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Revista de Informação Legislativa€¦ · Revista de Informação Legislativa Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal. Revista de Informação Legislativa FUNDADORES

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Brasília • ano 42 • nº 168Outubro/dezembro – 2005

Revista deInformação Legislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

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Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORESSenador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (61) 3311-3575, -3576 e -3579Fax: (61) 3311-4258. E-Mail: [email protected]

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha Neto

REVISÃO DE ORIGINAIS: Angelina Almeida Silva e Cláudia Moema de Medeiros LemosREVISÃO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Raquel Pimentel dos Santos e

Francisco Rafael Amorim dos SantosREVISÃO DE PROVAS: Leila Rodrigues Mariano e Cláudia PantuzzoEDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Ana Maria da Silva Peixoto e

Francisco Donato González FernandesCAPA: Renzo ViggianoIMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - - Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1964– .v. Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº

11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretaria de Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria de Edi ções Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte desta publicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

Solicita-se permuta.Pídese canje.On demande l´échange.Si richiede lo scambio.We ask for exchange.Wir bitten um Austausch.

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 42 · nº 168 · outubro/dezembro · 2005

José Levi Mello do Amaral Júnior

José Carlos BuzanelloAndréa Cristina de Jesus Oliveira

Christian Edward Cyril Lynch

Andreo Aleksandro Nobre Marques

Luiz Carlos Falconi e José Nicolau Heck

Bruno Miragem

Leandro Martins Zanitelli

João Batista Marques

Flaviane de Magalhães Barros Pellegrini; Marius Fernando Cunha de Carvalho; Natália Chernicharo Guimarães

Pedro BragaPaulo José Leite FariasPaulo Tadeu Rodrigues Rosa

Leonardo MattiettoEduardo Tomasevicius Filho

Amandino Teixeira Nunes Junior

O Poder Legislativo na democracia contemporânea: a função de controle político dos Parlamentos na demo-cracia contemporânea 7Em torno da Constituição do direito de resistência 19Breve histórico sobre o desenvolvimento do lobbying no Brasil 29A idéia de um Conselho de Estado brasileiro: uma abor-dagem histórico-constitucional 45Do controle de constitucionalidade dos atos jurisdicio-nais 65A depredação das áreas de preservação permanente e de reserva legal fl orestal do bioma Cerrado como causa de desapropriação da propriedade rural por interesse social 75O artigo 1.228 do Código Civil e os deveres do proprietá-rio em matéria de preservação do meio ambiente 101Acesso à Universidade, cotas para negros e o projeto de lei no 3.627/2004 121A obrigatoriedade da denunciação da lide nas demandas resultantes da responsabilização patrimonial extracontra-tual do Estado por danos causados a terceiros 137O consenso compreendido a partir do paradigma do Estado democrático de Direito: uma crítica ao conceito de Justiça Consensual 147

A sociedade de risco e o Direito Penal 155Ordem urbanística e a prevenção da criminalidade 167Aplicação da Lei Federal dos Juizados Especiais Crimi-nais na Justiça Militar Estadual e Federal 185A renovação do direito de propriedade 189A função social do contrato: conceito e critérios de apli-cação 197A teoria rawlsiana da justiça 215

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OS CONCEITOS EMITIDOS EM ARTIGOS DE COLABORAÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.

Rafael Silveira e Silva O poder público e os fundos de pensão: razões e funda-mentos para um projeto de agência regulatória 279

Resenha Legislativa (artigos de contribuição da Consultoria Legislativa do Senado Federal)

A jangada de pedra: os caminhos da auditoria 227

Como fi scalizar as PPPs 255Direitos genéticos como direitos da personalidade 263

Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt

Marcelo Henrique PereiraIduna E. Weinert

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José Levi Mello do Amaral Júnior

Introdução

A presente exposição pretende destacaruma das mais antigas e marcantes funçõesdos Parlamentos em geral e do CongressoNacional brasileiro em particular: a de con-trole político , isto é, quando o Parlamentoserve “(...) de canal de comunicação entre osdetentores do poder político e os governa-dos e de orientação política do governo”.(CAGGIANO, 2004, p. 30). Nesse contexto,“(...) o Parlamento assume o papel de fiscal,de vigilante sobre a atividade governamen-tal”. (CAGGIANO, 2004, p .30).

A função em causa não é nova. Surgiuno século XI, ainda nos primórdios dos Par-lamentos modernos. Passa, hoje, por umevidente revigoramento.

Não se pretende, com isso, desmerecerfunções outras dos Parlamentos, como, porexemplo, a legislativa. De toda sorte, nãoobstante a crescente participação dos gover-

O Poder Legislativo na democraciacontemporâneaA função de controle político dos Parlamentos nademocracia contemporânea

José Levi Mello do Amaral Júnior é Doutorem Direito do Estado pela USP, Procurador daFazenda Nacional, Professor do Mestrado emDireito do UniCEUB/DF e Assessor da Lide-rança do PSDB na Câmara dos Deputados.

SumárioIntrodução. 1. Democracia antiga. 2. Evolu-

ção dos Parlamentos e função de controle.3. Vontade geral e controle popular direto.4. Mídia e função de controle. 5. Função de con-trole do Congresso Nacional. 5.1. Sustação deatos normativos do Poder Executivo. 5.2. Con-vocação de ministros e pedido de informações.5.3. Tribunal de Contas da União. 5.4. Comis-sões parlamentares de inquérito. 5.5. Orçamen-to e conversão em lei de medida provisória.5.6. Impeachment. Conclusão.

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nos na produção legislativa, a função decontrole político dos Parlamentos a essesgarante efetiva participação na conduçãopolítica do governo. É possível que o forta-lecimento da função de controle político seja,justamente, uma reação à crescente importân-cia dos atos de governo (COTA, 2000, p. 885-886), aí incluídos os de natureza legislativa.

1. Democracia antigaOs gregos antigos conceberam um regi-

me de governo exercido diretamente peloscidadãos da polis. Em discurso proferido em431 a.C., primeiro ano da Guerra do Pelopo-neso, Péricles registrou que o nome desseregime, “(...) como tudo depende não de pou-cos, mas da maioria, é democracia”.

Desde então, a História registra proces-sos sociais que têm redefinido continuamen-te o significado de democracia. Ao longo dotempo, a democracia passa por ciclos ou por“ondas”, para usar a expressão de JohnMarkoff (1996, p. 18). Durante cada “onda”,discute-se o verdadeiro significado de de-mocracia.

Após a democracia grega e a repúblicaromana (eram bastante similares, tanto quecarece de base histórica a distinção feita porJames Madison, no Federalista no 10 – a de-mocracia seria direta e a república represen-tativa – porque Roma não chegou a adaptaras suas instituições à expansão de seus do-mínios) (DAHL, 2001, p. 26-27), o governodemocrático quase que desapareceu (DAHL,2001, p. 25-26). Há, no entanto, registros departicipação popular em governos locais.Por exemplo, as assembléias de vikings li-vres guardavam a idéia de igualdade, comodemonstra a resposta dada por alguns de-les quando perguntados: “Qual é o nome devosso senhor? Nenhum. Somos todosiguais”. (DAHL, 2001, p. 29).

2. Evolução dos Parlamentose função de controle

A democracia parlamentar começa a to-mar forma na Idade Média. Evolui por meio

da adoção de mecanismos de limitação e decontrole político do poder real. Os Parlamen-tos surgem para limitar e controlar o poderdo rei.

Em 1215, João Sem Terra foi obrigado aoutorgar a Magna Carta Libertatum aos seusbarões, documento que afirmava que, se orei desejasse tributos excedentes aos pactu-ados, deveria obter o consentimento do Mag-num Concilium, formado pelos altos feuda-tários laicos e eclesiásticos. Também eramconvidados representantes dos condados edas cidades para assegurar que os tributosaprovados pela assembléia seriam efetiva-mente suportados por todos os cidadãos li-vres. Em 1265, um poderoso feudatário,Simon de Monfort, reuniu o Parlamento con-tra a vontade do rei Henrique III e convo-cou, também, dois cavaleiros de cada con-dado e dois burgueses de cada cidade (emrazão do que é chamado “pai da Câmarados Comuns”). O rei Eduardo I, em 1295,consolidou o procedimento, utilizando con-vocações diretas para os nobres e clérigos econvocações por meio de representantespara o terceiro estado (“Parlamento mode-lo”). Nas primeiras décadas do século XIV,começou a tomar forma o bicameralismo noParlamento inglês. Foi somente a partir doséculo XV que começou a se configurar acompetência legislativa do Parlamento in-glês (RUFFÌA, 2000, p. 193-194). Com asrevoluções liberais, a função legislativafoi, aí, sim, arrebatada dos reis pelos Par-lamentos.

Característica fundamental da demo-cracia parlamentar é que dela tomam par-te representantes dos “comuns”, mas nãoo povo diretamente. A esse propósito, éeloqüente a lição de Montesquieu (1995,p. 120):

“Já que, num Estado livre, todohomem que supõe ter uma alma livredeve governar a si próprio, é necessá-rio que o povo, no seu conjunto, pos-sua o poder legislativo. Mas como issoé impossível nos grandes Estados, esendo sujeito a muitos inconvenien-

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tes nos pequenos, é preciso que o povo,por intermédio de seus representan-tes, faça tudo o que não pode fazer porsi mesmo.”

Logo adiante Montesquieu (1995, p. 120)arremata:

“A grande vantagem dos repre-sentantes é que são capazes de discu-tir os negócios públicos. O povo nãoé, de modo algum, capaz disso, fatoque constitui um dos graves inconve-nientes da democracia.”

É interessante destacar a desconfiançaque Montesquieu nutria em relação à demo-cracia direta: o povo não seria capaz de dis-cutir os negócios públicos, o que “constituium dos graves inconvenientes da democra-cia”, desconfiança essa que é comum à mai-oria dos liberais clássicos.

Além de não recomendar a deliberaçãopopular direta, Montesquieu (1995, p. 121)apregoava a escolha dos representantes pormeio do voto censitário:

“Todos os cidadãos, nos diversosdistritos, devem ter direito a dar seuvoto para escolher o representante,exceto os que estão em tal estado debaixeza que são considerados semvontade própria.”

Foi somente nos séculos XIX e XX, com auniversalização do voto, que a democraciamoderna recuperou elemento essencial aoespírito e ao conceito da democracia anti-ga, qual seja, o direito de voto sem distin-ção de classe e patrimônio. (BOVERO,2002, p. 30).

Voltando ao século XVIII: Montesquieu(1995, p. 121) reconhece a função legislati-va do Parlamento, mas também destaca asua tarefa de controle:

“O corpo representante tambémnão deve ser escolhido para tomarqualquer resolução ativa, coisa quenão executaria bem, mas, sim, parafazer leis ou para ver se as que fez sãobem executadas, coisa que pode reali-zar muito bem, e que ninguém podefazer melhor do que ele.”

3. Vontade geral e controlepopular direto

Foi exposto, há pouco, que a maioria dosliberais clássicos desconfiava da democracia.Entre os liberais clássicos entusiastas da de-mocracia estava Jean-Jacques Rousseau.

Rousseau (2003, p. 20) afirma – em co-nhecida passagem – que “o homem nasceulivre e por toda parte ele está agrilhoado.Aquele que se crê senhor dos outros nãodeixa de ser mais escravo que eles”. Entãopergunta: “Como se deu essa mudança? Ig-noro-o. O que pode legitimá-la? Creio quepode resolver esta questão”.

Rousseau (2003, p. 47) resolve a questãopela subordinação do homem à lei, lei essaque ele compreende como derivada da “von-tade geral”.

Rousseau (2003, p. 37-38) explica o queentende por vontade geral diferindo-a davontade de todos: essa se refere ao interesseprivado; aquela ao interesse comum:

“Se, quando o povo suficientemen-te informado delibera, os cidadãos nãotivessem nenhuma comunicação en-tre si, do grande número de pequenasdiferenças haveria de resultar semprea vontade geral, e a deliberação seriasempre boa. Mas, quando se estabele-cem facções, associações parciais aexpensas da grande, a vontade decada uma dessas associações se fazgeral em relação aos seus membros, eparticular em relação ao Estado; pode-se, então, dizer que já não há tantosvotantes quantos são os homens, masapenas tantos quantas são as associ-ações. As diferenças tornam-se menosnumerosas e dão um resultado menosgeral. E, por fim, quando uma dessasassociações é tão grande que sobre-puja todas as demais, já não se tempor resultado uma soma de pequenasdiferenças, senão uma diferença úni-ca; então, já não há vontade geral, e aopinião vencedora não passa de umaopinião particular.”

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2002,p. 48) explica o que Rousseau quer dizer: avontade geral “só se manifesta se os homensdeliberarem sem comunicação entre si, comsuficiente informação, ou, como se poderiadizer em termos modernos, sem a influên-cia dos partidos ou dos grupos de interes-se”.

Vale destacar um exemplo curioso: é pro-vável que Rousseau não considerasse de-mocrática a deliberação – em referendo – dosfranceses sobre o Tratado que estabelece (ouque estabeleceria?) uma Constituição paraa União Européia. Ao que consta, o eleitora-do francês não deliberou desinteressada-mente. Votou “não” ao Tratado como formade protesto contra o governo francês do dia(com o que a União Européia não tem – oupouco tem – parte), ou para evitar a perda,atual ou futura, de postos de trabalho paraos novos membros da União Européia (comisso a União Européia tem, sim, parte, mas,ora, trata-se de uma razão de votar eviden-temente interessada...).

A concepção de Rousseau encanta. A suadificuldade é que requer democracia direta.Ora, aí se impõe a crítica de Montesquieu(1995, p. 120): é impossível que o própriopovo, no seu conjunto, possua o poder le-gislativo nos grandes Estados. Mas há, nela,elementos que se mantêm atuais e que sãoessenciais ao efetivo controle político. Cabedestacar, aqui, um: o povo deve deliberar“suficientemente informado”.

A deliberação popular direta pode, comalguma facilidade, sofrer manipulações e,no limite, corromper-se em violência de rua.

Hans Kelsen (1993, p. 107) mencionacomo símbolo – ainda que trágico – dademocracia o episódio da vida de Jesusem que um plebiscito volta-se contra Ele,o Filho de Deus, e opta por Barrabás, umladrão.

Por outro lado, Gustavo Zagrebelsky(1995, p. 118-119) mostra que a multidão quegritava “crucifica-o!” era exatamente o con-trário do que pressupõe uma democraciafundada na razão, no diálogo e no entendi-

mento: “tinha pressa, era homogênea, mastotalitária, não tinha nem instituições, nemprocedimentos, era instável, emotiva e, por-tanto, extremista e manipulável...”

Ora, vale lembrar, o próprio Kelsen (1993,p. 78) defendia a democracia parlamentar(com voto universal), entre outros motivos,justamente para evitar o enfrentamento declasses nas ruas, ao seu tempo apregoadopelos adeptos do marxismo:

“(...) a democracia é o ponto deequilíbrio para o qual sempre deverávoltar o pêndulo político, que oscilapara a direita e para a esquerda. E se,como sustenta a crítica feroz que omarxismo faz à democracia burgue-sa, o elemento decisivo é representa-do pelas relações reais das forças so-ciais, então a forma democrática par-lamentar, com seu princípio majoritá-rio-minoritário que constitui uma di-visão essencial em dois campos, seráa expressão ‘verdadeira’ da socieda-de hoje dividida em duas classes es-senciais. E, se há uma forma políticaque ofereça a possibilidade de resol-ver pacificamente esse conflito de clas-ses, deplorável mas inegável, semlevá-lo a uma catástrofe pela via cru-enta da revolução, essa forma só podeser a da democracia parlamentar, cujaideologia é, sim, a liberdade não al-cançável na realidade social, mas cujarealidade é a paz.”

O grande drama da democracia direta –além do problema quantitativo havido nosgrandes Estados – é, portanto, fazer com queo povo delibere “suficientemente informado”,o que é essencial ao modelo de Rousseau esem o que não há vontade geral. Por outrolado, em um modelo de democracia repre-sentativa, um povo suficientemente informa-do também é essencial para que existam ca-nais sociais efetivos de controle do poder.Na medida em que tais canais sociais decontrole são efetivos, maior é a chance de ocontrole político do Parlamento também serefetivo.

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4. Mídia e função de controle

Elemento essencial à efetividade dos ca-nais sociais de controle do poder é a mídia.

A liberdade de expressão é inerente àdemocracia, não só enquanto direito de serouvido, mas, também, enquanto direito deouvir o que os outros têm a dizer. Somenteassim é possível adquirir uma “compreen-são esclarecida” sobre os negócios públicospara, a seguir, sobre eles opinar e influir.(DAHL, 2001, p. 110).

Os meios de comunicação contribuempara com a informação do cidadão e, emconseqüência, para com o processo demo-crático, difundindo opiniões.

Ainda assim, algumas advertências de-vem ser feitas em benefício da própria de-mocracia.

Primeiro. Há o risco de formação de “fá-bricas midiáticas de consenso”, isto é, umpoder concentrado econômico e ideológicopode vir a condicionar, controlar, ou, atémesmo, conquistar diretamente o governo.Isso pode originar uma telecracia política, emque o eleitor, em vez de escolher, será es-colhido, criado, moldado por aquele queestá elegendo, em um mero rito de legiti-mação exterior. (BOVERO, 2002, p. 154-159).

Segundo. A mídia mais comum, aindahoje, é a televisão. Nela prevalece a imagem.O ser humano é dito homo sapiens em razãoda sua capacidade simbólica, da sua capa-cidade de abstração decorrente da lingua-gem (SARTORI, 1999, p. 5-7). Com a televi-são, há uma ampliação dos contatos e dastrocas. No entanto, como a televisão se fun-da, sobretudo, na imagem, há um claro em-pobrecimento do entender, da compreensão(SARTORI, 1999, p. 20). Enquanto a capaci-dade simbólica distancia o homo sapiens doanimal, o ver o avizinha da sua capacidadeancestral (SARTORI, 1999, p. 8). O crescervendo sem entender origina um novo tipode ser humano, o homo videns (SARTORI,1999, p. 14). A influência da televisão sobrea opinião pública pode ser determinante

para os rumos da política, do governo, atéporque, com freqüência, a televisão se exibecomo porta-voz de uma opinião pública queé, na realidade, o eco de retorno da própriavoz (SARTORI, 1999, p. 46).

Assim, tem razão Michelangelo Bovero(2002, p. 157): em uma sociedade complexa,o processo político decisório é também elenecessariamente complexo. É ilusório pre-tender melhorar a qualidade democrática,simplificando o processo decisório, isto é,tornando-o direto ou menos indireto. Emverdade, “(...) talvez seja necessário torná-lo ainda mais complexo, acrescentando-lhemecanismos corretivos, de controle e de ga-rantia (...)”.

Essencial também é a existência de fon-tes alternativas e independentes de infor-mação (DAHL, 2001, p. 111). Com efeito, “(...)uma das necessidades imperativas dospaíses democráticos é melhorar a capaci-dade do cidadão de se envolver de modointeligente na vida política”. (DAHL,2001, p. 207).

Os Parlamentos são, assim, indispensá-veis enquanto espaços democráticos de de-bate e esclarecimento dos cidadãos, aptos adecantar, ao menos em parte, as deficiênci-as e distorções inerentes ao debate, justa-mente porque operados por atores que de-las têm plena consciência. Observa-se, nis-so, uma outra – e muito importante – facetado controle político levado a efeito pelosParlamentos.

5. Função de controle doCongresso Nacional

A Constituição de 1988 confere, com ên-fase, a função de controle político ao Con-gresso Nacional.

Em seu art. 49, X, dispõe:“É da competência exclusiva do

Congresso Nacional: (...) fiscalizar econtrolar, diretamente, ou por qual-quer de suas Casas, os atos do PoderExecutivo, incluídos os da adminis-tração indireta”.

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Diversos são os mecanismos de controlepolítico constantes da Constituição. Valedestacar alguns deles.

5.1. Sustação de atos normativosdo Poder Executivo

A Constituição permite ao CongressoNacional, em seu art. 49, V, sustar – por meiode decreto legislativo – atos normativos doPoder Executivo que exorbitem do poder re-gulamentar ou dos limites de delegação le-gislativa.

No entanto, trata-se de instrumento depouquíssima prática. Foi utilizado – oumelhor, o seu correlato estadual foi utiliza-do – pela Assembléia Legislativa do Estadodo Rio Grande do Sul para sustar Decretodo então Governador Alceu Collares queinstituía o chamado “calendário rotativo”.De toda sorte, o Supremo Tribunal Federaldeclarou inconstitucional a sustação alu-dida ao entendimento de que o Decretosustado ajustava-se aos limites do poderregulamentar do Poder Executivo estadu-al 1.

Portanto, ainda que se trate de um con-trole político, a sustação somente pode serlevada a efeito quando houver “(...) o des-bordamento, pelo Executivo, do poder regu-lamentar ou dos limites da delegação legis-lativa”. (FERRAZ, 1994, p. 62).

Recentemente, tramitou no SenadoFederal o Projeto de Decreto Legislativo no

139, de 30 de março de 2005, que “susta aaplicação dos incisos V e VI do art. 2o doDecreto no 5.392, de 10 de março de 2005,que ‘declara estado de calamidade públicano setor hospitalar do Sistema Único de Saú-de no Município do Rio de Janeiro, e dá ou-tras providências’, do Poder Executivo”. Noentanto, antes de aprovado o projeto, o Su-premo Tribunal Federal declarou inconsti-tucional o Decreto presidencial referido, im-pugnado que foi no Mandado de Seguran-ça no 25.295-2/DF, Relator o Ministro Joa-quim Barbosa, julgado em 20 de abril de2005, o que tornou desnecessário o projetoaludido.

5.2. Convocação de ministros epedido de informações

O constitucionalismo brasileiro pratica,ainda, outras formas de controle político dopoder, como, por exemplo, a convocação deMinistros de Estado ou quaisquer titularesde órgãos diretamente subordinados à Pre-sidência da República para prestarem, pes-soalmente, informações sobre assunto pre-viamente determinado, importando crime deresponsabilidade a ausência sem justifica-ção adequada2, bem assim a eles encami-nhar pedidos escritos de informações3.

5.3. Tribunal de Contas da União

Vale lembrar, também, o importante pa-pel do Tribunal de Contas da União. A teordos arts. 70 e 71 da Constituição de 1988, afiscalização contábil, financeira, orçamen-tária, operacional e patrimonial da União edas entidades da administração direta e in-direta, quanto à legalidade, legitimidade,economicidade, aplicação das subvençõese renúncia de receitas, será exercida peloCongresso Nacional, mediante controle ex-terno que será exercido com o auxílio doTribunal de Contas da União.

O Tribunal de Contas da União pode,por exemplo, aplicar as sanções previstasem lei4 e sustar a execução do ato impugna-do quando o órgão ou entidade responsá-vel não adotar, no prazo assinalado, as pro-vidências necessárias ao exato cumprimen-to da lei5.

5.4. Comissões parlamentares de inquérito

As comissões parlamentares de inquéri-to, previstas no § 3o do art. 58 da Constitui-ção de 1988, em muito ajudam a tornar efeti-va a função de controle político do PoderLegislativo pátrio.

A teor da Constituição, as comissõesparlamentares de inquérito têm poderes deinvestigação próprios das autoridades ju-diciais, são criadas por uma ou por ambasas Casas congressuais6, mediante requeri-mento de um terço de seus membros, para a

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apuração de fato determinado e por prazocerto. Se for o caso, suas conclusões são en-caminhadas ao Ministério Público, “paraque promova a responsabilidade civil oucriminal dos infratores”.

O Supremo Tribunal Federal, no HabeasCorpus no 71.039-5/RJ, Relator o MinistroPaulo Brossard, julgado em 7 de abril de1994, fixou os elementos principais que, atéhoje, orientam a jurisprudência da Corte emmatéria de comissões parlamentares de in-quérito.

Vale registrá-los:(1) destinam-se a apurar fatos relaciona-

dos com a administração pública para co-nhecer situações que requeiram disciplinalegal, bem assim verificar os efeitos de certalegislação, sua excelência, inocuidade ounocividade;

(2) não se destinam a apurar crimes nema puni-los. No entanto, se no curso de umainvestigação, constatam possível crime, deledarão ciência ao Ministério Público, paraos fins de direito, como qualquer autorida-de, e mesmo como qualquer do povo;

(3) podem fazer uso dos meios instru-mentais necessários a tornar efetivos os seuspoderes investigatórios, poderes esses queprestam auxílio necessário ao poder de le-gislar;

(4) têm poderes limitados a fatos deter-minados, mas fatos outros, inicialmenteimprevistos, podem ser aditados aos objeti-vos da comissão já em ação;

(5) podem “(...) colher depoimentos, ou-vir indiciados, inquirir testemunhas, notifi-cando-as a comparecer perante ela e a de-por; a este poder corresponde o dever de,comparecendo a pessoa perante a comissão,prestar-lhe depoimento, não podendo calara verdade. Comete crime a testemunha queo fizer. (...) Também pode requisitar docu-mentos e buscar todos os meios de provaslegalmente admitidos”. Por outro lado, a tes-temunha pode invocar sigilo profissional,que “tem alcance geral e se aplica a qual-quer juízo, cível, criminal, administrativo ouparlamentar”;

(6) a elas não cabe cuidar do cumprimen-to de pena ou de prisão cautelar, sem preju-ízo de – quando a testemunha cala a verda-de, agrava a comissão com gestos indecen-tes ou, até mesmo, a desacata – tomar ade-quadas e imediatas providências, sem em-bargo da ulterior remessa dos autos ao Mi-nistério Público para os fins de direito;

(7) se a pessoa é ouvida como indiciada,o será “nos termos e na forma da lei”, isto é,terá o direito de permanecer calado (art. 186do Código de Processo Penal) para não seauto-incriminar.

No entanto, em se tratando de testemu-nha, adverte o Ministro Paulo Brossard, oPoder Judiciário deve ser prudente “(...) paraevitar que a pessoa venha a obter HC paracalar a verdade, o que é modalidade de fal-so testemunho”. Com efeito, com muita fre-qüência, os implicados nas investigações deuma comissão parlamentar de inquéritoimpetram habeas corpus no Supremo Tribu-nal Federal para comparecerem perante elana condição de investigados, não de teste-munhas.

Os poderes das comissões parlamenta-res de inquérito são a elas inerentes e decor-rem do seu próprio fundamento constituci-onal. Para exercê-los, não dependem do Exe-cutivo ou do Judiciário, ainda que façam uso,por exemplo, da Polícia Federal, do BancoCentral do Brasil e de outros órgãos e enti-dades para a realização de determinadasdiligências (aí incluídas quebras de sigilosbancário, telefônico e fiscal). Mas o fazempor seu próprio poder. Não precisam de or-dem judicial. Do contrário, conforme ensi-na – com precisão – o Ministro Paulo Bros-sard, uma comissão parlamentar de inqué-rito “não poderia funcionar senão amparadanas muletas que lhe fornecesse outro Poder, oque contraria a lógica das instituições”.

Outrossim, a teor da jurisprudência doSupremo Tribunal Federal, a instalação deuma comissão parlamentar de inquérito édireito das minorias que não pode ser obsta-culizado se acaso alcançado o terço constitu-cional requerido para a criação da comissão7.

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Se acaso não fosse assim, fazer oposiçãoseria mera ilusão e a minoria parlamentarnão teria razão de ser, o que vai de encontroà própria democracia. No limite, com o do-mínio indefinido da maioria sobre a mino-ria, essa acabaria se retirando, cedo ou tar-de, do jogo parlamentar.

Daí a sempre atual lição de Hans Kelsen(1993, p. 69-70):

“(...) Uma ditadura da maioria so-bre a minoria não é possível, a longoprazo, pelo simples fato de que umaminoria, condenada a não exercerabsolutamente influência alguma,acabará por renunciar à participação– apenas formal e por isso, para ela,sem valor e até danosa – na formaçãoda vontade geral, privando, com isso,a maioria – que, por definição, não épossível sem a minoria – de seu pró-prio caráter de maioria. (...)”

Portanto, as comissões parlamentares deinquérito atuam, também, como efetivo meiode controle político do governo do dia porparte da minoria, da oposição, o que é im-prescindível à democracia.

Enfim, surge, aqui, uma vez mais, comofator de controle e de estímulo aos trabalhosdas comissões parlamentares de inquérito,a mídia. Não raro, a mídia toma a frente dostrabalhos, antecipando e pautando os tra-balhos das comissões. É verdade que há ris-cos nisso. No entanto, o acompanhamentoda mídia é natural e inerente à democracia econstrange soluções heterodoxas8. Faz par-te do amadurecimento de uma cultura de-mocrática. Ademais, a experiência brasilei-ra em comissões parlamentares de inquéri-to registra saldo positivo9 que, talvez, nãohouvesse sido obtido sem a cobertura demídia.

5.5. Orçamento e conversão emlei de medida provisória

Há momentos em que a atividade legis-lativa do Congresso Nacional adquire níti-da conotação de controle político do PoderExecutivo. É o caso, por exemplo, da discus-

são do projeto de lei orçamentária e da con-versão em lei de medida provisória.

A repetição anual da discussão do orça-mento é um momento importante da funçãode controle político, “(...) pois submete à vi-gilância parlamentar a realidade global doprograma anual do Governo e oferece oca-sião para um debate geral acerca das finali-dades da ação do Executivo”. (COTA, 2000,p. 886).

A conversão em lei da medida provisó-ria é, também, momento em que o Congres-so Nacional exerce estreito controle políticosobre a decretação de urgência adotada peloPresidente da República. Diversos são ossignificados da conversão em lei (AMARALJÚNIOR, 2004, p. 293-300), alguns dos quaisconfiguram nítido controle político do Po-der Legislativo sobre o Poder Executivo:

(1) a lei de conversão da medida provi-sória – ao transformar o ato legislativo dogoverno em um do Parlamento – recupera,ao menos em parte, um dos ideais deMontesquieu (1995, p. 119), qual seja, a leinão pode ser aplicada pela mesma autori-dade ou órgão que a fez;

(2) integra diferentes grupos parlamen-tares na formação definitiva da vontade le-gislativa do Estado, o que ganha ainda maisimportância em um sistema de governo pre-sidencialista (em que não se presume o apoiode uma maioria parlamentar ao governo dodia);

(3) demonstra que a Constituição confe-re a potestade de legislar, com primazia, aoPoder Legislativo, porque a esse e à lei nãosão opostos os requisitos de relevância eurgência (exigidos que são da medida pro-visória e do Presidente da República), bemassim militam contra a medida provisóriaas cautelas que cercam o processo de con-versão em lei;

(4) rejeitada a medida provisória, é dadoao Congresso Nacional dispor sobre os seusefeitos por meio de decreto legislativo10.

A rejeição da medida provisória é, em simesma, um controle político. É verdade quenão implica a queda do governo do dia.

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Mesmo em sistemas parlamentaristas, comoo italiano, a rejeição do decreto-legge não geraa automática queda do Conselho de Minis-tros italiano (VIESTI, 1967, p. 208-209), emque pese minar a força e a credibilidade dogoverno (PALADIN, 1998, p. 399), poden-do, até mesmo, em alguns casos, prenunci-ar a sua queda. Foi o que experimentou – emnovembro e dezembro de 1958 – o GabineteFanfani, que caiu após a rejeição de trêsdecreti-legge relativos à tributação da gasoli-na e do gás liquefeito (RUFFÌA, 1965, p. 500).A teor do art. 94, IV, da Constituição italianade 1947, “o voto contrário de uma ou de am-bas as Câmaras sobre uma proposta do Go-verno não importa obrigação de demissão”.

5.6. Impeachment

No sistema de governo presidencialista,o mais drástico controle político confiadoao Parlamento contra o Poder Executivo é oimpeachment do Presidente da República.

O instituto tem origem no Direito inglês,nos séculos XIII e XIV, e a ele estavam sujei-tos todos os súditos do reino, exceto a Coroa(PINTO, 1992, p. 24). A Câmara dos Lordesjulgava “(...) a acusação dos Comuns comjurisdição plena, impondo livremente todasorte de penas, até a pena capital (...)”.(PINTO, 1992, p. 26).

Apoiado na lição de Jean Vilbois, PauloBrossard de Souza Pinto (1992, p. 26) regis-tra que, a partir da vitória do Parlamentoinglês sobre o poder real em 1688, até a con-solidação da prática do governo de Gabine-te, o impeachment perdeu, paulatinamente,utilidade e, enfim, foi substituído pela respon-sabilidade política que constitui a essênciado governo parlamentar. “E quando, em 1848,foi intentado contra Lord Palmerston, RobertPeel pôde dizer aos Comuns que ‘the days ofimpeachment are gone’, e esta é a conclusãoda generalidade dos autores.” (PINTO,1992, p. 30).

A Constituição brasileira de 1891 inspi-rou-se na Constituição americana de 1787que, por sua vez, tomou como modelo a prá-tica e a experiência inglesas. No entanto, o

impeachment, “(...) tal como foi gizado peloconstituinte [americano – nota nossa], pa-rece ter sido surpreendido numa posição infieri, situado entre o que era e o que viria aser. (...) A solução americana, enclausuradapela codificação, fixa um instante da evolu-ção institucional britânica, que prosseguiue foi além da fórmula legislada”. (PINTO,1992, p. 32-33).

O constituinte americano “fotografou”um específico momento evolutivo das insti-tuições inglesas, qual seja, a tripartição depoderes, aí incluído o impeachment11. Esseconjunto foi copiado pela Constituição bra-sileira de 1891. Por fatores que escapam aoslimites do presente estudo, o constituciona-lismo americano não acompanhou a evolu-ção subseqüente das instituições inglesas,aquela em que a responsabilidade políticado governo perante o Parlamento – muitomais rápida e menos traumática – tornouobsoleto o impeachment12. No caso do consti-tucionalismo brasileiro, não houve falta deevolução, mas, sim, retrocesso, porque, aomenos no II Império, a prática institucionalpátria já conhecia a responsabilidade dogoverno perante o Parlamento...13

Conclusão

A função de controle político dos Parla-mentos vem desde os primórdios das insti-tuições parlamentares. Foi ofuscada, é ver-dade, pela função legislativa. No entanto,posteriormente, com a progressiva partici-pação dos governos na potestade de legis-lar, essa também ficou esmaecida no âmbitoparlamentar.

Por outro lado, a paulatina dependên-cia dos governos em relação aos Parlamen-tos, mormente nos sistemas de governo par-lamentaristas, propiciou um nítido revigo-ramento da função parlamentar de controlepolítico.

Com efeito, tal como havida nos siste-mas de governo parlamentaristas, a respon-sabilidade política do governo perante oParlamento é o mais vigoroso mecanismo

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de controle político desse contra aquele. Ogoverno assume postura pró-ativa, inclusi-ve legislativa, e o Parlamento lhe confere le-gitimidade e o fiscaliza, controla. Em situa-ções limites de conflito entre os dois, “(...) anegação de confiança é a forma mais drásti-ca de ação do Parlamento sobre o Gover-no”. (COTA, 2000, p. 886).

No caso brasileiro, não obstante o siste-ma de governo presidencialista, a função decontrole político tem sido o grande alentodo Congresso Nacional. Muitos resultadospositivos já foram colhidos do seu exercícioem favor da democracia. No entanto, somen-te com uma profunda reengenharia do sis-tema de governo pátrio será possível ampli-ar em efetividade o controle político do Con-gresso. Em outras palavras: somente com asubmissão do governo ao Congresso, fazen-do aquele politicamente responsável peran-te esse, haverá verdadeiro aprimoramento efortalecimento da função de controle políti-co das Casas legislativas brasileiras.

Perdendo o governo a confiança do Par-lamento, aquele cai, sem os traumas alon-gados no tempo próprios do impeachment.Se acaso houver, no processo de conflitoentre o governo e o Parlamento, antecipa-ção de eleições, como é próprio do parla-mentarismo, melhor ainda: quanto mais fre-qüentes são as eleições, maior é o controledos cidadãos sobre os funcionários eleitos.(DAHL, 2001, p. 110).

Notas

1 STF, ADI no 748-3/RS, Tribunal Pleno, Rel.:Min. Celso de Mello, DJ de 6.11.1992.

2 Art. 50, caput, da Constituição de 1988.3 Art. 50, § 2o, da Constituição de 1988.4 Art. 71, VIII.5 Art. 71, IX e X.6 “CPIs mistas” ou, conforme o jargão parla-

mentar, CPMIs.7 STF, Mandado de Segurança no 24.831-9/DF,

Tribunal Pleno, Relator o Ministro Celso de Mello,julgado em 22 de junho de 2005.

8 As chamadas “pizzas”.9 Vejam-se os casos Paulo César Farias, Anões

do Orçamento, etc.

10 § 3o do art. 62 da Constituição de 1988,acrescentado pela Emenda Constitucional no 32,de 2001.

11 Montesquieu (1995, p. 123) assim descreviao impeachment inglês: “Poderia ainda ocorrer quealgum cidadão, nos negócios públicos, violasse osdireitos do povo, cometendo crimes que os magis-trados estabelecidos não saberiam ou não poderi-am punir. Porém, em geral, o poder legislativo nãopode julgar e o pode ainda menos neste caso espe-cífico, em que representa a parte interessada que éo povo. Assim, o poder legislativo só pode ser acu-sador. Mas diante de que ele acusaria? Rebaixar-se-ia diante dos tribunais da lei que lhe são inferio-res e compostos, além disso, de pessoas que, sendopovo como ele, seriam impressionadas pela autori-dade de tão poderoso acusador? Não; para conser-var a dignidade do povo e a segurança do indiví-duo, é mister que a parte legislativa do povo façasuas acusações diante da parte legislativa dos no-bres, a qual não possui nem os mesmos interessesque ele, nem as mesmas paixões.” Montesquieuexerceu evidente influência sobre os “pais funda-dores” norte-americanos. É expressamente citadono Federalista (nos 9, 43, 47 e 78). No Federalista no

47, Montesquieu é referido como “oráculo” da or-ganização dos poderes.

12 A propósito, Dahl (2003, p. 45-52).13 “Trazendo de países distantes nossas formas

de convívio, nossas instituições, nossas idéias, etimbrando em manter tudo isso em ambiente mui-tas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hojeuns desterrados em nossa terra.” (HOLANDA,1995, p. 31).

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IntroduçãoO problema do direito de resistência ain-

da é pouco estudado na literatura especi-alizada no Brasil *. Este artigo visa contri-buir com essa discussão ao organizar osconceitos, as espécies e os métodos de açãopolítica e jurídica desse fenômeno dentro dosistema constitucional brasileiro. A constru-ção teórica tem o escopo de traçar um siste-ma racional de interpretação, dentro de umaunidade constitucional que dê guarida atodo o estatuto do direito de resistência. Paraalcançar essa finalidade, essa matéria ain-da reclama a sua inclusão constitucionalexpressa no art. 5o da CF, por meio de Pro-posta de Emenda Constitucional (PEC).

Ao estruturá-lo como elemento do direi-to constitucional, não se pode perder de vis-ta a sua natureza “atípica” e suas caracte-rísticas estruturais ali contidas. O direito deresistência é uma realidade constitucionalem que são qualificados gestos que indicamenfrentamento, por ação ou omissão, do atoinjusto das normas jurídicas, do governan-

Em torno da Constituição do direito deresistência

José Carlos Buzanello

José Carlos Buzanello é Diretor da Escolade Direito da UNIGRANRIO (Duque de Caxi-as/RJ) e Doutor em Direito (UFSC).

Introdução. 1. O direito de resistência naConstituição. 2. Classificação do direito de re-sistência. 3. Em torno da emenda constitucio-nal do direito de resistência. Considerações fi-nais.

Sumário

* Esse problema foi objeto da minha tese deDoutorado em Direito na Universidade Federal deSanta Catarina.

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te, do regime político e também de terceiros,fundado em razões jurídicas, políticas oumorais. Os temas referentes do direito deresistência dizem respeito ao funcionamen-to do sistema de poder, às estruturas de go-verno, aos agentes políticos, às práticas so-ciais e às instituições jurídicas. Dessa for-ma, os problemas constitucionais deixam deser apenas problemas jurídicos para se per-filarem como problemas de poder. A afir-mação de que a resistência é apenas umaquestão política, além de ser um discursovazio, demonstra a fragilidade reducionis-ta do argumento. Com efeito, privilegiar, emtermos exclusivos, os fatos políticos obscu-rece irremediavelmente a importância quedeve ser conferida à realidade constitucio-nal e, da mesma forma, a resistência ”ape-nas política” se perde em pura retórica. Háuma crescente capitulação do normativoperante o empírico, por força da elevaçãodas leis sociais e, principalmente, econômi-cas a instrumentos exclusivos da modela-ção do mundo (SOARES, 1969, p. 30). Noseu conjunto, o fenômeno da resistência for-ma um universo teórico pertencente tantoao domínio da política quanto ao do jurídi-co, sendo uma relação necessária entre am-bos os domínios. Ora, se de um lado há umacerteza acerca dos princípios que abarcama problemática da resistência, de outro sur-gem dúvidas quanto aos procedimentos deacesso a esse direito, e também sobre o seuconteúdo e limites.

Nesse sentido, o direito de resistênciasomente é susceptível de ser compreendidojuridicamente, com apelo à ordem constitu-cional, por força das regras e princípios queinformam toda a regulação jurídica do Es-tado. O problema do direito de resistênciaenquadra-se, pois, nesse contexto geral daordem constitucional, que opera com umsistema de princípios extensivamente a todoo sistema jurídico. O direito de resistência,enquanto não positivado, busca sua justifi-cação em outros princípios já dispostosconstitucionalmente ou, então, pode-se in-terpretar que também não se encontra ex-

pressamente afastado do ordenamentoconstitucional (cláusula de proibição). Odireito de resistência, como uma “categoriaimplícita” constitucional, corresponde, naordem constitucional, a uma consagraçãoformal de princípios que permite avaliar aextensão desse direito.

1. O direito de resistênciana Constituição

O direito de resistência se relaciona como direito constitucional, já que é ele que dis-põe sobre os limites do poder político e osdireitos e garantias fundamentais do cida-dão. O problema constitucional do direitode resistência está na garantia da autodefe-sa da sociedade, na garantia dos direitosfundamentais e no controle dos atos públi-cos, bem como na manutenção do pactoconstitucional por parte do governante. Oselementos fundamentais que indicam a pre-sença do direito de resistência no DireitoConstitucional se referem necessariamenteaos valores da dignidade humana e ao regi-me democrático. Os valores constitucionaiscompõem um contexto axiológico para ainterpretação de todo o ordenamento jurídi-co, para orientar a hermenêutica constituci-onal e o critério de medir a legitimidade dasdiversas manifestações do sistema de lega-lidade (PEREZ LUÑO, 1988, p. 288-289).

O problema do direito de resistência, nosistema constitucional brasileiro, está colo-cado em dois aspectos: um, suscitado pelareferência explícita, e outro, pela implícita.De um lado, o reconhecimento do direito deresistência operou-se pela via explícita emapenas algumas espécies: objeção de cons-ciência (art. 5o, VIII c/c art. 143, § 1o, CF);greve “política” (art. 9o, CF); princípio daautodeterminação dos povos (art. 4o, III, CF).De outro lado, a construção constitucionalelucida, de forma implícita, a materialidadeda resistência. A materialidade se combinacom os elementos constitucionais formais,como: os princípios da dignidade da pes-soa humana e do pluralismo político, ergui-

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dos como fundamentos do Estado Democrá-tico (art. 1o, III, V, CF); a abertura e a integra-ção para dentro do ordenamento constitu-cional de outros direitos e garantias decor-rentes do regime e dos princípios por ela adota-dos (art. 5o, § 2o, CF).

A resistência parte do princípio de queestá sujeita a uma teoria constitucional, quetem como questões de fundo a legitimidadeconstitucional do poder político – quantoao título ou ao exercício. Dessa forma, faz-se um questionamento sobre a “qualidade”do ordenamento jurídico, se é ou não justo.As várias posições políticas da resistênciaoperam na busca de fontes formais ou infor-mais que legitimem o seu exercício no Esta-do de Direito. A resistência procura sua le-gitimidade moral na dignidade humana,solidificada como princípio jurídico. Alógica da justificação da resistência trans-cende a evocação dos princípios éticos,pois tem de ser juridicamente fundamen-tada, seja no jusnaturalismo ou no positi-vismo jurídico.

A Constituição pode preconizar uma res-posta ao problema do direito de resistênciana medida em que reconheça esse aciona-mento automático quando se frustrarem oscontroles internos do Estado. Esse reconhe-cimento político do Estado em admitir maisum mecanismo de autodefesa da sociedadedemonstra o grau de legitimidade do pró-prio sistema jurídico e também suas limita-ções epistemológicas. Uma vez aceito o di-reito de resistência no modelo constitucio-nal, tem-se um efeito duplo: controla-se asua potência nos marcos constitucionais eos governantes sabem dos seus limites. Todavez que a autoridade pública desleixar desua função ou a liberdade e a dignidadehumana forem espezinhadas, cabe o direitoda resistência, assim considerado como im-plícito nas instituições jurídicas. Dessa for-ma, o direito de resistência se converte numaglutinador das “demandas de fato”, quese baseiam tão-só na existência de conflitossociais e políticos para oportunas “soluçõesconstitucionais” destinadas a manter a uni-

dade do Estado e evitar sua completa rup-tura político-jurídica.

O problema constitucional da resistên-cia projeta para o Direito Constitucional anecessidade de abrir os fatos sociais deter-minantes do processo político; sendo assim,o direito de resistência assume especial re-levância como um instrumento privilegia-do na interlocução com a realidade social.Contudo, se por um lado as regras jurídicasnão esgotam os fatos sociais, por outro “háregras que, não sendo estruturalmente re-gras jurídicas, são contudo relevantes nocampo do Direito político”. (LEITÃO, 1987,p. 13).

Há situações jurídicas em que o direitoopera em determinadas situações como prin-cípio fundamental, podendo, segundoCanotilho (1995, p. 171), ser o direito de re-sistência e a legítima defesa. Juntam-se, nes-sa equação teórica, os princípios jurídicosconstitucionais com as regras assentes naordem constitucional, que determinam asoutras normas constitucionais referentesaos direitos fundamentais. O substrato ma-terial está em si, mas depende da aderênciade outros princípios constitucionais. AConstituição em sentido material significaaquele núcleo essencial de fins e forças querege o ordenamento positivo, que imprime ocaráter de juridicidade a todo o sistema deatos sucessivos que se desenvolve. (MOR-TATI, 1940, p. 87).

A licitude do direito de resistência semanifesta dentro do aparelho de Estado, napreservação dos valores constitucionais ins-critos na ordem democrática, como no en-frentamento das ações criminosas tipifica-das nos crimes de responsabilidade (art. 85,CF; Lei 1.079/50), como no desrespeito aospoderes estatais entre si, na improbidadeadministrativa e na ofensa aos direitos fun-damentais, e também tipificados como cri-mes constitucionais (art. 5o, XLIV), na açãode grupos armados contra a ordem demo-crática.

Os crimes constitucionais foram criadosna Constituição de 1988, verbis “art. 5 o, XLIV

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– constitui crime inafiançável e imprescrití-vel a ação de grupos armados, civis ou mili-tares, contra a ordem constitucional e o Es-tado democrático”. Dessa forma, o direitode resistência, dentro dos marcos constitu-cionais, estabelece os limites da ação políti-ca, que deve estar em conformidade com osprincípios democráticos, constituindo cri-me apenas a ação armada contra a ordemconstitucional. A Constituição estabelece asrestrições para configurar o crime consti-tucional: a) sujeito ativo: ação armada degrupos civis ou militares; b) objeto: con-tra a ordem constitucional e o Estado de-mocrático; c) sujeito passivo: o Estadodemocrático.

1.1. Resistência explícita

O texto constitucional brasileiro assegu-ra material e formalmente a resistência. Aresistência constitucional se apresenta sobo aspecto formal (direitos políticos e civisconsignados na Constituição) e sob o aspec-to material (os direitos materialmente cons-titucionais, como os princípios implícitos).A resistência constitucional apresenta-se emduas condições: uma, reconhecendo a resis-tência como fato empírico, o que desse modoprotege os fatos sociais, como os movimen-tos sociais organizados que praticam a de-sobediência civil, que está inclusa no art. 5 o,§ 2o, CF; a outra, submetendo-a à efetivida-de normativa das espécies constitucionais,como a objeção de consciência (art. 5o, VIIIc/c art. 143, § 1o, CF), a greve “política” (art.9o, CF) e o princípio da autodeterminaçãodos povos (art. 4 o, III, CF) como fator integra-dor da ordem político-jurídica. Essas espé-cies de resistência que se expressam positi-vamente não inibem outras possibilidadesde resistências, no que diz respeito à maté-ria de ordem constitucional.

A Constituição expressamente reconhe-ce a existência de “outros” direitos e garan-tias além dos nela elencados, verbis, art. 5 o, §2o: “Os direitos e garantias expressos nestaConstituição não excluem outros decorren-tes do regime e dos princípios por ela adota-

dos, ou dos tratados internacionais em que aRepública Federativa do Brasil seja parte”.

Nesse sentido, há uma abertura consti-tucional para o direito de resistência em queestariam inclusos também outros direitos,na forma do art. 5o, § 2 o, CF. Mas esse precei-to informa a fonte material de outros direi-tos, além do direito de resistência, que o ci-dadão pode invocar por razões decorrentesdo regime político democrático e dos princí-pios constitucionais. Caso haja violação doEstado Democrático de Direito ou ofensa aosdireitos fundamentais, surge em tela a re-sistência, como argumento jurídico e políti-co, na tentativa imperiosa do retorno à or-dem democrática. O direito de resistência,portanto, pressupõe mais do que a simplesadmissão formal no texto constitucional,mas uma “relação justa” entre o comandonormativo e as práticas constitucionais.

A construção constitucional visa reve-lar a essência das normas constitucionais,operando, assim, com a problemática dasregras e princípios. Os princípios constitu-cionais são os princípios que edificam oEstado de direito, que, no caso brasileiro,alcança a condição de “Estado democráticode direito”; isso quer dizer que, quando seaplicam, tais princípios visam ao ideal dejustiça material. Esses princípios decorremda razão do Estado democrático para reali-zar, segundo o direito, o seu ideal de justiçamaterial. (ROCHA, 1994, p. 28).

Quanto aos princípios, o sistema consti-tucional admite, além dos explícitos, os im-plícitos. Os explícitos se encontram em todoo texto, mas principalmente na abertura daConstituição, e são, por sua vez, denomina-dos “fundamentos” (art. 1o, CF), “objetivos”(art. 3o, CF) e “princípios” (art. 4o, CF). Osprincípios implícitos, por seu turno, encon-tram-se de forma difusa no texto constituci-onal, no qual podemos listar os seguintesprincípios: a) da liberdade geral em que tudoé livre, exceto no que for proibido, decorren-te do princípio da legalidade (art. 5o, II, CF);b) da finalidade do Estado em realizar a jus-tiça e o bem-estar social; c) da qualidade de

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vida física e mental; d) da legitimidade dotítulo e do exercício do governante.

A própria Constituição, em cláusulaaberta (art. 5o, § 2o, CF), manda incorporar“outros” direitos e garantias ao rol dos di-reitos fundamentais, isto é, não exclui “ou-tros decorrentes do regime e dos princípiospor ela adotados, ou dos tratados internaci-onais em que a República Federativa do Bra-sil seja parte”.

Esse comando consagra, além da tutelade direitos e garantias fundamentais, a pre-visibilidade de fundamentação de outrosdireitos decorrentes do regime político oudos tratados internacionais. Quanto aoenunciado não se excluem “outros” direi-tos, isso quer dizer que o sistema jurídicointegraliza “novos” direitos em três pers-pectivas: uma, quanto ao regime político; asegunda, por decorrência dos princípiosconstitucionais; e a terceira, oriunda dos tra-tados internacionais. A Constituição procu-ra assegurar o uso e a defesa dos direitosfundamentais por razões políticas, princi-palmente decorrentes de princípios e do re-gime democrático.

O sistema constitucional aberto admiteos direitos fundamentais implícitos, tantoque o preceito revela a intenção do constitu-inte de não tornar numerus clausus a enume-ração dos direitos e garantias fundamentais,admitindo direitos implícitos, dando-lheinterpretação extensiva quanto à tutela dasliberdades públicas. A simples interpreta-ção do art. 5o, § 2o, indica que o catálogo dedireitos não é exaustivo, que a Constituiçãoapenas enumera alguns direitos fundamen-tais, mas não todos. Não podemos interpre-tar a Constituição no sentido estrito e elimi-nar outros direitos ali não previstos.

A Constituição, ao reconhecer o direitode resistência, age dentro de uma unidadede valor de defesa do sistema de direitosfundamentais e também da concordânciaestrutural do direito de resistência com aordem constitucional, que se assenta na de-fesa do regime democrático e dos direitosfundamentais. Então, a unidade de valor

constitucional está nos direitos e garantiasfundamentais e no regime democrático.

O sistema aberto se relaciona com valo-res constitucionais, como o pluralismo jurí-dico, que recepciona princípios políticos ejurídicos da igualdade e da fraternidade, opluralismo de idéias, a liberdade de expres-são, a liberdade de reunião e a liberdade deassociação.

1.2. Resistência implícita

A resistência implícita decorre dos di-reitos e princípios constitucionais explíci-tos e implícitos, enquanto a resistência ex-plícita se demonstra pelas modalidadesconstitucionais (greve política e objeção deconsciência).

A essência da resistência implícita estána materialidade dos princípios do regimedemocrático e se combina com os elementosconstitucionais formais, como os princípi-os da dignidade da pessoa humana e dopluralismo político, erguidos como funda-mentos do Estado Democrático (art. 1o, III,V, CF) e com a abertura e a integração doordenamento constitucional de outros direi-tos e garantias decorrentes do regime e dos prin-cípios por ela adotados e tratados (art. 5o, § 2o,CF); e, por fim, pela constitucionalização dasespécies de direito de resistência (greve e aobjeção de consciência).

Os direitos implícitos incorporam a ver-dadeira contrapartida dos direitos e garan-tias explícitos e também dos poderes explí-citos do Estado. Ainda que esses direitos“implícitos” não sejam enunciados sob aforma de normas constitucionais, a Consti-tuição lhes confere um valor integrador dosistema jurídico constitucional que comple-menta o rol de direitos fundamentais. Osdireitos implícitos são identificáveis a par-tir dos princípios explícitos, antes de se tra-tar de uma restrição, já que a Constituiçãonão nega a existência de direitos implícitos,desde que sejam harmonizados por ela pró-pria. Toda e qualquer restrição há de serprevista de forma explícita ou por decorrên-cia direta dos princípios e regras adotados

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pela Constituição. Da mesma forma, a Cons-tituição não prevê de modo algum, em seutexto, restrição ao direito de resistência nostermos aqui trabalhados; nesse sentido, háque se fazer uso da clássica parêmia: “ondea lei não restringe, não pode o intérpretefazê-lo”. A resistência implícita se sustentapelo regime político democrático, mas, fun-damentalmente, pela exegese do art. 5o, § 2 o,que traz à colação os direitos fundamentais,entre eles os individuais, que, segundo JoséAfonso da Silva (1989, p. 174), combinamtrês grupos: “1) direitos individuais expres-sos, aqueles explicitamente enunciados noart. 5o, § 2 o, CF; 2) direitos individuais implí-citos, aqueles que estão subentendidos nasregras de garantias, como o direito à identi-dade pessoal, certos desdobramentos dodireito à vida, o direito à atuação geral (art.5o, II); 3) direitos individuais decorrentes doregime e de tratados internacionais subscri-tos pelo Brasil, aqueles que não são nemexplícita nem implicitamente adotados,como o direito de resistência, entre outros dedifícil caracterização a priori. Nessa pers-pectiva, o direito de resistência é apenas in-dividual e, salvo melhor juízo, não se podeadmitir a resistência apenas nessa perspec-tiva, principalmente se for decorrente do re-gime político, quando há uma extraordiná-ria desproporção entre a ação e o resultado.Num cálculo apropriado, a resistência, nes-se caso, só terá êxito se for coletiva, como agreve política, a desobediência civil e o di-reito de revolução.

2. Classificação do direito de resistência

Há variadas concepções quanto à clas-sificação do direito de resistência. A classi-ficação que construímos está de acordo comsua unidade temática ou tem semelhançade conteúdo com a resistência, dentro dessanova sistemática conceitual. A matriz clas-sificatória está assentada na descrição em-pírica do fenômeno da resistência, obede-cendo a uma ordem de graus da intensida-de política em que se observa a repercussão

na sociedade e no Estado e os meios usadosno exercício do respectivo direito. Essa cons-trução classificatória se inicia com a espé-cie de resistência de menor intensidade, in-formando sua respectiva particularidade,isto é: 1) objeção de consciência; 2) grevepolítica; 3) desobediência civil; 4) direito àrevolução; 5) princípio da autodetermina-ção dos povos. Essa classificação não éexaustiva, pois muitas vezes os elementosde análise habitam uma área de difícil iden-tificação entre gênero e espécie.

A objeção de consciência, enquanto es-pécie do direito de resistência, é a recusa aocumprimento dos deveres incompatíveiscom as convicções morais, políticas e filosó-ficas, numa pretensão de direito individualem dispensar-se da obrigação jurídica im-posta pelo Estado a todos, indistintamente.A objeção de consciência se caracteriza porum teor de consciência razoável, de poucapublicidade e de nenhuma agitação, objeti-vando, no máximo, um tratamento alterna-tivo ou mudanças da lei. Assente como di-reito fundamental na Constituição de 1988,o instituto jurídico da objeção de consciên-cia se dá em duas perspectivas: uma, comoescusa genérica de consciência (art. 5o, VIII,CF), e outra, enquanto escusa restritiva aoserviço militar (art. 143, § 1 o, CF). Pelo sis-tema constitucional, o preceito especialcombina com o preceito genérico, no caso,a objeção de consciência ao serviçomilitar.

A greve é sempre uma ação coletiva, queexige um grau de organização e de açãopolítica e jurídica. A Constituição (art. 9o,CF) autoriza os trabalhadores a decretaremgreves trabalhistas, objetivando a melhoriadas condições de trabalho, ou greves políti-cas, com o fim de conseguir mudanças jun-to à esfera do poder político. Na ótica daautodefesa, que é conferida pela ordem jurí-dica, os trabalhadores, mediante ação dire-ta, respondem a favor de seus interesses,salariais ou não, e, pela greve, forçam amodificação do contrato de trabalho.(NASCIMENTO, 1989, p. 293).

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A desobediência civil deve ser entendi-da como um mecanismo indireto de partici-pação da sociedade, já que tem um conteú-do simbólico que geralmente se orienta paraa deslegitimação da autoridade pública oude uma lei, como a perturbação do funcio-namento de uma instituição, a fim de atin-gir as pessoas situadas em seus centros dedecisão. A desobediência civil a) apresenta-se como uma forma particularizada de re-sistência e qualifica-se na ação pública, sim-bólica e ético-normativa; b) manifesta-se deforma coletiva e pela ação “não-violenta”;c) quer demonstrar a injustiça da lei ou doato governamental mediante ações de gru-pos de pressão junto aos órgãos de decisãodo Estado; d) visa à reforma jurídica e polí-tica do Estado, não sendo mais do que umacontribuição ao sistema político ou uma pro-posta para o aperfeiçoamento jurídico. Pro-põe apenas a negação de uma parte da or-dem jurídica, ao pedir a reforma ou a revo-gação de um ato oficial mediante ações demobilização pública dos grupos de pressãojunto aos órgãos de decisão do Estado.

A desobediência civil na perspectivaconstitucional brasileira decorre da cláusu-la constitucional aberta, que admite outrosdireitos e garantias, e dos princípios do re-gime adotado (art. 5 o, § 2o, CF) e liga-se espe-cialmente aos princípios da proporcionali-dade e da solidariedade, que permitem pro-testos contra atos que violem esses princípi-os da ordem política.

O princípio político da autodetermina-ção dos povos assegura às nações a livreorganização política e a soberania. A auto-determinação se apresenta em duas ordens:nacional e internacional. Na de ordem na-cional, o povo luta por exercer o direito deescolha e a forma de governo. Essa perspec-tiva abraça a liberdade dos povos em for-mar um novo Estado, mediante a luta pelasoberania, por não mais querer estar sub-metido à soberania de outro Estado contrasua vontade. Essa lógica interna consiste nodireito de cada povo escolher o governo desua preferência. A Constituição brasileira

descreve a autodeterminação dos povoscomo princípio político de direito internaci-onal (art. 4o, III, CF).

O povo tem o direito à revolução paraesmagar as tiranias que espezinham suasliberdades, nem que ela seja exercida comextrema violência. Negar-lhe esse direitoseria desconhecer o direito à dignidade hu-mana e o direito de o povo defender pelaforça seus direitos fundamentais agredidos,pois se encontra na condição-limite de so-brevivência política.

A idéia da revolução de origem liberaltorna-se com o tempo uma bandeira socia-lista, e até hoje pujante. Na teoria da revolu-ção comunista, Marx e Engels indicam quea superação do estado de natureza hobbesi-ano torna-se a necessidade de não instituiro Estado (sociedade política), mas sim des-truí-lo. A doutrina marxista preconiza quea sociedade pode sofrer transformações pelaação política e, para isso, conclama os pro-letários do mundo a se unirem num ataqueao Estado capitalista.

3. Em torno da emenda constitucionaldo direito de resistência

Das diversas regras e princípios consti-tucionais, chama-nos a atenção a correspon-dente instrumentalização do direito de re-sistência por meio de proposta de emendaconstitucional (PEC) para sinalizar todo oedifício dos direitos-garantias, como o di-reito de petição, habeas corpus, mandado desegurança, ações de inconstitucionalidade,mandado de injunção e ação popular. Asgarantias formais dos direitos, como direitode ação e prestação judicial, são instrumen-tos fundamentais para a efetivação dos di-reitos e, nos termos constitucionais, imedia-tamente aplicáveis (art. 5o, § 1o, CF).

A transformação expressa na Constitui-ção do direito de resistência visa sanar ecorrigir inconstitucionalidades ou ilegalida-des e abusos de poder, por meio das garan-tias processuais. Essas ações que instrumen-talizam o direito de resistência têm uma fun-

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damentação jurídica evidente para que secriem, modifiquem ou extingam os atos jurí-dicos ou políticos, medidas governamentaise atitudes de determinados indivíduos emconformidade com o Estado de Direito.

Dessa forma, defendemos a inclusão dodireito de resistência por meio de emendaconstitucional para decidir os conflitos den-tro do sistema jurídico (judicialização dopolítico), com a seguinte redação: “todos têmo direito de resistir a qualquer ordem ouomissão que ofenda os direitos, liberdadese garantias e de repelir qualquer agressão,inclusive quando proveniente de autorida-de pública”. Essa proposta de emenda cons-titucional (PEC) visa melhorar o desenvol-vimento da solução dos conflitos políticos,próprios da democracia constitucional, prin-cipalmente, por:

a) tornar um recurso educativo de cida-dania que faça lembrar de forma permanen-te ao governante esse fatídico direito, quan-do o Estado se colocar contra a sociedade.Caso haja golpe de Estado, escaramuçasmilitares, tiranias, leis e atos injustos ou sepretender a ruptura da ordem constitucional,esse dispositivo constitucional dará a cadacidadão e a toda sociedade o direito, senão odever, de opor sua resistência a essas tentati-vas de usurpação da soberania popular;

b) dar mais solidez, extensão ou efetivi-dade não apenas à solução demandada pe-las forças sociais e políticas, mas tambémmaior rigidez formal e jurídica. Com isso seevita que previsões políticas deponhamcontra a existência da resistência na reali-dade constitucional;

c) clarear a diferença entre um ato políti-co de resistência e um ato penal de resistên-cia, como também entre resistência legítimae resistência ilegítima. Facilita-se, assim, aadministração da justiça quando se atribuia identificação sobre um tipo de ação lícita edo crime comum que integram os distintosinstitutos jurídicos;

d) consubstancia uma nova forma deprotesto e impede a explosão da violência,dentro de uma “desordem controlada e cri-

ativa” e funciona para a engenharia políti-ca como um establishment nos Estados con-temporâneos;

e) torna-se mais um “remédio-garantia”contra a “enfermidade” da injustiça e a fa-vor do aperfeiçoamento do Estado democrá-tico de direito. A resistência institucional vaidemonstrar a vitalidade do Estado demo-crático, que a coloca à disposição da socie-dade como mais um mecanismo de defesasocial.

Considerações finais

A Constituição brasileira projeta a com-binação da democracia representativa coma democracia participativa. A Constituiçãodeve ser lida à luz de seu locus político, eisque o sistema jurídico deve dialogar com suarealidade social, já dotado de certa aberturaaxiológica que permite novas fundamenta-ções de justiça material (art. 5o, 2o, CF). Aoflexibilizar o sistema constitucional com ointuito de administrar a pressão demanda-da, sem comprometer a estrutura constitu-cional, o que se perde por essas circunstân-cias político-administrativas se ganha, deforma ampla, na democracia e no pluralis-mo jurídico.

A Constituição, cujo procedimento tempor objetivo assegurar o exercício do podersocial e político, deve fazer certas previsõessobre o dissenso, ao prescrever as possíveisviolações ao sistema jurídico, pois, para ar-bitrar o dissenso, o político necessita ser ju-ridicizado. Dessa forma, é preciso que o di-reito de resistência não esteja apenas nomundo dos fatos ou da dependência da her-menêutica jurídica, mas previsto e garanti-do na Constituição, além de construir umaunidade teórica do fenômeno da resistência,independentemente das espécies e da exten-são que tomarem assento constitucional.

A Proposta de Emenda Constitucionaldo direito de resistência reforça três pers-pectivas (afirmativa, limitativa e negativa)por força da combinação de suas modalida-des e respectivas variáveis:

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a) resistência afirmativa – resulta da día-de contestação/mudança, que consiste noexercício que contrasta o status quo com odesejo de transformações de perspectivaspolíticas, ou afirmação e ampliação de di-reitos. Demanda questões localizadas emdois registros principais: a) a resistência nãoé exercida apenas para a tomada do poderde Estado, mas em razão do direito de parti-cipar das decisões políticas, rompendo averticalidade hierárquica do poder de Esta-do; b) a resistência não se concentra apenasna defesa de certos direitos, mas na lutapara ampliar o próprio direito de cidada-nia;

b) resistência limitativa – resulta do exer-cício que visa à conservação política e soci-al, mediante expediente de controle do Es-tado, com vistas a evitar irregularidadespolíticas e administrativas ou o desrespeitoda liberdade dos indivíduos. Nesse caso, aresistência resulta do contraste entre a ma-nutenção do status quo com aqueles que con-cordam com a mudança ilegítima do siste-ma político-jurídico. Se, de um lado, a resis-tência limitativa censura as violações daordem democrática e da ordem constitucio-nal, de outro, fortalece a objeção de consci-ência como limite de ação do indivíduo con-tra o Estado;

c) resistência negativa – resulta da nega-ção da ordem constitucional e da ordemdemocrática, isto é, do contraste da manu-tenção da ordem jurídica com aqueles quelutam contra essa ordem, com vista a evitartransformações sociais legítimas, ou, ao con-trário, querem a transformação brusca, me-diante a revolução. Essa perspectiva nãocontempla o aperfeiçoamento do Estado,

quer sua omissão ou a simples destruiçãodo sistema político-jurídico.

O direito de resistência, por fim, somen-te se justifica no caso de descumprimentode algum direito primário, tanto que operaquase sempre de forma similar ao direito dedefesa, pois aquele que resiste a uma ordeminjusta defende-se. É também um direitopara se ter direito, isto é, um direito secun-dário que supõe que seu exercício está emfavor do gozo de um direito primário, comoa vida, a justiça, a dignidade humana, a pro-priedade.

Referências

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1. Esclarecendo conceitosLobbying é o processo pelo qual os gru-

pos de pressão buscam participar do pro-cesso estatal de tomada de decisões, contri-buindo para a elaboração das políticas pú-blicas de cada país.

Para isso, os grupos de pressão utilizam-se de uma cadeia multifacetada de ativida-des que incluem coleta de informações, pro-postas políticas, estratégias apropriadaspara dar suporte a tais demandas, confec-ção de pesquisas e a procura por aliados. Apressão é seu último estágio e geralmenterequer uma presença organizada no centrode decisões de cada país. (GRAZIANO,1994).

Em uma sociedade democrática, os to-madores de decisão são confrontados comuma complexa rede de interesses e se valemdas idéias e opiniões dos grupos de pressãopara subsidiarem suas decisões. Os gruposde pressão fornecem informações confiáveise comprováveis aos tomadores de decisão eos mesmos transformam esses grupos eminterlocutores, convidando-os a emitir suaopinião quando necessário.

Sendo assim, podemos conceber olobbying como saber especializado e repre-sentação técnica, pois, enquanto represen-

Breve histórico sobre o desenvolvimento dolobbying no Brasil

Andréa Cristina de Jesus Oliveira

Andréa Cristina de Jesus Oliveira é Douto-ra em Ciências Sociais (Unicamp), Mestre emSociologia Política (Unesp – Araraquara), Pro-fessora do Departamento de Ciências Jurídicasda Uninove (Centro Universitário Nove deJulho).

Sumário1. Esclarecendo conceitos. 2. A face negati-

va do lobbying. 3. O desenvolvimento do lobbyingno Brasil. 4. Considerações finais.

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tam interesses especiais, os lobistas são osustentáculo da informação de um especia-lista técnico-político. (GRAZIANO, 1994).

Esse tipo de saber específico ajuda ostomadores de decisão a formular propostaspolíticas e a perceber as reações da socieda-de civil perante essas propostas.

A palavra lobby significa, em inglês, ante-sala, vestíbulo, saguão. Por extensão, o lu-gar onde ficavam as pessoas que procura-vam influenciar as autoridades e/ou políti-cos e que acabou por designar a ação deprofissionais ou grupos que buscavam exer-cer pressões, muitas vezes legais, para quefossem aprovados projetos ou medidas embenefício daqueles que são por eles repre-sentados. (BORIN, 1988).

O primeiro cientista político a empregaro termo lobby como a busca de influenciardecisões políticas ou a aprovação ou rejei-ção de leis pelo Poder Legislativo foi ArthurF. Bentley em The Process of Government edi-tado em 1908. (LEMOS, 1988).

Há duas visões sobre a origem do lobby .A primeira é a de Freire (1986), que afirmaque o lobby tem como origem a prática dosagricultores do Estado de Virgínia, nos EUA,que procuravam, ainda no século XIX, in-fluenciar as decisões sobre política agrícolapor meio de seus representantes, na ante-sala do edifício do Parlamento (apudBORIN, 1988).

A segunda visão é a de Graziano (1994),que afirma que o lobby emerge no contextoamericano com a política de interesses de-pois das eleições de 1896, bem como em con-seqüência da derrota do movimento operá-rio no fim do século, que decidiu a luta declasses nos EUA.

Dessa perspectiva, o lobbying seria umproduto de uma “homogeneização” políti-ca, e muitas de suas estratégias e todos osseus procedimentos específicos seriam im-praticáveis em um mundo marcado por pro-fundas divisões ideológicas.

O lobbying surgiu como processo de diá-logo entre grupos de interesses econômicose o governo, tendo sido apropriado por or-

ganizações que não tinham motivos econô-micos, as quais poderiam ser denominadasde entidades sociais ou idealísticas, com-provando a validade do processo para re-presentar interesses perante os agentes go-vernamentais.

O lobby se dirige aos centros de decisão,não sendo nenhuma ação de marketing. Elenão procura vender um produto ou servi-ços, mas sim influenciar burocratas e/oupolíticos para a tomada de decisões que be-neficiem um grupo social ou empresarial,um programa econômico ou uma linha deatuação de determinado segmento sócio-econômico, mediante uma legislação espe-cífica ou por meio de medidas especiais. For-nece a esses burocratas e políticos informa-ções que supostamente eles não detêm e quesão essenciais para a maior clareza sobre otema em questão. (BORIN ,1988).

Desse modo, os grupos de pressão utili-zam o lobbying para esclarecer o legisladorou a autoridade pública sobre as decisõesou propostas que possam vir a ser encami-nhadas como um mecanismo operacionalde persuasão. O lobbying deve ser visto comoinformação objetiva disponível para, emtempo hábil, instrumentar a melhor decisão.

Para Lemos (1988, p. 49), “o lobby preci-sa ser visto como a organização e a opera-ção de ‘um eficiente canal de informaçõesde mão dupla’, entre a entidade que o apro-pria e o setor do poder que focaliza”.

A atividade inclui a coleta de informa-ções, propostas políticas, estratégias apro-priadas para dar suporte a tais demandas,confecção de pesquisas e a procura por ali-ados. O lobbying proporciona a troca de in-formações e de idéias entre governo e partesprivadas, capazes de infundir nas políticaspúblicas conhecimento de causa e realismoconsciente. Seu último estágio é a pressão,momento em que o lobista deve-se valer deseu poder de comunicação e persuasão.(GRAZIANO, 1994, 1996).

Essa atividade requer uma presença or-ganizada no centro de decisões de cada país.Segundo Graziano (1996, p. 139),

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“os lobistas e suas organizações sãoportadores de um conhecimento espe-cializado em suas áreas particularesde atuação. Nenhum congressista, ouqualquer de seus assessores, tem, porexemplo, conhecimento do sistema detributação pertinente à educação su-perior comparável ao do especialistaem assuntos fiscais contratado pelassociedades científicas”.

Apesar de ser encarado com desconfi-ança e associado ao abuso do poder econô-mico (em função da necessidade de recur-sos de monta para pessoal e infra-estruturaenvolvidos no fornecimento de informações,relatórios, pesquisas, elaboração de estatís-ticas, promoção de debates e eventos espe-ciais, propaganda), segundo Figueira(1987), o lobby desempenha destacado pa-pel como força social de aproximação entrea sociedade e o Estado.

De nosso ponto de vista, o lobbying é umaspecto inerente à política democrática e aorepertório de seus instrumentos, uma vezque,

“Originário do próprio mecanismodemocrático, a essência do lobby é ainformação direta, a visão aprofunda-da de um fato ou situação, suas ra-zões, conseqüências ou implicações,próximas ou remotas. Seu relaciona-mento orgânico com a prática demo-crática baseia-se no consenso univer-sal que nega a onisciência dos agen-tes governamentais, assim como dosdemais partícipes da sociedade e, aomesmo tempo, indica ser altamentesalutar o exame de todas as informa-ções precedentemente a qualquer to-mada de posição. O que faz do lobbyuma prática racional por excelência eobrigatoriamente responsável pelasconseqüências que vier a gerar”.(LEMOS, 1988, p. 49).

No Brasil, o lobbying é reconhecido comoatividade de relações públicas, de assesso-res parlamentares, de jornalistas e profissi-onais liberais, identificados com os interes-

ses de um determinado grupo empresarialou segmentos sociais organizados da socie-dade, que exercem suas influências de for-ma transparente, respondendo perante aJustiça por qualquer ato que exceda os limi-tes da atividade lobista, mesmo aqui, na qualele não é regulamentado. (BORIN, 1988).

O que singulariza o lobbying e lhe confe-re imensa complexidade é a sua fluidez.Desse modo, há diversos fatores que podemcontribuir para a dificuldade no estabeleci-mento de um padrão rígido de classifica-ção. Esses fatores são: o caráter transitóriode alguns interesses defendidos, as alian-ças efêmeras entre setores da sociedade emtorno de interesses convergentes e o surgi-mento de novos interesses na sociedade.(ARAGÃO, 1992).

As estratégias empregadas na atividadede lobbying variam, qualificando diferenci-adamente os lobbies. Contudo, criar catego-rias explicativas sobre o lobbying é tarefacomplexa, já que a atividade se compõe deum emaranhado de práticas justapostas ouinterconectadas que ocorrem simultanea-mente.

Apesar de acreditarmos que o lobbyingdesempenha destacado papel como forçasocial de aproximação entre sociedade civile Estado ao possibilitar a participação dosgrupos de pressão no processo de tomadade decisões, ele carrega um estigma de mar-ginalidade que não pode ser desprezado.

2. A face negativa do lobbying

Por aproximadamente quinze anos, otermo lobbying foi utilizado quando a im-prensa se referia à corrupção e tráfico deinfluência, o que desgastou o termo, crian-do um estigma de marginalidade que, hoje,longe de ter sido superado, ainda envolve aatividade.

Bem documentado pela imprensa, o ter-mo lobbying , não raro, é utilizado com im-precisão. Algumas vezes é usado como si-nônimo de pressão simples, tráfico de influ-ência ou corrupção. Outras vezes, é tomado

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como prática exclusiva de grandes corpora-ções que utilizam seu poder econômico paraalcançar seus objetivos.

O estigma que o lobbying carrega está re-lacionado ao fato de a atividade aparecerassociada a escândalos, a licitações direci-onadas, propinas e obras superfaturadas. Eos protagonistas dessas histórias, no Brasile no exterior, têm sido na maioria das vezesempresas e autoridades públicas. Esses fa-tos reforçam a imagem do lobby como ilegíti-mo e ilegal.

Hoje, a palavra lobbying carrega um sig-nificado tão negativo que os próprios pro-fissionais da área preferem utilizar outrostermos para descrever sua atividade.

Alguns autores mostraram em seus tra-balhos uma face do lobbying realizado noBrasil que se utiliza da corrupção e tráficode influência para a representação de inte-resses. (BORIN, 1988; FIGUEIRA, 1987;BEZERRA, 1995, 1999).

Bezerra (1999) mostrou a atuação dosescritórios de lobby e consultoria na libera-ção de verbas dos Ministérios para prefeitu-ras municipais e governos estaduais utili-zando-se da intermediação de parlamenta-res. O que se vê são redes de relações pesso-ais atuando sobre o trâmite dos pleitos, queenvolvem Ministros, deputados, senadores,assessores parlamentares, funcionários fe-derais, técnicos, prefeitos e governadores.Mostra também como as grandes empreitei-ras montam esquemas de influência para aliberação de verbas, utilizando-se ou nãodos serviços dos escritórios de lobby e con-sultoria.

Para dar agilidade aos pleitos, os funci-onários recebem presentes e dinheiro dosassessores parlamentares e lobistas, que“acompanham” os processos do interessede seus clientes.

Mas as atividades dos escritórios delobby não dizem respeito apenas ao “acom-panhamento” dos processos. Muitas vezesesses escritórios são responsáveis pela ela-boração do projeto e pelo encaminhamentodas providências burocráticas necessárias

para o encaminhamento de processos aoMinistério. Ao receber informações privile-giadas dos funcionários federais, informamaos prefeitos e governadores quais verbasserão liberadas e como devem proceder parater acesso a essas verbas.

Apesar de entendermos lobby como sa-ber especializado e informação privilegia-da, sabemos – como o estudo de Bezerra(1999) mostrou, e como a imprensa noticiacotidianamente – que o lobbying nem sem-pre é praticado da maneira ideal.

Além das práticas ilegais propriamenteditas, o lobbying apresenta algumas carac-terísticas que podem ser vistas como dano-sas a uma sociedade democrática e iguali-tária.

Em primeiro lugar, gostaríamos de res-saltar os investimentos de monta que devemser feitos para qualquer tipo de ação delobbying .

Apesar de o lobby público no Brasil nãoser forte, como Aragão (1992) afirma, ideal-mente, qualquer grupo de interesse ou pres-são pode-se associar a outros de mesmo tipoe que apresentem os mesmos ideais e mon-tar uma estratégia de lobbying no CongressoNacional. Desse ponto de vista, há condi-ções iguais para todos, o que reforçaria ointeresse público.

Porém, nem todos têm condições finan-ceiras e estrutura para realizar a atividadede lobbying .

O fato de que apenas alguns segmentosda sociedade são aptos a implementar umaação de lobbying leva a um desequilíbrio naesfera da representação de interesses. O ide-al seria que todos os segmentos da socieda-de – sejam eles de trabalhadores ou de em-presários, grupos ambientalistas ou feminis-tas – tivessem as mesmas condições de im-plementar uma ação de lobbying . No entan-to, não é o que a realidade nos mostra.

Um exemplo bastante simples dessa ar-gumentação reside nas diferenças com rela-ção à estrutura que possuem a CNI e o DIAP.A CNI dispõe de recursos financeiros mui-tas vezes maiores que os do DIAP. E isso

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ocorre porque o DIAP, além de não ser agra-ciado com a contribuição sindical dasFederações e Sindicatos da Indústria, depen-de da mensalidade de seus associados parase manter.

Desse modo, é inegável que o lobbyingapresenta um formato de articulação de in-teresses que acentua as divisões sociais efavorece os grupos que possuem maioresrecursos financeiros.

