OS MAIAS - CAP XI

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  • 8/14/2019 OS MAIAS - CAP XI

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    OS MAIAS

    Captulo XI

    Na manh seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a p do Ramalhete at rua de S.Francisco, a casa de Madame Gomes. No patamar, onde morria em penumbra a luz distante da

    clarabia, uma velha de leno na cabea, encolhida num chalesinho preto, esperava, sentadamelancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava uma parede feia decorredor, forrada de papel amarelo. Dentro um relgio ronceiro estava batendo dez horas.

    - A senhora j tocou? perguntou Carlos, erguendo o chapu.A velha murmurou, de entre a sombra do leno que lhe caia para os olhos, num tom

    cansado e doente:

    - J, sim, meu senhor. J fizeram o favor de me falar. O criado, o Sr. Domingos, no tarda...

    Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo andar vinha um barulhoalegre de crianas brincando; por cima, o moo do Cruges esfregava a escada com estrondo,assobiando desesperadamente o fado. Um longo minuto arrastou-se, depois outro, infindvel.A velha, de entre a negrura do leno, deu um suspirosinho abatido. L ao fundo um cenriorompera a cantar; e ento Carlos, impaciente, puxou o cordo da campainha.

    Um criado de suissas ruivas, correctamente abotoado num jaqueto de flanela, apareceucorrendo, com uma travessa na mo, abafada num guardanapo; e ao ver Carlos ficou toatarantado, bamboleando porta, que um pouco de molho de assado escorregou, caiu sobre osoalho.

    - Oh Sr. D. Carlos Eduardo, faz favor de entrar!... Ora esta! Tem a bondade de esperar um

    instantinho, que eu abro j a sala... Tome l, Sr. Augusta, tome l, olhe no entorne mais! Asenhora diz que l manda logo o vinho do Porto... Desculpe V. Exc., Sr. D. Carlos... Por aqui,meu senhor...

    Correu um reposteiro de reps vermelho, introduziu Carlos numa sala alta, espaosa, comum papel de ramagens azuis, e duas varandas para a rua de S. Francisco; e erguendo pressa osdois transparentes de paninho branco, perguntava a Carlos se s. Exc. no se lembrava j doDomingos. Quando ele se voltou, risonho, descendo precipitadamente os canhes das mangas,Carlos reconheceu-o pelas suissas ruivas. Era com efeito o Domingos, escudeiro excelente, que

    no comeo do inverno estivera no Ramalhete, e se despedira por birras patriticas, birrasciumentas, com o cozinheiro francs.

    - No o tinha visto bem, Domingos, disse Carlos. O patamar um pouco escuro... Lembro-me perfeitamente... E ento voc agora aqui, hein? E est contente?

    - Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O Sr. Cruges tambm mora c por

    cima...- Bem sei, bem sei...- Tenha V. Exc. a pacincia de esperar um instantinho que eu vou dar parte Sr. D. Maria

    Eduarda...

    Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome dela; e pareceu-lhe perfeito,

    condizendo bem com a sua beleza serena. Maria Eduarda, Carlos Eduardo... Havia umasimilitude nos seus nomes. Quem sabe se no pressagiava a concordncia dos seus destinos!

    Domingos, no entanto, j porta da sala, com a mo no reposteiro, parou ainda, para dizernum tom de confidncia e sorrindo:

    - a governante inglesa que est doente...- Ah! a governante?- Sim, meu senhor, tem uma febresita desde ontem, peso no peito...

    - Ah!...

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    O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se apressar, contemplando

    Carlos com admirao:- E o avsinho de V. Exc. passa bem?- Obrigado, Domingos, passa bem.- Aquilo que um grande senhor!... No h, no h outro assim em Lisboa!- Obrigado, Domingos, obrigado...

    Quando ele finalmente saiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta curiosa e lenta pela

    sala. O soalho fora esteirado de novo. Ao p da porta havia um piano antigo de cauda, cobertocom um pano alvadio; sobre uma estante ao lado, cheia de partituras, de msicas, de jornaisilustrados, pousava um vaso do Japo onde murchavam trs belos lrios brancos; todas ascadeiras eram forradas de reps vermelho; e aos ps do sof estirava-se uma velha pele de tigre.Como no Hotel Central, esta instalao sumaria de casa alugada recebera retoques de conforto ede gosto: cortinas novas de cretone, combinando com o papel azul da parede, tinham

    substitudo as clssicas bambinelas de cassa: um pequeno contador rabe, que Carlos selembrava de ter visto havia dias no tio Abrao, viera encher um lado mais desguarnecido daparede: o tapete de pelcia duma mesa oval, colocada ao centro, desaparecia sob lindasencadernaes de livros, lbuns, duas taas japonesas de bronze, um cesto para flores de

    porcelana de Dresde, objectos delicados de arte que no pertenciam decerto me Cruges. Eparecia errar ali, acariciando a ordem das coisas e marcando-as com um encanto particular,aquele indefinido perfume que Carlos j sentira nos quartos do Hotel Central, e em quedominava o jasmim.

    Mas o que atraiu Carlos foi um bonito biombo de linho cr, com ramalhetes bordados,desdobrado ao p da janela, fazendo um recanto mais resguardado e mais ntimo. Havia l umacadeirinha baixa de cetim escarlate, uma grande almofada para os ps, uma mesa de costuracom todo um trabalho de mulher interrompido, nmeros de jornais de modas, um bordadoenrolado, molhos de l de cores transbordando de um aafate. E, confortavelmente enroscadano macio da cadeira, achava-se ai, nesse momento, a famosa cadelinha escocesa, que tantas

    vezes passara nos sonhos de Carlos, trotando ligeiramente atrs de uma radiante figura peloAterro fora, ou aninhada e adormecida num doce regao...

    - Bonjour, Mademoisele, disse-lhe ele, baixinho, querendo captar-lhe as simpatias.A cadelinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, de orelhas fitas, dardejando para

    aquele estranho, por entre as repas esguedelhadas, dois belos olhos de azeviche, desconfiados,duma penetrao quasi humana. Um instante Carlos receou que ela rompesse a ladrar. Mas acadelinha de repente namorara-se dele, deitada j na cadeira. de patas ao ar, descomposta,abandonando o ventresinho s suas carcias. Carlos ia coa-la e amima-la, quando um passoleve pisou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si.

    Foi como uma inesperada apario - e vergou profundamente os ombros, menos a saud-la, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. Ela, com umvestido simples e justo de sarja preta, um colarinho direito de homem, um boto de rosa e duasfolhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrarum pequeno leno de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-seembaraadamente borda do sof de reps. E depois dum instante de silncio, que lhe pareceuprofundo, quasi solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, dum tom de

    ouro que acariciava.Atravs do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ela lhe agradecia os cuidados que

    ele tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se demorava nela um instante mais,descobria logo um encanto novo e outra forma da sua perfeio. Os cabelos no eram louros,como julgara de longe claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro,espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na grande luz escura dos seus olhos havia ao

    mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muito doce. Por um jeito familiar cruzava svezes, ao falar, as mos sobre os joelhos. E atravs da manga justa de sarja, terminando numpunho branco, ele sentia a beleza, a brancura, o macio, quasi o calor dos seus braos.

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    Ela calara-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o sangue abrasar-lhe o rosto. E,

    apesar de saber j pelo Domingos que a doente era a governante, s achou, na sua perturbao,esta pergunta tmida:

    - No sua filha que est doente, minha senhora?- Oh no! graas a Deus!E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a governante inglesa

    havia dois dias se achava incomodada, com dificuldade de respirar, tosse, uma ponta de febre...

