civilizada, e disse-lhe algumaspalavras baixo, a ela.

    Carlos encontrara outra vez os seus olhos, profundos e srios: mas no lhe parecera to bela; trazia uma outra toilete menos simples, de dois tons, cor de chumbo e cor de creme, e no

    chapu, de abas grandes inglesa, avermelhada alguma coisa, flor ou pena. Nessa tarde no eraa deusa descendo das nuvens de ouro que se enrolavam alem sobre o mar; era uma bonitasenhora estrangeira que recolhia ao seu hotel.

    Voltou ainda trs vezes ao Aterro, no a tornou a ver; e ento envergonhou-se, sentiu-sehumilhado com este interesse romanesco que o trazia assim numa inquietao de rafeiroperdido, farejando o Aterro, da rampa de Santos ao cais de Sodr, espera de uns olhos negrose de uns cabelos louros de passagem em Lisboa, e que um paquete da Royal Mail levaria uma

    dessas manhs...E pensar que toda essa semana deixara o seu trabalho abandonado sobre a mesa! E que

    todas as tardes, antes de sair, se demorava ao espelho, estudando a gravata! Ah, miservel,miservel natureza.

    Ao fim dessa semana, Carlos estava no consultrio, j para sair, calando as luvas, quandoo criado entreabriu o reposteiro, e murmurou com alvoroo:

    - Uma senhora!

    Apareceu um menino muito plido, de caracis louros, vestido de veludo preto - e atrs

    uma mulher, toda de negro, com um vu justo e espessocomo uma mascara.

    - Creio que vim tarde, disse ela, hesitando, junto da porta. O Sr. Carlos da Maia ia sair...Carlos reconheceu a Gouvarinho.

    - Oh senhora condessa!

    Desembaraou logo o div dos jornais e das brochuras; ela olhou um momento, comoindecisa, aquele amplo e mole assento de serralho; depois sentou-se borda e de leve, com opequeno junto de si.

    - Venho trazer-lhe um doente, disse ela sem erguer o vu, como falando do fundo daquelatoilete negra que a dissimulava. No o mandei chamar, por que realmente pouco , e tinha hojede passar por aqui... Alm disso, o meu pequeno muito nervoso; se v entrar o mdico,parece-lhe que vai morrer. Assim como uma visita que se faz... E no tens medo, no verdade, Charlie?

    O pequeno no respondeu; de p, quedo ao lado da mam; mimoso e dbil sob os caracisde anjo que lhe caiam at aos ombros, devorava Carlos com uns grandes olhos tristes.

    Carlos ps um interesse quasi terno na sua pergunta:- Que tem ele?Havia dias, aparecera-lhe uma empigem no pescoo. Alm disso, por traz da orelha, tinha

    como uma dureza de caroo. Aquilo inquietava-a. Ela era forte, de uma boa raa, que deraatletas e velhos de grande idade. Mas na famlia do marido, em todos os Gouvarinhos, haviauma anemia hereditria. O conde mesmo, com aquela slida aparncia, era um achacado. E ela,receando que a influncia debilitante de Lisboa no conviesse a Charlie, estava com o vagoprojecto de lhe fazer ir passar algum tempo ao campo, em Formoselha, a casa da av.

    Carlos, aproximando ligeiramente a cadeira, estendeu os braos a Charlie:

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    - Ora venha c o meu lindo amigo, para vermos isso. Que magnfico cabelo ele tem,senhora condessa!...

    Ela sorrio. E Charlie, seriosinho, bem ensinado, sem aquele terror do mdico de que falaraa mam veio logo, desapertou delicadamente o seu grande colarinho, e, quasi entre os joelhosde Carlos, dobrou o pescoo macio e alvo como um lrio.

    Carlos viu apenas uma pequena mancha cor de rosa desvanecendo-se; do caroo nohavia vestgio; e ento uma ligeira vermelhido subiu-lhe ao rosto, procurou vivamente osolhos da condessa, como compreendendo tudo, querendo ver neles a confisso do sentimentoque a trouxera ali com um pretexto pueril, sob aquela toilete negra, aqueles vus que amascaravam...