Outra questão que deve ser levantadaestá relacionada à prática dos lobistas. Aodefender interesses específicos e muitas ve-zes particularistas, o modo lobista de influ-enciar decisões incide negativamente sobreas possibilidades de alargamento da prote-ção social promovida pelo Estado, uma vezque coíbe coalizões amplas e duradouras.

Todos esses fatos conjugados reforçamainda mais um grande preconceito que exis-te com relação à atividade. Dependendo dosegmento social que implementa a prática,esse preconceito aumenta ou diminui.

Se o lobbying é realizado por um grupode pressão do setor financeiro, é um lobbydo mal e, portanto, ilegítimo. Porém, se olobbying é realizado por um grupo de pres-são que congrega os interesses de trabalha-dores ou de uma ONG ambientalista, entãoo lobbying realizado é considerado do beme, portanto, louvável.

Com relação ao lobbying privado, o pre-conceito é ainda maior, pois ele é rapida-mente relacionado ao abuso de poder eco-nômico e à defesa de interesses egoísticosou particularistas. No entanto, como é vistoo lobby público? O lobbying de alguns seto-res governamentais é particularista, porém,não é visto como tal.

De nosso ponto de vista, isso ocorre, poisnão se vê o próprio Estado como lobista,defendendo interesses particularistas em seupróprio bojo. Se é Estado, o interesse públi-co vem em primeiro lugar e não há discus-sões sobre sua legitimidade ou não.

Os lobistas são os mais afetados por essepreconceito. A sociedade os vê de maneiranegativa, pois lhes é atribuída imensa in-

fluência política e, portanto, um poder detransformação que nem sempre os mesmospossuem.

A não regulamentação da atividade tam-bém contribui para que o estigma se perpe-tue, já que não há impedimentos legais paraaqueles que exercem a profissão de maneirainapropriada.

Existe certo desconforto com relação àatividade, e isso é inegável. Quanto menosideologizada e mais particularista nossasociedade se torna, mais necessária se faz adiscussão em torno do lobbying , pois o seucrescimento é inevitável.

Apesar de não apresentar, hoje em dia,um estigma de marginalidade tão forte quan-to o do lobbying brasileiro, nos EUA olobbying também é visto de maneira negati-va. Ele não possui a mesma legitimidade darepresentação eleita e, segundo Graziano(1996), muitas dúvidas e suspeitas continu-am a rondar a atividade e seus participantes.

Na Europa, o lobbying também é visto demaneira negativa e jamais foi regulamenta-do. Na França, o lobbying é visualizadocomo uma atividade liberal e não está sujei-to a leis particulares. A profissão de lobistaé classificada como “liberal e independen-te” e cursos de formação específicos, como oministrado pelo Instituto de Estudos Políti-cos de Paris, já se encontram em funciona-mento. Apesar da tendência à profissiona-lização da atividade, denotada pelo ofereci-mento de cursos de formação, o ParlamentoFrancês, diferentemente do Europeu, nãoreconhece a atividade.

O Parlamento Francês não registra lobis-tas, impedindo seu acesso às salas de reu-niões, documentos e parlamentares nos cor-redores, o que evidencia não só que a ativi-dade não é reconhecida, como também nãoé bem-vinda.

Hoje em dia, há um movimento crescen-te de lobbying no Parlamento Europeu emBruxelas. Grandes escritórios de PublicAffairs, como a Burson-Marsteller, possuemescritórios em Bruxelas. Estima-se que hajaaté três mil escritórios de consultoria e

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lobbying em ação. No entanto, o formato é li-geiramente diferente do lobbying americano.*

Assim como a opinião pública tem umavisão negativa acerca do lobbying , os parla-mentares também oferecem resistência à suaprática e conseqüentemente à sua regula-mentação. Existe certo preconceito com re-lação à atividade. Aragão (1992) divide ostipos de resistência oferecidas pelos parla-mentares em quatro:

– Ideológica: um parlamentar do PT nãose sente confortável com uma abordagem deum representante não-parlamentar da UDR.

– Funcional: o parlamentar considera olobista como uma espécie de concorrente,tanto como impulsionador da atividade le-gislativa quanto representante de interes-ses econômicos/sociais concorrentes aosseus;

– Profissional: o parlamentar assume opapel do lobista e concorre profissionalmen-te com os agentes de grupos de pressão;

– Ética: o parlamentar teme sobre a lisu-ra e legalidade das ações dos grupos de pres-são e seus agentes na defesa de interesses.

A criação do estigma de marginalidadedo lobbying teve início na década de 70 eestá intrinsecamente relacionado à estrutu-ra do Estado brasileiro.

Durante a ditadura militar, o Congressofoi extremamente enfraquecido e o atendi-mento de demandas, assim como a formu-lação de políticas públicas, tornaram-se atri-buição do Poder Executivo. Além disso, oprocesso de tomada de decisões e as infor-mações que subsidiariam essas decisões erammuito centralizados. É a partir desse contex-to que surge a figura do “amigo do Rei”.

A compra de acessos e resultados erauma constante e para isso bastava ter bonscontatos, ou seja, ter acesso ao “amigo doRei”. Conhecer ministros influentes ou mi-litares em cargos estratégicos era essencialpara o sucesso do lobista. No entanto, todo oprocesso se desenrolava na clandestinidade.

Segundo Lemos (1988), até muito recen-temente, o setor produtivo viveu na estreitadependência do governo ou “de figuras depoder”.

Essa relação tão próxima entre o setorprodutivo e as figuras de poder gerou a com-pra de acessos e resultados e uma série deacordos escusos foram travados. A essasnegociatas a imprensa deu o nome de lobby .A relação entre lobby , corrupção e tráfico deinfluência estava traçada e a mídia passoua denunciar essas negociatas utilizando-seerroneamente do termo.

A mídia, apesar de estar prestando umimportante serviço à sociedade civil ao de-nunciar práticas escusas, ao utilizar o ter-mo lobby de maneira indistinta acabou pormistificá-lo. O termo passou por um desgas-te prematuro, já que foi utilizado como sinô-nimo de corrupção e tráfico de influência.

De nosso ponto de vista, foi inapropria-do utilizar o termo lobby como sinônimo decorrupção e tráfico de influência, poislobbying e regimes ditatoriais não se conju-gam. Um sistema político em que as deci-sões são centralizadas e o Poder Legislativoé fraco não apresenta um ambiente adequa-do para o desenvolvimento do lobbying . Ali-ado ao desconhecimento sobre a atividade,todo tipo de confusão foi propiciada sobre otermo.

Portanto, acreditamos que lobbying e cor-rupção e lobbying e tráfico de influência sãoatividades completamente distintas que nãopodem ser conjugadas. Rejeitamos termoscomo lobbying antiético, lobbying do mal oulobbying negativo.

Sendo assim, atividades que não se uti-lizam de uma representação técnica, pauta-da pelo oferecimento de informações impar-ciais e confiáveis e que propiciem uma aber-tura de canais de comunicação com o go-verno, não podem ser caracterizadas comolobbying . Crimes como a corrupção e o tráfi-co de influência, apesar de terem sido con-siderados como sinônimos de lobbying du-rante a ditadura militar, não o são, e, por-tanto, devem ser punidos.

* Informações sobre o lobby europeu acessadaspelo site: <http://td257.hospedagemweb.com.br/bastidores/bastidores11.htm>. Acesso em 05 jan.2004.

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3. O desenvolvimento dolobbying no Brasil

Pouco foi escrito sobre lobbying no Bra-sil. Existem alguns estudos efetuados, emsua grande maioria, por profissionais dasáreas do Direito, Administração, Jornalis-mo e Relações Públicas. (LODI, 1982, 1986;FIGUEIRA, 1987; LEMOS, 1988; BORIN,1988; ARAGÃO, 1992, 1994; VIANNA, 1994,1995; RODRIGUES, 1996; BEZERRA, 1999).

Bezerra (1999) e Vianna (1995) assimcomo Aragão (1992) são alguns dos poucosrepresentantes da academia a estudar olobbying no Brasil. Bezerra (1999), um an-tropólogo político, ao discutir o processo denegociação para o orçamento da União, es-barra nos escritórios de lobby e consultoriaatuantes em Brasília, fazendo uma análiseem que lobby e corrupção estão fortementeligados. Vianna (1995), com o objetivo dedesvendar os fatores de natureza políticaque dificultam a concretização do modelouniversalista de seguridade social inscritona Constituição de 1988, afirma que há umaamericanização (perversa) da seguridadesocial no Brasil e utiliza-se do lobbying comocategoria explicativa. Aragão (1992), por suavez, produziu um dos mais completos tra-balhos sobre grupos de pressão já escritos.

Uma das razões para o pequeno interes-se da academia sobre o lobbying reside nofato de uma insistência demasiada dos pes-quisadores em uma perspectiva estatista,que Vianna (1994) chama de européia. Se-gundo a autora, além de reduzida, a produ-ção acadêmica parece sofrer de um certopreconceito, pois diversos trabalhos queabordam a atuação de grupos sociais e/ousetores empresariais na defesa de seus inte-resses procuram referenciais analíticosalheios à questão do lobismo, contribuindopara mantê-la num certo limbo teórico.

Segundo a autora, a literatura recentesobre políticas sociais acentua o papel dosinteresses diversificados na situação atualsem associá-lo ao lobbying como fenômenomais geral.

A maioria dos trabalhos sobre políticassociais foi escrita nas décadas de 70 e 80.No entanto, isso não quer dizer que nãohavia grupos de pressão atuando no cená-rio nacional antes disso.

Segundo Figueira (1987), no século pas-sado já havia lobby no Brasil e o movimentoda abolição da escravatura é um bom exem-plo.

Aragão (1994), por sua vez, acredita queno século XIX já se praticava lobbying n oBrasil e cita como exemplo as práticas daAssociação Comercial do Rio de Janeiro, quecomeçou a se organizar em 1808 com o obje-tivo de defender e cooperar ativa e constan-temente com relação a tudo quanto pudesseconcorrer para o desenvolvimento das clas-ses que representava.

O autor lembra a atuação da AssociaçãoComercial da Bahia, fundada em 1811, e queem vários casos atuou em defesa dos inte-resses de seus associados e de entidadescoligadas, perante o Congresso Nacionaldurante a Primeira República.

Além dos estudos acadêmicos escassos,eventos voltados para a discussão do temanão aconteceram em profusão.

A preocupação com o fenômeno, embo-ra não seja nova, só tem-se manifestado emeventos esparsos. Um desses eventos foi a IConferência Nacional da OAB em 1958, queincluiu o tema “Advocacia e Poder Legisla-tivo: Lobbying”.

A tramitação de leis – como a criação daPetrobrás, o Código Brasileiro de Radiodi-fusão, o Estatuto do Trabalhador Rural, to-das aprovadas antes do golpe militar de1964 – teve a decisiva participação dosgrupos de pressão na sua aprovação.(ARAGÃO, 1992).

Durante a ditadura militar, a atuação degrupos de pressão era restrita devido à cen-tralização do processo de tomada de deci-sões no Executivo, o que resultou na fragili-dade do Poder Legislativo. Essa centraliza-ção, porém, não impedia que certos grupospressionassem o Poder Executivo, a fim daobtenção de suas demandas.

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O regime autoritário levou a cabo a mo-dernização econômica do Brasil. Criou in-teresses, ao mesmo tempo em que impediaou fragmentava suas vias de expressão,mudando assim a relação tradicional entreo Estado e a sociedade civil. (VIANNA,1995).

Deu-se então a interrupção de um vigo-roso processo associativo que tendia a sefortalecer na medida em que a prática de-mocrática continuava a ser exercida pelasociedade. Segundo Schmitter (1971 apudARAGÃO, 1992), não existia no Brasil pré-64 um genuíno pluralismo na organizaçãodos interesses no país.

No entanto, o golpe militar teve amplasustentação por parte de setores organiza-dos da sociedade civil, revelando a interfe-rência dos grupos no sistema político dopaís.

Durante sua vigência, há um grau bas-tante alto de interferência por parte do Esta-do na vida brasileira. Calcula-se que, ao fimdo regime militar, existiam mais de 150 milnormas, entre leis, decretos-lei, decretos,atos, portarias e circulares, regulando pra-ticamente todas as atividades no país, prin-cipalmente a econômica.

Uma reportagem da revista Visão, pu-blicada em 12/11/1973, chama a atençãopara a atuação dos grupos de pressão noCongresso. Tinha como título: Lobby à Bra-sileira. (ARAGÃO, 1994; VIANNA, 1995).

A Gazeta Mercantil, em 2/7/1980, pu-blica a matéria intitulada: Lobby: no Brasil,uma instituição tão antiga quanto Brasília.Seu autor narra casos de lobismo explícito.Em 1982, a questão dos lobbies motivou apublicação de mais de cinqüenta matérias eartigos na imprensa. (VIANNA, 1995).

Além do grande número de matérias eartigos na imprensa, 1982 foi um ano propí-cio à realização de eventos sobre o lobbying .

O VII Congresso Brasileiro de RelaçõesPúblicas trouxe especialistas americanos,entre eles, Phillip Kotler, um proeminenteautor da área, que ressaltou o aspecto pro-fissional do lobbying para o profissional de

relações públicas. Nessa época, profissio-nais de relações públicas defendiam umaespécie de reserva de mercado no exercíciodas atividades profissionais como lobistas.Esteve presente também o Senador MarcoMaciel, que posteriormente, em 1984, foi oprimeiro parlamentar a tomar a iniciativade propor uma lei que regulamentasse a ati-vidade.

Outro evento organizado na mesma oca-sião foi um seminário, promovido pela Uni-versidade de Brasília, intitulado: “Lobby eGrupos de Pressão”. Professores, profissio-nais e parlamentares avaliaram a legitimi-dade do lobbying .

Para Aragão (1994), um reflexo da im-portância dessa nova realidade é o fato dealgumas entidades empresariais buscaremo Congresso para a defesa de seus interes-ses. Seguem alguns exemplos:

1) Disputa de 1978 a 1980 entre distri-buidores de veículos e montadoras, que ter-minou com um acordo de paz intermediadopelo Palácio do Planalto.

2) Disputa entre plantadores de frutas,notadamente de cítricos, e produtores derefrigerante, em 1975. Os plantadores que-riam estabelecer um percentual de suco defrutas nos refrigerantes.

3) No fim dos anos 70 e início dos 80,uma disputa entre transportadores de car-gas, nacionais e multinacionais, encerrou-se com o veto presidencial ao projeto de leique permitia a entrada de empresas multi-nacionais no setor.

4) A indústria da comunicação mobili-zou-se entre 1978 e 1984 para impedir aaprovação de projeto que bania a propagan-da de cigarros na televisão (ARAGÃO,1992).

Segundo Aragão (1992), do ponto de vis-ta econômico, o pacto entre o alto empresa-riado e o regime militar havia chegado aofim, agravado pelos choques do petróleo nosanos 70 e a redução dos empréstimos exter-nos, determinando o encerramento do ciclodesenvolvimentista conhecido como o mi-lagre brasileiro.

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Apesar da excessiva intervenção e regu-lamentação do Estado na economia, o regi-me militar perdeu a capacidade de arbitraro conflito entre diversos grupos empresari-ais e os conflitos entre capital e trabalho e oaumento da pressão política e econômicados sindicatos de trabalhadores a partir de1978 aliado a outros fatores como o iníciode um ciclo de crise econômica com o au-mento da inflação, a perda do poder aquisi-tivo da população e a ocorrência de choqueseconômicos com os sucessivos planos hete-rodoxos com congelamento de preços e ele-vação de tarifas públicas contribuíram parao início do período de abertura política: len-ta, gradual e irrestrita. (ARAGÃO, 1992).

Nos anos que antecederam a Constitu-inte, de fato, as condições propiciadoras dolobbying se consolidaram. Podemos ressal-tar dois fatores: a) diversificação de instru-mentos e canais de comunicação entre seg-mentos, principalmente empresariais e oCongresso; b) fragmentação crescente des-sa representação. (VIANNA, 1995).

Em 1982, os grupos de pressão possuí-am mais visibilidade no Congresso Nacio-nal, principalmente os grupos empresariais,pois, com a vitória do PMDB nas eleiçõespara a Câmara dos Deputados e as vitóriasoposicionistas no Rio de Janeiro, São Pauloe Minas Gerais, o empresariado temia a as-censão das oposições ao poder.

Em 1983, era possível perceber uma li-geira diferença com relação ao processo ado-tado na representação de interesses. Embo-ra o Congresso Nacional ainda fosse frágil,os representantes ali alocados possuíamalguma influência.

“Conhecer os ministros é bom, mas jánão resolve tudo. O apoio de um parlamen-tar é muito importante”, afirmou o lobistaJosé Pereira Graça Couto à revista Senhorde 31/8/1983.

Com a democratização, uma série deagentes, pouco acostumados com o novomodelo de participação e carentes de canaisde representação política, aderiram aolobbying como forma de pressionar os deci-

sores em favor de seus interesses, o que ga-nhou visibilidade no período de atuação daAssembléia Nacional Constituinte.

Em um regime democrático, a atuaçãodos grupos de pressão é essencial, uma vezque garante e defende efetivamente os inte-resses de minorias que o regime representa-tivo não tem condições de abarcar.

O fortalecimento do Congresso Nacionalcomo esfera decisória foi vital para esse pro-cesso. Segundo declaração do lobistaAlexandre Paes dos Santos à revista Senhorde 31/8/1983, o lobby tende a se expandircom o fortalecimento da influência dos re-presentantes eleitos. Segundo ele, “há 20anos, não há lobby no Congresso. Agora, comoa oposição fortaleceu-se, o lobby começou atornar-se importante. E os amadores estãoperdendo terreno”. (SANTOS, 1983, p. 49).

A democracia trouxe novos atores à are-na decisória e os aspectos processuais datomada de decisão foram muito alterados.Dessa forma, o Congresso passa a ter umpoder sem precedentes na formulação depolíticas.

Segundo Aragão (1992), foi a partir daseleições de 1982 que o empresariado passaa se preocupar com a oposição no Congres-so, porém, antes, algumas entidades já rea-lizavam serviços regulares de monitoramen-to legislativo. Destacavam-se as seguintesentidades: CNI (Confederação Nacional daIndústria), CNC (Confederação Nacional doComércio), CNA (Confederação da Agricul-tura e Pecuária do Brasil), CACB (Confede-ração das Associações Comerciais e Empre-sariais do Brasil), ABERT (Associação Bra-sileira de Emissoras de Rádio e Televisão),Federação do Comércio de São Paulo e FI-ESP (Federação das Indústrias do Estado deSão Paulo).

Essa nova situação, além de motivar umaaproximação entre os grupos e o CongressoNacional, leva-os a montar departamentosde assessoria parlamentar e a contratar con-sultores externos.

O aumento da importância das assesso-rias parlamentares e a contratação de con-

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sultores externos é um reflexo dessa novarealidade. Não só as empresas e entidadesde classe tratam de adquirir melhores recur-sos humanos, como o fazem também depu-tados e senadores que passam a dependercada vez mais de assessores qualificados,que podem interpor certas barreiras ao as-sédio lobista, ou participar do jogo. Sendo olobbying uma via de mão-dupla, da mesmamaneira que os lobistas pressionam os par-lamentares, os parlamentares pressionam osgovernadores para que mobilizem suas ban-cadas. Nesse sentido, o papel do assessortécnico é o de alavancar lobbies. (VIANNA,1995).

No entanto, o processo de fragmentaçãodas entidades representativas não cessou.A criação do PNBE (Pensamento Nacionaldas Bases Empresariais) e do IEDI (Institutode Estudos para o Desenvolvimento Indus-trial) resultam do descontentamento de am-plos segmentos da classe empresarial paracom as entidades já existentes, como aFIESP. Segundo Vianna (1995, p. 189), umareportagem da revista Isto É de 14/9/1994exemplifica esse fato. “Racha do setor eletro-eletrônico provoca a debandada de empresasda ABINEE para uma nova entidade”.

Lado a lado com as entidades “guarda-chuvas”, como a CNI e a CNC, dezenas deagrupamentos setoriais e lobistas de empre-sas ganharam status (formal ou informal) derepresentantes de interesses empresariais.(VIANNA, 1995).

Segundo Aragão (1992), após 1983, de-zenas de entidades empresariais de setoresespecíficos passaram a atuar no Congresso.Isso ocorreu porque:

1) Existe uma incapacidade naturaldas grandes entidades para tratarem, comeficiência, temas específicos de determina-do setor;

2) Há necessidade de maior aproxima-ção com o mundo político, independente-mente dos canais de acesso das liderançasdas grandes confederações;

3) Ocorre a existência de conflitos in-ternos, específicos de entidades abrangen-

tes, trazendo a necessidade da maior gene-ralização do discurso em detrimento de es-pecificidade e segmentação;

4) Existe a crença de determinadossetores do empresariado de que as lideran-ças de grandes confederações e federaçõesestavam “envelhecidas”, “defasadas” ouexcessivamente condescendentes com ospoderes públicos;

5) Há a constatação de que múltiploscanais reverberando a mesma posição sãomais eficientes do que um único canal dedefesa de interesses.

O retorno dos grupos de pressão ao Con-gresso Nacional, a partir do fim da décadade 70, foi facilitado pela “abertura política”e pela real perspectiva de que as oposiçõespoderiam assumir o poder. (ARAGÃO,1992).

Em adendo a isso, está a luta pela rede-mocratização, com a anistia política, a reor-ganização partidária, as diretas para Go-vernador em 1982, a campanha eleitoral deTancredo Neves e o Colégio Eleitoral em1985 e a Assembléia Nacional Constituinteentre 1987 e 1988.

O resultado do processo de redemocrati-zação foi o fortalecimento do CongressoNacional como poder político e, conseqüen-temente, dos grupos de pressão, que reto-maram seu lugar no processo democrático,fazendo pressão e tentando influenciar oslegisladores.

Nesse contexto, renasceu o interesse so-bre o papel institucional dos grupos de pres-são, notadamente no Poder Legislativo.

Em 1988, diante da evidente atuação doslobbies durante o funcionamento da Assem-bléia Nacional Constituinte, o InstitutoTancredo Neves e a Fundação FriedrichNaumann realizaram um debate acercado tema.

Nesse período, alguns grupos de pres-são de natureza diversa passam a atuar for-temente. Entre eles, estão alguns grupos in-digenistas que já aparecem registrados naCâmara dos Deputados desde 1983. Outrogrupo interessante é o “lobby do batom”,

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grupo que defende as causas feministas eque já atuava desde os anos 70, quando osprimeiros grupos feministas se registraramcomo entidades legais. Seu trabalho foi maisintenso, sobretudo, durante a Constituinte.Questões como licença-maternidade, abor-to, pátrio-poder e muitas outras ali seencaminhariam de forma decisiva e, portan-to, o acompanhamento era necessário.(VIANNA, 1995).

A trajetória dos aposentados é similar.Apesar de conhecidos do público poucoantes da Constituinte, foi durante os traba-lhos da Comissão Afonso Arinos que forampercebidos como um grupo que tinha de serouvido.

O panorama apresentado denota que sãoos grupos de pressão empresariais que prin-cipalmente atentam para a necessidade deinfluenciar as decisões governamentais. Aquestão que se coloca, no entanto, está rela-cionada aos meios utilizados para chegar aesse intento.

A centralização das decisões no PoderExecutivo limitou muito a chegada dequalquer interesse que não fosse empresari-al, uma vez que tanto o Estado quanto osempresários não são alheios ao tratamentoprivilegiado que estes sempre receberam.

Os grupos de pressão da sociedade ci-vil, em sua grande maioria, ficaram à mar-gem desse processo. Isso ocorreu, pois, parase influenciar o poder naquele período, eranecessário saber quem deveria ser acessa-do. A falta de transparência das informa-ções e do processo de tomada de decisões ea centralização de poder no Executivo con-tribuíam para que apenas um pequeno gru-po de notáveis pudesse efetivamente ter al-guma influência sobre o processo de toma-da de decisões.

Entretanto, com a redemocratização,pudemos perceber que os grupos de pres-são afetaram o processo legislativo. Semmaioria no Congresso e sem condições deimpor suas decisões, o regime militar e asoposições tiveram que negociar o andamen-to de projeto de lei abrindo maior espaço

para a participação dos grupos de pressãono processo decisório.

Diversos projetos de lei discutidos e apro-vados ao longo dos anos 80 tiveram a parti-cipação decisiva dos grupos de pressão,como o caso da revenda de veículos auto-motores em 1980; o aumento da contribui-ção previdenciária e taxas sobre supérfluosem 1981; a reserva de mercado na informá-tica em 1984; o estatuto da microempresaem 1984; proibição da demissão imotivadado trabalhador em 1983/1985; código dedefesa do consumidor em 1990; regulamen-tação do novo salário-mínimo em 1991.(ARAGÃO, 1992).

Apesar do florescimento da atuação dosgrupos de pressão após o processo de rede-mocratização, há uma questão que nos in-quieta: como países que não possuíam umademocracia consolidada poderiam apresen-tar as condições ideais para o desenvolvi-mento do lobbying?

Essa questão é interessante, pois, a par-tir de nossas investigações, vimos que odesenvolvimento do lobbying no Brasildata da década de 70 e, nesse período,vivíamos sob a égide de uma ditaduramilitar.

Sendo assim, como entender a atuaçãodos grupos de pressão em um momento decerceamento das práticas associativas?

Segundo Lodi (1982, p. 48),“durante os anos de autoritarismo, oempresário percebeu que era mais rá-pido e eficaz ativar uma autoridadesuperior ou ‘amigo do rei’, recorren-do ao sistema hierárquico, de cimapara baixo, do que trabalhar o setorlegislativo ou as autoridades de bai-xo para cima ...”

A afirmação de Lodi (1982) ressalta doispontos que já abordamos, ou seja, a centra-lização do poder no Executivo e a diminui-ção de poder do Legislativo.

Alguns aspectos contribuíram para avolta dos grupos de pressão ao cenário po-lítico, e, quando nos referimos à volta des-ses grupos, estamo-nos referindo aos gru-

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pos de trabalhadores e aos grupos da socie-dade civil, que faziam lobby público.

O primeiro dos aspectos observados é opróprio processo de redemocratização, quefaz com que todos se adaptem a uma novarealidade, tanto o Estado quanto a socieda-de civil. O segundo aspecto é o fortalecimen-to do Congresso Nacional e a instalação daAssembléia Nacional Constituinte, que jáforam discutidos anteriormente.

No entanto, esses dois aspectos não sãosuficientes para abarcar toda a realidade darepresentação de interesses, que é conse-qüência do período da redemocratização.

Podemos afirmar que a Constituição de1988 foi escrita a partir de um modelo deEstado do Bem-Estar Social, que é umacorrente européia e estatizante, e não sob aótica do Estado Liberal, corrente norte-americana, baseada na competição dos inte-resses.

Desse modo, por que se fortalece o lobbyingdiante de outros modelos de representação,como o modelo neocorporativo, por exem-plo?

Ao discutir as razões do desenvolvimen-to do lobbying no Brasil após o período deredemocratização, Vianna (1995, p. 174)elenca algumas características de nosso sis-tema político, as quais, em sua opinião, con-tribuíram para o desenvolvimento dolobbying . A autora afirma que

“No Brasil, nunca houve partido comas características (e as raízes) das agre-miações social-democratas européias;políticas keynesianas não foram pro-priamente o forte das experiências deplanejamento econômico no país; e,sobretudo, no campo das relações detrabalho e do movimento sindical, oarbítrio e a segmentação corporativasempre predominaram, impedindoque qualquer idéia de ‘pacto’ vingas-se. Desse modo, os formatos neocor-porativos e concertacionais de orga-nização dos interesses e de influênciasobre os processos decisórios, decisi-vos para a consolidação do Estado de

Bem-Estar, não se estabeleceram noBrasil. Ao contrário, (...) a prática par-ticularizante do lobismo se impôs”.

Para Vianna (1995), o lobbying é uma al-ternativa ao neocorporativismo como forma-to de articulação de interesses; alternativaque já parece arraigada na sociedade brasi-leira.

Os aspectos do nosso sistema político,ressaltados pela autora, leva-nos a concor-dar com a mesma quando afirma que o de-senvolvimento do lobbying no Brasil se deua partir de uma “americanização” de nossapolítica.

A “americanização” da política consis-te na conjugação de determinadas caracte-rísticas, entre elas: ambiente em que interes-ses fragmentados e múltiplos competem pormaior influência sobre os processos decisó-rios; predominância de demandas particu-larizadas; diminuição da atuação de gran-des organizações representativas dos dife-rentes interesses sociais e aumento da atua-ção dos lobbies como intermediadores de rei-vindicações tópicas e a predominância dacompetição em torno de issues pontuais.

Como já afirmado, a organização do Es-tado brasileiro contribuiu para o desenvol-vimento do lobbying , uma vez que: apresen-ta extrema permeabilidade ao particularis-mo; tem pouco poder de enforcement; possuipartidos políticos fracos; demonstra um des-virtuamento das funções legislativa e judi-ciária, que leva a uma certa confusão entre oque é público e o que é privado (privatiza-ção do público); e, por último, um mercadode trabalho muito heterogêneo, segmenta-do e excludente. Todas essas questões con-jugadas levariam os grupos de pressão e/ou interesses a aderir à prática do lobbying ,negando assim a construção de pactos neo-corporativos. (VIANNA, 1995).

Exemplos dessa argumentação podemser buscados na atuação dos grupos de pres-são dos trabalhadores e empresários. A atu-ação do movimento sindical brasileiro apre-senta um padrão de demanda pulverizadoe insulado, e o empresariado sofreu com a

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crescente fragmentação de suas entidadesrepresentativas. A criação do PNBE e doIEDI é resultado dessa fragmentação e dapulverização de entidades de representaçãode interesses do empresariado. As discor-dâncias entre a CUT (Central Única dos Tra-balhadores), a CGT (Confederação Geral dosTrabalhadores) e a Força Sindical tambémpodem ser apontadas.

Os anos 2000 trazem uma perspectivabastante animadora para o lobbying no Bra-sil. Parece-nos que a sociedade civil comoum todo e não mais apenas o capital indus-trial e financeiro perceberam que é impor-tante ter seus interesses representados deforma profissional.

Hoje, existem centenas de profissionaistrabalhando na esfera de representação deinteresses no Brasil e esse número tem cres-cido consideravelmente.

Aragão (1992, p. 86) afirma que “a pro-fissionalização dos esforços de defesa deinteresses no Congresso Nacional é fenôme-no recente, ocorrido com maior vigor após aderrubada do regime militar em 1985”.

Contudo, ainda que recente, não pode-mos deixar de notar alguns pontos que, seconsiderados conjuntamente, apontam-nosuma forte tendência de profissionalizaçãoda atividade no Brasil.

Uma das questões mais importantes eque nos chamaram a atenção no curso denossa investigação foi o crescente númerode lobistas que haviam procurado maioraporte acadêmico, procurando realizar cur-sos de pós-graduação em nível de especiali-zação e até mestrado. A UnB oferece um cur-so de especialização em Assessoria Parla-mentar e vários lobistas entrevistados, as-sim como seus funcionários, haviam reali-zado esse curso.

Além da grande procura pelos cursos deespecialização em Assessoria Parlamentar,já se pode encontrar na Internet páginas dosescritórios de consultoria e lobbying – queanteriormente não constavam sequer da lis-ta telefônica –, anunciando como agem equais são as estratégias de ação utilizadas.

Com a consolidação da democracia noBrasil e uma maior transparência das infor-mações, sobretudo por parte do Poder Le-gislativo, a sociedade civil tem percebido asvantagens de apresentar propostas e ofere-cer sua opinião aos tomadores de decisãocom o intuito de contribuir com o processode elaboração de políticas públicas no país.Esse fato tem criado um nicho de mercadoem expansão e, em conseqüência disso, onúmero de escritórios de consultoria elobbying tem crescido, seu número de funci-onários também, assim como sua estruturafísica.

Além dos pontos levantados, não pode-mos deixar de ressaltar a constatação do ele-vado nível de qualificação da mão-de-obrados escritórios de consultoria e lobbying, que,em geral, é composta por recém-formadosem Ciência Política, Sociologia, Jornalismo,Relações Públicas, Economia, Administra-ção de Empresas e Relações Internacionaispela UnB. Não raro, esses recém-formados,antes de comporem os quadros funcionaisdos escritórios de lobbying e consultoria, fo-ram estagiários em algum órgão público fe-deral, como a Câmara dos Deputados, o Se-nado Federal e até a Presidência da Repú-blica.

Esses jovens lobistas, que aliam forma-ção acadêmica e conhecimento prático daprofissão, são um novo dado que não podeser desprezado.

Porém, sem a regulamentação da ativi-dade, que criaria limites éticos e contribui-ria com a transparência necessária para ar-refecer o estigma de marginalidade dolobbying , sua profissionalização estará sem-pre comprometida.

4. Considerações finais

A atividade de lobbying , independente-mente do formato que assuma, é essencialem sociedades democráticas. Isso porque ostomadores de decisão são confrontados comuma complexa rede de interesses e a infor-mação técnica que os lobistas levam a eles é

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bastante importante, pois subsidia sua aná-lise sobre o melhor caminho a seguir. O pro-cesso de lobbying transforma-se assim emuma via de mão dupla, pois, ao fornecer in-formações imparciais, confiáveis e compro-váveis aos tomadores de decisão, os gruposde pressão estão construindo um importan-te canal de interlocução com o Estado, que,por sua vez, por intermédio de seus agen-tes, quando considerar oportuno, demanda-rá informações dos grupos de pressão e osconvidarão a participar do processo de to-mada de decisão.

Envolto por um forte estigma de margi-nalidade, o lobbying no Brasil é comumenteconfundido com corrupção e tráfico de in-fluência, como ressaltamos várias vezes aolongo do texto. No entanto, não apresentanenhuma semelhança com esse tipo de prá-tica ilícita.

Um dos argumentos mais fortes sobreessa diferença está centrado na possibilida-de da obtenção de resultados duradourosque a utilização do lobbying garante.

Ao grupo de pressão cabe escolher qualo melhor caminho a ser trilhado. Se esco-lher o caminho da corrupção e tráfico deinfluência, além dos altos custos financei-ros, o grupo de pressão deve ter consciênciade que, toda vez que o assunto voltar a apre-sentar riscos ou oportunidades, relaçõesespúrias deverão ser retomadas e mais di-nheiro será gasto. Portanto, o uso da cor-rupção e tráfico de influência, apesar de tra-zer resultados mais imediatos, a longo pra-zo se torna incerto e perigoso.

Se escolher o caminho do lobbying , alémde ser informado rotineiramente sobre a tra-mitação dos assuntos de seu interesse, po-derá formular propostas e oferecer seu pon-to de vista, criando um canal de comunica-ção com o governo. Além de estar bem infor-mado e se transformar em um interlocutordo governo em seu setor produtivo ou áreade interesse, o grupo de pressão despende-rá recursos financeiros continuamente, po-rém, em pouca quantidade, a fim de ver suasdemandas discutidas, aprovadas ou rejei-

tadas de acordo com a profundidade dodebate travado.

Ao defender um interesse no CongressoNacional, os grupos de pressão têm grandechance de vê-lo se transformando em leis,que podem regulamentar todo um setor pro-dutivo, criando oportunidades ou evitar ris-cos para comunidades inteiras. O resultadodo lobbying , dessa maneira, é seguro e dura-douro, além de legítimo.

De nosso ponto de vista, foi inapropria-do utilizar o termo lobby como sinônimo decorrupção e tráfico de influência, poislobbying e regimes ditatoriais não se conju-gam. Um sistema político em que as deci-sões são centralizadas e o Poder Legislativoé fraco não apresenta um ambiente adequa-do para o desenvolvimento do lobbying . Ali-ado ao desconhecimento sobre a atividade,todo tipo de confusão foi propiciada sobre otermo.

Portanto, acreditamos que lobbying e cor-rupção e lobbying e tráfico de influência sãoatividades completamente distintas que nãopodem ser conjugadas. Rejeitamos termoscomo lobbying antiético, lobbying do mal oulobbying negativo.

Com a consolidação do lobbying no sis-tema político brasileiro, sobretudo após operíodo de redemocratização do país, cria-se um nicho de mercado para os lobistas.

No entanto, enquanto a opinião públicanão for informada sobre o significado realda atividade de lobbying no Brasil, ele nun-ca poderá ser encarado como deveria, ouseja, como um instrumento essencial para aelaboração de políticas públicas no Brasil.

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Introdução

Não é novidade a reavaliação crítica quecertos lugares comuns epistemológicos vêmsofrendo. Uma de suas conseqüências tal-vez seja a própria idéia utilitária de que oprogresso se constrói pela superação e des-truição do passado, desdenhando valorescomo tradição. Hoje, quando parece pacífi-ca a idéia de que o homem não é apenas umser individualista e racional – ao contrário,trata-se de um ser constituído de afetos, con-tradições e crenças coletivas – , a compreen-são do papel e da natureza das instituiçõespolíticas não tem como ficar infensa a taispercepções, pondo a descoberto a necessi-dade de rever os fundamentos da legitimi-dade do Estado. Não basta mais organizarum Estado norteado puramente em princí-pios abstratos, de inspiração meramenteuniversal-racional. Vivemos uma conjuntu-ra em que, para justificar sua própria exis-

A idéia de um Conselho de EstadobrasileiroUma abordagem histórico-constitucional

Christian Edward Cyril Lynch

Christian Edward Cyril Lynch é bacharelem Ciências Jurídicas pela Universidade do Riode Janeiro (UNI-RIO), mestre em Teoria do Es-tado e Direito Constitucional pela PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), doutorando em Ciência Política pelo Insti-tuto de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro(IUPERJ) e professor do departamento de Di-reito Público da Universidade Federal Flumi-nense (UFF).

SumárioIntrodução. 1. Governo por conselho no

Antigo Regime. 2. Governo por conselho noBrasil Imperial. 2.1. O obstáculo do princípiodemocrático. 2.2. O primeiro conselho de Esta-do (1824-1834). 2.3. O segundo conselho de Es-tado (1841-1889). 3. A persistência da idéia deconselho de Estado durante a República. 3.1.Conselho de Estado “liberal” (1910/1912/1920).3.2. Conselho de Estado como quarto poder(1914/1930). 3.3. Os Conselhos da República ede Defesa Nacional (1988). Conclusão.

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tência e ganhar mais adesões, o Estado deveincorporar instituições simbólicas que nãopodem ser encontradas senão nas peculia-ridades de seus povos.

Trata-se de fazer o Estado incorporar àssuas instituições elementos específicos dacultura das populações onde exerce sua so-berania e jurisdição, de forma a garantirmaior legitimidade e, por conseguinte, mai-or eficácia da ação estatal. Parece naturalque, na consecução desse desiderato, nosvoltemos ao exame da história. Não se trata,naturalmente, de apenas ressuscitar insti-tutos baseados na tradição como comumentea compreendemos; trata-se de rever o papelque a tradição pode desempenhar nesse mo-mento de transformação da sociedade e suaprópria noção: “Uma ordem social pós-tradicional não é aquela na qual a tradiçãodesaparece – longe disso. É aquela em que atradição muda seu status. As tradições têmque se explicar, têm de se tornar abertas àinterrogação ou ao discurso” (GIDDENS,1996, p. 13).

Nesse particular, parece interessante se-guir a sugestão de que, mais do que a repú-blica presidencialista, foi o regime monár-quico que apresentou uma conformaçãopolítico-ideológica menos afastada do ima-ginário popular de então (CARVALHO,1990) e aí indagar alguns porquês. Podería-mos atribuir essa maior legitimidade dasinstituições monárquicas ao fato de que oregime imperial representava, ao menos for-malmente, a seqüência de um sistema de go-verno que nos governara desde o início dacolonização portuguesa, continuando, as-sim, a permear decisivamente o imagináriocotidiano dos habitantes do país. Isso provo-caria a chamada “nostalgia imperial”; umanostalgia que, embora mais presente entre ascamadas mais letradas do país, estaria

“articulada com a própria consituiçãoda consciência coletiva dos brasilei-ros. O que importa reter é que, se difu-so ao nível popular e acentuado naselites intelectuais, há a presença de umsentimento de que houve um tempo

em que o Brasil era mais respeitável,mais honesto, mais poderoso que atu-almente” (SALLES, 1996, p. 15).

Essa nostalgia derivaria do fato de que oEstado monárquico teria tido uma penetra-ção profunda na forma de o brasileiro pen-sar-se enquanto nacionalidade, por um lado,e pelo próprio alcance limitado da obra re-publicana, por outro. Esta, ao invés de dife-renciar-se da herança monárquica, acaboupor procurar, depois de algumas décadas,em função da decepção que inspirara nanação, associar sua imagem à da monarquia(CARVALHO, 1990, p. 141). Por outro lado,o Império

“realizara uma engenhosa combina-ção de elementos importados (...) Tra-tava-se, antes de tudo, de garantir asobrevivência da unidade política dopaís, de organizar um governo quemantivesse a união das províncias ea ordem social (...) Se o governo impe-rial contava com as simpatias popu-lares, inclusive da população negra,era isso devido antes ao simbolismoda figura paternal do rei do que à par-ticipação real dessa população navida política do país” (CARVALHO,1990, p. 23).

Nessa “engenhosa combinação”, predo-minaram duas instituições políticas que sesituavam no cume do aparelho estatal e que,em última instância, resolviam as questõescruciais referentes à política e à administra-ção do Império – o Poder Moderador, dele-gado ao Imperador, e o Conselho de Estado,órgão consultivo do monarca. O fato deambos os institutos acharem-se extintos,malgrado a importância que tiveram na fasedecisiva de formação do país e da naciona-lidade, só aumenta seu interesse para nós.O que pretendemos é, numa perspectiva deredimensionar o papel da tradição entre nós,revisitar a segunda dessas duas instituições– o Conselho de Estado –, de modo a forne-cer subsídios para a compreensão de suaeventual utilidade institucional numa pers-pectiva supra-histórica.

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1. Governo por conselhono Antigo Regime

Os conselhos reais se formam na Euro-pa a partir do século XIII e se consolidam noséculo XIV. Na doutrina desenvolvida nofinal da Idade Média, como se sabe, o mo-narca deixa de ser somente o distribuidorda Justiça e se torna soberano; não havendoquem limite o seu poder, era a fonte últimade todas as decisões políticas. Na prática,contudo, o próprio desenvolvimento buro-crático das instituições estatais, provocadopelo próprio aumento da demanda jurisdi-cional e administrativa, tornava imperiosoque o monarca decidisse por meio de auxili-ares, tendo de delegar-lhes poderes. Essesauxiliares eram os seus conselheiros, sendoque dar conselho era, no sistema medieval,um dos deveres dos vassalos para com oseu senhor (REINHARD, 1997).

A matriz imediata da qual herdaríamoso conselho de Estado enquanto instituiçãopolítica foi a monarquia portuguesa. O pri-meiro órgão em cujas atividades podemosidentificar características do futuro conse-lho de Estado português foi a chamada Cú-ria Régia, organismo medieval com feiçõesde assembléia que reunia personalidadesrepresentativas da sociedade portuguesa deentão. Antecessora também das futuras Cor-tes, tinha caráter meramente consultivo, de-vendo todavia colaborar com o monarcasempre que por este solicitado nos assuntosrelevantes para o Reino. No entanto, “o con-selho de Estado da antiga monarquia nun-ca teve uma organização regular nem atri-buições definidas. O rei consultava os pre-lados e grandes do Reino nos negócios gra-ves, mas esses costumes eram antes resulta-do de uma tradição do que de uma obriga-ção legal” (ASSUF, 1960, p. 76).

O Conselho de Estado português, comesse nome, só seria instituído em 1569, poralvará do Rei Dom Sebastião I. Era direta-mente inspirado em seu similar espanhol,criado por Carlos V quarenta e três anosantes, denotando um esforço de maior raci-

onalização do aparelho político. Durante odomínio espanhol (1580-1640), o Conselhode Estado continuou a oficiar junto ao vice-rei ou aos governadores, opinando sobrequestões externas ou internas. Embora, quan-do da Restauração, Dom João IV tenha dadonovo regimento ao Conselho, parece que, daforma como ele se via organizado, estavafadado a decair cada vez mais de importân-cia, ainda que mantida a monarquia abso-luta. O processo de racionalização da ad-ministração pública, ocorrido durante o sé-culo XVIII sob influxo do ideário iluminis-ta, não tinha como deixar de esvaziar as atri-buições do Conselho de Estado, órgão nãoespecializado e genérico, em detrimento deoutros organismos de caráter mais técnico ede competência definida, tais como o De-sembargo do Paço, a Mesa de Consciência eOrdens, o Conselho de Fazenda, o Conse-lho Ultramarino e o Almirantado. O Conse-lho de Estado assim formado, como todosos órgãos integrantes da administração pú-blica portuguesa, foi transferido para o Bra-sil quando da mudança da capital do Impé-rio para o Rio de Janeiro, em 1808. Não obs-tante, parece não haver senão notícias es-parsas acerca de efetivo funcionamento des-te no Brasil. Esse último fato só vem a con-firmar que o instituto, tal como estava orga-nizado na monarquia absoluta, estava fa-dado a desaparecer.

Paradoxalmente, seria o movimentoliberal-constitucionalista que, remodelando-o e fixando em lei suas atribuições específi-cas, haveria de salvá-lo do desaparecimen-to, tanto no Brasil quanto em Portugal. Nametrópole, o velho instituto fora previsto nasbases da Constituição de 9 de março de 1821,sendo por fim consagrado na Constituiçãode 23 de setembro de 1822 (arts. 162-170).No Brasil, após o retorno da Corte para Lis-boa, em 1821, seria do interesse do PríncipeRegente Dom Pedro cercar-se de conselhei-ros representativos da porção americana doReino, o que o levaria a criar, no ano seguin-te, o chamado Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias, que seria substituí-

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do posteriormente pelo Conselho de Estadobrasileiro. Num momento em que era neces-sário instituir um governo de cunho liberal,sem que houvesse parlamento representati-vo ou responsabilidade ministerial, seriaexatamente na forma genérica do velho Con-selho de Estado que Dom Pedro vislumbra-ria, assim, a possibilidade de criar um orga-nismo que provisoriamente atendesse àsnecessidades de aconselhar-se, e que, alémde manter conexões com as funções executi-vas dos ministros, fosse politicamente repre-sentativo.

A composição do Conselho de Procura-dores era híbrida, integrado que era pelosministros de Estado (com direito a voto) e deprocuradores escolhidos pelos votos doseleitores de paróquia em cada província. Seumodelo era o Conselho de Estado napoleô-nico, considerado, então, a mais notável reu-nião de uma plêiade de estadistas e juristasa aconselhar um chefe de Estado. A suges-tão de sua criação, segundo José HonórioRodrigues, parece ter vindo de José Bonifácio,que a ele se refere em suas Lembranças e apon-tamentos do governo provisório da província deSão Paulo para os seus deputados. Ali o Patri-arca sugeria a criação de “um quarto poder,um corpo de censores, eleito pela nação, paravigiar os três poderes e que tem três princi-pais atribuições: conhecer qualquer ato dostrês poderes que fosse inconstitucional, ve-rificar as eleições de deputados das Cortes,antes que entrem em função, e, terceiro, ‘fa-zer o mesmo (vigiar, verificar a escolha, jul-gar) a respeito dos conselheiros de Estado’”(RODRIGUES, 1978, p. 44). Suas atribuiçõeseram as de 1) aconselhar o regente em todosos negócios mais importantes e difíceis; 2)examinar os projetos de reformas adminis-trativas que lhe fossem comunicados; 3)propor medidas e planos que parecessemmais urgentes e vantajosos ao Reino Unidoe ao Brasil; e, por fim, 4) advogar e zelar cadaum de seus membros pelas utilidades desuas respectivas províncias.

O caráter de transitoriedade desse con-selho era bastante nítido, já que, se sua fun-

ção era conferir representatividade mínimaàs províncias, até que o parlamento se reu-nisse, a data em que tal ocorresse seria aque-la da própria extinção do conselho. Não foipor outro motivo que tenha se autodissolvi-do por ocasião da instalação da AssembléiaConstituinte de 1823. A própria resoluçãodesta, que legalmente pôs fim ao Conselhode Procuradores, explica as razões: ele játeria preenchido o seu fim, que era o de pre-parar o advento do regime representativo, esua organização era anômala, desde quenela se haviam confundido as funções deconselheiros do monarca com a de repre-sentantes das províncias (LIRA, 1979, p. 73)1.Faz-lhe, contudo, justiça José HonórioRodrigues (1978, p. 47):

“Se o Conselho parecia destituídode funções legislativas, e meramenteconsultivo, o fato é que as atribuiçõessegunda, terceira e quarta eram ver-dadeiramente revolucionárias, embo-ra escondidas na forma, pois davamao Conselho o caráter de julgar a con-veniência dos projetos vindos de Por-tugal, de propor medidas para o Bra-sil, considerado como uma unidadepolítica independente, e de particula-rizar as aspirações provinciais”.

Embora a revogação do decreto que criouo Conselho de Procuradores tenha sido pro-mulgada em 20 de outubro de 1823, o fato éque não ficou o país sequer um mês sem umConselho de Estado, já que o Imperador, emnovembro daquele ano, por sua vez, dissol-veu a Constituinte e criou por decreto umConselho de Estado, composto de dez mem-bros, com o fito específico de elaborar umprojeto de constituição, nele também deven-do tratar-se “dos negócios de maior mon-ta”. O que o Imperador pretendia, “em ver-dade, era a feitura de um código políticopara tranqüilizar o espírito público, justa-mente apreensivo e alarmado ante as ten-dências reacionárias do poder” (LIRA, 1979,p. 75). Quatro de seus integrantes eram con-selheiros propriamente ditos; os outros seiseram os ministros das pastas políticas. No

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trabalho de elaboração da Constituição de1824, levada a cabo pelo Conselho de Esta-do sobre o anteprojeto da Constituinte dis-solvida, destacou-se José Joaquim Carneirode Campos, Marquês de Caravelas, aparen-temente o homem mais culto do grupo. Coma entrada desta em vigor, em março de 1824,começa a existência constitucional do Con-selho de Estado do Império do Brasil.

2. Governo por conselhono Brasil Imperial

2.1. O obstáculo do princípio democrático

Deve-se à prevalência do princípio de-mocrático o primeiro obstáculo com que nosdeparamos quanto à existência do Conse-lho de Estado, em tempos de constituciona-lismo. Como pudemos depreender do sucin-to desenvolvimento aqui traçado das ori-gens do Conselho de Estado luso-brasileiro,a identificação deste com a monarquia ab-soluta era quase completa. Os membrosdo Conselho eram os homens de confiançade Sua Majestade, que o auxiliavam na tare-fa de tomar as decisões políticas e freqüen-temente de executá-las. A partir do momen-to, todavia, em que se instaura o sistemaconstitucional, e a legitimidade do PoderExecutivo começa cada vez mais a depen-der da opinião pública – dependência essaconsubstanciada no desenvolvimento dosistema parlamentar –, a estrutura e a fina-lidade do Conselho de Estado, já abaladascom a especialização provocada pelas re-formas racionalizadoras da administraçãopública empreendidas ainda durante o ab-solutismo, entram definitivamente em crisede legitimidade. Os “espíritos iluminados”que deveriam auxiliar o monarca na tarefade governar não poderiam mais ser apenasescolhidos a seu bel-prazer; deveriam sertambém extraídos do Parlamento eleito pelopovo. Governo exercido sem participaçãodas câmaras, em especial da Câmara baixa,seria tirania, e seus partícipes, “a camari-lha palaciana”, os “áulicos”, o “partido da

Corte”. Era esse o espírito do governo mo-nárquico representativo liberal, que encon-trava na Inglaterra o seu primeiro e maisacabado modelo.

O Conselho Privado, na Grã-Bretanha,era integrado pelas pessoas de confiança domonarca, e seu gabinete não poderia sairsenão dele. Com a consolidação do princí-pio democrático no decorrer do século XIX– em especial depois da Primeira ReformaEleitoral, em 1832 –, o ministério passou adepender do voto popular e não da confian-ça da Coroa, fixando-se, então, uma tradi-ção que passou a tornar conselheiros priva-dos os membros do gabinete convocado aopoder. Não é por outra razão que, nesse país,o ministério seja definido como “alguns dosservidores confidenciais de Sua Majestadeque são do Conselho Privado”(JENNINGS,1979, p. 220). Na realidade, todos os minis-tros britânicos, incluindo os ministros deEstado, prestam juramento no Conselho. Ouseja, na ficção constitucional britânica, é ain-da do Conselho Privado da Rainha quesaem os ministros. Mas esse Conselho já nãoé senão uma espécie de antigo palácio doqual só restam de pé as paredes e em cujointerior já se acha construída uma edifica-ção moderna – como se os novos donos ti-vessem resolvido conservar as fachadas davelha construção apenas em deferência àestética e em respeito a um passado venerá-vel, embora extinto.

Seria quase inevitável, portanto, na erado liberalismo democrático, que um Conse-lho de Estado monárquico fosse percebidocomo um resquício absolutista, dada suaorigem não eletiva e irresponsável. Ou taisórgãos de proveniência aristocrática perma-neciam existindo, mas esvaziados de qual-quer poder, ou seu poder seria mantido, fi-cando eles, contudo, sujeitos à pressão econtrole da opinião pública representada noLegislativo. Assim sendo, por toda a parteem que o regime monárquico passou a con-viver e submeter seus princípios à concep-ção de democracia liberal, teve o Conselhode Estado de adaptar-se ao deslocamento

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paulatino do poder, do monarca, para oParlamento, passando a acolher em seu seioos ministérios no poder, ou simplesmentedesaparecendo, seja de forma literal, sejacomo órgão politicamente influente, seja ten-do alterados os mecanismos de preenchi-mentos de suas vagas ou sua competência.

Entretanto, a adoção, no Brasil, da teoriado poder neutro, da autoria de BenjaminConstant – que entre nós chamou-se mode-rador –, traria consideráveis conseqüênci-as, tanto para o desenvolvimento do siste-ma parlamentar quanto para o próprio pa-pel do Conselho de Estado brasileiro. Comoveremos, essa circunstância permitiu aoConselho de Estado manter seu fundamen-tal poder político como instituição aparta-da completamente do gabinete, até o últimodia da monarquia no Brasil.

2.2. O primeiro conselho deEstado (1824-1834)

A existência de um Conselho Privado jáconstava do anteprojeto Antônio Carlos, ela-borado na Assembléia Constituinte de 1823.Segundo esse projeto, os conselheiros seri-am nomeados e demissíveis ad nutum peloImperador. Não poderiam integrá-lo os me-nores de 40 anos, os estrangeiros, ainda quenaturalizados, e os nascidos em Portugalcom menos de doze anos de domicílio noBrasil e que não fossem casados com brasi-leira. Os conselheiros deveriam ser ouvidos“nos negócios graves, particularmente so-bre a declaração de guerra, ou paz, tratadose adiamento de assembléia” (art. 184), e eramresponsáveis pelos conselhos que dessem“opostos à lei e manifestamente dolosos”(art. 186). Quanto à responsabilidade pelosatos praticados pelo Imperador, esta cabiainegavelmente aos ministros, da qual decor-ria a norma do artigo 173 do projeto: “Osministros referendarão os atos do poder exe-cutivo, sem o que não são aqueles obrigató-rios”. Dessa feita, a responsabilidade, tantodos ministros como dos conselheiros, esta-va bem clara: os primeiros respondiam porsi e pelos atos do Imperador, coibindo uma

possível ação gravosa deste pela questão dareferenda; os segundos respondiam pelosconselhos.

No entanto, a adoção da teoria do podermoderador pelos conselheiros de Estadoencarregados de redigir a nova Constitui-ção, após a dissolução da Assembléia Cons-tituinte, veio abrir uma brecha no sistemada responsabilidade. Embora os ministroscontinuassem a ser responsáveis pelos atospraticados pelo Imperador no exercício dopoder executivo e os conselheiros, pelos con-selhos danosos que dessem ao monarca, anova Constituição não atribuía explicita-mente a ninguém a coberta da Coroa peloexercício dos atos do poder moderador, oque ensejaria entre liberais e conservadoresimensas e intensas discussões durante todoo Império. O papel do Conselho de Estadotornou-se, então, muito visado pela crítica,pois, enquanto o artigo 99 enunciava a invi-olabilidade, sagração e irresponsabilidadedo monarca, sem especificar sobre quem re-cairia a responsabilidade pelos atos ema-nados desse poder, o artigo 142 dizia que“os conselheiros serão ouvidos em todos osnegócios graves e medidas gerais da públi-ca administração (...), assim como em todasas ocasiões em que o Imperador se propo-nha exercer qualquer das atribuições pró-prias do poder moderador”2 . O fato de aConstituição obrigar o Imperador a ouvir oConselho de Estado em quase todos os ca-sos de exercício do Poder Moderador levouquase toda a opinião conservadora a consi-derar aquele órgão como responsável pela“coberta da Coroa” – e não os ministros, quesó cobririam a Coroa nos atos do PoderExecutivo. Mas essa interpretação tambémnão era isenta da crítica: embora a con-sulta ao Conselho fosse obrigatória, o Im-perador não estava vinculado à opiniãoda maioria – ou seja, poderia agir legal-mente sem “coberta”.

Para complicar ainda mais, o artigo 138fixara o número de conselheiros em dez,acrescentando o artigo 139 que “não estãocompreendidos neste número os ministros

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de Estado, nem estes serão reputados con-selheiros de Estado sem nomeação do Im-perador para tal fim”. Isso significava umavedação expressa quanto à possibilidade dese confundirem os ministros do gabinete comos conselheiros de Estado, isto é, ficara con-sagrada a idéia de que o ministério e o Con-selho eram órgãos apartados e que nemmesmo um ulterior desenvolvimento do par-lamentarismo, pela via do direito costumei-ro, possibilitaria ao gabinete, responsávelpoliticamente perante as Câmaras, esvazi-ar o poder do Conselho de Estado (LIRA,1979, p. 78). Os ministros poderiam partici-par de algumas reuniões, mas sem ser con-selheiros, quando, ao contrário, os própriosconselheiros poderiam se tornar ministros,aumentando o poder daquele órgão cole-giado que estava fora do controle políticodo Parlamento. A vitaliciedade dos con-selheiros apenas agravava esse estado decoisas.

O impacto político desse estado de coi-sas durante o Primeiro Reinado e a Regên-cia foi imenso. Quando a Câmara dos De-putados, com uma maioria crescente de li-berais, recomeçou a funcionar em 1826, sobo ressentimento da dissolução da Constitu-inte, consolidou-se uma ojeriza contra opapel do Conselho de Estado. O raciocíniodos deputados liberais era mais ou menos oseguinte: o temível poder de nomear senadores,afastar juízes, dissolver a câmara baixa, nomearministérios encontrava-se acumulado nas mes-mas mãos do chefe do poder executivo(!), e estenão era outro, senão o príncipe estrangeiro(!) de27 anos de idade(!) que dera um golpe de Estadono Parlamento, três anos antes(!). E quem po-deria exercer influência “benéfica” junto aele? Ninguém, pois os integrantes do órgãoincumbido dessa tarefa seriam, segundo osliberais radicais, notórios absolutistas e ba-juladores...

Liderados por Evaristo da Veiga eBernardo Pereira de Vasconcelos, a primei-ra resposta dos parlamentares foi uma cam-panha em prol de uma lei de responsabili-dade dos conselheiros de Estado. O passo

seguinte foi a apologia do sistema parla-mentar – único meio que os liberais viam deganhar força na composição de ministérios.Embora em seus íntimos não tivessem amorà Constituição, sobretudo em virtude de suaorigem outorgada, os deputados da oposi-ção agarravam-se a ela porque, por outrolado, a carta continha importantes mecanis-mos de responsabilização do ministério epara freiar os impulsos do Imperador, dequem temiam a dissolução legal da Câma-ra, direito esse incluído entre as atribuiçõesdo poder moderador. Uma vez fixado o re-gime parlamentar, pensavam os mais radi-cais, os próximos passos seriam a extinçãodo conselho de Estado e do próprio podermoderador3. Parte de seus anseios se con-cretizaram em 7 de abril de 1831, quando,tendo conseguido reunir povo e força arma-da no Campo de Santana para compelir oImperador a restaurar um gabinete que aca-bara de demitir, a sublevação acabou porfazê-lo decidir-se pela abdicação e pelo re-torno à Europa. Iniciada a Regência com osliberais no poder, continuou o Conselho deEstado a existir por mais três anos, vegetati-vamente, apenas na forma – já que sua con-sulta era obrigatória –, até que o Ato Adicio-nal conseguiu extingui-lo.

Como se percebe, o funcionamento doConselho, em termos de eficiência instituci-onal, foi sofrível no Primeiro Reinado. Aunanimidade desse veredito pode ser cons-tatada por meio da leitura da opinião de umautor bastante insuspeito por seu conserva-dorismo e por ter sido, ele mesmo, conse-lheiro de Estado no Segundo Reinado – oVisconde de Uruguai (1960, p. 152):

“Este conselho de Estado tinhasenões consideráveis. Era ao mesmotempo político e administrativo, maspreponderava nele a cor política.Como corpo administrativo era man-co (...). Esse Conselho de Estado nun-ca foi desenvolvido por uma lei regu-lamentar, nem por meio de regulamen-tos, na parte administrativa. Nuncafuncionou como tribunal administra-

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tivo. Nem havia para ele recursos mar-cados (...). Compunha-se do limitadonúmero de 10 membros vitalícios. Ascircunstâncias do país, as conveniên-cias da política, o espírito público,podiam mudar, e não mudarem osConselheiros. Podiam emperrar certasidéias que não conviessem mais. Po-diam tornar-se impopulares. Podia-seerrar em certas nomeações. Uma vezfeitas não havia remédio. Não tinhaessa instituição aquela flexibilidadeque é indispensável para que se pudes-se acomodar ao irresistível império dascircunstâncias e às mudanças, e novasexigências do espírito público”.

2. 3. O segundo conselho deEstado (1841-1889)

Essa grande aspiração dos liberais radi-cais, contudo, acabou malograda. As tenta-tivas de golpe de Estado no início da Regên-cia, os distúrbios verificados em diversas ci-dades do país, a começar pela própria Cor-te, e, por fim, as grandes revoltas do períodoregencial – Sabinada, Balaiada, Cabanagem,Farrapos –, na vigência das medidas des-centralizadoras viabilizadas pelo Ato Adi-cional, acabaram por frustrar a muitos de-les, que chegaram a vislumbrar, em seme-lhante estado de coisas, a fragmentação dopaís. Autoritária e antiparlamentar, a Re-gência de Feijó acirrara os ânimos dos con-servadores e dos moderados, que pensavamque as reformas haviam ido longe demais eque a “república presidencial” produzidapelo Ato Adicional liqüidaria rapidamenteo país. É o tempo do Regresso. O país é re-centralizado, a prática do regime parlamen-tar se consolida e o princípio monárquicovolta à voga.

Consagrado maior aos 14 anos de ida-de, investido dos poderes que a Constitui-ção lhe conferia, dirá Pedro II na aberturada sessão legislativa de 1841 que, em razãode sua pouca idade, cabia-lhe “chamar avossa atenção sobre a necessidade de umConselho de Estado, que eu possa ouvir em

todos os negócios graves, e principalmentenos que são relativos ao exercício do PoderModerador” (JAVARI, 1993, p. 217). O pro-jeto de lei que restabelecia o Conselho susci-tou uma série de discussões que demons-tram a divisão ideológica entre liberais econservadores. Embora os primeiros temes-sem tratar-se de um estratagema dos segun-dos, para perpertuarem-se no poder, era pra-ticamente unânime a percepção de que eranecessário um órgão imparcial de aconse-lhamento junto ao Imperador, muito meni-no e inexperiente para representar, por sisó, um poder central que encarnasse o inte-resse público e nacional, capaz de agregaros interesses privados que dilaceravam opaís. Por outro lado, os deputados reclama-vam a necessidade de se criar tradições decontinuidade administrativa num país cu-jos governos duravam pouco no poder. De-pois de muitos debates, que questionarama constitucionalidade do procedimentoadotado, o Conselho de Estado foi restau-rado pela Lei no 321 de 23 de novembrode 1841.

“Incumbe às seções ou ao conse-lho de estado de dar seu parecer ouconsultar sobre todos os negócios emque o Imperador houvesse por bemouvi-lo, e especialmente sobre os se-guintes: 1) sobre os assuntos ou oca-siões em que o imperador se propusera exercer quaisquer das atribuições dopoder moderador, indicadas no art.101 da Constituição; 2) sobre decre-tos, regulamentos e instruções para aboa execução das leis, e sobre propos-tas que o poder executivo tenha deapresentar à assembléia geral; 3) so-bre a declaração de guerra, ajustes depaz, e negociações com as nações es-trangeiras; 4) sobre quaisquer matéri-as da administração interior; 5) sobreassuntos de natureza quase contenci-osa, como questões de presas, de in-denizações, conflitos entre as autori-dades administrativas, e entre estas eas judiciárias, e abusos das autorida-

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des eclesiásticas; 6) sobre negócios dejustiça administrativa contenciosa”(SÃO VICENTE, 1978, p. 289).

Como se vê, a competência do novo Con-selho de Estado era bastante mais ampla doque a do Primeiro Reinado. Podemos divi-dir suas novas atribuições, grosso modo, ematribuições políticas e administrativas. En-tre as primeiras, os conselheiros deveriamopinar sempre que o Imperador se propu-sesse a ouvi-los com vistas ao exercício doPoder Moderador, bem como quando o Po-der Executivo estivesse na iminência de to-mar uma decisão legalmente consideradagrave. Entre as segundas, os conselheirosdeveriam auxiliar o Poder Executivo compareceres, sugestões, servindo ainda de tri-bunal administrativo. Embora sua consultanão fosse mais obrigatória, a doutrina en-tendia que “a sabedoria da Coroa jamaisdeixará de ouvir o Conselho de Estado des-de que a magnitude do negócio assim de-mandasse” (SÃO VICENTE, 1978, p. 290)4.

Diz-se muito que o Conselho de Estadofoi “a cabeça do governo imperial”, o “cére-bro da monarquia”. Diversos fatores cola-boraram para essa impressão, que é verda-deira. O que principalmente nos dá a im-pressão de continuidade da obra do Impé-rio, a despeito da instabilidade de ministé-rios, é que estes tinham em regra duraçãobrevíssima, dependendo de inconstantesmaiorias parlamentares, compostas ao sa-bor dos interesses oligárquicos, ao passo queo Conselho era vitalício, trabalhando livrede quaisquer dependências e elaborandopolíticas de longo prazo5. Além disso, pare-ce um paradoxo que esse Conselho, que nãoestava sujeito a nenhuma espécie de contro-le político e cuja composição se dava porindicação exclusiva do Imperador, longe deser uma reunião de áulicos, reunisse, comoreunia, a nata da política brasileira. Maisde setenta por cento dos estadistas quetiveram assento no Conselho de Estado,durante o século XIX, já haviam sidoanteriormente deputados, ministros e sena-dores (CARVALHO, 1996, p. 328). Isso de-

monstra que a indicação pelo Imperador,longe de arbitrária, era realizada criteriosa-mente, correspondendo à mais alta digni-dade que um político do Império poderiareceber e coroando, por assim dizer, sua car-reira política. Eram homens que, em razãode sua experiência e seu passado políticorelevante, poderiam, uma vez investidos devitaliciedade e irresponsabilidade política,trabalhar quase que acima do bem e do mal,devendo, ainda mais do que no Senado,opinar com a maior liberdade possível acer-ca dos assuntos políticos6.

O Poder Moderador e o Conselho de Es-tado pairavam, assim, por cima de todo osistema representativo parlamentar, verda-deira ficção sustentada por fraudes eleito-rais, sendo quem, no fundo, realmente fixa-va as estratégias da política nacional,constituindo uma elite dentro da elite. Ateoria da autonomia do Estado enuncia que“o Estado é autônomo quando os governan-tes têm a capacidade institucional deescolher seus próprios objetivos e de reali-zá-los diante de interesses conflitantes”(PRZEWORSKY, 1995, p. 46). O Estado se-ria autônomo, por assim dizer, quando esti-vesse descolado de suas bases representati-vas, dirigindo a sociedade, explicitamenteou não.

O que caracteriza o Império, todavia, éque havia, no panorama político, não ape-nas o descolamento do Estado perante a so-ciedade monocultora, escravista e excluden-te, provocada mais diretamente pelas elei-ções fraudadas. Havia um descolamento,dentro do próprio Estado, entre aquela par-te sua que era produto, direto ou indireto,do princípio democrático, consubstanciadono sistema parlamentar representativo – quesó era representativo enquanto ficção –, eaquela outra parte mais antiga do Estado,identificada no exercício do Poder Modera-dor e do Conselho de Estado, que era o ladomais visível da própria instituição monár-quica. Esse descolamento na estrutura in-terna do Estado começou a ficar mais evi-dente no início da década de 1870, quando

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o empenho da Coroa e do Conselho de Esta-do em fazer passar a Lei do Ventre Livre,considerada por eles estratégica para a fu-tura manutenção da ordem, demonstrou oquão separados ambos começavam a se tor-nar em relação à sua base de sustentação: oParlamento escravocrata7. Daí não procederem absoluto a afirmação muito corrente, erepetida por Maurice Assuf (1960, p. 59), deque teria sido o Poder Moderador o princi-pal obstáculo ao desenvolvimento do siste-ma parlamentar no Brasil. O verdadeiro obs-táculo ao desenvolvimento do parlamenta-rismo, ao contrário, encontrava-se na falsi-dade da representação nacional no Parla-mento, levada a cabo pelos partidos nas elei-ções, fato esse que nunca passou desperce-bido pelo Imperador, nem pelo Conselho deEstado e que, diante desses, retirava do sis-tema parlamentar a legitimidade de que estecarecia para impôr-se diante da Coroa:

“O sistema político do Brasil fun-da-se na opinião nacional, que, mui-tas vezes, não é manifestada pela opi-nião que se apregoa como pública.Cumpre ao imperador estudar cons-tantemente aquela para obedecer-lhe.Dificílimo estudo, com efeito, por cau-sa do modo por que se fazem as elei-ções (...). Se as eleições se fizessemcomo todos devemos desejar, talvezaconselhasse a escolha quase cons-tante do mais votado na lista dos pro-postos para senadores; porém, nascircunstâncias atuais, cumpre escolhero honesto, o moderado, o que tenha maiscapacidade intelectual e serviços aoEstado (...)” (PEDRO II, 1957, p. 27, 52).

Essa situação de fato suscita, pois, umaquestão que está vinculada à verdadeira na-tureza do suposto liberalismo democráticobrasileiro do século XIX, que pleiteava a ex-tinção do Conselho e do Poder Moderador,sob o argumento de não estarem controla-dos diretamente pela opinião pública, úni-ca condição de se instaurar a “pureza” dosistema parlamentar. Até que ponto esse cla-mor não representaria um pleito, na verda-

de, antidemocrático, na medida em que, eli-minando esse duplo descolamento, as oli-garquias poderiam tomar de assalto a cú-pula do Estado, coisa que até então não ha-viam conseguido fazer? Daí por que JoaquimNabuco, acreditando que a monarquia con-tinha instituições apartadas dos interessesoligárquicos, capazes, portanto, de impor asreformas de que o país precisaria, opôs-se àrepública, que, acreditava, seria o governodo escravismo latifundiário ressentido8 .Extinguir o Conselho de Estado e o PoderModerador, ou fazendo este depender doministério, teria sido possivelmente entre-gar o governo do país a uma só facção quese estenderia indefinidamente no poder, emvez de permitir a alternância das facçõespelo rodízio, criando um ambiente de liber-dade de expressão e possibilitando a esta-bilização do poder. A intuição de Nabucoestava certa, já que o resultado do fim doduplo descolamento foi, efetivamente, o as-salto à cúpula do aparelho do Estado pelosrepresentantes das oligarquias regionaisdurante a República Velha. Num contextocomo esse, seria difícil não enxergar, noConselho de Estado, um órgão benfazejo àadministração pública de então. Era ele defato um órgão antidemocrático, mas a de-mocracia proposta pelos liberais era aindamais antidemocrática do que a existenteentão, consistindo apenas em praxes e for-malidades9.

Seria por meio do imaginário herdadodo Poder Moderador e do Conselho de Esta-do, e de parte da tradição imperial incorpo-rada pela República, que chegariam a nóscertas noções cuja força, sem uma análisehistórica, seria impossível de compreender,entre as quais poderíamos citar o fato denossos presidentes da República, em regi-me francamente presidencialista, enuncia-rem que o Chefe de Estado está acima dospartidos; bem como a permanência de umaconcepção elitista da política naqueles se-tores do Estado de nível técnico e profissio-nal mais elevado e de formação ideológicamais homogênea.

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3. A persistência da idéia de conselhode Estado durante a República

O Conselho de Estado foi abolido pelaRepública na própria proclamação do mo-vimento armado que promoveu o golpe deEstado de 15 de novembro. O efeito da fusãodas duas estruturas do Estado brasileiro –chefia de Estado e chefia de Governo –, numtempo em que não havia condições de as-sentá-lo em bases verdadeiramente repre-sentativas, correspondeu, na prática, à en-trega crescente de toda a autoridade do Es-tado nas mãos do Presidente da República,escolhido, quase que invariavelmente, pe-las oligarquias de São Paulo e Minas Ge-rais, que se revezavam no poder10. A decep-ção com o regime republicano de 1891 atin-giu vários segmentos da classe política naprimeira década do século XX, sobretudocom a crise política deflagrada com a cam-panha do marechal Hermes da Fonseca àpresidência da República e sua vitória so-bre Rui Barbosa. O Conselho de Estado im-perial passou, então, a ser idealizado pormuitos como um modelo, porque reunia ca-racterísticas que encobriam ou ajudariam asanar o particularismo cada vez mais evi-dente do Estado republicano: um órgão àeuropéia, que pensava “o todo”, “apolitica-mente”, constituído de “estadistas” que for-mavam uma “casta brilhante” a tocar, pormeio do Estado descolado da sociedade, aadministração pública, sem solução de con-tinuidade11.

De 1910 a 1922, a imagem histórica doImpério é reformulada, para melhor, pelamaior parte das elites oposicionistas, queentão consolidam dois projetos de Conse-lho de Estado: os grupos mais próximos dopoder defendem o projeto liberal e retorica-mente democrático de um conselho consul-tivo, auxiliar do presidente; ao passo que osgrupos mais radicais, que posteriormente seidentificarão com o tenentismo, propõem umconselho de Estado tecnocrático comoquarto poder, instituição central de umprojeto que buscava, pela intervenção de

um Estado forte e centralizador, criar con-dições para modernizar o país e varrer asoligarquias.

3.1. Conselho de Estado“liberal” (1910/1912/1920)

Propostas desse tipo de conselho foramefetuadas diversas vezes durante a Repú-blica, sob nomes diferentes: ConselhoFederal da República (1910), Conselho Con-sultivo Supremo da República (1912), Su-premo Conselho da República (1920) ouConselho de Estado (1951).

A primeira proposta de restabelecimen-to de um Conselho de Estado surge em 1910,no bojo da cisão no condomínio oligárquicoprovocada pela vitória de Hermes. Ela foiproposta por um deputado todo governista,excepcionalmente na oposição: ArnolfoAzevedo (1968, p. 124). Seu projeto de lei,que pretendia criar um Conselho Federal daRepública, previa um órgão meramente con-sultivo, sobre assuntos políticos e adminis-trativos, cujas decisões “constituiriam as-sento de boas normas de administração”.Seriam membros natos o presidente, o vice eos ex-presidentes da República; os presiden-tes do Senado, da Câmara, do Supremo Tri-bunal Federal e, o que chama a atenção, opresidente do Supremo Tribunal Militar.Haveria, ainda, mais cinco membros efeti-vos, vitalícios, que deveriam ser notabilida-des escolhidas pelo próprio Conselho e pro-postos ao Presidente, que por sua vez ossubmeteria à apreciação do Senado.

Se Azevedo pretendia, com esse Senado,marcar posição contrária a Hermes, é coisaa se discutir; fato é que, se isso for verdadei-ro, tratava-se de um tigre de papel, pois aconsulta não seria obrigatória e não se justi-ficaria, num regime presidencial, que o pre-sidente da República tivesse melindres emconsultar conselhos para exercer os pode-res discricionários que a Constituição lheconferia. O que chama a atenção, contudo, éo fundamento pelo qual o futuro presidenteda Câmara e senador justifica seu projeto, omesmo pelo qual se batiam, setenta anos

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antes, estadistas como Alves Branco eBernardo de Vasconcelos: o Conselho deve-ria representar um ponto de conservação detradições administrativas, de continuidade,a fim de minimizar os males das trocas degoverno.

O deputado, em discurso pronunciadoem 1912, reclamava, pelo Conselho, “a uni-dade e a tradição conservadora na vida po-lítica e administrativa da União, pela cons-tante, capaz e experimentada colaboraçãodos antecessores do presidente da Repúbli-ca em exercício”, cujos atos seriam “esclare-cidos pelas luzes da experiência e do co-nhecimento dos negócios públicos (…) mi-nistradas com a isenção, o patriotismo e aelevação de vistas dos que não devem maissofrer, no seu critério e integridade, os em-bates e influências da ambição e dos inte-resses secundários” (AZEVEDO FILHO,1968, p. 124).

O projeto, ainda que emendado, recebeuparecer favorável na Comissão de Justiça daCâmara, em relatório da lavra de Afrânio deMello Franco, no qual este, mostrando-sesimpático à experiência institucional impe-rial, rebatizou a instituição como ConselhoConsultivo Supremo da República, negandoa incompatibilidade do instituto com o sis-tema republicano presidencial (FRANCO,1955, p. 751). O projeto, porém, não foi adi-ante. Em 1920, ele foi reapresentado porArnolfo Azevedo, sob o nome de SupremoConselho da República, que incorporou àsua fundamentação as sugestões de MeloFranco. A novidade da proposta residia nofato de que apenas antigos presidentes evice-presidentes da República seriam con-siderados seus membros natos. O eco dessaproposta foi maior, já que a onda pela revi-são da Constituição crescia à medida queaumentavam as rachaduras no condomíniooligárquico. Embora tenha sido sustentadopor Pandiá Calógeras (1936), durante a re-visão constitucional de 1925, tendo outrosdeputados voltado à carga, em 1929, o pro-jeto continuou engavetado. A matéria rea-pareceu na imprensa às vésperas da reu-

nião da assembléia constituinte, em 1934,quando o contexto político era muito diver-so e os tenentes, como veremos, tinham oseu próprio projeto de conselho de Estado,misto de conselho imperial e poder modera-dor tecnocrático.

3.2. Conselho de Estado comoquarto poder (1914/1930)

Esse tipo de Conselho de Estado se opu-nha ao conselho esvaziado, meramente con-sultivo dos liberais. Tratava-se de propor umquarto poder constitucional, com o fito decoordenar a transição para um novo tipo degoverno nacional, forte, centralizado, em quevigesse o interesse público acima das diver-gências oligárquicas, que, segundo seus pro-pugnadores, atrasavam o fortalecimento dopaís enquanto nação.

Uma das críticas mais elaboradas reali-zadas em face do regime de 1891, tal qualestava alicerçado, foi formulada por AlbertoTorres (1914, p. 268). Ele acreditava que aestrutura do Estado brasileiro estava longe,em qualquer aspecto, inclusive ideológico,de corresponder ao aparato político neces-sário para reduzir as disparidades econô-micas e sociais existentes no Brasil. Era ne-cessário um governo, antes de mais nada,forte, nacionalista, voltado para as questõesinternas do país, com pulso o bastante paradefender a sociedade dos grupos econômi-cos, nacionais ou estrangeiros, nocivos aosinteresses do povo. Crítico do parlamenta-rismo, que qualificava de frouxo e ultrapas-sado, volvia já na década de dez suas bate-rias contra o liberalismo político formal daRepública Velha, em que enxergava a conti-nuação dos vícios do Império e a tara pelaimportação de modelos estrangeiros. O paísainda não se havia formado enquanto na-ção e isso só poderia ser realizado pelo Es-tado mediante ações estratégicas executa-das por um governo forte, embora democrá-tico. Embaraçava-o que a Carta de 1891 fos-se inteiramente dissociada da realidade na-cional e que nossa tradição jurídica bacha-relesca mantivesse-a, bem como ao resto do

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ordenamento jurídico, envolta numa aurade erudição positivista embolorada e alie-nígena.