    - Imaginmos ao principio que era uma constipao passageira; mas ontem tarde estavapior, e estou agora impaciente que a veja...

    Ergueu-se, foi puxar um enorme cordo de campainha que pendia ao lado do piano. O seucabelo por traz, repuxado para o alto da cabea, deixava uma penugem de ouro frisar-sedelicadamente sobre a brancura lctea do pescoo. Entre aqueles mveis de reps, sob o tecto

    banal de estuque enxovalhado, toda a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, duma beleza

    mais nobre, e quasi inacessvel; e pensava que nunca ali ousaria olha-la to francamente, comuma to clara adorao, como quando a encontrava na rua.

    - Que linda cadelinha V. Exc. tem, minha senhora disse ele, quando Maria Eduarda setornou a sentar, e pondo j nestas palavras simples, ditas a sorrir, um acento de ternura.

    Ela sorriu tambm com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no queixo, dava umadoura mais mimosa s suas feies srias. E alegremente, batendo as palmas, chamando paradentro do biombo:

    - Niniche! esto-te a fazer elogios, vem agradecer!Niniche apareceu a bocejar. Carlos achava lindo este nome de Niniche. E era curioso, tinha

    tido tambm uma galguinha italiana que se chamava Niniche...Nesse instante a criada entrou - a rapariga magra e sardenta, de olhar petulante, que Carlos

    vira j no Hotel Central.- Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda. Eu no o

    acompanho, porque ela to tmida, tem tanto escrpulo em incomodar, que diante de mim capaz de negar tudo, dizer que no tem nada...

    - Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, num encanto de tudo.

    E pareceu-lhe ento que no olhar dela alguma coisa brilhara, fugira para ele, de mais vivo,de mais doce.

    Com o seu chapu na mo, pisando familiarmente aquele corredor ntimo, surpreendendodetalhes de vida domestica, Carlos sentia como a alegria duma posse. Por uma porta meio

    aberta pde entrever uma banheira, e ao lado dependurados grandes roupes turcos de banho.Adiante, sobre uma mesa, estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas

    de guas minerais de Saint-Galmier e de Vals. Ele deduzia logo destas coisas to simples, tobanais, evidencias de vida delicada.

    Melanie correu um reposteiro de linho cr, f-lo entrar num quarto claro e fresco: e a foiencontrar a pobre miss Sarah num leitosinho de ferro, sentada, com um lao de seda azul aopescoo, e os bands to lisos, to acamados pela escova, como se fosse sair num domingo paraa capela presbiteriana. Na mesinha de cabeceira os seus jornais ingleses estavam

    escrupulosamente dobrados, junto dum copo com duas belas rosas; e tudo no quarto

    resplandecia de severo arranjo, desde os retratos da famlia real de Inglaterra, expostos sobre atoalha de renda que cobria a cmoda, at s suas botinas bem engraxadas, classificadas,perfiladas numa prateleira de pinho.

    Apenas Carlos se sentou, ela imediatamente, com duas rosetas de vergonha na face, entrefrouxos de tosse, declarou que no tinha nada. Era a senhora, to boa, to cautelosa, que aforara a meter-se na cama... E para ela era um desgosto ver-se ali ociosa, intil, agora queMadame estava to s, numa casa sem jardim. Onde havia a menina de brincar? Quem havia desair com ela? Ah! Era uma priso para Madame!...

    Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando ele se ergueu para a auscultar, a

    pobre miss cobriu-se toda num rubor aflito, apertando mais a roupa contra o peito, querendo

    saber se era absolutamente necessrio... Sim, decerto, era necessrio... Achou-lhe o pulmodireito um pouco tomado; e, em quanto a agasalhava, fez-lhe algumas perguntas sobre a sua

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    graa ligeira, os seus grandes olhos cheios de azul, e um ruborzinho de mulher na face. QuandoCarlos se adiantou com a mo estendida para renovar o antigo conhecimento - ela ergueu-se naponta dos ps, estendeu-lhe vivamente a boquinha, fresca como um boto de rosa. Carlos ousouapenas tocar-lhe de leve na testa.

    Depois quis apertar a mo sua velha amiga Cri-cri. E ento, de repente, Rosa recordou-sedo que a trouxera ali a correr.

    - o robe-de-chambre, mam! No posso achar o robe-de-chambre de Cri-cri... Ainda ano pude vestir... Dize, sabes onde que est o robe-de-chambre?

    - Vejam esta desarranjada murmurava a me olhando-a com um sorriso lento e terno. SeCri-cri tem uma cmoda particular, o seu guarda-vestidos, no se lhe deviam perder as coisas...pois no verdade, Sr. Carlos da Maia?

    Ele, ainda com a sua receita na mo, sorria tambm, sem dizer nada, todo noenternecimento daquela intimidade em que se sentia penetrar docemente.

    A pequena ento veio encostar-se me, roando-se pelo seu brao, com uma vozinhalnguida, lenta, e de mimo:

    - Anda, dize... No sejas m... Anda... Onde est o robe-de-chambre? Dize...Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino lao de seda

    branca que lhe pendia no alto cabelo. Depois ficou mais sria:- Est bem, est quieta... Tu sabes que no sou eu que trata dos arranjos da Cri-cri. Deviaster mais ordem... Vai perguntar a Melanie.

    E Rosa obedeceu logo, sria tambm, cumprimentando agora Carlos ao passar, com umarzinho senhoril:

    - Bonjour, Monsieur...

    - encantadora! murmurou ele.A me sorriu. Tinha acabado de compor o seu ramo de cravos; - e imediatamente atendeu a

    Carlos, que pousara a receita sobre a mesa, e sem se apressar, instalando-se numa poltrona, lhefoi falando da dieta que devia ter miss Sarah, das colheres de xarope de code na que se lhedeviam dar de trs em trs horas...

    - Pobre Sarah! dizia ela. E curioso, no verdade? Veio com o pressentimento, quasi com

    a certeza, que havia de adoecer em Portugal...- Ento vem a detestar Portugal!- Oh! tem-lhe j horror! Acha muito calor, por toda a parte maus cheiros, a gente

    hedionda... Tem medo de ser insultada na rua... Enfim infelicssima, est ardendo por se irembora...

    Carlos ria daquelas antipatias saxonias. De resto em muitas coisas a boa miss Sarah tinha

    talvez razo...- E V. Exc. tem-se dado bem em Portugal, minha senhora?

    - Ela encolheu os ombros, indecisa.- Sim... Devo dar-me bem... o meu pas.O seu pas!... E ele que a julgava brasileira!- No, sou portuguesa.E, durante um momento, houve um silncio. Ela tomara de sobre a mesa, abria lentamente

    um grande leque negro pintado de flores vermelhas. E Carlos sentia, sem saber porque, uma

    doura nova penetrar-lhe no corao. Depois ela falou da sua viagem que fora muito agradvel;adorava andar no mar; tinha sido um encanto a manh da chegada a Lisboa, com um cu azul-ferrete, o mar todo azul tambm, e j um calorzinho de clima doce... Mas depois, apenasdesembarcados, tudo corria desagradavelmente. Tinham ficado mal alojados no Central.

    Niniche, uma noite, assustara-os muito com uma indigesto. Em seguida no Porto viera aqueledesastre...

    - Sim, disse Carlos, o marido de V. Exc., na Praa Nova...Ela pareceu surpreendida. Como sabia ele? Ah! sim, sabia de certo pelo Dmaso...- So muito amigos, creio eu.

    Depois duma leve hesitao, que ela compreendeu, Carlos murmurou:

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    - Sim... O Dmaso vai bastante ao Ramalhete... de resto um rapaz que eu conheo apenash meses...

