resenha eclea bosi

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  • Psicologia USP, 2004, 15(3), 233-244 233

    RESENHA

    A MEMRIA PARTILHADA

    Resenha de: Bosi, Ecla. (2003). O Tempo Vivo da Memria: Ensaios de Psicologia Social. So Paulo: Ateli Editorial.

    este livro de admirvel sensibilidade humana, Ecla Bosi explora o campo de experincia pessoal com os eventos do dia-a-dia, registrados

    na lembrana, contados para outrem. No a memria que se tranca em si-mesma, mas a que partilha seus contedos quando h um ouvido disponvel e atento, e que os define, no prprio ato de contar. H uma histria oficial, a dos manuais e das datas importantes que todos ns quando estudantes, e sob protesto, tivemos de decorar. A a que se refere Ecla outra histria, a de cada um, construda ao longo da vida, a partir de um cotidiano muitas vezes corriqueiro mas sempre relevante.

    A toda hora, somos capazes de recuperar aspectos de nosso passado: como se nos contssemos histrias a ns-mesmos, alguns chegam a registr-las em forma de dirio. Mas o relato primordial o que pode ser feito a ou-tras pessoas: atravs dele, o que vivemos e que bem nosso ganha uma di-menso social, obtm testemunhas (mesmo que a posteriori), faz com que os outros ampliem sua experincia, atravs das nossas palavras. H troca e cumplicidade. Viver, para Contar (a vida), o ttulo das memrias de Gabriel Garca Mrques, serve para todos ns. Viver algo notvel gera a necessidade de contar: voc sabe o que eu vi? voc sabe o que me aconteceu ? E tudo o que nos acontece notvel porque nos concerne. interessante notar que estudiosos supem ter a linguagem se originado, em nossa espcie, a partir da representao de situaes sociais; talvez se possa dizer, parafraseando Garca Mrquez, que se nos lembramos para poder contar.

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    Falar nem sempre pragmtico, no sentido de coordenar a ao sobre o mundo, falar aproxima as pessoas e as coloca num campo de significados comuns. um contacto de experincias no qual tomamos um prazer especial (no nos definiu o psiclogo Dunbarcomo uma espcie palradora, em que os relacionamentos sociais se reforam atravs do bate-papo ?), graas ao qual reduzimos a solido qual nos condena a nossa individualidade e os mun-dos prprios que construimos para ns-mesmos. No se trata de uma mem-ria-hbito, mas uma memria de eventos nicos, uma memria bergsoniana das coisas em constante transformao, da qual nos fala Ecla.

    Digo nos fala porque o tom do relato que marca a maneira de E-cla compor os ensaios que fazem parte do livro. Ela escreve como quem conta, vai acrescentando as idias em pequenas frases sempre dentro da li-nha narrativa e a gente l com a sensao de que est na presena de fatos de uma experincia que tambm poderia ser nossa. Ecla no se esconde atrs do que diz, em formalidade desnecessria (mesmo quando, s vezes, escreve como quem d uma aula), seu texto remete aos trajetos seguidos, aos enga-jamentos pessoais que o originaram. Durante anos sucessivos meu alunos de Psicologia Social... representaram a novela O Capote de Nicolai Go-gol (p. 127) ou Faz alguns anos recolhi a memria do tempo... a memria do trabalho de velhos moradores de So Paulo (p. 69).

    Perpassa o texto um senso potico especial. Ecla tem talento para captar o pormenor, redimindo e dignificando o cotidiano. assim que se refere, de forma suave, paz da cidade, quando cai a noite: A seqncia de movimentos na calada segue ritmos que aceleram e se abrandam em horas certas e vo se extinguindo devagar quando as janelas se iluminam e as ruas se esvaziam. Depois, as janelas vo-se apagando e fechando, menos alguma que resiste ainda, da qual escapa um som que finalmente silencia (p. 72). ; e assim que, graas a uma imagem que nos surpreende, infunde fora de transformao quilo que parece ter a eternidade do concreto: [o bairro tem] sua infncia, juventude, velhice... as casas crescem do cho e vo mu-dando: canteiros, cercas, muros, escadas, cores novas, a terra vermelha e depois o verde umbroso. Arbustos e depois rvores, caladas, esquinas... uma casa pintada de azul que irradia a luz da manh, os terrenos baldios, as