“A natureza política da constitui-ção, lei nacional, deve prevalecer so-bre as concepções teóricas dos legis-ladores, governantes e juízes; e suaflexibilidade deve consistir (...) nas cor-rentes e movimentos que representamo fluxo dos fenômenos naturais da vidasocial” (TORRES, A., 1914, p. 224).

A seu ver, o presidencialismo implemen-tado em 1891 sofria de três terríveis defei-tos: primeiramente, a federação havia sidomalfeita, afrouxando em vez de favorecer asolidariedade econômica e social do país, aseu ver necessária à homogeidade nacional.A federação deveria ser revista completa-mente, fortalecendo o governo central, poisum país constitucionalmente organizado,segundo ele, não poderia tolerar, em seu ter-ritório, regiões ou populações que não vi-vessem à sombra da lei. Em segundo lugar,o governo federal era fraco para fazer o beme forte para fazer o mal, querendo referir-seà maneira como promovia os estados de sí-tio e as intervenções nos Estados. Em tercei-ro e último lugar, criticava a ineficiência damáquina burocrática central. O Estado Fe-deral tinha um papel civilizador a cumprir,especialmente quanto às populações interi-oranas, tanto no que tocava à cultura quan-to mesmo a noções de higiene. O intervenci-onismo estatal no campo da economia eratambém indispensável para que essas me-tas fossem cumpridas.

“Para nossa civilização, o deverelementar do Estado é formar o povo(...) A democracia social, sucedendo àdemocracia política, substitui-se o en-cargo falaz de formar e apoiar o ‘cida-dão’ (...) pelo encargo de formar e apoi-ar o ‘homem’, o ‘indivíduo’, o sociusda nação contemporânea” (TORRES,1914, p. 242).

Mas para isso, seria necessário que o Es-tado estivesse em toda parte. Para tanto, pro-pôs Alberto Torres (1914, p. 275), num vasto

projeto de emenda à Constituição de 1891, acriação de um quarto poder – o Poder Coor-denador. Ele coroaria...

“estas disposições tendentes, todas, afortalecer a ação governamental, a li-gar solidariamente as instituições dopaís e a estabelecer a continuidade naprossecução dos ideais nacionais (...)com um órgão, cuja função será con-catenar todos os aparelhos do siste-ma político, como mandatário de todaa nação – da Nação de hoje, da Naçãode amanhã – perante seus delegados.Não é uma criação arbitrária”, ressal-tava, “é o complemento do regime de-mocrático e federativo, sugerido pelaobservação da nossa vida e pela ex-periência das nossas instituições”.

Das palavras de Torres, inferem-se per-feitamente alguns pontos de ligação de seuprojeto com o antigo Conselho de Estado de1841. O viés nitidamente estatista de suaproposta coincidia com o existente no Im-pério, e tanto aqui como ali entregava-se opapel de traçar estratégias de longo prazo aum conselho de integrantes vitalícios querepresentasse algo de duradouro no pano-rama político-administrativo brasileiro. Adiferença fundamental entre ambos será nãosomente o cabalístico critério de seleção dosmembros do Conselho Nacional, ponto no-dal do Poder Coordenador, mas ainda o ca-ráter também deliberativo, e não meramenteconsultivo, que este deteria. Era como se oautor tivesse resolvido conceder a um Con-selho de Estado as atribuições de um PoderModerador, além de muitas outras de natu-rezas completamente díspares, e dotadoesse organismo de uma monstruosa buro-cracia que o permitisse exercer suas ativi-dades nos menores vilarejos do país.

O Poder Coordenador teria como órgãoso Conselho Nacional, na capital da Repú-blica; um Procurador da União em cada Es-tado (província, na nova terminologia cons-titucional de Torres); um delegado federalem cada município, nomeado pelo Conse-lho Nacional; e um representante e um pre-

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posto da União, em cada distrito e quartei-rão, respectivamente. O Conselho seria com-posto de no máximo vinte integrantes vita-lícios, a serem escolhidos pelo Presidente eVice-Presidente da República, pelos própri-os membros do Conselho, por deputados esenadores, pelos ministros do Supremo Tri-bunal Federal e pelos diretores de um hipo-tético Instituto de Estudo dos ProblemasNacionais, a quem deveriam os candidatosa parlamentar dirigir obrigatoriamente suaspropostas de melhoria do país.

Seriam atribuições do Conselho Nacio-nal, em resumo: a) servir de tribunal eleito-ral, apurando a lisura das eleições, e verifi-car os poderes dos candidatos, encerrando,enfim, com dois dos principais complica-dores do sistema representativo durante aRepública Velha; b) autorizar o presidentea intervir nos Estados; c) servir de tribunalnos casos de conflitos entre os entes federa-tivos; d) fazer um controle concentrado daconstitucionalidade, isto é, in abstracto ; e)consolidar as novas leis a cada década; f)fiscalizar os projetos de leis e leis em trami-tação no Congresso, verificando sua consti-tucionalidade; g) fiscalizar a política tribu-tária da União e dos Estados; h) velar pelaliberdade de comércio contra monopólios eprivilégios prejudiciais ao povo; i) velar pelaharmonia entre as legislações federal e esta-dual; j) velar pelas riquezas naturais do país;l) velar pelo bem-estar do povo; m) fazer asvezes de Ministério do Trabalho, inexisten-te à época; n) decretar o fim da autonomiados Estados quando estes caíssem na anar-quia, passando o Conselho a geri-los pesso-almente(!); o) garantir os direitos fundamen-tais dos cidadãos, formal e materialmente.O papel dos Procuradores da União, por suavez, consistiria na fiscalização e verificaçãodos poderes dos políticos estaduais; na con-ciliação dos interesses da União com os Es-tados e na resolução de conflitos de compe-tência. Quanto aos delegados nos municí-pios, também deveriam verificar poderes,resolver conflitos de competência e fiscali-zar as finanças locais. No que toca ao pre-

posto da União nos quarteirões, teria por mis-são propagar a saúde e a educação, ensinan-do rudimentos de ambos, velando sobre a pro-priedade – enfim, esclarecer o povo ignaro.

Por mais rocambolesco que fosse seme-lhante projeto, misturando, num mesmo ór-gão, funções díspares como as de controlede constitucionalidade, eleitorais, adminis-trativas, trabalhistas, políticas e tributárias,ele teve considerável influência quando ospartidários das idéias nacionalistas deTorres chegaram ao poder, em 1930. O inte-lectual do dia era Oliveira Viana, discípulode Torres em seu nacionalismo e teórico dostenentistas engajados no governo revoluci-onário, cujo chefe era Juarez Távora. Viana,pouco antes da Revolução, havia publica-do Problemas de Política Objetiva, em que ad-vogava, com modificações, a proposta deTorres pela necessidade de um órgão cole-giado, na cúpula da administração públi-ca, comprometido com a nação e que servis-se para criar uma identidade político-administrativa que viabilizasse uma obrade reconstrução nacional:

“Esse centro de coordenação, deestabilização, de fixação, precisa vir,precisa ser inventado, precisa ser des-coberto. Há quarenta anos seguros, anossa vida política vem correndo des-contínua, incoerente, instabilíssima,variando a todo o momento, confor-me variam as idéias dos chefes (…).Essa instabilidade administrativa epolítica da vida da República (…) de-riva justamente da ausência de umcentro permanente de orientação eequilíbrio na cúpula do regime. Emsuma, da inexistência de um poderpolítico vitalício entre os poderes tem-porários criados pela ConstituiçãoRepublicana (…). O problema centralda obra revisionista há de ser pois (…)criar um quarto poder, tal como o an-tigo Poder Moderador, que, sendo ju-diciário também, tenha, entretanto, odireito de iniciativa, que o Judiciárionão tem” (VIANA, 1930, p. 26, 45).

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Viana, em 1933, bem como Melo Francoviriam a integrar a Comissão do Itamarati,reunião de notáveis destinada a elaborar oanteprojeto de constituição a ser oferecidopelo governo de Vargas à Constituinte, paraservir de base aos trabalhos desta. O resul-tado foi que o projeto apresentado pelo go-verno refletiu a antiga demanda na propos-ta de um Conselho Supremo, previsto naSeção V do Título I do projeto (arts. 67 e 68),que seria “órgão técnico consultivo e deli-berativo, com funções políticas e adminis-trativas”, que “manterá a continuidade ad-ministrativa nacional; auxiliará, com o seusaber e experiência, os órgãos do governo eos poderes públicos, por meio de pareceres,mediante consulta; deliberará e resolverá so-bre os assuntos de sua competência, fixadanesta Constituição” (DIAS, 1975, p. 447). Amissão desse conselho, como se vê, seriabastante similar à do extinto Conselho deEstado da monarquia. Só que, em vez dedoze, haveria trinta e cinco conselheiros efe-tivos, além dos políticos que houvessem pre-sidido a República por mais de três anos. Aforma de escolha dos conselheiros efetivostambém era bastante complicada, revelan-do a tendência da época de representaçãooriunda não só da classe política, como dasentidades representativas da sociedade, daeducação e do trabalho. Esse Conselho tra-balharia em pleno e em seções, devendo, noprimeiro caso, ser presidido pelo Presiden-te da República, tendo ainda nele assentoos grandes dos poderes políticos. As con-sultas de natureza política ou administrati-va poderiam ser solicitadas tanto pelo Pre-sidente da República como pelo Poder Le-gislativo Federal (no projeto, unicameral),pelos Governadores, Assembléias Legisla-tivas e Câmaras de Vereadores. Entre suasatribuições, destacavam-se as de autorizarintervenção federal, opinar sobre a legisla-ção administrativa oriunda do Executivo,aprovar nomeações de ministros de Estadoe do Prefeito do Distrito Federal, impedir abitributação, deliberar sobre a conveniênciade liberar presos políticos depois de um mês

de detenção, nos casos de estado de sítio,decidir sobre recursos interpostos, proporprojetos de lei ao Legislativo e convocá-loextraordinariamente.

A crítica dos liberais judiciaristas ao pro-jeto foi capitaneada por Levi Carneiro (1936,p. 221), sucessor, ao que parece, de RuiBarbosa na sua profissão de fé: “o organis-mo planejado se apresenta como uma mons-truosidade. Não seria suportável num paíscomo este em que, segundo o próprio Torres,o regime unitário seria um erro de políticageográfica”. “Esse pretenso sucedânio doSenado seria o órgão dominador de toda avida política e administrativa brasileira.Constituído, em sua maioria, por eleição dasAssembléias Legislativas dos Estados (...)”,com a duração de sete anos, “isto é, quasedois períodos presidenciais, distanciado dasvibrações do sentimento popular”, crê LeviCarneiro (1936, p. 701) que o Conselho Su-premo “tutelaria discricionariamente a açãodo presidente da República. Entravaria to-das as suas iniciativas”. “Ciclópico e amea-çador”, a esta assembléia, “numerosa, deformação esdrúxula, de duração prolonga-díssima, ficaria, nos momentos mais graves,nas manifestações mais delicadas, entreguetoda a vida nacional”.

Com o enfraquecimento da influência doClube 3 de Outubro, os tenentes não conse-guiram a aprovação, nessa forma, do proje-to do Conselho, tendo os liberais mistura-do, numa fórmula conciliatória, as tradicio-nais atribuições legislativas do Senado àsde fazer este as vezes de “poder coordena-dor” na Constituição, finalmente promul-gada em 16 de julho de 1934. A montanhaparira o rato: embora até a última hora esseSenado reformulado se chamasse “Conse-lho Federal”, não vemos por que estudá-loaqui, dada a sua extensa composição típicade câmara alta em regime bicameral federa-tivo, ainda por cima com atividades legife-rantes partilhadas com a câmara baixa. Nofim das contas, ele nem de longe se asseme-lhava a um Conselho de Estado, seja aqueleimaginado pela minoria liberal, quanto

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mais o quarto poder sonhado pelos tenen-tes. Quanto ao eventual desempenho do Se-nado nesse papel heterodoxo que passou adesempenhar, no mínimo temerária qual-quer tipo de avaliação, já que durou poucomais de três muito turbulentos anos. OFrankenstein foi afinal liqüidado pelo gol-pe de 10 de novembro de 1937, que implan-tou a ditadura.

3.3. Os Conselhos da Repúblicae de Defesa Nacional (1988)

Em 1951, Aliomar Baleeiro propôs oConselho de Estado à Câmara da Repúbli-ca de 46, em projeto subscrito por muitosoutros deputados, entre os quais AfonsoArinos de Melo Franco, filho de Afrânio. Aproposta novamente não foi acolhida, o queparece demonstrar a inviabilidade de se pre-tender instituir, em regimes presidencialis-tas, órgãos consultivos e deliberativos cujaexistência não dependa diretamente da von-tade do Presidente da República. A lógicado regime presidencial engloba as caracte-rísticas de regime forte, visto que se esperado Chefe de Governo que, ungido pelo su-frágio universal, enfeixe em suas mãos po-der bastante para implementar seu planode governo por quatro anos. Daí parte dadificuldade, como se depreende das pala-vras de Levi Carneiro, de um conselho que,junto ao chefe do Executivo, pretenda ser odepositório das tradições e da continuida-de administrativa do país. O fato de a Cons-tituição de 1988, por influência, provavel-mente, do direito constitucional português,abrigar dois conselhos assemelhados ao deEstado – o da República e o de Defesa Naci-onal –, ao invés de contradizer esse arrazo-ado, parece antes corroborá-lo, dada sua ino-cuidade, mais de dezessete anos após a en-trada em vigência da nova Carta.

O Conselho da República, da forma comose acham enunciados os artigos 89 e 90, éórgão meramente consultivo do Presidenteda República. Integram-no o Vice-Presiden-te, os Presidentes e os líderes da maioria eda minoria das duas Câmaras Legislativas,

o Ministro da Justiça e seis outros membroscom mandato de três anos, a serem indica-dos pelo Chefe do Executivo e pelos presi-dentes da Câmara e do Senado. Suas atri-buições não são moderadoras, mas consul-tivas acerca da decretação de medidas pró-prias de estado de exceção, opinando emcaso de intervenção federal, estado de defe-sa e estado de sítio, além de acerca de “ques-tões relevantes para a estabilidade das ins-tituições democráticas”. Quanto ao Conse-lho de Defesa Nacional, é também consulti-vo acerca de assuntos “relacionados com asoberania nacional e a defesa do Estadodemocrático” (art. 91, caput), dele fazendoparte o Vice-Presidente da República, ospresidentes da Câmara e do Senado, o Mi-nistro da Justiça, os ministros militares, dasRelações Exteriores e do Planejamento. EsseConselho, segundo a Constituição, deveopinar sobre declaração de guerra e de paz,sobre decretação de estado de sítio, inter-venção federal e estado de defesa; proporcritérios e condições de utilização de áreasindispensáveis à segurança do territórionacional e opinar sobre seu efetivo uso, es-pecialmente a faixa da fronteira e nas rela-cionadas com a preservação dos recursosnaturais de qualquer tipo, além de estudar,propor e acompanhar o desenvolvimento deiniciativas necessárias a garantir a indepen-dência nacional e a defesa do Estado demo-crático. Como se vê, não se compreende arazão de dois conselhos, ao invés de ape-nas um, já que praticamente todas atribui-ções de ambos dizem respeito genericamen-te ao mesmo tipo de questões, isto é, que en-volvam segurança nacional e se refiram aoEstado democrático.

De qualquer sorte, se o Conselho de De-fesa Nacional não é de todo inútil, o Conse-lho da República não tem razão de ser e suaexistência na Carta parece se dever unica-mente ao fato de que a mesma foi projetadapara ser parlamentarista, quando, por in-junções políticas, acabamos permanecendono regime presidencial. O deslocamento deambos os institutos do plano prático da vida

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política se torna mais claro quando se per-cebe que, dezessete anos depois, nenhumdos dois Conselhos jamais se reuniu, sendoas cerimônias de posse dos conselheirossomente rituais de consagração, pelo Esta-do, de personalidades eminentes da socie-dade civil, como o falecido Evandro Lins eSilva, figura egrégia, mas provecta, nomea-do aos noventa anos de idade12.

Conclusão

A despeito de sua origem antidemocrá-tica, a idéia do Conselho de Estado indubi-tavelmente oferece hoje atrativos. Como tra-dição, tem bases inegáveis em nosso passa-do, não só histórico como ideológico. A suanão adoção pela República pode ser expli-cada, por outro lado, pelo postulado de quetodo o poder deve caber ao presidente daRepública. No entanto, o presidencialismobrasileiro, em tempos de democracia dura-doura, parece caminhar para uma espéciede regime no qual o Presidente da Repúbli-ca deve necessariamente partilhar parte deseu poder com o Parlamento, como se tempercebido pelo consociativismo que marcoua presidência Fernando Henrique Cardosoe que tenta ser repetido por Luís Inácio Lulada Silva. Se isso não ocorreu anteriormente,devemos creditar tal fato à escassíssimachance que tivemos de um governo demo-crático estável. Hoje, em que as aventurasgolpistas parecem não encontrar campo fér-til para ação, a consolidação do regime de-mocrático nos leva a crer que enfim nossasinstituições políticas encontram condiçõesde se desenvolver e de dispensar a crençade que apenas um “homem forte” lograrános conduzir ao caminho do desenvolvi-mento.

Por outro lado, a persistência históricada idéia de conselho político e de adoção dosistema parlamentar indica não ser de todoimprovável a adoção, a médio prazo, depoisde reformas políticas que disciplinem o sis-tema partidário, de um regime misto em nos-so país, de que é exemplo a Constituição fran-

cesa de 1958 ou a portuguesa de 1974. Numcontexto como esse, torna-se plenamenteviável um órgão como o Conselho de Esta-do, que auxilie o Presidente da República,enquanto chefe do Estado (e não do gover-no), a tomar as providências cabíveis para adefesa permanente das instituições demo-cráticas; que reúna não somente os políti-cos em evidência no momento, mas mem-bros representativos de entidades da socie-dade civil. Uma adequada divisão do poderentre chefe de Estado e chefe de Governonos ajudaria a distinguir aqueles que fos-sem os interesses imediatos e os interessespermanentes do país. E, nessa hipótese, semdúvida, o resgate da idéia, alicerçada na tra-dição, de um Conselho de Estado auxilia-dor do Chefe de Estado, no exercício de umafunção moderadora, poderia ser de grandeutilidade.

Notas1 Outra razão que chocava os constituintes era

a de que o decreto que instituíra o Conselho nãofizera previsão de pagamento de vencimentos aosconselheiros, o que, para Antônio Carlos (apudASSUF, 1960, p. 65), “é sempre gravoso, mormen-te neste país, onde abandonar cada um a sua casa,é condená-la à ruína infalível”.

2 A única exceção era a demissão e nomeaçãode ministros, que, em razão da doutrina de Cons-tant consagrada pela Carta de 1824, deixara depertencer ao elenco de atribuições do poder execu-tivo.

3Assim, o conselho de Estado, “… mal-com-posto e mal visto, fora, desde o alvorecer até o cre-púsculo do reinado de D. Pedro I, uma corporaçãooligárquica, rival dos gabinetes ministeriais, a cons-pirar contra eles, quando não se amoldavam àssuas conveniências políticas e interesses partidári-os. Em contato imediato com o monarca – que do-minava pela lisonja e pela aparente submissão aosseus caprichos – se constituiria um obstáculo insu-perável às conquistas da opinião livre” (LIRA, 1979,p. 124).

4 Com efeito, “embora não fosse legalmente obri-gatória a consulta ao Conselho Pleno, D. Pedro IIraramente deixava de fazê-la nos casos em que a leirecomendava e, de modo geral, seguia em suas de-cisões a opinião da maioria. (...) Todas as dozedissoluções da Câmara havidas durante o Segun-

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do Reinado após o funcionamento do Conselho fo-ram nele discutidas. Em dois casos houve empatena votação. Dos dez restantes, o imperador seguiuo voto da maioria em sete e divergiu em apenastrês. Destes, em apenas dois a maioria tinha sidoampla (...). Não seria difícil apontar outros exem-plos de problemas em que a opinião dos conselhei-ros servia de guia para a ação. A seriedade comque o Imperador a ouvia ficava patente no fato deque ele próprio fazia um resumo escrito do quecada um dizia” (CARVALHO, 1996, p. 330).

5 Daí por que Oliveira Torres (1957, p. 157) dirá,ainda que confundindo, em parte, percepção comrealidade, que, “se o segundo reinado surge diantede nós como uma unidade política assinalada poruma coerência e uma segurança de vistas sempre àaltura dos acontecimentos, a razão disso estará,principalmente, na atuação (…) do Conselho deEstado”.

6 Eram os maiorais de dez, a que se refere OliveiraViana (1974, p. 335), entusiástico: “Estes homensexcepcionais – verdadeiras vocações de homenspúblicos – não deviam nada ao seu povo, à suacultura política, cujo privatismo não lhes podiafornecer nenhuma contribuição útil, nem explicar asuperioridade de sua natureza (...) Esses homenssurgiram primeiro – por força da sua própria per-sonalidade original, tanto que conseguiram liber-tar-se da pressão abastardante do meio social, emque nasceram e viviam; segundo – pelo fato docarisma imperial, da altitude da consciência cívicado seu aplicador, dos meios de seleção que lhespermitiram realizar a fixação deles, de modo vita-lício, ao serviço do país”.

7 Como nota Salles (1996, p. 141), “a históriapolítica do Segundo Reinado é a história da cres-cente preponderância dos valores públicos sobre osprivados até o descolamento entre os dois (na abo-lição) e a conseqüente perda de sustentação socialdo Estado imperial (na proclamação da Repúbli-ca)”.

8 Daí por que Nabuco (apud OURO PRETO,1978, p. 441) diz não crer numa República popu-lar: “Ao orador sobra a consciência de que está como povo defendendo a monarquia porque não há narepública lugar para os analfabetos, para os pe-quenos, para os pobres. Neste sentido, o PartidoRepublicano é tanto um partido de classe como osdois partidos monárquicos”.

9 E se a Coroa acabou por ceder diante de umgolpe militar, em 1889, ela “fracassou, então, nãopela ineficácia, mas, pelo contrário, por ter promo-vido ou facilitado ação contrária a grupos domi-nantes, sem ao mesmo tempo construir uma basede poder que substituísse ou equilibrasse a dosdonos de terra. (...) Ao invés, então, de ver-se legiti-mado pela atuação reformista, pela eficácia emsolucionar problemas, o sistema imperial perdeu a

legitimidade que conquistara. É que as principaisreformas que promovera atendiam a interessesmajoritários da população que não podia repre-sentar-se politicamente. (...) Como (...) a cidadaniaera reduzida (...), a representação política se faziano vazio, sem alterar a composição do poder polí-tico. A reestruturação do poder sob a Repúblicadeu-se num sentido puramente liberal: representa-vam-se os que tinham poder real para representar-se, tornando o poder mais legítimo mas ao mesmotempo mais oligárquico” (CARVALHO, 1996, p.297).

10 Como afirma Hambloch (1981, p. 31), “o nas-cimento precipitado da república brasileira, resul-tante do golpe de estado militar de 1889, perverteue eventualmente enfraqueceu o crescimento do go-verno representativo, o qual, quanto mais tinha assuas virtudes glorificadas nas teorias republicanas,tanto mais decaía nas práticas republicanas”.

11 Sérgio Buarque (1956, p. 258) aborda o temanesse mesmo sentido: “O trágico da situação estájustamente em que o quadro formado pela monar-quia ainda guarda seu prestígio, tendo perdido arazão de ser (...) O Estado brasileiro preserva comorelíquias respeitáveis algumas das formas exterio-res do sistema tradicional, depois de desaparecidaa base que as assentava. (…) O Estado, entre nós,não precisa e não deve ser despótico (...), mas pre-cisa de pujança e compostura, de grandeza e solici-tude; ao mesmo tempo, se quiser adquirir algumaforça e também essa respeitabilidade (...) Mas éindispensável que as peças de seu mecanismo fun-cionem com certa harmonia e garbo. O Império bra-sileiro realizou isso em grande parte. A auréola queainda hoje o cinge, apesar de tudo (...), resulta qua-se exclusivamente do fato de ter encarnado umpouco esse ideal”.

12 A título de curiosidade, merece ser feita men-ção a uma proposta monarquista de Conselho deEstado. Esta foi elaborada pelo Movimento Parla-mentarista Monárquico, capitaneado pelo Deputa-do Cunha Bueno, durante a campanha do plebisci-to de 1993. O Conselho estava previsto no projetoconstitucional, em seus artigo 41, 42 e 43. Órgão deconsulta do Imperador, esse conselho de 15 mem-bros reunir-se-ia por determinação daquele ou damaioria de seus membros, que seriam o Presidentedo Conselho de Ministros, os Presidentes e os Líde-res da Maioria e da Minoria das duas Casas Legis-lativas, sete representantes de instituições interme-diárias, representativas da sociedade civil, e o prín-cipe herdeiro do trono, este sem direito a voto. De-veria ser ouvido nos casos de dissolução da Câma-ra dos Deputados, decretação de intervençãofederal, estado de defesa e estado de sítio, questõesrelevantes para a estabilidade das instituições de-mocráticas, declaração de guerra ou celebração depaz e negociações com Estados estrangeiros. Esta

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acompanhadas dos respectivos votos de graça dacâmara temporária e de diferentes informações eesclarecimentos sobre todas as sessões extraordi-nárias, adiamentos, dissoluções, sessões secretas efusões com um quadro das épocas e motivos quederam lugar à reunião das duas câmaras e compe-tente histórico, coligidas na secretaria da Câmarados Deputados. Prefácio de Pedro Calmon. Rio deJaneiro: Itatiaia, 1993.

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1. O controle de constitucionalidadeA idéia de controle de constitucionali-

dade está ligada à de Constituições escritase rígidas (HORTA, 1999, p. 131). É, portan-to, decorrência do constitucionalismo mo-derno.

Desde o momento em que se deu à Cons-tituição o status de lei fundamental de umEstado ou Nação, passou-se a distinguir alei constitucional da lei infraconstitucional.

Machado Horta (1999, p. 120) escreveque, para a maioria dos autores, a elabora-ção doutrinária do conceito de lei funda-mental ocorreu com os filósofos da EscolaClássica do Direito Natural, preocupadosem limitar o poder do Soberano, a partir daidéia de direitos inatos da pessoa humana,que, por terem essa qualidade, deveriam serrespeitados.

A obra de elucidação do conceito de leifundamental pode ser atribuída a Vattel, fi-lósofo suíço, que conferiu não só a superio-ridade da lei fundamental em relação àsoutras leis, mas também um caráter de mai-or permanência. (HORTA, 1999).

Eis o raciocínio de Vattel (apudBITTENCOURT, 1997, p. 65-66):

“O povo pode conferir o exercíciodo Poder Legislativo a um monarca

Do controle de constitucionalidade dos atosjurisdicionais

Andreo Aleksandro Nobre Marques

Andreo Aleksandro Nobre Marques é Juizde Direito no Estado do Rio Grande do Norte,Especialista em Direito Processual Civil e Pe-nal pela Universidade Potiguar, Mestrando emDireito Constitucional pela Universidade Fe-deral do Rio Grande do Norte, Professor deDireito Processual Penal e Processual Civil daEscola Superior da Magistratura do Rio Gran-de do Norte, Professor de Direito ProcessualPenal da Fundação Escola Superior do Ministé-rio Público do Rio Grande do Norte, Professorde Processo Penal da Universidade Federal doRio Grande do Norte, em estágio-docência.

Sumário1. O controle de constitucionalidade. 2. Coi-

sa julgada e ofensa à Constituição. 3. Conclu-sões.

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ou a uma assembléia, ou a ambos con-juntamente, delegando-lhes a faculda-de de elaborar novas leis ou revogaras anteriores. Indaga-se, todavia, seessa faculdade se estende até às pró-prias leis fundamentais, e se podemmodificar a Constituição do Estado.Os princípios que temos exposto atéaqui nos conduzem certamente a de-cidir que a autoridade de tais legisla-dores não tem essa extensão, deven-do as leis fundamentais ser sagradaspara êles, a menos que a nação lhestenha outorgado expressamente pode-res para modificá-las... Se é da própriaConstituição que derivam os podêresdos legisladores, como podem êstesmodificá-la sem alterar o fundamentode sua autoridade?”

Esse teria sido o ponto de partida para odesenvolvimento dos conceitos caracterís-ticos do constitucionalismo moderno, quesão as noções de poder constituinte e pode-res constituídos, leis constitucionais e leisordinárias, Constituição formal e Constitui-ção material, Constituições escritas e rígi-das, entre outros, e que resultam na idéia desuperioridade da Constituição. (HORTA,1999, p. 121).

Esse trabalho busca justamente demons-trar, a partir da discussão acerca do contro-le de constitucionalidade das leis, que a coi-sa julgada, como qualidade que se agrega àdecisão de um dos poderes constituídos doEstado, se inconstitucional, via de regra, nãopode prevalecer sobre a Constituição, deven-do ser considerada privada de quaisquerefeitos.

2. Coisa julgada e ofensa à Constituição

A evolução do controle de constitucio-nalidade das leis e dos atos normativosmostra que os Poderes Executivo e Legisla-tivo devem pautar sua atuação em confor-midade com os mandamentos constitucio-nais, cabendo a um órgão supremo atuarcomo Corte Constitucional, a fim de contro-

lar os atos daqueles poderes, podendo esteórgão integrar ou não o quadro do PoderJudiciário.

Mas quem controla a constitucionalida-de das decisões proferidas pelos órgãos doPoder Judiciário? Em um sistema como onosso, os próprios órgãos do Poder Judiciá-rio que estejam superpostos ao que proferiua decisão podem, pela via recursal, isto é, seprovocados pelas partes interessadas, refor-mar o julgado que afrontar a Lei Maior.

Ademais, mesmo após o trânsito em jul-gado da decisão, na jurisdição cível, admi-te-se o ingresso de ação rescisória, no prazode 2 (dois) anos, a fim desconstituir o julga-do (art. 495 do Código de Processo Civil).

Agora, se já tiver havido o decurso doprazo para ingresso com a ação rescisória,caracterizando o que se convencionou cha-mar de “coisa soberanamente julgada”, oque poderá acontecer em caso de sentençaou acórdão que tenha ofendido a Constitui-ção? Será que tal decisão não poderá maisser revista?

A resposta a essa indagação demandaum esclarecimento acerca dos dogmas queacompanharam a ascensão do Estado Libe-ral.

Não se pode analisar o surgimento doEstado Liberal desvinculado das razões his-tóricas que a ele se encontram atreladas.

É preciso ressaltar que a classe que esta-va ascendendo ao poder na França descon-fiava extremamente do poder então domi-nante, e em especial do Poder Judiciário quefuncionava durante o regime absolutista, jáque submisso à vontade do monarca.

Assim, a burguesia, em razão dessa des-confiança, precisava se cercar de todos oscuidados que viabilizariam sua manuten-ção no poder. Isso levou ao estabelecimentode Constituições de formas escritas e rígi-das, sendo inteiramente conveniente limi-tar o poder judicial, e fez isso justamente apartir da criação de diversos dogmas.

Entre os dogmas criados estão, por exem-plo: o de que só é jurídico aquilo que for pos-to pelo Estado, por meio do Poder Legislati-

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vo; o de que a lei é clara, certa, portanto,unívoca, devendo o juiz limitar-se a ser “aboca que pronuncia as palavras da lei”; e ode que o ordenamento jurídico é completo,não havendo necessidade de o magistradoexercer atividade criativa do Direito, atémesmo porque esta é atividade particulardo legislador.

Acerca do problema da completude doordenamento jurídico, que o positivismo for-mal tem como dogma, acentua PauloBonavides (2004, p. 134-135):

“Com efeito, desde que o positivis-mo formal nega a lacunosidade doordenamento jurídico, todos os pro-blemas que não encontrarem uma so-lução lógica contida no sistema sãocomodamente afastados como pseu-doproblemas, acarretando assim, so-bretudo na esfera constitucional, umalheamento da realidade, um verda-deiro abismo de contradições entre origor dedutivista da Constituição for-mal e as exigências vitais e inarredá-veis da Constituição real, num qua-dro tanto mais dramático quanto maislimitadas são as possibilidades dei-xadas ao intérprete constitucional, aquem falta o recurso às evasivas civi-listas, que têm consentido, sem que-bra da metodologia de subsunção,considerar as lacunas jurídicas umaexceção e buscar-lhe o preenchimen-to sucessivamente na analogia, nosvalores e fins pretendidos pelo legis-lador, nas representações valorativasda comunidade, e, como se tudo issoainda não bastasse, até mesmo emconsiderações emanadas de valora-ções meramente pessoais ou subjeti-vas.”

A imutabilidade dos efeitos da senten-ça, isto é, a coisa julgada material, a coisajulgada como algo sagrado, mítico, intangí-vel, não passa de mais um dogma que urgeser relativizado. É certo que essa relativiza-ção há de ser bastante amena, branda, umavez que a coisa julgada exerce uma função

importantíssima na vida dos homens, emfunção da segurança jurídica que é essenci-al à vida em sociedade.

Ora, a própria previsão na legislaçãoordinária da ação rescisória, da revisão cri-minal e do habeas corpus demonstra que acoisa julgada material não é um valor jurí-dico absoluto e que pode ser ultrapassadaem determinadas circunstâncias.

Há, contudo, uma situação especialíssi-ma que não pode ser desdenhada. Na ver-dade, essa situação é tão especial que, mes-mo no âmbito da jurisdição civil, em que nãoestá em jogo o direito fundamental do cida-dão à liberdade, é preciso que seja superadoo entendimento, dada a magnitude da cir-cunstância, de que o prazo fatal para a des-constituição de um julgado é o da rescisó-ria.

Para que fique bem claro, é cediço que noâmbito da jurisdição penal basta que, mui-tas vezes, a atividade jurisdicional tenhasido ilegal, ou seja, apenas indiretamenteinconstitucional, pois é a Constituição quedetermina o respeito às leis (princípio dalegalidade), para que a ofensa ao direito deir e vir seja debelada a qualquer tempo, in-clusive de ofício pelo órgão jurisdicional.

A situação especial que se está aqui refe-rindo é a dos atos jurisdicionais propria-mente ditos, ou seja, da sentença ou acór-dão que, julgando os casos concretos sub-metidos à apreciação do órgão jurisdicio-nal, declaram a inconstitucionalidade de leiou de ato normativo, quando deveriam de-clará-los constitucionais, ou declaram cons-titucionais, quando deveriam dizê-los in-constitucionais. Em poucas palavras, dasdecisões jurisdicionais definitivas que ofen-dem a Constituição.

Para essa situação excepcional, não épossível vedar a desconstituição da coisajulgada somente porque houve coisa julga-da material ou porque já decorreu o prazopara o ingresso da ação rescisória.

É preciso relembrar a diferenciação en-tre poder constituinte e poderes constituí-dos. Ora, se o próprio Poder Legislativo, na

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qualidade de poder constituído, órgão, emtese, mais representativo do titular da sobe-rania, isto é, do povo, deve respeitar a Cons-tituição, sob pena de o órgão competenteconstitucionalmente revisar seus atos, porque será que as decisões inconstitucionaisdo Poder Judiciário também não podem serrevisadas, a qualquer tempo, se inconstitu-cionais? Está o Poder Judiciário acima daConstituição?

Já respondendo às indagações, todos ospoderes constituídos situam-se debaixo daConstituição, inclusive o Poder Judiciário.Impende que o dogma da coisa julgada sedesvaneça sem maiores discussões quandoo assunto é um julgado inconstitucional.

Constitui grave ofensa à Constituiçãopermitir que uma decisão inconstitucionalpossa surtir efeitos apenas porque houve otrânsito em julgado material do julgado, etranscorreu o prazo para o ingresso com aação rescisória. Isso caracteriza mesmo umasituação de extrema injustiça que, como tal,não pode ser tolerada, ressaltando-se que aprópria CRF estatuiu constituir um dos ob-jetivos a ser perseguidos pela República Fe-derativa do Brasil a construção de uma so-ciedade livre, justa e solidária. Acrescente-se também que um dos escopos da jurisdi-ção, o mais importante sem dúvida, é o depacificação social com justiça.

É preciso que se adote um posicionamen-to firme e aberto para a questão, a fim de nãose aceitar a permanência de uma decisãoinconstitucional sem que haja remédio jurí-dico para desconstituir o julgado injusto. Éque a própria segurança jurídica almejadacom a coisa julgada não será alcançada emrazão da forte repulsa social a uma decisãoque, por inconstitucional, deverá ser tidacomo injusta, arbitrária, um verdadeiro “es-telionato constitucional”.

Pela sabedoria ímpar manifestada, me-rece ser feita aqui a transcrição das pala-vras de José Augusto Delgado (2003, p. 56):

“(...) não posso conceber o reconheci-mento de força absoluta da coisa jul-gada quando ela atenta contra a mo-

ralidade, contra a legalidade, contraos princípios maiores da ConstituiçãoFederal e contra a realidade impostapela natureza. Não posso aceitar, emsã consciência, que, em nome da se-gurança jurídica, a sentença viole aConstituição Federal, seja veículo deinjustiça, desmorone ilegalmente pa-trimônios, obrigue o Estado a pagarindenizações indevidas, finalmente,que desconheça que o branco é bran-co e que a vida não pode ser conside-rada morte, nem vice-versa.”

O próprio raciocínio do valor absolutodo dogma da coisa julgada, que teria lastroconstitucional, como é sustentado aberta-mente por muitos, decorre da interpretaçãodesavisada ou desatenciosa do incisoXXXVI do art. 5o da CRF.

Como esclarece José Augusto Delgado(2003, p. 35), apoiado em argumentação de-senvolvida por Paulo Roberto de OliveiraLima, o que a Constituição procurou asse-gurar foi apenas que a lei não prejudicassea coisa julgada, ou seja, que o ato posteriorde um dos poderes constituídos, no caso doPoder Legislativo, fosse capaz de modificarou afrontar a norma jurídica anterior edita-da pelo Poder Judiciário para o caso concre-to. Em nenhum momento quis a Constitui-ção proteger uma decisão jurisdicional –uma decisão posterior emanada de um dospoderes constituídos – em detrimento daprópria Constituição, fundamento de todosos poderes constituídos. Apenas estabele-ceu um sucedâneo do princípio da irretroa-tividade das leis, considerando a decisãojudicial como a lei do caso concreto.

Cândido Rangel Dinamarco (apud DAN-TAS, 2003, p. 205), ao falar sobre a necessi-dade de relativizar a coisa julgada material,contribui para a argumentação aqui desen-volvida, senão vejamos:

“(...) O objetivo do presente estudoé demonstrar que o valor da seguran-ça das relações jurídicas não é abso-luto no sistema, nem o é portanto agarantia da coisa julgada, porque

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ambos devem conviver com outro va-lor de primeiríssima grandeza, que éo da justiça das decisões judiciárias, cons-titucionalmente prometido mediantea garantia do acesso à justiça (CF, art.5o, inc. XXXVI)”.

Note-se que, em face justamente da preo-cupação com o valor segurança jurídica, etambém com a uniformidade que as deci-sões do Poder Judiciário devem buscar al-cançar, principalmente em matéria consti-tucional, veio a EC no 45/04 prescrever aprodução de eficácia contra todos e efeitovinculante para os demais órgãos do PoderJudiciário, e da administração pública, di-reta e indireta, da União, Estados e Municí-pios, das decisões definitivas de mérito pro-feridas pelo Supremo Tribunal Federal, nasações diretas de inconstitucionalidade e nasações declaratórias de constitucionalidade,asseverando-se cada vez mais que é intole-rável que os órgãos judiciários, nos casosconcretos, fixem posicionamento constitu-cional diverso do órgão supremo de guardada Constituição.

A existência de decisões contrárias aoposicionamento do Supremo Tribunal Fe-deral em matéria constitucional, órgão in-vestido da magnânima função de guardada Constituição, contribui muito mais comofator desencadeador de instabilidade soci-al e jurídica do que a desconstituição de umato de um dos poderes constituídos queofenda a Lei Maior.

Com base nessa argumentação, é de seconsiderar extremamente tímidos, data ma-xima venia, os posicionamentos no sentidode que a desconstituição do julgado, a qual-quer tempo, somente pode ocorrer nas hipó-teses de ausência de quaisquer das condi-ções da ação ou dos pressupostos de exis-tência da relação processual, especialmen-te quando ausente a possibilidade jurídicado pedido, o que ocorreria com as sentençasque acolhem pedidos inconstitucionais eque, por isso, seriam inconstitucionais.

Não se discute que, nesses casos, inexis-tindo a relação processual, também inexiste

o julgado, podendo a parte prejudicada seinsurgir contra os efeitos da decisão porvariadas formas, entre as quais, segundoPontes de Miranda (apud WAMBIER, 2003,p. 33), ingressando com nova ação sobre omesmo objeto, já que não houve coisa julga-da, ou resistindo à execução, de todas asformas possíveis, ou ainda mediante exce-ção, isto é, alegação incidente em qualqueroutro processo acerca da inexistência dacoisa julgada.

Ocorre que essa visão é muito estreitapara a dimensão do vício da inconstitucio-nalidade material, devendo ser possibilita-do que o interessado se insurja contra o jul-gado inconstitucional, qualquer que seja ele,inclusive quando há violação direta da nor-ma ou preceito contido na Constituição(THEODORO JÚNIOR, 2003, p. 94), inde-pendentemente das peias temporais relati-vas à ação rescisória.

Traz em socorro dessa concepção a liçãode José Augusto Delgado (2003, p. 45):

“A injustiça, a imoralidade, o ata-que à Constituição, a transformaçãoda realidade das coisas quando pre-sentes na sentença viciam a vontadejurisdicional de modo absoluto, peloque, em época alguma, ela transita emjulgado”.

Na ordem de idéias do que vem sendosustentado, observe-se, ainda, a seguinteponderação de Humberto Theodoro Júnior(2003, p. 109):

“Não há, como já se afirmou, inse-gurança maior, dentro do Estado De-mocrático de Direito, do que a instabi-lidade da ordem constitucional, e nãohá injustiça mais evidente do que aprevalência de um ato reconhecida-mente ofensivo aos preceitos funda-mentais da Constituição”.

Ademais, se não é possível concebercomo inexistente uma lei ou ato normativoinconstitucional dos Poderes Legislativo eExecutivo, mas apenas como maculado denulidade absoluta, já que ingressou no mun-do jurídico, igualmente, não é possível sus-

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tentar a inexistência da sentença ou do acór-dão, proferido por um dos órgãos que aConstituição dotou de jurisdição, somenteporque adotou interpretação contrária àConstituição ao decidir o caso concreto.

Nesse sentido, defende Barroso (2001, p.83) que uma lei contrária à Constituição, sejapor vício formal, seja por vício material, nãoé inexistente, mas inválida, por ingressar nomundo jurídico, pontificando que: “normainconstitucional é norma inválida, por des-conformidade com regramento superior, pordesatender os requisitos impostos pela nor-ma maior. É nula de pleno direito”.

A sentença que, ao julgar o mérito, con-trariar a Constituição não poderá ser enca-rada como um ato processual inexistente,salvo se não tiver sido prolatada por órgãodotado de jurisdição, ou se faltar qualquerdos outros elementos de existência da rela-ção processual. Tal sentença, na verdade,será inválida, absolutamente nula, por nãoestar em sintonia com a Constituição, de for-ma que estará apta a gerar efeitos até queseja desconstituída.

É que da invalidade não surge necessa-riamente a ineficácia do ato jurídico, sendopossível um ato jurídico válido e ineficaz,da mesma forma que é possível um ato in-válido e eficaz, isto é, que produza efeitosou conseqüências jurídicas (MIRANDA,2000, p. 167).

Traz-se a lume novamente o pensamen-to de Barroso (2001, p. 83), que sustenta quea lei que ofende a Constituição não só in-gressa no mundo jurídico, como, muitas ve-zes, é aplicada efetivamente, regendo inú-meras situações que deverão ser reordena-das. O mencionado autor, então, exemplifi-ca uma hipótese de ato inválido, bem assimde sua aptidão para produzir efeitos jurídi-cos.

Os atos jurídicos inválidos poderão serretirados do mundo jurídico, a partir da de-cretação de sua invalidade. O direito esta-belece regras jurídicas especiais para a de-cretação da invalidade dos atos jurídicos.Porém, sem uma decisão que reconheça a

invalidade do ato jurídico, de natureza cons-titutiva negativa, permanecerão os atos in-válidos no mundo do direito (MIRANDA,2000, p. 167).

Em consonância com a argumentaçãoaqui desenvolvida, isto é, de que a sentençaque ofende a Constituição é inválida e nãoinexistente, está a lição de Paulo Otero (apudTHEODORO JÚNIOR, 2003, p. 89-90), comose pode observar da seguinte passagem:

“(...) os actos jurisdicionais, isto é, quesejam praticados por um juiz no exer-cício das suas funções, obedecendoaos requisitos formais e processuaismínimos, que violem direitos absolu-tos ou os demais direitos fundamen-tais e a essência dos princípios inte-grantes da Constituição material nãosão actos inexistentes, meras aparên-cias, antes se assumem como verda-deiras decisões judiciais inconstituci-onais”.

Porém, o fato de não poder tratá-la comoinexistente não autoriza que se aceite a imu-tabilidade de seus efeitos, derivada da pre-tensa ocorrência da coisa julgada material.

O que se propugna é que, apesar de serum ato viciado por nulidade absoluta, ecomo tal apto a produzir efeitos até que ve-nha a ser eventualmente rescindido, postoque apenas inválido, como a invalidade re-fere-se à ofensa à Lei das leis, poderá a qual-quer tempo ser revisto e desconstituído pelopróprio Poder Judiciário. Assim, não só asdecisões definitivas de mérito que tenhamsido prolatadas em processos inexistentes,pela falta de quaisquer das condições daação, ou dos pressupostos processuais deexistência, não ficam cobertas pelo pálio dacoisa julgada. Também não se agregará aqualidade jurídica da imutabilidade dosefeitos da decisão aos comandos ou dispo-sitivos das decisões definitivas que ofendama Constituição.

Entre os instrumentos jurídicos aptos àdeflagração do controle de constitucionali-dade dos atos jurisdicionais, não mais re-formáveis pelas vias recursais ou através de

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ação rescisória, podem ser citados a querelanullitatis e os embargos à execução, estesúltimos de forma expressa em nosso orde-namento, além da alegação incidental, istoé, aquela que é formulada no curso de qual-quer processo.

A querela nullitatis nada mais é que umaação para declaração da nulidade insaná-vel de uma sentença ou acórdão não maispassível de recurso. Pontes de Miranda, porsua vez, defendia a utilização dessa antigaação para reconhecimento da nulidade ab-soluta ou da inexistência de um julgado,mesmo não havendo disposição legal ex-pressa nesse sentido. Pode-se dizer que aquerela nullitatis é uma espécie de ação resci-sória (posto que visa à desconstituição deum julgado) que não se sujeita a prazo de-cadencial.

Falando sobre a sobrevivência da quere-la nullitatis no processo civil italiano, paraos casos de nulidades insanáveis, mais es-pecificamente para julgados visceralmentenulos, asseverou Calamandrei (apud THE-ODORO JÚNIOR, 2003, p. 110) que “(...) lasentenza è inidonea materialmente, si dire-bbe quasi fisicamente, a passare in giudica-to”, e também que “(...) il decorso del termi-ne per esperimentare i mezzi di impugnazi-one non può avere l’effeto di sanare la nulli-tà e di precludere l’esercizio della ordinariaazione dichiarativa della nullità insanabi-le”.

Quanto aos embargos à execução, prevêo parágrafo único do art. 741 do Código deProcesso Civil, com a redação dada pela MP2.180-35/2001, como hipótese de inexigibi-lidade do título judicial quando este tenhase “fundado em lei ou ato normativos de-clarados inconstitucionais pelo SupremoTribunal Federal ou em aplicação ou inter-pretação tidas por incompatíveis com aConstituição”.

Observa-se, portanto, a exigência de queo Supremo Tribunal Federal tenha se mani-festado pela constitucionalidade ou não dalei ou ato normativo no qual se baseou adecisão que deu origem ao título executivo,

ou ainda que tenha se manifestado favora-velmente ou não à compatibilidade com aConstituição da aplicação ou interpretaçãoempregada na decisão que deu origem aotítulo executivo, a fim de justificar o acolhi-mento dos embargos, quer a apreciação doSupremo Tribunal Federal tenha se dado emcontrole direto, por via de ação, quer em con-trole difuso, por via de exceção, já que nãofoi feita qualquer diferença, ainda mais ago-ra com a possibilidade de aprovação de sú-mula vinculante em matéria constitucional,no controle difuso.

Não há como se concordar, nesse ponto,com a opinião de Humberto Theodoro Júni-or e Juliana Cordeiro de Faria (2003, p. 99),que dizem ser prescindível o prévio pronun-ciamento do Supremo Tribunal Federal. Jáse assentou que a mitigação da coisa julga-da deve ser a mais branda possível, pois ovalor da segurança jurídica, isto é, da esta-bilidade dos direitos, fundamento políticoda coisa julgada, deve ser tutelado em bene-fício da harmonia social. Não é um valorpara ser desprezado ou para ser demasia-damente relativizado.

Realmente, não haveria tranqüilidadesocial se todo juiz pudesse rescindir umasentença, de acordo com seu particular en-tendimento acerca da constitucionalidadeou não das leis ou atos normativos. A des-constituição de uma sentença, após seu trân-sito em julgado, com base em sua inconsti-tucionalidade, deve estar orientada peloentendimento sufragado pelo guardião daConstituição brasileira, o Supremo TribunalFederal.

Aspecto relevante que também merece sertratado diz respeito aos efeitos produzidospela decisão que, reconhecendo a inconsti-tucionalidade da decisão anterior, desfaz oudesconstitui a coisa julgada. Será que a de-cisão deve projetar seus efeitos apenas parao futuro, ou deve projetá-los para o passa-do?

A bem da segurança jurídica, caberá aomagistrado, diante do caso concreto, esta-belecer desde quando ou a partir de quando

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surtirá efeito a decisão que desconstitui acoisa julgada inconstitucional, isto é, esta-belecer se a decisão produzirá efeitos ape-nas para o futuro (ex nunc) ou se projetará osefeitos para o passado (ex tunc).

Assim, apesar de ser possível, conside-rando-se a nulidade absoluta da decisão queofende a Constituição, que a nova sentençaprojete seus efeitos para o passado, isto é,tentando desfazer os efeitos que foram pro-duzidos em atenção à sentença viciada,pode ocorrer de não ser aconselhável, naprática, a produção de efeitos ex tunc, o queconstituiria solução consentânea com oprincípio da segurança jurídica.

3. Conclusões

Extraem-se, da análise desenvolvida,então, as seguintes conclusões:

1) a imutabilidade dos efeitos da senten-ça, isto é, a coisa julgada material, a coisajulgada como algo sagrado, mítico, absolu-to e intangível, não passa de mais um dog-ma que urge ser relativizado. Porém, a rela-tivização da coisa julgada há de ser bastan-te branda, uma vez que a coisa julgada bus-ca alcançar a segurança jurídica, valor es-sencial à vida em sociedade;

2) é possível o ingresso de ação rescisó-ria para combater a decisão judicial prola-tada em ofensa à Constituição;

3) todos os poderes constituídos estãodebaixo da Constituição, inclusive o PoderJudiciário. Impende que o dogma da coisajulgada se desvaneça sem maiores discus-sões quando estiver em discussão um julga-do inconstitucional;

4) constitui grave ofensa à Constituição,e, por conseqüência, situação de extremainjustiça, o se permitir que uma decisão in-constitucional possa surtir efeitos apenasporque houve o trânsito em julgado materi-al do julgado e transcorreu o prazo para oingresso com a ação rescisória;

5) quis a Constituição, com o dispositivoinserto no inc. XXXVI do art. 5o, apenas as-segurar que a lei não prejudicasse a coisa

julgada, ou seja, que o ato posterior de umdos poderes constituídos, no caso do PoderLegislativo, fosse capaz de modificar ouafrontar a norma jurídica anterior editadapelo Poder Judiciário para o caso concreto.Noutra banda, com base no preceito referi-do, em nenhum momento quis a Constitui-ção proteger uma decisão jurisdicional emdetrimento da própria Constituição, funda-mento de todos os poderes constituídos;

6) a existência de decisões contrárias aoposicionamento do Supremo Tribunal Fe-deral em matéria constitucional, órgão in-vestido da magnânima função de guardada Constituição, contribui muito mais comofator desencadeador de instabilidade soci-al e jurídica do que a desconstituição de umato de um dos poderes constituídos queofenda a Lei Maior;

7) não é possível conceber como inexis-tente uma lei ou ato normativo inconstituci-onal dos Poderes Legislativo e Executivo,mas apenas como maculado de nulidadeabsoluta, já que ingressou no mundo jurídi-co. Igualmente, não é possível sustentar ainexistência da sentença ou do acórdão, pro-ferido por um dos órgãos que a Constitui-ção dotou de jurisdição, somente porqueadotou interpretação contrária à Constitui-ção ao decidir o caso concreto, mas apenasdefender a nulidade absoluta (invalidade)dessa decisão, de forma que estará apta agerar efeitos até que seja desconstituída;

8) mesmo não sendo inexistente o julga-do que ofende a Constituição, não é possí-vel aceitar a imutabilidade de seus efeitos,derivada da pretensa ocorrência da coisajulgada material, pois tal julgado é macula-do por vício insanável, podendo, a qualquertempo, ser revisto e desconstituído pelo pró-prio Poder Judiciário;

9) para a deflagração do controle de cons-titucionalidade dos atos jurisdicionais, nãomais reformáveis pelas vias recursais ouatravés de ação rescisória, dispõe-se da que-rela nullitatis, dos embargos à execução, alémda alegação incidental, no curso de qual-quer processo.

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10) a querela nullitatis nada mais é queuma ação para declaração da nulidade in-sanável de uma sentença ou acórdão nãomais passível de recurso e que não se sujei-ta a prazo decadencial;

11) os embargos à execução, de acordocom o parágrafo único do art. 741 do Códi-go de Processo Civil, podem ser manejadosdiante de inexigibilidade do título judicial,quando este tenha se “fundado em lei ouato normativos declarados inconstitucio-nais pelo Supremo Tribunal Federal ou emaplicação ou interpretação tidas por incom-patíveis com a Constituição”;

12) exige-se que o Supremo Tribunal Fe-deral tenha se manifestado pela constituci-onalidade ou não da lei ou ato normativono qual se baseou a decisão que deu origemao título executivo, ou ainda que tenha semanifestado favoravelmente ou não à com-patibilidade com a Constituição da aplicaçãoou interpretação empregada na decisão quedeu origem ao título executivo, a fim de justi-ficar o acolhimento dos embargos, quer aapreciação do Supremo Tribunal Federaltenha se dado em controle direto, por via deação, quer em controle difuso, por via deexceção;

13) a sentença que reconhecer a incons-titucionalidade de anterior decisão judicialestabelecerá se os efeitos da declaraçãodeverão ser projetados apenas para ofuturo ou se deverão ser projetados parao passado.

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Introdução

O presente recorte tem por objetivo, apartir de subsídios interdisciplinares, ana-lisar e demonstrar a possibilidade jurídicade desapropriação por interesse social dapropriedade rural onde ocorra depredaçãodas áreas de preservação permanente e de re-serva legal, espaços territoriais especialmen-te protegidos, cujos proprietários se recusema recompor as áreas destruídas, conforme de-terminam as leis definidoras das políticasagrícola, ambiental e de reforma agrária.

O problema centra-se no conteúdo dafunção social, ampliada expressamente pelaConstituição Federal de 1988, para agasa-lhar inerente e indubitavelmente a funçãoecológica da propriedade, inserida entre osdireitos e deveres individuais e coletivosfundamentais, entre os princípios da ordemeconômica, e na configuração do art.186,que, por conta de seu inciso II, absorve, emseu bojo, as normas sociais inseridas no art.225 sobre a proteção e defesa do meio ambi-ente, sendo certo que a Carta Política brasi-leira distingue a propriedade produtiva,insuscetível de desapropriação, da proprie-dade destrutiva das áreas de preservaçãopermanente e de reserva legal florestal.

A depredação das áreas de preservaçãopermanente e de reserva legal florestal dobioma Cerrado como causa de desapropriaçãoda propriedade rural por interesse social

Luiz Carlos Falconi e José Nicolau Heck

Luiz Carlos Falconi é Doutorando emCiências Ambientais pelo Programa de Pós-Graduação, Nível Doutorado, da Pró-Reitoriade Pós-Graduação e Pesquisa da UniversidadeFederal de Goiás.

José Nicolau Heck é Doutor, ProfessorTitular, UFG-CNPq/UCG.

SumárioIntrodução. 1. Da propriedade rural e sua

função socioambiental. 2. Da desapropriaçãoda propriedade destrutiva. Conclusão.

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O tema mostra-se interessante e atual,pois seu estudo deve colocar, necessaria-mente, de um lado, a finitude dos recursosambientais da flora e, por conseqüência, dafauna da região do Cerrado, inclusive noEstado de Goiás e Distrito Federal, e, de ou-tro, o crescimento geométrico do desmata-mento de novas áreas para implantação deprojetos pecuários e agrários, nos últimostrinta anos, atingindo até mesmo as áreasde preservação e conservação. Basta dizerque, de 1970 a 2000, os desmatamentos naregião do Cerrado em geral, no Estado deGoiás e no Distrito Federal, para esse fim,superou, e muito, a área desmatada em to-dos os tempos, desde o descobrimento doBrasil1.

Há de considerar-se ainda que, se nãohouver conservação e preservação nas pro-priedades privadas que representam maisde 90% do território rural brasileiro, a con-servação confinada puramente nas Unida-des de Conservação não prosperará, pois,notoriamente, é insuficiente em quantidadee em áreas para alcançar esse desiderato.Além do mais, é necessário relembrar quetodos são responsáveis pelo meio ambienteecologicamente equilibrado e, nessa pers-pectiva, tanto o proprietário como o possei-ro devem, como membros da sociedade, dara sua quota de contribuição proporcional,pois à propriedade cabe intrinsecamenteuma função social e ambiental. Tomando aconservação como um todo, jamais se pode-rá desprezar a manutenção das áreas depreservação permanente e de reserva legalflorestal interiorizadas nas propriedadesprivadas.

Considerado politicamente como frontei-ra agrícola, o Cerrado tem auxiliado a equi-librar a balança de pagamentos do País, fi-cando, no entanto, com um saldo ecológicodeficitário, pois, desde a década de setenta,recebe significativos impactos ambientais,incentivados, inclusive, por programas dogoverno (POLOCENTRO, PROCERRADO,PRODECER, investimentos do FCO, entreoutros), pelos progressos da ciência e da tec-

nologia, e, obviamente, pela capacidade deinvestimento dos empresários rurais emmáquinas, implementos e insumos, que re-sultam na contínua e crescente abertura denovas áreas – geralmente para monocultu-ras, como pastagens artificiais, soja, cana-de-açúcar, milho, etc –, com risco de redu-ção da diversidade ou extinção de espéciesda flora e da fauna2.

O tema reveste-se de importância paraas Ciências Ambientais em geral e para oDireito Agrário e Ambiental em particular,por se tratar a desapropriação de poderosoinstrumento de proteção do equilíbrio domeio ambiente, mediante a persecução doatendimento da função social da proprie-dade e, por extensão, da imanente funçãoecológica. Com efeito, pela desapropriação,substitui-se o proprietário inadimplentecontumaz por outro ou outros agricultoresque queiram dar à terra a sua verdadeirafunção socioambiental. Se a desapropriaçãofor intentada pelos outros entes federativosque não a União, ou mesmo por esta, na hi-pótese prevista no art. 2o, VII, da Lei no

4.132/62, ampliar-se-á o leque de alternati-vas viáveis para a recuperação ou restaura-ção da área degradada.

Em verdade, as sanções estabelecidas nalei de política nacional do meio ambiente(no 6.938/81) e no Código Florestal (Lei no

4.771/65) têm-se mostrado ineficazes, poisa realidade evidencia que, desde as secula-res Ordenações Philipinas, de 1603, e o Re-gimento do Pau-Brasil, de 12.12.1605, his-toricamente o público-alvo duvida da serie-dade de tais instrumentos legais e, assim,persiste promovendo a destruição das áre-as de preservação permanente e de reservaflorestal legal, ridicularizando a legislaçãodita protetora, como está acontecendo maisrecentemente com as frustradas tentativasde recomposição florestal estabelecidas pelalei de política agrícola (no 8.171/91), enfra-quecidas, do ponto de vista ambiental, pe-las alternativas mitigadoras e compensató-rias da Medida Provisória n o 2.166-67/2000,que, certamente, restarão descumpridas.

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A metodologia utilizada consistiu no le-vantamento de dados junto ao Instituto Bra-sileiro de Geografia e Estatística, em Goiás,à Superintendência Estadual do InstitutoBrasileiro do Meio Ambiente e dos Recur-sos Naturais Renováveis, à Superintendên-cia do Instituto Nacional de Colonização eReforma Agrária, à Agência Goiana do MeioAmbiente e à Secretaria de Planejamento eDesenvolvimento do Estado de Goiás, ementrevistas com técnicos em agronomia, ar-quitetura, veterinária, biologia, engenhariaflorestal, sociologia e em consulta à doutri-na especializada, por meio de livros, revis-tas e periódicos para apreensão de concei-tos, informações e constatações que enrique-cessem o trabalho e pudessem, enfim, em-basar as conclusões.

Utilizou-se o método histórico para le-vantamento da ocupação da região do Cer-rado e sua exploração econômica; o métodoestatístico para registro e sistematização dedados colhidos nos órgãos públicos; o mé-todo comparativo para confrontar as reali-dades da menor área (o Distrito Federal), damaior área (a região do Cerrado), e da quemais de perto interessa à tese, o Estado deGoiás, e, ainda, o método dedutivo e o in-dutivo para embasar as conclusões finais so-bre a propriedade destrutiva, no contexto dafunção socioambiental da propriedade e suaimportância para a sociedade, valorizando aintegração e a harmonização metodológica.

Justifica-se, pois, a limitação do tema nãosó quanto ao conteúdo dos princípios e re-gras sobre a ordem econômica e social am-biental constitucionais e infraconstitucio-nais, dado que se entrecruzam a função so-cial e a proteção do meio ambiente, comotambém quanto ao tempo (período de 1970a 2000) e ao espaço geográfico da região doCerrado, com ênfase para o Estado de Goiás(embora tenham sido coletados dados so-bre o Cerrado em geral e o território do Dis-trito Federal), como forma de ampliar os ele-mentos da pesquisa e aumentar as oportu-nidades de comparação entre as três reali-dades ecológicas e econômicas.

Vale ressaltar, no entanto, que o Cerradoocupa 22% do terr i tór io bras i le iro(2.000.000km2) ou 200.000.000 de hectares3

e que as normas de regência para as áreasde preservação permanente são as mesmaspara todo o Brasil. Entrementes, no que con-cerne às áreas de reserva legal florestal, umavez obedecidos os percentuais estabelecidospara as propriedades da Amazônia Legal(floresta 80%, cerrado 35% e campo 20%) epara as propriedades situadas fora dela (res-tante do País 20%), sendo as premissas asmesmas (obrigatoriedade da conservação),tem-se que as conclusões a que se chegousobre a propriedade destrutiva são válidaspara todo o território brasileiro.

A motivação para a elaboração deste ar-tigo deveu-se a dois fatores: primeiro, reto-mar, por uma nova ótica, os trabalhos daDissertação de Mestrado (FALCONI, 1993)concluída na década de noventa, envolven-do pesquisa de cunho teórico e prático, ob-jetivando aferir o cumprimento da funçãosocial da propriedade rural, nos Estados deGoiás e Tocantins, no período de 1946 a 1989– termo inicial do “condicionamento do usoda propriedade ao bem-estar social” e ter-mo final da execução do Plano Nacional deReforma Agrária da Nova República (1985a 1989) –, passando pela novel Constitui-ção de 1988; e segundo, a constatação porviagens4 pelos Estados de São Paulo, MinasGerais, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, To-cantins e Maranhão, cujas paisagens mos-tram, sem maior esforço, a destruição dasáreas de preservação permanente e de re-serva legal das propriedades rurais, substi-tuídas por pastagens artificiais e posterior-mente pela cultura da soja, entre outros pro-dutos, cenário que se confirma pelas esta-tísticas oficiais.

E, como se sabe, seja no Cerrado, naAmazônia, nas Araucárias, na Mata Atlân-tica, no Pantanal, na Zona Costeira ou emqualquer ponto do território nacional, o pro-prietário não tem o direito de explorar a pro-priedade com ferimento aos arts. 5 o, 170, 186e 225 da Constituição Federal, principalmen-

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te no que concerne às áreas de preservaçãopermanente ou de reserva legal florestal, poissempre que isso acontecer estará desatendi-da a função socioambiental da propriedadee, nesse passo, estar-se-á inarredavelmentediante da propriedade considerada destru-tiva.

O desenvolvimento do artigo está anco-rado em duas seções: na primeira, trata-seligeiramente da propriedade e sua funçãosocial (com a inerente função ambiental) e,na segunda, da desapropriação por interes-se social da propriedade rural, por interes-se social em sentido amplo e em sentido es-trito, para fins de reforma agrária, no que serefere à denominada propriedade destruti-va, alvo de depredação das áreas de preser-vação permanente e de reserva legal flores-tal, cujos proprietários se recusem a promo-ver a recomposição. Seguiram-se, após, asconclusões.

1. Da propriedade rural esua função socioambiental

Arnaldo Sussekind (1986, p. 13) anotaque somente após a Primeira Grande Guer-ra (1914) “os direitos sociais ganharam hie-rarquia constitucional. E, por via de conse-qüência, o liberal-individualismo, em mui-tos países, cedeu terreno ao intervencionis-mo estatal, indispensável à consecução des-tes direitos”.

Preleciona Luís Recasens Siches (1970,p. 12 apud SÜSSEKIND, 1986, p. 13) que osdireitos individuais “possuem predominan-temente como conteúdo um não fazer dosindivíduos e, principalmente, do Estado edos demais entes públicos. Já os direitossociais têm por objeto atividades positivasdo Estado, do próximo e da sociedade, paraconceder ao homem certos bens ou condi-ções”.

Lembra, por sua vez, Mirkine-Gutzévitch(1957, p. 156, 169-171 apud SÜSSEKIND,1986, p. 13) que as liberdades individuais eos direitos sociais “ocupam um lugar dehonra nas novas Constituições” e que os

direitos sociais “aparecem como obrigaçõespositivas do Estado ao lado do catálogo dasliberdades formuladas em 1789; e, entre eles,incluem-se a segurança social, o direito dotrabalho, os diretos sindicais, o direito auma vida sã e ao repouso e as garantias eco-nômicas para as classes trabalhadoras”.

A ênfase na evolução dos direitos soci-ais ultrapassou as raias do direito das obri-gações, para alcançar os direitos reais etransformar, por dentro, o conteúdo do di-reito de propriedade, preterindo o seu cará-ter individualista, absoluto e sagrado, sub-metendo-a a uma vinculação de cunho so-cial, moldável segundo as complexas neces-sidades dos novos tempos. Nessa ótica, apropriedade deve atender aos interessesprivados do proprietário e a outros interes-ses superiores da sociedade, transcenden-tes da autonomia privada. Nesse sentido,sustenta Leon Duguit ([1928?], p. 231 apudSODERO, 1982, p. 28) que:

“Todo indivíduo tem a obrigaçãode cumprir na sociedade certa função,em razão direta do lugar que nela ocu-pa. Por conseguinte, o possuidor dariqueza, pelo só fato de possuí-la, poderealizar certo trabalho que somente elepode cumprir. Só ele pode aumentar ariqueza geral, assegurar a satisfaçãodas necessidades gerais, ao fazer va-ler o capital que possui. Está, pois, obri-gado socialmente a cumprir esta tare-fa, e só no caso de que a cumpra serásocialmente protegido. A proprieda-de já não é um direito subjetivo do pro-prietário. É a função social do possui-dor da riqueza”.

Nessa linha, a Constituição alemã de1919 e a mexicana de 1917 – seguidas pelamaioria das Cartas políticas da Europa edas Américas – inauguram a chamada or-dem pública econômica, estabelecendo,além da proteção do trabalho, uma progra-mação endereçada a coordenar a iniciativaprivada, “aceptando pues la distinción fun-damental entre la propriedad de los instru-mentos de produción y la de los bienes de

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consumo para someterlas a una disciplinadiversa” (GALLONE, 1961, p. 86 apudBALARÍN MARCIAL, 1978, p. 236). Essadistinção justificou, mais adiante, a eman-cipação do Direito Agrário e, posteriormen-te, do Direito Ambiental, como ramos autô-nomos do direito, partindo nuclearmente doprincípio da função social da propriedade,pois “el auténtico agricultor ha sido siem-pre, y deberá serlo cada vez más, no soloproductor de alimentos, sino guardián dela naturaleza en su medio y ambiente”(SANZ JARQUE, 1975, p. 44).5 Essas Cartaspolíticas inspiraram o fortalecimento do es-tudo das Ciências Ambientais afins, a par-tir do horizonte em que se vislumbra a pro-priedade rústica como um bem de produ-ção e de conservação e preservação.

Com efeito, a Constituição weimarianade 1919 estabeleceu em seu art. 153 que “apropriedade obriga e o seu uso e exercíciodevem ao mesmo tempo representar umafunção no interesse social”. Por isso, “o re-gime da vida econômica deve correspondera princípios de justiça, com o objetivo degarantir a todos existência humanamentedigna”. Dentro desses limites, reconhece-seao indivíduo a liberdade econômica (art.151). Dispôs semelhantemente a Constitui-ção italiana de 1947 ao garantir o direito depropriedade e determinar que a lei estabele-ça “os modos de aquisição, de gozo e seuslimites, com a finalidade de assegurar a fun-ção social e torná-la acessível a todos”, po-dendo a propriedade, “nos casos previstosem lei e salvo indenização”, ser “expropria-da por motivos de interesse social” (art. 42).

Ensina Stefano Rodotá ([199_?], p. 377-382 apud BALLARÍN MARCIAL, 1989, p.238-239) que, desde que a propriedade écondicionada,

“a função social não é externa a seudireito nem metajurídica; em si, a fun-ção social, desde o ponto de vistatécnico-jurídico, é uma ‘expressãoelíptica, unificadora dos pressupos-tos da qualificação jurídica, de talmodo que identifica o conteúdo mes-

mo da situação (do proprietário)’; jánão é o conjunto de obrigações exter-nas impostas pelas leis especiais, se-não que a função social deriva de umprincípio geral incorporado na estru-tura institucional do direito de pro-priedade em virtude do qual sua tute-la fica condicionada em função documprimento pelo proprietário dosfins que o ordenamento impõe”.

No direito brasileiro também partilhamdesse entendimento Luciano de SouzaGodoy (1998, p. 34) e Gustavo Tepedino. As-severa Godoy que, contemporaneamente,pode-se afirmar constituir-se a função soci-al um “elemento interno da estrutura do di-reito subjetivo – propriedade privada, de-terminando sua destinação – e que as facul-dades do proprietário privado são reduzi-das ao que a disciplina constitucional lheconcede”. E observa Tepedino (1989, p. 76apud GODOY, 1998, p. 34) que a tutela dasituação proprietária tem como requisito “ocumprimento da sua função social, que, porsua vez, tem conteúdo predeterminado, vol-tado para a dignidade da pessoa humana epara a igualdade com terceiros não proprie-tários”.

Deveras, o cumprimento da função soci-al constitui-se, invariavelmente – em todosos países de legislação avançada –, em pres-suposto da garantia do direito de proprie-dade. O direito é garantido desde que utili-zado em prol do interesse social ou coletivo.A Constituição brasileira de 1946 determi-nou ao legislador ordinário a promoção dajusta distribuição da propriedade e o condi-cionamento dela ao bem-estar social. AEmenda Constitucional no 10/64, a Consti-tuição de 1967 e a Emenda Constitucionalno 1/1969 transformaram a função socialda propriedade em condição necessária àsua garantia.

A seu turno, a Constituição Federal de1988, oxigenada pelos novos ares da políti-ca internacional da tutela ambiental, exteri-orizada na Convenção de Estocolmo de1972 e fortalecida internamente pela lei da

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política nacional do meio ambiente (no

6.938/81), concedeu ampla proteção ao meioambiente e, nesse contexto, explicitou a fun-ção ecológica da propriedade intrínseca àfunção social como instrumento eficaz àproteção do meio ambiente e da sadia quali-dade de vida, bem de uso comum do povo aser protegido individual ou coletivamente.O descumprimento da função social e am-biental, entre outras sanções, sujeita a pro-priedade à desapropriação por interessesocial.

2. Da desapropriação dapropriedade destrutiva

Desapropriação “é o ato pelo qual a au-toridade pública competente, em casos ex-pressos em lei e mediante indenização, de-termina que a propriedade individual sejatransferida a quem dela se utilize em inte-resse da coletividade” (WHITAKER, 1946,p. 3 apud FRANCO SOBRINHO, 1973, p. 8;ROCHA, 1992, p. 49). Nessa linha de racio-cínio, Artur Pio dos Santos (1982, p. 15) afir-ma com acerto que a desapropriação é o

“ato coercitivo, mediante o qual, porrazões de necessidade ou interessecoletivo, o Poder Público retira, dodomínio de seu proprietário, bens oudireitos, incorporando-os ao seu pa-trimônio ou entregando-os a quemdeles possa fazer melhor uso, para queatinjam os fins pretendidos e especifi-cados na declaração expropriatória,indenizando-se o seu legítimo donopelo valor fixado na forma que a leiestabelecer”.

Realmente, a desapropriação é um atocompulsório com agasalho na ConstituiçãoFederal e desenvolvimento no campo do di-reito administrativo e processual, refletin-do o seu efeito principal no direito civil coma perda da propriedade. Assim, anotaWeliton Militão dos Santos (2001, p. 39) quea desapropriação

“constitui o procedimento por meio doqual o Poder Público, utilizando-se do

jus imperii, desapossa alguém de suapropriedade, adquirindo-lhe, compul-soriamente, o domínio, desafetando-a do domínio particular, mediante in-denização, por muitos admitida comoexpropriação”.

Tradicionalmente o ordenamento jurídi-co brasileiro conheceu a desapropriação pormotivo de utilidade ou necessidade públi-ca. Nesse tipo de desapropriação, o PoderPúblico adquire compulsoriamente a pro-priedade do particular ou de um ente públi-co menor e assim se mantém permanente-mente em relação ao domínio do bem desa-propriado, objetivando executar obra ou ser-viço de utilidade ou necessidade pública. Aprincipal norma regedora desse tipo de de-sapropriação é o Decreto-Lei no 3.365/41.

A Constituição de 1946 instituiu umnovo tipo de desapropriação, a expropria-ção por interesse social, tendo por objetivopromover a justa distribuição da proprie-dade urbana ou rural ou condicionar o seuuso ao bem-estar social (art. 147), o que foi cum-prido, em parte, pela Lei n o 4.132, de10.9.1962, atribuindo competência desapro-priatória às três esferas de governo, União,Estados (e Distrito Federal), e Municípios,para os casos que estipula e desde que efe-tuem a indenização previamente e em di-nheiro.

Com a alteração procedida pela Emen-da Constitucional no 10/1964, criou-se osubtipo de desapropriação por interessesocial para fins de reforma agrária, aplicá-vel somente a imóveis rurais que não aten-dam à função social da propriedade. Paradar cumprimento a esse desiderato, foi apro-vada a Lei n o 4.504, de 30.11.1964 – Estatutoda Terra –, que prevê as hipóteses e finali-dades do ato, que é da competência exclusi-va da União, pelo Presidente da República,possibilitando o pagamento da terra em tí-tulos da dívida agrária e das benfeitoriasem dinheiro.

A Lei no 4.132/62 não deixa dúvida deque os recursos naturais disponíveis –águas, terras, flora –, devem ser socialmente

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aproveitados. O fato de não serem aprovei-tados socialmente enseja a desapropriaçãopor interesse social. Assim, elenca no art. 2o

oito hipóteses que considera suficientes paramotivar a decretação de interesse social parafins de desapropriação. Entre essas hipóte-ses, insere a declaração de interesse socialpara “a proteção do solo e a preservação decursos e mananciais de água e de reservasflorestais”. Outra certeza evidenciada poresse diploma legal é que a desapropriaçãopor interesse social não tem por fim apenase tão-somente promover a justa distribuiçãoda propriedade em prol de determinadosgrupos carentes da população6, mas tambémobjetiva dar respaldo a interesses difusoscomo os casos relacionados com a proteçãodo solo, a preservação de cursos e mananci-ais de água e de reservas florestais (inciso VII).

Por sua vez, a Lei no 4.504/64 – lei dereforma e desenvolvimento rural –, tendopor núcleo central o desempenho da funçãosocial da propriedade, da qual emergemdeveres para o proprietário de ordem priva-da e de ordem pública – enfeixados em pres-supostos de caráter socioeconômicos esocioecológicos –, estabelece no art.18 que adesapropriação (sanção) por interesse soci-al para fins de reforma agrária tem por fim:

“a) condicionar o uso da terra a suafunção social7; (...) c) obrigar a explo-ração racional da terra; d) permitir arecuperação social e econômica de re-giões; (...) f) efetuar obras de renova-ção, melhoria e valorização dos recur-sos naturais; (...) h) facultar a criaçãode áreas de proteção à fauna, à flora oua outros recursos naturais, a fim de pre-servá-los de atividades predatórias”.

Ademais, complementa o art. 20 da mes-ma Lei que as desapropriações a serem rea-lizadas pelo Poder Público recairão, entreoutras, sobre “as áreas cujos proprietáriosdesenvolverem atividades predatórias, re-cusando-se a pôr em prática normas de con-servação dos recursos naturais” (inciso III),e “as terras cujo uso atual”, conforme estu-dos levados a efeito pelo Instituto Nacional

de Colonização e Reforma Agrária, “com-provem não ser o adequado à sua vocaçãode uso econômico” (inciso VI).

Como se vê, também o Estatuto da Terraagasalha não somente os interesses coleti-vos de grupos determinados da sociedade(como são os agricultores carentes de recur-sos financeiros para aquisição de terra parasustento próprio e da família)8, como tam-bém protege os interesses difusos de gruposindeterminados da sociedade, relacionadoscom os recursos naturais renováveis e o meioambiente que devem ser rigorosamente pre-servados como bens ambientais de interes-se comum de todos os cidadãos, na dicçãoda novel Constituição de 1988.

Sob o manto do Estatuto da Terra, erampassíveis de desapropriação por interessesocial, para fins de reforma agrária, as pro-priedades classificadas como minifúndiose latifúndios, considerados tipos anti-sociais de aproveitamento da terra. Aque-les, por possuírem área inferior ao módulorural9, portanto sem oportunidade de pro-piciarem progresso social e econômico aorurícola e sua família; e estes, por possuí-rem: a) área superior a 600 módulos; ou b)área igual ou superior a um módulo, mascom exploração deficiente ou inadequadaem relação às possibilidades econômicas eecológicas da região, de modo a vedar-lhe ainclusão no conceito de empresa rural10.

A empresa rural, um dos tipos de classi-ficação dada ao imóvel rural, não era susce-tível de desapropriação, por se tratar deempreendimento desenvolvido de formaexemplar, satisfazendo todos os requisitosda função social (econômico, social strictosensu e ambiental). Dos quatro requisitos for-madores da função social da propriedade ecaracterizadores da empresa rural, no Esta-tuto da Terra, dois merecem destaque porinteressarem diretamente ao tema do artigo:a manutenção de níveis satisfatórios de pro-dutividade e a conservação dos recursos na-turais.

Regulamentando o Estatuto da Terra,ainda na década de sessenta, o Decreto no

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55.891, de 31.3.1965, estabeleceu no art. 25que, para ser classificado como empresarural, o imóvel teria de apresentar percenta-gem de área utilizada (GUT) nas várias ex-plorações “igual ou superior a 50% da suaárea agricultável”; obter “rendimento mé-dio” nas várias explorações (GEE) igual ousuperior aos mínimos fixados em tabela pró-pria; adotar “práticas conservacionistas”; emanter “condições de administração e ex-ploração social mínimas”.

Referido artigo 25 foi revogado, na déca-da de setenta, pelo art. 44, inciso I, do Decre-to no 72.106, de 18.4.1973, que, ao regula-mentar a Lei no 5.868, de 12.12.1972, quecriou o Sistema Nacional de Cadastro Ru-ral, aumentou a exigência quanto ao graude utilização da área agricultável (GUT)para 70%. Posteriormente, na década de oi-tenta, também o art. 44 foi revogado peloDecreto no 84.685, de 6.5.1980, que, ao regu-lamentar a Lei no 6.746, de 10.12.197911, cri-adora do módulo fiscal calculado para cadaMunicípio, aumentou a exigência do graude utilização da área agricultável (GUT)para 80%, no art. 22, inciso III.