    Ela abriu os olhos, pasmada.

    - O Dmaso? Mas ele disse-me que se conheciam desde pequeninos, que eram atparentes...

    Carlos encolheu simplesmente os ombros, sorrindo.

    - uma bela iluso... E se isso o faz feliz!...Ela sorriu tambm, encolhendo tambm ligeiramente os ombros.- E V. Exc., minha senhora, continuou logo Carlos no querendo falar mais do Dmaso,

    como acha Lisboa?Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco de cidade meridional... Mas,

    havia to poucos confortos!... A vida tinha aqui um ar que ela no pudera perceber ainda - seera de simplicidade ou de pobreza.

    - Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos selvagens...

    Ela riu.

    - No direi isso. Mas suponho que so como os gregos: contentam-se em comer umaazeitona, olhando o cu que bonito...

    Isto pareceu adorvel a Carlos, todo o seu corao fugiu para ela.Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, to faltas de comodidade, to despidas degosto, to desleixadas. Aquela em que vivia fazia a sua desgraa. A cozinha era atroz, as portasno fechavam. Na sala de jantar havia sobre a parede umas pinturas de barquinhos e colinasque lhe tiravam o apetite...

    - Alm disso, acrescentou, um horror no ter um quintal, um jardim, onde a pequenapossa correr, ir brincar...

    - No fcil encontrar assim uma casa nas condies desta e com jardim, disse Carlos.Deu um olhar s paredes, ao estuque enxovalhado do tecto - e lembrou-lhe de repente a

    Quinta do Craft, com a sua vista de rio, o ar largo, as frescas ruas de accias.Felizmente, Maria Eduarda tomara a casa apenas ao ms, e estava pensando em ir passar

    beira-mar o tempo que tivesse de ficar ainda em Portugal.

    - De resto, disse ela, foi o que me aconselhou o meu mdico em Paris, o Dr. Chaplain.O Dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o Dr. Chaplain. Ouvira-lhe as lies,

    visitara-o at intimamente na sua propriedade de Maisonetes, ao p de Saint-Germain. Era umgrande mestre, era um esprito bem superior!

    - E to bom corao! disse ela com um claro sorriso, um olhar que brilhou.E este sentimento comum pareceu de repente aproxima-los mais docemente: cada um

    nesse instante adorou o Dr. Chaplain: e continuaram ainda falando dele prolongadamente,gozando, atravs dessa trivial simpatia por um velho clnico, a nascente concordncia dos seuscoraes.

    O bom Dr. Chaplain! Que fisionomia to amvel, to fina!... sempre com o seu barretinhode seda... E sempre com a sua grande flor na casaca... De resto, o pratico maior que sara dagerao de Trousseau.

    - E Madame Chaplain, acrescentou Carlos, uma pessoa encantadora... No verdade?Mas Maria Eduarda no conhecia Madame Chaplain.Dentro o relgio ronceiro comeara a bater onze horas. E Carlos ento ergueu-se, findando

    a sua fugitiva, inolvidvel, deliciosa visita...Quando ela lhe estendeu a mo, um pouco de sangue subiu-lhe de novo face ao tocar

    aquela palma to macia e to fresca. Pediu os seus comprimentos para Mademoisele Rosa.Depois, porta, j com o reposteiro na mo, voltou-se ainda, uma vez mais, numa ultimasaudao, a receber o olhar suave com que ela o seguia...

    - At amanh, est claro! exclamou ela de repente, com o seu lindo sorriso.- At amanh, decerto!O Domingos estava j no patamar, de casaca, risonho e bem penteado.

    - coisa de cuidado, meu senhor?- No nada, Domingos... Estimei v-lo por aqui.

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    - E eu muito a V. Exc. At amanh, meu senhor.- At amanh.Niniche apareceu tambm no patamar. Ele abaixou-se ternamente a afaga-la, e disse-lhe

    tambm, radiante:- At amanh, Niniche!- At amanh! Voltando para o Ramalhete, era esta a nica ideia que ele sentia

    distinctamente atravs da nvoa luminosa que lhe afogava a alma. Agora o seu dia estava findo:- mas, passadas as longas horas, terminada a longa noite, ele penetraria outra vez naquela salade reps vermelho, onde ela o esperava, com o mesmo vestido de sarja, enrolando ainda folhas

    verdes em torno de ps de rosa...Pelo Aterro, por entre a poeira de vero e o rudo das carroas, o que ele via era essa sala,

    esteirada de novo, fresca, silenciosa e clara: por vezes uma frase que ela dissera cantava-lhe namemria, com o tom de ouro da sua voz; ou luziam-lhe diante dos olhos as pedras dos seusanis entremetidos pelos plos de Niniche. Parecia-lhe mais linda, agora que conhecia o seusorriso duma graa to delicada; era cheia de inteligncia, era cheia de gosto; e a pobre velha porta, esse doente a quem ela mandava vinho do Porto, revelavam a sua bondade... E o que oencantava que no tornaria mais a farejar a cidade como um rafeiro perdido, busca dos seus

    olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns degraus, abria-se diante dele a porta da sua casa: etudo de repente na vida parecia tornar-se fcil, equilibrado, sem dvidas e sem impacincias.

    No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta.

    - Trouxe-a a escocesa, j V. Exc. tinha sado.Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente escrito a lpis - all right.

    Carlos amarrotou-a, furioso. A Gouvarinho!... No se tornara quasi a lembrar dela, desde avspera, no radiante tumulto em que andara o seu corao. E era no comboio dessa noite, da ahoras, que deviam ambos partir para Santarm, a amarem-se, escondidos numa estalagem! Eleprometera-lho, a srio; j ela se preparara decerto, com a atroz cabeleira postia, com o water-proof de grande roda; tudo estava all right... Achou-a nesse instante ridcula, reles, estpida...Oh, era claro como a luz que no ia, que nunca iria, jamais! Mas tinha de aparecer na estao deSanta Apolnia, balbuciar uma desculpa tosca, assistir sua desconsolao, ver-lhe os olhos

    marejados de lgrimas. Que maada!... Teve-lhe dio.Quando chegou mesa do almoo Craft e Afonso, j sentados, falavam justamente do

    Gouvarinho, e dos artigos que ele continuava gravemente a publicar no Jornal do Comercio.- Que besta essa! exclamou Carlos numa voz que sibilava, desabafando sobre a literatura

    poltica do marido a clera que lhe davam as importunidades amorosas da mulher.Afonso e Craft olharam-no, pasmados de tanta violncia. E Craft censurou-lhe a

    ingratido. Porque, realmente, no havia em toda a terra um entusiasmo como o que aqueledesventuroso homem de estado tinha por Carlos...

    - V. Exc. no faz ideia, Sr. Afonso da Maia. um culto. uma idolatria!Carlos encolhia os ombros, impaciente. E Afonso, j bem disposto para com o homem que

    assim admirava to prodigamente o seu neto, murmurou com bondade:- Coitado, suponho que inofensivo...Craft fez uma ovao ao velho:- Inofensivo! Admirvel, Sr. Afonso da Maia! Inofensivo, aplicado a um homem de estado,

    a um par, a um ministro, a um legislador, um achado! E com efeito o que ele , inofensivo...E o que eles so...

    - Chablis? murmurou o escudeiro.- No, tomo ch.E acrescentou:

    - Aquele champagne que ontem bebemos nas corridas, por patriotismo, arrasou-me...

    Tenho de me pr uma semana a regime de leite.Ento falou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, do Cliford, e do vu azul do

    Dmaso.