    Mas ela permaneceu impenetrvel, sentada borda do div, com as mos cruzadas, atenta,como esperando as suas palavras, num vago susto de me.

    Carlos abotoou o colarinho do pequeno, e disse:

    - No absolutamente nada, minha senhora.No entanto, fez perguntas de mdico sobre o regime e a natureza de Charlie. A condessa,

    num tom pesaroso, queixou-se de que a educao da criana no fosse, como ela desejava, maisforte e mais viril; mas o pai opunha-se ao que ele chamava a aberrao inglesa, a gua fria, os

    exerccios a todo o ar, a ginstica...- A gua fria e a ginstica, disse Carlos sorrindo, tm melhor reputao do que merecem... o seu nico filho, senhora condessa?- , tem os mimos de morgado, disse ela passando a mo pelos cabelos louros do pequeno.Carlos assegurou-lhe que, apesar do seu aspecto nervoso e delicado, Charlie no devia dar-

    lhe cuidado; nem havia necessidade de o exilar para os ares de Formoselha... Depois ficaram

    um momento calados.- No imagina como me tranquilizou, disse ela, erguendo-se, dando um jeito ao vu. De

    mais a mais um gosto vir consulta-lo... No h aqui o menor ar de doena, nem de remdios...E realmente tem isto muito bonito... - acrescentou, dando um olhar lento em redor aos veludos

    do gabinete.

    - Tem justamente esse defeito, exclamou Carlos rindo. No inspira nenhum respeito pela

    minha cincia... Eu estou com ideias de alterar tudo, por aqui um crocodilo empalhado, corujas,retortas, um esqueleto, pilhas de in-flios...

    - A cela de Fausto.- Justamente, a cela de Fausto.

    - Falta-lhe Mefistfeles, disse ela alegremente, com um olhar que brilhou sob o vu.- O que me falta Margarida!A senhora condessa, com um lindo movimento, encolheu os ombros, como duvidando

    discretamente; depois tomou a mo de Charlie, e deu um passo lento para a porta, puxandooutra vez o vu.

    - Como V. Ex. se interessa pela minha instalao, acudiu Carlos querendo ret-la, deixe-me mostrar-lhe a outra sala.

    Correu o reposteiro. Ela aproximou-se, murmurou algumas palavras, aprovando a frescura

    dos cretones, a harmonia dos tons claros: depois o piano fe-la sorrir.

    - Os seus doentes danam quadrilhas?- Os meus doentes, senhora condessa, respondeu Carlos, no so bastante numerosos para

    formar uma quadrilha. Raras vezes mesmo tenho dois para uma valsa... O piano estsimplesmente ali para dar ideias alegres; como uma promessa tcita de sade, de futurassoires, de bonitas rias do Trovador, em famlia...

    - engenhoso, disse ela dando familiarmente alguns passos na sala, com Charlie coladoaos vestidos.

    E Carlos, caminhando ao lado dela:- V. Ex. no imagina como eu sou engenhoso!- J noutro dia me disse... Como foi que disse? Ah! que era muito inventivo quando odiava.

    - Muito mais quando amo, disse ele rindo.

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    Mas ela no respondeu: parara junto do piano, remexeu um momento as msicasespalhadas, feriu duas notas no teclado.

    - um chocalho.- Oh, senhora condessa!Ela seguiu, foi examinar um quadro a leo, copiado de Landseer - um focinho de co de S.

    Bernardo, macio e bonacheiro, adormecido sobre as patas. Quasi roando-lhe o vestido,Carlos sentia o fino perfume de verbena que ela usava sempre exageradamente: e, entre aqueles

    tons negros que a cobriam, a sua pele parecia mais clara, mais doce vista, e atraindo como umcetim.