Como se sabe, a partir da década de se-tenta, foram criados Programas Oficiais deDesenvolvimento das macrorregiões brasi-leiras e de integração delas à Amazônia,planejamentos que foram seguidos de sig-nificativa evolução tecnológica e de pesqui-sa para o agro. A esses eventos correspon-deu, no campo do direito, a sucessiva eleva-ção dos percentuais de exigibilidade dograu de utilização da terra agricultável.Nessa linha, o Decreto no 84.685/80 consi-derou empresa rural o empreendimento quecontenha exploração econômica e racional“dentro das condições de cumprimento dafunção social da terra”, e atendidos, simul-taneamente, os requisitos: GUT igual ousuperior a 80%; GEE igual ou superior a100%; cumprimento integral das relações detrabalho e contratos agrários.

Ainda na década de oitenta – quando opaís vivia a reabertura democrática com aNova República que começava a executar o

Plano Nacional de Reforma Agrária recém-aprovado –, o Decreto-Lei no 2.363, de21.10.1987, como medida seletiva das desa-propriações agrárias, procurou direcioná-las aos imóveis de maiores dimensões e, as-sim, vedou a desapropriação de imóveisrurais de área inferior a 1.500 hectares naárea de atuação da SUDAM, 1.000 hectaresna área de atuação da SUDECO, 500 hecta-res na área de atuação da SUDENE e 250hectares no restante do País.

O mesmo diploma vedou a desapropria-ção das “áreas em produção”, assim consi-deradas “aquelas compreendidas na faixacontínua de terra que abranja as principaisbenfeitorias e cuja exploração e produtivi-dade se coadunem com a legislação agráriapertinente”. Não se computavam como áreaem produção as terras: a) utilizadas em ex-trativismo vegetal e campos e pastagensnaturais; b) desmatadas e não exploradas(inclusive capoeiras); c) preparadas mas semefetiva exploração; c) cultivadas por tercei-ros; e) destinadas à proteção e conservaçãode recursos hídricos de uso comum; f) ne-cessárias à preservação ambiental (art. 6o e§ 6o).

A área em produção, até 25% da área to-tal do imóvel, poderia ser excluída da desa-propriação, desde que requerida pelo pro-prietário, no prazo decadencial de 30 dias,contados da data da notificação adminis-trativa. Não exercida a faculdade, a desa-propriação se consumava sobre a área total.Nos imóveis de área até 10.000 hectares, adesapropriação não poderia ultrapassar ¾da área da propriedade. Obedecido o limitede 2.500 hectares, nos imóveis de área supe-rior a 10.000 hectares, a desapropriaçãopoderia abranger a totalidade da área exce-dente àquele limite.

Essa referência à área em produção decerta forma ajuda a entender o que aconte-ceu logo em seguida, com a aprovação daConstituição de 5.10.1988, quando foi insti-tucionalizada a figura da propriedade pro-dutiva, matéria objeto de longas controvér-sias antes, durante e depois da aprovação

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da nova Carta Política. Se pouco antes sefacultava ao proprietário a exclusão de uma“área em produção” de até 25% do imóveldesapropriando, agora a chamada proprie-dade produtiva tornava-se insuscetível dedesapropriação para fins de reforma agrária.

A Constituição de 1988, com efeito, con-tinuou afirmando, como fizeram as anterio-res – e fez isso em várias passagens –, que apropriedade deve atender a uma função so-cial. Se não atende, a própria Constituiçãoatribui competência à União para decretar,pelo Presidente da República, a declaraçãodo interesse social para fins de reforma agrá-ria e consolidar a desapropriação, perantea Justiça Federal, pagando o preço da terraem títulos e as benfeitorias em dinheiro e trans-ferindo a propriedade a outros agricultoresque queiram explorá-la racional e adequada-mente, segundo a cartilha da função social.

Efetivamente, depois de inserir a propri-edade entre os direitos e deveres individu-ais e coletivos e de afirmar que a proprieda-de atenderá a sua função social (art. 5 o, XXIIe XXIII), determina a Constituição Federal,em seu art. 184, que:

“Compete à União desapropriarpor interesse social, para fins de re-forma agrária, o imóvel rural que nãoesteja cumprindo sua função social,mediante prévia e justa indenizaçãoem títulos da dívida agrária, com cláu-sula de preservação do valor real, res-gatáveis no prazo de até vinte anos, apartir do segundo ano de sua emissão,e cuja utilização será definida em lei”.

Abeberando-se do Estatuto da Terra e,pode-se dizer, ampliando o seu espectro noque concerne ao aspecto ecológico da fun-ção social para tornar mais explícito o in-tento de proteção dos recursos naturais e domeio ambiente, em sintonia com as aspira-ções ambientalistas proclamadas na Confe-rência Internacional de Estocolmo (1972) eafirmadas no campo interno pela lei sobre apolítica nacional do meio ambiente (no

6.938/81), estabeleceu expressamente, noart. 186, que:

“A função social é cumprida quan-do a propriedade rural atende, simul-taneamente, segundo critérios e grausde exigência estabelecidos em lei, aosseguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e ade-quado;

II – utilização adequada dos recur-sos naturais disponíveis e preserva-ção do meio ambiente;

III – observância das disposiçõesque regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalha-dores”.

Apesar de estabelecer, como deveria, queos requisitos da função social devem seratendidos simultaneamente, e denotar queesses requisitos preenchem os aspectos eco-nômico, social e ecológico da propriedade,o Constituinte inseriu no art. 185 as hipóte-ses que queria deixar de fora das desapro-priações para fins de reforma agrária – oque também é compreensível –, mas, ao fazê-lo, incluiu não só a pequena e a média pro-priedade, como se esperava, mas também,estranhamente, a inusitada propriedadedenominada produtiva. Desse modo, inde-pendentemente do tamanho, a “proprieda-de produtiva” tornou-se insuscetível de de-sapropriação para fins de reforma agrária,tanto quanto a pequena e a média proprie-dade12, nesses dois últimos casos, desde queo proprietário não possua outra.

Esse episódio, mutatis mutandis, reflete opoder de fogo das grandes corporações quemovem a economia moderna. Referindo-sea uma situação que evidentemente retrataum contexto mundial e, portanto, de conse-qüências bem maiores, mas que também seaplica aos problemas brasileiros, no que tan-ge ao tráfico de influência do poder econô-mico – o que não é diferente nas questões daestrutura do campo –, em entrevista recenteà Revista Veja, afirma John Keneth Galbraith(2004, p. 25):

“A economia moderna (...) é pro-duto do surgimento de corporações

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poderosas e de novos métodos de ad-ministração empresarial, com sua cas-ta de executivos. O ponto forte dessaeconomia é a capacidade de mobili-zar recursos científicos, organizacio-nais, culturais e políticos muito vari-ados. O maior de seus efeitos negati-vos, particularmente visível no presen-te, é a habilidade das corporações deimiscuir-se à força13 nas políticas go-vernamentais e direcioná-las. (...) Ditode outra maneira, o desserviço da eco-nomia moderna está na sua tendên-cia de favorecer concentrações de po-der e solapar a lógica da distribuiçãoda autoridade política por meios de-mocráticos. A intromissão do setorprivado no chamado setor público éostensiva e crescente, e negá-la é umafraude – nada inocente. Essa é a con-tribuição ainda não devidamente ‘ce-lebrada’ de nossa época à história eco-nômica”.

Só o poder do tráfico de influência podeexplicar a anomalia que passou a vigorarcom a Constituição de 1988. Ou seja, exigiu-se o atendimento da função social da pro-priedade, o que implica a satisfação de re-quisitos econômicos, sociais e ecológicos.Entretanto, ao mesmo tempo, criou-se umtipo de propriedade que não cumpre a fun-ção social e ainda assim – diferentementeda Constituição revogada – tal propriedadeficou imune aos atos desapropriatórios parafins de reforma agrária, além de merecer aten-ção especial do legislador ordinário, quedeve estabelecer regras para que venha acumprir essa função.

Produtivo em sentido agronômico, con-forme afirma Francisco Graziano, ex-Presi-dente do INCRA14, é praticamente todo soloque reúne condições físico-químicas paraproduzir. Em tese, portanto, diz ele, quasetodos os tipos de solo são produtivos. Paraescapar do imbróglio, o Constituinte deixouao legislador ordinário a tarefa de definir oque seriam consideradas pequena e médiapropriedades e propriedade produtiva, de-

terminando, entretanto, desde logo, que fos-se garantido tratamento especial à proprie-dade produtiva e fossem fixadas as normaspara o cumprimento dos requisitos relati-vos a sua função social.

Embora a função social se cumpra quan-do são atendidos simultaneamente os requi-sitos do art. 186, o Constituinte reconheceno parágrafo único do art. 185 que a propri-edade produtiva – novel classificação cria-da – não cumpre a função social, por issoincumbiu o legislador ordinário de dar-lhetratamento especial e fixar normas para queela venha a atender tais requisitos. Era, naverdade, um alongamento da pretensão jáposta na chamada “área em produção” doDecreto-Lei no 2.363/87, ou mais precisa-mente o cumprimento isolado do requisitoeconômico da função social, incrustado noart. 2o, §1o, alínea “b”, do Estatuto da Terra eno art. 22, inciso III, do Decreto no 84.685/80, relativo à produção e à produtividadeagropecuária.

Sistematicamente, a Constituição ficoucaolha. Repete inúmeras vezes que a pro-priedade deve atender à sua função socialcomo direito-dever fundamental; como prin-cípio da ordem econômica; como condiçãolegitimadora do direito, etc; explicita a mul-tiplicidade de fatores que conduzem ao di-agnóstico do atendimento da função social;determina ao Poder Público que desapro-prie a propriedade rural que não cumpre afunção social, mas, em meio a tantas alu-sões, excepciona da desapropriação, numartigo e não num parágrafo, a propriedadeprodutiva que, reconhecidamente, não cum-pre a função social, própria da empresa ru-ral do Estatuto da Terra.

Entretanto, a propriedade produtivaimune à desapropriação é aquele tipo depropriedade na qual ocorre o aproveitamen-to racional e adequado, e a utilização ade-quada dos recursos naturais disponíveis15

com preservação do meio ambiente. É irra-cional e inadequada a exploração da pro-priedade que, a pretexto de aproveitar osrecursos naturais disponíveis, destrói total

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ou parcialmente as áreas de preservaçãopermanente e reserva legal16, insuscetíveisde supressão ou de exploração econômica,salvo, quanto a esta última, se embasada emprojeto de manejo previamente aprovado.

Os órgãos oficiais de meio ambiente, asorganizações não-governamentais e a soci-edade em geral têm percebido que grandenúmero de propriedades rurais estão sendoalvo de exploração para além da área agri-cultável, invadindo as áreas destinadas aospropósitos da ecologia, ocupando indevi-damente as áreas de preservação permanen-te e de reserva legal, elementares à formaçãodo meio ambiente ecologicamente equilibra-do, bem de interesse comum a toda a socieda-de, nos termos do artigo 225 da ConstituiçãoFederal e 1o, 2o e 16 do Código Florestal.

A legislação infraconstitucional prevêsanções contra os atos atentatórios ao meioambiente, como se pode notar no CódigoFlorestal, na Lei que dispõe sobre a prote-ção da fauna (no 5.197/67), na Lei institui-dora da política nacional do meio ambiente(no 6.938/81) e na Lei definidora dos crimesambientais (no 9.605/98). Todavia, como temapontado a doutrina especializada, os re-médios ordinários não têm sido capazes defrear a destruição das áreas de preservaçãopermanente e reserva legal incrustadas naspropriedades rurais.

Entre outros doutrinadores, Luiz Fernan-do Coelho (1994, p. 30 apud AZEVEDO,2002, p. 297) observa que o formalismo dosprocedimentos administrativos e judiciais,em nome da proteção dos direitos individu-ais, freqüentemente tem determinado aineficácia da legislação ordinária relativa-mente à proteção do meio ambiente e dosdireitos da sociedade. Com razão, afirma oreferido autor que:

“Se examinarmos a parafernália le-gislativa do direito ambiental, antes edepois da Constituição de 88... a pri-meira reação é de perplexidade, pe-rante um fato evidente: a ineficáciadessas normas, eis que elas simples-mente não são aplicadas... existem mi-

lhares de procedimentos administra-tivos de imposição de penalidadespecuniárias por infração aos regula-mentos, simplesmente aguardandopassar o prazo prescricional”.

Por sua vez, anota Edward O. Wilson(1997, p. 3) que “a diversidade biológica temde ser tratada mais seriamente como um re-curso global, para ser registrada, usada eacima de tudo preservada”. Outrossim,Antônio H. V. Benjamim (2004, p. 1-16) la-menta o fato de que no Brasil, ao contráriode outros países, como a Alemanha, “a teo-ria da função social da propriedade não temtido eficácia prática e previsível na realida-de dos operadores do direito e no funciona-mento do mercado”, o que se torna de certaforma incompreensível, uma vez que “pou-cas Constituições unem tão umbilicalmentefunção social e meio ambiente como a brasi-leira”.

Moreira Neto (1976, p. 308, 319 apudMACHADO, 1989, p. 348) também acentuaque :

“a exploração dos recursos naturais,como vem sendo feita, polui água eatmosfera, devasta florestas, seca ma-nanciais, destrói a flora nativa, empe-çonha a fauna, exaspera os climas,precipita a erosão, cria desertos e che-ga a envenenar as fontes de alimenta-ção do próprio homem; até os maresameaça a poluição desenfreada”.

No entanto, como verbera Antônio H. V.Benjamin (1996, passim apud AZEVEDO,2002, p. 397), consagrado ambientalista, “noBrasil não há direito de propriedade queconfira a seu titular a opção de usar aquiloque lhe pertence de modo a violar os princí-pios estampados nos arts. 5o, 170, VI, 182,2o, 186, II e 225 da CF”, pois a propriedadeno direito brasileiro “abandona, de vez, suaconfiguração essencialmente individualis-ta para ingressar em uma nova fase, maiscivilizada e comedida, onde se submete auma ordem pública e ambiental”.

De fato, determina o art. 5o, parágrafoúnico, da Lei no 6.938/81, ao cuidar dos

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objetivos da política ambiental do país, que“as atividades empresariais públicas e pri-vadas serão exercidas em consonância comas diretrizes da Política Nacional do MeioAmbiente”. Também estabelece a referida Leique são instrumentos dessa política a cria-ção de espaços especialmente protegidospelo poder público e as penalidades pelonão cumprimento das medidas necessáriasà preservação ou correção da degradaçãoambiental (art. 9o), regras essas recepciona-das pelo art. 225, §1o, III, e 3o, da CF.

As penalidades estabelecidas na Lei no

6.938/81 e no Código Florestal (Lei n o 4.771/65) são aplicáveis sem prejuízo de outraspenalidades previstas na legislação brasi-leira (art. 14 e 1o, respectivamente). Assimsendo, a destruição das áreas de preserva-ção permanente e de reserva legal sujeita-seà penalidade prevista para o descumpri-mento da função socioambiental da propri-edade inserida no art. 170, III e VI, e 186, II,passível, portanto, de desapropriação porinteresse social, para fins de reforma agrá-ria, consoante autorização contida no art.184 da Constituição Federal.

Conforme magistério de Firmino Whitaker,já referido neste trabalho, a desapropriação éo ato pelo qual a autoridade pública compe-tente, em casos expressos em lei e medianteindenização, determina que a propriedadeindividual seja transferida a quem dela seutilize em interesse da coletividade. A Cons-tituição Federal, no art. 5o, XXII e XXIII, dis-põe que a propriedade atenderá a sua fun-ção social e que a lei estabelecerá o procedi-mento para a desapropriação por necessi-dade ou utilidade pública ou por interessesocial, mediante justa e prévia indenizaçãoem dinheiro, ressalvados os casos previstosna própria Carta Política (XXXIV).

Portanto, são amparadas na Constitui-ção Federal as desapropriações por interes-se social em sentido amplo e em sentido es-trito, para fins de reforma agrária. Aquela,com pagamento prévio em dinheiro; e esta,com pagamento prévio em títulos da dívidapública e em dinheiro. Mediante aquela, a

Constituição recepciona a Lei no 4.132/62,que atribui competência desapropriatóriaàs três esferas de governo – União, Estados,Distrito Federal e Municípios –, e, por meiodesta, confere competência exclusiva à União,nos termos do art. 184, desenvolvendo-se oprocesso desapropriatório à luz das Leis no

4.504/64 e no 8.629/93, Leis Complementa-res no 76/93 e no 88/96, entre outras.

Assim sendo, todos os entes da Federa-ção, invocando o art. 2o da Lei no 4.132/62,podem declarar o interesse social, para finsde desapropriação de qualquer imóvel noqual seja necessária “a proteção do solo e apreservação de cursos e mananciais de águae de reservas florestais”, protegendo, dessemodo, os interesses difusos da sociedadecom a execução de medidas de recuperaçãodas áreas de preservação permanente e dereserva legal florestal destruídas em conse-qüência da substituição da cobertura vege-tal por culturas de pastagens ou qualqueroutro produto agrícola.

Por sua vez, a União Federal poderá de-cretar a desapropriação por interesse soci-al, para fins de reforma agrária, uma vezconstatada a existência de determinada pro-priedade qualificada como destrutiva porsupressão total ou parcial das áreas de pre-servação permanente e reserva legal, cujoproprietário se recuse a promover a recom-posição da cobertura vegetal, conforme de-terminada em lei. O processo administrati-vo a ser necessariamente constituído deveresguardar ao proprietário o direito de defe-sa, culminando, se esta for carente ou im-procedente, na declaração de interesse soci-al para fins de reforma agrária.

Com efeito, o art. 225 da CF impõe aoPoder Público o dever de defender e preser-var o meio ambiente para as presentes e fu-turas gerações. Para assegurar a efetivida-de do direito difuso ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado a todos os membrosda sociedade, deve “preservar e restauraros processos ecológicos essenciais e provero manejo ecológico das espécies e ecossiste-mas”, bem como “preservar a diversidade e

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a integridade do patrimônio genético doPaís”, “definir (...) espaços territoriais e seuscomponentes a serem especialmente prote-gidos (...) vedada qualquer utilização quecomprometa a integridade dos atributos quejustifiquem sua proteção” e “proteger a fau-na e a flora”, uma vez que são vedadas naforma da lei “as práticas que coloquem emrisco sua função ecológica, provoquem aextinção de espécies ou submetam os ani-mais a crueldade” (§1o, incisos I, II, III e VII).

Por outro lado, sendo a República brasi-leira uma federação constituída em EstadoDemocrático de Direito sob o regime capita-lista, em que a propriedade privada do ter-ritório, como é curial, encontra-se predomi-nantemente em mãos dos particulares, apropriedade rural assume papel singularperante o ordenamento político-jurídico,pois lhe cabe intrinsecamente uma funçãosocioambiental suficiente e necessária paradesenvolver o papel conciliador entre pro-dução e conservação. Deve-se dizer commaior precisão que o imóvel rural não é ape-nas um bem de produção, pois ele é um bemde produção e de conservação da natureza.

Já não resta dúvida de que o direito realde propriedade imanta-se de conteúdo po-sitivo de natureza cogente, relativo a con-dutas construtivas do proprietário, não me-ras abstenções, permissões ou omissões,mas um fazer concreto, traduzido na pro-dução de alimentos ou matérias-primas ena manutenção e proteção das áreas de pre-servação permanente e reserva legal, sobpena, inclusive, de desapropriação (san-ção). Eros Roberto Grau (2004, p. 222) per-cebeu o espectro do novo conteúdo dessedireito ao enfatizar que:

“o princípio da função social da pro-priedade impõe ao proprietário – ou aquem detém o poder de controle, naempresa – o dever de exercê-lo em be-nefício de outrem e não, apenas, denão o exercer em prejuízo de outrem.Isso significa que a função social dapropriedade atua como fonte da im-posição de comportamentos positivos

– prestação de fazer, portanto, e nãomeramente de não fazer – ao detentordo poder que deflui da propriedade.Vinculação inteiramente distinta,pois, daquela que lhe é imposta mercêde concreção do poder de polícia”.

A propriedade, pois, como direito indi-vidual de compromissos coletivos e sociais(art. 5o, XXII e XXIII, da CF), é um instrumen-to de construção da “dignidade da pessoahumana” (art. 1o, III) e, por isso, deve contri-buir para a formação de uma sociedade “li-vre, justa e solidária”, como forma de “ga-rantir o desenvolvimento nacional” e “pro-mover o bem de todos” (art. 3o, I, II e IV).Nesse contexto, a propriedade rural priva-da, palco da atividade econômica, sujeita-se a uma ordem econômica guiada porprincípios de raiz social como a funçãosocial, a defesa do meio ambiente, a bus-ca do pleno emprego, etc. (art.170, III, VI eVIII), conciliadores dos interesses priva-dos e públicos.

Carregando em seu conteúdo os deverespositivos de produção e conservação (eco-nômico e ecológico), razão pela qual devedesempenhar uma função social e promo-ver a defesa do meio ambiente, a Constitui-ção Federal não deixa nenhuma dúvida aesse respeito ao determinar no art. 186 que apropriedade rural cumpre a sua função so-cial quando atende, simultaneamente, osrequisitos de “aproveitamento racional eadequado” e “utilização adequada dos re-cursos naturais disponíveis e preservaçãodo meio ambiente” (incisos I e II).

Obviamente a propriedade destrutiva,que devasta total ou parcialmente as áreasde preservação permanente e ou de reservalegal florestal, espaços territoriais especial-mente protegidos, porque essenciais ao equi-líbrio dos processos ecológicos, não se en-quadra no perfil de propriedade produtivae muito menos cumpre a função social eambiental da propriedade. Nesse caso, o art.184 da Carta Política atribui competência àUnião para “desapropriar por interesse so-cial, para fins de reforma agrária, o imóvel

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rural que não esteja cumprindo sua funçãosocial, mediante prévia e justa indenização”da terra em títulos e das benfeitorias em di-nheiro.

Sendo certo que a lei assegura “a todos aoportunidade de acesso à propriedade daterra condicionada pela sua função social”,a desapropriação por interesse social tempor fim “condicionar o uso da terra à suafunção social”, “obrigar a exploração racio-nal da terra”, “permitir a recuperação soci-al e econômica de regiões”, “efetuar obrasde renovação, melhoria e valorização dosrecursos naturais” e “facultar a criação deáreas de proteção à fauna, flora ou a ou-tros recursos naturais, a fim de preservá-los de atividades predatórias” (art. 2 o, alí-nea d; 18, alíneas a, c, d, f, h, da Lei no

4.504/64).Repete a mesma lei – Estatuto da Terra –

que à propriedade privada rural “cabe in-trinsecamente uma função social e seu usoé condicionado ao bem-estar coletivo” (art.12), daí por que as desapropriações a seremrealizadas pelo Poder Público Federal de-verão recair, entre outras, sobre “as áreascujos proprietários desenvolverem ativida-des predatórias, recusando-se a pôr em prá-tica normas de conservação dos recursosnaturais” e “as terras cujo uso atual nãoseja, comprovadamente, através de estu-dos procedidos pelo INCRA, o adequadoà sua vocação de uso econômico” (art. 20,III e VI).

Na esteira desse mandamento legal, eainda do art. 46, que dispõe sobre o cadas-tro de imóveis rurais e as “práticas conser-vacionistas empregadas”, cabe ao INCRA17,de acordo com o art. 29, II, do Decreto no

55.891, de 31.3.196518, elaborar levantamen-tos e análises para atualização e comple-mentação do zoneamento do País, com oobjetivo de “recuperar diretamente, median-te projetos especiais, as áreas degradadasem virtude de uso predatório e de ausênciade medidas de conservação dos recursosnaturais renováveis e que se situem em regi-ões de elevado valor econômico”.

Nesse propósito, pode ser significativaa colaboração do Conselho Nacional deDesenvolvimento Rural Sustentável19, inte-grado pelo Decreto no 3.992, de 30.10.2002,na estrutura do Ministério do Desenvolvi-mento Agrário, com atribuições, entre ou-tras, de “coordenar, articular e propor a ade-quação das políticas públicas federais àsnecessidades de desenvolvimento sustentá-vel”, propor políticas de desenvolvimentorural que estimulem “a valorização da bio-diversidade, aproveitamento da biomassa eadoção de biotecnologias baseadas no prin-cípio da precaução” e “estimular e orientara criação de Conselhos Estatuais e Munici-pais de Desenvolvimento Rural Sustentá-vel” no âmbito de atuação de cada qual(art.1o, incisos I, V, d, e VI).

Com a criação do Conselho, a ele fica vin-culado o Núcleo de Estudos Agrários e De-senvolvimento Rural do Ministério do De-senvolvimento Agrário, a fim de prestar-lheassistência direta e imediata, sendo suasatribuições, entre outras: promover e coor-denar análises sobre o desenvolvimento ru-ral sustentável, especialmente sobre refor-ma agrária, agricultura familiar e diversifi-cação das economias rurais, e articular arede nacional para construção de observa-tório do desenvolvimento rural, devendofomentar o intercâmbio de informações eexperiências para o estímulo de novas ini-ciativas para o desenvolvimento, com ori-gem nas comunidades e entidades da socie-dade civil organizada.

Não se há de objetar a impossibilidadede desapropriação por interesse social, àvista dos arts. 18 e 44 do Código Florestal.Diz o art.18:

Art.18. Nas terras de propriedadeprivada onde seja necessário o flores-tamento ou o reflorestamento de pre-servação permanente, o Poder PúblicoFederal poderá fazê-lo sem desapro-priá-las, se não o fizer o proprietário.

§ 1o Se tais áreas estiverem sendoutilizadas com culturas, de seu valordeverá ser indenizado o proprietário.

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§ 2o As áreas assim utilizadas peloPoder Público Federal ficam isentasde tributação.

Evidentemente, o dispositivo não é ummandamento categórico. Ou seja, o PoderPúblico não fica impedido de desapropriar,restrito tão-somente ao poder de ele próprioreflorestar e indenizar o proprietário pelaspastagens, soja ou qualquer outra planta-ção que tiver feito indevidamente (às vezescriminosamente)20 nas áreas em que o parti-cular estava obrigado pela Constituição Fe-deral e legislação ordinária a manter de pé,sem efetuar qualquer corte raso. O disposi-tivo indica uma possibilidade para o PoderPúblico, por conta da qual não perde a prer-rogativa de melhor atender aos interessesda sociedade, quando necessário, pela viadesapropriatória.

Assim, se o proprietário não teve a inici-ativa de reflorestar, também poderá não es-tar animado a conservar e preservar as ár-vores plantadas pelo Poder Público, sem lheexigir qualquer sacrifício, sabido que o cres-cimento da vegetação demandará acompa-nhamento ao longo do tempo. Por outro lado,a indenização das acessões edificadas peloproprietário abrem a discussão para a veri-ficação da boa ou da má-fé do proprietário,pois a vedação para a supressão da cober-tura vegetal decorre da própria força da lei ea ninguém é dado alegar a ignorância destaou a sua incompreensão.

O referido artigo e seus parágrafos con-têm regras incompatíveis com a função so-cioambiental da propriedade, insculpida naConstituição Federal. Suas disposições pro-gramam diretrizes próprias de um direitoindividual absoluto, incomportáveis com atutela das florestas e demais formas de ve-getação, recursos ambientais componentesdo meio ambiente21, e, dessa maneira, de in-teresse difuso de toda a sociedade. Tambémpor isso, não se poderão haver como nor-mas cogentes, porque a função social dapropriedade e a proteção do meio ambienteestão acima das disposições de cunho me-ramente individuais.

É certo que o Código Florestal, nesse par-ticular, foi mais realista que o rei, ou seja, foimais individualista que o próprio CódigoCivil de 1916 destinado a reger as relaçõesjurídicas de cunho predominantemente in-dividual. Com efeito, o art. 881 do Códigocivilista estabelece que, “se o fato puder serexecutado por terceiro, será livre ao credormandá-lo executar à custa do devedor, ha-vendo recusa ou mora deste, ou pedir inde-nização por perdas e danos”.

O Código Florestal faculta ao Poder Pú-blico (art. 18, §1o) a realização do fato devi-do pelo proprietário, o que é compreensívelpor causa do interesse público e social nes-sas áreas, mas premia o mau proprietáriocom a indenização das culturas que implan-tou em locais proibidos por lei, no mínimo,há quarenta anos. A presunção de boa-féconferida pela disposição legal, entretanto,é juris tantum e cederá diante de prova emcontrário, ou seja, de que o proprietário nãoignorava que sua conduta deveria ser, nocaso, de preservação e conservação e não deprodução de alimentos ou matérias-pri-mas22.

A determinação do §2o do art.18, de queas áreas assim reflorestadas ficarão isentasde tributação, também é inocente, porque asáreas de preservação permanente e de re-serva legal florestal são consideradas áreasnão aproveitáveis e não tributáveis pela le-gislação agrotributária, fato corroborado naLei no 9.393/96, o que implica afirmar que oproprietário não teria que pagar impostoalgum sobre elas, desde que as mantivesseno estado em que deveriam estar, vale dizer,destinadas à preservação e à conservaçãoda natureza. Então o Poder Público reflo-resta diretamente e o proprietário já inadim-plente, por não ter indenizado o dano cau-sado ao meio ambiente, fica também isentodo imposto territorial rural!

Por sua vez, o art. 44, na redação da Me-dida Provisória no 2.166-67/2001, determi-na que o “proprietário ou possuidor de imó-vel rural com área de floresta nativa natu-ral, primitiva ou regenerada ou outra forma

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de vegetação nativa em extensão inferior aoestabelecido” para a reserva legal (ressal-vadas as hipóteses dos §§ 5o e 6o do art. 16)deve adotar, isolada ou conjuntamente, me-didas alternativas como a recomposição, acondução da regeneração natural quandopossível e a compensação em outra área equi-valente em importância ecológica e exten-são, no mesmo ecossistema e na mesma mi-crobacia.

O dever de recomposição da reserva le-gal florestal já havia sido previsto pela leide política agrícola (no 8.171/91), determi-nação que até o momento não surtiu os efei-tos desejados, tanto que as áreas de preser-vação permanente desflorestadas23 continu-am descobertas de vegetação. A nova reda-ção do art. 44 amplia a possibilidade de re-composição, admitindo-a em outra proprie-dade, embora com prejuízo para o equilí-brio ecológico. Admite, inclusive, a compen-sação na mesma bacia, se impossível a com-pensação na própria microbacia, desde quedentro do mesmo Estado federado.

Portanto, as oportunidades para o pro-prietário curar o malfeito ao meio ambientee adequar a propriedade aos parâmetros dafunção socioambiental são bastante elásti-cas, conferindo-lhe o legislador ordinárioamplas condições de evitar a desapropria-ção, firmando o respectivo termo de condu-ta e responsabilidade pela recomposição, emprazo certo e determinado. Em face dessasdisposições, a desapropriação da proprie-dade destrutiva deve ser antecedida de ges-tões oficiais, no sentido de persuadir oproprietário a fazer o que determina a lei: re-compor as áreas indevidamente suprimidas.

Somente em relação àqueles inadimplen-tes contumazes é que se deve propor a me-dida mais drástica. Deve-se lembrar que alei agrária – no 8.629, de 25.2.1995 – impedea desapropriação, para fins de reforma agrá-ria, do “imóvel que comprove estar sendoobjeto de implantação de projeto técnico”elaborado por profissional habilitado, comcronograma físico-financeiro cumprido tem-pestivamente e prevendo o aproveitamento

mínimo de 80% da área total aproveitávelem, no máximo, 3 (três) anos para as cultu-ras anuais e 5 (cinco) para as culturas per-manentes, desde que aprovado o projetopelo órgão federal competente no mínimo 6(seis) meses antes da notificação da abertu-ra do processo desapropriatório (art. 7o, I, II,III e IV).

Mutatis mutandis, não será passível dedesapropriação a propriedade contempla-da com projeto técnico de recomposição, ela-borado por profissional habilitado e apro-vado pelo órgão ambiental competente, nostermos, modo, forma e critérios aludidos noart. 44 do Código Florestal. O certo é que,enquanto o Poder Público não demonstrarque possui à mão instrumento legítimo maiseficaz para conseguir a recomposição dasáreas ilicitamente desflorestadas, os espa-ços territoriais especialmente protegidos(áreas de reserva legal florestal, tanto quan-to as de preservação permanente) irão con-tinuar desprovidos de vegetação, obviamen-te mascarando o equilíbrio ecológico domeio ambiente e ferindo a função socioam-biental da propriedade.

A legislação agrária e a ambiental sãointerdisciplinares e devem ser interpretadassistematicamente, com o auxílio das ciênci-as ambientais, uma vez que os intentos deconservação e preservação se entrecruzamem ambas. A Constituição Federal estimulaessa interdisciplinaridade ao colocar a fun-ção social e a defesa do meio ambiente comoprincípios regedores da ordem econômica eao inserir o “aproveitamento racional e ade-quado” e a “utilização adequada dos recur-sos naturais disponíveis e preservação domeio ambiente” como requisitos essenciais,portanto indispensáveis, da função socialda propriedade.

Lembra, a propósito, Juraci Perez deMagalhães (2001, p. 27) que “as florestas edemais formas de vegetação estão subordi-nadas ao princípio da função social dapropriedade já inserida na Constituição”.Por sua vez, afirma Maria Luiza FaroMagalhães (1993, p. 150 apud BENJAMIM,

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1993 apud J. MAGALHÃES, 2001, p. 35) quea vinculação estabelecida no art. 186, II, daConstituição Federal,

“ampliando o conceito de função so-cial da propriedade, insere a funçãoambiental como elemento dela consti-tutivo. Esse tratamento operou umareciclagem da noção de função socialampliando seu conteúdo de maneiratal que, na nova Constituição, a fun-ção social visa atender objetivos já nãoapenas de natureza distributiva, mas,igualmente, de caráter ambiental, po-lítica que, ao eleger valor que anteri-ormente não figurava como limite aopoder de uso e gozo do direito de pro-priedade, veio socorrer interesses dasociedade que eram anteriormente in-suspeitados”.

Conforme exposto, a proteção aos recur-sos naturais compostos pelas áreas de pre-servação permanente e reserva legal já seencontrava agasalhada no conceito de fun-ção social previsto pelo Estatuto da Terra,quando este determinou que, entre os seusrequisitos, fosse assegurada “a conservaçãodos recursos naturais”, expressão emprega-da em sentido amplo para abranger tambéma preservação. De qualquer forma, a Consti-tuição de 1988 é mais explícita, não restan-do agora qualquer dúvida de que a proprie-dade tem uma inarredável função ambien-tal a ser cumprida.

Como o art. 186, II, acrescentou a refe-rência ao meio ambiente logo após exigir a“utilização adequada dos recursos naturaisdisponíveis”, vislumbra-se, com facilidade,a agregação do art. 225, parágrafos e inci-sos, na função social da propriedade, objetodo art.186, II, nele cabendo tudo que sejacompatível com o desenvolvimento da ati-vidade agrária em níveis sustentáveis, valedizer, voltada para a produção agrícola in-dissociada da preservação, da manutenção,da utilização sustentável e, ainda, sempreque necessário, da restauração e recupera-ção do ambiente natural, para maior be-nefício da geração atual, sem prejuízo da

manutenção do potencial de satisfazer asaspirações das gerações vindouras e ga-rantir a sobrevivência dos seres vivos emgeral.

José Afonso da Silva (1999, p. 783) vis-lumbra a insucetibilidade da desapropria-ção da propriedade produtiva, para fins dereforma agrária, com pagamento da indeni-zação mediante título da dívida agrária,como um impedimento absoluto. Acrescen-ta que é “inútil procurar interpretação combase em nossos desejos”, pois “isso não se-ria científico”. Entretanto, diante das dis-posições constitucionais e regulamentares,há nítida distinção entre propriedade pro-dutiva e propriedade destrutiva. Aquela, quese limita a produzir na área agricultável, eesta, que, revivendo o individualismo exa-cerbado dos Códigos oitocentistas, inves-te sobre as áreas especialmente protegi-das, ao arrepio da função ambiental dapropriedade.

Entre os doze países mais ricos domundo em diversidade biológica, conformeRussel Mittermeier, Patricio Robles eCristina Mittermeier (1997, p. 501 apudDOUROJEANNI; PÁDUA, 2001, p. 50), seteencontram-se na América Latina, dos quaisseis na América do Sul (Colômbia, Brasil,Equador, Peru, Venezuela e Bolívia). O Bra-sil, excluindo os peixes, é o segundo emnúmero de espécies de vertebrados (3.131),o quarto em número de endemismos (788), oquarto em porcentagens de endemismos(3,28%) e o terceiro em número de espéciesde aves (1.622). Dourojeanni & Pádua (2001,p. 50) informam que “a Colômbia, de todosos países do mundo, é o campeão da diver-sidade de vertebrados, excluindo peixes”,e, incluindo os peixes, “é o Brasil que ocupao primeiro lugar”.

A Colômbia, país que tem uma Consti-tuição mais recente que o Brasil, foi maisenfática sobre a função ambiental, ao dis-por no art. 58 que “a propriedade é uma fun-ção social que implica obrigações” e que,“como tal, lhe é inerente uma função ecoló-gica”. Na Constituição brasileira, a afirma-

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ção de que a propriedade contém uma fun-ção ecológica está implícita no art. 186, I e II,quando exige que a propriedade contenhaum “aproveitamento racional e adequado”e uma “utilização adequada dos recursosnaturais disponíveis e preservação do meioambiente”.

Consoante já salientado, a Constituiçãobrasileira institui uma ordem econômicarecheada de ingredientes de conteúdo soci-al, de forma a realçar o papel da economiasem menosprezar a relevância da ecologia.Por essa razão, impõe o cumprimento dafunção socioambiental da propriedade queimplica na satisfação de um conteúdo eco-nômico, social em sentido estrito e ecológi-co. Nessa linha, institui a simbiose eco-nomia–ecologia, pois aquela não podeelevar-se em detrimento da qualidade domeio ambiente e da vida saudável de to-dos os seres.

Em suma, adota o desenvolvimento sus-tentável que consiste, no caso da proprieda-de rural, na exploração da terra, de maneiraa garantir a perenidade dos recursos ambi-entais renováveis e dos processos ecológi-cos, mantendo a biodiversidade e os demaisatributos ecológicos, de forma socialmentejusta e economicamente viável. A desapro-priação por interesse social impõe-se quan-do o desenvolvimento se faz de forma in-sustentável como ocorre quando há a des-truição das áreas de preservação permanen-te ou reserva legal.

Conclusão

Os imóveis rurais ou urbanos devem teros seus recursos naturais disponíveis –águas, terras e flora – socialmente aprovei-tados. Não sendo socialmente aproveitados,sujeitam-se à desapropriação por interessesocial, promovida pela União, pelos Esta-dos, pelo Distrito Federal e pelos Municípi-os, com fulcro na Constituição Federal e noart. 2 o, inciso VII, da Lei no 4.132, de10.9.1962, que conferem poderes a esses en-tes federados para a declaração do interes-se social objetivando a “proteção do solo e apreservação de cursos e mananciais de águae de reservas florestais”, de modo a respal-dar os interesses difusos da sociedade, rela-cionados com a proteção do solo, a preser-vação de cursos e mananciais de água e dereservas florestais.

Os imóveis rurais cujas áreas de preser-vação permanente e de reserva legal foremdepredadas (destruídas), com evidente de-sequilíbrio para o meio ambiente e preteri-ção à saudável qualidade de vida a que to-dos os membros da sociedade têm direitosujeitam-se à desapropriação por interessesocial, para fins de reforma agrária, por feri-mento à função social e ecológica da propri-edade inserida no art. 186, II, da Constitui-ção Federal, desde que seus proprietários serecusem a adotar as medidas de recomposi-ção das áreas degradadas, procedendo-se àdeclaração na forma do art. 184 da CartaPolítica, art. 2o da Lei no 8.629/93, arts. 18 e20 do Estatuto da Terra e ao processamentojudicial na forma da Lei Complementar no

76 e suas posteriores alterações.

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Anexo 1Distribuição da área nuclear dos Cerrados no Brasil (1:5.000.000)

Anexo 2

1. Diferenças na composição botânica entre três formas de vegetação savânica

Fonte: WWF – Fundo Mundial para a Natureza, Brasília, 199526

Estimativa de árvores por hectare Campo sujo Cerrado Cerradão

Número de árvores 203 911 2.231

Cobertura de árvores (% sombreamento) 6 34 93

Número de espécies de árvores 26 66 81

Número de herbáceo-arbustivas

3:1 a 4:125

Fonte: IBGE 1988, Mapa da Vegetação do Brasil, Apud Fundação Pró-Natureza, Brasília, 1996.

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2. Árvores e arbustos identificados no Bioma Cerrado

Fonte: Estado Ambiental de Goiás 2001. Goiânia e Brasília:Agência Ambiental & CEBRAC, p.68.

Número de espécies 774

Número de espécies endêmicas 429

Número de espécies lenhosas 28027

3. Espécies de animais descritos no Bioma Cerrado1

Répteis 180

Anfíbios 113

Aves 837

Mamíferos 195

Fonte: Estado Ambiental de Goiás 2001. Goiânia e Brasília:Agência Ambiental & CEBRAC, p. 70.

Anexo 3

Ocupação das áreas do Cerrado e projeção (em milhões de hectares)28

Área Anos

1970 1980 1985 1994 200029

Lavoura 4,1 7,9 9,5 11,5 12,5

Pastagem plantada 8,7 21,7 30,9 46,4 56,9

Ocupada não utilizada 7,5 9,6 10,3 11,6 12,3

Total ocupada (com a produção) 20,3 39,2 50,7 69,4 81,730

Total do estabelecimento 82,0 104,5 109,4 114,4 118,0

Pastagem/Total do estabelecimento (%) 10,6 20,8 28,2 40,6 48,2

Lavoura/Total do estabelecimento (%) 5,0 7,6 8,6 10,1 10,6

Fonte: Shiki (1997, p. 147).

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Anexo 4

Dados comparativos dos resultados dos Censos 1970–1995–1996 – Goiás

Utilização da terra (hectare) Ano Agrícola 197031 Ano Agrícola 1995 – 1996

Área total ocupada 35.783.038 27.472.648

Lavoura permanente 78.459 55.787 0,20%

Lavoura temporária 2.484.350 2.119.066 7,71%

Lavoura em descanso – 257.641 0,94%

Pastagem natural 19.423.118 5.137.285 18,70%

Pastagens plantadas 4.362.064 14.267.411 51,93%

Matas naturais 4.911.062 3.774.654 13,74%

Matas plantadas 24.598 72.652 0,26%

Produtivas não utilizadas 3.869.843 545.549 1,99%

Outros usos – 1.242.60332 4,52%

Tratores 5.692 43.313

Efetivo da pecuária

Bovinos (cabeças) 7.792.839 16.488.390

Suínos (cabeças) 1.680.387 1.004.074

Aves (cabeças) 7.003.000 13.281.000

Fonte: IBGE. Elaboração SEPLAN – GO/SEPIN – Gerência de Estatísticas Econômicas.

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Anexo 5

1. Cobertura vegetal e uso do solo no Distrito Federal – % de área

Classes de Legenda 1954 1964 1973 1984 1994 1998

Mata 18,82 16,25 15,14 12,57 11,94 9,94

Cerrado 37,84 34,18 30,29 18,11 17,29 9,91

Campo 43,28 47,35 43,79 38,22 24,90 22,45

Corpo d’água 0,02 0,70 0,82 0,99 1,02 0,92

Área agrícola 0,02 0,44 6,06 20,80 36,79 46,32

Área urbana 0,02 0,80 2,10 3,68 4,84 6,57

Reflorestamento 0,00 0,00 0,00 3,33 2,06 1,59

Solo exposto 0,00 0,28 1,80 2,31 1,16 2,30

Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00

2. Perda de cobertura vegetal no Distrito Federal no período de 1954 – 1998

Classes de Legenda Área (hectare) perdida % do original

Mata 51.644 47,20

Cerrado 162.380 73,80

Campo 121.108 48,13

Total perdido 335.132 57,65

Uso antrópico da área desmatada

Corpo d’água 5.369 –

Área agrícola 269.366 –

Área urbana 38.179 –

Reflorestamento 9.236 –

Solo exposto 13.335 –

Fonte: UNESCO, 2000.33

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Notas1 Quadros demonstrativos da ocupação do solo

com a agricultura e a pecuária na região do Cerra-do em geral, no Estado de Goiás e no DistritoFederal, encontram-se nos anexos 3, 4 e 5.

2 Quadros estimativos de número de árvores earbustos existentes por hectare no Cerrado e quan-tidade de espécies vegetais e animais já identifica-das no Bioma Cerrado encontram-se no anexo 2.

3 Mapa ilustrativo da distribuição da área nu-clear do Cerrado encontra-se no anexo 1.

4 Realizadas no exercício das funções de Vice-Executor e Executor dos Projetos Fundiários Ara-guaína e Gurupi; Chefe da Divisão de RecursosFundiários e Superintendente-Adjunto do Institu-to Nacional de Colonização e Reforma Agrária, nosEstados de Goiás e Tocantins (de 1974 a 1994).

5 VII Coloquio del Comité Europeo de DerechoAgrario, celebrado en La Haya, en 1973.

6 Exemplos típicos contidos nos incisos IV e Vdo art. 2o da mesma lei: “a manutenção de possei-ros em terrenos urbanos onde, com a tolerância ex-pressa ou tácita do proprietário, tenham construí-do sua habitação, formando núcleos residenciaisde mais de dez famílias”; e a “construção de casaspopulares”.

7 De acordo com o art. 2o, §1o, a função social écumprida quando a propriedade simultaneamen-te: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dostrabalhadores que nela labutam, assim como desuas famílias; b) mantém níveis satisfatórios deprodutividade; c) assegura a conservação dos re-cursos naturais; d) observa as disposições legaisque regulam as justas relações de trabalho entre osque a possuem e a cultivam.

8 Casos típicos descritos nos arts. 18, alínea b, e20, inciso V: “promover a justa e adequada distri-buição da propriedade” e desapropriar as “áreasque apresentem elevada incidência de arrendatári-os, parceiros e posseiros”.

9 O módulo rural varia segundo o tipo de ex-ploração (hortigranjeira, lavoura temporária, lavou-ra permanente, pecuária, florestal e indefinida) e amicrorregião em que se situa o imóvel. Posterior-mente, a Lei no 6.746/79 instituiu o módulo fiscal,calculado por município, levando em conta o tipode exploração predominante, a renda predominan-te, outras explorações não predominantes mas ex-pressivas em função da renda ou da área utilizadae o conceito de propriedade familiar.

10 Lei no 4.504, de 30.11.1964, art. 4o, inciso V,alíneas a e b.

11 Essa lei deu nova redação aos artigos 49 e 50da Lei no 4.504, de 30.11.64 – Estatuto da Terra.

12 Para fins de reforma agrária, pequena propri-edade é o imóvel rural de área entre um e quatromódulos fiscais e média propriedade é o imóvel de

mais de quatro e até quinze módulos fiscais domunicípio, conforme regulamentado posteriormentepela Lei no 8.629/93.

13 As reticências entre parênteses referem-se, naspalavras de Galbraith, à economia moderna repre-sentada, exemplarmente, pelos Estados Unidos e aintervenção no Iraque, influenciada pela força dosinteresses econômicos das indústrias de petróleo ebélica.

14 Entrevista ao Programa Roda Viva da TVCultura de São Paulo, em 2004.

15 Recursos disponíveis da flora são apenas oslocalizados na área economicamente aproveitável,também chamada de área agricultável, vale dizer,é a área líquida obtida com a dedução das áreas depreservação permanente e de reserva legal, além deoutras que não interessam ao objeto do artigo.

16 Arts. 6o, § 1o; 10, inciso IV, e 9o, §§ 1o, 2o e 3o,da Lei no 8.629/93.

17 Instituto Nacional de Colonização e ReformaAgrária, criado pelo Decreto-lei no 1.110/71, emsubstituição ao Instituto Brasileiro de ReformaAgrária e Instituto Nacional de DesenvolvimentoAgrário.

18 Esse Decreto regulamenta o Estatuto da Ter-ra em seu Título I – Disposições Preliminares, Ca-pítulo I – Princípios e Definições, e o Título II – DaReforma Agrária, Capítulo IV – Da Execução e daAdministração da Reforma Agrária, Seção III – DoZoneamento e dos Cadastros.

19 O CNDRS é integrado por vinte e nove mem-bros, sendo nove Ministros de Estado, dois Secretá-rios do Ministério do Desenvolvimento Agrário, doPresidente do Incra, do Secretário Executivo do Pro-grama Comunidade Solidária e dezesseis represen-tantes de vários órgãos oficiais federais e estadu-ais, associações de municípios e entidades priva-das.

20 A Lei no 9.605, de 12.2.1998, considera crimecontra a flora, com pena de detenção de 1 (um) a 3(três) anos, ou multa, ou ambas as penas cumula-tivamente, “destruir ou danificar floresta conside-rada de preservação permanente, mesmo que em for-mação, ou utilizá-la com infringência das normasde proteção” e “cortar árvores em floresta conside-rada de preservação permanente, sem permissãoda autoridade competente” (arts. 38 e 39). A Lei no

5.197, de 3.1.1967, por sua vez, considera de pro-priedade do Estado e proíbe a destruição dos ani-mais de quaisquer espécies, em qualquer fase doseu desenvolvimento e que vivam naturalmente forado cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bemcomo seus ninhos, abrigos e criadouros naturais(art. 1o).

21 A teor do art. 225, § 3 o, da Constituição Federal,as condutas e atividades consideradas lesivas aomeio ambiente sujeitarão os infratores a sançõespenais e administrativas, independentemente da

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obrigação de reparar os danos causados, traduzin-do responsabilidade objetiva.

22 Diga-se de passagem que o Decreto no 95.715,de 10.2.1988, ao regulamentar o Decreto-lei no

2.363, de 21.10.1987, como já fizera este em rela-ção aos imóveis passíveis de reforma agrária, esta-beleceu no art. 6o, § 2o, alíneas e (e) f, que não secomputam como áreas em produção as terras des-tinadas a proteção e conservação de recursos hídri-cos de uso comum ou necessárias à preservaçãoambiental.

23 O art. 130, § 2 o, da Constituição do Estado deGoiás, de 5.10.1989, considera de preservação per-manente e obriga a recomposição, onde necessário,da vegetação marginal aos cursos d’água, nascen-tes e margens de lago e topos de morro, numa ex-tensão que será definida em lei.

24 Cf. Mendonça; Filgueiras, 1998 apud Farias(2002, p. 9-10).

25 As estimativas são de Ribeiro, Silva eBatmanian ([199_?]) apud Alho e Martins (1995,p. 13).

26 As lenhosas foram identificadas por Ratter,em 2000.

27 Cf. Shiki, 1997 apud Theodoro, (2002, p. 152).28 Os dados de 2000 são estimativas feitas por

Shiki em 1997.29 Na obra Dilemas do Cerrado, está grafado,

por equívoco, o total ocupado de 118,0 milhões dehectares daí por que foi feita a necessária correçãono texto.

30 Antes do desmembramento político do To-cantins pela Constituição Federal de 1988, o Esta-do de Goiás tinha área de 642.036 km2 (= 64.203.600hectares)

31 Área utilizada por outras formas (outrosusos) foi acrescida na edição Goiás em Dados, p.18.

32 Cf. Duarte (2002, p. 19).

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1. Introdução

A propriedade, antes de um conceito ju-rídico, é um conceito cultural. Certamenteum dos debates mais presentes no direitocivil contemporâneo, e, de modo geral, naprópria ciência do direito desde algum tem-po, diz respeito à exata dimensão do con-ceito de propriedade e suas diversas reper-cussões em matéria da regulação do modode apropriação da riqueza pelo ser huma-no. Reconstituindo a história do conceito,Paolo Grossi (1992, p. 58), em estudo conhe-cido, observa que o modo mais apropriadode identificar-se a propriedade é defini-lacomo espécie de mentalidade jurídica1, toma-da esta como um conjunto de valores enrai-zados em certo âmbito espacial e cultural, eque em cada etapa da história respeita umperfil específico. No caso, traça o professoritaliano um paralelo entre as diferentes con-cepções sobre a propriedade no direito me-dieval e moderno, cujos elementos de senti-

O artigo 1.228 do Código Civil e os deveresdo proprietário em matéria de preservaçãodo meio ambiente

Bruno Miragem

Bruno Miragem é Doutorando e Mestre emDireito (UFRGS). Especialista em Direito In-ternacional e em Direito Civil (UFRGS). Coor-denador Acadêmico do Curso de Pós-Gradua-ção em Direito do Consumidor da UFRGS; Pro-fessor dos Cursos de Pós-Graduação em Direi-to Internacional e de Regulação dos ServiçosPúblicos da UFRGS. Professor de Direito Civilda UNIRITTER e da Faculdade São Judas Tadeu.

Sumário1. Introdução. 2. O novo Código Civil e a

definição jurídica de propriedade. 2.1. A pro-priedade como fonte de deveres jurídicos. 2.2.A propriedade como fonte de deveres jurídicosem matéria de preservação do meio ambiente.3. Definição legal de propriedade e os deveresdo proprietário em matéria de preservação domeio ambiente. 3.1. Deveres do proprietário elegislação ambiental. 3.2. Deveres do proprie-tário e o direito de indenização. 4. Conclusões.

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do, profundamente influenciados pelafilosofia liberal de fins do século XVIII(WIEACKER, 1993, p. 717)2, desembarcamna célebre definição legal do Code civil na-poleônico, em seu artigo 544, indicando apropriedade como o direito que o seu titularexerce de la manière la plus absolute. Daí é quesurge a identificação decisiva entre propri-edade e sujeito: “uma modelação tão estritacomo para parecer quase uma identificação:a propriedade é somente o sujeito em ação,o sujeito na conquista do mundo. Idealmen-te, as barreiras entre eu e meu caem”(WIEACKER, 1993, p. 130). A célebre defini-ção legal do Code, por certo, não é apenas arealização de um projeto ideológico da bur-guesia que ascendera ao poder na Françapós-revolucionária, mas também o resulta-do do amadurecimento de uma certa com-preensão individualista da identidade e dis-ciplina dos direitos subjetivos em geral (RO-DOTÁ, 1986, p. 102).

Daí surge o clássico conceito, demons-trado entre nós por Pontes de Miranda (1977,p. 10), segundo o qual a propriedade englo-ba um feixe de poderes jurídicos, a partir doqual o proprietário pode a princípio “utili-zar a coisa, ou destruí-la, gravá-la ou prati-car outros atos de disposição”. Ou seja, tra-ta-se de direito exclusivo e excludente, cu-jas prerrogativas são reconhecidas ao titu-lar do direito, com a conseqüente exclusãode todos os demais, aos quais incumbe omero dever de pacere (suportar). Nesse senti-do, integram o pólo passivo da relação jurí-dica de propriedade, identificando-se todosque não o titular do direito como sujeitos pas-sivos; todos titulares do dever de abstençãooponível erga omnes pelo proprietário.

Essa noção de propriedade, como é sabi-do, altera-se substancialmente em meadosdo século XX, influenciada por novas ten-dências cuja marca será o reconhecimentoda necessidade de se considerar, na concep-ção e exercício dos diversos poderes jurídi-cos vinculados à propriedade e a outros di-reitos subjetivos, uma dimensão de sociali-dade (GIERKE, 1904). Assim é que – em rá-

pida síntese – se passa a reconhecer em re-lação à propriedade o direito de o seu titu-lar exercer as prerrogativas que lhe são ine-rentes até onde tal exercício não ofenda odireito de outrem. E nesse caso, para limita-ção dos limites do exercício – como bem afir-ma Pontes de Miranda (1977, p. 27) – não seestará a indagar de malícia ou má-fé do pro-prietário para indicar tal exercício como ir-regular, mas sim da existência de uma irre-gularidade objetiva.

Atualmente o direito de propriedadepassa a caracterizar-se como espécie depoder-função, uma vez que, desde o planoconstitucional, encontra-se diretamente vin-culado à exigência de atendimento da suafunção social (PETTER, 2005, p. 208; RIOS,1994, p. 17-27). Nesse sentido, a posição detitular da propriedade impõe, ao lado dasprerrogativas que lhe são inerentes, o cum-primento de deveres vinculados a outrosbens jurídicos igualmente tutelados. Entreesses estão os deveres jurídicos decorrentesdo direito fundamental de preservação domeio ambiente, previsto no artigo 225 daConstituição3.

Este trabalho não tem por finalidadeavançar indistintamente sobre todos os con-dicionamentos da propriedade, estabeleci-dos ou não pela Constituição. Concentra-se, por outro lado, no exame da definição dapropriedade no novo Código Civil e sua in-terpretação em razão do dever geral de pre-servação do meio ambiente consagrado nodireito brasileiro a partir da Constituição.Seus objetivos, assim, cingem-se em duasdireções: primeiro, a identificação do devergeral de proteção do meio ambiente comoespécie de condicionamento do direito depropriedade e de sua função social; e segun-do, o exame desses deveres e sua conforma-ção na legislação ordinária.

2. O novo Código Civil e a definiçãojurídica de propriedade

No século XIX, propunha LafayetteRodrigues Pereira (1985, p. 63-64), duas de-

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finições de propriedade. Uma em sentido ge-nérico, abrangendo todos os direitos que for-mam o patrimônio do indivíduo, e que por-tanto podem ser reduzidos a valor pecuniá-rio; e outro restrito, compreendendo apenaso direito que tem por objeto direto e imedia-to as coisas corpóreas, assinalando que aessa concepção restrita denomina-se igual-mente domínio. Ao domínio, de sua vez in-dicava o jurista, em seu Direito das cousas,três atributos essenciais: “1. que o domínioenvolve a faculdade de gozar de todas asvantagens e utilidades que a cousa encerra,sob quaesquer relações; 2. que é illimitado, ecomo tal inclue em si o direito de praticarsobre a cousa todos os actos que são compa-tíveis com as leis da natureza; 3. que é desua essencia exclusivo, isto é, contém em sio direito de excluir da cousa a acção de pes-soas estranhas”(PEREIRA, 1985, p. 64-65).

Legalmente, contudo, a definição jurídi-ca de propriedade fez-se entre nós em ra-zão, essencialmente, dos poderes inerentesa ela a partir do titular destes, o proprietá-rio4. Desse modo, está previsto no artigo 524do Código Civil de 1916: “a lei assegura aoproprietário o direito de usar, gozar e dis-por de seus bens, e de reavê-los do poder dequem quer que injustamente os possua.”5 Adefinição jurídica de propriedade, assim, emnosso direito, completava-se pela precisãode sua plenitude (artigo 5256), em relação àqual se estabelecia presunção em favor doproprietário (artigo 5277), ao mesmo tempoque se determinava a extensão do objeto darelação jurídica proprietária de bens imó-veis na medida da sua utilidade (artigo 5268).

A definição clássica de propriedade fez-se, portanto, em destaque dos poderes quelhe são inerentes e suas características deplenitude e exclusividade. Contudo, desde al-gum tempo, tal concepção da propriedade –conforme assinalamos – deixou de ser vis-lumbrada em termos absolutos, próprios desuas origens. Seguiram-se nessa direção osestudos de fins do século XIX e início doséculo XX, que a partir do direito subjetivode propriedade reconheceram em toda a

categoria dos direitos subjetivos a necessi-dade de imposição de limites jurídicos, cujaviolação dissocia a existência do direito (coma proteção que o ordenamento jurídico lheconfere) e o exercício desse mesmo direito, oqual poderia, sim, qualificar-se como abusi-vo e, nesse sentido, ilícito . A teoria do abusodo direito9, desde seus primórdios, ainda queseja insistentemente vinculada por muitosautores até hoje (THEODORO JÚNIOR,2002, p. 28) como tendo uma matriz subjeti-va (de rejeição dos atos meramente emulati-vos)10, na verdade desenvolve internamenteno direito civil a primeira tese organizadaque reconhece a possibilidade de imposi-ção de limites ao exercício dos direitos sub-jetivos de natureza social, permitindo assimidentificar no mau exercício, ou no exercícioque descuida da finalidade social e econômicado instituto da propriedade, um ato a sercoibido e, portanto, sancionado pela ordemjurídica (MORAES, 1985, p. 11-26).

2.1. A propriedade como fontede deveres jurídicos

É certo que nada se equivale em impor-tância para a alteração substantiva da no-ção clássica de propriedade em sua matrizjusracionalista ao tratamento que lhe vãooferecer os artigos 27, §3o, da ConstituiçãoMexicana, de 1917, e 153, §3o, da Constitui-ção de Weimar, da Alemanha, de 1919. Anorma mexicana vai consagrar, entre outroscondicionamentos aos direitos do proprie-tário, que “a Nação terá em todo o tempo odireito de impor à propriedade privada asmodalidades que dite o interesse público(...)” (CARROZA; ZELEDÓN, 1990, p. 19).Já a norma constitucional alemã, de sua vez,indica: “a propriedade obriga. Seu uso tam-bém deve servir ao bem da comunidade”11.

Duas as razões principais do profundoimpacto dessas normas no modo de conce-ber-se a propriedade em direito privado.Primeiro, o fato de adotar-se a previsão deum instituto típico do direito privado naConstituição, norma de direito público. Asegunda, visível com nitidez sobretudo na

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regra alemã – reproduzida em 1949 no arti-go 14 da Lei Fundamental de Bonn –, é exa-tamente que a propriedade, antes vista comofonte exclusiva de poderes jurídicos (jusutendi, fruendi e abutendi), passa a ser vis-lumbrada igualmente como fonte de deve-res jurídicos do seu titular em relação à co-munidade.

A evolução posterior do conceito é co-nhecida. Entre nós, a partir da Constituiçãode 1934 inicia-se a modificação substancialdo conceito de propriedade em relação aoscontornos originários do direito civil clássi-co. Em seus artigos 113 e 118, estabeleceucomo propriedades distintas do solo as mi-nas e as quebras d’água para fins de explo-ração ou aproveitamento industrial e, sobre-tudo, determinou que o direito de proprie-dade não poderia ser exercido contra o interessesocial ou coletivo12. A transformação da no-ção de propriedade em direito brasileiro13

veio a se consolidar, contudo, a partir daConstituição de 1946, quando esta estabele-ceu que o uso da propriedade deve estarcondicionado ao bem-estar social, assimcomo fez uma primeira referência a que serealize a justa distribuição da propriedade, comigual oportunidade para todos (artigos 141,§16, e 147). A expressão função social da pro-priedade, de sua vez, restou consagrada emnosso sistema apenas com a Constituiçãode 1967, na qualidade de princípio infor-mador da ordem econômica (artigo 157, III).

Na Constituição vigente, de 1988, o cons-tituinte indicou à função social da proprie-dade um lugar de destaque na morfologiaconstitucional. A rigor, a previsão normati-va da função social determina-lhe duas di-ferentes qualidades: trata-se ao mesmo tem-po de um dever jurídico oponível ao titulardo direito de propriedade (artigo 5o, incisoXXIII) e de princípio informador da ordem eco-nômica (artigo 170, inciso III), nos termos doque já havia sido consagrado pela ordemconstitucional anterior. Ao mesmo tempo, otexto constitucional distingue, no que se re-fere ao atendimento dessa função social,quanto ao fato de tratar-se de propriedade

urbana ou rural. No primeiro caso, remete-se a aferição do atendimento da função so-cial às exigências fundamentais de ordena-ção da cidade expressas no plano diretor(artigo 182, §2o). Em relação à propriedaderural, o artigo 186 da Constituição estabele-ce quatro critérios14 para aferição do cum-primento do preceito.

A pergunta do que seja propriedade, ouseja, a definição jurídica de propriedade nodireito brasileiro hoje, não prescinde da exa-ta determinação das coordenadas consti-tucionais acerca do tema; seja no que se re-fere à sua função social – conforme já referi-mos – ou mesmo em relação às limitaçõesestabelecidas em razão do interesse públicoprevistas na Constituição ou na legislaçãoinfraconstitucional que lhe conforma.

Em primeiro lugar, passa-se a conside-rar não mais a existência de conceito uno eabstrato de propriedade, subordinado a umregime jurídico geral (TEPEDINO, 1999, p.278), passando-se a admitir sua diversifica-ção em novas e diferentes formas de apro-priação de bens (RODOTÁ, 1986, p. 253).

Para alguns autores, todavia, a funçãosocial prevista pela Constituição para a pro-priedade privada e o reconhecimento dodireito de propriedade como direito huma-no – com sua correspondente função de pro-teção da pessoa – determinam a conseqüên-cia de que “nem toda a propriedade há deser considerada direito fundamental, ecomo tal protegida” (COMPARATO, 1997,p. 92-99). O desenvolvimento desse raciocí-nio leva à distinção entre diferentes espéci-es de propriedade, sendo algumas merece-doras de um tratamento especial do direitopositivo (no caso das próprias normas cons-titucionais que protegem a pequena e mé-dia propriedade rural15) e outras com defi-nição aplicável apenas ao direito ordinário.

Em conseqüência, no que se refere à pro-priedade reconhecida como direito funda-mental e à função social assegurada emmesmo nível pela Constituição, sua consi-deração implica o reconhecimento de deve-res fundamentais que lhe são correspecti-

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vos (ius et obligatio correlata sunt). Esses de-veres, de sua vez, teriam sua determinaçãoreconhecida ao legislador ordinário (artigos182, §2o, e 187 da CR/88) (COMPARATO,1997, p. 96), que, estritamente vinculado aospreceitos constitucionais, deverá estabele-cer que o fato do descumprimento da fun-ção social da propriedade retira do proprie-tário as garantias de proteção judicial e ex-trajudicial inerentes a esse direito, como porexemplo os instrumentos de proteção pos-sessória e o direito a prévia e justa indeni-zação16.

Não se desconhece que, ao elevar a pro-priedade à categoria constitucional, vincu-lou-se a mesma de modo definitivo ao cum-primento da função social, terminando pordiminuir em certo grau o nível de garantia/proteção indicado ao direito, em face da suaprópria relativização (RODOTÁ, 1986, p.324-375 passim). Da mesma forma, funcio-nalização do direito significa sua vinculaçãoa objetivos projetados, o que certamente im-põe ao titular da propriedade deveres ine-rentes à realização dos mesmos.

Contudo, não se deve chegar ao limitede condicionar sua proteção jurídica em re-lação a terceiros ao cumprimento da funçãosocial; inclusive pelo fato de que, nessa pro-teção, incluem-se prerrogativas de outranatureza, independentes da existência dodireito de propriedade, como é o caso daposse17.

A rigor, a função social da propriedaderelacionada no catálogo de direitos funda-mentais tem como primeira conseqüência avinculação, desde o ápice da pirâmide nor-mativa, da correlação entre o direito subjeti-vo de propriedade e o dever jurídico oponí-vel ao seu exercício, de cumprimento à res-pectiva finalidade social. Trata-se, assim, deuma espécie de poder-função18 ou poder-dever(COMPARATO, 1986, p. 76), cujos condici-onamentos específicos serão estabelecidospelo legislador a partir das coordenadasconstitucionais, como é o caso das obriga-ções relativas ao uso racional e adequadoda propriedade rural, na ordenação da ocu-

pação do espaço urbano, ou pertinentes àutilização adequada dos recursos naturaisdisponíveis e preservação do meio ambien-te.

2.2. A propriedade como fontede deveres jurídicos em matériade preservação do meio ambiente

O novo Código Civil, ao consagrar o di-reito de propriedade, o faz em termos maisamplos do que o de 1916. Nesse sentido, aomesmo tempo em que seu artigo 1.228, caput,tenha praticamente reproduzido o artigo doCódigo anterior, apenas com o acréscimo dereferência expressa à possibilidade de rei-vindicação pelo proprietário também na hi-pótese de detenção19, incluiu na mesma dis-posição conceitual elementos que induzempara uma nova definição de propriedadedentro do direito civil.

O artigo 1.228 do Código Civil, ao tratarde definir a propriedade, o faz de modo co-ordenado com uma série de outros interes-ses juridicamente protegidos pela Constitui-ção. É esse o caso da tutela dirigida à possecoletiva e da possibilidade de desapropria-ção judicial para fins de regularização fun-diária (§§4o e 5o)20, ou da previsão acerca dadesapropriação por necessidade ou utilida-de pública, ou interesse social (§3o)21. E nãose trata apenas de a interpretação da normade direito civil dar-se em acordo com as dis-posições constitucionais22, senão que estastêm o objetivo de conformar23, para aplica-ção às situações concretas, as normas asse-curatórias de direitos ou posições jurídicasestabelecidas na Constituição24.

No que interessa a este estudo, contudo,de maior interesse é o §1o do artigo 1.228 doCódigo Civil. Refere essa norma que: “O di-reito de propriedade deve ser exercido emconsonância com as suas finalidades eco-nômicas e sociais e de modo que sejam pre-servados, de conformidade com o estabele-cido em lei especial, a flora, a fauna, as bele-zas naturais, o equilíbrio ecológico e o pa-trimônio histórico e artístico, bem como evi-tada a poluição do ar e das águas.”

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Discorrendo sobre a propriedade, referePontes de Miranda (1977, p. 18) que “todo odireito subjetivo é linha que se lança em cer-ta direção. Até onde pode ir, ou até ondenão pode ir, previsto pela lei, o seu conteú-do ou seu exercício, dizem-no as regras li-mitativas, que são regras que configuram,que traçam a estrutura dos direitos e de suaexercitação. O conteúdo dessas regras sãoas limitações”.

No caso, o §1o do artigo 1.228 do CódigoCivil, ao dispor sobre o exercício do direitode propriedade, incorpora, em termos legis-lativos, o que já reconhecia a doutrina, oumesmo a legislação especial em matéria depreservação ambiental, que o exercício dapropriedade não pode se dar de modo lesi-vo/nocivo ao meio ambiente. Isso não seconfunde com as limitações ou condiciona-mentos da propriedade com natureza ad-ministrativa (como o tombamento, desapro-priação)25, ainda que com eles se relacione.Mas trata-se na verdade de elementos inter-nos da própria definição do direito de pro-priedade.

Antônio Herman Benjamin (1997, p. 33-41), ao discutir os limites do direito de pro-priedade em artigo escrito antes da vigên-cia do Código Civil de 2002, distingue seuslimites em duas espécies: limites internos eexternos, ambos expressando o desejo do le-gislador de, ora resguardar o indivíduo iso-ladamente considerado, ora alcançar obje-tivos supraindividuais. Os limites internosseriam aqueles conceituais típicos do direi-to de propriedade, como é o caso dos direi-tos dos outros proprietários, dos direitos devizinhança, de proteção da saúde pública edo resguardo dos bons costumes. Os limitesexternos seriam decorrência das exigênciasde convivência em sociedade, refletindo pre-ocupações mais complexas e difusas, tendopor origem comum a função social da pro-priedade.

Com o advento do artigo 1.228 do novoCódigo Civil, e em especial de seu §1o, essadistinção parece perder espaço. A primeiraconseqüência dessa nova definição legal é

a eliminação de uma série de aparentes con-flitos entre o direito de propriedade e o di-reito ao meio ambiente, porquanto aquelepassa a ser reconhecido, em termos concei-tuais, apenas nas hipóteses em que é exerci-do de modo a respeitar integralmente este.Daí é que uma segunda questão aparece,como exigência de uma interpretação ade-quada – compatível com a Constituição –desse novo conceito de propriedade: objeti-vamente, no que consistiriam os deveres depreservação do meio ambiente, referidos no§1o do artigo 1.228?

Em termos de imposição de deveres e afe-rição do seu cumprimento por aqueles aquem são endereçados, não é possível ficaradstrito aos termos do §1o do artigo 1.228.Inclusive porque o controle eficiente do cum-primento desses deveres depende da suarazoável precisão em termos normativos.

Não está aqui uma crítica ao legislador.Ao contrário. Em termos conceituais, o arti-go 1.228 estabeleceu uma norma até onde oCódigo Civil deve fazê-lo, ou seja, indican-do a natureza dos poderes inerentes à pro-priedade, as disposições que realizam/con-formam direitos ou posições jurídicas de-terminadas pela Constituição e as pautasindicadas ao exercício do respectivo direitosubjetivo. Em relação a essas últimas, con-tudo, o próprio §1o do artigo 1.228 remete àlei especial o estabelecimento dos deveresjurídicos relativos à preservação da flora efauna, das belezas naturais, do equilíbrioecológico e do patrimônio histórico e artísti-co, assim como para que seja evitada a po-luição do ar e das águas.

Daí por que o detalhamento dos deveresjurídicos do proprietário em relação à pre-servação ambiental só pode ser realizadotendo em vista a legislação especial, aindaque no próprio Código Civil localizem-sedisposições que, sob certas circunstânciasfáticas, têm sua aplicação vinculada à reali-zação do meio ambiente – caso, por exem-plo, dos artigos 1.27726, 1.29127 e 1.30928. Es-ses deveres, então, vão se apresentar tantocomo deveres relativos à disposição dos bens

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móveis e imóveis de modo a não permitirlesão ao ambiente, quanto deveres vincula-dos às prerrogativas de uso e gozo dos bens.Em qualquer caso, poderá consistir tanto naabstenção de uma determinada atuação emque o exercício da propriedade possa gerarespécie de degradação ou dano ao meioambiente, quanto em um comportamento po-sitivo, pelo qual, em face da titularidade dodireito sobre a coisa, seja exigida do propri-etário a realização de um dever positivo, umdever típico de prestação.

3. Definição legal de propriedade e osdeveres do proprietário em matériade preservação do meio ambiente

A definição legal de propriedade no novoCódigo Civil, como vimos, condiciona ex-pressamente a regularidade do exercício dodireito ao cumprimento de deveres de pre-servação do meio ambiente. A definição des-ses deveres, de sua vez, foi indicada à legis-lação especial de proteção do meio ambien-te, por expressa remessa da norma geral doCódigo.

A proteção do meio ambiente no direitobrasileiro é assegurada em razão do direitofundamental estabelecido no artigo 225 daConstituição, que refere: “Todos têm direitoao meio ambiente ecologicamente equilibra-do, bem de uso comum do povo e essencialà sadia qualidade de vida, impondo-se aoPoder Público e à coletividade o dever dedefendê-lo e preservá-lo para as presentes efuturas gerações”. Para tanto, o §1o do mes-mo artigo 22529 remete ao legislador ordiná-rio uma série de providências legislativas,como é o caso da proteção da flora e da fau-na (inciso VII) e a exigência de estudo pré-vio de impacto ambiental, para instalaçãode obra ou atividade potencialmente lesi-vas ao meio ambiente (inciso IV).

O direito fundamental ao meio ambien-te, nesse sentido, pertence à categoria de di-reitos fundamentais que Robert Alexy (2001,p. 96) denomina direitos a algo, consistenteem ações positivas e negativas do Estado,

de abster-se da realização de ações danosasao meio ambiente (negativa); ou de realizarprestações de natureza fática ou normativa(positivas), visando sua promoção ou pro-teção (ALEXY, 2001, p. 196) do bem juridi-camente protegido30.

A prestação normativa do Estado, nessecaso, além do estabelecimento das defini-ções jurídicas dos bens protegidos, o faráigualmente em vista do estabelecimento dosdeveres jurídicos exigíveis da comunidadepara efetivação do direito constitucional-mente assegurado (GAVIÃO FILHO, 2005,p. 160-163). Nesse particular, a interpreta-ção do artigo 1.228, §1o, do Código Civil, noque diz respeito à precisão da definição ju-rídica de propriedade, guarda relação ne-cessária com as definições estabelecidas nalegislação ambiental.

Os conceitos adotados na norma de di-reito civil pertinentes à matéria ambientalsão “a flora, a fauna, as belezas naturais, oequilíbrio ecológico e o patrimônio históri-co e artístico”, assim como faz-se expressareferência ao mandamento de evitar “a po-luição do ar e das águas”. Desejou certa-mente o legislador civil ampliar o âmbito deproteção normativo, ao lançar mão de di-versas expressões indicativas dos bens jurí-dicos a serem considerados no exercício dapropriedade, com vistas a assegurar-se dorespeito ao meio ambiente no tocante às re-lações jurídicas que lhe digam respeito.

Equilíbrio ecológico

Das expressões utilizadas, talvez a deequilíbrio ecológico seja a que maior signifi-cado tenha em termos de limitação do exer-cício do direito de propriedade. A própriaConstituição adota o conceito de equilíbrioecológico quando define o direito funda-mental ao meio ambiente. Esta qualificaçãonão deve ser desprezada, uma vez que – noexato entendimento de José Afonso da Silva(2004, p. 87) – “apresenta valor teleológicomais aberto e mais amplo do que o sentidofinalístico concreto” do que a opção de ou-tros países, como é o caso da Constituição

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espanhola. Conclui, então, indicando que“o termo empresta sentido especial ao equi-líbrio ambiental, que não há de ser estático,mas também não puramente natural”31.

A concepção de equilíbrio ecológico , as-sim, remete a uma exigência qualitativa, deque não é bastante para o respeito aos limi-tes do exercício da propriedade a manuten-ção de qualquer equilíbrio, senão daqueleem conformidade com os preceitos ecológi-cos. Tal qualificação remete à noção de coe-xistência saudável e apta à preservação davida, entre os interesses do proprietário e aproteção dos bens submetidos a seu poder,bem como em relação aos interesses da co-munidade, dados os reflexos da atuação doproprietário no exercício de suas prerroga-tivas jurídicas.

Fauna e flora

A fauna e a flora, ainda que não se tenhauma definição legal específica, são tomadasem seu sentido comum, com o competenteaporte científico, designando todos os seresvivos, animais e vegetais, em suas relaçõescom o ambiente. Em relação à fauna – comoanota Paulo Affonso Leme Machado (2003,p. 126) –, a Constituição estabelece três as-pectos principais de sua proteção, quais se-jam: a vedação de práticas que coloquem emrisco sua função ecológica; práticas que pos-sam provocar a extinção de espécies; e práti-cas que submetam os animais à crueldade.

Patrimônio histórico e artístico

O patrimônio histórico e artístico é de-terminado, no direito brasileiro, a partir daspróprias normas constitucionais, como partedo patrimônio cultural do país. O artigo 216da Constituição refere: “constituem patri-mônio cultural brasileiro os bens de nature-za material e imaterial, tomados individu-almente ou em conjunto, portadores de refe-rência à identidade, à ação, à memória dosdiferentes grupos formadores da sociedadebrasileira”. Seu inciso V, então, vai incluirno patrimônio cultural “os conjuntos urba-nos e sítios de valor histórico, paisagístico,

artístico, arqueológico, paleontológico, eco-lógico e científico”.

A qualificação de determinado conjuntode bens como dotados de valor próprio paraintegrarem o patrimônio cultural, e daí de-terminarem limitações ao exercício do direi-to de propriedade por seus titulares, respei-tará a procedimento estabelecido em lei. Oque no caso, por se encontrarem vincula-dos, em nível constitucional, à competênciacomum dos entes federados (proteção depaisagens naturais notáveis – artigo 23, in-ciso III), ou à competência legislativa con-corrente, no que se refere à proteção do pa-trimônio paisagístico (artigo 24, VII), vaisubordinar-se aos preceitos normativos edi-tados nos três níveis da Federação.

Belezas naturais

Ínsita à determinação do significado depatrimônio histórico e artístico previsto no ar-tigo 1.228, §1o, do Código Civil está a de be-lezas naturais, igualmente referida nessamesma norma. Em nível constitucional, adiscussão aproxima-se da interpretação doconceito de patrimônio paisagístico , presentenos artigos 216, inciso V, e 24, inciso VII, daConstituição. Examinando a questão, a dou-trina especializada (MACHADO, 2003, p.129) refere que a noção de patrimônio é maislarga do que a de propriedade, projetando umrelacionamento de gerações, na medida emque as gerações presentes conservarão pai-sagens não apenas para si, mas para as quevirão. Nesse sentido, defende-se que tal con-cepção não serve para torná-la imobiliza-da, mas, sim, conferir-lhe durabilidade, porprocessos de desenvolvimento sustentado.

Então que se sugere a definição de paisa-gem como sendo “a relação que se estabeleceentre um lugar e um momento concreto, entreum observador e o espaço que ele abrangecom o olhar” (MORAND-DEVILLER, 1994).Trata-se de uma relação entre sujeito e obje-to, que não pode ser dissociada, sendo oobjeto percebido pelo sujeito, que dele reali-za uma descrição subjetiva (MACHADO,2003, p. 129).