    - Ora quem estava ontem muito bem vestida era a Gouvarinho, disse Craft remexendo oseu ch. Ficava-lhe admiravelmente aquele branco creme, tocado de tons negros. Uma

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    verdadeira toilete de corridas... C'tait un oeilet blanc panach de noir... Voc no achou,Carlos?

    - Sim, rosnou Carlos, estava bem.

    Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que no haveria na sua vida conversa em queno surgisse a Gouvarinho, e que no haveria caminho na sua vida que o no atravancasse aGouvarinho! E ali mesmo, mesa, decidiu consigo no a tornar a ver, escrever-lhe um bilhetecurto, polido, recusando-se a ir a Santarm, sem razes...

    Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longa cigarrete, sem achar fraseque no fosse pueril ou brutal. Nem tinha a simpatia precisa para lhe dar o banal tratamento dequerida: Vinha-lhe at por ela uma indefinida repulso fsica: devia ser intolervel toda umanoite o seu, cheiro exagerado de verbena; - e lembrava-se que aquela pele do seu pesco o, quese lhe afigurava outrora um cetim, tinha um tom pegajoso, um tom amarelado, para al m dalinha de ps de arroz. Decidiu no lhe escrever. Iria noite a Santa Apolnia, e no momento docomboio partir correria portinhola, a balbuciar fugitivamente uma desculpa; no lhe dariatempo de choramigar, nem de recriminar; um rpido aperto de mo, e adeus, para nunca mais...

    noite, porm, hora de ir estao, que sacrifcio em se arrancar aos confortos da suapoltrona, e do seu charuto!... Atirou-se para o coup desesperado, maldizendo essa tarde no

    boudoir azul em que, por causa duma rosa e dum certo vestido cor de folha morta que lheficava bem, ele se achara cado com ela num sof...

    Ao chegar a Santa Apolnia faltavam, para a partida do expresso, dois minutos.Precipitou-se para a extremidade da sala, j quasi vazia quela hora, a comprar uma admisso;e ainda a esperou uma eternidade, vendo dentro do postigo duas mos lentas e moles arranjarlaboriosamente os patacos dum troco.

    Penetrava enfim na sala de espera - quando esbarrou com o Dmaso, de chapu desabadoe sacola de viagem a tiracolo. Dmaso agarrou-lhe as mos, enternecido:

    - menino! pois tiveste o incomodo?... E como soubeste tu que eu partia?Carlos no o desiludiu, balbuciando que lho dissera o Taveira, que encontrara o Taveira...- Pois eu estava mais longe duma destas! exclamou o Dmaso. Esta manh, muito regalado

    na cama, quando me vem o telegrama... fiquei furioso! Isto , imagina tu como eu fiquei, um

    desgosto assim!...Foi ento que Carlos reparou que ele estava carregado de luto, com fumo no chap u, luvas

    pretas, polainas pretas, barca preta no leno... Murmurou, embaraado:- O Taveira disse-me que ias, mas no me disse mais nada... Morreu-te algum?- Meu tio Guimares.- O comunista? o de Paris?

    - No, o irmo dele, o mais velho, o de Penafiel... Espera a que eu volto j, vou ali ao caf encher o frasco de cognac. Com a aflio esquecia-me o cognac...

    Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos, de guarda-p, com chapeleiras na mo.Os guardas rolavam pachorrentamente as bagagens. duma portinhola, onde se exibia um

    cavalheiro barrigudo, com um bonet bordado a retrs, pendia todo um cacho de amigospolticos, respeitosamente e em silncio. A um canto uma senhora soluava por baixo do vu.

    Carlos, vendo um wagon com a papeleta de reservado imaginou l a condessa. Um guardaprecipitou-se, furioso, como se visse a profanao dum santurio. Que queria ele, que queria eledali? No sabia que era o reservado do Sr. Carneiro?

    - No sabia.- Perguntasse, devia saber! ficou o outro a resmungar, ainda tremulo.Carlos correu ainda outros wagons, onde a gente se apinhava, atabafadamente, na

    amontoao dos embrulhos; num, dois sujeitos, a propsito de lugares, tratavam-se demalcriados; adiante, uma criana esperneava no colo da ama, aos gritos.

    - menino, quem diabo andas tu a procurar? exclamou Dmaso alegremente, surgindopor traz dele, e passando-lhe o brao pela cinta.

    - Ningum... Imaginei que tinha visto o marqus.

    Imediatamente Dmaso queixou-se daquela lgubre maada de ter de ir a Penafiel!

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    - E ento agora que eu precisava tanto estar em Lisboa! Que tenho andado com uma sortepara mulheres, menino!... Uma sorte danada!

    Uma sineta badalou. Dmaso deu logo um abrao terno a Carlos, saltou para o seu wagon,enterrou na cabea um barretinho de seda - e depois debruado da portinhola continuou aindaas confidncias. O que mais o contrariava era deixar aquele arranjinho da rua de S. Francisco.Que ferro! agora que aquilo ia to bem, o gajo no Brasil, e ela ali, mo, a dois passos doGrmio!...

    Carlos mal o escutava, distrado, olhando o grande relgio transparente. De repenteDmaso, portinhola, deu um salto de surpresa:

    - Olha os Gouvarinhos!Carlos deu um salto tambm. O conde, de cco de viagem, de palet alvadio, sem se

    apressar, como competia a um director da Companhia, vinha conversando com um empregadosuperior da estao, agaloado de ouro, que se encarregara da chapeleira de papelo de s. Exc. Ea condessa, com um rico guarda-p de foulard cor de castanho, um vu cinzento que lhe cobriaa face e o chapu, seguia atrs, com a criada escocesa, trazendo na mo um ramo de rosas.

    Carlos correu para eles, foi todo um assombro.- Por aqui, Maia?

    - De viagem, conde? verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos anos do pap... Resoluo da

    ultima hora, quasi iam perdendo o comboio.

    - Ento temo-lo por companheiro, Maia? Teremos esse grande prazer, Maia?Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a mo ao pobre Dmaso, de jornada

    para Penafiel, por causa da morte do tio.

    Debruado da portinhola, com as mos de fora caladas de negro, o pobre Dmaso estavasaudando a senhora condessa, gravemente, funebremente. E o bom Gouvarinho no quis deixarde lhe ir dar logo o seu shake-hands e o seu psame.

    Sozinho nesse curto instante com a condessa, Carlos murmurou apenas:

    - Que ferro!

    - Este maldito homem! exclamou ela, entre dentes, com um olhar que fuzilou atrav s do

    vu. Tudo to bem arranjado, e ultima hora teima em vir!...Carlos acompanhou-os at ao reservado, num outro wagon que se estivera metendo de

    novo para s. Exc. A condessa tomou o lugar do canto junto da portinhola. E como o conde,num tom de polidez cida, a aconselhava a que se sentasse antes com o rosto para a mquina,ela teve um gesto de aborrecimento, atirou o ramo para o lado desabridamente, enterrou-se com

    mais fora na almofada; e um duro olhar de clera passou entre ambos. Carlos, embaraado,perguntava:

    - Ento vo com demora?O conde respondeu, sorrindo, disfarando o seu mau humor:- Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas ferias.

    - Trs dias, o mais, replicou ela numa voz fria e afiada como uma navalha.O conde no respondeu, lvido.Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silncio cara sobre a plataforma. O apito

    da mquina varou o ar; e o comprido trem, num rudo seco de freios retesados, comeou a rolar,com gente s portinholas, que ainda se debruava, estendendo a mo para um ultimo aperto.Aqui e alm esvoaava um leno branco. O olhar da condessa para o lado de Carlos teve adoura de um beijo, o Dmaso gritou saudades para o Ramalhete. O compartimento do correioresvalou, alumiado; e com outro dilacerante silvo o comboio mergulhou na noite...