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    ruas sem sada que terminam em praas ermas... o bairro acompanha o ritmo da respirao e da vida dos seus moradores. Suas histrias se misturam e ns comeamos a enxergar nas ruas o que nunca viramos, mas nos contaram (pp. 73-74). E assim que fala dos simples sobrados que no merecem tombamento porque l no morou nenhum baro, mas foram adquiridos com prestaes custosas, privaes sem fim, que resultaram nessas casas adorveis que conhecemos: a mquina de costura a um canto da sala, a TV redimida por uma toalha de croch, os gernios. Salas onde a gente ficaria um sculo escutando, onde as meias paredes filtram conversas, exerccios de piano, a gua correndo, a cano dominical (se faz sol) (p. 74).

    A memria traduzida em palavras e que transmite uma experincia vi-vida tem interesse enorme para o psiclogo. Atravs dela, ele pode ter aces-so aos momentos de antigamente que permanecem, mesmo que sem que deles se tome conscincia, como motivos para o comportamento presente. Durante uma poca, em minha carreira, me interessei pelo que se conven-cionou chamar, na rea experimental, memria autobiogrfica: o enfoque no era contudo fenomenolgico, visava compreenso dos processos bsi-cos da reteno. Os psiclogos da memria reservam, com muito acerto, um captulo parte para as lembranas de eventos que cada um vive como seus, em contraste com aquelas relacionadas ao modo de fazer e aos princpios gerais. Em nossas pesquisas, pedamos que, durante alguns dias, pessoas mantivessem um dirio; depois, verificvamos que contedos perduravam na memria, depois de intervalos mais ou menos longos. Pensvemos, par-tindo do pressuposto psicanaltico de que h represso de contedos confli-tuosos, que as lembranas de eventos positivos teriam preeminncia na lem-brana. Mas no. Fossem os eventos agradveis ou penosos, a sua permanncia na memria dependia do quanto tinham de impacto afetivo. Eventos que no provocavam medo, humilhao, expectativa, alegria, ou seja, que no mexiam com a pessoa, eram mais facilmente relegados ao es-quecimento. A capacidade que a emoo tem de priorizar certos contedo da memria autobiogrfica me parece digna de nota por mostrar que, pelo menos nesta rea, no vivel uma explicao puramente cognitiva.

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    Mas a perspectiva na qual se coloca Ecla transcende, sem abandon-la, a perspectiva individual. Cada relato remete a situaes em que o depo-ente se envolveu em interao com outras pessoas, reflete as crenas que adquiriu em seu grupo, se ancora temporalmente aos eventos que fizeram notcia e qualificaram a poca, sobre campeonatos de futebol, sobre aciden-tes e crimes, sobre escndalos e poltica (sem querer associar ambos, embo-ra...), sobre a passagem do cometa Halley, sobre a marcha das mulheres pela famlia e pela propriedade, sobre o movimento das diretas j, sobre o impea-chment do presidente Collor, sobre o atentado do 11 de setembro etc. A vida privada constitui o testemunho de um tempo coletivo, e o psiclogo social pode remontar, a partir das prticas da privacidade, para o contexto social do qual se nutrem e que elas ajudam a definir. Nesta empresa, a psicologia es-tabelece zonas de transio e de interdisciplinaridade com a histria e as outras cincias sociais.

    Acho preciosas e reveladoras as sugestes para um jovem pesquisa-dor (cartas a um jovem poeta?) que Ecla d, a partir de intuies cultiva-das ao longo de anos de pesquisa, em contextos diversos, mas sempre cen-tradas no encontro e na criao de interaes privilegiadas. No so as regras que um captulo de metodologia costuma conter e no se preocupam com a quantificao das coisas. So prticas num outro sentido. Lembram o quanto essencial criar um contexto de confiana e de apego para poder aproximar-se dos modos como algum se v e v os eventos nos quais to-mou parte. Trata-se de um exerccio de alteridade. No h nada que eu ache mais impressionante a respeito da conscincia humana do que esta capaci-dade que temos se houver o desejo e se forem propcias as condies de apreender o jeito de os outros serem, adotando por um momento sua pers-pectiva, decentrando nossa percepo, como diria Piaget.