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Uma interpretação jurídica da expressãobeleza natural, como exige o artigo 1.228, §1o,do Código Civil, reclama do intérprete o re-curso a um raciocínio semelhante. Tal comose identifica com a paisagem, a noção debeleza natural32 é igualmente definição quepressupõe a relação entre o sujeito que per-cebe e a coisa percebida, de modo a se encon-trar naquele o juízo valorativo de algo comobelo ou bom. Nesse caso, a formação do juízosobre os elementos naturais não constituirájamais uma decisão individual, mas sim umjuízo comum, a partir da Constituição, segun-do o qual os elementos do meio natural, exis-tindo em equilíbrio ecológico, são percebi-dos naturalmente como belos e bons. Daí porque sua preservação (não-degradação) deve-rá orientar, no sentido da lei, o exercício dodireito de propriedade por seu titular.

Poluição do ar e das águas

Em relação à poluição das águas e do ar,o §1o do artigo 1.228 determinou espécie decomportamento negativo, uma vez que in-dicou ao titular do direito um dever jurídicode evitar o fenômeno. Para determinação doconceito, deve ser admitida, com fins de in-terpretação, a definição fixada em outras leis,como é o caso do artigo 3o, inciso III, da LeiFederal no 6.938, de 31 de agosto de 1981,que estabeleceu o Plano Nacional do MeioAmbiente – PNMA. Define essa norma po-luição como: “a degradação da qualidadeambiental resultante de atividade que dire-ta ou indiretamente: a) prejudique a saúde,a segurança e o bem-estar da população; b)crie condições adversas às atividades soci-ais e econômicas; c) afete desfavoravelmen-te a biota; d) afete as condições estéticas ousanitárias do meio ambiente; e) lance maté-rias ou energia em desacordo com os pa-drões ambientais estabelecidos.”

Evidentemente que nesse aspecto, aindaque esteja prevista no §1o do artigo 1.228 doCódigo Civil a proibição para a atividadepoluente do ar e das águas, a interpretaçãodessa norma deve se dar de modo extensi-vo, alcançando também os outros bens da

vida integrantes do meio ambiente. Para tan-to, é extremamente útil o conceito de meioambiente fixado na mesma Lei Federal no

6.938/81, que, em seu artigo 3o, inciso I, in-dica-o como: “o conjunto de condições, leis,influências e interações de ordem física,química e biológica, que permite, abriga erege a vida em todas as suas formas”. Tantopara determinar ao §1o a técnica de interpre-tação conforme a Constituição, quanto paraindicar coerência interna com outros ele-mentos da própria norma – como o equilí-brio ecológico –, o §1o do artigo 1.228 doCódigo Civil não pode admitir outro signi-ficado que não seja a vedação expressa detoda espécie de poluição, considerando-se,pois, a degradação da qualidade ambientalem relação a qualquer bem da vida integran-te do patrimônio ambiental.

3.1. Deveres do proprietário elegislação ambiental

Resta ainda a definição dos deveres es-pecíficos do proprietário em matéria de pre-servação ambiental, o que por si só não podeser retirado diretamente da Constituição33

ou do Código Civil34, mas sim das diversasnormas especiais de proteção ambiental pre-vistas no direito brasileiro. Da mesma for-ma, esses deveres não se apresentam homo-gêneos para todas as relações jurídicas depropriedade, dependendo da espécie debens da vida subordinados ao direito subje-tivo, e sua relevância para o meio ambiente.

E, ainda que se possam indicar muitassituações em que a relação jurídica de pro-priedade de bens móveis ou equiparados atal apresenta relevância para a preservaçãodo meio ambiente (assim, por exemplo, apropriedade de animais em geral, integran-tes da fauna, ou mesmo de produtos polu-entes ou perigosos), é no tocante à proprie-dade imobiliária que o ordenamento jurídi-co vai tratar de impor um maior número decondicionamentos, sobretudo por sua rele-vância para preservação do meio ambiente.

É esse o caso das disposições previstasna Lei Federal no 9.985, de 19 de julho de

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2000, que estabelece o Sistema Nacional dasUnidades de Conservação. Tal diploma tempor finalidade, exatamente, o estabelecimen-to, sobre certos territórios cuja extensão serádeterminada pelo Estado, de deveres jurídi-cos específicos imponíveis aos proprietári-os visando sua preservação ambiental35 .Para tanto, institui as chamadas unidadesde conservação, definidas como o “espaçoterritorial e seus recursos ambientais, inclu-indo as águas jurisdicionais, com caracte-rísticas naturais relevantes, legalmente ins-tituído pelo Poder Público, com objetivos deconservação e limites definidos, sob regimeespecial de administração, ao qual se apli-cam garantias adequadas de proteção” (ar-tigo 2o, inciso I).

Trata-se, no caso, de um regime jurídicoespecífico determinado por ato do PoderPúblico, com o objetivo de impor condicio-namentos especiais ao direito de proprie-dade sobre o bem, limitando assim os pode-res de exploração do mesmo. Estabelecem-se, portanto, deveres de maior intensidadeem relação aos comumente reconhecidos aotitular da propriedade, tendo em vista, so-bretudo, as diretrizes do SNUC, previstasno artigo 5o da Lei e que compreendem, en-tre outros, que: “no conjunto das unidadesde conservação estejam representadas amos-tras significativas e ecologicamente viáveisdas diferentes populações, habitats e ecos-sistemas do território nacional e das águasjurisdicionais, salvaguardando o patrimô-nio biológico existente (inciso I); assegurem,nos casos possíveis, a sustentabilidade eco-nômica das unidades de conservação (inci-so VI); permitam o uso das unidades de con-servação para a conservação in situ de po-pulações das variantes genéticas selvagensdos animais e plantas domesticados e re-cursos genéticos silvestres (inciso VII); bus-quem proteger grandes áreas por meio deum conjunto integrado de unidades de con-servação de diferentes categorias, próximasou contíguas, e suas respectivas zonas deamortecimento e corredores ecológicos, in-tegrando as diferentes atividades de preser-

vação da natureza, uso sustentável dos re-cursos naturais e restauração e recuperaçãodos ecossistemas (inciso XIII)”.

As unidades de conservação, de sua vez,dividem-se em duas: as unidades de proteçãointegral36 e as unidades de uso sustentável37 .Nas primeiras, seu objetivo primordial é apreservação do meio ambiente, razão pelaqual, quando admitida a exploração dosseus recursos naturais, esta deverá se darde modo indireto (artigo 7o, §1o). Já em rela-ção às unidades de uso sustentável, o obje-tivo principal será “compatibilizar a con-servação da natureza com o uso sustentá-vel de parcela dos seus recursos naturais”(artigo 7o, §2o).

Em ambos os casos, note-se que a razãode ser do instituto é a limitação do poder doproprietário individual em relação ao bemde sua propriedade, ou mesmo a extinçãosimples da propriedade pela desapropria-ção, com vistas à instituição das unidadesde conservação.

No caso das unidades de proteção inte-gral – à exceção do monumento natural e dorefúgio da vida silvestre, em que se admite suainstituição em áreas particulares, “desdeque seja possível compatibilizar os objeti-vos da unidade com a utilização da terra edos recursos naturais do local pelos propri-etários”38 –, serão sempre instituídas embens de domínio público. E mesmo no casodo monumento natural ou do refúgio davida silvestre, na hipótese de não ser possí-vel, ou não existir a concordância do pro-prietário em relação às condições impostas,as respectivas áreas deverão ser desapro-priadas, passando ao domínio público.

No caso das unidades de uso sustentá-vel, algumas espécies poderão ser constitu-ídas por bens públicos ou privados39 e ou-tras apenas por bens públicos40, variandosuas diversas espécies previstas na lei emrazão dos graus de condicionamento opos-tos ao titular da propriedade, extensão da áreaprotegida, assim como suas características.

Em relação às áreas de conservação quepermanecem sob titularidade privada, a in-

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tervenção direta no direito de uso do pro-prietário (ius utendi) é a prerrogativa maisatingida em face da limitação do direito dotitular da propriedade. Nesse caso, note-seque o regime das unidades de conservaçãoadmite tanto o uso indireto como o uso dire-to do mesmo. O primeiro, caracterizadocomo “aquele que não envolve consumo,coleta, dano ou destruição dos recursos na-turais” (artigo 2o, IX). E o uso direto, como“aquele que envolve coleta e uso, comercialou não, dos recursos naturais” (artigo 2o,X). Nesse sentido, propõe uma terceira cate-goria, de uso sustentável, nos seguintes ter-mos: “exploração do ambiente de maneira agarantir a perenidade dos recursos ambien-tais renováveis e dos processos ecológicos,mantendo a biodiversidade e os demais atri-butos ecológicos, de forma socialmente jus-ta e economicamente viável” (artigo 2 o, inci-so XI).

A definição de cada um desses usos, desua vez, terá lugar nas definições constan-tes do plano de manejo (MACHADO, 2001, p.248), igualmente definido na lei41. Este com-põe-se de duas partes, uma vinculada às dis-posições da lei e da Constituição; outra, dis-cricionária, indicada à atuação do agentepúblico segundo seu próprio entendimentoou, quando previsto em lei, decorrente damanifestação dos interessados em audiên-cia pública. Em qualquer caso, entretanto,estarão submetidas aos princípios da razo-abilidade e proporcionalidade entre a res-trição imposta e o objetivo de interesse pú-blico perseguido – no caso, a preservaçãodo meio ambiente.

Outra restrição típica das unidades deconservação, por expressa previsão legal(com exceção das áreas de proteção ambi-ental e das reservas particulares do patri-mônio natural), é a constituição das zonasde amortecimento , consistente em área quepermita a separação gradativa entre o meioambiente antropicamente trabalhado e omeio ambiente natural, ou seja, um espaçodestinado a diminuir ou enfraquecer os efei-tos das atividades existentes na área circun-

dante de uma unidade de conservação(MACHADO, 2001, p. 258). A adoção e im-plantação dessas zonas de amortecimento,contudo, não podem desconhecer o uso le-gítimo que antes da instituição da área nelarealizavam os titulares da propriedade so-bre os bens imóveis integrantes da mesma.No caso, a restrição ao uso do bem não podeser tal que caracterize a eliminação deste,sob pena de retirar o conteúdo econômicoda exploração da propriedade sem qualquerespécie de compensação. Em casos nosquais a instalação da zona de amortecimentonão admite a coexistência entre o uso eco-nômico do bem e sua afetação à finalidadepretendida pelo Poder Público, a opção deveser pela desapropriação da área.

De modo geral, sempre quando o Esta-do, com a finalidade de preservação do meioambiente, limitar em tal grau que caracteri-ze a própria eliminação de uma das prerro-gativas da propriedade – uso, gozo ou dis-posição –, não se estará propriamente a im-por deveres ao titular da propriedade, massim retirando parcela do direito. Razão pelaqual a hipótese aí será de desapropriação enão propriamente da exigência de deveresinerentes ao domínio em face do dever geralde proteção ambiental.

Outra coisa, certamente, são os limitesou deveres impostos com a finalidade depreservação ambiental que impõe condutas,representadas por deveres de prestação ouabstenção do titular da propriedade. Em taiscasos, o que estarão sendo estabelecidos,muitas vezes, são critérios de regularidadedo exercício da propriedade, em face de de-veres concretamente estabelecidos. É o caso,por exemplo, dos deveres impostos ao pro-prietário pelo Código Florestal (Lei Federalno 4.771, de 15 de setembro de 1965), o qual,em seu artigo 1o, parágrafo único, determi-na expressamente que “as ações ou omis-sões contrárias às disposições deste Códigona utilização e exploração das florestas sãoconsideradas uso nocivo da propriedade”.Remete-se, nesse caso, ao conceito típico dedireito civil, de uso nocivo, mau uso ou abuso

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do direito de propriedade, o que, pela lógica,submete o proprietário às sanções de estiloem face do mau exercício do direito.

E em relação ao Código Florestal, note-se que sua principal característica é a impo-sição de um dever de abstenção do proprie-tário, consistente na manutenção de áreasde floresta nos limites territoriais que esta-belece a priori42 ou ainda nas situações es-pecíficas que menciona, quando a extensãodesses limites será estabelecida por ato doPoder Público43. Assim como na denomina-da área e reserva legal44, situação em que seexige, inclusive, a respectiva averbação àmargem do registro imobiliário para efeitode sua caracterização, assim como para im-pedir a alteração da sua destinação, pelaqual são restringidas do proprietário as prer-rogativas de uso e gozo do bem.

Da mesma forma, por ato do Poder Pú-blico outras restrições ao exercício da pro-priedade serão estabelecidas em face da pre-servação do meio ambiente, como é o casodo direito de usar a área para pastoreio oudecidir as técnicas que devem ser adotadaspara fim do controle de pragas45. E da possi-bilidade de declarar-se como imune de cor-te determinadas espécies de árvores46, reti-rando do proprietário a possibilidade defazê-lo, ainda que a rigor sejam as mesmasde sua propriedade, na qualidade de bensimóveis por acessão.

Em relação ao direito de percepção dosfrutos da coisa (ius fruendi), são várias asdisposições de restrição ou controle do co-mércio e do uso industrial das espécies ve-getais das florestas47, assim como, em certoscasos, de obrigação do plantio de novas áre-as48.

Em todas essas situações, em que a res-trição parcial de uma ou mais prerrogativasda propriedade não a desnatura como tal, oque se estabelece a rigor são deveres jurídi-cos para o exercício do direito, tal qual hojeé expressamente previsto na definição legaldo artigo 1.228, §1o. E na medida em que aprópria definição legal de propriedade au-toriza a imposição de deveres jurídicos es-

pecíficos para seu exercício de modo que se-jam preservados, de conformidade com o estabe-lecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezasnaturais, o equilíbrio ecológico e o patrimôniohistórico e artístico, ao estabelecer a lei espe-cial uma série de deveres que regulam esseexercício de direito, tais não podem ser in-dicadas como interferência no direito de pro-priedade, mas, sim, regulação do seu exercí-cio.

Todas essas situações, como se vê, serãode extrema relevância e, uma vez confronta-das à definição legal de propriedade, deve-rão ser caracterizadas ou não como limita-ção/restrição ao direito, cuja conclusão re-meterá à qualidade em que serão admitidaspelo direito, assim como suas respectivasconseqüências.

3.2. Deveres do proprietário eo direito de indenização

Ao direito de propriedade, além dos po-deres jurídicos sobre a coisa, também se re-conhecem quaisquer direitos ou pretensõesà indenização em face da intromissão inde-vida na esfera jurídica do titular do direito(MIRANDA, 1977, p. 13-14). A rigor, o direi-to à indenização é o corolário do direito depropriedade, porquanto se admite que daretirada das suas condições de proveito eco-nômico seja reconhecida ao titular lesado acorrespondente reparação pela prerrogati-va que se lhe retira. A Constituição da Re-pública assegura, nas hipóteses de desapro-priação49, a exigência de prévia e justa inde-nização do particular, no que se presume deiure o dano. Em outras hipóteses, como autilização do bem pelo Poder Público emcaso de perigo iminente, admitirá a indeni-zação apenas na hipótese de existir dano50.

Entretanto, é necessário precisar concei-tos, sobretudo naquilo que nos propomosneste estudo, em face do §1o do artigo 1.228do Código Civil. A indenização pressupõe,conceitualmente, a existência de uma lesãoa direito, razão pela qual, inclusive, discu-te-se, em termos de responsabilidade civil,sua própria finalidade, se de reparação do

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valor de uma perda patrimonial ou da somanecessária para recolocação do bem no es-tado anterior à lesão (VINEY, 2001, p. 243).No caso da indenização por parte do PoderPúblico, em face de sua interferência no di-reito dos particulares, esta nem sempre sedá em face de um ilícito, senão muitas vezespor conta de uma perda econômica decor-rente da atuação lícita do Estado (jusimperii), em favor de um determinado inte-resse público que – no caso – sobrepõe-se acerto interesse particular. Continua exigin-do, contudo, a lesão a interesse/direito sub-jetivo protegido pela ordem jurídica, o queno caso importa na interferência em pode-res jurídicos, qualificados como tais, demodo a retirar-lhe suas características e pos-sibilidades de fruição e proveito.

A proteção que a ordem jurídica brasi-leira indica ao meio ambiente, entretanto,impõe sensíveis alterações no conceito dedano indenizável em algumas searas dasintervenções estatais na propriedade parti-cular. Conforme ensina Paulo Affonso LemeMachado, com fundamento no artigo 45 daLei no 9.985/2000, essa norma “deu novasorientações relativas à regularização fundi-ária das unidades de conservação, excluin-do-se das indenizações, derivadas ou nãode desapropriação: as espécies arbóreasdeclaradas imunes de corte pelo Poder Pú-blico; as expectativas de ganhos e lucro ces-sante; o resultado de cálculo efetuado medi-ante a operação de juros compostos e as áre-as que não tenham prova de domínio ine-quívoco anterior à criação das áreas de con-servação” (MACHADO, 2001, p. 257).

A rigor, o ponto central da controvérsiaé a identificação do que se trata de efetivainterferência que causa lesão aos direitos doproprietário e do que se caracteriza comoimposição de deveres jurídicos decorrentesda própria definição jurídica de proprieda-de, decorrentes de sua função social e con-signados como pautas do exercício do di-reito.

Outra questão colocada por AntônioHerman Benjamin (1997, p. 37) é a da exi-

gência ou não da indenização na hipótesede determinar-se a conservação das áreasde preservação permanente e das reservasflorestais legais, assim como sua considera-ção para efeitos de cálculo do quantum inde-nizatório na hipótese de ulterior desapro-priação direta ou indireta. Parte, então, dopressuposto com o qual concordamos, deque “a obrigação de resguardar o meio am-biente não infringe o direito de proprieda-de, não ensejando desapropriação”, paraconcluir que em tais casos não há inviabili-dade do exercício da propriedade, mas ape-nas sua limitação, nos termos da lei. Por essarazão, defende, na hipótese de desapropri-ação do imóvel em que estejam presentesáreas de preservação permanente e de re-serva florestal legal, que estas sejam afasta-das para fins de cálculo do valor do imóvelcom vistas à indenização (BENJAMIN, 1997,p. 40).

Em exame da jurisprudência do Superi-or Tribunal de Justiça, observam-se deci-sões, em matéria de desapropriação, nasquais se reconhece que a cobertura vegetaldas áreas de preservação permanente, defi-nidas como tal pelo Código Florestal, nãosão suscetíveis de indenização51. Todavia,nas hipóteses em que se caracteriza a su-pressão do direito de uso e fruição do bempela imposição de deveres de preservação,há decisões em sentido diverso, pela proce-dência do pleito indenizatório52.

É fato que a influência dos preceitos dedireito ambiental – a partir das normas cons-titucionais que lhe fundamentam – sobre odireito civil vem provocando uma série demodificações no modo de conceber e inter-pretar os conceitos jurprivatísticos. Umexemplo interessante nesse sentido é a na-tureza que se vem reconhecendo à obriga-ção de recomposição do ambiente degrada-do em razão de dano ambiental pelos tribu-nais, a qual vem se reconhecendo como es-pécie de obrigação propter rem, uma vez queacompanha a coisa para ser imposta ao ti-tular da mesma, na hipótese de transmis-são da propriedade53.

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No caso do direito à indenização, é forade dúvida que a garantia do proprietáriode, na hipótese de lhe ser retirado o conteú-do econômico do seu direito, fazer jus à res-pectiva compensação deve ser interpretadaem conformidade com o significado da pro-priedade que indica o Código Civil. E, nessecaso, vai exigir do intérprete uma posturacientífica própria para identificar, entre oscondicionamentos impostos pela Constitui-ção e pela legislação ordinária que lhe fun-damenta, o que representará restrição ao di-reito – indenizável na forma da lei – e o queconsistirá em simples imposição de deverjurídico , à luz do disposto no artigo 1.228,§1o, do Código Civil. Nesse último caso, umavez que se tratam de deveres inerentes aoexercício do direito de propriedade, nãodestacam/afetam seu conteúdo e, portanto,serão insuscetíveis de indenização.

4. Conclusões

A transformação histórica da definiçãode propriedade em direito ordinário, e suaelevação à qualidade de direito fundamen-tal, demonstra um traçado que remete de umpoder jurídico pleno exercido segundo avontade do titular do direito até sua confor-mação como prerrogativa indicada a certosfins sociais e econômicos aos quais vincu-lam-se os titulares desse poder. Igualmente,os conceitos técnico-jurídicos que lhe sãocorrelatos, como a distinção entre titularida-de e exercício de direitos, e a possibilidade delimitação e sanção do abuso em relação aesse último, assim como a eleição de novosbens da vida dignos de proteção jurídica eoponíveis desde logo ao poder jurídico doproprietário, exigem um novo modo de in-terpretar-se a propriedade; uma nova men-talidade sobre a propriedade, retomando opensamento de Paolo Grossi (1992, p. 58).

A relativização dos direitos subjetivos, arevalorização do interesse social perante apropriedade, as questões urbana e agrária,e a exigência de ações para seu enfrenta-mento, um novo enfoque sobre a função ju-

rídica da posse e, afinal, a crescente tutelajurídica do meio ambiente alteraram subs-tancialmente o modo como o direito passa ainterpretar o conceito de propriedade. Nes-se caminho, todos esses interesses protegi-dos juridicamente, assim como outros aquinão mencionados, em regra foram coloca-dos como contrapostos à proteção jurídicada propriedade, de modo que a solução des-ses “conflitos” realizava-se mediante umacomposição ou coordenação de interesses,no mais das vezes, afastando-se parte doconteúdo de ambos os direitos para alcan-çar-se um ponto de equilíbrio. Ou seja, apostura do jurista era de identificá-los comoelementos distintos que, encontrando-se emdada relação jurídica por expressa determi-nação constitucional ou legal, deveriam al-cançar um nível de interação que, afinal, pre-servasse a essência de ambos os interesses.

Ocorre que, nesse raciocínio, a proprie-dade – ainda que de modo disfarçado ouimplícito – conservava seu caráter absolutodo direito civil clássico. Tudo o que fosserepresentativo de um mínimo de deveresjurídicos, sobretudo os de abstenção oponí-veis ao titular do direito subjetivo, deveriaser devidamente compensado, ou exigidadesde logo a perda da propriedade por de-sapropriação – sempre com vistas à indeni-zação. Não se vislumbrava, assim, a possi-bilidade de deveres inerentes ao próprioconteúdo da propriedade, ainda que os an-tecedentes históricos mais recentes, sobre-tudo em direito comparado, indicassem nes-sa direção, como é o caso mais célebre daConstituição alemã de 1919 e sua idéia-forçade que “a propriedade obriga”.

É aí que a alteração da definição legal depropriedade, hoje prevista no artigo 1.228do Código Civil, permite um elemento amais, decisivo até na postura do intérpretemais resistente às transformações conceitu-ais que mencionamos. Com o novo CódigoCivil, o conceito em direito de ordinário dapropriedade se altera. A partir dele, não setrata apenas do direito de usar, gozar e dis-por da coisa, e de reavê-la de quem quer que

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injustamente a possua ou detenha, mas étambém isso. Incluem-se, contudo, restriçõesao poder de disposição do proprietário e,no que interessa a esse trabalho, a definiçãode pautas de conduta exigíveis do titular dodireito, consistente na imposição de novosdeveres jurídicos. Tais deveres não consis-tem em limitações ou restrições ao direito,mas sim conformam o direito , que se reconhe-cerá legítimo e jurídico, apenas na hipótesede respeitar os deveres ali consignados.

No caso dos deveres de preservaçãoambiental, a definição jurídica de proprie-dade expressamente remete à legislaçãoespecial sua determinação específica, o quenaturalmente permite concluir que o cum-primento dos mesmos, tais como estabeleci-dos nas normas próprias, será condição dereconhecimento do exercício regular do di-reito. Nesse sentido, suprime-se a noção de“conflito” entre a propriedade e as exigên-cias de preservação do meio ambiente, noque se refere a eventuais limitações dospoderes do proprietário. Não serão mais li-mitações, com o caráter restritivo que carregaa expressão, mas deveres de conformação dapropriedade, atinentes ao exercício do di-reito, razão pela qual não poderão ensejarconsiderações acerca da perda injusta dequalquer das prerrogativas do domínio. Aocontrário, as noções de propriedade e domínio,sim, é que incorporam tais deveres de conforma-ção atribuídos a seus titulares. Razão pela qualé possível concluir que, tal qual está presenteem nossa legislação civil, o artigo 1.228 doCódigo Civil provoca alteração substantivada definição de propriedade em nosso direi-to ordinário e, por conseqüência, na própriainterpretação das normas constitucionais.

Notas1 Mentalidade jurídica, no caso, como “aquel

conjunto de valores que circulan en una area espacial ytemporal, capaz por su vitalidad de separar la diásporade los hechos y episodios aislados y de constituir el tejidoconjuntivo escondido y constante de aquella área”. Pros-segue, então, referindo que “con visual fundamental-mente sincrónica ya que los valores tienden a permear la

globalidad de la experiencia, con procedimiento funda-mentalmente sistemático ya que los valores tienden apermanecer y a cristalizarse, el jurista se siente a sucomodidad – casi, se diria, en la propia casa – en elterreno de las mentalidades; es ahí donde lo jurídico tienesu raíz.” (GROSSI, 1992, p. 58).

2 Franz Wieacker (1993, p. 717), entre outroshistoriadores do direito, consigna a renovação daciência jurídica operada pela filosofia idealista apartir da ética de autonomia de Kant, a qual ofereceao direito privado um esquema lógico que permitevislumbrar como sistemas de esferas de liberdadeda personalidade autônoma, em razão da qualuma das conseqüências será o reconhecimento daprerrogativa de livre uso da propriedade.

3 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado, bem de uso comumdo povo e essencial à sadia qualidade de vida,impondo-se ao Poder Público e à coletividade odever de defendê-lo e preservá-lo para as presentese futuras gerações.

4 Não era essa, entretanto, a opção de Teixeirade Freitas (1983, p. 575) no seu Esboço do CódigoCivil. Propunha o jurista, no artigo 4.071, umadefinição de domínio, nos seguintes termos: “Art.4.071 – Domínio (direito de propriedade sobre coi-sas) é o direito real, perpétuo ou temporário, deuma só pessoa sobre coisa própria, móvel ouimóvel, com todos os direitos sobre sua substânciae utilidade, ou somente sobre sua substância ealguns sobre sua utilidade.”

5 Como assinala Clóvis Beviláqua (1941, p. 133-134), essa opção legislativa, sem prejuízo de outrasdefinições, embasava-se na regra romana dedomínio: “domminium est jus utendi, fruendi etabutendi re sua, quatenus juris ratio patitur”.

6 Art. 525. É plena a propriedade, quando todosos seus direitos elementares se acham reunidos nodo proprietário; limitada, quando tem ônus real,ou é resolúvel.

7 Art. 527. O domínio presume-se exclusivo eilimitado, até prova em contrário.

8 Art. 526. A propriedade do solo abrange a doque lhe está superior e inferior em toda a altura eem toda a profundidade, úteis ao seu exercício,não podendo, todavia, o proprietário opor-se atrabalhos que sejam empreendidos a uma alturaou profundidade tais, que não tenha ele interessealgum em impedi-los.

9 Sobre o tema, veja-se o clássico Josserand(1927, p. 322 et seq). No direito brasileiro, veja-se,por todos, Martins (1997, p. 81-118).

10 A vinculação da teoria do abuso do direitocom sua origem subjetiva, derivada dos atosemulativos (aemulatio) do direito medieval, temsentido apenas se realizada com vistas aos célebrescasos da jurisprudência francesa de fins da segun-da metade do século XIX, e que serviram de objetos

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da reflexão doutrinária posterior. Essa fase pionei-ra, diga-se, desenvolveu-se, sobretudo, com casosque reclamavam a limitação do direito de proprie-dade, como são exemplos os casos Lingard, Mercy eLacante, relativos a fumos e maus cheiros de fábri-cas, e o caso Grosheintz, que girou sobre escavaçõesno terreno do próprio titular que provocaram o des-moronamento do terreno vizinho. Ainda o caso Doerr,dizendo respeito à construção de uma chaminé emterreno próprio com o fito exclusivo de retirar a luzdo terreno vizinho; o caso Savart , em que o propri-etário de um terreno construira uma estrutura demadeira com dez metros de altura, pintada de ne-gro, com o objetivo de sombrear e entristecer o ter-reno vizinho; e, talvez o mais citado dos casos, ocaso Clément-Bayard , em que o proprietário cons-truiu em seu terreno um dispositivo de espigões deferro com o objetivo de destruir os aerostatos doproprietário vizinho. Contudo, em sua elaboraçãodoutrinária seguinte, desde logo reconhecerá a pos-sibilidade de limites objetivos ao exercício de direi-tos subjetivos, como será o caso da finalidade eco-nômica e social de um direito. Nesse sentido, veja-se Cunha de Sá (1997, p. 53 et seq).

11 Assim a íntegra do artigo 153 da Constitui-ção de Weimar: “A propriedade será garantida pelaConstituição. Seu conteúdo e seus limites se dedu-zirão das leis. Somente se poderá expropriar emfavor da comunidade e com fundamento de direi-to, tendo sempre como contrapartida a correspon-dente indenização, exceto quando uma lei do Reichdetermine outra coisa. Com relação à quantia daindenização, se manterá aberta no caso de litígio avia dos tribunais competentes, exceto quando umalei do Reich determine o contrário. As expropria-ções feitas pelo Reich, Länder, municípios e associ-ações de uso público só poderão efetuar-se medi-ante indenização. A propriedade obriga. Seu usotambém deve servir ao bem da comunidade.” Tra-duzi de Hattenhauer (1987, p. 123).

12 Clóvis Beviláqua (1941, p. 136), ainda queidentifique nas disposições constitucionais sobrepropriedade, a partir da Constituição de 1934, umainspiração socialista, admite que tais normas nãomais permitirão que a noção de propriedade sejacompreendida como direito absoluto e ilimitado.

13 Note-se, de outro modo, que, tanto na Cons-tituição do Império, de 1824, quanto na Constitui-ção Republicana, de 1899, a referência à proprieda-de fez-se em sua concepção clássica, como direitopleno. Assim o artigo 179 da Constituição de 1824:“É garantido o Direito de Propriedade em toda asua plenitude” . E o artigo 72, §17, da Constituiçãode 1899: “O direito de propriedade mantém-se emtoda a sua plenitude... As minas pertencem aosproprietários do solo, salvas as limitações que fo-rem estabelecidas por lei a bem da exploração des-te ramo de indústria”.

14 São eles: “I – aproveitamento racional e ade-quado; II – utilização adequada dos recursos na-turais disponíveis e preservação do meio ambiente;III – observância das disposições que regulam asrelações de trabalho; IV – exploração que favoreçao bem-estar dos proprietários e dos trabalhado-res.”

15 Assim os artigos 5o, inciso XXVI, e 185 daConstituição de 1988.

16 Acerca da desapropriação por interesse soci-al, refere Comparato (1997, p. 97): “Ela constituina verdade a imposição administrativa de umasanção, pelo descumprimento do dever, que incum-be a todo o proprietário, de dar a certos e determi-nados bens uma destinação social. Por isso mes-mo, é antijurídico atribuir ao expropriado, em talcaso, uma indenização completa, correspondenteao valor venal do bem mais compensatórios, comose não tivesse havido abuso do direito de proprie-dade.”

17 O artigo 485 do Código Civil anterior, repro-duzido no artigo 1.196 do Código vigente (“Consi-dera-se possuidor todo aquele que tem de fato oexercício, pleno ou não, de algum dos poderes ine-rentes à propriedade”), estabelece que basta para aposse o poder de fato sobre a coisa, a relação depertinência fática entre o sujeito e o corpus, quandose vai afirmar no direito brasileiro que esse poderrepresenta-se por intermédio do exercício fático deuma das prerrogativas do domínio (ius utendi,fruendi ou abutendi). Nesse sentido, resta consagra-do para a maioria da doutrina que nosso direitoadota a teoria objetivista da posse, elaborada porIhering na pandectística alemã do século XIX, emcontraposição à teoria subjetivista de Savigny, aexigir, para configuração da relação possessória, ocorpus e o animus. Veja-se o exame de Miranda (1977)sobre as teorias da posse: Tratado de direito priva-do.

18 Assim o entendimento, entre outros, de Gomes(1970, p. 12); Rios(1994, p. 19). Da mesma formaposiciona-se André Godinho (2000, p. 1-16), o qualbusca salientar que a função social não significauma negação do direito subjetivo, mas que “é afunção social razão de tutela e garantia da propri-edade privada”.

19 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade deusar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-lado poder de quem quer que injustamente a possuaou detenha (...).

20 “§ 4o O proprietário também pode ser priva-do da coisa se o imóvel reivindicado consistir emextensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, pormais de cinco anos, de considerável número de pes-soas, e estas nela houverem realizado, em conjuntoou separadamente, obras e serviços consideradospelo juiz de interesse social e econômico relevante.§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará

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a justa indenização devida ao proprietário; pago opreço, valerá a sentença como título para o registrodo imóvel em nome dos possuidores.”

21 “§ 3o O proprietário pode ser privado da coi-sa, nos casos de desapropriação, por necessidadeou utilidade pública ou interesse social, bem comono de requisição, em caso de perigo público iminen-te.”

22 No caso, o emprego da técnica da interpreta-ção conforme à Constituição para determinação dosignificado das normas de direito ordinário do Có-digo Civil de modo compatível com as normas cons-titucionais. Nesse sentido, veja-se Coelho (2003, p.25-53).

23 Nesse sentido, veja-se a lição de Canotilho(1998, p. 647) acerca das normas restritivas e con-formadoras de direitos fundamentais.

24 Acerca dessa nova postura do legislador or-dinário perante a Constituição, veja-se Tepedino(2000, p. 1-16).

25 Ver-se, por todos, Freitas (2002, p. 133 et seq).26 Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de

um prédio tem o direito de fazer cessar as interfe-rências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saú-de dos que o habitam, provocadas pela utilizaçãode propriedade vizinha. Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza dautilização, a localização do prédio, atendidas asnormas que distribuem as edificações em zonas, eos limites ordinários de tolerância dos moradoresda vizinhança.

27 Art. 1.291. O possuidor do imóvel superiornão poderá poluir as águas indispensáveis às pri-meiras necessidades da vida dos possuidores dosimóveis inferiores; as demais, que poluir, deverárecuperar, ressarcindo os danos que estes sofrerem,se não for possível a recuperação ou o desvio docurso artificial das águas.

28 Art. 1.309. São proibidas construções capazesde poluir, ou inutilizar, para uso ordinário, a águado poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes.

29 “§ 1o Para assegurar a efetividade desse direi-to, incumbe ao Poder Público: I – preservar e res-taurar os processos ecológicos essenciais e prover omanejo ecológico das espécies e ecossistemas; II –preservar a diversidade e a integridade do patri-mônio genético do País e fiscalizar as entidadesdedicadas à pesquisa e manipulação de materialgenético; III – definir, em todas as unidades daFederação, espaços territoriais e seus componentesa serem especialmente protegidos, sendo a altera-ção e a supressão permitidas somente através delei, vedada qualquer utilização que comprometa aintegridade dos atributos que justifiquem sua pro-teção; IV – exigir, na forma da lei, para instalaçãode obra ou atividade potencialmente causadora designificativa degradação do meio ambiente, estudoprévio de impacto ambiental, a que se dará publici-

dade; V – controlar a produção, a comercializaçãoe o emprego de técnicas, métodos e substânciasque comportem risco para a vida, a qualidade devida e o meio ambiente; VI – promover a educaçãoambiental em todos os níveis de ensino e a consci-entização pública para a preservação do meioambiente; VII – proteger a fauna e a flora, veda-das, na forma da lei, as práticas que coloquemem risco sua função ecológica, provoquem aextinção de espécies ou submetam os animais acrueldade.”

30 Para o exame dessa qualidade no direito bra-sileiro, veja-se o recente estudo de Anízio PiresGavião Filho (2005, p. 48 et seq).

31 Prossegue então afirmando: “O ecologicamen-te refere-se, sim, também à harmonia das relações einterações dos elementos do habitat, mas deseja es-pecialmente ressaltar as qualidades do meio ambi-ente mais favoráveis à qualidade da vida. Não fi-cará o homem privado de explorar os recursosambientais, na medida em que isto também melho-ra a qualidade da vida humana; mas não pode ele,mediante tal exploração, desqualificar o meio am-biente de seus elementos essenciais, porque issoimportaria desequilibrá-lo e, no futuro, implicariaseu esgotamento (...) o que a Constituição quer evi-tar, com o emprego da expressão ‘meio ambienteecologicamente equilibrado’, é a idéia, possível, deum meio ambiente equilibrado sem qualificaçãoecológica, isto é, sem relações essenciais dos seresvivos entre si e deles com o meio”. (SILVA, 2004, p.87-88).

32 A filosofia até o século XVIII não fazia umaclara distinção entre a beleza natural e a belezaartística, uma vez que os artistas em geral concen-travam-se, sobretudo, na reprodução/imitação dabeleza natural. Com a criação da estética como dis-ciplina filosófica, no século XVIII, faz-se uma níti-da distinção entre as duas espécies de beleza. Nes-se contexto, o próprio conceito de estética passa aser cada vez mais reservado à apreciação das obrascriadas pelos homens, ainda que exclua totalmenteas coisas da natureza.

33 Ainda que em certos casos, mesmo remeten-do a regulamentação da restrição para a lei ordiná-ria, seja possível identificar na norma constitucio-nal o conteúdo do dever jurídico em questão. É ocaso do artigo 225, §2o, que estabelece, na forma dalei, em relação ao que explora recursos minerais, odever de recuperar o meio ambiente degradado;assim como a restrição imposta à localização deusinas que operem com reator nuclear, decisão su-bordinada à Lei Federal (artigo 225, §6o).

34 Faço nova referência, todavia, aos artigos1.277, 1.291 e 1.309 do Código Civil.

35 Acerca dos pressupostos técnicos dessas li-mitações, veja-se o estudo de Bensusan (2001, p.164-189).

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36 São espécies de unidades de proteção integral(artigo 8o): I – Estação Ecológica; II – Reserva Bioló-gica; III – Parque Nacional; IV – Monumento Natu-ral; V – Refúgio de Vida Silvestre.

37 São espécies de unidades de preservação per-manente (artigo 14): I – Área de Proteção Ambien-tal; II – Área de Relevante Interesse Ecológico; III –Floresta Nacional; IV – Reserva Extrativista; V –Reserva de Fauna; VI – Reserva de Desenvolvimen-to Sustentável; e VII – Reserva Particular do Patri-mônio Natural.

38 Artigos 12, §1o, e 13, §1o, da Lei Federal no

9.985/2000.39 Será o caso das Áreas de Preservação Perma-

nente (artigo 15), das Áreas de Relevante InteresseEcológico (art. 16) e das Reservas Particulares doPatrimônio Natural (art. 21).

40 Serão constituídas apenas de bens públicos,que, quando for o caso, irão adquirir essa qualida-de por intermédio de desapropriação das seguintesunidades de conservação: Floresta Nacional (art.17),Reserva Extrativista (art. 18), Reserva de Fauna (art.19) e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável(art. 20).

41 Artigo 2o, inciso XVII: “Plano de manejo: docu-mento técnico mediante o qual, com fundamentonos objetivos gerais de uma unidade de conserva-ção, se estabelece o seu zoneamento e as normasque devem presidir o uso da área e o manejo dosrecursos naturais, inclusive a implantação das es-truturas físicas necessárias à gestão da unidade”.

42 Assim o artigo 2o do Código Florestal: “Art.2o Consideram-se de preservação permanente, pelosó efeito desta Lei, as florestas e demais formas devegetação natural situadas: a) ao longo dos rios oude qualquer curso d’água desde o seu nível maisalto em faixa marginal cuja largura mínima será: 1– de 30 (trinta) metros para os cursos d’água demenos de 10 (dez) metros de largura; 2 – de 50(cinqüenta) metros para os cursos d’água que te-nham de 10 (dez) a 50 (cinqüenta) metros de largu-ra; 3 – de 100 (cem) metros para os cursos d’águaque tenham de 50 (cinqüenta) a 200 (duzentos)metros de largura; 4 – de 200 (duzentos) metrospara os cursos d’água que tenham de 200 (duzen-tos) a 600 (seiscentos) metros de largura; 5 – de 500(quinhentos) metros para os cursos d’água que te-nham largura superior a 600 (seiscentos) metros; b)ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’águanaturais ou artificiais; c) nas nascentes, ainda queintermitentes e nos chamados ‘olhos d’água’, qual-quer que seja a sua situação topográfica, num raiomínimo de 50 (cinqüenta) metros de largura; d) notopo de morros, montes, montanhas e serras; e) nasencostas ou partes destas, com declividade superi-or a 45°, equivalente a 100% na linha de maior de-clive; f) nas restingas, como fixadoras de dunas ouestabilizadoras de mangues; g) nas bordas dos ta-

buleiros ou chapadas, a partir da linha de rupturado relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) me-tros em projeções horizontais; h) em altitude supe-rior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer queseja a vegetação.”

43 “Art. 3o Consideram-se, ainda, de preserva-ção permanentes, quando assim declaradas por atodo Poder Público, as florestas e demais formas devegetação natural destinadas: a) a atenuar a ero-são das terras; b) a fixar as dunas; c) a formarfaixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias;d) a auxiliar a defesa do território nacional a crité-rio das autoridades militares; e) a proteger sítios deexcepcional beleza ou de valor científico ou históri-co; f) a asilar exemplares da fauna ou flora amea-çados de extinção; g) a manter o ambiente necessá-rio à vida das populações silvícolas; h) a assegurarcondições de bem-estar público. § 1o A supressãototal ou parcial de florestas de preservação perma-nente só será admitida com prévia autorização doPoder Executivo Federal, quando for necessária àexecução de obras, planos, atividades ou projetosde utilidade pública ou interesse social.”

44 Artigo 16 do Código Florestal.45 Artigo 4o do Código Florestal.46 Artigo 7o do Código Florestal.47 Artigos 12 e 13 do Código Florestal.48 Artigos 20 e 21 do Código Florestal.49 Artigos 5o, inciso XXIV, 182, §3o, e 184 da

Constituição da República. Em outros casos, comoos em que a desapropriação caracteriza-se comosanção de ilícito, descabe exigir-se indenização,como o previsto no artigo 243 do ADCT em relaçãoàs glebas onde forem localizadas culturas ilegaisde plantas psicotrópicas.

50 Artigo 5o, inciso XXV: “no caso de iminenteperigo público, a autoridade competente poderáusar de propriedade particular, assegurada ao pro-prietário indenização ulterior, se houver dano”.

51 STJ – RESP 259948 / SP, 2a Turma, Rel. Min.Eliana Calmon, DJU 12.04.2004, p. 189;

52 STJ – RESP 188781 / PR, 1a Turma, Rel. Min.Humberto Gomes de Barros, DJU 29.11.1999, p.125.

53 ADMINISTRATIVO – DANO AO MEIOAMBIENTE – INDENIZAÇÃO – LEGITIMAÇÃOPASSIVA DO NOVO ADQUIRENTE. 1. A res-ponsabilidade pela preservação e recomposição domeio ambiente é objetiva, mas se exige nexo de cau-salidade entre a atividade do proprietário e o danocausado (Lei 6.938/81). 2. Em se tratando de re-serva florestal, com limitação imposta por lei, onovo proprietário, ao adquirir a área, assume o ônusde manter a preservação, tornando-se responsávelpela reposição, mesmo que não tenha contribuídopara devastá-la. 3. Responsabilidade que indepen-de de culpa ou nexo causal, porque imposta porlei. 4. Recursos especiais providos em parte. (STJ –

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RESP 327254 / PR; 2a Turma, Rel. Min. Eliana Cal-mon, p. DJU 19.12.2002, p. 355).

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Introdução

Este ensaio trata da seleção de estudan-tes para as Universidades, debruçando-sesobre dois assuntos em pauta atualmente: oprimeiro é o da estipulação de uma cota devagas para estudantes negros1, e o segun-do, para o qual se voltaram as atenções porforça de um projeto de lei em tramitação noCongresso Nacional (projeto no 3.627/2004), diz respeito à reserva de vagas aalunos que tenham freqüentado escolaspúblicas durante o período do ensinomédio2.

Na primeira parte, a questão examinadaé a de determinar se cotas para negros emUniversidades públicas devem ou não serinstituídas, e por quê. Após algumas consi-derações sobre o direito ao ensino superior,tratar-se-á de dois critérios para a seleçãode estudantes, o do saber e o racial, e de suaspossíveis justificativas. Na segunda par-te, aproveitar-se-ão algumas das conclu-sões tiradas na parte anterior a fim deavaliar um terceiro critério, o da proce-dência escolar, previsto no projeto de leirecém-citado.

O presente estudo se ocupa, portanto, doscritérios para a admissão de estudantes à

Acesso à Universidade, cotas para negrose o projeto de lei no 3.627/2004

Leandro Martins Zanitelli

Leandro Martins Zanitelli é Doutor em Di-reito pela Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul (UFRGS) e Professor do Centro Uni-versitário Ritter dos Reis (UniRitter).

SumárioIntrodução. 1. Cotas para negros são justas?

1.1. O critério do saber. 1.2. O critério racial. 2.O projeto no 3.627/2004. Conclusões.

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Universidade, tanto no que se refere ao Di-reito em vigor, como em relação a uma even-tual modificação legislativa. O objetivo é ode estabelecer quais desses critérios são com-patíveis com a nossa Constituição e capa-zes de se justificar moralmente (duas ques-tões indissociáveis, como se verá).

1. Cotas para negros são justas?

As cotas para negros em Universidadessão muitas vezes acusadas de infringir di-reitos de outros estudantes3. Começar-se-á,pois, com algumas observações sobre umdos possíveis direitos violados por essascotas, o direito ao ensino superior.

Esse direito pode ser entendido de duasmaneiras. De acordo com a primeira delas,tratar-se-ia de um direito a não ter o acessoà Universidade impedido pela única razãode pertencer a um certo grupo. Com tal acep-ção, o direito ao ensino superior seria con-trariado, por exemplo, por uma lei que ad-mitisse o ingresso em Universidades ape-nas às pessoas de uma raça ou que profes-sassem determinada religião. Opondo-se arestrições assim, o direito ao ensino superi-or exigiria que a freqüência à Universidadese mantenha como “posição aberta a todos”no sentido do princípio da diferençarawlsiano (RAWLS, 1999, p. 53)4, o que éalgo assegurado pela Constituição em seusarts. 3o, IV, 5o, caput, e 206, I5.

Outro modo de conceber o direito ao en-sino superior equipara-o ao direito a sermatriculado em uma Universidade. Assimentendido, esse é um direito que não se re-conhece a todos, uma vez que a conclusãode um curso universitário não se mostraimprescindível a muitas ocupações úteis nasociedade brasileira, nem é algo indispen-sável à realização de toda e qualquer pes-soa.

Que o direito ao ensino superior comodireito a ser matriculado em uma Universi-dade não se estenda a qualquer um é algoincontroverso. Por banal que seja, tal cons-tatação ressalta, não obstante, a necessida-

de de que o debate sobre o acesso à Univer-sidade gire em torno dos critérios para a se-leção de estudantes. Se a freqüência à Uni-versidade deve ser uma posição aberta a to-dos, e se nem todos possuem direito a sermatriculados, a questão que resta a enfren-tar é a dos critérios de admissão. A fim deser justificada, portanto, a alegação de quea reserva de vagas para negros atenta con-tra um direito dos demais estudantes temde dizer respeito ao direito a que se empre-gue um ou alguns critérios de seleção, e nãooutros.

No restante desta primeira parte, serãoexaminados dois desses critérios, o do sabere o racial. De acordo com o primeiro, a esco-lha de estudantes deve favorecer aqueles quedetenham certas habilidades intelectuais. Osegundo critério, por sua vez, relaciona-se àraça6 do candidato. Os dois critérios podem,é claro, aplicar-se concomitantemente (porexemplo, quando um certo número de pos-tos em uma Universidade se destina aosnegros, a ocupação desses postos é feita,geralmente, com base nas aptidões intelec-tuais dos pretendentes).

O repúdio ao critério racial pode ser fun-damentado, em primeiro lugar, com a afir-mação de que o critério do saber não só deveser obedecido, como também é o único a serobedecido para a admissão em curso superior.Essa afirmação será avaliada na próximaseção (1.1). Segundo, é possível dizer que,embora não se tenha de seguir exclusiva-mente o critério do saber, o critério racial está,de todo modo, vedado. Ao exame de tal alega-ção é dedicada a segunda e última seção(1.2) desta primeira parte.

1.1. O critério do saber

Como visto, o direito supostamente con-trariado pela reserva de vagas para negrosem Universidades tem de se referir aos crité-rios de admissão. Ele pode-se apresentar,desse modo, como um direito a que se observeunicamente o critério do saber. Para determi-nar se esse direito subsiste ou não, pode-seindagar primeiro se há um direito ao crité-

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rio aludido, e por quais razões. Em caso afir-mativo, e definidas essas razões, ter-se-á con-dições de avaliar se elas também justificam oemprego exclusivo do critério aludido.

É um direito dos candidatos a uma vagaem um curso universitário o de serem avali-ados segundo sua capacidade intelectual?Uma das possíveis respostas afirmativas aessa questão tem a ver com a idéia de mé-rito: a entrada na Universidade deve ocor-rer por força do saber a fim de que o su-cesso de cada estudante dependa de seupróprio mérito.

O apelo à noção de mérito é, no entanto,insuficiente. Mérito é uma palavra à qual sepodem atribuir inúmeros significados(DWORKIN, 1985, p. 299). Assim, seria pre-ciso explicar por que se deve entender méri-to aqui como algo relacionado à destrezaintelectual, e não a outras virtudes, tais comoboa condição atlética ou generosidade. Porque o pretendente com melhor desempenhoem matemática merece admissão em umaUniversidade, ao contrário dos que dedicamseu tempo preferencialmente ao atletismo oua obras assistenciais?

Além disso, as aptidões mentais de umapessoa se devem, como é sabido, apenas emparte ao seu empenho. Outra parte, tão oumais importante, deve-se a dotes naturais(sem falar, é claro, de fatores sociais) pelosquais não se pode reconhecer qualquer mé-rito. Não somos merecedores de algo, emnenhum sentido moralmente relevante, ape-nas em razão de nossa disposição genéti-ca7.

Essas observações sugerem que se pro-cure a justificativa para o critério do saberem considerações que não se prendam àaptidão intelectual em si mesma. Primeiro,porque é preciso apresentar o motivo peloqual o mérito de alguém deva ser medido deacordo com essa aptidão, e não de outramaneira. Segundo, porque a inteligênciapossui, entre os seus fatores, alguns (comoo da predisposição natural) completamentearbitrários e, em conseqüência, irrelevantespara a argumentação moral.

Em vez de se apegar à noção de mérito, adefesa do critério do saber pode ser feita demaneira pragmática. O argumento é bastan-te conhecido: as Universidades servem apropósitos relevantes para a sociedade, osquais serão mais bem atendidos com a ad-missão dos estudantes intelectualmentemais capazes. Uma Faculdade de Medici-na, por exemplo, destina-se a preparar bonsmédicos, e será nisso tão mais bem-sucedidaquanto mais inteligentes forem os estudan-tes que nela ingressarem.

O exemplo basta, no entanto, para que afragilidade do argumento venha à tona. Su-pondo-se que não se espere outra coisa deuma Faculdade de Medicina senão a forma-ção de bons médicos, é duvidoso que esseobjetivo dependa exclusivamente (ou mes-mo primordialmente) da aptidão intelectu-al apresentada pelos candidatos nos exa-mes vestibulares. Voltar-se-á a isso em se-guida. Antes, é conveniente chamar a aten-ção para uma característica desse argu-mento (designado, daqui em diante, comoargumento da utilidade social) e para asua relação com uma censura feita à re-serva de vagas para negros em Universi-dades.

Ao se afirmar que os estudantes maisinteligentes devem ser admitidos à Univer-sidade para que, desse modo, o bem-comumseja promovido, procura-se justificar a es-colha desses estudantes não em razão deseu próprio valor (ou mérito), mas sim pelasvantagens que essa escolha proporciona àsociedade. Os indivíduos intelectualmentemais aptos devem freqüentar a Universida-de para servir a um fim, a utilidade social,que não diz respeito apenas a eles mesmos,mas a toda a comunidade.

No livro Liberalism and the limits of justice,Sandel traz à discussão o argumento segun-do o qual medidas favoráveis ao ingressode negros em Universidades devem ser acei-tas por força de um objetivo socialmentevalioso, o de reduzir o grau de consciênciadas pessoas (no caso, dos norte-americanos)quanto à sua própria raça e à das outras8.

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Para Sandel (1998, p. 141)9, o argumentoparece tratar certos indivíduos (os estudan-tes negros que ocuparão as vagas) comomeios para a satisfação de um fim alheio (odos demais cidadãos, de viver em uma soci-edade tanto quanto possível indiferente àraça) e se opor, por isso, ao imperativo cate-górico kantiano10. Note-se, agora, que umasuspeita semelhante pode recair sobre a de-fesa do critério do saber ora em exame. Se osnegros favorecidos pelas cotas são tratadosde maneira indigna, porque seu ingressona Universidade é meio para a realizaçãode um fim11, o mesmo seria de afirmar dosestudantes escolhidos por sua inteligên-cia, supondo-se que a justificativa paraessa escolha se baseie no bem-comum.

A verdade é que, diante das dificulda-des para o emprego da noção de mérito, nãoparece haver outra estratégia disponívelpara a justificação de qualquer critério deadmissão à Universidade senão alguma quese reporte ao que é mais útil para a comuni-dade. É preciso, pois, contar com uma estra-tégia desse tipo caso se deseje prosseguir.

A esta altura, faz-se conveniente distin-guir duas versões para o argumento dautilidade social em favor do critério do sa-ber. Essa distinção tem a ver com o uso ex-clusivo ou não desse critério. Na primeiraversão, que se designará como versão fraca,o argumento aponta para o valor da apti-dão intelectual dos estudantes como meiopara a realização dos objetivos aos quais sedestina a Universidade, sem, contudo, sus-tentar que essa mesma aptidão seja impor-tante o suficiente para vedar a observânciade qualquer critério de admissão que nãolhe diga respeito. Nessa versão, portanto, oargumento da utilidade permite que se apli-quem outros critérios, juntamente com o dosaber, para a seleção de candidatos ao ensi-no superior.

A segunda versão, ou versão forte, doargumento defende o emprego exclusivo docritério em questão. É dessa versão do argu-mento da utilidade social que se tem de de-duzir o direito mencionado no início da se-

ção, isto é, o direito a que se observe unica-mente o critério do saber para a seleção dealunos12.

Em sua versão fraca, o argumento é plau-sível. Ainda que outras virtudes possuídaspelos candidatos, como a perseverança e agenerosidade, também se mostrem propíci-as à obtenção de fins socialmente valiosos,é inegável que muitos desses fins dependemda capacidade intelectual dos estudantes.Dos serviços corriqueiros de um médico,advogado ou engenheiro até a pesquisa maisapurada, há inúmeras atividades úteis de-sempenhadas graças à Universidade paraas quais uma boa dose de destreza mental éindispensável.

É possível aproveitar essa mesma obser-vação em favor da versão forte do argumen-to da utilidade social? Como demonstrar,depois de reconhecido o valor do saber paracertos propósitos aos quais se destinam,habitualmente, as Universidades, que a dis-tribuição de vagas nessas últimas deve-sedar exclusivamente segundo a aptidão inte-lectual dos candidatos?

Uma estratégia aqui seria a de aludir auma dificuldade de ordem prática comomotivo para a aplicação exclusiva do crité-rio do saber. Embora haja outras virtudesimportantes além da inteligência, e ainda,pois, que os objetivos a serem perseguidospelo ensino superior não dependam apenasda capacidade mental dos estudantes, essacapacidade é não só o mais crucial dos fato-res (ao menos entre aqueles a se considerarna seleção dos pretendentes às vagas), comoo mais fácil de aferir se comparado a traçosde caráter, como a perseverança e a genero-sidade, também (mas em menor medida) re-levantes. Como um exame vestibular em quese procurem levar em conta a inteligência eoutros atributos dos estudantes é mais com-plicado (e, por conseguinte, mais custoso)do que outro em que somente se avalie a pri-meira, talvez a sociedade ganhe mais ele-gendo o saber como única qualidade aconsiderar (dado, ainda, o risco de quenão se julguem corretamente as demais,

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ou de que lhes seja atribuído um pesomaior do que o devido) para o ingressona Universidade.

Todavia, a sugestão de que a dificulda-de para se observar outro critério que não odo saber leve este último a ser o único em-pregado só pode ser defendida nos casosem que tal dificuldade é, de fato, constata-da. Se for conferida ao ensino superior umafinalidade suscetível de ser perseguida me-diante o emprego de um outro critério deadmissão cuja obediência se mostre relati-vamente fácil de obter (e o critério racial pa-rece justamente um critério desse tipo), con-tinuará faltando uma razão para se obser-var o critério do saber com exclusividade.Reconhecido algum propósito valioso capazde ser atingido com a reserva de vagas paranegros em Universidades, é pouco provávelque os custos criados pela imposição dessamedida sejam superiores aos ganhos daíadvindos. Apesar da miscigenação brasilei-ra, ainda é muito mais fácil classificar al-guém entre nós como negro do que avaliar,por exemplo, sua perseverança ou genero-sidade.

Deixando-se de lado o apelo à conveni-ência prática, o emprego exclusivo do crité-rio do saber poderia sustentar-se no que dis-põe o art. 208, V, da Constituição brasileira,em que se assegura “acesso aos níveis maiselevados do ensino, da pesquisa e da cria-ção artística, segundo a capacidade de cadaum”. De acordo com certa interpretação13,ao se referir à “capacidade de cada um”,esse inciso definiria a inteligência comoúnico atributo a ser considerado para o in-gresso na Universidade.

Há, porém, sérias objeções a essa inter-pretação. Primeiramente, repare-se que elanão se impõe pelo texto em si mesmo, isto é,pelo texto, dado às suas palavras o signifi-cado que lhes é habitual. “Segundo a capa-cidade de cada um” não é o mesmo que “ex-clusivamente segundo a capacidade decada um”. É verdade que o citado art. 208,V, não menciona outros critérios além dosaber, o que pode sugerir deva ser esse o

único a seguir. Essa, no entanto, é tão-somente uma entre várias possibilidades in-terpretativas, porque a falta de alusão a umsegundo critério também é suscetível de serentendida, diferentemente, como recusa, porparte da legislação constitucional, a tratarexaustivamente do assunto. A questão acer-ca do modo de escolha dos estudantes uni-versitários pode ser daquelas a se resolverem definitivo pela legislação ordinária, li-mitando-se a Constituição a exigir que seobserve, para tal escolha, a aptidão inte-lectual dos candidatos. A referência à ca-pacidade no art. 208, V, corresponderia,desse modo, à indicação de um critério aser necessariamente aplicado, mas não oúnico.

As afirmações do último parágrafo res-saltam que o art. 208, V, da Constituiçãoadmite mais de uma interpretação, e que asua menção à capacidade não tem, portan-to, de ser compreendida como se proibisse aaplicação de qualquer outro critério para oingresso em curso superior que não o dosaber. Há, contudo, razões pelas quais o seutexto deva, e não apenas possa, julgar-secompatível com o uso de critérios de seleçãodistintos.

Ao se apoiar o critério do saber apenasem considerações relativas à utilidade soci-al (afastada, pois, a idéia de que os maisinteligentes possuam direito a freqüentar aUniversidade por outra causa senão a dobem que se proporciona, dessa maneira, àcomunidade), debilita-se a interpretação daConstituição pela qual esse mesmo critérioé reputado como exclusivo. Como o que éútil à sociedade se modifica com facilidade,não deve a Constituição, à primeira vista,disso se ocupar. Assim, se não põe em riscodireitos fundamentais de quem quer queseja, o juízo a respeito dos fins que ao ensi-no superior convém perseguir (e dos critéri-os de admissão à Universidade apropria-dos à obtenção desses fins) deve ser deixa-do à legislação ordinária. Por fim, também orespeito à democracia requer que sejam osrepresentantes do povo os encarregados de

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estabelecer o que há de ser feito pelo bemcomum, inclusive, é claro, no que se refere àformação universitária14.

A interpretação segundo a qual o art. 208,V, da Constituição não proíbe o acesso àUniversidade de ocorrer com base em ou-tros critérios além do que lá é indicado semostra, pois, não só possível, como moral-mente desejável. Ela se coaduna com o úni-co argumento aparentemente disponível emfavor do critério da capacidade intelectual,o da utilidade social, de acordo com o quala importância a ser conferida a esse mesmocritério depende do quão apto ele esteja aatender aos objetivos do ensino universitá-rio, os quais, por sua vez, devem ser defi-nidos em conformidade com as circuns-tâncias e segundo o juízo de legisladoreseleitos.

Esta seção foi dedicada às possíveis jus-tificativas para o critério do saber, tratando,ao final, de determinar se há algo que impo-nha a sua aplicação exclusiva. A resposta énão. Primeiramente, chamou-se a atençãopara as dificuldades de se defender o citadocritério com o apelo à noção de mérito. Taisdificuldades são deixadas de lado por umargumento de utilidade social, que se refereao bem-estar geral a ser alcançado com oauxílio das Universidades e ao critério dosaber como meio para a realização desseobjetivo. O argumento da utilidade não bas-ta, todavia, para descartar o uso de outroscritérios, apesar dos obstáculos práticos quea tanto ocasionalmente se oponham. As ra-zões para isso foram expostas ao se tratarda interpretação do art. 208, V, da Consti-tuição, estando ligadas à variabilidade doque é socialmente útil e às atribuições quedevem ser conferidas, em uma democracia,ao legislador ordinário.

A recusa a considerar o critério do sabercomo necessariamente o único a ser obser-vado não assegura, é claro, que as cotas parao ingresso de estudantes negros em Univer-sidades possam ou devam ser estipuladas.A próxima seção se ocupará com o proble-ma da justificação dessas cotas.

1.2. O critério racial

A reserva de vagas para negros em Uni-versidades é justa? Fere a nossa Constitui-ção? Na seção anterior, concluiu-se que, deacordo com a Constituição, a inteligêncianão tem de ser a única característica a terem conta para a admissão de estudantes àUniversidade. Uma proposta de reformaconstitucional a esse respeito seria de se re-jeitar pelas mesmas razões que dão funda-mento à interpretação do atual art. 208, V.Trata-se, agora, de examinar se, entre os fa-tores para o ingresso na Universidade, deveou pode estar, além da aptidão intelectual,a raça do candidato.

O já mencionado art. 3o, IV, da Constitui-ção designa como um dos objetivos do Esta-do brasileiro o de “promover o bem de to-dos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,cor, idade e quaisquer outras formas de dis-criminação”. Daí não se depreenda que todae qualquer diferença de tratamento baseadaem alguma das características citadas deva-se reputar inconstitucional, mas apenasaquelas para as quais falte uma justificati-va15. O mesmo é de afirmar quanto ao direi-to fundamental à igualdade previsto no art.5o, caput, da Constituição.

Há uma boa razão para se destinar aosestudantes negros uma cota de vagas noensino superior? Em favor de medidas deação afirmativa16 como essa, invoca-se fre-qüentemente a igualdade (ROCHA, 1996,passim; GOMES, 2001b, p. 130-134), não emsua acepção dita formal (de igual tratamen-to pela lei), mas sim entendida como igual-dade material (GOMES, 2001b, p. 132; SILVA,1998, p. 134-141). O significado desta últi-ma expressão, contudo, é algo a ser esclare-cido.

Igualdade material (ou substancial) temhabitualmente o sentido de igualdade defato, isto é, de uma igualdade observávelempiricamente, em oposição à igualdade detratamento legal (PERLINGIERI, 1999, p. 44).De que tipo, porém, é a igualdade de fatoalmejada pela reserva de vagas para negros

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em Universidades? Três respostas a essapergunta podem ser imaginadas. Para a pri-meira, a igualdade a ser perseguida é a derepresentação dos grupos raciais. Em umasociedade na qual cinqüenta por cento dosindivíduos são negros, essa espécie de igual-dade será alcançada no ensino superiorcaso um idêntico percentual de vagas sejaocupado por estudantes negros, o mesmovalendo para as demais raças. A segundaresposta se refere à igual probabilidade deacesso à Universidade. Ela não se refere,como a anterior, ao resultado dos testes deadmissão, mas, tão-somente, à probabilida-de de se obter sucesso nesses testes. A igual-dade será realizada caso essa probabilida-de seja a mesma, ao nascer, para todos oscidadãos. Por fim, é também possível aludirà igualdade de fato como igual probabilida-de de obter posições vantajosas em geral, nãonecessariamente associadas à formação uni-versitária. Consideram-se, então, as chancespara a conquista de bens diversos como ren-da, postos de trabalho e auto-estima.

Qualquer uma dessas respostas pode-seprestar à justificação das cotas para negrosem Universidades, contanto que: a) a igual-dade em questão se mostre desejável; e b) ascotas sejam capazes de promovê-la.

A reserva de vagas para negros em Uni-versidades não apenas satisfaz à idéia deigual representação racial, como é, sem dú-vida, o meio mais seguro para alcançá-la(ao menos, evidentemente, no que respeitaaos negros). Mesmo que surjam dificulda-des para a classificação dos candidatos, amelhor maneira de chegar ao resultado am-bicionado pela mencionada idéia de igual-dade – o de que a ocupação de vagas porum grupo racial se faça de acordo com o seurespectivo percentual populacional – con-siste em reservar o número correspondentede vagas a indivíduos pertencentes a essegrupo. A questão se resume, então, a saberse esse tipo de igualdade é algo que valha apena perseguir.

E a resposta é não. Se a espécie de igual-dade material invocada em favor das cotas

para negros em Universidades for entendi-da como igualdade de participação (isto é,proporcional à população) dos vários gru-pos raciais nos cursos do ensino superior,essas cotas não se poderão considerar justi-ficadas. Isso porque a separação de sereshumanos em grupos de acordo com a raça éarbitrária, tal como seria a que tivesse porbase qualquer outra característica de origemgenética, como sexo, estatura ou cor dosolhos. Que a lei não deva favorecer ou pre-judicar ninguém somente em razão de algu-ma dessas características é algo entre nósincontrovertido, e decorre dos citados arts.3o, IV, e 5o, caput, da Constituição. Essa proi-bição é infringida ao se distribuírem certosbens a grupos (isto é, ao se considerar o gru-po, em vez do indivíduo, para a distribui-ção) constituídos unicamente em virtude dacor da pele, já que, desse modo, dá-se ensejoa que alguém alcance uma vantagem (ou aque deixe de alcançá-la) devido apenas auma característica pela qual não é respon-sável.

O ideal da igual representação racial é,portanto, em si mesmo odioso, porque levaa distribuição de bens (no caso examinado,as vagas em cursos de ensino superior) aocorrer entre grupos formados com base emum critério moralmente irrelevante, que in-fluiria, dessa maneira, sobre a situação decada pessoa considerada isoladamente.

Atente-se, porém, para uma possível de-fesa da igual representação de raças no en-sino superior, capaz de suscitar dúvida so-bre o recém-afirmado. Como a inteligência éo que habitualmente se tem em conta na se-leção dos candidatos, e os indivíduos deuma raça são, em média, tão inteligentesquanto os de outras (nada há, pelo menos,que demonstre o contrário), o ínfimo percen-tual de negros nas Universidades brasilei-ras deve ser atribuído a outros fatores (comoa escravidão, a injusta distribuição da ren-da, a má qualidade do ensino médio gratui-to, etc.) que não a aptidão intelectual. Sendoesses outros fatores perversos, dever-se-iaignorá-los, destinando aos negros a quanti-

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dade de vagas que obteriam, presumivel-mente, caso tais fatores desaparecessem.

Essas observações não bastam para jus-tificar o ideal de igual representação racial,e convém explicar por quê. O argumentoexposto no parágrafo anterior somente é atra-tivo porque alude a uma igualdade distintada que se tinha em vista, e que é perturbadapelos fatores mencionados. Sem esses fato-res, a proposta de reserva de vagas perderiasua plausibilidade: suponha-se que o per-centual de estudantes ruivos nas Universi-dades brasileiras fosse, inexplicavelmente,muito inferior ao da população respectiva.Não há nenhuma evidência de que os rui-vos sejam, em média, menos inteligentes doque as outras pessoas; nem por isso, parece-ria correto destinar-lhes vagas. No atualcaso brasileiro, a diferença entre ruivos enegros está em que os últimos reconhecida-mente sofrem, com maior freqüência, os efei-tos de práticas e estruturas sociais que difi-cultam o acesso de certas pessoas ao ensinosuperior. É, portanto, da igualdade abaladapor essas práticas e estruturas, e não de umasuposta aspiração à igual representação dosgrupos raciais, que o argumento tira a suaforça.

A conclusão, pois, é a de que as cotaspara negros não podem basear-se em umprincípio de igual representação racial noensino superior, já que esse é um princípioespúrio. Daí não é se infira que essas cotasnão devam ser instituídas, nem, tampouco,que elas não possam ser fixadas de acordocom o percentual da população negra emcada região, tal como requereria o princípiocitado. Para se legitimar, contudo, a reservade vagas precisa encontrar apoio em algumideal (ou objetivo) distinto do até aqui exa-minado.

A espécie de igualdade material perse-guida por medidas de ação afirmativa pro-pícias à entrada de negros na Universidadepode ser concebida, em segundo lugar, comoigual probabilidade (ou igual “oportunida-de”)17 de acesso ao ensino superior. Dadosestatísticos sugerem que as chances de ir

à Universidade no Brasil são muito me-nores para os negros. Se o aludido idealde igualdade for genuíno, talvez as cotasraciais se justifiquem como meio para pro-movê-lo.

Uma igual probabilidade de acesso àUniversidade é, todavia, algo difícil de al-mejar. Mesmo se abolidas as práticas quereduzem hoje em dia as chances de algunsindivíduos, sobretudo negros, freqüentaremcursos de ensino superior, a igualdade alu-dida estaria longe de ser alcançada. A pro-babilidade de sucesso nos exames vestibu-lares, tal como atualmente realizados, de-pende dos dotes naturais de cada um, e nãoapenas de fatores sociais. Ainda, portanto,que eliminados esses últimos, as chancesde admissão à Universidade não seriam asmesmas para todos.

A influência dos fatores naturais somen-te desapareceria caso se substituíssem osatuais testes de admissão por um sorteio.Em tal solução, todavia, não se cogita, emrazão da já lembrada importância que aaptidão intelectual dos estudantes possuipara os objetivos do ensino superior.

O inconveniente do apelo à idéia de igualprobabilidade de acesso em favor da insti-tuição de cotas para negros em Universida-des está, pois, em que essa espécie de igual-dade não é desejável. Além disso, as consi-derações recém-feitas indicam o quanto aadoção dessas cotas se mostra imprópriapara que tal igualdade se obtenha. Se a me-tade da população é negra, e metade dasvagas em Universidades for destinada aosnegros, ainda assim as chances de ingressovariarão (por força, por exemplo, dos dotesintelectuais de cada um) de indivíduo paraindivíduo, não importando se negro ou bran-co.

Poder-se-ia alegar que a raça é, não obs-tante, um dos fatores determinantes da fre-qüência à Universidade no Brasil, pois aschances de obter instrução superior são, emmédia, menores para os negros. Por essarazão, as cotas promoveriam o ideal da igualprobabilidade de acesso (ainda que sem re-

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alizá-lo de todo), diminuindo a diferençaentre os vários grupos raciais. O argumentofalha, porém, ao não explicar por que certasdiferenças de probabilidade têm de ser eli-minadas, enquanto outras não.

Imagine-se que Pedro e João nasceramhá exatos dezoito anos, e que haja condi-ções de estimar as chances que cada umpossuía, à época de seu nascimento, de umdia ir à Universidade. Suponha-se entãoque, mantidos os tradicionais testes de ad-missão, as chances de Pedro sejam duasvezes superiores às de João, e que a razãoda diferença, tudo o mais considerado (do-tes naturais, renda familiar, lugar de nasci-mento, etc.), está em que Pedro é branco eJoão, negro18. A instituição de cotas serviria,como afirmado, para dar cabo de tal dife-rença (ou, ao menos, para reduzi-la).

Avalie-se agora a hipótese em que Pedroe João sejam brancos, mantendo-se na mes-ma proporção a probabilidade (isto é, duasvezes maior para Pedro) de cada um chegarà Universidade, desta vez porque Pedro éintelectualmente mais bem dotado do queJoão. Qual é a razão para que se suprima(ou atenue) a diferença entre as respectivaschances no caso anterior, e não neste últi-mo? Não pode ser uma razão que diga res-peito à aleatoriedade da cor da pele, já que aaptidão intelectual inata também é determi-nada aleatoriamente.

O ideal da igual probabilidade de aces-so à Universidade não pode ser levado asério, portanto, a não ser que se desejem abo-lir todas as diferenças verificadas quanto atal probabilidade (o que não parece ser ocaso), distribuindo as vagas mediante umsorteio, ou que se possa explicar por que al-gumas dessas diferenças, e não outras, têmde ser eliminadas. Obviamente, a raça sódetermina as chances de admissão à Uni-versidade por força de práticas sociais ca-pazes de ser abolidas, enquanto a desigualdotação de talentos é algo que hoje aindanão se pode (e, no futuro, talvez não se quei-ra) evitar. Todavia, ao se fixar a atenção so-bre as chances que cada um possui de fre-

qüentar a Universidade, tratando de igua-lá-las por meio de cotas, o que alegadamen-te se persegue não é a supressão das práti-cas segregacionistas. Ao contrário, é apenasao persistirem essas práticas que as cotasservirão à citada finalidade. Também a esserespeito, pois, o argumento da igualdade dechances é o mesmo para a raça e outros fato-res de acesso à Universidade igualmentearbitrários mas mais difíceis de combater,como inteligência, renda familiar ou graude instrução dos pais, já que não alude àsupressão das causas da desigualdade,mas, tão-somente, à de suas conseqüências.Não importa, assim, que algumas dessascausas estejam sujeitas a ser combatidas,enquanto outras não19.

O que se acaba de afirmar não é maisuma vez o bastante para rejeitar as cotas emfavor de estudantes negros. O propósito foiapenas o de salientar as dificuldades en-frentadas na tentativa de justificar essascotas com o apelo à igual probabilidade deacesso à Universidade. Tais dificuldades sedevem a que, com esse apelo, consideram-se somente os efeitos das práticas de segre-gação (e, entre esses efeitos, apenas os quese referem às chances de freqüentar a Uni-versidade). Se as cotas para negros se desti-nam exclusivamente a dar cabo desses efei-tos, seu status moral é o mesmo de outrasmedidas (como a do ingresso dos estudan-tes mediante sorteio) firmemente recusadas.

A terceira concepção de igualdade ma-terial propensa a embasar medidas de açãoafirmativa favoráveis à admissão de negrosem Universidades se refere à probabilidadede ocupar posições vantajosas, vinculadasou não à formação superior. Essas posiçõessão definidas pela posse de bens diversos,como emprego e renda.

Não se pode esperar, sem dúvida, que aschances de um cidadão ascender a determi-nado posto sejam as mesmas de todos osdemais. Assim como as de ir à Universida-de, essas chances variam de acordo com ostalentos de cada um, e nenhuma medidacapaz de abolir os efeitos da repartição de-

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sigual de talentos (como a de designar a ocu-pação de cada indivíduo mediante sorteio)parece justificável. É admissível postular, noentanto, que a disputa por posições vanta-josas não sofra a influência de práticas ouestados de coisas indesejáveis e capazes deser suprimidos, como, por exemplo, a má dis-tribuição de renda e a segregação racial20.

Esta última concepção de igualdade é,portanto, limitada, já que não alude à totalparidade de chances, mas, tão-somente, àdesaparição das diferenças decorrentes decertos fatores. A defesa de cotas para negrossuscetível de ser feita com base em tal con-cepção é essencialmente distinta da anteri-or, em razão de não se tratar agora da su-pressão das diferenças na probabilidade deacesso à Universidade, mas da de suas cau-sas. A reserva de vagas para negros em Uni-versidades se presta a realizar o ideal daigual probabilidade de ascender a posiçõesvantajosas à medida que sirva para pôr fima um fator, o da discriminação racial, porforça do qual a disputa por essas mesmasposições, atualmente, mostra-se desleal21.

A instituição de cotas em Universidadesé um meio adequado à eliminação da segre-gação racial? A pergunta tem de ser enten-dida segundo o princípio de igualdade porúltimo aludido: o que se deseja saber, por-tanto, é se as referidas cotas farão desapare-cer práticas que atualmente dificultam paraos negros a obtenção de posições vantajo-sas.

Para responder a essa questão, faz-senecessária uma investigação empírica acer-ca dos resultados das políticas de ação afir-mativa. Essa investigação, naturalmente,ainda precisa de tempo para ser realizada.Somente haverá condições de avaliar os efei-tos da reserva de vagas para negros nasUniversidades brasileiras depois que ela ti-ver sido adotada por alguns anos. Antesdisso, qualquer juízo a esse respeito seráapressado. Há boas razões para supor queas cotas estimularão práticas perversas dediscriminação racial, já que, além de salien-tar a diferença entre brancos e negros, insi-

nuam a inferioridade destes últimos, poden-do disseminar a idéia de que bacharéis decor negra são menos capazes do que os de-mais (FRASER, 2001, p. 278). Se isso ocor-rer, concluir-se-á que as cotas contrariam,em lugar de promover, a concepção de igual-dade por último considerada. Essa, no en-tanto, é apenas uma suposição. Uma medi-da que facilite a admissão de negros por ins-tituições de ensino superior, levando-os,após algum tempo, a ocupar posições deprestígio com mais freqüência, também écapaz de contribuir para que se elimine (ou,pelo menos, abrande) o preconceito racialalimentado hoje em dia pela subalternida-de a que se vê reduzida quase que invaria-velmente a população negra22.

No começo desta seção, afirmou-se queuma diferença de tratamento associada àraça, desde que justificada, é tolerável e nãoviola a Constituição. Tal justificativa pode-ria ser obtida por meio do ideal de igualda-de material (substancial ou de fato)23 explo-rado em três versões diferentes ao longo dasúltimas páginas. Dessas três versões, con-tudo, apenas a última, relativa à probabili-dade de alcançar posições vantajosas emgeral, não necessariamente vinculadas àformação universitária, propicia fundamen-to à instituição de cotas para negros emUniversidades, e mesmo assim sob a condi-ção de que essa medida sirva à eliminaçãodas práticas segregacionistas que atual-mente reduzem, para a população negracomo um todo, a referida probabilidade.

A razão para a adoção das cotas não serelaciona, portanto, ao bem-estar dos estu-dantes cujo acesso à Universidade será des-se modo facilitado, mas à realização, favo-rável à população negra em geral, de umdireito a que as chances de ascensão a de-terminadas posições não sofram a influên-cia de práticas sociais perversas como as dediscriminação racial24. Até que a experiên-cia convença do contrário, a reserva de va-gas para negros em instituições de ensinosuperior parece um dos instrumentos paraa satisfação desse direito. Isso não significa

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que esse instrumento deva ser utilizado (eque, em conseqüência, o não-emprego docritério racial para a seleção dos estudantesuniversitários seja contrário à Constituição),mas, tão-somente, que é lícito fazê-lo.

2. O projeto no 3.627/2004

Encerra-se este estudo com uma avalia-ção do projeto para a fixação de cotas eminstituições públicas federais de ensino su-perior (projeto de lei no 3.627/2004) apre-sentado recentemente pelo Poder Executi-vo. Esse projeto prevê, inicialmente, umacota correspondente a cinqüenta por centodas vagas destinadas aos estudantes quefreqüentaram escolas públicas durante todoo período do ensino médio (art. 1o)25. Em se-guida, estabelece subcotas (compreendidasna cota recém-referida) para pretos, pardose indígenas26 de acordo com o percentualdas respectivas populações em cada estado(art. 2o)27.

Na parte anterior deste estudo, defendeu-se como admissível o emprego concomitan-te de critérios diversos para a seleção de es-tudantes universitários, não obstante o quepossa sugerir o art. 208, V, da Constituição.Esses critérios podem levar em conta carac-terísticas dos candidatos tais como sexo,idade, cor da pele e procedência escolar, con-tanto que haja boas razões para tanto.

A respeito da reserva de vagas para ne-gros em Universidades, o citado projeto sus-cita comentários a dois tópicos: o primeiro éo de essas vagas estarem incluídas na cotadestinada aos alunos de escolas públicas,favorecendo, dessa maneira, apenas os es-tudantes negros que tenham freqüentadoestas últimas, enquanto o segundo se refereà quantidade das vagas e à sua relação como percentual da população negra em cadaregião.