    Carlos, s, dentro do coup, voltando Baixa, sentia uma alegria triunfante com aquelapartida da condessa, e a inesperada jornada do Dmaso. Era como uma disperso providencialde todos os importunos: e assim se fazia em torno da rua de S. Francisco uma solido - comtodos os seus encantos, e todas as suas cumplicidades.

    No cais do Sodr deixou a carruagem, subiu a p pelo Ferregial, veio passar diante das

    janelas na rua de S. Francisco. S pde ver uma vaga tira de claridade entre as portadas meiocerradas. Mas isto bastava-lhe. Podia agora imaginar com preciso o sero calmo que ela estava

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    passando na larga sala de reps vermelho. Sabia o nome dos livros que ela lia, e as partituras que

    tinha sobre o piano; e as flores que espalhavam ali o seu aroma vira-as ele arranjar nessa manh .Poria ela um instante o seu pensamento nele? Decerto; a doena em casa forava-a a lembrar ashoras do remdio, as explicaes que ele dera, e o som da sua voz; e falando com miss Sarahpronunciaria decerto o seu nome. Duas vezes percorreu a rua de S. Francisco; e recolheu para

    casa, sob a noite estrelada, devagar, ruminando a doura daquele grande amor.Ento todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa, esplndida, perfeita, a

    visita inglesa.Saltava do leito, cantando como um canrio, e penetrava no seu dia como numa aco

    triunfal. O correio chegava; e invariavelmente lhe trazia uma carta da Gouvarinho, trs folhasde papel de onde caia sempre alguma pequena flor meio murcha. Ele deixava ficar a flor no

    tapete: e mal podia dizer o que havia naquelas longas linhas cruzadas. Sabia apenas vagamenteque, trs dias depois dela chegar ao Porto, o pai, o velho Tompson, tivera uma apoplexia. Ela lestava, de enfermeira. Depois, levando duas ou trs belas flores do jardim embrulhadas numpapel de seda, partia para a rua de S. Francisco, sempre no seu coup - porque o tempo mudara,e os dias seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e de chuva.

    porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez mais enternecido. Niniche corria

    de dentro, a pular de amizade; ele erguia-a nos braos para a beijar. Esperava um instante nasala, de p, saudando com o olhar os mveis, os ramos, a clara ordem das coisas; ia examinar nopiano a msica que ela tocara essa manh, ou o livro que deixara interrompido, com a faca demarfim entre as folhas.

    Ela entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons dias, a sua voz de ouro tinham cada dia paraCarlos um encanto novo e mais penetrante. Trazia ordinariamente um vestido escuro e simples:

    apenas s vezes uma gravata de rica renda antiga, ou um cinto cuja fivela era cravejada depedras, avivavam este traje sbrio, quasi severo, que parecia a Carlos o mais belo, e como umaexpresso do seu esprito.

    Comeavam por falar de miss Sarah, daquele tempo agreste e hmido que lhe era todesfavorvel. Conversando, ainda de p, ela dava aqui e alm um arranjo melhor a um livro, ouia mover uma cadeira que no estava no seu alinho; tinha o habito inquieto de recompor

    constantemente, a simetria das coisas; - e, maquinalmente, ao passar, sacudia a superfcie demveis j perfeitamente espanejados com as magnficas rendas do seu leno.

    Agora acompanhava-o sempre ao quarto de miss Sarah. Pelo corredor amarelo,caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sentindo a carcia desse ntimo perfume em quehavia jasmim, e que parecia sair do movimento das suas saias. Ela s vezes abria familiarmentea porta de um quarto, apenas mobilado com um velho sof: era ali que Rosa brincava, e quetinha os arranjos de Cri-cri, as carruagens de Cri-cri, a cozinha de Cri-cri. Encontravam-navestindo e conversando profundamente com a boneca; ou ento, ao canto do sof, com ospsinhos cruzados, imvel, perdida na admirao de algum livro destampas aberto sobre os

    joelhos. Ela corria, estendia a boquinha a Carlos; e toda a sua pessoa tinha a frescura de uma

    linda flor.No quarto da governante, Maria Eduarda sentava-se aos ps do leito branco; e logo a pobre

    miss Sarah, ainda cheia de tosse, confusa, verificando a cada instante se o len o de seda lhecobria correctamente o pescoo, afirmava que estava boa. Carlos gracejava com ela, provando-lhe que nesse feio tempo de inverno, a felicidade era estar ali na cama, com bons cuidados emredor, alguns romances patticos, e apetitosa dieta portuguesa. Ela voltava os olhos gratos paraMadame, com um suspiro. Depois murmurava:

    - Oh yes, I am very confortable!

    E enternecia-se.

    Logo nos primeiros dias, ao voltar sala, ria Eduarda tinha-se sentado na sua cadeiraescarlate, e, conversando com Carlos, retomara muito naturalmente o seu bordado como napresena familiar de um velho amigo. Com que felicidade profunda ele viu desdobrar-se essatalagara! Devia ser um faiso de plumagens rutilantes: mas por ora s estava bordado o galho

    de macieira em que ele pousava, galho fresco de primavera, coberto de florzinhas brancas,como num pomar da Normandia.

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    Carlos, junto da linda secretariasinha de pau preto, ocupava a mais velha, a mais cmodadas poltronas de reps vermelho, cujas molas rangiam de leve. Entre eles ficava a mesa decostura com as Ilustraes ou algum jornal de modas; s vezes, um instante calado, ele folheavaas gravuras, em quanto as lindas mos de Maria, com brilhos de jias, iam puxando os fios del. Aos ps dela Niniche dormitava, espreitando-os a espaos, atravs das repas do focinho, como seu belo olho grave e negro. E nesses escuros dias de chuva, cheios de friagem l fora e dorumor das goteiras, aquele canto da janela, com a paz do vagaroso trabalho na talagar a, asvozes lentas e amigas, e s vezes um doce silncio, tinha um ar ntimo e carinhoso...

    Mas no que diziam no havia intimidades. Falavam de Paris e do seu encanto, de Londresonde ela estivera durante quatro lgubres meses de inverno, da Itlia que era o seu sonho ver,de livros, de coisas de arte. Os romances que preferia eram os de Dickens; e agradava-lhe menos

    Feuilet, por cobrir tudo de p de arroz, mesmo as feridas do corao. Apesar de educada numconvento severo de Orleans, lera Michelet e lera Renan. De resto no era catlica praticante; asigrejas apenas a atraiam pelos lados graciosos e artstico do culto, a msica, as luzes, ou oslindos meses de Maria, em Frana, na doura das flores de maio. Tinha um pensar muito recto emuito so - com um fundo de ternura que a inclinava para tudo o que sofre e fraco. Assimgostava da Rep blica por lhe parecer o regime em que h mais solicitude pelos humildes.

    Carlos provava-lhe rindo que ela era socialista.- Socialista, legitimista, orleanista, dizia ela, qualquer coisa, contanto que no haja gente

    que tenha fome!

    Mas era isso possvel? J Jesus, mesmo, que tinha to doces iluses, declarara que pobressempre os haveria...

    - Jesus viveu h muito tempo, Jesus no sabia tudo... Hoje sabe-se mais, os senhores sabemmuito mais... necessrio arranjar-se outra sociedade, e depressa, em que no haja misria. EmLondres, as vezes, por aquelas grandes neves, h criancinhas pelos portais a tiritar, a gemer defome... um horror! E em Paris ento! que se no v seno o boulevard; mas quanta pobreza,quanta necessidade...