    Quais so as dicas que Ecla prope? Em primeiro lugar, obter infor-maes objetivas a respeito do assunto de que ir falar o depoente, assim no estaremos metendo os ps pelas mos a respeito da histria e da geogra-fia das coisas que sero relatadas. Em seguida, efetuar uma aproximao pessoal aos contextos aos quais ele pertence, indo, se possvel sua casa, e sair com ele, caminhar ao seu lado nos lugares em que os episdios lem-

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    brados ocorreram (p. 60), (este andar, evidentemente, pode ser virtual, se os eventos relatados forem distantes, no tempo, no espao). Cabe efetuar uma conversa prvia (ou pr-entrevista, mas no fica claro o quanto o pr j no comeo) para adquirimos informao a respeito do que constitui o cerne de suas preocupaes, dos termos que usa e do modo de reconstituir o passado que bem dele. E, sobretudo, formar laos de amizade. Estes laos so to necessrios quanto inevitveis. Ocorrem porque, ao perguntarmos sobre o passado do depoente, estamos nos colocando na posio de pessoa que se interessa por ele e quer partilhar a sua experincia. a aventura con-junta de reviver e o que fala implicitamente agradece ao que escuta, por ter-lhe fornecido uma oportunidade para saber o que tinha a dizer (no afirma Alain que precisamos de palavras para saber o que pensamos ?).

    Tudo tem de ser anotado. Reencontro, nesta sugesto de Ecla, minha prpria alegria de naturalista, sempre pronto a registrar o muito que pode ser visto. A manuteno de um dirio, na pesquisa sobre memrias, salva, na memria do pesquisador, os pormenores que apenas na aparncia e cons-cincia apressada so irrelevantes. Sugiro sempre aos meus alunos que, quando possvel, gravem suas entrevistas: ouvir depois descobrir a riqueza das nuances, dos silncios, das reticncias, daquilo que no se pretendia tal-vez transmitir mas que passou assim mesmo. Ecla ressalta a importncia das hesitaes e dos silncios. Os lapsos e incertezas das testemunhas so o selo da autenticidade... A fala emotiva e fragmentada portadora de signifi-caes que nos aproximam da verdade. Aprendemos a amar esse discurso tateante, suas pausas, suas franjas com fios perdidos quase irreparveis (pp. 63-65). No trabalho de colher um depoimento, com ateno intensa e leve, cabe perceber a forma como o depoente ordena as suas lembranas, os as-pectos da narrativa que ele ressalta, os que ele deixa mais pobres, os mo-mentos de transio nos quais se revelam as passagens de sua vida. E os seus esquecimentos. Tudo serve para que surja um campo global de signifi-cao, extrado dos muitos fragmentos colhidos, numa totalidade que Ecla qualifica de gestltica. Finalmente, mais do que uma sugesto, um ponto tico: mostrar o depoimento, depois de transcrito, a quem o deu, para que

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    possa apreci-lo e tenha a liberdade de modific-lo. o que muitas vezes no fazem os jornalistas cientficos quando nos pedem uma entrevista !

    No h porque exigir do relato que tenha preciso histrica. Ele tem a sua prpria verdade, que a da crena e da atitude. Temos que tom-lo co-mo dado, notar as suas contradies, seus vises, seus limites, interpret-lo. Ir alm dele para reencontrar a sua coerncia. Constata Ecla, com desapon-tamento, que contar trair a experincia imediata. verdade que, ao narrar uma experincia profunda, ns a perdemos tambm, naquele momento em que ela se corporifica (e enrijece) na narrativa (p. 35). E mais: difcil o caminho de volta s coisas, de volta ao mundo da vida pr-categorial e pr-reflexiva, para reendontrar os fenmenos face a face (p. 116). Trata-se de uma dificuldade metafsica, anloga que encontram os filsofos quando buscam definir as caractersticas ntimas da conscincia, ou qualia. Tem a ver com a esquematizao necessria que a linguagem impe aos dados imediatos da conscincia. No vejo como dela escapar: a linguagem (e a sua rigidez) o preo que temos de pagar para criar campos partilhados de significado. Se que perdemos o contato face a face com os fenmenos porque precisamos ficar face a face com os outros.