Quanto ao primeiro tópico, poder-se-iaaduzir em favor do projeto no 3.627/2004que os estudantes negros oriundos de esco-las públicas são os que possuem menor pro-babilidade de ingressar na Universidade em

comparação com os estudantes brancos emgeral e com os negros saídos de escolas par-ticulares, estando aí a razão para que sejambeneficiados por uma cota. Observou-se naseção precedente, contudo, que a justificati-va para o uso de um critério racial na ad-missão de alunos à Universidade não se re-laciona com a igual probabilidade de aces-so ao ensino superior, mas, sim, com a igual-dade de chances de ascensão a posiçõesvantajosas propiciada pelo fim das práti-cas discriminatórias28. A hipótese aventadafoi a de que a formação universitária levefuturamente um maior número de negros aposições de prestígio (além das já habitu-ais, associadas à música e ao esporte), con-tribuindo, assim, para o gradual desapare-cimento das práticas citadas. Trata-se, emsuma, de forjar uma sociedade indiferente àraça (color blind) pela promoção de negros apostos geralmente cobiçados.

A reserva de vagas unicamente para osalunos negros formados em escolas da redepública só seria aceitável, portanto, se hou-vesse algum indício de que o propósito depôr fim às práticas de segregação será maisbem alcançado mediante a admissão à Uni-versidade desses alunos, e não de outros,também negros, provenientes de escolasparticulares. À falta de um indício assim (édifícil vislumbrar algum), é lícito concluirque as cotas devem ser destinadas aos estu-dantes negros em geral.

No que se refere ao percentual de vagasatribuído aos negros, correspondente ao darespectiva população em cada estado, o art.2o do projeto em análise pode parecer influ-enciado pelo ideal de igual representaçãoracial29. Como esse é um ideal pouco atraen-te30, deve-se examinar se a norma citadatambém se coaduna com a espécie deigualdade (quanto às chances de ocupar po-sições vantajosas em geral, não necessaria-mente atreladas à formação universitária)capaz de dar fundamento à política de cotas.

A extinção das práticas de segregaçãomediante o ingresso de um maior númerode negros na Universidade (e a sua conse-

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qüente ascensão a posições de prestígio)pode ser alcançada sem que o percentual deestudantes negros equivalha ao da popula-ção respectiva. Não é preciso observar talequivalência, a menos que se pretenda le-var a sério o ideal da igual representaçãodos grupos raciais (o que, como já dito, nãoé o caso). No entanto, se o objetivo das cotasé o de criar uma sociedade indiferente à raça,o número de indivíduos negros bem situa-dos talvez não possa ser muito inferior emproporção ao do percentual de negros napopulação. Do contrário, corre-se o risco deque esses indivíduos continuem sendo trata-dos como excentricidades, casos à parte (es-tigmatizados, possivelmente, pelas cotas) in-suficientes para dar cabo da discriminação.

A fixação da cota segundo o percentualpopulacional pode ser admitida, portanto,com base no princípio da igual probabili-dade de acesso a posições vantajosas. Esseprincípio não impede, todavia, que o per-centual de vagas destinado aos negros sejainferior ao da população respectiva, o quetalvez pareça conveniente se forem consi-derados os outros objetivos do ensino supe-rior31.

Examinar-se-á, finalmente, o critério daprocedência escolar previsto no art. 1o doprojeto no 3.627/2004. De acordo com essecritério, ao menos cinqüenta por cento dasvagas de instituições federais de ensino de-verão ser ocupadas por alunos advindos deescolas públicas. Deixando de lado a preo-cupação com a raça (já que parte dessas va-gas também se destina a alunos brancos), aquestão agora é a de saber se é correto dis-pensar tratamento diverso aos candidatosà Universidade em razão de sua origem es-colar.

Algumas das observações anterioresacerca da reserva de vagas para negros sãoúteis aqui. Assim como estes últimos, os es-tudantes provenientes de escolas públicas(muitos dos quais negros) parecem disporhoje em dia de chances menores de acesso àUniversidade se comparados aos alunos deescolas particulares. A estipulação de uma

cota serviria, como no caso dos negros, àredução dessa diferença.

Lembre-se, contudo, que as cotas paranegros só devem ser aceitas caso se mos-trem aptas a combater a causa da diferençaentre brancos e negros quanto à probabili-dade de freqüentar a Universidade (a dis-criminação racial), e não a diferença em simesma. A razão disso está em que a cor dapele constitui um fator moralmente tão irre-levante quanto outros (como, em especial, ainteligência) cuja influência para a admis-são à Universidade não se almeja abolir.

A desigualdade quanto às chances defreqüentar instituições de ensino superiorentre os alunos de escolas públicas e parti-culares também se deve a práticas sociaisperversas, relacionadas, por exemplo, à máqualidade do ensino na rede pública e aoingresso precoce dos jovens de famílias debaixa renda no mercado de trabalho. A exem-plo da cota racial, no entanto, a adoção deuma cota em favor dos estudantes da redepública se justifica se contribuir para o ani-quilamento das referidas práticas, mas nãose destinada apenas a atenuar-lhes os efei-tos.

A disposição contida no art. 1o do proje-to no 3.627/2004 é apropriada ao combatedas causas da desigualdade entre alunosdas redes de ensino pública e particular noque respeita às chances de acesso à Univer-sidade? É bem provável que o intuito dessadisposição seja outro, o de oferecer uma meracompensação pelo prejuízo advindo da de-sigualdade. Não se afirma, com isso, que osautores do projeto estejam satisfeitos comas práticas que atualmente põem os estu-dantes de escolas particulares em vantagemsobre os demais, mas, sim, que, possivelmen-te, não pretendem eliminar tais práticas pormeio da reserva de vagas. Nada impede,porém, que a cota para alunos da rede pú-blica se preste a combater os fatores da dife-rença entre os dois grupos de estudantes,ainda que outro seja o fim ao qual se pro-pôs. Isso ocorrerá se as vagas reservadasservirem de estímulo àqueles aos quais se

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destinam, levando-os a se prepararem maispara os exames vestibulares. Um aumentodo interesse pela formação universitáriatambém é capaz de provocar mudança emcertos hábitos familiares (animadas peloaumento das chances de ingresso na Uni-versidade, famílias de baixa renda podemassegurar aos filhos um maior tempo de es-tudo) e de apressar a melhora do ensino ofe-recido pelas escolas públicas.

Como as que se referem ao fim da segre-gação racial, tais conjeturas só poderão serconfirmadas algum tempo depois de im-plantada a cota em questão (caso ela seja,de fato, implantada). Até que a experiênciapermita um juízo mais seguro, a reserva devagas para alunos de escolas públicas deve-se ter como admissível32.

Conclusões

1) O uso do critério do saber para o in-gresso de estudantes em instituições de en-sino superior não pode ser justificado comapelo à noção de mérito. Se esse critério édefendido com base em considerações utili-taristas, não há nada que assegure seu em-prego exclusivo, como também se pode de-preender da interpretação do art. 208, V, daConstituição.

2) O princípio da igual representaçãoracial deve ser rejeitado, pois vincula a dis-tribuição de bens (no caso, as vagas em Uni-versidades) a grupos constituídos de acor-do com características genéticas e, em con-seqüência, moralmente arbitrárias.

3) A instituição de cotas para negros nãodeve, tampouco, relacionar-se ao propósitode proporcionar chances iguais de acesso àUniversidade. Esse acesso é mais provávelpara alguns indivíduos do que para os de-mais em virtude de outros fatores (como, emespecial, a inteligência) moralmente tão ir-relevantes quanto a raça, cuja influência,entretanto, não se deseja combater.

4) O ideal de igualdade por meio do qualse legitima o uso do critério racial para aseleção de estudantes universitários é o que

se refere à probabilidade de ascender a po-sições vantajosas em geral, não necessaria-mente atreladas à instrução superior. Ascotas para negros serão de aceitar caso aju-dem a pôr fim a práticas discriminatóriasque atualmente diminuem, para esses indi-víduos, a mencionada probabilidade. A efi-cácia dessas cotas somente poderá ser ava-liada, contudo, depois que elas estiveremimplantadas há algum tempo.

5) Ao contrário do que prevê o projeto delei no 3.627/2004, as cotas para negros, seestabelecidas, não devem ser destinadasapenas aos alunos oriundos de escolas pú-blicas.

6) O critério da procedência escolar pre-visto no art. 1o do citado projeto somente éde admitir caso contribua para a elimina-ção de práticas (tais como as associadas àmá qualidade do ensino médio público) quereduzem hoje em dia a chances de ingressona Universidade para os alunos das esco-las públicas, mas não se servir apenas paracompensar o prejuízo advindo dessas mes-mas práticas.

Notas

1 Como “negros” se designam, de acordo com ousual, os indivíduos de cores preta e parda.

2 Além de destinar cinqüenta por cento das va-gas de instituições públicas federais aos estudan-tes oriundos de escolas públicas (art. 1o), o projetode lei no 3.627/2004 também determina que partedessas vagas seja reservada a pretos, pardos e in-dígenas de acordo com o percentual das respecti-vas populações em cada estado (art. 2o).

3 Foi o que ocorreu no célebre caso Regents of theUniversity of California v. Bakke, apreciado pela Su-prema Corte dos E.U.A. no fim da década de 70(438 U.S. 265 [1978]). Allan Bakke, um estudantebranco pretendente a uma das vagas do curso demedicina da Universidade da Califórnia, em Davis,insurgiu-se contra medida que destinava dezesseisdos cem lugares disponíveis a candidatos negrosou de outras populações minoritárias, alegandoviolação do direito a igual tratamento (equal protec-tion of the laws) previsto na 14a Emenda à Constitui-ção norte-americana. A decisão, favorável a Bakke,considerou proibida a estipulação de cotas, admi-

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tindo, no entanto, que a raça fosse tida como umdos fatores para o ingresso em instituições de ensi-no superior. (Cf. DWORKIN, 2002a, p. 386-387).Uma versão em português desse julgamento seencontra em Gomes (2001a, p. 245-295). Para umaexposição minuciosa sobre o caso, ver Menezes(2001, p. 98-106). Mais recentemente, a SupremaCorte norte-americana confirmou o entendimentorecém-aludido no julgamento do caso Grutter v.Bollinger (123 S. Ct. 2325 [2003]).

4 O princípio da diferença é um dos dois princí-pios de justiça de Rawls. De acordo com ele, asdesigualdades entre os integrantes de uma socie-dade devem ser toleradas apenas à medida que semostrem vantajosas para todos, inclusive para osmenos favorecidos, e desde que estejam relaciona-das a posições ou ocupações abertas a todos (opento all). Além do conteúdo formal expresso notexto, a parte final do princípio da diferençatambém requer medidas para evitar que a mádistribuição de recursos impeça o acesso de al-guns indivíduos a certas posições. (RAWLS,1999, p. 63).

5 “Art. 3o Constituem objetivos fundamentaisda República Federativa do Brasil: (...) IV – promo-ver o bem de todos, sem preconceitos de origem,raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminação.” “Art. 5o Todos são iguais perantea lei, sem distinção de qualquer natureza, garantin-do-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentesno País a inviolabilidade do direito à vida, à liber-dade, à igualdade, à segurança e à propriedade,nos termos seguintes: (...).” “Art. 206. O ensinoserá ministrado com base nos seguintes princípios:I – igualdade de condições para o acesso e perma-nência na escola; (...).”

6 O debate sobre o significado da palavra raçaainda está em curso. No Supremo Tribunal Federal,esse debate foi trazido à tona recentemente no exa-me do Habeas Corpus no 82.424-2/RS (julgamentoencerrado em 17/09/2003, decisão publicada noDiário da Justiça de 19/03/2004), em que a ques-tão, respondida ao final afirmativamente, era a desaber se uma prática ofensiva a judeus poderia sertida como racista. Não obstante o interesse que écapaz de suscitar, a pergunta sobre se há ou nãouma raça negra é irrelevante para o tema deste es-tudo. Ainda que brancos e negros pertençam àmesma raça, o importante é que haja o costume(como, de fato, há) de assim os distinguir. Essadistinção, tradicional em nossa sociedade, podeservir para justificar medidas em favor de um dosgrupos (é de se rejeitar, assim, a sugestão de que,em não havendo diversas raças humanas, a reservade vagas para negros em Universidades ou na Ad-ministração Pública deve ser considerada, apenaspor esse motivo, descabida). (Cf. GOMES JR., 2003,p. 93-94).

7 É o que salienta Rawls (1999, p. 87) em suadefesa do princípio da diferença (v., “supra”, anota 5): “No one deserves his greater naturalcapacity nor merits a more favorable starting placein society. But, of course, this is no reason to ignore,much less to eliminate these distinctions. Instead,the basic structure can be arranged so that thesecontingencies work for the good of the least fortunate.Thus we are led to the difference principle if wewish to set up the social system so that no one gainsor loses from his arbitrary place in the distributionof natural assets or his initial position in societywithout giving or receiving compensatingadvantages in return.”

8 O argumento é de Dworkin (1985, p. 294).9 Não é objetivo de Sandel (1998, p. 144) o de

demonstrar a insustentabilidade das cotas, nem,tampouco, o de refutar o argumento de Dworkin.Para ele, trata-se apenas de chamar a atenção paraa necessidade de que esse argumento se faça acom-panhar por uma concepção de comunidade capazde justificar o “sacrifício” de alguns em favor dosdemais (SANDEL, 1998, p. 142-147). Barzotto(2003, p. 54), no entanto, vale-se das consideraçõesde Sandel para concluir pela incompatibilidade coma Constituição brasileira da reserva de vagas paranegros em Universidades: “políticas de ação afir-mativa (...) são inconstitucionais do ponto de vistada justiça social, na medida em que, a pretexto deestabelecer a igualdade, violam a dignidade dosenvolvidos, (...) por reduzi-los à condição (...) demeio”.

10 Kant (1960, p. 69): “O imperativo práticoserá pois o seguinte: age de tal maneira que uses ahumanidade, tanto na tua pessoa como na pessoade qualquer outro, sempre e simultaneamente comofim e nunca simplesmente como meio.”

11 Barzotto (2003, p. 54): “os próprios benefici-ários do programa foram tratados, na seleção, comomeios para um fim estranho à Universidade.”

12 Emprega-se a palavra “direito” apesar de setratar, neste caso, de uma vantagem conferida aalguém tão-somente em razão do benefício que pro-porciona à sociedade.

13 É a que parece apoiar Barzotto (2003, p. 50):“o ensino superior é regulado pelo art. 208, V. (...)Verifica-se que (...) há uma regra de distribuição dobem ‘participação nos níveis mais elevados de ensi-no’: a cada um segundo a sua capacidade. Ou seja,este não é um bem que a Constituição prescrevacomo indispensável à plena realização do ser hu-mano, e por conseguinte, como algo que deve serdistribuído a todos. Ao contrário, (...) limita a ofer-ta desses bens somente àqueles que demonstrarama capacidade para aproveitá-los. O direito ao ensi-no superior é, assim, um direito social de justiçadistributiva, regulado pelo critério: ‘a cada um se-gundo a sua capacidade’.”

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14 O que o texto afirma, em resumo, é que, ao sesustentar o critério do saber apenas em um argu-mento de política (e não em argumentos de princí-pio), falta a justificativa para que tal critério seimponha por meio da Constituição. Sobre a distin-ção entre argumentos de política e de princípio, verDWORKIN (2002b, p. 129).

15 Ver, entretanto, Hasnas (2002, p. 516-525). Oautor alerta para o risco de que diferenças de trata-mento com base em raça, sexo, religião ou origemsirvam, de fato, à opressão de certos grupos, mes-mo quando alegadamente estabelecidas para finslegítimos. Propõe, por isso, uma rigorosa interpre-tação da cláusula de igual tratamento contida na14a Emenda à Constituição norte-americana, pelaqual se considere proibida quase toda medida dis-criminatória que se valha das características cita-das. Embora fundado o temor manifestado porHasnas, sua conclusão é, no entanto, exagerada.

Contra a afirmação de que qualquer distin-ção de tratamento associada à raça é inconstitucio-nal segundo o Direito norte-americano, ver Dworkin(2002b, p. 348-369). Sobre o princípio constitucio-nal da igualdade, consulte-se ainda Alexy (2001,p. 385): “(...) el principio general de igualdad diri-gido al legislador no puede exigir que todos debanser tratados exactamente de la misma manera ytampoco que todos deban ser iguales en todos losrespectos.”

16 Por ação afirmativa se entende qualquer umapraticada em favor de um grupo de indivíduostradicionalmente em posição de desvantagem,como negros, mulheres ou homossexuais.

17 Uma referência às ações afirmativas comomeio para a promoção do “ideal de concretizaçãoda igualdade de oportunidades” se encontra emGomes (2001b, p. 136). Ver também Junqueira(2002, p. 142).

18 Em outras palavras, as razões (por exemplo,a baixa auto-estima ou o risco de redução da rendafamiliar pelo desemprego prolongado) para que aschances de João sejam menores estão todas elasrelacionadas à raça.

19 Uma razão imaginável para se mitigarem asdiferenças vinculadas à raça, mas não as que seoriginam de dotes naturais, estaria em que, sendoas primeiras resultado de práticas sociais perver-sas, sua eliminação serviria à reparação do malcausado por essas mesmas práticas. Tal reparaçãoseria, contudo, injusta, porque feita à custa de unspoucos (os candidatos à Universidade que teriamsuas chances diminuídas em virtude das cotas) eem favor de apenas parte das vítimas da segrega-ção racial (os indivíduos negros beneficiados pelascotas). (Cf. GOMES, 2001a, p. 65).

20 Assim se satisfaz a uma das partes do prin-cípio da diferença rawlsiano (v., “supra”, a nota 5),designada com a expressão fair equality of opportunity

(RAWLS, 1999, p. 63). Ela se traduz pela exigênciade que não apenas as diferentes ocupações perma-neçam formalmente abertas a todos, como tam-bém que aqueles com talentos e disposição simila-res conservem as mesmas chances de obtê-las.

21 Admitindo-se que a raça determine, por si só,as chances de alguém freqüentar a Universidade noBrasil hoje em dia, é claro que o fim das práticas desegregação racial aumentaria essas chances paraos negros. A abolição dessas práticas pode-se des-tinar, não obstante, a satisfazer à igualdade maisampla (relativa à probabilidade de alcançar posi-ções favoráveis) mencionada no texto.

22 Os resultados das medidas de ação afirmati-va estão atualmente em discussão nos E.U.A., lu-gar em que as mesmas medidas já vêm sendo im-plantadas há algumas décadas. A esse respeito, oprincipal estudo parece ser o de William G. Bowene Derek Bok, The shape of the river : long-termconsequences of considering race in college and universityadmissions (1998), com conclusões favoráveis àsações afirmativas na área educacional (Cf.DWORKIN, 2002a, p. 387-400). Embora instruti-vo, o debate norte-americano sobre os efeitos depolíticas favoráveis ao ingresso de negros em Uni-versidades (e de outras políticas similares) deve seravaliado com cautela, já que é nítida a diferençaentre as formas de discriminação racial observadasnaquele país e no nosso.

23 A ênfase sobre a igualdade levou a que sedeixassem de lado considerações utilitaristas favo-ráveis às ações afirmativas. Sobre consideraçõesdesse tipo, ver Dworkin (2002b, p. 358). Não é ver-dade, porém, que as razões de Dworkin (2002b, p.368) em favor das ações afirmativas sejam exclusi-vamente utilitaristas: “os argumentos favoráveis aum programa de admissões que discrimine em fa-vor dos negros são ao mesmo tempo utilitaristas ede ideal. (...) Os argumentos de ideal não se basei-am em preferências, mas sim no argumento inde-pendente de que uma sociedade mais igualitáriaserá uma sociedade melhor, mesmo se seus cida-dãos preferirem a desigualdade.”

24 Trata-se, como já observado (v., “supra”, anota 21), de um direito decorrente do princípio dadiferença rawlsiano.

25 “Art. 1o As instituições públicas federais deeducação superior reservarão, em cada concursode seleção para ingresso nos cursos de graduação,no mínimo, cinqüenta por cento de suas vagas paraestudantes que tenham cursado integralmente o en-sino médio em escolas públicas.”

26 A subcota para índios merece consideraçõesà parte. Ela será deixada de lado no que segue.

27 “Art. 2o Em cada instituição de educaçãosuperior, as vagas de que trata o art. 1 o serão preen-chidas por uma proporção mínima de autodecla-rados negros e indígenas igual à proporção de pre-

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tos, pardos e indígenas na população da unidadeda Federação onde está instalada a instituição, se-gundo o último censo da Fundação Instituto Brasi-leiro de Geografia e Estatística – IBGE.”

28 Empregando os termos de Fraser (2001, p.265-266), as cotas se justificam como parte de umapolítica de transformação, não de afirmação.

29 Ainda que esse percentual diga respeito aapenas metade do total de vagas oferecidas.

30 V., “supra”, seção 1.2.31 A preocupação com o desempenho dos estu-

dantes favorecidos pelas cotas poderia ser atendi-da com a estipulação de um escore mínimo a seratingido para preenchimento do todo ou de partedas vagas oferecidas.

32 Admissível, não necessária. Assim como aspráticas de discriminação contra os negros, é possí-vel tentar suprimir as que atualmente desfavore-cem os estudantes da rede pública de várias ma-neiras, sendo a instituição de cotas em universida-des apenas uma delas.

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IntroduçãoEste esforço, sobre o qual resultou o pre-

sente texto, responde à necessidade de seproduzir uma reflexão que tenha por desi-derato servir de base para a promoção deum processo de debate acerca de tema tãocandente na seara do Direito Administrati-vo, com a pertinência relacionada ao con-teúdo da necessidade de intervenção legis-lativa, que propugne por um tratamentomais igualitário na relação do Indivíduo como Estado-Administração.

O tema a ser tratado, na reflexão em tela,reivindica o aprendizado da sistemática daCiência Jurídica e a conseqüente posta emprática dos modernos conceitos do DireitoAdministrativo. Tendo por enfoque a buscade um procedimento que facilite não somen-te o acesso à Justiça, como também agilize aentrega da prestação jurisdicional do Estado,visando ter como ferramenta útil à implemen-tação de possível solução para um problemasuscitado no âmbito da matéria legislada.

O que se pode vislumbrar sobre a temáti-ca administrativista é que se trata de um fe-nômeno multifacetado, complexo, e que nãose exaure pela simples verificação dos seus

A obrigatoriedade da denunciação da lide nasdemandas resultantes da responsabilizaçãopatrimonial extracontratual do Estado pordanos causados a terceiros

João Batista Marques

João Batista Marques é Advogado e Profes-sor, Especialista em Direito Legislativo pelaUniversidade Federal do Mato Grosso do Sul eUniversidade do Legislativo Brasileiro – Uni-legis, Brasília, Mestre pela Fundación Interna-cional y para Iberoamérica de Administracióny Políticas Públicas - FIIAPP, Madrid, Espanha,e Doutorado em Direito Constitucional pelaUniversidad Complutense de Madrid, Espanha.

SumárioIntrodução. 2. Considerações preliminares.

3. Aproximação conceitual. 4. Marco legal. 5.Posicionamento doutrinário. 6. A jurisprudên-cia. 7. Articulação de opiniões. Conclusão. Ane-xo.

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aspectos intrínsecos. Mas, tal realidade cons-titui toda uma formulação de premissas,princípios, preceitos, contingências e estru-turas que envolvem a entidade estatal e asociedade.

De modo que, trabalhar com essa pers-pectiva do Direito Administrativo, demons-tra o quanto se pode interferir nos mecanis-mos postos, a fim de aperfeiçoá-los, aprimo-rá-los, e dar maior factibilidade a uma atua-ção da Administração Pública que estejamais voltada para a consolidação de um efi-caz Estado Democrático de Direito.

Em tempo recente, e essa situação pas-sada não se há exaurido, uma vez que osseus efeitos perduram, o ex-presidente doSuperior Tribunal de Justiça, ministro Pau-lo Costa Leite, com ampla divulgação pelaimprensa, manifestava-se sobre a atual si-tuação em que se encontrava a JustiçaFederal. Diagnosticava, o insigne Presiden-te, o assombroso volume de causas penden-tes de solução judicial, não só naquela AltaCorte, mas em toda a Justiça brasileira.Acrescentava, ainda, que, assoberbada porcausas de ações cujos valores, muitas ve-zes, chegam a beirar o irrisório, a Justiçanacional estava sem condições materiaispara bem desempenhar o seu mister.

Diante de quadro tão caótico, o que sepode perceber é que essas causas de poucacomplexidade e de valores ínfimos, ao te-rem que obedecer aos mesmos trâmites decausas mais complicadas, demoram muitís-simo para serem resolvidas, prejudicandoseus autores, ao tempo em que, numerica-mente superiores, emperram o andamentodas demais.

É cediço que, a causa da morosidade daJustiça não se prende, única e exclusivamen-te, ao acúmulo de causas demandadas emface de ofensa a direitos subjetivos. Porém,a questão envolve outros fatores de ordemfinanceira, econômica, de recursos huma-nos, de regulação procedimental. O que levaà inferência de que não se trata, apenas, deuma situação contingencial, mas também,diga-se de passagem, estrutural.

Diante de um obstáculo material de in-contrastável significância, é que se faz mis-ter formular dita reflexão. Notadamente,uma reflexão que seja capaz de gerar e pos-sibilitar a discussão e o debate em torno dacriação legislativa de um mecanismo queenfrente, com uma solução inteligente, o pro-blema que constitui a razão de ser deste tra-balho, qual seja: o da denunciação da lide,que já se encontra prevista no atual Códigode Processo Civil, no âmbito da Adminis-tração Pública, quando esta estiver sendoacionada pelo particular que busca ressar-cir-se de prejuízo causado por agentes pú-blicos, nessa qualidade.

Naturalmente, que a medida propostanão servirá de panacéia para os problemasestruturais de todo o Poder Judiciário, mas,seguramente, trará maior celeridade na pres-tação jurisdicional específica, e agilizará asolução dos conflitos que envolvem a Ad-ministração, seus agentes e o particular.

Não se pode, sem dúvida, olvidar que jáexistem alguns projetos tramitando no Con-gresso sobre a matéria, o que só demonstraa relevância e a pertinência que tem para asociedade a existência de uma atuação es-tatal mais célere, no que diz respeito às re-parações daqueles danos que leva a efeito.

Entretanto, urge isolar a questão, medi-tar e propor, o mais rápido possível, as polí-ticas públicas legislativas necessárias, paramodernizar a justiça brasileira, desburocra-tizando-a e resgatando-a em sua nobrezapara a opinião pública, e, pragmaticamen-te, fazendo com que o cidadão lesado pelaAdministração Pública seja ressarcido. E asociedade, em razão da atividade estatalgovernativa, não arque com o prejuízo cau-sado por um de seus agentes.

De sorte que, para buscar e encontrar assoluções que dão eficácia e eficiência às de-cisões judiciais, há que por de manifesto oproblema, o que corresponderia, em últimaratio, a um diagnóstico. E que como prog-nóstico idealizar procedimentos que forta-leçam a segurança jurídica e a estabilidadepara os jurisdicionados.

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Ademais, sendo de boa índole a todos osoperadores do Direito, que promovam o bomdebate, pois estarão prestando um grandeserviço ao aperfeiçoamento da Justiça, possi-bilitando o atendimento, com maior rapidez,do cidadão que precisa se socorrer da Justiçapara o recebimento do que lhe é devido.

2. Considerações preliminares

O tema, evidentemente, ao olhar desar-mado, pode acalentar uma feição tormento-sa, em face dos seus mais diversos aspectospolíticos, jurídicos, econômicos, etc. Não há,por outro lado, unanimidade no que respei-ta ao posicionamento da doutrina. A juris-prudência nos tribunais, todavia, ainda nãose há firmado.

O proposto exame objetiva fazer umaaproximação conceitual, sob a ótica jurídi-ca, bem como traçar os lineamentos que osinstitutos da denunciação da lide e da açãoregressiva têm merecido na ordem jurídicanacional, no que respeita à responsabilida-de do Estado por atos de seus agentes.

O propósito de inovar na legislação pá-tria vislumbra a iniciativa que visaria aacrescentar ao art. 70 do Código de Proces-so Civil a figura da denunciação da lide nasações movidas contra a Fazenda Pública emdecorrência do instituto da Responsabilida-de Civil do Estado por ato próprio ou deseus agentes.

À guisa de ilustração, a eventual e ne-cessária propositura alteradora o EstatutoProcessual Civil disporia, entre outros fun-damentos, da virtude de que não é própriodo nosso modelo procedimental a posterga-ção da prestação jurisdicional, pois estadeve almejar celeridade, com base na eco-nomia processual. Alusão feita ao fato deque se deve chamar, de pronto, o agentepúblico que causou dano aos particulares,tendo em vista que isso é medida que se im-poria para a solução plena, rápida e justado conflito intersubjetivo de interesses.

A fundamentação cabível, no presentecaso, remete ao assoberbamento do Poder

Judiciário no que concerne ao volume de li-tígios. E que a intervenção no ordenamentojurídico redundaria em uma interessantediminuição do fluxo de processos em todasas instâncias de julgamentos. Por uma ra-zão muito simples, haja vista a junção, emum mesmo feito, da ação proposta pelo par-ticular lesado, pela administração públicae pelo agente causador do dano. Desde logo,trazendo um aspecto pragmático, qual seja,a concentração em uma mesma linha de ra-ciocínio a decisão final, facilitando e redu-zindo, sobremaneira, o deslinde e o tempocom o curso do processo na via judicial.

3. Aproximação conceitual

A propósito da temática em questão, obje-to do presente trabalho, três assuntos mere-cem destaque, pois constituem o cerne do pro-blema que se pretende ver resolvido, a saber:a) a responsabilidade patrimonial extracon-tratual do Estado, que, por ato de seus agen-tes, nessa exata qualidade, em razão de suascondutas, provoca diminuição no patrimô-nio do particular;b) a ação regressiva do Estado, que já restoucondenado na ação principal e já indeni-zou a vítima, perante seu agente públicocausador do dano; ec) o instituto da denunciação da lide, quan-do o Estado é acionado pela vítima buscan-do reparar o seu prejuízo.

De acordo com Bandeira de Mello (2000,p. 853), a responsabilização do Estado deveser assim enunciada:

“entende-se por responsabilidadepatrimonial extracontratual do Esta-do a obrigação que lhe incumbe dereparar economicamente os danos le-sivos à esfera juridicamente garanti-da de outrem e que lhe sejam imputá-veis em decorrência de comportamen-tos unilaterais, lícitos ou ilícitos, co-missivos ou omissivos, materiais oujurídicos”.

Em igualdade de pensamento, concorreDi Pietro (2000, p. 524), para quem:

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“a responsabilidade extracontratualdo Estado corresponde à obrigação dereparar danos causados a terceiros emdecorrência de comportamentos co-missivos ou omissivos, materiais oujurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveisaos agentes públicos”.

A Ação de regresso, por sua vez, consis-te na sub-rogação legal do direito de acio-nar legitimado em razão de uma condena-ção a que teve que arcar, em razão da res-ponsabilidade que cabia àquele legitimadooriginariamente.

De acordo com Carvalho Filho (2001, p.436), por direito de regresso, levando-se emconsideração a órbita estatal, deve-se enten-der como aquele:

“assegurado ao Estado no sentido dedirigir sua pretensão indenizatóriacontra o agente responsável pelodano, quando tenha este agido comculpa ou dolo”.

A denunciação da lide, segundo NelsonNery Jr. (1997, p. 348),

“é a ação secundária, de natureza con-denatória, ajuizada no curso de outraação condenatória principal”.

No mesmo diapasão, HumbertoTheodoro Jr. (1996, p. 125) preleciona que adenunciação da lide:

“é medida obrigatória, que leva a umasentença sobre a responsabilidade deterceiro em face do denunciante, depar com a solução normal do litígiode início deduzido em juízo, entreautor e réu”.

Note-se, por oportuno, que já existe pa-râmetro jurídico-conceitual sobre a temáti-ca exposta, o que autoriza a tentativa de ar-ticulá-los em prol da empreitada juris-legislativa que redunde em solução para atemática suscitada.

4. Marco legal

A Constituição Federal albergou e pos-sibilitou o direito de regresso a ser exercita-do pela Administração Pública quando so-

frer condenação à reparação de danos oriun-dos da ação de seus agentes públicos ouprivados, nessa qualidade, que derem cau-sa a prejuízo a terceiros, conforme se depre-ende do dispositivo inserido sob a égide doart. 37, § 6o, CF/1988, que se transcreve, aseguir:

“Art. 37. A administração pública di-reta e indireta de qualquer dos Pode-res da União, dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios obedeceráaos princípios de legalidade, impes-soalidade, moralidade, publicidade eeficiência e, também ao seguinte:........................................................................§ 6o As pessoas jurídicas de direitopúblico e as de direito privado presta-doras de serviços públicos responde-rão pelos danos que seus agentes, nes-sa qualidade, causarem a terceiros,assegurado o direito de regresso con-tra o responsável nos casos de doloou culpa”.

A ação regressiva de que trata a Consti-tuição Federal, no artigo retromencionado,tem disciplina infraconstitucional, regula-da na Lei no 8.112/90, Regime Jurídico Úni-co dos Servidores Civis da União, em seucapítulo IV, Das Responsabilidades, do Tí-tulo IV, que trata do Regime Disciplinar con-forme o art. 122, § 2o, abaixo transcrito:

“Art. 122. A responsabilidade civildecorre de ato omissivo ou comissivo,doloso ou culposo, que resulte em pre-juízo ao erário ou a terceiros.§ 1o ...§ 2o Tratando-se de dano causado aterceiros, responderá o servidor peran-te a Fazenda Pública, em ação regres-siva.”

Também se recorre ao conteúdo da Açãode Regresso1, na esfera federal, cuja legiti-mação ativa cabe à Advocacia Geral daUnião, perante Tribunais Superiores edemais Tribunais. Nos Estados Federadose no Distrito Federal, cabe a propositurada respectiva ação às ProcuradoriasRegionais.

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A denunciação da lide, a seu turno, en-contra-se sob o pálio da legislação Proces-sual Civil, Lei no 5.869, de 11 de janeiro de1973, Código de Processo Civil, no capítuloVI, que trata da Intervenção de Terceiros, sobo Título II, que cuida das Partes e dos Procu-radores, artigos 70 a 76.

5. Posicionamento doutrinário

O que se tem entendido, e aqui são reno-mados os autores que assim pensam, é queo Estado somente pode exercer o seu direitode regresso em ação própria (Ação Regres-siva) contra o agente causador do dano apósa finalização de processo judicial, caso nãose resolva na órbita administrativa, após otrânsito em julgado da condenação. E mais,apenas após o efetivo pagamento do valor aque foi condenado, possivelmente, em cré-ditos precatórios.

Dessa maneira, os autores que se vincu-lam a tal postulação afastam in limine a pos-sibilidade do instituto processual da Denun-ciação da lide, previsto no art. 70, inciso III,do Código de Processo Civil, por considera-rem inaplicável à espécie em face de expres-sa vedação constitucional inserta no art. 37,§ 6o, da Carta de 1988.

Entre esses renomados autores, pode-secitar Lúcia Valle Figueiredo (2001, p. 286),que entende que a Constituição Federal es-taria sendo aviltada, caso fosse permitidoque o instituto da denunciação da lide vies-se a integrar para a solução do conflito in-tersubjetivo de interesses manifestado entreo Estado, por sua Administração, e o parti-cular.

De igual opinião é o ilustre processua-lista Vicente Greco Filho, para quem o dis-posto no art. 70, III, do Estatuto ProcessualCivil é inaplicável ao caso concreto do agen-te, nessa qualidade, causador do prejuízoao terceiro, considerando que tal institu-to tão-somente poderia ser aplicado emface da figura do Garante, pois a culpadesse agente (subjetiva) só poder ser veri-ficada posteriormente à solução do con-

flito instaurado entre a Administração eo lesado.

Bandeira de Mello (2000, p. 849), reven-do posicionamento anteriormente esboçado,envereda pela mesma linha de raciocínio, eafirma que trazer o agente causador do dano,pela denunciação da lide, para compor omesmo processo instalado entre o Estado eo Particular redundaria em excessiva e des-necessária perda de tempo, o que causaria,certamente, maior prejuízo à parte que su-portou o dano.

Socorre tal grupo de jurisconsultos osargumentos relacionados com o fato de quetal conflito está albergado pela figura daResponsabilidade Objetiva do Estado pelodano causado, ou seja, nesse tipo de respon-sabilização não se exige a comprovação deculpa da Administração, apenas o nexo decausação e o efetivo prejuízo causado ao ter-ceiro, enquanto que, naquilo que diz respei-to à atuação do agente, a responsabilizaçãodeste somente poderia dar-se em processojudicial que lhe imputasse e comprovasse aculpa.

Impende colacionar, por lealdade inte-lectual, o entendimento oposto, que admo-esta ser possível a utilização do institutoprocessual da denunciação da lide aos ca-sos que envolvem a atuação da Administra-ção Pública que, por seus agentes, ocasio-nam prejuízo a terceiros.

Embora não se possa, até o presente mo-mento, dizer-se obrigatória essa espécie dechamamento ao feito em relação ao agentepúblico, há de se convir que não é totalmen-te despicienda, e até mesmo recomendável edesejável, que se possa fazê-lo, como bemaclara Theodoro Jr. (1996, p. 128), como setranscreve:

“Se o art. 70, no III, do CPC, prevê adenunciação da lide ‘àquele que esti-ver obrigado, pela lei ou pelo contra-to, a indenizar, em ação regressiva, oprejuízo do que perder a demanda’; ese o texto constitucional é claríssimoem afirmar que o Estado tem ‘ação re-gressiva contra o funcionário respon-

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sável’ não há como vedar à Adminis-tração Pública o recurso à litisdenun-ciação”.

Pedro Soares Muñoz, citado por Theo-doro Jr. (1996, p. 128), afirma o pensamentoautorizado de que não deve restar dúvidasobre a possibilidade de denunciação dalide, pois estar-se-ia tratando exclusivamen-te o art. 70, III, do Estatuto Processual Civilde uma norma de direito material, e nãoapenas processual, razão pela qual subsis-tiria a obrigatoriedade do dito compareci-mento forçado ao processo daquele que cau-sa o dano.

Nessa mesma linha de raciocínio, Lopesda Costa (1956) e Gasparini (1992, p. 612)que declinam da real necessidade de impor-se a denunciação do funcionário ao proces-so, em virtude do caráter eminentemente ma-terial do instituto que disciplina o tema, mes-mo em se tratando da possibilidade de açãoregressiva do Estado perante àquele servidor.

6. A jurisprudência

As decisões, no âmbito da Suprema Cor-te, estão-se consolidando, e indicam a dire-ção de que não cabe a obrigatória denuncia-ção da lide ao agente público que der causaao dano quando a responsabilidade civil édirigida contra o Estado2, restando a via fa-cultativa, isto é dizer que, ao fim e ao cabo,apenas não incorre em nulidade a ação in-denizatória que se vale da denunciação dalide para trazer ao litígio o servidor públicoque causou o prejuízo.

No âmbito de competência do SuperiorTribunal de Justiça, podem-se citar decisõesque vislumbram a possibilidade, como setranscreve a seguir:

“Na ação reparatória, pode a entida-de pública promover a denunciaçãoda lide ao seu preposto, sem necessi-dade de atribuir-lhe, desde logo, cul-pa pela ocorrência” 3.

Em outra feita, o Tribunal de Justiça doEstado de São Paulo – TJSP firmou entendi-mento que:

“Em ação de indenização por aciden-te de trânsito, a municipalidade devedenunciar a lide ao motorista, seufuncionário, para os fins de ação re-gressiva”.

Também cabendo invocar o instituto nãosó a Administração Pública do Estado, mastambém ao terceiro lesado, conforme a se-guir descrito em decisão do mesmo TJSP:

“o proprietário do veículo, sendoréu em ação de indenização por aci-dente de trânsito, tem o direito de cha-mar a juízo o seu preposto, apontadocomo causador do dano”.

7. Articulação de opiniões

O que decorre quando se provoca a de-nunciação da lide é que, procedimentalmen-te, há um acúmulo de ações, mais precisa-mente duas. E o que se pretende é o encurta-mento da via decisória.

Pelo princípio da economia processual,as decisões proferidas judicialmente, em queestejam resguardados os elementos essen-ciais da precisão, da clareza e da objetivida-de jurídicas, sem embargo de prolação abre-viada, redundam em uma prestação juris-dicional mais eficaz. Em conseqüência dis-so, evitar o gasto desnecessário com tempoe recursos, em relação à propositura de umasegunda ação judicial com o mesmo funda-mento fático. É de importância extrema res-saltar que a questão controvertida já pode-ria ter tido o seu deslinde no curso do pro-cesso principal de reparação do dano.

Razão outra, bastante e suficiente, paraa articulação de argumentos diante da obri-gatoriedade de inserção da denunciação dalide para a solução da ação regressiva con-tra agente público em face da condenaçãodo Poder Público nas ações de reparação dedanos por responsabilidade patrimonialextracontratual é a aceitação do princípioprocessual da concentração dos atos, postoque parece mais consentâneo com o modeloprocedimental adotado na legislação instru-mental pátria.

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Ainda, em socorro da proposta ora aven-tada, deve-se postular ao Poder Judiciárioque preste, de forma justa, segura e rápida,a tutela dos direitos dos jurisdicionados,posto pelas máximas do Direito quod non estin actis no est in mundo, e ainda, da mihi fac-tum dabo tibi jus. Ou dito de outra maneira, oque não está nos autos, não está no proces-so, e a contrario sensu, os problemas que jáforam levados aos autos, até por autoriza-ção legal, merecem ser objeto de decisãojudicial; e ao magistrado cabe o supremosaber extrair dos fatos que lhe foramdados a conhecer o direito cabível naespécie.

Portanto, e como bem ressalta TheodoroJr. (1996, p. 127):

“o entendimento de que o fundamen-to da responsabilidade do Estado é onexo objeto do dano, enquanto o daresponsabilidade regressiva do fun-cionário é a culpa, data venia, não im-pede o exercício da denunciação dalide”.

Salta à vista, pelo que restou exposto, éque se deve propugnar, por ser medida sa-lutar, pela inserção no ordenamento jurídi-co pátrio da figura da denunciação da lide,com caráter de necessidade, no caso em quecouber, a ação regressiva do Estado em ra-zão de eventual condenação em demandasoriundas da responsabilização patrimoni-al extracontratual do Estado.

Conclusão

A oportunidade de reflexão que defluida esquematização do tema, albergada pe-los conceitos e ferramentas dados pelo Di-reito Administrativo, possibilita, sem som-bra de dúvida, uma visão horizontal e verti-cal do fenômeno relacionado ao Estado eseus administrados. Pode-se imputar à fei-tura de tal esforço de reflexão uma raciona-lização do aprendizado, ou seja, à medidaque se apreende o conteúdo da matéria ob-jeto do Direito Administrativo, esse mesmoconteúdo serve de ferramental teórico para

a intervenção por meio de proposituras ten-dentes a transformar o estado de coisas ins-talado.

Resulta, certamente, em um processo deaquisição do conhecimento específico maisabalizado, em cujos instrumentos teóricospodem-se buscar as resoluções de dificul-dades da gestão da coisa pública, ademaisde tornar possível um aprofundamento nasquestões relacionadas às funções estatais degerir o bem-estar da coletividade.

É necessário, portanto, criar mentes aten-tas à busca do conhecimento abstrato, filo-sófico e indagativo. Ainda, deve-se por demanifesto que os postulados resultantes daformulação epistemológica deverão dar con-ta de provocar evolução significativa nasestruturas da realidade. E haverá que acen-tuar os processos de transformação neces-sários para a melhoria dos relacionamen-tos em sociedade.

Indubitavelmente, refletir a disciplinamostra-se gratificante, pelo nível de apren-dizado e pela real necessidade de idealizaruma intervenção no modus operandi da rea-lidade brasileira. A partir de uma base teó-rica sólida, é possível construir uma solu-ção prática e por demais interessante.

Pontualizando no presente caso, querisso significar que, em última análise, na-quelas ações em que o Estado é demandadopara reparar dano oriundo de atuação lesi-va de seus agentes ao patrimônio do par-ticular, este deve chamar, de pronto, nomesmo processo, o servidor causador dodano.

Sendo que, nesse particular, a criação dapossibilidade jurídica advinda com o pre-sente instituto, na órbita da responsabilida-de extracontratual do Estado por comporta-mentos administrativos, faz-se indeclinável,e objetiva agilizar as causas intentadas con-tra a Fazenda Pública quando esta está obri-gada a indenizar pela objetividade de suaresponsabilidade, ou seja, naquelas açõesque independem da comprovação de culpa.

A conseqüência natural dessa reflexãodeve propugnar e encontrar os meios e ins-

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trumentos que, efetivamente, respondam àintenção de desafogar a Justiça, estabelecen-do um rito, um procedimento muito maiságil e menos burocrático que aquele que atu-almente existe para a solução das denomi-nadas ações regressivas do Estado contra oservidor. E, por via direta, possibilitar aoparticular ressarcir-se com maior brevida-de dos danos que lhe foram impingidos pelaAdministração e seus agentes.

E, por fim, com o modesto intento de co-laborar, e resguardando-se a devida abertu-ra para as críticas que, certamente, pode tercabida, é que se faz a presente proposta dealteração na legislação federal, podendo amesma servir de subsídio à eventual inter-venção legislativa.

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Notas1 Lei no 4.619, de 28 de abril de 1965.2 RE no 95.091, Relator Ministro Cordeiro Guerra

(DIÁRIO DA JUSTIÇA, 1983).3 Recurso Especial no 526299/PR; Recurso Es-

pecial 2003/0047872-5, Relator Ministro FRANCIS-CO FALCÃO (1116), Órgão Julgador: T1 – PRI-MEIRA TURMA, data do julgamento: 18/11/2004,publicado no DIÁRIO DA JUSTIÇA DA UNIÃO.Brasília: Imprensa Nacional, 17 dez. 2004. 423 p.RPsp 44503/SP; RECURSO ESPECIAL 1994/0005398-3, Relator Ministro HÉLIO MOSIMANN(1093), Órgão Julgador T2 – SEGUNDA TURMA,data do julgamento 05/02/1998, Publicado noDIÁRIO DA JUSTIÇA DA UNIÃO. Brasília: Im-prensa Nacional, 16 mar. 1998. 76 p., REVISTADO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Brasí-lia: STJ, n. 106, v. 10, 1998. 167 p.

Anexo

PROJETO DE LEI

Acrescenta o parágrafo único ao art.70, da Lei no 5.869, de 11 de janeirode 1973, que institui o Código deProcesso Civil.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1o O Art. 70 da Lei no 5.869, de 11 dejaneiro de 1973, passa a vigorar acrescidodo seguinte parágrafo único:

 “Art. 70.  A denunciação da lide éobrigatória:

I – ...........................................................;II – .........................................................;III – .........................................................Parágrafo único. A obrigação de

que trata o inciso III, deste artigo es-tende-se ao Servidor Público, quandodas ações intentadas contra a União,os Estados, o Distrito Federal e os Ter-ritórios e os municípios, em razão daresponsabilidade extracontratual doEstado por comportamentos adminis-trativos”.

Art. 2o Esta lei entra em vigor na data dasua publicação.

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Flaviane de Magalhães Barros PellegriniMarius Fernando Cunha de CarvalhoNatália Chernicharo Guimarães

1. IntroduçãoA procedimentalização do instituto do

consenso vem sendo objeto de estudo dospresentes autores a partir de um projeto depesquisa financiado pelo FIP (PUC-MINAS)e CNPq, denominado “Justiça consensual edevido processo legal”. Este artigo é frutodas primeiras conclusões implementadaspelo grupo de pesquisa.

A metodologia utilizada possui comomarco teórico o realismo crítico ou falibilis-mo popperiano (Cf. POPPER, 1977). Logo,sistematizaremos um problema e elaborare-mos uma teoria em grau de tentativa paraconseguirmos eliminar o problema. Duran-te esse percurso, analisaremos algumas teo-rias concorrentes que propõem solucionaro mesmo problema. A argumentação críticaé o instrumento para demonstrarmos a in-suficiência teórica de cada uma delas. Porfim, pretendemos apresentar à comunidadejurídica uma teoria mais resistente às críti-cas elaboradas.

No concernente à base teórica para for-mulação do problema e da teoria em graude tentativa, utilizamos como marco teórico

O consenso compreendido a partir doparadigma do Estado Democrático deDireitoUma crítica ao conceito de Justiça Consensual

Flaviane de Magalhães Barros Pellegrini éDoutora e mestre em direito processual – PUC–MINAS. Professora adjunta da PUC–MINAS, nocurso de graduação e pós-graduação. Professo-ra da Universidade de Itaúna, no curso de gra-duação e pós-graduação. Coordenadora técni-ca de direito processual penal da Escola Supe-rior de Advocacia da OAB–MG.

Marius Fernando Cunha de Carvalho é Gra-duando em direito pela Faculdade Mineira deDireito PUC–MINAS e bolsista de iniciação ci-entífica do programa PIBIC/CNPq Brasil.

Natália Chernicharo Guimarães é Gradu-anda em direito pela Faculdade Mineira deDireito PUC–MINAS e bolsista de iniciação ci-entífica do programa FIP/PUC–MINAS.

Sumário1. Introdução. 2. Breve exposição sobre as

teorias. 3. O consenso a partir do modelo demediação e conciliação em matéria criminal. 4.O problema da compreensão do consenso pelaEscola Instrumentalista. 5. Uma proposição arespeito do consenso. 6. Conclusão.

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a teoria do processo como espécie de proce-dimento realizado em contraditório (Cf.FAZZALARI, 1996), a teoria do discurso ouprocedimentalista (Cf. HABERMAS, 1997)e a teoria do modelo constitucional do pro-cesso (Cf. ANDOLINA; VINGERA, 1997). Aescolha dessas teorias para o desenvolvi-mento da pesquisa está comprometida coma adequabilidade que cada uma possui comos enunciados da Teoria do Estado De-mocrático, sistema normativo constituci-onalmente assegurado para a sociedadebrasileira.

Ressaltamos que esse tema foi objeto deestudos anteriores (Cf. BARROS, 2000)1 ,mas que ora pretende ser revisado, haja vis-ta que as conclusões anteriores não supor-taram a argumentação crítica posteriormen-te implementada, surgindo, assim, a neces-sidade de revisão da teoria, principalmentea partir da análise da teoria procedimenta-lista de Habermas.

2. Breve exposição sobre as teorias

A Teoria do Processo como Espécie deProcedimento realizado em Contraditórioimplementou uma mudança no critério dedistinção entre processo e procedimento. Aocontrário da Escola Instrumentalista quepropõe a distinção por meio do critério tele-ológico, ressaltando o instituto do processoao impregná-lo de fins e destituindo o pro-cedimento desses, levando a uma diluiçãodo conceito do procedimento no processo(Cf. GONÇALVES, 2001, p. 66), Fazzalari(1996, p. 71-93) propõe o critério lógico deinclusão. Logo, o processo está contido noprocedimento.

O processo, agora, não é mais concebidocomo um instrumento da Jurisdição, mas orequisito do exercício legítimo da atividadejurisdicional (Cf. LEAL, 2004, p. 249). Porser uma estrutura preparatória do provimen-to final, que assegura a participação dosenvolvidos na elaboração desse ato, pormeio do contraditório, que enseja simétri-ca paridade, trata-se de um instituto ne-

cessário para o implemento do Estado De-mocrático.

A Teoria do Discurso, por outro lado, fir-ma-se no conceito que pressupõe uma coe-são interna entre a autonomia pública e aprivada. A autonomia dos cidadãos deveexistir tanto na esfera de organização da so-ciedade – autonomia pública – quanto noexercício dos seus direitos fundamentais –autonomia privada. A importância do Di-reito não se faz notar, portanto, somente naquestão da legalidade da norma, mas tam-bém na questão da própria legitimidade.

Habermas (2002, p. 293-294), dessa for-ma, afirma que essa autonomia só pode serexercida se o sujeito de direito, destinatárioda norma, reconhecer-se como seu autor, ouseja, se a norma for legítima.

Urge destacarmos a Teoria do ModeloConstitucional do Processo, que se faz umadas mais importantes no estudo da teoriza-ção do Estado Democrático, uma vez queeleva o processo à categoria de direito-garantia, assegurado na Constituição. Sãotrês as suas características gerais: a) a ex-pansividade, consistente na idoneidade decondicionamento dos procedimentos cons-titucionais e infraconstitucionais de acordocom a fisionomia mínima assegurada pelomodelo constitucional; b) variabilidade, queé a possibilidade de assunção de formasvariadas, respeitando-se o mínimo consti-tucional; c) perfectibilidade, consistente naidoneidade de aperfeiçoamento do modelode acordo com as necessidades (Cf.ANDOLINA; VIGNERA, 1997, p. 7-11). As-sim, todo processo é constitucional, uma vezque todos são oriundos do modelo mínimoassegurado na Constituição.

3. O Consenso a partir do modelode mediação e conciliação em

matéria criminal

O tema consenso ganha contornos a par-tir da disposição constitucional que, no art.98 da CR 88, autoriza a organização dosJuizados Especiais Cíveis e Criminais, po-

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dendo nesse último objetivar uma novasolução distinta da prisão, por meio datransação penal e da composição civil dodano.

A introdução de um modelo de media-ção ou conciliação em matéria criminal temcomo objetivo retomar o diálogo entre o au-tor do fato e a vítima. A Vitimologia, a partirdo paradigma do Estado Democrático deDireito2 , ressalta o valor terapêutico (Cf.LARRAURI, 1993, p. 95) da mediação e daconciliação, já que a solução do conflito pe-nal passa pela retomada do diálogo entreos protagonistas do fato criminoso, aproxi-mando a solução penal da questão relativaà reparação do dano.

O que distingue a mediação da concilia-ção é o papel do mediador e do conciliador,já que este é agente ativo na formulação doacordo e aquele é agente catalisador da so-lução efetivada pelas partes, ou seja, o con-ciliador intervém no diálogo entre as partespara auxiliar na solução do conflito, ao pas-so que o mediador somente estimula o acor-do, sem atuar ativamente na construção dasolução (Cf. TAVARES, 2002, p. 47-51).

No paradigma do Estado Democráticode Direito, a participação dos atingidos édecorrência da compreensão dos sujeitos dedireitos como autores e destinatários danorma jurídica a partir da eqüiprimordiali-dade (Cf. HABERMAS, 2002, p. 291); assim,o movimento vitimológico3, no referido pa-radigma, ressalta a importância do consen-so para a solução do conflito penal e da re-paração do dano.

No paradigma do Estado Democráticode Direito, a análise do movimento vitimo-lógico exige a participação da vítima de umdelito, que não pode ser excluída da solu-ção do conflito penal pela atuação estatal;assim, são sujeitos de direitos a vítima e oautor do fato. Desse modo, o processo penalé construído participadamente não só peloacusado e pelo Ministério Público, mas tam-bém pela vítima. Revela-se, nesse paradig-ma, a possibilidade da construção de umasolução consensuada entre o protagonista

do delito e a vítima ou o Ministério Público,conforme o caso, assim como uma soluçãoadequada e possível.

4. O problema da compreensão doconsenso pela Escola Instrumentalista

O entendimento da Escola Instrumenta-lista baseia-se na noção da desformaliza-ção a partir de duas acepções: desformali-zação do processo por meio da simplifica-ção da técnica processual e desformaliza-ção das controvérsias. Como relata Ada Pe-llegrini Grinover (1990, p. 179), baseada emestudos de Denti, a desformalização dascontrovérsias busca, “de acordo com suanatureza, equivalentes jurisdicionais, comovias alternativas ao processo, capazes deevitá-lo, para solucioná-las mediante instru-mentos institucionalizados de mediação”.Portanto, a desformalização se enquadraentre as possíveis soluções para a questãorelativa ao acesso à justiça, compreendidopela autora como acesso a uma ordem jurí-dica justa.

Assim, para a Escola Instrumentalista adesformalização das controvérsias possuiimportante papel como forma de pacifica-ção social, como ressalta Ada PellegriniGrinover (1990, p. 221):

“Revela, assim, o fundamento socialda conciliação, consistente na sua fun-ção de pacificação social. Esta, via deregra, não é alcançada pela sentença,que se limita a ditar autoritativamen-te a regra para o caso concreto; (...)Por isto mesmo, foi salientado que aJustiça tradicional se volta para o pas-sado enquanto a Justiça informal sedirige ao futuro. A primeira julga esentencia, a segunda compõe, conci-lia, previne situações de tensões e rup-turas, exatamente onde a coexistênciaé um relevante elemento valorativo.”

Desta feita, antes do processo penal, afase da composição civil do dano e da tran-sação penal seriam etapas pré-processuais.Grinover (1990, p. 206) ressalta que é possí-

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vel distinguir a conciliação judicial, reali-zada pelo juiz no processo, como a previstano art. 331 do CPC, da conciliação pré-processual, realizada como instrumentoalternativo de solução de litígios. (Cf.GRINOVER, 1990, p. 206).

Dinamarco (1995, p. 114) também sali-entou a distinção, observando que a conci-liação processual é um “instrumento mo-derno destinado a promover o diálogo entreo juiz e parte, vis a vis, na tentativa de elimi-nação autocompositiva dos conflitos”. As-sim, o juiz, além do papel de julgador, exer-cerá o papel de conciliador.

Importante ressaltarmos que o tema re-lativo à composição ou conciliação no pro-cesso e à conciliação fora do processo, quese dá por meio da transação, renúncia ousubmissão, é discutido pelos intrumentalis-tas. Sugere Dinamarco (1995, p. 125): “a tran-sação em si é um negócio jurídico (contratosegundo muitos), é seguramente ato de di-reito material. Feita em juízo ou não, suanatureza é sempre a mesma”.

Humberto Theodoro Junior (1998, p. 41),por sua vez, estabelece o seguinte posicio-namento: a autocomposição é um substitu-to da Jurisdição que pode ser obtida pelatransação ou conciliação. O que distingueas duas classes é o momento de sua realiza-ção. Ressalta o autor que “a conciliação nadamais é do que uma transação obtida em juí-zo, pela intervenção do juiz junto às par-tes”.

Parece-nos relevante a análise crítica daposição da Escola Instrumentalista a partir,primeiramente, de sua base conceitual. Hajavista a compreensão do processo como ins-trumento de pacificação social, coloca-se aconciliação como um instrumento alterna-tivo de pacificação social, nas palavras deGrinover, até mais eficiente, pois é fundadano consenso e não no conflito. Contudo,demonstra-se inadequada a compreensãoque o pretendido no consenso seja a buscada pacificação social. Da mesma forma queo processo não pode ser compreendido porescopos metajurídicos, notadamente pelo

escopo social, a conciliação também nãopode ser estabelecida a partir dos contor-nos relativos à função do juiz de julgar le-vando em consideração não só o direito dis-cutido e pretendido pelas partes, mas a de-cisão que se enquadra dentro da melhor so-lução a partir da realidade socioeconômica.Da mesma forma que o processo não possuicaráter teleológico, não pode a conciliaçãoser vista dessa maneira.

Principalmente quando se confunde aconciliação com o direito pretendido e dis-cutido pelas partes. Deve-se ressaltar a ina-dequação da compreensão de que a transa-ção é um direito material. A conciliação oua transação, como preferirem, são estrutu-ras procedimentais que visam à obtençãodo consenso, elas não se confundem com aquestão jurídica controvertida que será so-lucionada pelo consenso.

Essa compreensão instrumentalistaaproxima-se da teoria de Chiovenda (1965,p. 26-27) a respeito do direito de ação. Se-gundo o autor italiano, o direito de ação e asatisfação da obrigação voluntariamentepelo devedor, mediante a prestação, são di-reitos subjetivos concorrentes, pois ambosremetem à vontade concreta da lei que lhegarante um bem determinado. Em outras pa-lavras, a vontade concreta da lei se exercepor meio do cumprimento da obrigação pelodevedor ou no processo, por meio da Juris-dição.

Desta feita, ou o devedor cumpre espon-taneamente a prestação, e esta se daria pelatransação, ou então surge um direito de ação,autônomo, de se exigir um determinado di-reito no processo. Assim, o processo somen-te existiria se houvesse o conflito e se essenão fosse realizado consensualmente.

Mister se faz, neste ponto, ressaltar queexiste distinção entre o direito que se discu-te no processo, direito material para a Esco-la Instrumentalista, e o direito ao processo.A compreensão instrumentalista parte danoção de que o juiz no processo atua paradizer o direito no caso concreto, realiza avontade concreta da lei, e, quando atua como

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conciliador, foge de sua atuação jurisdicio-nal, porque conciliação e a transação sãorealizações do direito material.

Esse pensamento não pode subsistir noparadigma do Estado Democrático de Di-reito, pois o processo é uma garantia, que seexerce independentemente da procedênciaou não do direito alegado. Como ressaltaAroldo Plínio Gonçalves (1993, p. 127), ocontraditório – logo, concluímos, o proces-so por conseqüência – não pode ser com-preendido como o “‘dizer’ ou o ‘contradi-zer’ sobre matéria controvertida, não é dis-cussão que se trava no processo sobre a re-lação de direito material, não é a polêmicaque se desenvolve em torno dos interessesdivergentes sobre o conteúdo do ato final”.Assim, não é o consenso ou o dissenso queirão distinguir a atuação jurisdicional, e sima existência do contraditório, asseguradoconstitucionalmente pela característica daexpansividade do modelo constitucionalprocessual.

Por essa razão, quando a escola instru-mentalista distingue entre a justiça confliti-va e a justiça consensual (Cf. FERNANDES,2003, p. 203), a primeira realizada a partirdo processo e a segunda pelo consenso, elautiliza a expressão para afirmar não a res-peito do processo em si, mas a respeito doconteúdo do provimento final. Aclara-se,portanto, a compreensão da referida Escolaa respeito da composição civil do dano e datransação penal, compreendidas como in-tegrantes da justiça consensual penal quevisa um acordo a fim de evitar o processopenal, de natureza conflitiva.

5. Uma proposição arespeito do consenso

Na compreensão do Estado Democráti-co de Direito, o consenso surge como possi-bilidade de formulação de questões jurídi-cas, que passa pela compreensão do papelde seus participantes. Ou seja, a atuação doconciliador e do mediador é apenas paraestimular a formulação de uma decisão con-

sensuada, mas, para que esta exista, é im-prescindível a participação daqueles queserão atingidos pelo acordo.

Observando a análise feita por Habermas(1997, p. 208) a respeito do consenso, res-salta-se:

“O caminho do princípio do discur-so, que deve garantir o consenso não-coercitivo, é indireto, desdobrando-seatravés de procedimentos que regulamas negociações sob o ponto de vistada imparcialidade. Desta maneira, opoder de negociação não-neutralizá-vel deve ser disciplinado, ao menosatravés da distribuição igual de parti-dos. Se a negociação de compromis-sos decorre conforme procedimentosque garantem a todos os interessesiguais chances de participação nasnegociações e na influenciação recí-proca, pode-se alimentar a suposiçãoplausível de que os pactos a que sechegou são conformes à equidade.”

Assim, a formação do consenso exige aparticipação recíproca daqueles que serãoatingidos pelo acordo, como já ressaltado aci-ma, mas exige também um espaço procedi-mentalizado, que pode ser estruturado comoconciliação ou mediação, conforme o caso.

Esse espaço procedimentalizado, a par-tir da teoria fazzalariana, poderá ser com-preendido como um processo ou um proce-dimento?

A partir da crítica feita à teoria instru-mentalista, que confunde o processo com oconflito, que exige o contraditório como açãoe reação apenas quando não for possível oacordo, e da reflexão do consenso a partirda noção da participação dos sujeitos dedireito como autores e destinatários da nor-ma jurídica, podemos formular a proposi-ção que a conciliação e a mediação somentepodem ser compreendidas como processo;este compreendido no conceito de Fazzalari,ou seja, um conjunto de atos e posições subje-tivas dirigidas a um provimento final reali-zado em contraditório pelos afetados pelo atofinal (Cf. FAZZALARI, 1996, p. 73-76).

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Isto é, na mediação e na conciliação, osformuladores do acordo serão as partes queserão também afetadas por ele, logo se exigea simétrica paridade, ou seja, a construçãoparticipada do provimento, que somentepoderá ser realizado se as partes possuíremno espaço procedimentalizado da negocia-ção posições subjetivas simétricas, ou seja,direitos, deveres, faculdades e ônus simétri-cos. Nesse processo, não se admite a coer-ção ou mesmo a superposição de papéisentre negociador e conciliador. Se hoje, noprocesso pela compreensão procedimenta-lista, não se admite mais o juiz como super-parte, nos processos de mediação ou conci-liação, os mediadores e conciliadores nãopodem também ocupar esse papel, eles sãoagentes catalisadores do acordo; os verda-deiros formuladores do acordo são as par-tes que atuam em contraditório.

Como ressalta Jean-François Six (2001,p. 165), na mediação não se julga, não é esseo seu papel. Assim:

“O mediador não tem nenhum poder,não tem espada, não tem divisões, nãopode exercer nenhuma pressão, sejaela psicológica ou judicial. Ele está lá,desarmado; esta lá, não é inerte,pode sugerir, propor, incitar. Seuefeito ‘catálise’ pode ser precioso,mas o papel do mediador não subs-titui, em nenhum momento, o dojuiz”.

6. Conclusão

A Constituição da República Brasileirade 1988 assegura o processo como direito-garantia dos cidadãos. Trata-se de um mo-delo mínimo de regência das decisões, ex-pansivo a todas as esferas estatais, o qualpode sofrer modificações para ser aperfei-çoado. Nesse diapasão, garante-se a parti-cipação dos destinatários da norma comoautores da mesma, por meio da coesão in-terna entre autonomia pública e privada, aeqüiprimordialidade, no espaço de argu-mentação procedimentalizado; espaço esse

que deve ser entendido como procedimentorealizado em contraditório, no qual as par-tes encontram-se em simétrica paridade eatuam como protagonistas na elaboração doprovimento final, o qual irá atingir as suasesferas jurídicas. Logo, deve-se extirpar oconceito de relação jurídica como grau desujeição do réu à vontade do autor, e destesaos ditames do juiz.

Portanto, a mediação é um processo queexige a atuação das partes e do mediador, ese distingue do processo jurisdicional, nãoem razão do conflito como pretendem os ins-trumentalistas, mas em razão da atuação dojuiz e das partes no processo, pois, no pri-meiro, o provimento final é construído pe-las partes, no segundo, pelo juiz a partir daatuação das partes. Há, é claro, uma seme-lhança, a existência do contraditório comosimétrica paridade, como elemento defini-dor da atuação das partes.

Notas

1 Ressaltou-se, então, que a fase consensual dosJuizados Especiais Criminais tratava-se de um pro-cedimento conforme à distinção de Fazzalari entreprocedimento e processo (Cf. BARROS, 2000).

2 A respeito da reconstrução do movimento vi-timológico a partir do paradigma do Estado De-mocrático de Direito, ver Pellegrini (2003).

3 O movimento vitimológico tem como objetivoestudar a vítima do processo e reconstruir seu pa-pel como sujeito de direitos.

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Hobbes era um homem amedrontado.Não é por acaso que intitulou sua obra como nome do monstro bíblico – Leviatã. Belametáfora para designar o Estado tentacu-lar. Para Hobbes, a transição do estado denatureza para o estado de sociedade deu-semediante a delegação da liberdade de todose de cada um para o soberano, garante des-sa liberdade. Sua constatação tristementerealista: homo homini lupus, numa tentativade explicar racionalmente o absolutismo.Assim, para ele, surgiria a sociedade civil.

O risco não é um fato recente, obviamen-te. Ampliou sua natureza e adquiriu novasfacetas. Mudou, ou melhor, adaptou-se, emuma sociedade mais complexa. Os romanos,criadores da ciência jurídica, consideravamo risco sob o conceito de casus fortuitus, igual-mente denominado vis maior (força maior).Evoquemos os formuladores romanos, queassim definiam o dano e sua causa, generi-camente:

“Casus fortuitus (também denominadovis maior, força maior) é o evento da-noso devido a uma causa natural(exemplo: morte de um escravo em ra-zão de doença ou senectude) ou a in-tervenção de terceiros (exemplo: rou-bo por um único ladrão ou por umgrupo de ladrões).

O risco de perda (periculum) de umacoisa ou de uma prestação resultantede caso fortuito deve em princípio sersuportado pelo proprietário da coisa

A sociedade de risco e o Direito Penal

Pedro Braga

Pedro Braga é servidor do Senado Federal.

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ou o credor da prestação. No últimocaso, o devedor da prestação tornadaimpossível de executar é liberado daobrigação, à condição da perda nãoser devida a nenhuma culpa de suaparte, o que implica, em princípio, queo evento danoso tenha sido imprevis-to e inevitável.” (DROIT ROMAN,[2001?]).

Às vezes as fontes romanas faziam dis-tinção entre os dois tipos:

“Casus fortuitus: evento externo ao de-vedor, porém entrando em sua esferade controle e, pois, em certa medida,previsível e evitável (exemplo: roubopor um único ladrão).Vis maior: evento escapando ao con-trole do devedor e que, mesmo se elehavia sido previsto, não poderia tersido evitado (exemplos: terremoto,naufrágio, inundação, incêndio cau-sado por raio, etc.)” (DROIT ROMAN,[2001?]).

Donde se conclui que o risco de perdas,o evento danoso (periculum), é imprevisto einevitável. No caso fortuito, tal evento é, emcerta medida, previsível e evitável. Finalmen-te, na força maior, mesmo previsto , não podeser evitado.

Ou seja, tudo que acontecesse indepen-dentemente da vontade humana os roma-nos denominavam casus fortuitus ou entãofortuna (acaso).

Modernamente, risco foi objeto de trata-mento sob o prisma sociológico. Há quemdiga que risco não é necessariamente umconceito da esfera jurídica. Mas ele diz res-peito muito de perto ao mundo jurídico,como veremos adiante. E entrou, por moti-vos óbvios, na ordem do dia. Quem o trouxeà baila foi o sociólogo alemão Ulrich Beckem sua obra Risikofesellschaft. Auf dem Wegin eine andere Moderne, editada em Frankfurtem 19861.

Paulo Silva Fernandes (2001, p. 33), emseu livro Globalização, “Sociedade de Risco” eo Futuro do Direito Penal, referindo-se ao pen-samento de Niklas Luhmann, que identifi-

ca três fases na história do risco, este louva-do em Beck, fases que foram esquematiza-das pelo jurista português Augusto SilvaDias, na obra Protecção Jurídico-Penal de Inte-resses dos Consumidores, enumera: “a primei-ra corresponde ao advento da idade moder-na, em que, todavia, os riscos são ainda ‘in-cipientes e controláveis’; a segunda, que seestende ‘de finais do séc. XIX até à primeirametade do séc. XX’, surge da vontade de‘conter e domesticar estes riscos mensurá-veis e controláveis’, com o fim de reduzirtanto a sua ocorrência como a sua gravida-de, e que corresponde ao Welfare State; aterceira fase, por fim, corresponde ao nosso tem-po, coincidente com o fracasso do Welfare Statee o aparecimento de novos, graves e incontro-láveis riscos, fruto do desmedido desenvolvi-mento da sociedade industrial tardia.”

A essa altura, poder-se-ia avançar umadefinição de risco para efeito de trabalho:poder-se-ia defini-lo como o perigo mais oumenos previsível. Ou seja, perigo, um concei-to sempre associado ao risco . Paulo SilvaFernandes define o risco afirmando que “otópico central do discurso do risco é a exis-tência de algo que não existe ainda, algo quenão aconteceu, mas pode vir a acontecer se con-tinuarmos a seguir pelo mesmo trilho”. Ele,porém, distingue riscos de perigos, atribu-indo a estes um caráter natural, como ascatástrofes, e àqueles o fato de serem “fabri-cados”, decorrentes do ato humano. Dondese conclui que há o risco e o perigo iminen-tes e o risco e o perigo potenciais. A catás-trofe do Tsunami, a rigor, era previsível, umavez detectados seus indícios por sismógra-fos instalados em diferentes partes do mun-do, devendo, portanto, a população ser eva-cuada a tempo. Falta de comunicação ade-quada entre os Estados? Incúria pura e sim-ples das autoridades dos países afetados?Despreparo cultural para lidar com catás-trofes iminentes e/ou potenciais? Na histó-ria da humanidade, risco houve, há e sem-pre haverá – e o pior, doravante, cada vezmais amplo em extensão e em efeitos dano-sos. Seria ingênua utopia acreditar-se ou

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tentar-se abolir a existência de risco, trans-formá-lo em risco zero. Trata-se, no entanto,de trabalharmos com a hipótese do riscoaceitável. A gestão do risco consiste em de-terminar-se o limiar que não pode ser ultra-passado. Para isso, impõe-se uma ação pre-ventiva baseada no acordo entre pessoas,participação e informação, e isso não nascede geração espontânea, devendo ser objetode política pública em nível mundial. O ris-co advindo de fenômenos da natureza ouproduzido pela sociedade deve ser geridopelo poder público, pelos que detêm o po-der de decisão política, pelo fato de que ointeresse subjetivo dos cidadãos confunde-se com os interesses gerais.

Em meados do século XVII na Europa, jána sociedade moderna, a explicação do mal-estar no mundo (tema depois tratado porFreud) centrava-se em argumentos religio-sos e mágicos. No século XVIII, surgem assoluções científicas no bojo da produçãoindustrial, emergindo, do ponto de vistapolítico, o sistema liberal, em que o risco tec-nológico é distribuído de maneira desigualentre a população.

O risco entra na esfera do jurídico peloviés da responsabilidade civil e penal, apósos contratos de seguro, inicialmente maríti-mos, que são uma forma mais antiga de pre-caver-se contra os danos resultantes de ris-cos potenciais. Os juristas debruçam-se so-bre a explicação científica das causas dodano, do nexo de causalidade. Intervémuma transformação na cultura do risco, li-gada à questão do destino coletivo.

Nos países onde existe a democracia as-segurada pelo Estado de Direito, surge umaforma particular de organização política: asdecisões são precedidas por diferentes opi-niões, inclusive com a possibilidade de con-testar-se as decisões tomadas pelo PoderPúblico. O princípio da transparência ad-quire, em muitos países, dignidade consti-tucional. Idem o princípio da vigilância. Ex-periências de iniciativa da própria cidada-nia surgem aqui e ali. Na Dinamarca é cria-do o sistema de vigilância conhecido como

“Conferência dos Cidadãos”, que compre-ende um pannel de especialistas. Em 1998,inaugura-se na França a “Primeira Confe-rência de Cidadãos”. É a cidadania assu-mindo supletivamente a prevenção dosriscos.

Embora tenha havido sociedade semEstado, é obvio que o Estado distingue-seda sociedade civil. A ambigüidade na acep-ção entre sociedade civil oposta ao estadode natureza perdurou desde a Antiguidadeaté o século XII, como se sabe. Hegel, no sé-culo XIX, fazia a distinção, separando, noseio da sociedade civil, a esfera civil da esfe-ra política.

Com a crise do Estado-providência(Welfare State), o cidadão emancipa-se datutela estatal, para o bem ou para o mal. Asociedade civil não é um ente homogêneo:existe uma sociedade civil organizada(ONGs, as entidades do terceiro setor, tantoprivadas quanto estatais) e outra desorga-nizada. Em todo caso, a sociedade civil nãodecide, apenas influi. A esse propósito nemo orçamento participativo adquiriu droitde cité entre nós.

É razoável pensar-se que a prevenção decatástrofe incumbe tanto à sociedade civilquanto ao Estado, principalmente a este, querecebeu delegação para tal e conta com osmeios e instrumentos necessários. O que seconstata é que é quase inexistente, máximeno Brasil, a mobilização da sociedade civilna prevenção de riscos. Basta ver os resulta-dos com o aumento da pluviosidade nosgrandes centros urbanos.

O risco, porém, não se resume tão-somen-te ao aspecto do meio ambiente. A violência,o tráfico de pessoas, os delitos de naturezaeconômica e os eletrônicos praticados viainternet compõem o quadro da sociedade pós-industrial em que vivemos. E todos essesaspectos envolvem matéria que tudo tem aver com o direito. Surgiu até o direito PenalEconômico, de que trataremos mais adiante.

As responsabilidades não são apenasindividuais, há também responsabilidadede pessoas jurídicas, de entes coletivos. A

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abordagem dessa questão, embora muitospensem o contrário, não é recente.

A noção de sujeito de direito ou pessoasadministrativas, criadas pelos romanos,ganha vigor com os glosadores e canonis-tas. A universitas compreende um conjuntode direitos individualizados sob a égide deuma instituição. Já na Idade Média, auniversitas podia contrair obrigações, adqui-rir bens e agir em juízo, sendo-lhe reconhe-cida a responsabilidade penal.

A discussão sobre a responsabilidadepenal das pessoas jurídicas voltou à pautaentre doutrinadores brasileiros. AntônioJosé da Costa e Silva (2004, p. 155-157), emsua obra Código Penal dos Estados Unidos doBrasil Comentado, de 1930, analisando o pa-rágrafo único do art. 25, faz uma síntese his-tórica da possibilidade da responsabilida-de penal das pessoas jurídicas. Em que peseser longo, vale a pena a transcrição:

“A questão de saber se as pessoasmorais ou jurídicas podem praticarações criminosas e por elas respon-der tem atravessado diversas fases.Após longo período de quietude, queparecia ser definitiva, voltou de novoa ser objeto de porfiadas discussões.Ainda agora figura ela no programado segundo congresso de direito pe-nal, a realizar-se no mês de outubro,em Bucareste (relatores: os professo-res Pella e Cuello Calón).O caráter puramente individualísticoda imputabilidade no direito romanonão permitia que se estendesse às pes-soas coletivas a responsabilidade pe-nal. Nada obstava, entretanto, a queàs mesmas se aplicassem as medidasde natureza preventiva, nomeada-mente as multas. Isso se deu, mas jános tempos da decadência. Só em sen-tido impróprio e por uma analogiamuito fraca se poderiam considerarcomo penas as providências de ordempolítica ou legislativa que se tomavamcom relação a uma ‘civitas’ por certosatos praticados contra o Estado.”

E continua o eminente mestre:“O direito canônico admitiu a respon-sabilidade penal dos entes coletivos(capítulos, conventos, congregações,cidades, municípios). Sob o influxo dodireito germânico, a prática medievalreconheceu que tais entes eram capa-zes de perpetrar crimes e podiam porcausa deles sofrer punição. Essa ca-pacidade foi combatida por Sinibaldodei Fiechi (depois Inocêncio IV), que,afirmado ser a universitas uma pes-soa meramente ideal ou fictícia (nomenjuris), concluiu que ela não podia pra-ticar ato algum, principalmente ilíci-to: – ‘impossibile est quod universitasdelinquat’. Semelhante doutrina, lógi-ca e sedutora, não alcançou, entretan-to, senão escassas e tímidas adesões.A quase unanimidade dos canonis-tas continuou a admitir a referida ca-pacidade.”

Prossegue Antônio José da Costa e Silva(2004):

“Foram, porém, os pós-glosadores quederam à idéia da responsabilidadepenal das universitates e do delito cor-porativo seu maior e mais brilhantedesenvolvimento. Os preceitos de Bar-tolo atravessaram vários séculos comoa derradeira palavra da ciência jurí-dica no assunto. No direito estatutá-rio italiano e na jurisprudência fran-cesa estiveram em pleno vigor os prin-cípios da escola bartolina. Só em finsdo século XVIII e começo do seguintese operou a reação que trouxe comoresultado as vitórias das idéias con-trárias até hoje dominantes. Dentre osescritores que mais contribuíram paraessa transformação merecem especialmenção o romanista Savigny e o cri-minalista Feuerbach. O código báva-ro (1813), obra deste último, de modoexpresso estabeleceu o preceito da nãopunibilidade das pessoas jurídicas(art. 49).”

Continua o nosso jurista:

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“Modernamente, entre outros moti-vos, pelo dos novos estudos a respei-to da natureza dessas pessoas, reacen-deram-se as antigas disputas. Os es-critores que têm tratado do assunto sedividem em dois grupos.Os partidários da doutrina comum sebaseiam em que a pessoa coletiva nãotem vontade própria e, portanto, nãopode agir. Que só o homem é capaz dequerer e de executar a sua vontade.Que, por isso, quando os indivíduosque compõem uma universitas, no in-teresse desta, resolvem e põem em prá-tica uma ação criminosa, só eles po-dem ser chamados a responder peran-te a justiça punitiva. Que as medidasempregadas às vezes contra pessoasjurídicas não são verdadeiramentepenas, no sentido do direito criminal,mas simples providências de ordemadministrativa ou política. Que a penaimposta aos entes coletivos (corpora-ções) vai refletir-se em seus sócios,culpados ou inocentes, indiferente-mente. Que esta justiça sumária repug-na até ao senso comum. Que poucasespécies de penas poderiam ser apli-cadas a tais entidades. Estes são osprincipais argumentos invocados.”