    Os seus belos olhos quasi se enchiam de lgrimas. E cada uma destas palavras trazia todasas complexas bondades da sua alma - como num s sopro podem vir todos os aromas esparsos

    de um jardim.Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou s suas caridades, pedindo-lhe para

    ir ver a irm da sua engomadeira que tinha reumatismo, e o filho da Sr. Augusta, a velha dopatamar, que estava tsico. Carlos cumpria esses encargos com o fervor de aces religiosas. Enestas piedades achava-lhe semelhanas com o av. Como Afonso, todo o sofrimento dosanimais a consternava. Um dia viera indignada da Praa da Figueira, quasi com ideias devingana, por ter visto nas tendas dos galinheiros aves e coelhos apinhados em cestos, sofrendodurante dias as torturas da imobilidade e a ansiedade da fome. Carlos levava estas belas cleraspara o Ramalhete, increpava violentamente o marqus, que era membro da Sociedadeprotectora dos animais. O marqus, indignado tambm, jurava justia, falava em cadeias, emcosta de frica... E Carlos, comovido, ficava a pensar quanta larga e distante influncia pode ter,mesmo isolado de tudo, um corao que justo.

    Uma tarde falaram do Dmaso. Ela achava-o insuportvel, com a sua petulncia, os olhos bugalhudos, as perguntas nscias. V. Exc. acha Nice elegante? V. Exc. prefere a capela de S.Joo Baptista a Notre-Dame?...

    - E ento a insistncia de falar de pessoas que eu no conheo! A Sr. condessa deGouvarinho, e os chs da Sr. condessa de Gouvarinho, e a frisa da Sr. condessa deGouvarinho, e a referncia que a Sr. condessa de Gouvarinho tem por ele...! E isto horas! Eu svezes tinha medo de adormecer...

    Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ela, entre todos, o nome da Gouvarinho?

    Tranquilizou-se, vendo-a rir simples e limpidamente. Decerto no sabia quem era Gouvarinho.Mas, para sacudir logo de entre eles esse nome, comeou a falar de Mr. Guimares, o famoso tiodo Dmaso, o amigo de Gambeta, o influente da Repblica...

    - O Dmaso tem-me dito que V. Exc. o conhece muito...Ela erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.

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    - Mr. Guimares?... Sim, conheo muito... Ultimamente vamo-nos menos, mas ele eramuito amigo da mam.

    E depois dum silncio, dum curto sorriso, recomeando a puxar o seu longo fio de l:- Pobre Guimares, coitado! A sua influncia na Repblica traduzir noticias dos jornais

    espanhis e italianos para o Rapel, que disso que vive... Se amigo de Gambeta, no sei,Gambeta tem amigos to extraordinrios... Mas o Guimares, alis bom homem e homemhonrado, um grotesco, uma espcie de Calino republicano. E to pobre, coitado! O Dmaso,que rico, se tivesse decncia, ou o menor sentimento, no o deixava viver assim tomiseravelmente.

    - Mas ento essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que fala o Dmaso...?Ela encolheu mudamente os ombros: e Carlos sentiu pelo Dmaso um asco intolervel.Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais penetrante. Ela quis

    saber a idade de Carlos, ele falou-lhe do av. E durante essas horas suaves em que ela,silenciosa, ia picando a talagara, ele contou-lhe a sua vida passada, os planos de carreira, osamigos, e as viagens... Agora ela conhecia a paisagem de Santa Olavia, o reverendo Bonifcio, asexcentricidades do Ega. Um dia quis que Carlos lhe explicasse longamente a ideia do seu livroA medicina antiga e moderna. Aprovou, com simpatia, que ele pintasse as figuras dos grandes

    mdicos, benfeitores da humanidade. Porque se glorificariam s guerreiros e fortes? A vidasalva a uma criana parecia-lhe coisa bem mais bela que a batalha de Austerlitz. E estaspalavras que dizia com simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, caiam no

    corao de Carlos e ficavam l muito tempo, palpitando e brilhando...Ele tinha-lhe feito assim largamente todas as confisses; - e ainda no sabia nada do seu

    passado, nem mesmo a terra em que nascera, nem sequer a rua que habitava em Paris. N o lheouvira murmurar jamais o nome do marido, nem falar dum amigo ou duma alegria da sua casa.Parecia no ter em Frana, onde vivia, nem interesses, nem lar; - e era realmente como a deusaque ele ideara, sem contactos anteriores com a terra, descida da sua nuvem de oiro. para vir terali, naquele andar alugado da rua de S. Francisco, o seu primeiro estremecimento humano.

    Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham falado de afeies. Ela acreditavacandidamente que pudesse haver, entre uma mulher e um homem, uma amizade pura,

    imaterial, feita da concordncia amvel de dois espritos delicados. Carlos jurou que tambmtinha f nessas belas unies, todas de estima, rodas de razo contanto que se lhes misturasse, aode leve que fosse, uma ponta de ternura... Isso perfumava-as dum grande encanto - e no lhesdiminua a sinceridade. E, sob estas palavras um pouco difusas, murmuradas por entre asmalhas do bordado e com lentos sorrisos, ficara subtilmente estabelecido que entre eles sdeveria haver um sentimento assim, casto, legitimo, cheio de suavidade e sem tormentos.

    Que importava a Carlos? Contanto que pudesse passar aquela hora na poltrona de cretone,contemplando-a a bordar, e conversando em coisas interessantes, ou tornadas interessantes pela

    graa da sua pessoa; contanto que visse o seu rosto, ligeiramente corado, baixar-se, com a lentaatraco duma carcia, sobre as flores que lhe trazia; contanto que lhe afagasse a alma a certezade que o pensamento dela o ficava seguindo simpaticamente atravs do seu dia, mal ele deixavaaquela adorada saia de reps vermelho - o seu corao estava satisfeito, esplendidamente.

    No pensava mesmo que aquela ideal amizade, de inteno casta, era o caminho maisseguro para a trazer, brandamente enganada, aos seus braos ardentes de homem. Nodeslumbramento que o tomara ao ver-se de repente admitido a uma intimidade que julgaraimpenetrvel, - os seus desejos desapareciam: longe dela, s vezes, ainda ousavam irtemerariamente at esperana dum beijo, ou duma fugitiva carcia com a ponta dos dedos;mas apenas transpunha a sua porta, e recebia o calmo raio do seu olhar negro, caia em devoo,e julgaria um ultraje bestial roar sequer as pregas do seu vestido.

    Foi aquele decerto o perodo mais delicado da sua vida. Sentia em si mil coisas finas,novas, duma tocante frescura. Nunca imaginara que houvesse tanta felicidade em olhar para asestrelas quando o cu est limpo; ou em descer de manh ao jardim para escolher uma rosamais aberta. Tinha na alma um constante sorriso - que os seus l bios repetiam. O marqus

    achava-lhe o ar baboso e abenoador...

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    s vezes, passeando s no seu quarto, perguntara a si mesmo onde o levaria aquele grandeamor. No sabia. Tinha diante de si os trs meses em que ela estaria em Lisboa, e em queningum mais seno ele ocuparia a velha cadeira ao lado do seu bordado. O marido andavalonge, separado por lguas de mar incerto. Depois ele era rico, e o mundo era largo...

    Conservara sempre as suas grandes ideias de trabalho, querendo que no seu dia shouvesse horas nobres, - e que aquelas que no pertenciam s puras felicidades do amor,pertencessem s alegrias fortes do estudo. Ia ao laboratrio, ajuntava algumas linhas ao seumanuscrito. Mas antes da visita rua de S. Francisco no podia disciplinar o esprito, inquieto,num tumulto de esperanas; e depois de voltar de l, passava o dia a recapitular o que eladissera, o que ele respondera, os seus gestos, a graa de certo sorriso... Fumava ento cigarretes,lia os poetas.