    Uma certa distrao contribui para empobrecer o relato e nos tornar passivos em relao s verdades fceis do consenso. Nem sempre estamos dispostos aventura da percepo, somos insensveis e desatentos s coisas que povoam o nosso mundo e, por isso, sofremos de uma perda... que nos faz capitular e enxergar atravs de mediaes impostas (p. 115). Aqui resi-de o perigo maior: assimilar categorias que nos foram vendidas, ou impos-tas, que adotadamos sem crtica, por convenincia, por medo, para no ser-mos diferentes, para nos colocarmos do lado dos mais fortes. To profundamente as assimilamos que as tomamos por categorias objetivas. Rica e criativa como , a memria no s de quem conta, o social se apro-pria dela, superpe-lhe memrias oficiais. O testemunho oral nem sempre mais autntico do que a verso oficial, pode ser-lhe conivente. A memria , segundo Ecla (e no difcil concordar) cooptada por esteretipos que nascem, ou no interior da prpria classe... ou de instituies dominantes como a escola, a universidade que so instncias interpretativas da Histria

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    (p. 23). Ecla sempre se mantm atenta ao que afasta o relato da realidade social, ofuscando-a. Denuncia a imposio sutil e perversa, que faz com que algum veja os eventos sociais relevantes do modo como convm aos que detm a mdia, o poder. Quando um acontecimento poltico mexe com a cabea de um determinado grupo social, a memria de cada um de seus membros afetada pela interpretao que a ideologia dominante d a este acontecimento. Portanto, uma das faces da memria pblica tende a permear as conscincias individuais pp. 21-22).

    Imagens, sentimentos, idias e valores politicamente corretos ali-mentam a memria da pessoa e do permanncia s relaes de classe e s explicaes cmodas em termos das vantagens proporcionadas a alguns. H alienao em relao autenticidade afetiva. O burgus, enquanto agente e produto do universo de valores de troca, no pode refugiar-se autenticamen-te na esfera da intimidade afetiva, pois at mesmo os seus objetos biogrfi-cos podem converter-se e freqentemente se convertem em peas de um mecanismo de reproduo de status (p. 29). O mecanismo perverso, uma vez que convence inclusive a quem prejudica: cada indivduo pensa que um caso parte quando opina: mas ele acentua a sua particularidade enquan-to exalta o poder que o alienou (p. 124).

    O que tambm me preocupa degradao da experincia no que ela tem de pessoal e de crtico. Estamos na era da informao excessiva. To distribuda a ateno que ela se torna superficial e incapaz de constituir os esquemas pelos quais nos dado integrar os contedos parciais do conheci-mento. Alm disso, a mdia aposta naquilo que atrai a ateno de forma fu-gaz, no nvel suficiente para a elevao pontual de ndices de audincia, gera modas que passam, assuntos de que as pessoas falam mas que esquecem muito rapidamente. Trata-se de ganhar de outro canal, de outro programa e a destreza na arte da competio vale mais do que o cuidado pelo contedo transmitido. A divulgao banaliza os crimes, os atentados, as guerras e at a misria. Vivemos mergulhados numa informao descartvel e numa insta-bilidade de atitudes e de posicionamentos que nos torna presas para o mar-keting, ele bem estruturado.

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    Uma histria de vida no feita para ser arquivada ou guardada nu-ma gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela flores-ceu (p. 69). Em frases como esta que encontramos amide no livro, se ex-pressa o engajamento que Ecla no considera posterior dmarche cientfica, mas como intrnseca a ela, sua motivao e seu guia. A histria oral no apenas o recolhimento do testemunho pessoal, ela uma maneira de resgatar as camadas da populao excludas da histria. H mais do que curiosidade cientfica no ato de dar a palavra a algum.