E ajunta Antônio José da Costa e Silva(2004), elencando as razões dos que são fa-voráveis:

“Os escritores que sustentam a capa-cidade criminal das pessoas coletivase a respectiva punibilidade alegamque essa capacidade não é diferenteda que se reconhece às mesmas pes-soas em outros domínios do direitopúblico e privado. Que elas possuembens jurídicos próprios, nos quaispode perfeitamente incidir pena. Queos atos praticados por uma coletivi-dade têm um alcance especial. Queeles podem ser tentados ou executa-dos em uma escala e com uma forçaque não guardam proporção com onúmero dos respectivos membros. Que

é incompatível com o sentimento dajustiça e com os princípios de uma sãpolítica criminal deixar impune o ver-dadeiro culpado – a universitas – e lan-çar exclusivamente a responsabilida-de sobre quem é o órgão da vontadealheia. Que a história demonstra desobra a possibilidade do delito corpo-rativo e da respectiva punição.” [Aquio nosso autor refere-se a Liszt-Schmitd, na obra Lehrbuch, e AchillesMestre, Les personnes morales et le pro-blème de leur responsabilité pénale].

Paulo Silva Fernandes (2001, p. 104) re-ferindo-se ao princípio societas delinquerepotest, preconiza que este deve ser “entendi-do como responsabilidade (penal) da pró-pria empresa”. E arrola as razões em que sebaseiam os defensores da imputação penalde entes coletivos, naqueles países em queisso ainda não ocorre:

1. “Em primeiro lugar, as dificulda-des penais decorrentes da persecuçãoda justiça penal, em termos satisfató-rios, em relação às pessoas físicas atu-antes no seio da sociedade, resultantede princípios como o in dúbio pro reo,da causalidade, da culpa, entre outros,dada a, v.g., diluição das responsabi-lidades em entrelaçados hierárquicos,a dificultar geralmente a prova neces-sária, em sede processual penal, paraque se atinja uma condenação.2. Em segundo lugar, o reduzido efei-to preventivo das sanções penais me-ramente pessoais que, pode dizer-se,dilui-se também ele no emaranhadodas organizações e hierarquias em-presariais – pune-se uma parte (nemsempre a ‘mais’ responsável) e não otodo, criando um efeito de ‘bode expi-atório’. Ao contrário, requer uma verapunição da entidade, ‘no seu todo’ eenquanto tal, a fim de se poder afir-mar ter sido a entidade coletiva a come-ter um determinado crime, tornando-se ela mesma objeto de censura jurídi-co-penal.”

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O desembargador federal CarlosFernando Mathias de Souza (2004, p. 27),em artigo publicado na Revista de InformaçãoLegislativa sobre responsabilidade penaldas pessoas jurídicas, menciona um traba-lho científico apresentado pela professoratitular do Largo do São Francisco IvetteSenise Ferreira, em que ela, referindo-se àLei 9.605/1998, assevera: “Essa lei resultoude discussão acerca da necessidade de uni-ficação e de harmonização de uma dúzia(de várias) leis que dispunham antes sobreas infrações ao meio ambiente no Brasil, demodo desordenado e contraditório, postoque o Código Penal, datado de 1940, nãoapresentava nenhuma solução dos confli-tos nesse domínio.” E continua a eminenteprofessora: “Uma lei penal mais completasobre o meio ambiente era portanto recla-mada pela comunidade jurídica desde apromulgação da nova constituição federalde 1988, onde foi proclamado que o meioambiente de qualidade é um direito funda-mental, tanto do indivíduo quanto da cole-tividade [...]”2.

A referida lei, com efeito, deriva do § 3o

do art. 225 da CF, que estabelece: “As con-dutas e atividades consideradas lesivas aomeio ambiente sujeitarão os infratores,pessoas físicas ou jurídicas, a sançõespenais e administrativas, independente-mente da obrigação de reparar os danoscausados.”

Por outro lado, Carlos Fernando Mathiasde Souza (2004) chama a atenção para o § 5 o

do art. 173, que se encontra no Título VII –Da Ordem Econômica e Financeira –, Capí-tulo I – Dos Princípios Gerais da AtividadeEconômica, verbis: “A lei, sem prejuízo daresponsabilidade individual dos dirigentesda pessoa jurídica, estabelecerá a responsa-bilidade desta, sujeitando-a às puniçõescompatíveis com sua natureza, nos atospraticados contra a ordem econômica efinanceira e contra a economia popular.”

Consoante Carlos Mathias, esse dispo-sitivo de nossa constituição porventura re-cebeu influência do direito francês, cujo

Código Penal de 1994 prevê a responsabili-dade penal das pessoas jurídicas (Cf.SOUZA, 2004, p. 29).

E o que diz o art. 3o e parágrafo da Lei9.605/1998? Citamos ipsis litteris: “As pes-soas jurídicas serão responsabilizadas ad-ministrativa, civil e penalmente conforme odisposto nesta Lei, nos casos em que a in-fração seja cometida por decisão de seu re-presentante legal ou contratual, ou de seuórgão colegiado, no interesse ou benefíciode sua entidade. Parágrafo único – A res-ponsabilidade das pessoas jurídicas nãoexclui a das pessoas, autoras, co-autoras oupartícipes do mesmo fato.”

O princípio da punibilidade das pesso-as jurídicas é fortemente preconizado porum dos maiores penalistas portugueses,Figueiredo Dias ([200-?]), como forma deprevenção dos megarriscos, subprodutos dasociedade pós-moderna em que vivemos,não só no aspecto da proteção ao meio am-biente, mas também na aplicação do DireitoPenal Econômico. E aí insere-se a criminali-dade organizada, ou o crime organizado, emque o Estado, em seus diferentes poderes,está infiltrado por delinqüentes, autores epartícipes de delitos que são objeto de abor-dagem do que agora se chama igualmentede “direito penal do risco”.3 Citamos comoexemplo do enfrentamento dessa situaçãode risco, que põe em perigo a própria tessi-tura social e o próprio futuro da humanida-de, a Operação Mãos Limpas na Itália. Em es-cala mundial, impõe-se urgentemente o com-bate sem tréguas ao narcotráfico, ao tráficode armas e materiais de extinção em massa(como urânio, por exemplo), à lavagem dedinheiro, aos crimes econômicos, “de cola-rinho branco”, à corrupção sistêmica, ativae/ou passiva, às catástrofes ambientais, que,sabe-se, têm repercussão em escala planetá-ria, a exemplo de Chernobyl, do derrama-mento de petróleo nos mares e da transfor-mação destes em uma grande lixeira domundo, ao tratamento dos dejetos nuclea-res, ao desmatamento predatório da Ama-zônia, à biopirataria, à contaminação dos

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recursos hídricos, como é o caso do LençolGuarani, que atravessa grande parte do Bra-sil, à poluição do subsolo, ao processo de“crescimento” de nossas cidades, que se fazde maneira urbanística e ecologicamentecruel, à ausência do Estado em enclavesdominados por quadrilhas de narcotrafi-cantes...

No Brasil, onde existe uma pletora de leisinúteis e ineficazes, leis ruins, pode-se con-tar, não obstante, com leis que, se devida-mente aplicadas, podem contribuir em mui-to para a redução dos riscos, que têm comoaliado a impunidade. Citemos algumas: Leis8.002/1990 e 8.078/1990 (Defesa do Con-sumidor), Lei 6.368/1976 (Lei de Entorpe-centes), Lei 9.605/1998 (Lei de Meio Ambi-ente), Lei Delegada 4/1962 (Lei de Interven-ção no Domínio Econômico), Lei 8.666/1993(Lei das Licitações), Lei 9.807/1999 (Lei deProteção à Testemunha), Lei 1.521/1951 (Leide Economia Popular), Lei 8.884/1994 (LeiAntitruste), Lei 7.492/1986 (Lei do Colari-nho Branco), Lei 101/2000 (Lei de Respon-sabilidade Fiscal), Lei 7.347/1985 (Lei deAção Civil Pública), Lei 4.717/1965 (Lei daAção Popular). Outro avanço legislativo foia introdução em nosso ordenamento do ins-tituto da desconsideração da pessoa jurídi-ca, que surgiu louvado no “juízo de eqüida-de” e com fundamento no princípio que nosfoi legado pelo direito romano, que é o enri-quecimento sem causa. Com efeito, o art. 28 doCódigo de Defesa do Consumidor afirma,expressi verbis: “O juiz poderá desconside-rar a personalidade jurídica da sociedadequando, em detrimento do consumidor, hou-ver abuso de direito, excesso de poder, in-fração da lei, fato ou ato ilícito ou violaçãodos estatutos ou contrato social. A descon-sideração também será efetivada quandohouver falência, estado de insolvência, en-cerramento ou inatividade da pessoa jurí-dica provocados por má administração.”

O art. 18 da Lei 8.884/1994, bem assim oCódigo Civil em seu art. 50 prevêem igual-mente a desconsideração da personalidadejurídica.

Por outro lado, impõe-se urgentemente areforma de nossos Códigos Penal e de Pro-cesso Penal, por inadequados, cujo sistemaprescricional deita por terra o muitas vezesárduo trabalho de alguns membros do Mi-nistério Público como órgão de defesa dopatrimônio público e dos direitos sociaisindisponíveis, e até mesmo da Controlado-ria-Geral da União, por exemplo.

O Prof. Mário Ferreira Monte (2001, p.22), em seu “Apontamento Introdutório” aolivro de Paulo Silva Fernando, baseando-seem Silva Sánchez, no livro La Expasión, es-creve muito a propósito:

“Pode dizer-se que quer o direito pe-nal clássico quer o direito penal se-cundário (Nebenstrafrechth) são umavez mais postos à prova. Mas não só.Também o direito administrativo san-cionador, o direito de mera ordenaçãosocial e, porque não dizê-lo, todo oDireito, enquanto sistema de regula-ção da sociedade e em particular dosconflitos de interesses, é questionado.[...] Já se fala no direito penal do riscoou no direito penal da globalização.”

E busca a causa de tal fato:“Trata-se de um fenômeno hodiernoemergente da sociedade pós-moder-na, pós-industrial, e que se caracteri-za fundamentalmente pela imprevisi-bilidade, pelo risco ou, rectius, o apa-recimento de novos riscos, a insegu-rança, a globalização, a integraçãosupranacional, a identificação dossujeitos-agentes com as vítimas, aidentificação da maioria social com avítima, o predomínio do econômicosobre o político, o reforço da crimina-lidade organizada, o descrédito nasinstâncias de proteção, a maior rele-vância do crime macrossocial, etc.”

É despiciendo afirmar que o risco decor-rente de decisões humanas representa gra-ve ameaça à própria sobrevivência da hu-manidade. Silva Dias (200-?), outro grandejurista lusitano, assevera que “a sociedadede risco começa onde termina a disposição

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das seguradoras privadas para cobrir cer-tos domínios de risco”. E acrescenta: “Ascompanhias de seguros, orientadas essen-cialmente pela razão calculadora, tendem acobrir apenas os riscos calculáveis e nãoembalam, por isso, no discurso de seguran-ça dos produtores de risco. Onde estes diag-nosticam risco nulo, aquelas prevêem riscomáximo.”4

As esperanças do homem comum fre-qüentemente recaem sobre o direito penalem face dos novos desafios, o que aliás écompreensível; quando não sobre o direitoadministrativo sancionador. Se no passadoos riscos advinham sobretudo de fenôme-nos naturais, hoje têm origem na própriaação ou omissão humana. E, concluindo naesteira de Figueiredo Dias ([200-?] apudFERNANDES, 2001, p. 10), “o bem jurídicoindividual, concreto, não faz aqui o menorsentido. A responsabilidade individual,muito menos. O perigo é uma categoria queganha cada vez maior importância, associ-ada porventura a uma ‘criminalização ex-pansiva dos delitos de negligência ou omis-são’”. O aparecimento de novos bens jurídi-cos está a exigir uma tutela diferente. Daíser legítimo afirmar que o direito penal clás-sico, se servira à sociedade industrial do fi-nal do século passado, já não responde sa-tisfatoriamente a este novo estágio de de-senvolvimento social e econômico da socie-dade pós-moderna. Para os fenômenos na-turais danosos, a experiência tem demons-trado que a tutela do direito penal não osalcança (quando na realidade, em algunscasos, poderia alcançar), resumindo-se aproteger os bens jurídicos clássicos, como avida, a integridade física, o patrimônio...Fala-se em direito penal intermediário ousecundário (Nebenstrafrecht), que tutelaria osbens jurídicos de natureza social e a organi-zação econômica e utilizar-se-ia, em grandemedida, de normas penais em branco, ca-racterizando-se como direito especial e cons-tituído basicamente por leis extravagantes,o que para Mario Ferreira Monte (2001, p.27) seria de alguma utilidade, desde que fei-

tas “algumas alterações de ordem dogmáti-ca” para adequar suas respostas aos novosproblemas. O que ele preconiza é “encon-trar soluções que passam eventualmente poralgumas alterações mesmo dogmáticas”dentro do próprio direito penal, ainda se-guindo as reflexões do penalista FigueiredoDias, discutidas na obra Algumas Reflexões.

Aqui surge a importância dos interessesdifusos dispostos no texto constitucional eincorporados nesta que é uma das melho-res leis que já produzimos: o Código de De-fesa do Consumidor. Se o antigo bem jurídi-co tutelado de cariz individual, liberal, pelodireito penal clássico, agora é questão datutela dos “bens jurídicos sociais, supra-in-dividuais, coletivos, difusos”, isso não im-plica o abandono da tutela subsidiária dobem jurídico individual, até porque o Códi-go de Defesa do Consumidor surge no bojoda economia neoliberal como interface dalei sobre a livre concorrência.

Há que se admitir com Paulo SilvaFernandes (2001) que

“o crime por excelência da era globalé o crime econômico. É o multiplicar, emtermos inéditos, tanto da criminalida-de econômica como da delinqüência decolarinho branco , como ainda e por úl-timo, dos crimes of the powerful , em lar-ga escala, de circuitos criminosos queenglobam a circulação de grandes ca-pitais e a movimentação de inúmeraspessoas e organizações, freqüente-mente à escala internacional ou glo-bal, em prol de um fim comum, a ob-tenção de lucros fabulosos provenien-tes da prática criminosa, tudo isto acolocar novos e difíceis problemas aodireito penal de cunho ‘clássico’.”

A sociedade da insegurança é subprodu-to da sociedade de risco. A todos aflige, au-mentando a aflição dos aflitos: a ela nadaescapa, o indivíduo, a família, o direito, oEstado. E não só: o risco, hoje, mais do quenunca, é um risco globalizado. AsseveraPaulo Silva Fernandes (2001) a essepropósito:

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“Decisões de peso, em matéria de am-biente, economia ou armamento, parasó citar alguns dos mais flagrantescontextos, são hoje tomadas à escalainternacional, se não mesmo mundi-al, dada a capacidade das conseqü-ências de tais decisões poder vir a afe-tar se não todos os estados envolvi-dos, pelo menos uma significativaparte deles.”

Nas pegadas de Beck, Fernades (2001)afirma que a produção ou potencializaçãodestes novos riscos decorre sempre de decisõeshumanas, ou ainda, citando Beck ([200-?]apud FERNANDES, 2001) como danos que acoletividade se inflige a si mesma, embora comoalgo que é independente da intenção humana.

Beck ([200-?] apud FERNANDES, 2001,p. 48-49) faz a distinção entre os riscos anti-gos (fome, epidemia, catástrofes...) e os no-vos riscos, posto serem estes decorrentes dedecisões “que se baseiam em vantagens eoportunidades tecno-econômicas e que acei-tam os desastres [hazzards] como simples-mente o lado obscuro do progresso”. Os ris-cos tecnocientíficos, uma nova categoria deriscos, que nasce com o homo oeconomicussurgido com o capitalismo e detentor des-sa nova forma de poder: a ciência e a tec-nologia.

O Brasil, é escusado dizê-lo, é um paísvulnerável a ambas as formas.

Diante de tal quadro de aumento de cri-minalidade de todos os matizes, a popula-ção, como já foi assinalado, deposita suasesperanças no direito penal. E não só. Noendurecimento das cominações (veja-se aesse propósito a lei dos crimes hediondos).É uma quimera. Maquiavel afirmara em umde seus escritos que são as leis que fazem oshomens bons. Nesse ponto, aquele que forao pai da ciência política e da proposta daética do Estado separada da ética individu-al se equivocara. Sabe-se sobejamente que odireito penal não é remédio para os proble-mas sociais nem para a deformação moraldas elites que se criaram no caldo da cultu-ra da ilicitude. A essa tendência, Paulo Silva

Fernandes denomina Direito Penal simbóli-co. Para ele, acertadamente, não são as san-ções rigorosas que vão proteger de modo efi-caz o bem jurídico: “uma vez que se crimi-naliza a conduta, mas sabe-se que será mui-to difícil, ou mesmo impossível, punir osinfratores (...) cria a imagem de um direitopenal por um lado incapaz e, por outro lado,de pura intimidação, que acaba por punir, dequando em vez, alguns infratores, que nãopassarão de ‘bode expiatório’”.

Heleno Fragoso (1991, p. 288), do alto desua experiência e sabedoria, já afirmara:“Quanto mais graves são as penas e as me-didas impostas aos delinqüentes, maior é aprobabilidade de reincidência. O sistemaserá, portanto, mais eficiente se evitar, tantoquanto possível, mandar os condenadospara a prisão nos crimes pouco graves, evi-tar o encarceramento demasiadamente lon-go.” Essa criminalização, consoante PauloSilva Fernandes, por ser simbólica , resultano descrédito geral do direito penal. E há vári-as conseqüências decorrentes desse fenôme-no: os cálculos da taxa de segurança, a difi-culdade de identificar os agressores e a di-luição à outrance da responsabilidade civil epenal dos autores, como se dá, por exemplo,na modificação do estado do ecossistema,muitas vezes por ação ou omissão crimino-sa, outras vezes por abuso de direito. Essasleis penais simbólicas apenas redundariamno “recurso freqüente à criminalização decondutas de perigo abstrato em detrimentodos crimes de dano e mesmo de perigo con-creto, o que – afirma Fernandes (2001), ago-ra citando Costa Andrade ([200-?]) –, aliadoà ‘eleição de bens jurídicos vagos ou deamplo espectro’, resulta numa excessivaantecipação da tutela, um determinado efei-to analgésico ou tranqülizante do direito pe-nal.”5 Outra questão que transcende o âm-bito nacional: os desastres ambientais (va-zamento de óleo, destruição da camada deozônio, desmatamento, poluição dos recur-sos hídricos...) não têm fronteira e estão aexigir uma ação em nível transnacional. Nãode ocupação ou de guerra, mas de preven-

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ção e de incorporação aos ordenamentosjurídicos de cada país dos tratados interna-cionais ou multilaterais que visam a medi-das protetivas.

Como já foi dito – e insistimos –, a agres-são ao meio ambiente, o crime organizado(a infiltração do aparelho de estado por de-linqüentes), a lavagem de dinheiro, a cor-rupção ativa e passiva dos agentes públi-cos, o crime do colarinho branco, o narco-tráfico que estabelece uma relação promís-cua com detentores de poder político, osmegarriscos, todos comprometem a saúdemental da população, que perde as certezase até as ilusões, e colocam em xeque o pró-prio futuro da humanidade como um todo.

Cremos ser consenso entre especialistasque não se trata de abolir o direito penalclássico, que, bem ou mal, serve para tutelarcertos bens jurídicos. Mas nem todos os bensjurídicos são protegidos, devendo-se reco-nhecer-lhes o status de bens jurídicos penal-mente relevantes; há que se aprofundar odebate sobre o que hoje se designa comoDireito Penal Econômico, que diz respeitoao intervencionismo do Estado, ao direito àlivre concorrência e aos direitos tuteladospelo Código de Defesa do Consumidor. SilvaSánchez ([200-?]) escreve que a “combina-ção da introdução de novos objetos de pro-teção com a antecipação das fronteiras daproteção penal propiciou uma transição rá-pida do modelo ‘delito de lesão de bens indivi-duais’ para o modelo ‘delito de perigo de benssupraindividuais’”6. Deve-se refutar a faláciado chamado “crime sem vítima”, já que todocrime possui vítimas potenciais ou difusas.Afetam interesses não só subjetivos, masigualmente supra-individuais, de grupos deindivíduos. Geralmente trata-se dos crimesde perigo, perigo abstrato, para o qual há tam-bém as normas extra-penais, de naturezaadministrativa, ou as normas penais embranco, já referidas. É óbvio que não se deveabusar do Direito Penal – cuja natureza é deultima ratio, que só deve ser operado onde osoutros meios de tutela jurídica se mostra-rem ineficazes. A questão do crime de peri-

go abstrato é um assunto controverso. Her-zog e Hassemer a ele se opõem. Os argu-mentos a favor desse tipo de imputação po-dem assim ser resumidos, citando Paulo Sil-va Fernandes (2001):

“A contrario sensu, em favor deste tipode incriminação tem-se dito nomea-damente que facilita a aplicação danorma pelo julgador, ao mesmo tem-po que se reduz a arbitrariedade judi-cial na determinação de uma situaçãode risco, facilitando igualmente aquestão da punição objetiva; tambémque elimina as situações de azar, umavez que não é necessário esperar pelaconcreta colocação em perigo do obje-to de tutela, para desencadear a atua-ção do aparato sancionatório, o que,em sociedades de risco como as hodi-ernas, constitui um expediente inar-redável se se quiser obter algum su-cesso, não tanto na debelação mas simna prevenção da ocorrência de danosgravíssimos, em escala e portanto in-comportáveis para o emaranhado so-cietário.”

E continua o nosso autor:“De fato, este gênero de crimes – deperigo abstrato – distinguem-se, des-de logo, dos crimes de dano, desde logoporque estes pressupõem uma efetivalesão, real, objetivável, ao bem jurídi-co protegido pela norma, como tam-bém se afastam dos crimes de perigoconcreto, uma vez que estes exigem acriação de condições tais que se pos-sa afirmar ter estado o referido bemjurídico próximo da lesão, daí ser umperigo concreto.”

E conclui:“Já os crimes de perigo abstrato su-põem, em comum com os delitos qua-lificados como de perigo concreto, umaantecipação da tutela a um ponto an-terior à lesão, bastando-se com a pro-babilidade da mesma, mas diferenci-ando-se daqueles na medida em quebastam-se com a mera ação, generica-

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mente perigosa do agente, adequadaa, abstratamente e mercê de um juízo exante de perigosidade (ao contrário dosdelitos de perigo concreto, baseadosem uma racionalidade ex post), provo-car uma possível lesão do bem prote-gido pela norma. Daí que, por não seexigir qualquer resultado material, sediga frequentemente serem delitos demera atividade ou de infração de um de-ver objetivo de cuidado.”

Em suma: os crimes de perigo abstratodevem estar em relação direta com um bemjurídico concreto.

Kindhäuser ([200-?] apud BARJA DEQUIROGA, 1997) avança uma argumenta-ção que leva a ampliar o conceito de dano.Senão vejamos, na síntese feita por PauloSilva Fernandes (2001):

“Para Kindhäuser, o dano que umapessoa pode sofrer consiste não só naefetiva violação ou ofensa, ou lesãoconcreta de um determinado bem, mastambém na privação da possibilidade dedispor de forma segura desse mesmobem. O perigo abstrato surge ‘quandose vêem afetadas condições de segu-rança que são imprescindíveis paraum desfrute despreocupado dosbens’, idéia que decorre da observa-ção de que a impossibilidade de des-frutar, de forma despreocupada, deum bem implica a impossibilidadede retirar dele todas as utilidadespotenciais de desfrute e, por isso, hálesão.”

E ajunta Paulo Silva Fernandes (2001)na síntese da tese do autor em questão:

“A preocupação de Kindhäuser pare-ce ser, portanto, a da segurança geralna disposição dos bens jurídicos, haven-do, por palavras outras, uma situaçãode ingerência na esfera de liberdadealheia sempre que seja criada, por umdeterminado agente, uma situação deperigo abstrato para um determinadobem. Aqui pode, com propriedade,surpreender-se (e defender-se) um con-

ceito amplo de dano, a servir de esteio àdefesa da utilização dos delitos deperigo abstrato.”7

Aqui o círculo se fecha. Ultrapassado odogma da responsabilidade meramente in-dividual em matéria penal, podendo serimputáveis criminalmente as pessoas jurí-dicas, os entes coletivos, pode-se então falarem direito penal do risco, atingindo este so-bretudo bens jurídicos de natureza econô-mica e do meio ambiente, o que não signifi-ca tutelar perigos indeterminados, pela di-luição do bem jurídico individual, abolin-do-se in totum o direito penal “clássico”.Cremos que o direito já tenha resolvido essaquestão ao estabelecer os interesses indivi-duais homogêneos, coletivos e difusos, noque diz respeito à titularidade do bem a sertutelado pela ordem jurídica.

É válido, portanto, o princípio societasdelinquere potetest. É despiciendo afirmar quehoje, mais do que nunca, o delinqüente eco-nômico utiliza-se de pessoas jurídicas, tan-to no Brasil quanto no exterior (nesse caso,muitas das vezes off shore, desvirtuando-lhea finalidade original), para evadir divisas,praticar sonegação fiscal ou lavar dinheiroadvindo da corrupção.

É necessária uma atuação em concertoentre os diferentes países, com envolvimen-to de instituições especializadas, como Mi-nistério Público, Poder Judiciário, PolíciaFederal, Interpol, Receita Federal, a fim dedar-se combate ao megacrime econômico,que tantos danos causa à sociedade, corro-endo-lhe os princípios morais não só ao for-talecer a “cultura da ilicitude”, mas ao pu-nir a população com o mais cruel dos im-postos, que é a corrupção.

É imprescindível, igualmente, a indigna-ção ética da sociedade contra tais crimes.Mas é bom lembrar que somos vítimas e al-gozes de tais condutas, quando nos equivo-camos ou nos iludimos no momento da es-colha de nossos mandatários. Princípioséticos devem presidir nossas escolhas, e asociedade civil organizada deve aperfeiçoarseus mecanismos de vigilância e prevenção.

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Não há que, como bem asseverou em suaautobiografia o monge francês da Igreja Or-todoxa Grega Jean-Yves Leloup, “viver ale-gremente no meio da catástrofe”. Ou ainda,jamais olvidar a homilia de John Donne,poeta e clérigo anglicano do século XVII, emque ele afirmara que “nenhum homem éuma ilha em si mesmo. Todo homem é partedo continente. Se um pedaço for levado pelomar, a Europa fica menor, como se um pro-montório fosse, ou como se fosse a casa deteus amigos, ou a tua própria. A morte dequalquer pessoa me diminui, porque façoparte da espécie humana; portanto, nuncaperguntes por quem o sino dobra: ele dobrapor ti”.

Notas1 Cf. BECK, Ulrich. Risikofesellschaft: auf dem

Weg in eine andere moderne. Frankfurt: [s.n.], 1986apud FERNANDES, 2001, p. 19.

2 Cf. FERREIRA, Ivette Senise. La responsabilitémorale des personnes morales apud SOUZA, 2004, p.27.

3 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Algumas refle-xões sobre o direito penal e a sociedade de risco apudFERNANDES, 2001.

4 Cf. DIAS, Augusto Silva. Proteção jurídico-pe-nal de interesses dos consumidores apud FERNANDES,2001, p. 21.

5 Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. Liberdadede imprensa e inviolabilidade pessoal: uma pers-pectiva jurídico-criminal apud FERNANDES,2001, p. 72.

6 Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria. La expan-sión del derecho penal: aspectos de la política crimi-

Referências

BARJA DE QUIROGA, Jacobo Lopez . El modernoderecho penal para uma sociedad de riesgos. Revis-ta del Poder Judicial, [S. l.], n. 48, 1997.

DROIT Roman. Université de Liége, Liége, [2001?].Disponível em: <http://vinitor.egss.ulg.ac.be/index.html >. Acesso em: 11 out. 2001.

FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, sociedadede risco e o futuro do direito penal: panorâmica dealguns problemas comuns. Coimbra: Almedina,2001.

FRAGOSO, Heleno. Lições de direito penal: a novaparte geral. 13. ed. Rio de janeiro: Forense, 1991.

MONTE, Mario Ferreira. Apontamento introdutó-rio. In: FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, so-ciedade de risco e o futuro do direito penal: Panorâmicade alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina,2001.

ROXIM, Claus. Problemas fundamentais de direito pe-nal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998. (Colecção Vega Uni-versidade).

SILVA, Antônio José da Costa e. Código penal dosEstados Unidos do Brasil comentado. Brasília: SenadoFederal, 2004, v. 1.

SOUZA, Carlos Fernando Mathias de. A responsa-bilidade penal das pessoas jurídicas. Revista de Infor-mação Legislativa, Brasília, 41, n. 162, abr./jun. 2004.

nal em las sociedades postindustriales apudFERNANDES, 2001, p. 85.

7 Cf. KINDHÄUSER apud BARJA DE QUIRO-GA, Jacobo Lopez. El moderno derecho penal parauna sociedad de riesgos. Revista del Poder Judicial,Madrid, v. 48, p. 301, 1997. Resumo feito porFernandes (2001, p. 95).

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Introdução. I – Urbanismo e Direito Urba-nístico: normas cogentes garantidoras do bem-estar dos habitantes. 1) Cidade, Urbanismo eDireito Urbanístico: preocupação com o coleti-vo. 2) Patologias das cidades e análise da cri-minalidade. 3) Ecologia humana e a análise dacriminalidade urbana pela Escola de Chicago epelo comportamentalismo. II – Novo substra-to biológico da violência urbana: a desordemurbana. 1) Aspectos biogenéticos da violência:o nascimento da criminologia. 2) Aspectosbioambientais da violência: a desordem urba-na e a criminologia oriunda da Ecologia Hu-mana. 3) Desordem urbana como agressão àsfunções urbanísticas garantidoras da qualida-de de vida na cidade. III – Crimes cometidos noambiente urbano: tipologia segundo a teoriadas atividades rotineiras. 1) Teoria das ativida-des rotineiras: explicação socioambiental con-temporânea da violência. 2) Pressupostos dateoria da atividade rotineira para a ocorrênciade um delito urbano. 3) Relação entre os espa-ços urbanos utilizados pelo cidadão (vítima) eas taxas de crimes. IV – políticas públicas pro-tetivas das funções urbanísticas e minimizan-tes dos delitos urbanos. 1) O mapeamento daviolência em Belo Horizonte: exemplo concre-to de aplicação da ecologia humana e da teoriada atividade rotineira no Brasil para preven-ção de crimes. 2) O planejamento urbano comopolítica eficaz no combate à criminalidade ur-bana. 3) O lazer e a recreação: exemplo de res-peito à função urbanística eficaz no combate àviolência urbana sofrida e praticada por jovens.4) Garantia de trabalho e de moradia digna:políticas públicas sociais eficazes para o com-bate da violência. Conclusão.

Ordem urbanística e a prevenção dacriminalidade

Paulo José Leite Farias

Paulo José Leite Farias é Promotor de Justi-ça da Ordem Urbanística do MPDFT. Doutorem Direito pela UFPE, Mestre em Direito e Es-tado pela Universidade de Brasília. Professorde Pós-Graduação na Universidade Católica deBrasília, UniUDF e IDP. Examinador do Con-curso de Promotor de Justiça do MPDFT. Visi-ting Scholar na Boston University School ofLaw.

Sumário

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Introdução

O estudo da violência urbana apresen-ta-se como desafio constante nas socieda-des mundial e brasileira. Em futuro próxi-mo, praticamente todo o crescimento da po-pulação mundial ocorrerá em áreas urba-nas. Entre 2000 e 2030, há expectativa deque a população mundial urbana aumenteem 2,1 bilhões de habitantes, aproximada-mente, praticamente o mesmo que será acres-cida toda a população mundial (2,2 bilhõesde habitantes em áreas urbanas e rurais)(BRENNAN-GALVIN, 2002)1.

Em médio prazo, toda a população hu-mana se concentrará no ambiente urbano. Épossível e necessário correlacionar o plane-jamento urbano com a violência urbana, nes-se contexto.

A Constituição Federal, ao tratar da fun-ção social das cidades, estabelece o impera-tivo do estabelecimento de plano diretor nasurbes brasileiras com mais de vinte mil ha-bitantes, objetivando, assim, ordenar o ple-no desenvolvimento das funções sociaisda cidade e garantir o bem-estar de seushabitantes (art . 182 da ConstituiçãoFederal).

Sobre esse tema, dispõe Ricardo Lira(1997, p. 10) que:

“a Constituição de 1988 avançou mui-to e pela primeira vez a Cidade foi al-çada ao patamar constitucional, pre-vendo-se que as cidades com mais devinte mil habitantes tenham um pla-no diretor obrigatório, aprovado pelaCâmara Municipal”.

A busca das causas endógenas (oriun-das do próprio ser humano (característicasinternas), objeto de estudo da psicologia edas ciências criminais, em especial da cri-

minologia tradicional, nas obras de Ferri,Garófalo e Lombroso) e das causas exóge-nas (fruto de características do ambienteurbano, enfatizadas no presente trabalhopor meio da “ecologia humana”), constituiobjeto de conflitos no âmbito acadêmico(quais são as verdadeiras causas da violên-cia na sociedade citadina?) e político (quala melhor política pública para combater aviolência urbana?).

Na diagnose da violência urbana e nabusca de soluções para o combate, o urba-nismo, ao contrário do que vem ocorren-do atualmente, terá importante papel, con-forme se almeja demonstrar no presentetrabalho.

Os romanos já possuíam sistema de pla-nejamento urbano, desenvolvido para a de-fesa militar e para a facilidade de garantir espa-ço público para o exercício da cidadania em suascidades. O plano básico compunha-se deuma praça central (centro da cidade) com aadministração da cidade e com a sede dopoder governante, que se envolvia por umagrade de ruas que, por outro lado, eram cer-cadas por muros para a garantia de defesacontra ataques externos. Com algumas mo-dificações, os valores urbanos de seguran-ça, cada vez mais queridos atualmente, fo-ram mantidos nas cidades da Idade Média.Le Goff (1998, p. 71) ensina:

“A cidade da Idade Média é um espa-ço fechado. A muralha a define. Pene-tra-se nela por portas e nela se cami-nha por ruas infernais que, felizmen-te, desembocam em praças paradisía-cas. Ela é guarnecida de torres, torresdas igrejas, das casas dos ricos e damuralha que a cerca. Lugar de cobiça,a cidade aspira à segurança . Seus habi-tantes fecham suas casas à chave, cui-dadosamente, e o roubo é severamen-te reprimido” (grifo nosso).

Não seria, ainda, o momento de uma con-cepção de planejamento urbano que visas-se à diminuição da violência na cidade paragarantir o valor constitucional do bem-estarde seus habitantes.

“Se em uma rua escura se cometem mais atosviolentos do que em uma rua clara, bastaria iluminá-la e isso se tornaria mais eficaz do que construirprisões (...)”

Enrico Ferri

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Infelizmente, no Brasil, poucos trabalhosse fizeram nesse sentido. Tal, entretanto, nãoocorre em outros países, como os EstadosUnidos da América, em que a Escola deChicago, desde a década de 30, procurourelacionar a vida em comunidade com aviolência.

As estratégias que o Estado adota paracombater a violência não podem flutuar aosabor das preferências pessoais dos Gover-nantes. O conhecimento científico deve serlevado em consideração, assim como o épara o tratamento das doenças dos indi-víduos.

I – Urbanismo e Direito Urbanístico:normas cogentes garantidoras do

bem-estar dos habitantes

1) Cidade, Urbanismo e DireitoUrbanístico: preocupação com o coletivo

O surgimento dos conglomerados urba-nos é fato histórico,2 geográfico e, acima detudo, social. Nesse aspecto, surge a preocu-pação do Urbanismo e do Direito, como ci-ências ordenadoras dos fatos sociais ocor-ridos nas cidades.

Leopoldo Mazzaroli, citado por Mukai(2004, p. 13), assim definiu o Urbanismo:

“a ciência que se preocupa com a sis-tematização e com o desenvolvimen-to da cidade, buscando determinar amelhor posição das ruas, dos edifíci-os e obras públicas, de habitação pri-vada, de modo que a população pos-sa gozar de uma situação sã, cômodae estimada”.

O Direito Urbanístico é o conjunto de pre-ceitos ou de normas de que a administraçãose vale na coordenação e no ordenamentodo território (urbano ou não), em nome dointeresse coletivo e dos titulares dos direi-tos de propriedade. Segundo José Afonso daSilva (1997, p. 30):

“Sua formação, ainda em processo deafirmação, decorre da nova função doDireito, consistente em oferecer instru-

mentos normativos ao poder público,a fim de que possa, com respeito aoprincípio da legalidade, atuar no meiosocial e no domínio privado, para or-denar a realidade no interesse da co-letividade”.

As imposições urbanísticas, assim comoas normas penais, são preceitos de OrdemPública, cogentes, fruto do poder de políciado Estado, que, intervindo na disciplina dasrelações jurídicas, estabelece o condiciona-mento do exercício do direito de proprieda-de ao interesse coletivo.

Nesse sentido, Ricardo Lira (1986, p. 7)ensina: “a localização de uma cidade, suaextensão, sua configuração, sua magnitudenão são, nem podem ser, realizações priva-das; são realizações coletivas, talvez o fatocoletivo por excelência das sociedades hu-manas”.

Para Max Weber (1958, p. 16-17), as cau-sas sociais para o crescimento da cidade po-deriam ser resumidas nas vantagens que acidade oferece para o homem, a saber: edu-cação, recreação, melhor padrão de vida, serum pólo atrativo de associações de intelec-tuais, adequação do homem ao ambiente ur-bano, difusão dos valores da vida urbana.Para ele, ainda, a cidade, historicamente,surge em decorrência da necessidade de aburguesia comercial (os mercadores) impor-se em relação aos nobres e aos clérigos domeio rural, visando à garantia da proprie-dade privada e a uma nova e distinta orga-nização da vida social.

Entretanto, a inovação oriunda da teo-ria sociológica da cidade, de Weber, focali-za-se na noção de que nas cidades se desen-volvem ações sociais, relações sociais e ins-tituições sociais autônomas. Segundo a suavisão, que continua sendo considerada con-temporânea, a comunidade urbana desen-volve-se no Ocidente atrelada às relações co-merciais, com elementos vinculados a umafortificação (separação do espaço rural dourbano), um mercado, um poder político-jurídico próprio (Administração, Tribunaise leis próprias), uma organização associati-

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va dos seus habitantes (busca do bem-comum), que autonomamente definem a suaforma de organização social.

A cidade em sua origem é, pois, expres-são do capitalismo comercial e da busca denovos modelos de convivência dos seus con-cidadãos (WEBER, 1958, p. 54-55).

2) Patologias das cidades eanálise da criminalidade

Para os países em desenvolvimento, obrutal aumento da concentração populaci-onal nas cidades não se vincula tanto aodesenvolvimento industrial (fase da evolu-ção capitalista), como assinalava MaxWeber, quanto à busca pela população ru-ral de uma melhor qualidade de vida.

Entretanto, a cidade passa a ser, muitasvezes, falsa propaganda do melhor meca-nismo de realização da dignidade dapessoa humana. As condições de vida nasgrandes cidades, principalmente nas dospaíses subdesenvolvidos, têm-se deterio-rado.

De pólo atrativo que propicia o acesso auma intensa vida cultural, melhores opor-tunidades de emprego e um enriquecedorconvívio com diferentes experiências devida, a metrópole, desordenada urbanisti-camente, tem-se tornado centro irradiadorde falta de moradia, de poluição, de violên-cia e de desemprego.

A industrialização do Brasil, após a EraJK, não foge a essa assertiva. O crescenteprocesso de urbanização e de conseqüenteaumento do número de habitantes, nas prin-cipais cidades brasileiras, vem acarretandodegradação da vida urbana. Em 1950, SãoPaulo e Rio de Janeiro tinham mais de 1milhão de habitantes. Em quatro décadas,13 cidades do Brasil atingiram esse pata-mar. Com o aumento do tamanho das cida-des, surgiram novas metrópoles. Além daregião metropolitana de São Paulo e do Riode Janeiro, que engloba 21 cidades, existemhoje, no Brasil, outras dez grandes metró-poles. Juntas, elas abrigam 33,6% da popu-lação brasileira.

Nesse contexto de complexidades, en-contra-se a criminalidade como situação re-crudescente, vinculada a problemas própri-os do corpo social urbano (endógenos) e aoutros (exógenos).

Certamente, grande número de fenôme-nos vinculados à violência contemporânearelacionam-se com problemas existentes nascidades, tais como a violência das gangues.Os arrastões, ocorridos no Rio de Janeiro eem São Paulo, ilustram os fenômenos de vi-olência urbana (ainda não existentes em re-giões rurais), vinculados à afronta ao direi-to coletivo de segurança. Nesse aspecto, oMinistério Público Federal (Procuradoria daRepública no Rio de Janeiro) e o Estadualajuizaram ação civil pública, em dezembrode 2004, intimando o prefeito Cesar Maia egovernadora Rosinha Matheus a deporemsobre os danos à imagem da cidade causa-dos pelo ataque a turistas acontecido em dia28 de setembro de 2004 na Praia do Leblon.O episódio, filmado por um cinegrafistaamador, foi divulgado amplamente em tele-visões do mundo inteiro e, segundo o MP,eles teriam afrontado o art. 216 da Consti-tuição, que determina ao Poder Público a obri-gatoriedade de tutela do patrimônio cultural,sendo patrimônios culturais imateriais a qua-lidade de vida do habitante da cidade e aimagem da cidade perante o resto do mundo.

Pesquisando diversas cidades da Amé-rica Latina, Gaviria e Pages (2000, p. 3) ob-servaram, por meio de pesquisas estatísti-cas, que o tamanho de uma cidade se relaci-ona com a violência urbana sofrida naquelelocal. No estudo, ficou comprovado que osmembros de uma família de moradores decidade com mais de 1 milhão de habitantespossuem o dobro da probabilidade de se-rem vítimas de violência em relação aosmoradores de uma cidade com menos de 20mil habitantes. Do mesmo modo, o aumentode 1% na taxa de crescimento de uma cidadepoderá implicar o aumento de 1,5% na pro-babilidade de incidência da violência.

Há, pois, relação entre Urbanismo eViolência. A criminalidade é uma das faces

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da violência. Nas cidades, pode haver umclima de violência criado, estimulado oupotencializado pela desordem urbana. Afalta de um bem urbano, tal qual a água,pode causar inúmeros conflitos entreindivíduos e comunidades vizinhas. Naverdade, nas inúmeras favelas urbanasexistentes no mundo, as fontes de águacompartilhadas exemplificam essa situação(BRENNAN-GALVIN, 2002).

Assim, cidade mal organizada e malplanejada pode ser fonte ou lente deaumento da violência e da criminalidade. Ocongestionamento do trânsito (função urba-nística da circulação), a inexistência de áre-as adequadas ao lazer (função urbanísticada recreação), a intranqüilidade do repou-so dos seus moradores (função urbanísticada residência), a inexistência de espaços detrabalho dignos para todos os cidadãos (fun-ção urbanística do trabalho), todas essasdisfunções são formas de desrespeito às fun-ções urbanísticas que possuem conseqüên-cias nos índices de violência daquele local.

Exemplificando, não se verifica, intuiti-vamente, uma relação lógica entre a exis-tência da favela da Rocinha e a criminali-dade no Rio de Janeiro? Se aquela popula-ção tivesse tido a oportunidade de morarem residências com um mínimo de respeitoà dignidade da pessoa humana, em lotea-mentos regularmente aprovados e urbani-zados, existiriam tantos delitos?

A ausência de planejamento urbanomunicipal, cujo intuito é garantir as funçõesda sociedade urbana (a de circular, a dehabitar, a de trabalhar e a de lazer), consti-tui, atualmente, uma das maiores causas daviolência urbana. Deve-se, portanto, insti-tuir políticas públicas com o intuito de ga-rantia das funções sociais da cidade e da di-minuição/prevenção da violência urbana.

3) Ecologia humana e a análise dacriminalidade urbana pela Escola deChicago e pelo Comportamentalismo3

Através da incorporação de conceitosretirados da Biologia e da Ecologia, a Esco-

la de Chicago4 e o Comportamentalismo pro-duziram pesquisas e formularam conheci-mentos, então denominados Ecologia Hu-mana e behavioral science, que muito contri-buíram para a institucionalização e o de-senvolvimento da Sociologia Urbana comvistas à implementação de políticas públi-cas eficientes de combate às mazelas dascidades, tal qual a violência urbana.

A abordagem ecológica da Escola deChicago enfatizava que o crescimento dacidade deveria ser visto como um fenômenonatural. As cidades não cresciam aleatoria-mente; o crescimento ocorria nas áreas maisdesejadas e favorecidas, por meio, inicial-mente, da competição entre os diferentesgrupos situados nas cidades. A ecologia, quedestacava a interação entre o ambiente na-tural e os seres de um determinado local,buscando o equilíbrio, poderia ser transpos-ta para a cidade em termos semelhantes.Assim, as cidades cresciam em resposta àscondições favoráveis encontradas no seuentorno. Por exemplo, grandes áreas urba-nas desenvolvem-se ao longo de rios e ferro-vias, pois tais locais favorecem o crescimen-to desse organismo vivo artificial.

Uma cidade pode ser caracterizada comoum grande ser vivo, sujeito a mapeamentodas suas diferentes e contrastantes áreas.Geralmente, a urbe forma-se em círculos con-cêntricos, sendo que a ecologia social pro-piciou o armazenamento de inúmeros da-dos estatísticos da cidade, que passou a servista como um todo composto por partes queinteragem (visão sistêmica, característica daecologia). Há, portanto, uma dinâmica nacidade, por meio da qual invasões e suces-sões de determinadas partes a tornam umsistema mutável tendente a novos patama-res de equilíbrio (GIDDENS, 1999, p. 470).

As informações científicas, acumuladaspor meio da visão ecológica, permitem afir-mar que a violência tem, também, um subs-trato biológico, que converge para a impor-tância do planejamento urbano como solu-ção para o ajuste das partes doentes do mai-or organismo social contemporâneo. 5

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Analisando a ocorrência e a distribui-ção espacial da criminalidade; propondo aelaboração de mapas e de outros instrumen-tos que melhor permitissem a visualizaçãoda cidade e dos problemas decorrentes dasua urbanização, a perspectiva funcionalis-ta da Escola de Chicago foi pioneira no quehoje podemos chamar de “cartografia urba-na”.

O comportamentalismo, de modo conver-gente, destaca que a história e a organiza-ção das cidades registram enorme variaçãode formas e de finalidades ao longo do tem-po: desde as primitivas aldeias de cidadesmuradas, desde os burgos até às metrópo-les e, mais recentemente, desde as megaló-poles. Em última instância, os agrupamen-tos humanos resultam de um comportamen-to gregário que tem seus antecedentes ani-mais na manada, na matilha, no cardume eem tantas outras formas da vida coletiva quea experiência zoológica permite observar.

Nos agrupamentos animais pré-huma-nos, a violência dentro da espécie resulta,na maioria das vezes, de uma disputa terri-torial. A violência das grandes cidades temuma fisionomia reconhecível e tem víncu-los indissolúveis com um conjunto de fatosque só as megalópoles produzem, como: oanonimato, a falta de compromisso afetivoe de uma aceleração desgastante.

Ainda, para a Escola de Chicago e parao “behaviourism”, o adensamento popula-cional das grandes cidades transgride asnormas e os limites do instinto de territoria-lidade, comum a todos os mamíferos caça-dores, de que faz parte a espécie humana;tal como foi provado por John Calhoun, em1962, no artigo “Densidade Populacional ePatologia Social” (BARNETT, 2001, p. 161).Essa teoria oferece explicação simples paraa epidemia de violência que a TV começavaa mostrar nas grandes cidades: turbas enfu-recidas, polícia, bombas de gás lacrimogê-neo, saques e gangues urbanas. Assim comoos ratos, na gaiola comportamental, matam-se por uma posição no meio da gaiola, oshomens se agridem no centro das cidades

em busca por melhores espaços urbanos(CALHOUN, 1949).6

A imagem da “gaiola comportamental”de Calhoun, desdobramento da Escola deChicago e do Darwinismo Social, ilustra efacilita a compreensão de uma das mais re-levantes causas da violência urbana no Bra-sil: a enorme concentração populacional emcentros urbanos com recursos escassos paragarantia da qualidade de vida.

A violência é patologia passível de iden-tificação geográfica e de cura/melhoria coma mudança de fatores ambientais urbanos.Embora ocorra em todas as classes soci-ais, é nos bairros pobres que ela se tornaepidêmica.

O ecologismo social permite o desenhode mapas que demonstram a distribuiçãoda violência no espaço e no tempo. Ademais,correlacionam-se elementos como as condi-ções precárias de moradia (função urbanís-tica de residir) com as taxas de delinqüên-cia no local. Mais recentemente, a ecologiasocial almeja ser menos descritiva e maispreceptiva de soluções para a criminalida-de urbana.

II-Novo substrato biológico daviolência urbana: a desordem urbana

1) Aspectos biogenéticos da violência:o nascimento da criminologia

A criminologia está preocupada com ocrime como fenômeno social. O estudo dacriminologia é de grande valia para deter-minarem-se métodos de prevenção da vio-lência em geral. Ao estudar-se o crime, o cri-minoso e o seu comportamento, o que sealmeja é a compreensão de um fato socialcomplexo. Essa compreensão, por sua vez,permite a formulação de políticas públicaspara a prevenção de novos deli tos(SHUTERLAND, 1924, p. 11).

No século XVIII, o anatomista austríacoFranz Gall desenvolveu teoria em torno daidéia de que a maioria das característicashumanas, inclusive o comportamento anti-

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social, seriam reguladas por regiões especí-ficas do cérebro.

Assim, cada comportamento humanoestaria sob o comando de um centro cere-bral específico. Quanto mais robusto fosse ocentro, mais intensa seria a expressão docomportamento controlado por ele. Essa te-oria ganhou o nome de frenologia ou de cra-nioscopia. Franz Gall imaginava que, aocrescer, os centros cerebrais exerciam pres-são contra os ossos da cabeça, deixandoneles saliências que poderiam ser vistas oupalpadas. As pessoas com tendências cri-minosas poderiam ser reconhecidas peloexame cuidadoso das protuberâncias e de-pressões ósseas existentes no crânio.

Cerca de cem anos depois, CesareLombroso,7 antropologista criminal, crioudoutrina que consagrou a associação dascaracterísticas físicas com a índole crimino-sa. Tais características constituiriam o “stig-mata”. De acordo com Lombroso, os tiposhumanos com testa achatada e assimetrianos ossos da face, por exemplo, seriam crimi-nosos potenciais. Quem tivesse esses traçosera classificado como tipo lombrosiano e vis-to com extrema desconfiança nos tribunais.

2) Aspectos bioambientais da violência:a desordem urbana e a criminologia

oriunda da Ecologia Humana

As informações científicas acumuladaspermitem afirmar que a violência tem umsubstrato biológico, de fato. Para os autoresc láss icos já refer idos , Franz Gal l eLombroso, haveria um determinismo gené-tico vinculado às características físicas doindivíduo.

Já Enrico Ferri [200-?] afirmava que ohomem não nasce delinqüente, mas que elese torna delinqüente. Torna-se delinqüente,ao longo da vida, porque o meio social, omeio ambiente, os fatores externos, os fato-res exógenos (ecológicos) convergem no sen-tido de que essa pessoa venha a ser violen-ta. Ferri, nesse aspecto, tem uma frase céle-bre: “se em uma rua escura se cometem maisatos violentos do que em uma rua clara, bas-

taria iluminá-la e isso se tornaria mais efi-caz do que construir prisões”.8

Demonstrando a contemporaneidade daidéia de Ferri, basta ser lembrado que, naépoca do Governo de Fernando HenriqueCardoso, foi construído um plano de segu-rança que tinha como principal meta a ilu-minação de vias públicas.

Assim, o comportamento humano nãose acha condicionado somente às caracte-rísticas que herdamos de nossos pais. Ele éresultado de interações sutis entre genes econdições ambientais que originam experi-ências de vida.

Nesse aspecto, a ecologia humana bus-ca verificar outro aspecto biológico da violên-cia urbana, a interação entre o indivíduo e oseu entorno. A cidade influencia o indivíduo.Além das características biológicas, os fenô-menos culturais também são tidos como me-canismos de influência no indivíduo. O am-biente urbano insere-se nesse contexto, sen-do a desordem urbana um elemento do entor-no que incentiva a violência. Afinal, comoensinou o filósofo espanhol José Ortega yGasset, o homem é um ser situado e datado!

3) Desordem urbana como agressão àsfunções urbanísticas garantidoras da

qualidade de vida na cidade

O urbanismo caracteriza-se basicamen-te por quatro funções vitais: habitação, tra-balho, circulação no espaço urbano e recre-ação do corpo e do espírito. Essa concepçãosurgiu do Congresso Internacional da Ar-quitetura Moderna, realizado na Grécia em1933, do qual resultou a edição da Carta deAtenas, repositório das recomendações apro-vadas naquele evento (SILVA, 1997, p. 24-25).

Le Corbusier foi signatário dessa Carta eprecursor na arquitetura do funcionalismo,corrente consagrada no âmbito do direitourbanístico. Propõe-se uma cidade radical-mente nova, racionalmente ordenada, comseparação geográfica de funções (diverti-mento, residenciais e comerciais, etc.), ondeos edifícios de grandes dimensões eram en-quadrados por vastos espaços verdes. A li-

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gação entre as várias zonas era feita por lar-gas avenidas, susceptíveis de serem rapi-damente percorridas por automóveis. NoBrasil, com forte simbolismo que deve serirradiado para todo país, Lúcio Costa eOscar Niemeyer conceberam Brasília com amesma filosofia. Desse modo, passou a serconsiderada, no âmbito jurídico, como va-lor positivo a garantia das funções urbanís-ticas. A vida nas cidades, conforme já visto,é caracterizada por atividades que se desen-volvem em espaços interiores (edificações),quer habitando as casas ou as construçõesverticalizadas (prédios de apartamentos),quer trabalhando nelas ou as utilizandopara os mais diversos fins recreativos, edu-cativos, culturais, religiosos, comerciais, in-dustriais, institucionais, consumistas, etc.

Como afirma José Carlos Freitas (1999):“mesmo fora das edificações, as ativi-dades são realizadas em razão ou acaminho delas, agora entre portas ejanelas, nos veículos automotores ounos meios de transporte coletivo, so-bre as vias de circulação. Sempre al-guém estará se dirigindo ou saindode uma edificação para outra. Mas énecessário que o trajeto ofereça condi-ções básicas para que, durante o iti-nerário, o objetivo seja alcançado como mínimo de segurança”.

O controle do uso, do parcelamento e daocupação dos espaços urbanos – objeto, pois,do Direito Urbanístico –, visam à tutela des-sas funções urbanísticas, mediante normasque se destinam a proporcionar, também,ao lado da funcionalidade, a segurança.

III – Crimes cometidos no ambienteurbano: tipologia segundo a teoria

das atividades rotineiras

1) Teoria das atividades rotineiras: explicaçãosocioambiental contemporânea da violência

O impacto das teorias ecológicas dosanos de 1930 e de 1940 (ecologia humana ecomportamentalismo) ensejou, no âmbito do

estudo da criminalidade, a teoria da oportu-nidade e a teoria das atividades rotineiras, quedestacam a influência do ambiente urbanona ocorrência de delitos.

Essas teorias têm sido desenvolvidaspor criminologistas contemporâneos. A teo-ria da oportunidade (“theory of consolidatedadvantages”) de Logan busca explicar aevolução das taxas de crimes por meio dascircunstâncias em que os crimes ocorrem.Complementarmente, e de forma mais deta-lhada, a teoria da atividade rotineira (“routineactivities”) de Cohen e Felson, objeto de es-tudo do presente item III, explica a relaçãoentre um ofensor motivado, um alvo disponívele a ausência de guardiões com os delitos urba-nos (STAHURA; SLOAN, 1988, p. 1.115).

Assim, a teoria social contemporâneapreocupa-se com aspectos de natureza ecoló-gica e ambiental, na determinação de fenô-menos sociais, tais como o da criminalidade.Haveria uma interdependência entre o ambi-ente urbano, as vítimas e os “predadores”.

Jacobs destaca que os ecossistemas ur-banos são compostos por processos físicos,econômicos e éticos, em que a diversidade ea interdependência cumpririam a função derevitalização e de controle. O problema dasegurança nas grandes cidades estaria di-retamente relacionado com o enfraqueci-mento dos mecanismos habituais de con-trole, exercidos, naturalmente, pelas pesso-as que vivem nos espaços urbanos (JACOBS,1961). De forma semelhante, no menciona-do trabalho, defende-se que tais mecanis-mos de controle são enfraquecidos pelo des-respeito às funções urbanísticas da cidade.

Das duas teorias complementares apre-sentadas, detalhar-se-á a teoria da ativida-de rotineira desenvolvida por Cohen eFelson, que comprova a importância dasfunções urbanísticas na garantia da segu-rança da cidade.

2) Pressupostos da teoria da atividaderotineira para a ocorrência de um delito urbano

A teoria da atividade rotineira (COHEN;FELSON, 1979) assinala a necessidade de

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três circunstâncias para que um crime (“atopredatório”) ocorra. É necessário, pois, quehaja uma convergência, no tempo e no es-paço, de três elementos: ofensor motivado (cri-minoso), que por alguma razão esteja pre-disposto a cometer um crime; alvo disponí-vel, objeto (crimes patrimoniais) ou pessoa(crimes contra a pessoa) que possam ser ata-cados; e a ausência de guardiões (comunida-de vigilante), que são capazes de prevenirviolações.

Trata-se de abordagem preocupada comas características ambientais em que ocor-rem os crimes, chamados atos predatórios,que mantém algumas ressonâncias com acriminologia mais tradicional, ao enfatizara motivação dos ofensores como o primeirodos elementos. A origem dessa motivação,entretanto, é deixada em aberto.

O segundo aspecto é que a ação predató-ria dirija-se contra “alvos” disponíveis, ouseja, pessoas ou objetos em dada posição notempo e no espaço vulneráveis ao agir doofensor. Aqui é destacada a vitimologia, nanoção de alvo disponível. Um alvo define-se como coisa ou pessoa que tem algum va-lor além de algumas propriedades que tor-nam adequada a ação predatória.

O terceiro aspecto, destacado por mui-tos governantes brasileiros como o maisimportante, vincula-se aos guardiões. Estesnão se referem apenas às organizações dosistema de justiça criminal (polícia repres-siva e preventiva, Ministério Público, Ma-gistratura) tal como concebido pela crimi-nologia mais tradicional. Destaca, princi-palmente, os mecanismos de controle socialinformais. Nas palavras de Clarke e Felson(1993, p. 3):

“Realmente, as pessoas mais aptaspara prevenir crimes não são os poli-ciais (que raramente estão por pertopara descobrir os crimes no ato), masantes os vizinhos, os amigos, os pa-rentes, os transeuntes ou o proprietá-rio do objeto visado. Note-se que aausência de um guardião adequado écrucial. Definir um elemento-chave

como ausência antes do que a presen-ça é claramente princípio fundamen-tal na despersonalização do estudo docrime. Certos tipos de pessoas sãomais prováveis de estar ausentes doque outras, mas o fato de uma ausên-cia ser enfatizada é mais um lembretede que o movimento das entidades fí-sicas no tempo e no espaço é centralpara esta abordagem”.

Destacando a necessária convergênciadesses três elementos, Cohen e Felson mos-tram, como características urbanas vincu-ladas, que as funções urbanísticas estão re-lacionadas à incidência de crimes. Dessemodo, o local de residência dos ofensores edas vítimas (função de residir), o relaciona-mento entre ofensores e vítimas (função decirculação, trabalho, residência e recreação),o local dos contatos entre a vítima e o ofen-sor, a idade das vítimas ou o número deadultos em uma casa (função de residir) e ohorário da ocorrência do crime constituemvariáveis relevantes para a pesquisa da cau-sa prática dos altos índices de criminalida-de em um determinado local. Exemplifican-do, o aumento de arrombamentos residen-ciais relacionar-se-ia a mudanças na estru-tura de empregos na sociedade (função detrabalho), de tal maneira que o aumento donúmero de pessoas (incluindo mulheres)que não se encontram diuturnamente noslares deixa-os à mercê de atividades preda-tórias.

A idéia simples e lógica de que ofenso-res e vítimas devem encontrar-se no tempo eno espaço deu origem a estudos de campoque almejam identificar as dinâmicas pelasquais os indivíduos proporcionam oportu-nidades para tornarem-se vítimas de crimes.Esse tipo de abordagem usa dados de pes-quisa centrados nas circunstâncias urbanasda vítima para compreender as diversasmaneiras pelas quais a alocação das fun-ções urbanísticas do trabalho, lazer, circu-lação e recreação influenciam as probabili-dades de ocorrência de atos predatórios noespaço urbano.

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3) Relação entre os espaços urbanos utilizadospelo cidadão (vítima) e as taxas de crimes

A abordagem da atividade rotineira tor-na a vítima (alvo disponível) e suas circuns-tâncias (estar próxima a um ofensor moti-vado e em ausência de guardiões) o objetode estudo por excelência, investigandocomo o estilo de vida do indivíduo e os es-paços urbanos públicos e privados por elefreqüentados influenciam na probabilida-de de vitimização.

Os fatores que mais influenciam a ocor-rência de delitos urbanos são: a exposição e aproximidade entre a vítima e o agressor (alvodisponível), a sua capacidade de proteção (es-paço urbano coletivo ou privado), os atrati-vos das vítimas (ofensor motivado e alvo dis-ponível) e a natureza dos delitos para os quaiso ofensor se encontra motivado.

A exposição é definida pela quantidadede tempo em que os indivíduos freqüentamlocais públicos, estabelecendo contatos einterações sociais. O estilo de vida de cadaindivíduo determina em que intensidade osdemais fatores estão presentes na vida. As-sim, determina em que medida de riscos osindivíduos se expõem ao freqüentar luga-res públicos.

A proximidade da vítima do agressor dizrespeito à freqüência dos contatos sociaisestabelecida entre ambos, o que depende dolocal de residência, das características soci-oeconômicas e dos atributos de idade e sexo,assim como da proximidade de interessesculturais. Indivíduos com a mesma idadecostumam freqüentar os mesmos ambientesnas atividades de lazer.

A capacidade de proteção está relacionadacom o estilo de vida das vítimas. Indivíduosque têm maior capacidade de resguardar-se, evitando contato com possíveis agresso-res, têm menor probabilidade de ser vitima-dos. Por exemplo, indivíduos que andam decarro, em vez de fazê-lo de ônibus, têm mai-or capacidade de proteção porque diminu-em a possibilidade de contato com os agres-sores. Do mesmo modo, aqueles que contra-

tam segurança privada diminuem a proba-bilidade de ser vítimas de crime.

As vítimas tornam-se ainda mais atrati-vas quando oferecem menor possibilidadede resistência ou proporcionam maior re-torno esperado do crime. Os indivíduos queoferecem menor possibilidade de resistên-cia9 provavelmente reagem com pouca in-tensidade, o que representa menor risco deaprisionamento para o agressor (segundoFoucalt (1987), a violência é caracterizadapela relação de forças desiguais, configu-rando, assim, uma relação de poder). Emoutras palavras, a violência é o ato de sub-jugação por forças de exploração e de domi-nação. Aqueles que proporcionam maiorretorno esperado do crime têm maior proba-bilidade de ser vitimados, uma vez que, porum mesmo risco de aprisionamento, o cri-minoso pode ganhar mais (trata-se de apli-cação utilitarista do princípio da busca damaior felicidade com a menor dor).

A natureza do delito é importante paradeterminar em que proporção cada fatorexposto acima influencia a probabilidadede vitimização.

IV – Políticas públicas protetivas dasfunções urbanísticas e minimizantes

dos delitos urbanos

1) O mapeamento da violência em BeloHorizonte: exemplo concreto de aplicação da

ecologia humana e da teoria da atividaderotineira no Brasil para prevenção de crimes

O Centro de Estudos de Criminalidade ede Segurança Pública (CRISP) é um órgãovoltado para a elaboração, acompanhamen-to da implementação e da avaliação críticade políticas públicas na área da justiça cri-minal. Ligado à Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG), o CRISP é compostopor pesquisadores dessa Universidade e deórgãos públicos envolvidos com o combate àcriminalidade. Constitui exemplo concreto, ebem sucedido, da aplicação da ecologia soci-al e da teoria da atividade rotineira no Brasil.

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A principal novidade do CRISP consistena introdução de modelo que combina doisingredientes: de um lado, pesquisa aplica-da, multidisciplinaridade e formação sóli-da em análise quantitativa de dados paraefeitos de planejamento e de avaliação; dooutro, uma articulação de diferentes insti-tuições e de órgãos públicos que lidam como problema da criminalidade e da violên-cia, sob a liderança de instituição universi-tária do mais alto prestígio acadêmico. Me-rece destaque a organização de dados pon-tuais de crimes na cidade de Belo Horizon-te, que se constituiu em iniciativa inédita noBrasil e que se tornou referência em análi-ses espaciais da criminalidade e no mapea-mento de crimes.

O primeiro passo nessa abordagem é oreconhecimento de que é necessário ir alémda simples localização dos endereços deocorrências, para considerar o contexto so-cioeconômico em que o crime ocorre, a dis-ponibilidade de alvos para a ação crimino-sa e a ausência de mecanismos de controle(elementos teóricos obtidos da teoria da ati-vidade rotineira).

Embora o CRISP tenha pouco tempo deexistência, já produziu resultados impor-tantes. A partir do mapeamento das ocor-rências de assaltos a táxi, foi possível iden-tificar áreas críticas de incidência desse cri-me. Montou-se estratégia de ação que en-volveu os motoristas e a polícia, com postosde interceptação e de apreensão de armasnessas áreas. O resultado foi a queda de 34%em assaltos, em 2001, por comparação com2000. O Centro está ainda envolvido em pro-jetos de mapeamento detalhado da violên-cia em BH, sempre buscando relacionar de-litos com condicionantes sociais.10

Outro exemplo reporta-se à pesquisamais ampla sobre crimes urbanos, realiza-da em Belo Horizonte, em 2002 e detalhadana Revista Brasileira de Ciências Sociais. Osdados utilizados nesse trabalho provêm daPesquisa de Vitimização realizada peloCentro de Estudos em Criminalidade e Se-gurança Pública (Crisp) entre fevereiro e

março de 2002. Esse tipo de pesquisa con-tém informações sobre os acontecimentoscriminais sofridos pelos indivíduos, sobrea quantidade e o tipo de perda incorrida eas características dos criminosos. Além dis-so, engloba informações sobre as caracterís-ticas socioeconômicas, sobre os hábitos esobre as características de residência e vizi-nhança dos indivíduos (BEATO FILHO;PEIXOTO; ANDRADE, 2004).

A pesquisa de vitimização, realizada emBelo Horizonte, considerou as seguintescategorias de crime: furtos (ato de apropria-ção de bens alheios sem que a vítima perce-ba a apropriação na hora da efetivação doato); roubos (ato de apropriação de bensalheios em que a vítima percebe a apropria-ção na hora da efetivação do ato); tentativade roubo (quando o indivíduo é vítima deroubo, mas consegue evitar a consumaçãodo mesmo); furtos em residência (ato de apro-priação de bens alheios que estejam dentroda residência da vítima, estando ela presen-te ou não); tentativa de furto em residência(quando o indivíduo é vítima de furto naresidência, que, por algum motivo, não con-segue ser efetivado); agressão (ato de feriroutrem com ou sem uso de armas); tentativade agressão (quando o indivíduo é vítimade agressão, mas não é ferido) (BEATOFILHO; PEIXOTO; ANDRADE, 2004, p. 55).

Observou-se, após a coleta e a análisedos dados, a comprovação da teoria das ati-vidades rotineiras, pois verificou-se a corre-lação dos dados colhidos com a noção deofensor motivado, alvo disponível e ausên-cia de guardiões, já que se constatou que:

1. A incidência de vítimas na amostravaria bastante conforme o tipo de crime con-siderado.

2. Com relação à idade, o grupo de 13 a24 anos é o de maior incidência tanto defurto como de roubo. Isso pode estar aconte-cendo devido aos fatores “exposição”, “me-nor capacidade de proteção” e “proximida-de entre vítima e agressor”. Indivíduos maisjovens, em sua maioria, são solteiros, fre-qüentam mais lugares públicos sem se pre-

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ocupar com a própria proteção. A propor-ção de agredidos na amostra vai diminuin-do à medida que são consideradas faixasetárias mais elevadas.

3. Indivíduos que trabalham são vítimaspreferenciais de todos os tipos de crime. Nocaso de roubo e de furto, uma possível expli-cação é o fato de serem mais atrativos, poisproporcionam maior retorno esperado docrime. No caso de agressão, a explicação poderesidir no fato de estarem mais expostos, umavez que transitam mais em locais públicos emantêm maior proximidade com possíveisagressores, pois o círculo social é maior.

4. Os furtos e os roubos incidem mais emindivíduos com nível superior e nos três gru-pos de renda familiar mais elevada, mos-trando a importância do fator atratividade.

5. Com relação aos hábitos, indivíduosque andam de coletivo, sobretudo à noite,apresentam-se como mais prováveis vítimasde todos os tipos de crime. Em coletivos, osindivíduos têm menor capacidade de prote-ção se comparados aos que circulam de car-ro, uma vez que estes têm menor contato comdesconhecidos e, ao mesmo tempo, estãomais protegidos no interior de seus veícu-los (BEATO FILHO; PEIXOTO; ANDRADE,2004, p. 78-81).

Assim, as pesquisas realizadas em BeloHorizonte pelo CRISP comprovam a eficá-cia da análise empírica de dados criminoló-gicos feita à luz da teoria da atividade roti-neira na realidade citadina brasileira.

Além disso, destaca a correlação sistê-mica entre a deficiência da estrutura muni-cipal urbana e as taxas de violência presen-tes naquele local. Portanto, lutar por cida-des planejadas por meio da gestão demo-crática garantidora das funções urbanísti-cas vincula-se ao sucesso do combate à vio-lência urbana.

2) O planejamento urbano comopolítica pública eficaz no combate à

criminalidade urbana

O fenômeno da violência requer posturaampla na realização dos diagnósticos e a

implementação de políticas públicas inter-setorializadas. Conforme já demonstrado, acriminalidade é inseparável da problemáti-ca urbana, o que confirma a necessidade deconhecerem-se, em detalhes, os reflexos dacrise econômica na sociedade e no cotidia-no das pessoas. Os assentamentos huma-nos, feitos sem respeito às relações entre aspessoas, geram violência e criminalidade.Assim, o conhecimento científico e tecnoló-gico deve constituir o suporte para maioreficiência no combate à criminalidade e àviolência.

O planejamento urbano é fundamentalna elaboração do planejamento estratégicodas atividades de uma cidade, instrumen-talizando a segurança como direito social,individual e coletivo. O combate à violên-cia, assim como o planejamento da cidade,deve envolver políticas de setores distin-tos como educação, saúde, lazer, ilumina-ção pública, trabalho e moradia, sendo os úl-timos diretamente vinculados às funções ur-banísticas.

Há que ressaltar que a inexistência deplanejamento urbano dificulta e torna inefi-ciente o combate à violência.

Por outro lado, dados empíricos, colhi-dos na cidade de Belo Horizonte, impõem abusca de novo modelo de gestão, que passapela inversão de prioridades, enfatizando-se gastos sociais e de infra-estrutura nasperiferias (zonas mais sujeitas à violência,entre outras razões, pela maior concentra-ção de ofensores motivados e pela ausênciade guardiões), em oposição às grandes obrascentrais e viárias, e o engajamento popularno processo de decisão do poder instituído.São esses os dois grandes pilares da gestãodemocrática participativa.

A noção de ausência de guardiões nasgrandes cidades enseja a participação po-pular prevista na Constituição Federal econcretizada no Estatuto da Cidade. É o quevem sendo chamado de processo de radica-lização do sistema democrático, pelo apro-fundamento dos espaços de co-gestão entregoverno e comunidades locais para viabili-

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zar a concretização do direito à cidade se-gura (DANIEL, 2001, p. 522).

A partir da Constituição de 1988, as ci-dades foram alçadas, por meio do status,concedido aos municípios, de ente federati-vo, a centro das políticas públicas de quali-dade de vida dos cidadãos. Nesse aspecto,o Governo Federal criou o Ministério dasCidades para coordenar e para agilizar aimplantação dos planos diretores munici-pais previstos na Constituição Federal.

O Capítulo IV do Estatuto da Cidade traza garantia da participação popular na ges-tão urbana como a operacionalização denovo ordenamento jurídico-urbanístico.Trata-se de normas de processo político-administrativo que informam o “modo con-creto de formulação da política urbana e daincidência dos dispositivos tratados noscapítulos anteriores, para o que se exigesempre a necessária participação popular”(BUCCI, 2002, p. 333).

Visando à concretização dessa diretrizconstitucional, o Ministério das Cidades, pormeio da Secretaria Nacional de ProgramasUrbanos, lançou diretivas para implemen-tação do Plano Diretor Participativo. Talpolítica pública servirá para orientar os go-vernos municipais e a sociedade na cons-trução dos planos diretores já que, de acordocom o Estatuto das Cidades, os municípioscom mais de 20 mil habitantes têm, até ou-tubro de 2006, que elaborar ou que atuali-zar os planos diretores. 

3) O lazer e a recreação: exemplo de respeito àfunção urbanística eficaz no combate à

violência urbana sofrida e praticada por jovens

Sistema de lazer é sinônimo de sistemade recreio, traduzindo a idéia de espaçopúblico reservado ao lazer ou a recreação,modalidade de direito social tutelado pelaConstituição Federal (art. 6o), que, na liçãode José Afonso da Silva (1997, p. 248), expri-me uma necessidade urbana. Para ele, lazere recreação são funções urbanísticas; daí,são manifestações do direito urbanístico.Acrescenta que o lazer e a recreação reque-

rem lugares apropriados, tais como jardins,parques, praças de esportes, praias, e aí tam-bém entram as áreas verdes.

Uma política de esporte e de lazer quemobilize grupos tradicionalmente em risco(risco de tornar-se vítima – alvo disponível– ou ator da violência – ofensor motivado)previne atos predatórios ocorridos na cida-de. É conveniente destacar que os jovens declasses populares, se comparados a outrosestratos da sociedade, são dos grupos maisatingidos por esses fenômenos. Vários estu-dos demonstram que a precariedade dosserviços públicos e das condições de vida, afalta de oportunidades, de emprego e de la-zer e as restritas perspectivas de mobilida-de social contribuem como potenciais moti-vadores de ações violentas para esse con-texto. Assim, tendo em vista a situação emque vivem os jovens de camadas populares,as esferas convencionais de sociabilidadejá não oferecem respostas suficientes parapreencher as expectativas desses jovens.Nos vazios deixados por elas, constitui-seoutra esfera ou outra dimensão de sociabili-dade cujas marcas principais são as trans-gressões.

A omissão estatal no campo do lazerimplica o agir favorável à violência. A forma-ção de gangues/galeras dá-se, em sua maio-ria, nos espaços onde a sociedade não temrespostas efetivas, por parte do poder públi-co, para as demandas e as necessidades.

Esse não cumprimento de atribuiçõesforça o Estado a aceitar novo tipo de “or-dem” imposta, de maneira geral, pelo crimee pela violência. No livro Gangues, Galeras,Chegados e Rappers (ABRAMOVAY;WAISEFISZ; ANDRADE, 1999), discute-se,também, que o “lazer negativo” contribui,efetivamente, para o aumento da violência,inclusive no Distrito Federal. Consideran-do a hipótese de existência de gangues, pro-põe-se o conhecimento de quem são os jo-vens que delas fazem parte bem como dasua representação/percepção sobre temastais como violência, família, trabalho, edu-cação, consumo, drogas, cidadania, futuro.

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A relevância desse trabalho situa-se nos nú-meros, que demonstram a altíssima incidên-cia de violência entre a juventude, princi-palmente nos grandes centros urbanos.

Nesse sentido, almeja-se discutir a rela-ção entre a violência (sofrida e praticada porjovens) e a condição de desrespeito às fun-ções urbanísticas do local em que os jovensse encontram. Esse desrespeito é oriundo dadisponibilidade de recursos (materiais ousimbólicos) dos atores e do acesso à estrutu-ra de oportunidades sociais, econômicas eculturais que provêm do Estado, do merca-do e da sociedade civil; vincula-se, pois, aaspectos da política social do Estado.

Por meio da pesquisa Cultivando Vidas,Desarmando Violências, a UNESCO acompa-nhou, por meio de complexa rede de pes-quisas e de avaliações, programas realiza-dos por governos locais, ONGs e outras en-tidades da sociedade civil em 10 estadosbrasileiros (que desenvolveram atividadescolaborativas no combate à violência e àconstrução de uma cultura pela paz, recor-rendo ao lazer com e para jovens em comu-nidades sujeitas a vulnerabilidades sociais,econômicas e sociais).11

A pesquisa concluiu que, por meio doestímulo ao lazer, foram criados espaçosalternativos de estímulo à criatividade, àparticipação, à auto-estima e à formaçãoartístico-cultural, oferecendo alternativas deocupação do tempo, contribuindo para acen-tuada crítica à cultura e à prática de violên-cia. Em outras palavras, de acordo com aanálise da teoria das atividades rotineiras,diminuiu-se a incidência do “ofensor moti-vado” e do “alvo disponível”.

4) Garantia de trabalho e de moradia digna:políticas públicas sociais eficazes para o

combate da violência

Um outro nível de prevenção, tambémvinculado ao capital social12 de uma comuni-dade, é a realizada por meio da geração deemprego e de renda para os jovens e adul-tos, bem como pela garantia de moradia dig-na à população.

Nessa fase, a responsabilidade pela pre-venção depende principalmente do PoderPúblico: Federal, Estadual e Municipal, compolíticas públicas de geração de emprego ede construção de moradias, pois somenteassim o cidadão vai sentir-se valorizado esua auto-estima fará com que ele não tenhamotivação para a prática de atos ilícitos(“ofensor motivado”).

O desemprego é fonte de violência urba-na. Pesquisa realizada em 2004 pela Secre-taria de Segurança Pública do Estado de SãoPaulo indica que a estagnação econômicatem impacto direto no aumento da crimina-lidade. O estudo foi feito no município deSão Paulo, analisando 33 tipos de ocorrên-cias policiais mais freqüentes. Acentuadaporção delas acompanha, quase mês a mês,a variação nas taxas de desemprego e asquedas no padrão de renda do brasileiro.De 2001 a 2003, o ganho médio dos paulis-tanos caiu 18,8% e a oferta de trabalho 22%,enquanto, nas ruas, furtos e roubos a tran-seuntes aumentaram quase na mesma pro-porção (23%). “Ao cruzar dados socioeco-nômicos e criminais, foi possível provar quea extrema necessidade pode ser incentivoao crime’’, diz o professor Leandro PiquetCarneiro da Faculdade de Ciências Políti-cas da Universidade de São Paulo (USP),um dos cinco pesquisadores responsáveispelo estudo. Como exemplo disso, observa-se que, nos bairros com poder aquisitivomaior, o índice de violência é menor. GeorgSimmel (1858-1918) já havia destacado, em1900, no artigo “A metrópole e a vida men-tal”, que a vida urbana excita os nervos, in-tensifica as áreas de atrito entre os morado-res da cidade, por meio da proximidade doconvívio, pelo anonimato e pela indiferen-ça (SIMMEL, 1973, p. 11-25).

A pesquisa também revelou que o graude violência dos delitos pode variar de acor-do com o nível de desespero econômico dequem os pratica. Os furtos, que não envol-vem ameaça ou agressão direta às vítimas,têm relação mais direta com a queda na ren-da da população. “São crimes furtivos, em

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que a ocasião e o risco são mais bem contro-lados pelo autor, que minimiza o risco’’, dizPiquet. ‘’Entre os que tiveram uma queda derenda, o crime mais comum são pequenosfurtos no local de trabalho ou na rua’’, ex-plica. Eles costumam ser praticados por pes-soas com menor propensão à violência, vin-das de ambientes sociais mais estruturados,ou por adultos que não querem correr o ris-co de ser pegos pela polícia.13

É necessária a adoção de políticas sériasno campo do desenvolvimento econômico,para a geração de empregos e de habitação,buscando-se evitar o aumento da criminali-dade.