    - Este um horror, murmurou ela, voltando-se; mas disse-me o Ega que h quadros lindosno Ramalhete... Falou-me sobretudo dum Greuze e dum Rubens... pena que se no possamver essas maravilhas.

    Carlos lamentava tambm que uma existncia de solteires lhes impedisse, a ele e ao av,de receberem senhoras. O Ramalhete estava tomando uma melancolia de mosteiro. Se assim

    continuassem mais alguns meses, sem que se sentisse ali um calor de vestido, um aroma de

    mulher, vinha a nascer a erva pelos tapetes.- por isso, acrescentou ele muito srio, que eu vou obrigar o av a casar-se.

    A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos alvejaram na sombra do vu.- Gosto da sua alegria, disse ela.- uma questo de regime. V. Ex. no alegre?Ela encolheu os ombros, sem saber... Depois, batendo com a ponta do guarda-sol na sua

    botina de verniz que brilhava sobre o tapete claro, murmurou com os olhos baixos, deixando iras palavras, num tom de intimidade e de confidncia:

    - Dizem que no, que sou triste, que tenho spleen...O olhar de Carlos seguira o dela, pousara-se na botina de verniz que calava

    delicadamente um p fino e comprido: Charlie, entretido, mexia nas teclas do piano - e elebaixou a voz para lhe dizer:

    - que a senhora condessa tem um mau regime. necessrio tratar-se, voltar aqui,consultar-me... Tenho talvez muito que lhe dizer!

    Ela interrompeu-o vivamente, erguendo para ele os olhos, de onde se escapou um clarode ternura e de triunfo:

    - Venha-mo antes dizer um destes dias, tomar ch comigo, s cinco horas... Charlie!O pequeno veio logo dependurar-se-lhe do brao.Carlos, acompanhando-a abaixo rua, lamentava a fealdade da sua escada de pedra:- Mas vou mandar atapetar tudo para quando a senhora condessa volte a dar-me a honra

    de me vir consultar...Ela gracejou, toda risonha:

    Ah no! O Sr. Carlos da Maia prometeu-nos a todos a sade... E naturalmente no esperaque seja eu que venha c tomar ch consigo...

    - Oh, minha senhora, eu quando comeo a esperar, no ponho limites nenhuns s minhasesperanas...

    Ela parou, com o pequeno pela mo, olhou para ele, como pasmada, encantada com aquelagrandiosa certeza de si mesmo.

    - Ento vai por a alm, por a alm...?- Vou por a alm, por a alm, minha senhora!Estavam no ultimo degrau, diante da claridade e do rumor da rua.- Mande-me chegar um coup.Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lanou logo a tipia.- E agora, disse ela sorrindo, mande-o ir igreja da Graa.- A senhora condessa vai beijar o p do Senhor dos Passos?Ela corou de leve, murmurou:

    - Ando fazendo as minhas devoes...

    Depois saltou ligeiramente para o coup - deixando Charlie, que Carlos ergueu nos braose lhe colocou ao lado, paternalmente.

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    - Que Deus a leve em sua santa guarda, senhora condessa!

    Ela agradeceu com um olhar, um movimento de cabea - ambos to doces como carcias.Carlos subiu: e, sem tirar o chapu, ficou ainda enrolando uma cigarrete, passeando

    naquela sala sempre deserta, sempre fria, onde ela deixara agora alguma coisa do seu calor e doseu aroma...

    Realmente gostava daquela audcia dela - ter vindo assim ao consultrio, toda escondida,quasi mascarada numa grande toilete negra, inventando um caroo no pescocinho so deCharlie, para o ver, para dar um n brusco e mais apertado naquele leve fio de relaes que eleto negligentemente deixara cair e quebrar...