    No mnimo, a denncia. O artigo sobre o campo de Terezin, na ento Tchecoslovquia, que eu j tinha tido a oportunidade de ler na Revista Estu-dos Avanados do Instituto de Estudos Avanados da USP, no foi elabora-do a partir de depoimentos diretos, mas o modo como Ecla conta esta incr-vel histria, o seu uso de relatos indiretos, de documentos e de imagens a tornam to concreta como se ela tivesse ouvido os fatos da prpria boca dos protagonistas (um fato deveras difcil uma vez que a maioria destas pessoas no sobreviveu sua estada em Theresinstadt).

    O que se denuncia, alm da crueldade nazista, o uso do disfarce e da mentira, da propaganda na pior acepo. Para tranqilizar a opinio pblica j bastante inquieta a respeito do destino dos judeus, quando j estava adian-tado o processo de sua eliminao, organizam os ministros do Fhrer em meados de 1944 uma visita de membros da Cruz Vermelha cidade de Terezin, na verdade um campo do qual partiam centenas de pessoas para o extermnio. Encontram os visitantes uma cidade limpa, dirigida por judeus, com orquestras e corais, atividades esportivas, jardim de infncia moderno, enfim, uma cidade normal de provncia da qual os habitantes se apresen-tavam sorrindo e a respeito da qual davam depoimentos positivos. Todos, evidentemente, sabiam o que sofreriam caso se desviassem deste roteiro de bom comportamento.

    Vale a pena ler o texto de Ecla a respeito. Escrito como se fosse um documentrio, deixa a emoo transparecer ao invs de escancar-la, permi-te ao leitor se expor atmosfera de ameaa e discriminao, sentindo-a por conta prpria. um testemunho do quanto pode se dobrar algum, quando

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    humilhado ao extremo, mas tambm de impressionante valentia na afirma-o dos valores e da vida. Escreve Ecla: Terezin concentrou em si uma terrvel beleza. A resistncia banalidade do mal se apresentou em formas expressivas na msica, na pintura, no teatro, na poesia... mas tambm houve uma arte subterrnea, de denncia (p. 95). E cita um comovente exemplo de esperana: Em 1943, o campo viveu um memorvel acontecimento: a apresentao do Requiem de Verdi. Quando a quase totalidade do coral foi deportada.... lentamente se formou um segundo conjunto que pde apresen-tar outra vez o Requiem... Mas, havendo novas deportaes, os cantores se foram. Os sobreviventes do campo de Terezin formaram ento um terceiro coral que, no outono de 1944, se apresentou para cantar o Requiem de Ver-di (p. 104).

    O enraizamento um dos conceitos de Simone Weil que Ecla exa-mina, mas de uma forma to integrada ao prprio pensamento, quase sem aspas, que o leitor pode no perceber a passagem: O ser humano tem uma raiz por sua participao real, ativa e natural na existncia de uma coletivi-dade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro (p. 75). Esta frmula que diz tudo de Simone Weil. Eu interpre-to o enraizamento a partir da idia mais ampla da integrao dos seres vivos ao ambiente, uma idia que permeia a biologia e que coloca os indivduos e o seu contexto (o seu nicho) como partes interativas num sistema que a his-tria evolutiva integrou. Da que no se entende plenamente a vida de um animal enquanto no for considerada a maneira como este animal se insere, pelas caractersticas anatmicas e pela atividade funcional, no ambiente em que sobrevive. Tirar um animal de seu ambiente natural por prova a sua capacidade de adaptao ao ponto eventual do estresse e da ameaa sobre-vivncia.

    Tambm no entenderemos o ser humano se no prestarmos ateno sua insero no seu contexto principal, que social. O grupo representa mais do que o conjunto de oportunidades a partir das quais se concretizam as a-es individuais, ele a matriz na qual a individualidade se estrutura e na qual se desenvolvem as aes significativas da pessoa, efetuadas no esprito de pertencer e de participar. Hiroshima, cest ton nom diz ao amigo japo-

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    ns a personagem central de LAnne Dernire Marienbad, de Alain Res-nais. E ele responde: Oui, cest mon nom. Ton nom toi, cest Nevers e ambos recuperam assim, recuando no tempo, sua identidade primordial.