    Todas as noites no escritrio de Afonso se formava a partida de whist. O marqus batia-seao domin com o Taveira, enfronhados ambos naquele vcio, com um rancor crescente que oslevava a injurias. Depois das corridas, o secretario de Steinbroken comeara a vir ao Ramalhete;mas era um intil, nem cantava sequer como o seu chefe as bailadas da Finlndia; cabido nofundo duma poltrona, de casaca, de vidro no olho, bamboleando a perna, cofiavasilenciosamente os seus longos bigodes tristes.

    O amigo que Carlos gostava de ver entrar era o Cruges - que vinha da rua de S. Francisco,trazia alguma coisa do ar que Maria Eduarda respirava. O maestro sabia que Carlos ia rodas as

    manhs ao prdio ver a miss inglesa: e muitas vezes, inocentemente, ignorando o interesse decorao com que Carlos o escutava, dava-lhe as ultimas noticias da vizinha...

    - A vizinha l ficou agora a tocar Mendelhson... Tem execuo, tem expresso, a vizinha...H ali estofo... E entende o seu Chopin.

    Se ele no aparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa busca-lo: entravam no Grmio, fumavamum charuto nalguma sala isolada, falando da vizinha: Cruges achava-lhe um verdadeiro tipo

    de grande dame.Quasi sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinha ver (como ele dizia a faiscar

    de ironia) o que se passava no pas do Sr. Gambeta. Parecera remoar ultimamente, maisligeiro nos modos, com uma claridade de esperana nas lunetas, na fronte erguida. Carlos

    perguntava-lhe pela condessa. L estava no Porto, nos seus deveres de filha...- E seu sogro?

    O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resignadamente:- Mal.

    Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando Niniche que se lhe viera

    sentar nos joelhos, quando Romo entreabriu discretamente o reposteiro, e baixando a voz, comum ar embaraado, um ar de cumplicidade, murmurou:

    - o Sr. Dmaso!...Ela olhou o Romo, surpreendida daqueles modos, e quasi escandalizada.- Pois bem, mande entrar!

    E Dmaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flor ao peito, gorducho, risonho,familiar, com o chapu na mo, trazendo dependurado por um barbante um grande embrulhode papel pardo... Mas ao ver Carlos ali, intimamente, de cadelinha no colo, estacou assombrado,

    com o olho esbugalhado, como tonto. Enfim desembaraou as mos, veio cumprimentar MariaEduarda quasi de leve, - e voltando-se logo para Carlos, de braos abertos, todo o seu espantotransbordou ruidosamente:

    - Ento tu aqui, homem? Isto que uma surpresa! Ora quem me diria!... Eu estava maislonge...

    Maria Eduarda, incomodada com aquele alarido, indicou-lhe vivamente uma cadeira,

    interrompeu um instante o bordado, quis saber como ele tinha chegado.

    - Perfeitamente, minha senhora... Um bocado cansado, como natural... Venho direitinhode Penafiel... Como V. Exc. v - e mostrou o seu luto pesado - acabo de passar por um grandedesgosto.

    Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga e fria. Dmaso pousara osolhos no tapete. Vinha da provncia cheio de cor, cheio de sangue; e como cortara a barba (que

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    havia meses deixara crescer para imitar Carlos) parecia agora mais bochechudo e mais ndio.As coxas rolias estalavam-lhe de gordura dentro da cala de casimira preta.

    - E ento, perguntou Maria Eduarda, temo-lo por c algum tempo?Ele deu um puxosinho cadeira, mais para junto dela, e outra vez risonho:- Agora, minha senhora, ningum me arranca de Lisboa! Podem-me morrer... Isto , credo!

    teria grande ferro se me morresse algum. O que quero dizer que h de custar a arrancar-medaqui!

    Carlos continuava muito sossegadamente a acariciar os plos da Niniche. E houve entoum pequeno silncio. Maria Eduarda retomara o bordado. E Dmaso, depois de sorrir, de tossir,de dar um jeito ao bigode, estendeu a mo para acariciar tambm Niniche sobre os joelhos deCarlos. Mas a cadelinha, que havia momentos o espreitava com o olho desconfiado, ergueu-se,

    rompeu a ladrar furiosa.- C'est moi Niniche! dizia Dmaso, recuando a cadeira. C'est moi, ami... Alors, Niniche...Foi necessrio que Maria Eduarda repreendesse severamente Niniche. E, aninhada de novo

    no colo de Carlos, ela continuou a espreitar Dmaso, rosnando, e com rancor.- J me no conhece, dizia ele embaado, curioso...- Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito sria. Mas no sei o que o Sr.

    Dmaso lhe fez, que ela tem-lhe dio. sempre este escndalo.Dmaso balbuciava, escarlate:- Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?... Car cias, sempre carcias...E ento no se conteve, falou com ironia, amargamente, das amizades novas de

    Mademoisele Niniche. Ali estava nos braos de outro, enquanto que ele, o amigo velho, eradeitado ao canto...

    Carlos ria.- Dmaso, no a acuses de ingratido... Pois se a Sr. D. Maria Eduarda esta a dizer que

    ela sempre te teve dio...- Sempre! exclamou Maria.

    Dmaso sorria tambm, lividamente. Depois, tirando um leno de barra negra, limpandoos beios e mesmo o suor do pescoo, lembrou a Maria Eduarda como ela o tinha desapontado

    no dia das corridas... Ele toda a tarde espera...- Eram vsperas de partida, disse ela.- Sim, bem sei, o marido de V. Exc.... E como vai o Sr. Castro Gomes? V. exc j recebeu

    noticias?

    - No, respondeu ela com o rosto sobre o bordado.Dmaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoisele Rosa. Depois por Cri-

    cri. Era necessrio no esquecer Cri-cri...- Pois V. exc - continuou ele, cheio subitamente de loquacidade - perdeu, que as corridas

    estiveram esplndidas... Ns ainda no nos vimos depois das corridas, Carlos. Ah, sim, vimo-nos na estao... Pois no verdade que estiveram muito chics? Olhe, minha senhora, dumacoisa pode V. exc estar certa, que hipdromo mais bonito no h l fora. Uma vista at

    barra, que de apetite... At se vem entrar os navios... Pois no assim, Carlos?- Sim, disse Carlos, sorrindo. No propriamente um campo de corridas... verdade que

    no h tambm propriamente cavalos de corridas... Verdade seja que no h jockeys... Ora verdade que no h apostas... Mas verdade tambm que no h publico...

    Maria Eduarda ria, alegremente.

    - Mas ento?- Vem-se entrar os navios, minha senhora...Dmaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente querer dizer mal fora...

    No senhor, no senhor!... Eram muito boas corridas. Tal qual como l fora, as mesmas regras,tudo...

    - At na pesagem, acrescentou ele muito srio, falamos sempre ingls!Repetiu ainda que as corridas eram chics. Depois no achou mais nada: - e falou de

    Penafiel, onde chovera sempre tanto que ele vira-se forado a ficar em casa, estupidamente, aler...

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    - Uma maada! Ainda se houvesse ali umas mulheres para ir dar um bocado de cavaco...Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradeiras, raparigas de p descalo, no tolero... H gente quegosta... Mas eu, acredite V. Exc. no tolero...

    Carlos corara: mas Maria Eduarda parecia no ter ouvido, ocupada a contar atentamente asmalhas do seu bordado.