    O Ega desta vez no fantasiara: aquele bonito corpo oferecia-se, to claramente como se sedespisse. Ah! se ela fosse de sentimentos errantes e fceis - que bela flor a colher, a respirar, adeitar fora depois! Mas no: como dizia o Baptista, a senhora condessa nunca se tinha divertido.E o que ele no queria era achar-se envolvido numa paixo ciosa, uma dessas ternurastumultuosas de mulher de trinta anos, de que depois se desembaraaria dificilmente... Nos

    braos dela o seu corao ficaria mudo: e apenas esgotada a primeira curiosidade, comearia otdio dos beijos que se no desejam, a horrvel maada do prazer a frio. Depois, teria de serntimo da casa, receber pelo ombro as palmadas do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa

    destilando doutrina... Tudo isto o assustava... E, todavia, gostara daquela audcia! Havia aliuma pontinha de romantismo, muito irregular, e picante... E devia ser deliciosamente bemfeita... A sua imaginao despia-a, enrolava-se-lhe no cetim das formas onde sentia ao mesmotempo alguma coisa de maduro e de virginal... E outra vez, como nas primeiras noites que os

    vira em S. Carlos, aqueles cabelos tentavam-no, assim avermelhados, to crespos e quentes...Saiu. E dera apenas alguns passos na rua Nova do Almada, quando avistou o Dmaso,

    num coup lanado a grande trote, que o chamava, mandava parar, com a face portinhola,vermelho e radiante:

    - No tenho podido l ir, exclamou ele, apoderando-se-lhe da mo, apenas Carlos seaproximou, e apertando-lha com entusiasmo. Tenho andado num turbilho!... Eu te contarei!Um romance divino... Mas eu te contarei!... Tem cuidado com a roda! Bate l, Calo!

    A parelha abalou; ele ainda se debruou da portinhola, agitou a mo, gritou no rumor da

    rua:- Um romance divino, chic a valer!

    Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de bilhar, Craft que acabava de bater omarqus, perguntou, pousando o taco e acendendo o cachimbo:

    - E noticias do nosso Dmaso? J se esclareceu esse lamentvel desaparecimento?...Carlos ento contou como o encontrara, afogueado e triunfante, atirando-lhe da portinhola

    do coup, em plena rua Nova do Almada, a noticia de um romance divino!- Bem sei, disse o Taveira.

    - Como sabes?... exclamou Carlos.Taveira vira-o na vspera, num grande landeau da Companhia, com uma esplndida

    mulher, muito elegante e que parecia estrangeira...- Ora essa! gritou Carlos. E com uma cadelinha escocesa?

    - Exactamente, uma cadelinha escocesa, um grifon cor de prata... Quem so?- E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar inglesado?

    - Justamente... Muito correcto, um ar sport... Que gente ?- Uma gente brasileira, penso eu.

    Eram os Castros Gomes, de certo! Isto parecia-lhe espantoso. Havia apenas duas semanasque no terrao o Dmaso, de punhos fechados, bramara contra os Castro Gomes e as suasdesconsideraes! Ia pedir outros pormenores ao Taveira - mas o marqus ergueu a voz dofundo da poltrona onde se estirara, e quis saber a opinio de Carlos sobre o grandeacontecimento dessa manh na Gazeta Ilustrada. - Na Gazeta Ilustrada?... Carlos no sabia, essamanh no vira jornal nenhum.

    - Ento no lhe digam nada, gritou o marqus. Venha a surpresa! C h a Gazeta? Manda

    buscar a Gazeta!

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    agora definia a Conscincia.... Segundo ele, era o medo da polcia. Tinha o amigo Craft visto jalgum com remorsos? No, a no ser no teatro da Rua dos Condes, em dramalhes...

    - Acredite voc uma coisa, Craft - terminou ele por dizer, cedendo ao Taveira que o puxavapara a mesa - isto de conscincia uma questo de educao. Adquire-se como as boasmaneiras; sofrer em silncio por ter trado um amigo, aprende-se exactamente como se aprendea no meter os dedos no nariz. Questo de educao... No resto da gente apenas medo dacadeia, ou da bengala... Ah! vocs querem levar outra sova ao domin como a de sbadopassado? Perfeitamente, sou todo vosso...