    Terminarei esta resenha (que mais do que uma reflexo sobre a men-sagem de Ecla uma reflexo de sua mensagem) com lembranas e uma rvore, uma figueira. As lembranas remontam s aulas de Psicologia Expe-rimental que tivemos como alunos de uma das primeiras turmas de Psicolo-gia da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras. Era no incio da dcada de 1960, no h como esconder as datas, no ? O curso dispunha de algumas salas, num belo prdio tradicional (o antigo Palacete Jorge Street) da alameda Glete, esquina com a rua Guaianazes, onde os cursos da Geologia, da Histria Natural e da Qumica tambm funcionaram. Descamos alguns degraus era o poro do prdio e entrvamos numa sala com uma mesa central, ao redor da qual cabia toda a turma, eram poucos os alunos ! para aulas sobre percep-o, aprendizagem, psicologia comparativa. Al, soubemos das idias dos gestaltistas Koffka, Khler, Lewin e tambm nos iniciamos na Etologia com Tinbergen e Lorenz. A sala, assim como outras menores, serviam de labora-trio, no final do corredor foi instalado o sauveiro do Professor Walter Hugo de Andrade Cunha, onde, nos tubos e panelas de vidro, as formigas nos dei-xavam admirados com o seu incessante labor. Sentados mesa de semin-rio, em reunies parte que marcvamos noite, Walter, Arno Engelmann e eu discutamos o modelo terico de Miller, Galanter e Pribam, tal como ex-posto no livro Plans and the Structure of Behavior, em prenncio do cogni-tivismo. Fernando Leite Ribeiro, Katsumaza Hoshino, Alcides Gadotti e eu l planejamos um experimento sobre mapas cognitivos em ratos, de inspira-o tolmaniana, s muito mais tarde realizado. Em duas salinhas, instale i um biotrio improvisado e o meu primeiro laboratrio, no qual fui investigando com curiosidade a natureza do comportamento exploratrio. O espao era pouco mas extraordinria a densidade de idias, no nos abandonava um instante o senso de conquista intelectual. H muito mais a dizer sobre a Gle-te como origem do que hoje so linhas de ensino e pesquisa no Instituto de Psicologia, mas deixemos isso para outro depoimento. Quero evocar o por-to com uma guarita por onde entrvamos na Glete, e a bela figueira que

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    ficava, na extremidade do ptio, perto do muro, expandindo seus galhos e sua folhagem para fora, formando uma cobertura para a calada.

    No comeo dos anos 1970, sem motivo vlido, atingindo a memria que l se encontrava, foi destrudo o palacete para dar lugar a um estaciona-mento de carros. Mas sobrou a figueira, fui visit-la, h carros por toda a volta, mas ela ainda est bela e frondosa e o pessoal do estacionamento sabe que al esteve, um dia, a Faculdade.

    FIGUEIRA DA GLETE (Figueira das Geocincias, 21.11.2003), um broto, memria viva.

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    E um dia, recebi mensagens e, depois, a visita de uma pessoa notvel, que Neuza Guerreiro de Carvalho, da turma de 1951 de Histria Natural, na Glete. Portanto, gletiana (glettiana?) de primeira linha. Vov Neuza tem batalhado para recuperar a memria da Glete, contactando e reunindo os ex-alunos dos diversos cursos, em torno da figueira, agora um smbolo. Colegas gelogos, em trinta de maio do ano passado, plantaram, frente ao Instituto de Biocincias, onde est agora, verde, vicejando, um broto da figueira da Gle-te. Outro broto da figueira ainda h de crescer nos gramados do nosso Insti-tuto, como marco de memria e de identidade. Como raiz.

    Csar Ades

    Instituto de Psicologia - USP

    Referncias

    Bosi, E. (1999). O campo de Terezin . Estudos Avanados, 13(37), 7-32. Dossi Me-mria

    Bosi, Ecla. (2003). O tempo vivo da memria: ensaios de psicologia social. So Paulo: Ateli Editorial.

    Dunbar, R. (1996). Grooming, gossip and the evolution of language. London: Faber and Faber.

    Mrquez, G. G. (2002). Vivir para contalar. Bogot: Editorial Norma.