    De repente Dmaso recordou-se que tinha ali um presentinho para a Sr. D. MariaEduarda. Mas no imaginasse que era alguma preciosidade... Verdadeiramente at o presenteera para Mademoisele Rosa.

    - Olhe, para no estar com mistrios, sabe o que ? Tenho-o ali. no embrulhosinho de papelpardo... So seis barrilinhos de ovos moles de Aveiro. um doce muito clebre, mesmo l fora.S o de Aveiro que tem chic... Pergunte V. Exc. ao Carlos. Pois no verdade, Carlos, que uma delcia, at conhecido l fora?

    - Ah, certamente, murmurou Carlos, certamente...

    Pousara Niniche no cho, erguera-se, fora buscar o seu chapu.- J?... perguntou-lhe Maria Eduarda, com um sorriso que era s para ele. At amanh,

    ento!E voltou-se logo para o Dmaso, esperando v-lo erguer-se tambm. Elo conservou-se

    instalado, com um ar de demora, familiar, e bamboleando a perna. Carlos estendeu-lhe doisdedos.

    - Au revoir, disse o outro. Recados l no Ramalhete, hei de aparecer!...Carlos desceu as escadas furioso.

    Ali ficava pois aquele imbecil impondo a sua pessoa, grosseiramente, to obtuso que nopercebia o enfado dela, a sua regelada secura! E para que ficava? Que outras crassas

    banalidades tinha ainda a soltar, em calo, e de perna traada? E de repente lembrou-lhe o queele lhe dissera na noite do jantar do Ega, porta do Hotel Central, a respeito da prpria MariaEduarda, e do seu sistema com mulheres que era o atraco. Se aquele idiota, de repente,abrasado e bestial, ousasse um ultraje? A suposio era insensata, talvez - mas reteve-o no ptio,aplicando o ouvido para cima, com ideias ferozes de esperar ali o Dmaso, proibir-lhe de tornara subir aquela escada, e, menor reflexo dele, esmagar-lhe o crnio nas lages...

    Mas sentiu em cima a porta abrir-se, e saiu vivamente, no receio de ser assim surpreendido escuta. O coup do Dmaso estacionava na rua. Ento veio-lhe uma curiosidade mordente desaber quanto tempo ele ficaria ali com Maria Eduarda. Correu ao Grmio; e apenas abrira umavidraa - viu logo o Dmaso sair do porto, saltar para o coup, bater com forca a portinhola.Pareceu-lhe que trazia o ar escorraado, e subitamente teve d daquele grotesco...

    Nessa noite, depois de jantar, Carlos s no seu quarto fumava, enterrado numa poltrona,relendo uma carta do Ega recebida nessa manh, - quando apareceu o Dmaso. E, sem pousarmesmo o chapu, logo da porta, exclamou, com o mesmo espanto da manh:

    - Ento dize-me c! Como diabo te vou eu encontrar hoje com a brasileira?... Como aconheceste tu? Como foi isso?

    Sem mover a cabea do espaldar da poltrona, cruzando as mos sobre os joelhos em cimada carta do Ega, Carlos, agora cheio de bom humor, disse, com uma doce repreenso paternal:

    - Pois ento tu vais expor a uma senhora as tuas opinies l bricos sobre as lavradeiras dePenafiel!

    - No se trata disso, sei muito bem o que hei de expor! exclamou o outro, vermelho. Contal, anda... Que diabo! Parece-me que tenho direito a saber... Como a conheceste tu?

    Carlos, imperturbvel, cerrando os olhos como para se recordar, comeou num tom lento esolene de recitativo:

    - Por uma tpida tarde de primavera, quando o sol se afundava em nuvens de oiro, ummensageiro esfalfado pendurava-se da campainha do Ramalhete. Via-se-lhe na mo uma carta,lacrada com selo herldico; e a expresso do seu semblante...

    Dmaso, j zangado, atirou com o chapu para cima da mesa.- Parece-me que era mais decente deixar-te desses mistrios!

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  • 8/14/2019 OS MAIAS - CAP XI

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    - Mistrios? Tu vens obtuso, Dmaso. Pois tu entras numa casa onde existe h quasi umms uma pessoa gravemente doente, e ficas assombrado, petrificado, ao encontrar l o mdico!Quem esperavas tu ver l? Um fotografo?

    - Ento quem est doente?Carlos, em poucas palavras, disse-lhe a bronquite da inglesa - enquanto o Dmaso, sentado

    beira do sof, mordendo o charuto sem lume, olhava para ele desconfiado.- E como soube ela onde tu moravas?

    - Como se sabe onde mora o rei; onde a alfndega; de que lado luz a estrela da tarde; oscampos onde foi Tria... Estas coisas que se aprendem nas aulas de instruo primaria...

    O pobre Dmaso deu alguns passos pela sala, embezerrado, com as mos nos bolsos.- Ela tem agora l o Romo, o que foi meu criado, murmurou depois dum silncio. Eu

    tinha-lho recomendado... Ela leva-se muito pelo que eu lhe digo...- Sim, tem, por uns dias, enquanto o Domingos foi terra. Vai manda-lo embora, um

    imbecil, e tu tinhas-lhe ensinado mas maneiras...

    Ento Dmaso atirou-se para o canto do sof e confessou que ao entrar na sala, quandodera com os olhos em Carlos, de cadelinha no colo, ficara furioso... Enfim, agora que sabia queera por doena, bem, tudo se explicava... Mas primeiro parecera-lhe que andava ali tramia... S

    com ela, ainda pensou em lhe perguntar: depois receou que no fosse delicado; e alm disso elaestava de mau humor...E acrescentou logo, acendendo o charuto:

    - Que apenas tu saste, ps-se melhor, mais vontade... Rimos muito... Eu fiquei ainda attarde, quasi duas horas mais; era perto das cinco quando sai. Outra coisa, ela falou-te algumavez de mim?

    - No. uma pessoa de bom gosto; e sabendo que nos conhecemos, no se atreveria adizer-me mal de ti. Dmaso olhou-o, esgazeado:

    - Ora essa!... Mas podia ter dito bem!- No; uma pessoa de bom senso, no se atreveria tambm.E erguendo-se vivamente, Carlos abraou Dmaso pela cinta, acariciando-o, perguntando-

    lhe pela herana do titi, e em que amores, em que viagens, em que cavalos de luxo ia gastar os

    milhes...Dmaso, sob aquelas festas alegres, permanecia frio, amuado, olhando-o de revs.- Olha que tu, disse ele, parece-me que me vais saindo tambm um traste... No h a gente

    fiar-se em ningum!- Tudo na terra, meu Dmaso, aparncia e engano!Seguiram dali sala do bilhar fazer a partida de reconciliao. E pouco a pouco, sob a

    influncia que exercia sempre sobre ele o Ramalhete, Dmaso foi sossegando, risonho j,gozando de novo a sua intimidade com Carlos no meio daquele luxo srio, e tratando-o outravez por menino. Perguntou pelo Sr. Afonso da Maia. Quis saber se o belo marqu s tinhaaparecido. E o Ega, o grande Ega?...

    - Recebi carta dele, disse Carlos. Vem ai, temo-lo talvez c no sbado.Foi um espanto para o Dmaso.- Homem! essa curiosa! E eu encontrei os Cohens, hoje!... Vieram h dois dias de

    Southampton... Jogo eu?

    Jogou, falhou a carambola.- Pois verdade, encontrei-os hoje, falei-lhes um instante... E a Rachel vem melhor, vem

    mais gorda... Trazia uma toilete inglesa com coisas brancas, coisas cor de rosa... Chic a valer,parecia um moranguinho! E ento o Ega de volta?... Pois, menino, ainda temos escndalo!

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