    Carlos, que estivera passando de novo os olhos pelo artigo do Ega, aproximou-se tambmda mesa. E estavam sentados, remexiam as pedras - quando porta da sala apareceu o conde deSteinbroken, de casaca e crach, gran-cruz sobre o colete branco, loiro como uma espiga,esticado e resplandecente. Tinha jantado no Pao, e vinha acabar no Ramalhete a sua soire, emfamlia...

    Ento o marqus que o no via desde o famoso ataque de intestinos, abandonou o domin,correu a abraa-lo ruidosamente - e sem o deixar sequer sentar, nem estender a mo aos outros,implorou-lhe logo uma das suas belas canes filandesas, uma s, daquelas que lhe faziam to

    bem alma!...

    - S a Balada, Steinbroken... Eu tambm no me posso demorar, que tenho aqui a partida espera. S a Balada!... V, salta l para dentro para o piano, Cruges...O diplomata sorria, dizia-se cansado, tendo j feito msica deliciosa no Pao com Sua

    Magestade. Mas nunca sabia resistir quele modo folgazo do marqus - e l foram para a salado piano, de brao dado, seguidos pelo Cruges, que levara uma eternidade a desenroscar-se docanto do sof. E da a um momento, atravs dos reposteiros meio corridos, a bela voz de

    bartono do diplomata espalhava pelas salas, entre os suspiros do piano, a embaladoramelancolia da Balada, com a sua letra traduzida em francs, que o marqus adorava, e em quese falava das nvoas tristes do Norte, de lagos frios e de fadas loiras...

    Taveira e Carlos, no entanto, tinham comeado uma grande partida de domin, a tosto oponto. Mas Carlos nessa noite no se interessava, jogando distrado, a cantarolar tambm baixo

    bocados tristes da Balada: depois, quando j Taveira tinha s uma pedra diante de si, e ele

    estava comprando interminavelmente as que restavam, voltou-se para o lado, para o Craft, aperguntar se o hotel da Lawrence, em Sintra, estava aberto todo o ano...

    - A ida do Dmaso para Sintra deu-te no goto, rosnou Taveira impaciente. Anda, joga!Carlos, sem responder, pousou molemente uma pedra.

    - Domin! gritou Taveira.E em triunfo, aos pulos, contou ele mesmo os sessenta e oito pontos que Carlos perdia.

    Justamente o marqus entrava, e a vitria de Taveira indignou-o.- Agora ns, exclamou ele, puxando vivamente uma cadeira. Oh Carlos, deixe-me voc dar

    aqui uma sova neste ladro. Depois jogamos de trs... Como queres tu isto, Taveirete? A doistostes o ponto? Ah, queres s a tosto... Muito bem, eu te ensinarei. Anda, desembaraa-te jdesse doble-seis, miservel...

    Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma cigarrete apagada nos dedos, o

    mesmo ar distrado: de repente, pareceu tomar uma deciso, atravessou o corredor, entrou nasala de msica. Steinbroken fora ao escritrio ver Afonso da Maia, e a partida de whist; eCruges s, entre as duas velas do piano, com os olhos errantes pelo tecto, improvisava para si,melancolicamente.

    - Dize c, Cruges, perguntou-lhe Carlos, queres vir amanh a Sintra?O teclado calou-se, o maestro ergueu um olhar espantado. Carlos nem o deixou falar.

    - Est claro que queres, no te faz seno bem vir a Sintra... Amanh l estou porta, com obreak.

    Mete sempre uma camisa numa maleta, que talvez passemos l a noite... s oito em ponto,hein?... E no digas nada l dentro.

    Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida de domin. Agora havia um largo silncio.

    O marqus e Taveira moviam lentamente as pedras, sem uma palavra, com um ar de rancorsurdo. Em cima do pano verde do bilhar as bolas brancas dormiam juntas, sob a luz que caia

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    dos abat-jours de porcelana. Um som de piano, dolente e vago, passava por vezes. E Craft, com

    o brao descado ao longo da poltrona, dormitava, beatificamente.

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