O Estado democrático de direito pressu-põe políticas públicas garantidoras das fun-ções urbanísticas. A violência nasce da fal-ta de esperança ou de perspectiva de vidamelhor. A falta de trabalho, de moradia e delazer geram vazio no coração, o que permitea instauração da violência. O ofensor podeser motivado pela falta de esperança de diasmelhores. Há, pois, correlação entre a Or-dem Urbanística e a criminalidade.

Conclusão

Na identificação das causas endógenas (iden-tificáveis por meio da “ecologia humana” edo comportamentalismo) da violência urba-na e na busca de soluções para esse problema,o respeito às funções urbanísticas da cida-de tem papel de destaque, consoante a dire-triz pública constitucional de planificaçãodas cidades para garantia do bem-estar deseus habitantes (art. 182 da ConstituiçãoFederal).

A falta de estrutura urbana municipalcontribui para a existência e para o aumen-to da violência urbana. A teoria da ativida-de rotineira destaca a relação entre as taxasde crimes e as circunstâncias em que estesocorrem. Estudos realizados, no Brasil e noExterior, comprovam, empiricamente, que aocorrência de um crime vincula-se à con-vergência espacial e temporal de um ofen-sor motivado, de um alvo disponível e da

ausência de guardiões. Tais elementos ten-dem a não ocorrer em cidades planejadasque garantam o pleno exercício das funçõesurbanísticas.

A garantia da recreação e do lazer nascidades diminui as tensões sociais, dificul-tando o surgimento de ofensores motivadosao cometimento de delitos.

O trabalho e a moradia seguros ensejama inexistência de alvos disponíveis, na me-dida em que amparam o exercício das ativi-dades basilares da cidade, evitando situa-ções de risco que tendem a aumentar a inci-dência dos crimes.

Exemplificando, a necessidade de parti-cipação popular na gestão da cidade, pre-vista na Constituição Federal e concretiza-da no Estatuto da Cidade, propicia a pre-sença de guardiões nas grandes cidades, namedida em que conscientiza a populaçãoquanto aos problemas existentes em suacomunidade, o que minimiza a ocorrênciade infrações relevantes para o Direito Penale a qualidade de vida citadina.

Assim, o combate à violência pode serrealizado por meio de políticas públicasgarantidoras da dignidade da pessoa hu-mana, nos termos da diretriz constitucionalde garantia das funções urbanísticas. Pro-tejam-se as funções urbanísticas de umacomunidade urbana para que sejam prote-gidos os seus habitantes!

Notas

1 Por outro lado, Le Goff (1998, p. 26) assinalaque: “Em 1300, menos de 20% da população doOcidente reside em cidades e a maior aglomeração é,de longe, Paris, com... 200 mil habitantes, não mais”.

2 As primeiras cidades surgiram há aproxima-damente 3.500 anos antes de Cristo, nos vales dasbacias do Rio Nilo (Egito), dos Rios Tigre e Eufrates(atual Iraque). As cidades nas sociedades da Anti-guidade eram bem menores que as atuais. A Babi-lônia, por exemplo, possuía área de 3 milhas qua-dradas e a população de aproximadamente 15.000pessoas. Roma, à época do Imperador Augusto,no primeiro século antes de Cristo, possuía em tor-no de 300.000 habitantes (GIDDENS, 1999, p. 467).

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3 “Conhecida (...) pelo seu nome mundial,behaviorism , essa tem sido a escola de pensamentopredominante na PSICOLOGIA acadêmica (...)William James supunha que a psicologia estudavaos eventos mentais por meio da introspecção. Esseprocesso era notoriamente destituído de fidedigni-dade, faltando-lhe os meios de replicar as desco-bertas relatadas (...) B.F. Skinner tornou popularuma imagem do comportamentalismo como recei-ta para resolver as ansiedades individuais e os malesdo mundo” (LOUCH, 1996, p. 108-109.)

4 “Um número de pesquisadores associados àUniversidade de Chicago no período de 1920 a 1940,especialmente Robert Park, Ernest Burguess e LouisWirth, desenvolveram idéias que por muito tempoinfluenciaram a teoria e a pesquisa da sociologiaurbana” (GIDDENS, 1999, p. 470). “Essa analogiaentre a ecologia vegetal e animal e a dimensão nãointencional de vida social humana foi mais plena-mente desenvolvida e aplicada no campo da socio-logia urbana, em que Park e Burgess analisaram osefeitos da competição por recursos escassos entreindivíduos e grupos” (BENTON, 1996, p. 226).

5 Deve-se destacar que a violência é fenômenocomplexo, constituído por vários elementos em in-teração. Na presente monografia, foi dada ênfase àquestão da violência sob a ótica da filosofia dopragmatismo (a qual vincula-se a Escola de Chica-go e o Comportamentalismo) que visa por meio deconhecimento científico amparar soluções para po-líticas públicas.

6 Em sentido oposto há outros estudos da pri-matologia que contrariam as conclusões da “gaiolacomportamental”. Em 1971, B. Alexander, do Ore-gon Regional Primate Research Center, descreveubrigas ferozes e até mortais entre macacos japone-ses, quando os animais previamente mantidos emcativeiro eram libertados num espaço 73 vezesmaior (ALEXANDER, 1970, p. 270-285).

7 As idéias de Lombroso sustentaram um mo-mento de rompimento de paradigmas no DireitoPenal e o surgimento da fase científica da Crimino-logia. Lombroso e os adeptos da Escola Positiva deDireito Penal rebateram a tese da Escola Clássicada responsabilidade penal lastreada no livre-arbítrio. Com o despontar da filosofia positivista eo florescimento dos estudos biológicos e sociológi-cos, nasce a escola positiva. Essa escola, produtodo naturalismo, sofreu influência da doutrina evo-lucionista (Darwin, Lamarck); sociológica (Comte,Spencer, Ardig e Wundt) e frenológica (Gall)(PRADO, 1999, p. 47).

8 Outra versão moderna de teoria sociológicade cunho ecológico, é dada por Merton, que afirmaque a sociedade capitalista constantemente pro-põem metas de “sucesso” (dinheiro, sucesso, patri-mônio, automóveis, roupas etc), sem no entanto ofe-recer a todas as pessoas os mesmos meios de alcan-

çar tais metas. A desigualdade entre meios e metasgera a violência. O espaço existente entre os meiosque a sociedade dá a alguns (classes favorecidas) eas metas ideais, que sugere para todos, é preenchidopela conduta agressiva, que, assim, busca alcançaras metas por mecanismos não convencionais.

9 Esta noção encontra-se na política criminaladotada na cidade de Nova Iorque intitulada “to-lerância zero” e que teria sido “importada” paraalgumas cidades brasileiras, tal qual Brasília. Aestratégia, implantada pelo então prefeito RudolphGiuliani, era não ignorar os pequenos crimes do diaa dia – pichações ou desordem, por exemplo – paracriar um ambiente de ordem na cidade e, assim,evitar que pequenos problemas se transformassemem grandes crises.Os defensores da tese dizem que,se uma janela for quebrada em uma rua e nada forfeito a respeito disso, alguns jovens podem come-çar a achar que têm carta branca para quebrar ou-tras janelas e cometer pequenos atos devandalismo.Com o tempo, o bairro ganharia famade decadente e perigosos. Os cidadãos amedronta-dos ficariam longe da área e os criminosos ganhari-am uma base para suas operações. Para os parti-dários do Tolerância Zero, a solução é resolver ospequenos problemas da comunidade antes que elesse tornem grandes.

10 CENTRO DE ESTUDOS DE CRIMINALIDA-DE E DE SEGURANÇA PÚBLICA (CRISP). Infor-mações colhidas no site http://www.crisp.ufmg.br/intro.htm. Acesso em 15 de fev. 2005.

11 Desde 1997, a UNESCO-Brasil iniciou sériede pesquisas centradas nos temas de juventude,violência e cidadania. Alguns dos livros que resul-taram dessas pesquisas são os seguintes: Culti-vando Vidas, Desarmando Violências – Experiên-cias em Educação, Cultura, Lazer, Esporte e Cida-dania com Jovens em Situação de Pobreza (2001),Juventude, Violência e Vulnerabilidade Social naAmérica Latina: Desafios para Políticas Públicas(2002) e Escolas de paz (2001).

12 “O conceito de capital social convida-nos aexplorar a infra-estrutura da sociedade civil e su-gere que com sua análise se possam encontrar ex-plicações do porque algumas localidades ou insti-tuições apresentam maior vitalidade e eficiência nocombate à exclusão social e à violência do que ou-tras” (ABRAMOVAY; PINHEIRO, 2003, p. 4).

13 Cf. CRIME E DESEMPREGO, 2004, p. 20.

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Paulo Tadeu Rodrigues Rosa

1. IntroduçãoO art. 98, I, da Constituição Federal pre-

ceitua que “a União, no Distrito Federal enos Territórios, e o Estado criarão: I- juiza-dos especiais, providos por juízes togados,ou togados e leigos, competentes para a con-ciliação, o julgamento e a execução de cau-sas cíveis de menor complexidade e infra-ções penais de menor potencial ofensivo, me-diante os procedimentos oral e sumaríssi-mo, permitidos, nas hipóteses previstas emlei, a transação e o julgamento de recursospor turmas de juízes de primeiro grau”.

Em atendimento às disposições do textoconstitucional, foi promulgada a Lei Federalno 9.099, de 26 de setembro de 1995, que so-mente entrou em vigor 60 dias após a suapublicação, ou seja, no dia 27 de novembrode 1995, revogando as Leis Federais n o 4.611,de 2 de abril de 1995, e no 7.244, de 7 denovembro de 1984.

A Lei dos Juizados Especiais Criminaistrouxe, como bem observa Damásio E. deJesus (1995), inúmeros avanços ao DireitoPenal Clássico, que se encontra em plenaconcordata com presídios superlotados, semqualquer infra-estrutura ou condições paradar cumprimento ao disposto na Lei de Exe-cução Penal.

Aplicação da Lei Federal dos JuizadosEspeciais Criminais na Justiça MilitarEstadual e Federal

Paulo Tadeu Rodrigues Rosa é Juiz de Di-reito da Justiça Militar do Estado de Minas Ge-rais, Mestre em Direito pela UNESP e MembroFundador da Academia Mineira de DireitoMilitar.

Sumário1. Introdução. 2. Disposições da Lei no 9.099/

95. 3. Justiça Militar e Lei Federal no 9.099/95.4. Posição jurisprudencial.

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Seguindo as modernas tendências do Di-reito que foram expostas e discutidas no 9o

Congresso das Nações Unidas, realizado noCairo (Egito), sobre a Prevenção do Crime eTratamento do Delinqüente, o Sistema Cri-minal e as Penas Alternativas, a Lei dos Jui-zados Especiais Criminais criou institutosque permitem a autocomposição entre a ví-tima e o acusado, tendo como base a repara-ção dos danos civis sofridos, a possibilida-de de transação entre acusado e o Ministé-rio Público, a disponibilidade da ação pe-nal e a suspensão condicional do processo(JESUS, 1995).

No momento em que o Brasil vem sendoinfluenciado pelas correntes defensoras domovimento de “Lei e Ordem”, que acredi-tam que a criminalidade pode ser controla-da por meio da edição de leis especiaisfederais que cominem penas mais severas eda supressão das garantias constitucionais,com institutos confusos, a Lei Federal no

9.099/95 demonstra que existem outras for-mas de se combater a criminalidade e imporsanções ao cidadão, seja ele civil ou militar,sem retirar a sua dignidade e desrespeitar aCarta Política1.

2. Disposições da Lei no 9.099/95

O artigo 88 da Lei Federal no 9.099/95disciplina que: “Além das hipóteses do Có-digo Penal e da legislação especial, depen-derá de representação a ação penal relativaaos crimes de lesões corporais leves e lesõesculposas”.

Conforme disposição do artigo 95 da Lei,os Estados, o Distrito Federal e Territóriosterão o prazo de seis meses, a contar da vi-gência da Lei, para criarem e instalarem osJuizados Especiais Cíveis e Criminais.

O fato de os Estados, Distrito Federal eTerritórios terem o prazo de seis meses paracriarem e instalarem os Juizados EspeciaisCriminais não impede que os institutos denatureza processual previstos na Lei sejamaplicados de plano ao final de sua vacatiolegis2.

A respeito do assunto, Damásio E. deJesus (1995, p. 31) preleciona que “o juízocomum pode aplicar imediatamente, a par-tir de 27 de novembro de 1995, a exigênciade representação nos crimes de lesão corpo-ral dolosa leve e lesão corporal culposa (ar-tigo 88 da Lei 9.099/95). O mesmo ocorre notocante aos institutos da composição civilpela reparação do dano (artigo 74) e da tran-sação (artigo 76), enquanto não foram cria-dos os Juizados Especiais Criminais”.

Assim, os institutos de natureza proces-sual previstos na Lei Federal desde o ad-vento da Lei tiveram aplicação imediatapelos juízes das Varas Criminais e das Au-ditorias Judiciárias Militares, pertencentesà União ou aos Estados-membros.

3. Justiça Militar e Lei Federalno 9.099/95

A lei ordinária que criou os Juizados Es-peciais Criminais é uma lei federal que veioem atendimento a expressa disposição pre-vista na CF, devendo ser observada e res-peitada em relação aos institutos ali previs-tos. Nesse sentido, surge a seguinte indaga-ção: a Lei Federal no 9.099/95 é aplicável aoDireito Penal Militar?

No entender de Jorge Alberto Romeiro(1994, p. 40), “o direito penal militar é umdireito especial, porque a maioria de suasnormas, diversamente das de direito penalcomum, destinadas a todos os cidadãos, seaplicam exclusivamente aos militares, quetêm especiais deveres para com o Estado,indispensáveis à sua defesa armada e à exis-tência de suas instituições militares”.

Na lição de Grispigni (apud ROMEIRO,1994, p. 6), “o Direito Penal Militar é umaespecialização, um complemento do direitocomum, apresentando um corpo autônomode princípios, com espírito e diretrizes pró-prias”. A especialidade da Justiça Castren-se a princípio não impede a aplicação daLei dos Juizados Especiais, uma vez que estaou a Constituição Federal em nenhum mo-mento fizeram restrições aos delitos capitu-

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lados no Código Penal Militar (CPM). As-sim, não cabe ao intérprete infraconstituci-onal, como ensina Michel Temer (1990) emsua obra Elementos de Direito Constitucio-nal, dar à norma uma valoração que não foiatribuída pelo seu elaborador, que é o legis-lador.

A Lei, como observa Damásio E. de Jesus(1995, p. 40-41), impede a sua aplicação aoscrimes que possuem rito especial, como abu-so de autoridade, a propriedade industrial,de responsabilidade própria de funcioná-rio público, contra a honra, tóxicos, de im-prensa, que serão processados e julgadospela Justiça Comum.

Portanto, com fundamento em preceden-tes do Supremo Tribunal Federal e nos prin-cípios constitucionais que foram estabeleci-dos na Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar que, a princípio, a Lei Federal no

9.099/95 se aplica na Justiça Militar, Esta-dual ou Federal.

4. Posição jurisprudencial

O Superior Tribunal Militar, desde o ad-vento da Lei Federal no 9.099/95, colocou-se contrário à aplicação dos Institutos daLei dos Juizados Criminais na Justiça Mili-tar da União. A respeito do assunto, foi in-clusive expedida súmula por aquela Tribu-na Superior, no intuito de pacificar a maté-ria.

O Supremo Tribunal Federal, até o ad-vento do art. 90-A, que proibiu expressamen-te a aplicação da Lei dos Juizados Crimi-nais na Justiça Militar, entendia que erapossível a aplicação da Lei no 9.099/95 naJustiça Militar, Estadual ou Federal, e pordiversas vezes, em sede de habeas corpus,modificou as decisões proferidas pelo Su-perior Tribunal Militar e pelos TribunaisMilitares Estaduais, com sede em São Paulo,Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

Após o advento do art. 90-A, o SupremoTribunal Federal continuou mantendo o seuentendimento a respeito da aplicação da Leidos Juizados Especiais na Justiça Militar,

observando que a lei federal que proibiu aaplicação dos institutos na Justiça Militarnão poderia retroagir aos fatos ocorridosantes de sua vigência.

O entendimento do Supremo TribunalFederal tem como fundamento o princípiosegundo o qual a lei penal somente retroagepara beneficiar o réu e nunca para prejudi-car. Esse princípio tem efetiva aplicação tan-to no direito penal como no direito penalmilitar.

Os Tribunais de Justiça Militar, com oadvento da lei federal que introduziu o art.90-A na Lei Federal no 9.099/95, passarama entender que os benefícios previstos naLei dos Juizados Especiais não poderiammais ser aplicados na Justiça Militar Esta-dual em razão da especialidade do direitopenal militar.

5. Considerações finais

A aplicação ou não da Lei no 9.099/95,denominada de Lei dos Juizados EspeciaisCriminais, na Justiça Militar, Estadual ouFederal é uma matéria controvertida, exis-tindo a respeito do assunto basicamentequatro correntes.

A primeira corrente, que vem sendo ado-tada pelo Superior Tribunal Militar – STM,entende que a Lei n o 9.099/95 em nenhumahipótese poderá ser aplicada na Justiça Mi-litar independentemente da natureza do cri-me, militar próprio ou impróprio. O DireitoPenal Militar é um ramo autônomo do Di-reito com seus próprios princípios e funda-mentos, que foram recepcionados pela Cons-tituição Federal de 1988.

A segunda corrente entende que a Lei no

9.099/95 pode ser aplicada na Justiça Mili-tar, uma vez que a lei não fez nenhuma ex-ceção e o direito penal militar também seencontra sujeito aos mesmos princípios es-tabelecidos na Constituição Federal.

Uma terceira corrente, que vem ganhan-do força, entende que os crimes militarespróprios não podem e não devem ficar su-jeitos aos princípios estabelecidos na Lei dos

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Juizados Especiais Criminais, mas, no casodos crimes militares impróprios, como porexemplo, o crime de lesão corporal, viola-ção de domicílio, entre outros, é possível aaplicação da lei federal.

A quarta corrente, que também vem ga-nhando força, entende que a aplicação ounão da Lei no 9.099/95 depende do casoconcreto praticado por militar, se este pre-enche os requisitos objetivos e subjetivos es-tabelecidos na lei e se a medida a ser aplica-da servirá de reprovação ao ato praticado.

Além disso, para a concessão dos bene-fícios estabelecidos na Lei, deve-se analisarainda se houve ou não violação aos princí-pios de hierarquia e disciplina, que são osfundamentos das organizações militares, es-taduais ou federais.

No tocante ao art. 90-A, existem entendi-mentos de que esse dispositivo seria incons-titucional. O STF, no controle difuso de cons-titucionalidade, quando da análise de umrecurso extraordinário, manifestou-se nosentido de que o artigo seria constitucional,ou seja, que a Lei Federal dos Juizados Es-peciais Criminais não poderia ser aplicadana Justiça Militar. No controle concentrado,não existe nenhuma decisão do PretórioExcelso a respeito da matéria.

Pode-se afirmar que, enquanto a matérianão for sumulada em conformidade com anova sistemática adotada pela ConstituiçãoFederal de 1988 com base na Emenda Cons-titucional no 45/2004, caberá ao Juiz de Di-

Referências

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TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

Notas1 O Direito Penal Militar é um ramo autônomo

do Direito, com princípios e regras que se aplicamaos militares federais ou estaduais. Não se podeesquecer que o direito penal militar também é regi-do pelos princípios estabelecidos na Carta de 1988e nos Tratados Internacionais que foram subscritospelo Brasil, como a Convenção Americana de Direi-tos Humanos.

2 Apesar do prazo estabelecido na Lei Federal,muitos Estados-membros, como por exemplo SãoPaulo, não criaram os Juizados Especiais Crimi-nais. Nos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro,os Juizados Especiais Criminais há muito temposão uma realidade.

reito da Justiça Militar Estadual, e ao Juiz-Auditor da Justiça Militar da União, anali-sar no caso concreto se é possível ou não aaplicação dos institutos estabelecidos na Leino 9.099/95, desde que preenchidos os re-quisitos objetivos e subjetivos, e que os prin-cípios de hierarquia e disciplina sejam efe-tivamente preservados.

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1. Construindo uma propriedade-funçãoO Código Civil de 2002 preconiza que

“o direito de propriedade deve ser exercidoem consonância com as suas finalidadeseconômicas e sociais e de modo que sejampreservados, de conformidade com o estabe-lecido em lei especial, a flora, a fauna, as bele-zas naturais, o equilíbrio ecológico e o patri-mônio histórico e artístico, bem como evitadaa poluição do ar e das águas” (art. 1.228, § 1 o).

De tal modo, o Código Civil, ao disporsobre o direito de propriedade, admite anoção de propriedade-função, ao reconhecerque o direito deve ser exercido de acordocom suas finalidades econômicas, sociais eecológicas. Abre-se, destarte, a perspectivade renovação do próprio conceito de pro-priedade, tarefa que não é fácil, diante deum instituto que tem, por trás de si, séculosde história.

O princípio da função social da proprie-dade (Constituição de 1988, arts. 5o, XXIII,170, III, 182, § 2o, e 186) é o ponto de partidapara a construção atual do Direito das Coi-sas, disciplina que, como se tem percebido,é possivelmente a área mais sensível do di-

A renovação do direito de propriedade

Leonardo Mattietto

Leonardo Mattietto é Doutor em Direito Ci-vil pela Universidade do Estado do Rio de Ja-neiro, Procurador do Estado do Rio de Janeiro.

Sumário1. Construindo uma propriedade-função. 2.

O renascimento da questão proprietária. 3. Odiscurso em torno da propriedade e o ensinojurídico. 4. A diversificação do conteúdo da pro-priedade e a superação do paradigma da pro-priedade solitária. 5. Conclusão.

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reito privado1, suscetível de refletir uma di-mensão política do ordenamento, cuja notade historicidade se faz presente nos textosconstitucionais.

A Constituição de Weimar, de 1919, deperfil social-democrata, foi pioneira ao es-tabelecer que “a propriedade obriga e o seuuso e exercício devem ao mesmo tempo re-presentar uma função no interesse social”(art. 153). Sob esse prisma, a propriedade seapresenta como fonte de deveres para o titu-lar, para além da perspectiva liberal de fei-xe de poderes (usar, gozar, dispor, reivindi-car) sobre a coisa.

A Constituição brasileira de 1934 teveclara inspiração no modelo alemão da Re-pública de Weimar (Cf. GUEDES, 1998, p.130). As cartas constitucionais seguintes,com destaque para os documentos demo-cráticos de 1946 e 1988, foram fiéis a essainclinação e a reforçaram, sendo certo que aConstituição vigente foi bastante peremptó-ria ao afirmar, exatamente no rol dos direi-tos fundamentais, que “a propriedade aten-derá a sua função social” (art. 5o, XXIII).

À luz do princípio constitucional, o di-reito de propriedade se renova e a titulari-dade dos bens assume formas diversas, nãoredutíveis a um único instituto jurídico2. Afunção social é um princípio fundamental3,ordenador da propriedade privada, inciden-te sobre o seu conteúdo, norteador de seureconhecimento e de sua atribuição, assimcomo razão de sua garantia.

Pode-se dizer, de outra maneira, que afunção social da propriedade correspondea “uma formulação contemporânea de legi-timação do título que encerra a dominiali-dade” (FACHIN, 1996, p. 108).

Não se trata, no entanto, tão-somente deuma máscara para legitimar a propriedadeprivada4, mas de uma revisão do institutosob a perspectiva funcional: a estrutura vol-tada à realização dos interesses do proprietá-rio convive com a imposição de finalidadesque transcendem os objetivos individuais5.

A propriedade coexiste com fins não-proprietários e mesmo não-patrimoniais,

mormente os voltados à satisfação do prin-cípio da dignidade da pessoa humana(Constituição de 1988, art. 1o, III).

2. O renascimento daquestão proprietária

O quadro constitucional e legal acom-panha o renascimento da questão proprie-tária, como tema que interessa à política, aodireito e à economia:

“Lentamente, a questão proprietáriavoltou ao centro das atenções. Postapor longo tempo entre parênteses,colhe-se agora sempre mais claramen-te nas discussões e nas análisespolíticas, jurídicas, econômicas. Sesobre ela se prolongam ainda as som-bras dos anos de eclipse, todavia ostemas da propriedade aparecem denovo como um banco de prova decisi-vo” (RODOTÀ, 1990, p. 31).

Chama-se a atenção, outrossim, para oreconhecimento dos diversos estatutos pro-prietários, afirmados historicamente em sin-tonia com os projetos políticos e sociais cor-respondentes, impossíveis de se cristalizarem uma noção formalmente unitária de di-reito real6.

Nos dois últimos séculos, a doutrina ci-vilista fez da propriedade o direito subjetivopor excelência, o mais completo e absolutoentre todos os direitos subjetivos7. O mode-lo reproduzido, em especial desde o CódigoCivil francês de 1804, era dotado de grandeabstração, mas de caráter extraordinariamentecompacto e formulado a partir de uma pers-pectiva simplificadora dos problemas reais.

A opção pela perspectiva reducionista esimplificadora não era, nem podia ser, de-corrente do acaso. A idéia de simplificaçãoimplicava, com o mote da legislação sobera-na, a possibilidade de eliminar toda formade incerteza no saber, universal e imutável,por se supor capaz do desenvolvimento deum conhecimento definitivo do real.

Com largo prestígio na filosofia e na teo-ria do direito, a visão crítica, apoiada no

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paradigma da complexidade, compreende quea noção de legislação soberana seja substi-tuída por uma pluralidade de discursos ra-cionais ou sistemas interpretativos, a partirde regras de jogo distintas, em reconhecimen-to do singular e do contingente (Cf. VANDE KERCHOVE; OST, 1992, p. 196).

A propriedade, alvitrada na Constitui-ção da República, “é um direito cujo con-teúdo pode variar, como verdadeira funçãosocial, nos termos e limites fixados pela lei,como expressão da vontade coletiva, desdeque não seja ele esvaziado no seu conteúdoessencial mínimo” (LIRA, 1997, p. 161).

O enfoque empreendido é proposital-mente desconstrutivista, desafiador das ver-dades absolutas e dos modelos pré-conce-bidos e com pretensão de eternidade. Nãohouve provavelmente, na teoria civilista,nenhum outro instituto tão glorificado comoo direito de propriedade, que chegou a seralçado, como no Código Napoleão, a centrode todo o sistema de direito privado.

O momento é particularmente favorávela que se empreenda essa atitude, no ensejodo advento do novo Código Civil:

“Com a entrada em vigor do CódigoCivil de 2002, debruça-se a doutrinana tarefa de construção de novos mo-delos interpretativos. (...) Afinal, omomento é de construção interpreta-tiva e é preciso retirar do elementonormativo todas as suas potenciali-dades, compatibilizando-o, a todocusto, à Constituição da República.Esta louvável mudança de perspecti-va, que se alastra no espírito dos civi-listas, não há de ser confundida, con-tudo, com uma postura passiva e ser-vil à nova ordem codificada. Ao re-vés, parece indispensável manter-seum comportamento atento e perma-nentemente crítico em face do CódigoCivil para que, procurando lhe confe-rir a máxima eficácia social, não sepercam de vista os valores consagra-dos no ordenamento civil-constituci-onal” (TEPEDINO, 2002, p. XV).

O direito burguês transformara a pessoaem indivíduo. A propriedade, tal qual o ho-mem, isolara-se, dando azo ao individualis-mo proprietário descrito por Barcellona(1987). O Código Civil, lei burguesa por de-finição, era a constituição das relações pri-vadas, esteio das relações econômicas, nasquais não devia interferir o Estado, mes-mo para não alterar a “ordem natural dascoisas” e dos seus mecanismos de apro-priação.

O direito romano deixara bases sólidaspara considerar a propriedade como o di-reito subjetivo máximo, como se colhe nadefinição de dominium est ius utendi etabutendi re sua, quatenus iuris ratio patitur, ali-ás nem sempre bem compreendida8.

O uso moderno do direito romano, comose deu na Alemanha, nos séculos XVIII eXIX, com os pandectistas, retomou a noçãode dominium, aproveitando-se a fórmula dodireito adquirido, que na sua abstração deli-neou o compromisso da burguesia em as-censão com o feudalismo em declínio, ten-do a dupla vantagem de recordar o velho ebom direito, ao mesmo tempo em que, pormeio da sua indefinibilidade, permitia aconcentração da propriedade burguesa (Cf.RITTSTIEG, 2000, p. 169).

No Brasil, o codificador Bevilaqua (1941,p. 114), ao começar o estudo da proprieda-de, o fez apontando “dados biopsíquicos”,para defender uma concepção evolucionis-ta e naturalística desse instituto9.

Enquanto a exaltação da propriedadeimobiliária e o aviltamento da res mobilis fi-xaram a tônica da construção jurídica dopassado, como disserta o professor CaioMário, “o assalto à cidadela proprietaristacaracteriza a revolução social do presente,o combate aos privilégios assinala a tendên-cia reformista de nossos dias” (PEREIRA,2001, p. 6).

Como mostra a história, o discurso pro-prietário é contingente e precisa ser revela-do, posto sob a lente de um ensino jurídicoque não seja apenas a leitura rasteira dasdisposições legais, nem a informação, ain-

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da que rica, do passado, mas a alma de umaconcepção criativa e construtiva do Direitoe de suas instituições.

3. O discurso em torno dapropriedade e o ensino jurídico

Em excelente estudo, Cortiano Jr. (2002,p. 137) observa, a propósito do discurso ju-rídico em torno da propriedade, que:

“... a construção do modelo proprie-tário liga-se à total abstração do sujei-to de direito, o que se reflete na conse-qüente abstração das formas de exer-cício dos poderes proprietários e nainfinita possibilidade de bens apro-priáveis. Ao pretender permanecerintocado, o modelo está sujeito a rup-turas, e uma delas pode ser visualiza-da no reconhecimento de que a pro-priedade deve ser exercida funcional-mente em razão dos interesses da co-letividade”10.

Esse não é, por certo, um problema ape-nas brasileiro, mas de abrangência muitomais ampla, que vai além dos lindes da tra-dição jurídica romano-canônica – na qualproliferaram os códigos civis proprietários– e alcança também o common law, essenci-almente jurisprudencial, em que a lei não éa fonte primordial do direito.

Para se ter idéia da universalidade do pro-blema, tome-se o exemplo dos Estados Uni-dos, onde o constitucionalista Ackerman(1977, p. 26) critica a visão consensual exis-tente em torno da propriedade, reprovando ohábito de se mandar os estudantes reprodu-zirem frases feitas11.

O drama ecoa, lá como cá, no ensino ju-rídico. Como diz Cortiano Jr. (2002, p. 257),“o discurso proprietário mantém-se, pela viade um ensino jurídico descontextualizado,dogmático e disciplinar”. Prossegue, nessepasso, sustentando que:

“As rupturas que esse discurso sofresão restringidas no âmbito do ensinojurídico. O discurso do ensino, medi-ante procedimentos de interdição (aos

outros sujeitos e aos outros saberes),de separação/rejeição (da pesquisa eda extensão), da oposição verdadei-ro/falso (dogmatismo acrítico), docomentário e do autor (ensino manu-alizado), da disciplina (o diálogo dodireito consigo mesmo), dos rituais esociedades de discurso (limites à arti-culação do saber), da doutrina (juri-dicização plena do mundo e do sa-ber) e de apropriação social (o siste-ma educacional como um todo), re-duz as possibilidades dessas rup-turas” (CORTIANO JÚNIOR, 2002,p. 257).

Algumas dessas rupturas, gerando umaimensa dificuldade para a doutrina, acos-tumada ao numerus clausus e à tipicidade dosdireitos reais12, bem como à solidez da dog-mática acerca da propriedade, voltam-separa o direito de superfície13, a multipropri-edade14 e o condomínio de fato15, por exem-plo.

Cumpre alertar que o numerus clausus dosdireitos reais, em verdade, mais que propi-ciador de segurança jurídica16, pode se con-verter em fenda a segregar, da ordem jurídi-ca, os modelos praticados e socialmente re-conhecíveis de apropriação dos bens17.

4. A diversificação do conteúdo dapropriedade e a superação do

paradigma da propriedade solitária

É necessário evitar a tentativa de redu-zir qualquer regime de titularidade e apro-priação dos bens ao paradigma da proprie-dade solitária (Cf. PUGLIATTI, 1964, p. 195).

O uso, a fruição e a disposição dos bens,assim como os limites a esses poderes doproprietário, são diferentes conforme cadamodelo de titularidade albergado pela leisob o nome de propriedade18.

Assim se compreendem variadas regrasdo Código Civil, tais como as de inalienabi-lidade e imprescritibilidade de bens públi-cos (arts. 100-102); extensão da proprieda-de do solo ao espaço aéreo e ao subsolo,

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apenas em altura e profundidade úteis aoseu exercício (art. 1.229); na propriedade dosolo, exclusão das jazidas, minas e demaisrecursos minerais, potenciais de energia hi-dráulica, monumentos arqueológicos e ou-tros bens referidos por leis especiais (art.1.230); submissão dos bens móveis e imó-veis a diferentes modalidades de aquisiçãoda propriedade (arts. 1.226 e 1.227, bemcomo arts. 1.238-1.274); tratamento diferen-ciado para usucapião de bens imóveis (arts.1.238-1.242) e móveis (arts. 1.260-1.261), eainda rurais (art. 1.239) e urbanos (art.1.240).

A rigor, é a própria Constituição de 1988que trata diferentemente a propriedade ur-bana e a rural, tanto em termos de usuca-pião (arts. 183 e 191) e desapropriação (arts.182, § 3o e § 4o, III, e 184), como de cumpri-mento de sua função social (arts. 182, § 2o, e186).

A palavra propriedade não tem hoje, se éque já teve um dia, um significado unívoco,não se podendo manter “a ilusão de que àunicidade do termo corresponda a realunidade de um compacto instituto”(PUGLIATTI, 1964, p. 309), com o que esseautor descreveu “a propriedade e as propri-edades” (la proprietà e le proprietà). O discur-so plural não é artifício de retórica, porquan-to aflora de um pluralismo político que se-ria ingênuo não se perceber19.

Na realidade, “não há que falar só emredefinição da propriedade, mas em diversifica-ção do direito de propriedade, no seu conteúdo,conforme o bem de vida que esteja em jogo,visando à função social da propriedade,como um dos instrumentos da JustiçaSocial” (LIRA, 1997, p. 161).

5. Conclusão

A propriedade não é uma só, não sendocorreto reduzir a sua dogmática a um insti-tuto monolítico, cabendo, antes, perfilhar umconjunto de situações jurídicas complexas,compreensivas não apenas de poderes, mastambém de deveres, que envolvem a titulari-

dade dos bens. Há diversas propriedades,como diferentes também são as destinaçõeseconômicas e as funções sociais dos bens.

O princípio constitucional da funçãosocial é ordenador da propriedade-função,modificando o conteúdo tradicional da pro-priedade, impondo-se como critério paraafirmar ou negar o seu reconhecimento e asua atribuição, assim como se erigindo emfundamento de sua garantia.

Notas

1 Na lição do inesquecível professor Caio Mário,o Direito das Coisas “é a província do direito priva-do mais sensível às influências da evolução social.Em todos os tempos, à medida que a pesquisahistórica os ilumina, avulta a peculiaridade do as-senhoreamento dos bens terrenos, como índi-ce dos fenômenos sócio-políticos” (PEREIRA, 2001,p. 6).

2 “A propriedade, afirmada pelo texto consti-tucional, reiteradamente, (...) não constitui um ins-tituto jurídico, porém um conjunto de institutosjurídicos relacionados a distintos tipos de bens.Assim, cumpre distinguirmos, entre si, a proprie-dade de valores mobiliários, a propriedade literáriae artística, a propriedade industrial, a propriedadedo solo, v. g. Nesta última, ainda, a propriedadedo solo rural, do solo urbano e do subsolo. Umasegunda distinção, ademais, há de ser procedida,entre propriedade de bens de consumo e proprie-dade de bens de produção” (GRAU, 1990, p. 248).

3 Não se deixe de ter em conta, ainda que paradela discordar, a posição de Gomes (2000, p. 110):“Como quer que seja, o preceito constitucional queatribui função social à propriedade não tem valornormativo porque não se consubstancia nas nor-mas restritivas do moderno direito de propriedade,mas simplesmente se constitui no seu fundamento,na sua justificação, na sua ratio”.

4 Novamente se pede vênia para divergir deGomes (2000, p. 109): “Se não chega a ser umamentira convencional, é um conceito ancilar do re-gime capitalista, por isso que, para os socialistasautênticos, a fórmula função social, sobre ser umaconcepção sociológica e não um conceito técnico-jurídico, revela profunda hipocrisia pois ‘mais nãoserve do que para embelezar e esconder a substân-cia da propriedade capitalística’. É que legitima olucro ao configurar a atividade do produtor de ri-queza, do empresário, do capitalista, como exercí-cio de uma profissão no interesse geral. Seu conteú-

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do essencial permanece intangível, assim como seuscomponentes estruturais. A propriedade conti-nua privada, isto é, exclusiva e transmissívellivremente”.

5 “Tanto na Constituição quanto na lei é fácil,hoje, encontrar obrigações ou ônus impostos aosproprietários que desatendem a função social queseus bens podem satisfazer, variando em cada caso,a depender do tipo de propriedade. Aquela, emverdade, ocupa-se muito mais com a fixação dosinteresses públicos e sociais que devem ser respei-tados por quem quer que seja, como a dignidadehumana, o patrimônio público, o patrimônio cul-tural, o meio ambiente etc., apresentando-se deimediato como obrigações negativas e excepcional-mente positivas. E à lei compete estabelecer os limi-tes, as obrigações e os ônus específicos relativos acada tipo de propriedade, segundo as conveniênci-as de cada momento histórico e do lugar”(MORAES, 1999, p. 138).

6 Nas palavras do autor: “Attraverso il riconos-cimento della effettiva funzione storica dei diversielementi costitutivi del sistema giuridico della pro-prietà, invece, possono emergere, a un tempo, lefinalità perseguite con i diversi statuti e il progettosociale d’insieme ad essi corrisponde, non più cris-tallizzato intorno ad un’unica nozione, formalmen-te unitaria, ma ricavato dall’osservazione diretta diuna realtà non più rinsecchita in poche formuledottrinarie” (RODOTÀ, 1990, p. 55-56).

7 Exemplo disso está na obra do ConselheiroLafayette, jurista brasileiro do século XIX: “O do-mínio (direito de propriedade no sentido estrito) é odireito real em toda a sua compreensão, ou antes éa síntese de todos os direitos reais; manifesta-sepor todos os atos que o homem pode praticar sobrea coisa corpórea: é a plena potestas, o império exclu-sivo e absoluto da nossa vontade sobre a coisa”(PEREIRA, 1943, p. 24).

8 Explica-se que “il verbo abuti ha presso i Latiniun doppio significato: il primo, che è il più comune,suona come abusare, nel senso di servirsi od usareanche male di una cosa e quindi si affermò che laproprietà era il diritto di usare ed anche dimanomettere e distruggere per mero capriccio lacosa propria, senza una ragione morale odeconomica, che ne giustificasse siffatta destinazione;il secondo significato, meno volgare, ma usato nontanto dagli autori classici quanto dai giureconsulti,esprime la idea di consumare, nel senso cioè di servirsibene della cosa, anche modificandola e distruggendolatotalmente” (PICCINELLI, 1980, p. 1).

9 Disse Clóvis: “Naturalmente, esses sentimen-tos de puros animais, que eram, positivamente, oshomens, em sua origem, desenvolveram-se com amarcha da cultura, tomaram feições ideais maiselevadas, mais puras, mais variadas, criaram no-vas manifestações da sensibilidade, transformaram

idéias e concepções, à medida que os homens seorganizavam em círculos sociais de família, de clã,e de povo sob a forma de nação; mas, na essência enas últimas raízes, estão apontados estados dealma. Esses sentimentos impelem a criatura huma-na (como também os outros animais) a buscar, nomundo exterior, o que lhe dê prazer e lhe evite aemoção contrária. Formam-se, assim, impulsos,inclinações diversas, entre as quais o denominadoinstinto de conservação, que é força ativa da apro-priação dos bens da vida, e defensiva, para assegu-rar, com a própria existência individual, a dessesmesmos bens. Como, porém, o homem vive em so-ciedade, a apropriação dos bens e a sua defesaassumem formas sociais, sem todavia eliminar, in-teiramente, ou em porção excessiva, o impulso in-dividual” (BEVILAQUA, 1941, p. 114).

10 O autor observa ainda que “essa ruptura liga-se ao ocaso do Estado liberal e ao surgir do Estadosocial. Os postulados do Estado liberal não iriamresistir às reivindicações de novos atores, ingres-santes no jogo social. A noção de igualdade formallogo refletiria o fantasma da desigualdade materi-al, e a separação entre Estado e sociedade darialugar a um novo modelo de Estado” (CORTIANOJÚNIOR, 2002, p. 137).

11 “For in dealing with the concept of property itis possible to detect a consensus view so pervasivethat even the dimmest law student can be countedupon to parrot the ritual phrases on command”(ACKERMAN, 1977, p. 26).

12 Os dois princípios não devem ser confundi-dos. Por numerus clausus, entende-se que a enume-ração, prevista em lei, é exaustiva, não se admitin-do a criação, pela via negocial, de novos direitosreais (Typenzwang). O sentido do princípio da tipi-cidade, por outro lado, é o da conformação de cadadireito real pelo tipo legal próprio, em que se definea respectiva extensão de poderes e deveres do titu-lar (Typenfixierung), como se colhe da doutrina ale-mã (WOLF, 2003, p. 12-13).

13 O direito de superfície, envolvendo a titulari-dade de construções e plantações destacada dapropriedade do solo, não era admitido no direitobrasileiro desde a Lei no 1.237, de 24 de setembro de1864, até o advento do Estatuto da Cidade (Lei no

10.257, de 10/7/2001, arts. 21-24). O Código Civilde 2002 recepcionou esse direito real típico (arts.1369-1377), posto que de modo mais tímido que oEstatuto da Cidade. Antes desse diploma, Lira(1997, p. 168-169) vaticinou: “A instituição do di-reito de superfície consuma o acalentamento dosonho dos urbanistas, que é a separação do direitode construir do direito de propriedade, realizadaaqui pela via negocial, com as galas de um direitoreal sobre a coisa alheia. Mas sua valia ganha emsignificado quando, partindo de terras públicas,pode apresentar-se como instrumento valioso em

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uma política de regularização fundiária, sobretu-do quando articulado com outros instrumentos,como um usucapião especial urbano, que poderi-am ser utilizados na titulação de áreas faveladas,mocambos, palafitas, loteamentos irregulares pro-movidos a non domino”.

14 Na problematização efetivada por Tepedino(1993, p. 82), após percorrer as teorias sobre a na-tureza jurídica da multipropriedade imobiliária,lê-se que “as dificuldades de enquadramento damultipropriedade no tipo dominical, através dasdiversas teses antes examinadas, tendentes a com-patibilizar os limites ao conteúdo da senhoria, inci-dentes na multipropriedade, sugeriu a alguns tra-tar-se de direito real atípico, deslocando sua quali-ficação do âmbito do domínio, hipótese em quesua admissibilidade dependeria de lei específica, amenos que se entendesse superado o princípio donumerus clausus”.

15 Como já tive a oportunidade de dizer, emoutra sede: “Vê-se, pois, que o condomínio de fatonão há de ser um instituto menos importante parao Direito Civil do que o direito de propriedade ouum outro direito real qualquer. Não é menos jurídi-co que o condomínio ‘de direito’, devendo ter osseus efeitos disciplinados, mormente quando sepensa na grave situação social que encerra” e que“não cabe, portanto, sob a alegação de que vigo-ram os princípios do numerus clausus e da tipicida-de dos direitos reais, negar-se, tout court , a existên-cia e a relevância específica do condomínio de fato”(MATTIETTO, 2004, p. 237-238).

16 Pode-se afirmar “que não é exclusividade dosistema de numerus clausus o poder de afastar aconstituição de situações jurídicas reais que venhama demonstrar inconvenientes para a sociedade. Talafastamento pode igualmente ocorrer em um siste-ma de numerus apertus, uma vez que, há muito tem-po, o princípio da autonomia da vontade deixoude ser um paradigma absoluto do Direito, encon-trando e conhecendo limitações e vedações as maisvariadas possíveis” (GONDINHO, 2001, p. 58).

17 Sabe-se ainda que “o sistema de numerusclausus, por si só, não é suficiente para resolver atormentosa problemática de tipos reais vigentes,que, dada a evolução social, representam manifes-to inconveniente sócio-econômico, como, v.g., a en-fiteuse. Por tais razões, é de se questionar, hoje, aexclusão da autonomia da vontade no campo decriação de direitos reais, se este alijamento baseia-se tão-somente em razões de ordem histórica que jáforam ultrapassadas desde o fim da RevoluçãoFrancesa, com a superação do modelo econômicocaracterístico do Antigo Regime, cuja riqueza nobi-liárquica encontrava raízes na organização feudalda propriedade” (GONDINHO, 2001, p. 58).

18 “Il godimento, la disposizione, i limiti, i vin-coli sono diversi secondo il tipo di proprietà; si che

non è possibile costruire una teoria delle limitazionio una teoria del godimento o della disposizionedella proprietá, ma è necessario costruire la teoriadelle limitazioni di un certo tipo di proprietà, e quindiindividuare altri tipi di limiti o di limitazioni cheattengono ad altre forme di proprietà. E la pluralitàdi figure di proprietà, che è possibile rintracciare nelnostro ordinamento, si giustifica essenzialmente condue ampi ordini di motivi: o sotto il profilo delsoggetto o sotto il profilo dell’oggetto. In altre pa-role, le diverse forme di proprietà sono differente-mente disciplinate o per il fatto che titolare di que-lla proprietà occasionalmente o istituzionalmente èun particolare soggetto, o per il fatto che oggetto diquella proprietà sono beni che hanno una particola-re funzione sociale e giuridica riconosciuta dal nos-tro ordinamento” (PERLINGIERI, 1971, p. 138-139).

19 “Sarebbe ingenuo, infatti, ritenere che il pas-saggio dalla proprietà alle proprietà significhi unvoltar pagina, che consente di non dar più rilevanzaalcuna ad una serie di norme, schemi ricostruttivi,concetti ordinatori, foggiati partendo dalla premessadi una proprietà sempre identica nei suoi connotatifondamentali” (RODOTÀ, 1990, p. 54).

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1. IntroduçãoA função social do contrato é um dos

institutos que melhor refletem a idéia desocialidade no Código Civil brasileiro de2002.

A socialidade é, ao lado da eticidade eoperabilidade, um dos valores que nortea-ram a elaboração do novo Código. SegundoMiguel Reale (2003), essa consiste no pre-valecimento dos valores coletivos sobre osvalores individuais, sem, no entanto, supri-mir a idéia de que o ser humano é o valor-fonte da hierarquia dos valores.

No presente texto, serão traçados os sig-nificados do termo “função social”, e qual oalcance dos efeitos desse instituto jurídiconas relações privadas.

2. Histórico da função socialA idéia de função social foi formulada

pela primeira vez por São Tomás de Aquino,quando afirmou que os bens apropriadosindividualmente teriam um destino comum,que o homem deveria respeitar.

A função social do contratoConceito e critérios de aplicação

Eduardo Tomasevicius Filho

Eduardo Tomasevicius Filho é Doutoran-do em Direito Civil da Universidade de SãoPaulo.

Sumário1. Introdução. 2. Histórico da função social.

3. Significados de função social. 4. A funçãosocial do contrato. 5. A função social do contra-to em sentido amplo. 6. A função social do con-trato em sentido estrito. 7. A função social docontrato em sentido amplo na jurisprudênciapaulista. 8. Precauções e critérios para a aplica-ção da função social do contrato. 9. Conclusão.

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Essa idéia, no entanto, ganhou força ape-nas no século 19, devido às profundas alte-rações econômicas e sociais que ocorreramnaquele período. No entanto, como sempreocorre na história, as idéias filosóficas sur-gem com bastante antecedência em relaçãoao período em que as mudanças ocorrem.

Uma das doutrinas filosóficas que fun-damentou as mudanças do século 19 foi oracionalismo, concepção segundo a qual arazão era o centro de todas as ações huma-nas. A expressão “penso, logo existo” ilus-tra bem essa visão de ser humano.

No campo econômico, a Revolução In-dustrial caracterizou-se pela liberdade comofundamento da organização econômica,deixando a “mão invisível” do mercado re-gular o funcionamento da economia noâmbito interno e internacional. (SMITH,1981). Em conseqüência, surgiram altera-ções na ordem social, formando-se novasclasses sociais: a burguesia, detentora docapital, e os trabalhadores.

Em vista dessas transformações, os ins-titutos jurídicos daquela época foram forte-mente marcados por um espírito de liberda-de ilimitada.

No direito civil, o pressuposto de que oser humano tem uma racionalidade ilimita-da acarretou a igualdade formal entre aspartes contratantes; todos os seres huma-nos são dotados de razão, sendo plenamen-te capazes de cuidarem da sua própria vidapor meio da deliberação racional. Afinal,ninguém em sã consciência procura o piorpara si mesmo.

Contudo, essa liberdade conferida pelapressuposição da racionalidade ilimitada,quando exercida em matéria contratual, re-velou-se insuportável para o convívio soci-al, porque muitos abusos foram praticadospelo exercício estrito da mesma. O exemplomais marcante desse período foi o modocomo eram celebrados os contratos de em-prego, por meio dos quais se escravizavamos trabalhadores com jornadas enormes abaixíssimos salários e condições insalubresde trabalho.

Pouco tempo depois, reações surgiram atodos esses abusos praticados em confor-midade com o direito. O socialismo foi a prin-cipal doutrina nesse sentido. Mas como esseera o “fantasma que rondava a Europa”, epropugnava a destruição da classe domi-nante e apropriação dos meios de produçãopelos trabalhadores, buscou-se uma conci-liação entre os interesses do capital e do tra-balho.

O documento mais conhecido nesse sen-tido foi a encíclica Rerum Novarum, de LeãoXIII, escrita em 1891, na qual estão retrata-das as condições de miséria e escravidãoem que se encontravam os trabalhadores,devido à exploração que sofriam pelos de-tentores do capital. A idéia central dessaencíclica é que era conveniente promovermelhores condições de trabalho, do que cor-rer-se o risco de a classe trabalhadora insti-tuir o socialismo.

De acordo com Leão XIII, o socialismoinsuflava o ódio dos trabalhadores contraos patrões; e, ao pregarem o fim da proprie-dade privada, iam contra a ordem naturaldas coisas, pois a propriedade seria um di-reito natural. O fato de uma pessoa ser pa-trão e outra, operário devia-se à diferençanatural de uma pessoa para outra. Por issomesmo, Deus não impôs a distribuição dosbens entre as pessoas: que cada um, de acor-do com suas habilidades e talentos, obtives-se mais ou menos bens.

No item 16 da Encíclica, Leão XIII pro-punha o seguinte aos trabalhadores:

“(...) cumprir integral e fielmente o quepor própria liberdade e com apoio dajustiça se estipulou sobre o trabalho;não causar dano algum ao capital; nãoofendam a pessoa de seus patrões;abster-se de toda violência ao defen-der seus direitos e não promover sedi-ções; não mesclar-se com homens de-pravados, que alimentam pretensõesimoderadas e prometem artificiosa-mente grandes coisas, o que leva con-sigo arrependimentos estéreis e asconseqüentes perdas de fortuna”.

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Para os patrões, propunha-se o seguinte:“(...) não considerar os trabalhadorescomo escravos; respeitá-los, como éjusto, a dignidade da pessoa huma-na, sobretudo enobrecida pelo que sechama de caráter cristão. (...) Tampou-co deve impor-lhes mais trabalho doque podem suportar suas forças, nemde uma classe que não seja condizen-te com sua idade e sexo”.

A importância da encíclica RerumNovarum não está em falar de função social– afinal nenhuma referência a esse termo éfeita – mas, sim, de reclamar melhorias nascondições de vida dos trabalhadores comfundamento na dignidade da pessoa huma-na: “A ninguém está permitido violar impu-nemente a dignidade humana, da que Deusmesmo dispõe com grande reverência”. 1

Anos mais tarde, o jurista e político KarlRenner2, influenciado pelo marxismo, ela-borou o conceito de função social. Com basena idéia de Marx de que a economia era aestrutura da sociedade, e o direito, a supe-restrutura que garantia o funcionamento daeconomia, Renner definiu que a função so-cial de um instituto seria o reflexo da funçãoeconômica no âmbito econômico (RENNER,1981, p. 49).

“Qualquer processo econômicoque observo isoladamente do ponto devista técnico é por sua vez uma parteda totalidade do processo social deprodução e reprodução, separado pelopensamento. Se esse processo for vis-to em conjunto, a função econômicatorna-se função social do instituto ju-rídico.”

Portanto, para Renner, função significa-va finalidade. Ou seja, a função social deum instituto jurídico consistiria na finali-dade desse instituto na economia. Contu-do, na Constituição da Alemanha de 1919,da qual Karl Renner participou comoconstituinte, o conceito de função socialassumiu outra proporção. O art. 153 daConstituição Alemã de 1919 dispunha oseguinte:

“Art. 153. A Constituição garante apropriedade, cujo conteúdo e limitesserão fixados pela lei. (...) A proprie-dade obriga. Seu uso constituirá, tam-bém, um serviço para o bem comum.”

Ao falar-se que “a propriedade obriga”,estabeleceu-se ao proprietário a obediênciaa determinados deveres – no caso, um servi-ço – em face da sociedade. O direito não podeser um fim em si mesmo; está a serviço daproteção da dignidade da pessoa humana.

Outro jurista que estudou a função soci-al foi Leon Duguit, expoente do sociologis-mo jurídico. De acordo com Miguel Reale(1998, p. 441), Duguit encontrava na solida-riedade a explicação de todos os fenômenosde convivência. O ser humano não seriaauto-suficiente, o que ensejaria uma inter-dependência inevitável. A atividade parti-cular de cada ser humano deveria harmoni-zar-se com as atividades dos demais, resul-tando numa divisão geral do trabalho.

Duguit sustentava que as transformaçõespelas quais o direito civil passa, levariam auma alteração dos conceitos jurídicos tradi-cionais. O direito subjetivo, por exemplo,seria um conceito metafísico, porque teriapor base a vontade humana, a qual não podeser analisada objetivamente e seria substi-tuído pela idéia de função social.

Influenciado pelo Positivismo de Comte,Duguit afirmava que todo ser humano teriauma função social a desempenhar e deveriadesenvolver sua individualidade física,moral e intelectual o máximo possível. Nomesmo sentido, ao falar da propriedade,disse que essa não seria um direito absolu-to. Ao contrário, a propriedade seria condi-ção indispensável para a prosperidade egrandeza da sociedade e, portanto, a pro-priedade não seria um direito, mas uma fun-ção social:

“Pero la propriedad no es un dere-cho; es una función social. El propie-tario, es decir, el poseedor de una ri-queza tiene, por el hecho de poseeresta riqueza, una función social quecumplir; mientras cumple esta misi-

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ón sus actos de propietario están pro-tegidos. Si no la cumple o la cumplemal si por ejemplo no cultiva su tierrao deja arruinarse su casa, la interven-ción de los gubernantes es legítimapara obligarle a cumplir su funciónsocial de propietario, que consiste enassegurar el empleo de las riquezasque posée conforme su destino”.(DUGUIT, 1975, p. 179).

Ele também criticava a forma pela qual odireito protegia a propriedade, extremamen-te individualista e que não se preocupavacom o exercício legítimo desse direito, o queprovocava um uso pouco evoluído da pro-priedade na sociedade, permitindo-se a exis-tência de propriedades meramente usadaspara especulação comercial.

Porém, ao definir o conteúdo da funçãosocial da propriedade, houve um exageropara o outro extremo da problemática da li-berdade: praticamente suprimiu-a. O con-ceito de propriedade seria transformado empropriedade-função e o direito não protege-ria o direito subjetivo de ser proprietário,mas apenas garantiria a liberdade de o pro-prietário fazer com que sua riqueza cumpraa sua função social, o que levaria a uma so-cialização da propriedade, tomada no sen-tido de produção de efeitos para toda a soci-edade. (DUGUIT, 1975, p. 240).

Nessa perspectiva, o conteúdo do direi-to de propriedade, por ser conferido peloEstado, poderia ficar sujeito à consecuçãode determinados fins definidos pela ordemjurídica. Por essa razão, é possível exigir dotitular desse direito o atendimento a um con-junto de deveres positivos e negativos emface da comunidade. Dessa maneira, “o pro-prietário não tem o direito subjetivo de usara coisa segundo o arbítrio exclusivo de suavontade, mas o dever de empregá-la de acor-do com a finalidade assumida pela normade direito objetivo”. (COSTA, 1997, p. 32).

Porém, surge a dificuldade de determi-nar o conteúdo dos deveres positivos, de-correntes da função social do instituto jurí-dico. Porém, como assevera Orlando Gomes

(1975, p. 73), “sob o ponto de vista jurídico,o exercício de acordo com o bem comum éinsuficiente para a caracterização da fun-ção social”.

O constitucionalista italiano SantiRomano (1975, p. 142-143) desenvolveu oconceito de função a partir da conexão en-tre poderes, direitos e deveres. Além disso,foi ele quem estabeleceu a idéia de funçãosocial como “poder-dever”, que significa oexercício de um direito subjetivo, de tal modoque o mesmo não contrarie o interesse pú-blico.

3. Significados de função social

Podem-se identificar três significadospara o termo “função social”.

O primeiro significado de função social,usado em sentido amplo, é o de “finalida-de”3, ou “papel”.

Esse significado de função social refere-se à idéia de Karl Renner sobre a função so-cial, como imagem da função econômica dedeterminado instituto. Nesse sentido, todosos institutos jurídicos têm função social.

A propriedade, por exemplo, tem diver-sas funções ou papéis. Pode funcionar comoum bem destinado à moradia, ou para a sub-sistência de quem mora no campo, ou parao exercício de atividade econômica. Tambémfunciona como reserva de valor, como ocor-re nos países de tradição ibérica, nos quaisas pessoas adquirem “bens de raiz” parainvestirem suas economias.

O significado de função social como fi-nalidade social está caracterizado no art. 5o

da Lei de Introdução ao Código Civil (Dec-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942), oqual estabelece que “na aplicação da lei, ojuiz atenderá aos fins sociais a que ela sedirige e às exigências do bem comum”.

O Código Civil de 2002 estabelece no art.187 o seguinte: “Também comete ato ilícitoo titular de um direito que, ao exercê-lo, ex-cede manifestamente os limites impostospelo seu fim econômico e social, pela boa-féou pelos bons costumes”. E o art. 1.228, § 1 o,

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primeira parte, estabelece que “o direito depropriedade deve ser exercido em conso-nância com as suas finalidades econômi-cas e sociais”.

O segundo significado, usado em senti-do estrito, é o de serviço realizado em bene-fício de outrem. A função indica relação en-tre duas pessoas, sendo que uma delas ageou presta um serviço em benefício da outra.Nesse sentido, o termo “função social” rela-ciona-se com o seu sentido etimológico, dolatim functio, de fungi (exercer, desempe-nhar), que significa o direito ou dever de agir,atribuído ou conferido por lei a uma pes-soa, para assegurar o preenchimento de umamissão. (SILVA , 1963, p. 722-723). Na tute-la, por exemplo, o tutor exerce uma função,que é a de agir no interesse do tutelado. Oadministrador de uma empresa exerce seucargo em benefício dos sócios ou dos acio-nistas. O funcionário público é uma pessoacuja profissão é prestar um serviço em nomedo Estado.

No caso da função social, o “funcioná-rio” é o titular do direito; o beneficiário darelação funcional é a sociedade. Consiste naexigência de que o exercício de seu direitoseja também uma prestação de serviço embenefício da sociedade, ou ainda, consistena imposição de deveres para quem exercedeterminado direito; daí falar-se que a fun-ção social é um “poder-dever”. De um lado,o titular do direito subjetivo tem direito –isto é, tem um poder, uma faculdade – emface de uma pessoa, da sociedade ou do pró-prio Estado. Estes têm a obrigação de sujei-tar-se a esse poder, de respeitar esse espaçode liberdade do titular do direito subjetivo.De outro lado, o titular do direito subjetivotambém é obrigado a cumprir com determi-nados deveres de ação e abstenção em facede terceiros. Surge, pois, para o indivíduo,um feixe de deveres que devem ser observa-dos no exercício de determinado direito.

Em relação ao direito de propriedade, oproprietário tem o poder de usar, fruir e dis-por de um bem, bem como não ser impedidode exercer aqueles direitos. Ou seja, todas

as demais pessoas, que não sejam proprie-tárias desse bem, devem sujeitar-se a essefato.

Como aponta Harold Demsetz (p. 354-357), o direito de propriedade existe paraque os recursos sejam usados de forma efi-ciente. Ele dá o exemplo de uma área desti-nada à agricultura. Uma pessoa prepara aterra, semeia e aguarda por meses o momen-to da colheita. Se não houvesse direitos depropriedade, qualquer um poderia apare-cer na época da colheita e levar embora todaa produção. Em vista disso, o agricultor nãotem garantias de que vai encontrar sua la-voura incólume. O risco de usar a terra paraa agricultura será alto demais. Desse modo,direitos de propriedade fracos geram inefi-ciência na utilização de recursos.

Por outro lado, a exclusão de todas aspessoas do acesso aos bens do titular dodireito de propriedade pode causar uma si-tuação injusta. Enquanto uma pessoa sebeneficia do uso, ainda que não esteja cau-sando dano a outrem, muitas outras pesso-as podem estar sendo privadas do acessoaos bens, como alimentação, moradia e ves-tuário.

O instituto da função social constituiuma “solução de compromisso” entre essesinteresses em conflito. Permite-se o exercí-cio de determinado direito, mas pode-se exi-gir que esse exercício seja socialmente útil.Portanto, nesse sentido, a essência do termo“função social” implica compensação, aqual se dá por meio da realização de deve-res de ação ou de abstenção por parte dotitular de um direito subjetivo.

O uso de uma propriedade rural, porexemplo, como reserva de valor não atendeà função social, enquanto o seu emprego noexercício de atividade econômica, ao pro-duzir alimentos, atende à função social. Porisso, a Constituição Federal tem normas queestabelecem qual o conteúdo da função so-cial da propriedade urbana e rural:

“Art. 186. A função social é cumpridaquando a propriedade rural atende,simultaneamente, segundo critérios e

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graus de exigência estabelecidos emlei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e ade-quado;

II – utilização adequada dos recur-sos naturais disponíveis e preserva-ção do meio ambiente;

III – observância das disposiçõesque regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalha-dores.”

O Código Civil, ao tratar da função soci-al da propriedade, exige que o exercício dodireito de propriedade seja compatível coma preservação da flora, fauna, belezas natu-rais, equilíbrio ecológico, patrimônio histó-rico e artístico, bem como evitada a polui-ção do ar e das águas. (CC, art. 1228, § 1o).

Em relação à empresa, ao mesmo tempoem que a livre iniciativa é um valor funda-mental da ordem econômica (CF, art. 170),porque seu exercício é socialmente útil, exi-ge-se do empresário o exercício da ativida-de econômica de forma não nociva à comu-nidade. Impõem-se limites a esse direito,como o dever de não ferir a dignidade dostrabalhadores, nem prejudicar a concorrên-cia, o consumidor ou o meio ambiente deforma indiscriminada.

Um problema do conceito de função so-cial em sentido estrito está em estabelecer setodos os bens teriam função social – e, comoserá posteriormente discutido, se todos oscontratos têm função social. Isso porque,sobretudo em relação à propriedade, encon-tram-se dificuldades em visualizar uma fun-ção social para com bens de uso pessoal,duráveis ou consumíveis. Por exemplo, édifícil apontar qual a função social do imó-vel usado para sua moradia e de sua famí-lia, do automóvel, das roupas, dos eletrodo-mésticos. Tanto que a Constituição Federalde 1988 não foi capaz de dizer qual é a fun-ção social da propriedade urbana. O art. 182,§ 2o, tem a seguinte redação: “A proprieda-de urbana cumpre sua função social quan-do atende às exigências fundamentais de

ordenação da cidade expressas no planodiretor”.

Por isso, Stefano Rodotà (apud ALPA;BESSONE, 1980, 243-244) sustenta que nemtodos os bens teriam função social. Ele faz adistinção entre bens de consumo e bens deprodução, e que somente estes últimos teri-am função social. Assim, objetos de uso pes-soal, ou o imóvel destinado à moradia, nãoteriam função social, enquanto o maquiná-rio de uma indústria teria função social.4 Oconceito de função social da propriedadefica, pois, absorvido pelo conceito de fun-ção social da empresa.

O terceiro significado de função social,usado de maneira imprópria, é o de “res-ponsabilidade social”. Nesse caso, que apa-rece relacionado à função social da empre-sa, é o de atribuição de deveres não relacio-nados com a atividade da empresa, taiscomo auxiliar na preservação da natureza,no financiamento de atividades culturais,ou no combate de problemas sociais, comoo trabalho e prostituição infantis.

4. A função social do contrato

A função social do contrato consiste emuma transposição do instituto da funçãosocial da propriedade para o âmbito con-tratual. A função social do contrato recebeudestaque dentro do título que cuida dos con-tratos em geral. Está prevista no art. 421 doCódigo Civil:

“Art. 421. A liberdade de contratarserá exercida em razão e nos limitesda função social do contrato.”

Parece ser uma criação do direito brasi-leiro, porque nem os códigos civis europeusnem os códigos civis latino-americanos têmdisposição semelhante. O único código ci-vil que tem uma regra cuja estrutura lembrao art. 421 do Código Civil é o Código Civilitaliano de 1942, cujo art. 1.322 tem a se-guinte redação: “As partes podem livremen-te determinar o conteúdo do contrato den-tro dos limites impostos pela lei (e das nor-mas corporativistas)”. O controle da liber-

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dade contratual é feito apenas pela lei, pos-to que foram abolidas do direito italiano asnormas corporativistas do regime fascis-ta. A função social do contrato, portanto,tem por objeto restringir a liberdade decontratar.

O fundamento da existência da funçãosocial do contrato é a dignidade da pessoahumana. No entanto, essa afirmação nãopassa de mera tautologia, porque é mais queevidente que os institutos jurídicos têm fun-damento na dignidade da pessoa humana.Com efeito, a função social do contrato éapenas mais um instrumento de aplicaçãode justiça ao caso concreto, conforme se veráabaixo.

Assim, para compreender a função soci-al do contrato, é preciso analisar quais sãoas visões existentes sobre a liberdade decontratar, para, em seguida, compreenderde que maneira a função social agirá so-bre a mesma.

Existem duas visões sobre a liberdadecontratual: a visão realista, e a visão legalis-ta. A visão realista da liberdade contratualé aquela segundo a qual a liberdade de con-tratar é inerente ao indivíduo. Nessa visão,o indivíduo é capaz de se autodeterminar,no sentido de estabelecer para si mesmo umaconduta determinada e cumpri-la. Foi Kant(2003, p. 79) quem sustentou o fundamentoda obrigação da conduta ética ser a autono-mia da vontade, a qual, por sua vez, decor-ria da liberdade humana.

Nessa perspectiva, o direito pode ape-nas reconhecer que a vontade humana é fon-te de direito objetivo. (D’EUFEMIA, 1942, p.12). Resta ao direito apenas tutelá-la, garan-tindo-a, como no caso do ato jurídico perfei-to, ou então, assegurando exeqüibilidade àpromessa feita por meio da vontade livre.Nessa perspectiva, o direito contratual é odireito que tem por objeto a promessa, ga-rantindo coercitivamente o cumprimento doque foi prometido.

Por sua vez, a visão legalista da liberda-de de contratar consiste no fato de que essasomente existe porque o direito a confere.

Essa se torna uma concessão do Estado parao indivíduo. Fala-se em autonomia priva-da, no sentido de ser uma espécie de “com-petência legislativa” conferida aos indiví-duos para que celebrem negócios jurídicos,no sentido de ato capaz de criar, modificar eextinguir direitos. Por isso, o Estado pode,em tese, não conferir nenhuma autonomiaao indivíduo. Pode ocorrer de o Estado con-ceder a liberdade de forma controlada, dan-do ao indivíduo a opção de escolher umaentre várias normas previamente estabele-cidas pelo direito. Por exemplo, poder-se-iaestabelecer que somente são válidos os con-tratos típicos.

Numa concepção ampla da autonomiaprivada, o Estado pode conferir liberdadede contratar os indivíduos; porém pode im-por determinados “encargos” ao exercíciodessa liberdade. Nesse caso, o conteúdo daliberdade seria “positivo”. Os Estados queestabeleciam como um de seus fins a solida-riedade social optavam por esse tipo deautonomia privada. Na explicação deGiuseppe D’Eufemia (1942, p. 10-11):

“No Estado corporativo, a auto-nomia privada é portanto conforma-da de modo que esta se manifeste emfunção dos interesses nacionais: a ini-ciativa individual e a capacidade deauto-regramento dos próprios interes-ses são reconhecidos aos privados,mas ao mesmo tempo são predispos-tos limites de controle que rendem aautonomia privada um instrumentode consecução de determinados finsdo Estado”.

Por fim, o Estado pode conferir aos indi-víduos poder para se auto-regrarem, con-tanto que não estejam em contradição comdeterminados preceitos estabelecidos pelopróprio direito, ou seja, uma liberdade “ne-gativa”. Nesse sentido, o art. 1.322 do Códi-go Civil italiano e o art. 187 do Código Civilbrasileiro.

De acordo com essas perspectivas de li-berdade, conclui-se que a função social, nosentido de finalidade social, corresponde à

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concepção negativa de liberdade de contra-tar; se o instituto jurídico for usado da for-ma como foi criado e produzir os efeitos quedele se espera, sem causar dano a outrem,cumpre-se a função social.

Por sua vez, a função social em sentidoestrito corresponde à visão positiva da li-berdade de contratar, porque essa impõe abusca de determinados fins. Não basta queo instituto jurídico produza os efeitos quedele se espera, e que não cause dano a ou-trem. Requer-se, além de tudo isso, a conse-cução de determinados resultados ou devantagens concretas para a sociedade.

Assim, na concepção negativa de liber-dade, tem-se que a liberdade de contratar éexercida nos limites da função social do con-trato. Na concepção positiva de liberdade, aliberdade de contratar é exercida em razãoda função social do contrato.

No direito brasileiro, o art. 421 tem umaredação contraditória, pois estabelece, aomesmo tempo, tanto a concepção negativa,quanto a concepção positiva de liberdade,já que a liberdade de contratar será exercidanos limites (concepção negativa) e em razão(concepção positiva) da função social docontrato.

O art. 421 foi objeto de crítica durante afase de tramitação do projeto de lei que re-sultou no Código Civil. O então deputadoTancredo Neves propôs a Emenda no 371,que sugeria a alteração da redação desteartigo, a seguir: “Ao interpretar o contra-to e disciplinar a sua execução, o juiz aten-derá à sua função social”. (IMPRENSANACIONAL, 1983, p. 254).

A razão apontada por Tancredo Nevesfoi a de que, “fora dos limites da função so-cial do contrato, não pode ser exercida a li-berdade de contratar”. Isso porque “o con-ceito de função social do contrato é impreci-so”, afetando fundamente a liberdade decontratar e causando insegurança aos ne-gócios. A emenda no 371 foi rejeitada por-que o art. 421 seria correspondente à funçãosocial da propriedade, prevista no art. 160,III, da então Constituição de 1969, bem como

a redação sugerida não seria capaz de solu-cionar o problema decorrente da impreci-são do termo. (IMPRENSA NACIONAL,1983, p. 637). 5

Em junho de 2002, a Câmara dos Depu-tados organizou o Seminário “Novo Códi-go Civil Brasileiro – O que muda na vida docidadão”. Nessa ocasião, o ProfessorAntonio Junqueira de Azevedo apontou fa-lhas na redação do art. 421, no sentido deser indesejável estabelecer que a liberdadede contratar será exercida em razão da fun-ção social do contrato. Para ele, a redaçãoatual permite entender que a liberdade seráexercida não em razão dos interesses docontratante limitado pela função social,transformando essa liberdade numa espé-cie de dever de funcionário.

O Conselho da Justiça Federal organi-zou em setembro de 2002 a I Jornada de Di-reito Civil, na qual foram proferidos 137enunciados para a interpretação do CódigoCivil de 2002. Em relação à função social docontrato, foram proferidos os enunciados n o

21, 22 e 23:“21 – Art. 421: a função social do con-trato, prevista no art. 421 do novo Có-digo Civil, constitui cláusula geral, aimpor a revisão do princípio da rela-tividade dos efeitos do contrato emrelação a terceiros, implicando a tute-la externa do crédito.22 – Art. 421: a função social do con-trato, prevista no art. 421 do novo Có-digo Civil, constitui cláusula geral, quereforça o princípio de conservação docontrato, assegurando trocas úteis ejustas.23 – Art. 421: a função social do con-trato, prevista no art. 421 do novo Có-digo Civil, não elimina o princípio daautonomia contratual, mas atenua oureduz o alcance desse princípio quan-do presentes interesses metaindividu-ais ou interesse individual relativoà dignidade da pessoa humana.”

Por meio desses três enunciados, cons-tata-se que ora se entende a função social

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como finalidade social, ora como funçãosocial em sentido estrito, tal como a funçãosocial da propriedade.

É preciso, pois, esclarecer em que casosa função social do contrato manifesta-secomo finalidade social, e em que casos elase manifesta como “poder-dever” do con-tratante.

5. A função social do contratoem sentido amplo

Como mencionado acima, a função soci-al do contrato como finalidade social relaci-ona-se com a concepção negativa de liber-dade de contratar.

O direito procura assegurar que o usocorreto da disciplina da liberdade é neces-sário por dois motivos. O primeiro deles éque o exercício da liberdade pode ser abusi-vo, e causar danos aos demais indivíduos,o que é socialmente indesejável. O segundomotivo é que os recursos materiais não es-tão disponibilizados igualmente para todos,o que requer um equilíbrio de interesses entrequem tem acesso aos bens e quem não temacesso aos mesmos por meio do contrato.

O contrato é um instituto jurídico cujafunção – entendida como finalidade – é a depromover a circulação e distribuição dosdireitos de propriedade entre os indivíduosde uma sociedade. Tanto em contratos deinteresses contrapostos, como é o caso dacompra-e-venda, quanto nos contratos deinteresses convergentes, como no contratode sociedade, ocorrerá a circulação e distri-buição de bens de acordo com o estipuladopelos indivíduos ou pelo direito. A razão éque uma eficaz circulação de direitos de pro-priedade entre as pessoas é socialmente de-sejável, pois esse fenômeno é que produz asriquezas em uma determinada sociedade.Quando a circulação dos direitos é feitade forma inadequada, o direito fornece“remédios” para que se possa corrigir essasituação.

Os códigos civis estabelecem como requi-sito de validade do negócio jurídico a exis-

tência de objeto lícito, ou, em determinadoscódigos, que o objeto também não seja imo-ral ou ofenda os bons costumes.

O primeiro exemplo de ilicitude do obje-to (que também é caso de objeto imoral) é aproibição da venda de sangue e órgãos hu-manos. O Estado não admite a compra-e-venda; somente a doação. Essa proibiçãovisa evitar que pessoas morram por não te-rem dinheiro para adquirirem um órgão, oque seria uma afronta à dignidade da pes-soa humana. Por isso, caso ocorra uma com-pra-e-venda de órgãos, a circulação destanão ocorre da forma que se esperava; daí anulidade do negócio, ou, em outros termos, odireito não atribui a esse negócio os efeitosjurídicos necessários à sua concretização.

Outra forma de controle do contrato pormeio do objeto do negócio consiste no usode normas de ordem pública.

A ordem pública consiste no conjuntode valores necessários à manutenção dasociedade. (FARIA, 1980, p. 11). As normasde ordem pública são aquelas que ora im-põem uma conduta por parte do indivíduo,ora impõem uma proibição a esse, conformeo caso, de modo a assegurar a ordem públi-ca. (SANTOS, [19 - -?], p. 247). Por essa ca-racterística, não podem ter sua eficácia afas-tada por disposição das partes.

O contrato de trabalho subordinado,antigamente sujeito às normas do contratode locação de serviços, tornara-se um ins-trumento de escravização das pessoas. Como passar do tempo, inúmeras normas de or-dem pública surgiram para a proteção dotrabalhador, como o estabelecimento de sa-lário mínimo, oferecimento de condiçõessalubres de trabalho, entre outros. Foramtantas normas nesse sentido, que surgiu umnovo ramo do direito: o direito do trabalho.

Outro exemplo é a compra-e-venda. Sealguém vende uma casa para outra pessoa,o único interesse social envolvido nesse ne-gócio é que ocorra uma boa circulação dodireito de propriedade. Mas, se uma compra-e-venda de uma casa for entre ascendente edescendente sem a concordância dos demais

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descendentes e do cônjuge, aí sim o Estadointerfere na relação, por meio do direito, per-mitindo a anulação do contrato ao descen-dente que se sentir prejudicado (CC, art.496). Pois, ao negar-se a possibilidade dosdemais descendentes de impedir um negó-cio que lhes será desfavorável no futuro,impede-se a melhor circulação do direito depropriedade.

A recusa de contratar e a venda casadasão exemplos em que uma das partes abusada liberdade de contratar, seja ao impedir acirculação de bens e serviços, seja ao impora circulação dos mesmos. Afinal, não se de-seja que existam dificuldades de circulaçãode bens ou serviços, ou que se impeça o aces-so a estes; ademais, não se deseja que essacirculação seja feita em sacrifício da vonta-de da outra parte. As cláusulas abusivas doscontratos são exemplos de violação da fun-ção social do contrato, porque consistem emdistorções do modo por que circulam os di-reitos entre as pessoas. Essas cláusulas cos-tumam exigir mais vantagens para uma daspartes, em prejuízo da outra, devido à desi-gualdade de poderes na relação contratual.Pelo fato de que essa vantagem obtida é“anormal”, pois um contrato não é instru-mento de enriquecimento sem que tenhasido realizada uma contrapartida. Nessesentido, o direito brasileiro tem os institutosda lesão (CC, art. 157) e da resolução poronerosidade excessiva (CC, arts. 478-480).

A função social do contrato, entendidacomo finalidade social, está presente em to-dos os institutos jurídicos. Existem diver-sos “remédios” jurídicos que asseguram ocumprimento da função social do contrato.Por isso, a função social do contrato, previs-ta no art 421 do Código Civil brasileiro, apli-ca-se de forma residual, nos casos em quenão previsto um determinado remédio parao problema de má circulação dos direitos depropriedade entre partes. Aliás, esse é o es-pírito das cláusulas gerais do Código Civil.

Um exemplo é a concessão de crédito àspessoas de baixa renda por instituições fi-nanceiras privadas no Brasil. O acesso ao

crédito por essas pessoas é extremamenteoneroso. Diversas estatísticas publicadasdemonstram que o índice de inadimplemen-to entre essas pessoas é muito baixo, ou seja,pagam-se rigorosamente em dia as suas obri-gações. No entanto, a taxa de juros cobradadessas pessoas é muito alta, em torno de 10%a 15% ao mês. A situação normal é que quan-to maior o risco, maior o lucro; quando hábaixo risco e altos lucros, é indicação de quehá anormalidade no contrato. Logo, essescontratos não cumprem sua função social.

6. A função social do contratoem sentido estrito

A função social do contrato em sentidoestrito está diretamente relacionada com aprodução de externalidades no exercício dedeterminado direito. A ciência econômicausa o termo “externalidades” para desig-nar as perturbações causadas a terceiros,pela impossibilidade de definir exatamenteos limites de um determinado direito, isto é,não é possível impedir que o exercício deum direito interfira no direito das demaispessoas.

Imagine-se um imóvel que tenha no pisotérreo uma oficina mecânica, e no primeiroandar, um consultório médico. (COASE,1960). A oficina produz uma quantidade deruído que atrapalha a concentração do mé-dico no atendimento aos pacientes. A ativi-dade do mecânico é uma externalidade parao médico, assim como a exigência do médi-co de obrigar o mecânico não produzir ruí-do é uma externalidade para este. Ou aindaa poluição gerada por uma indústria nasredondezas. Pode ocorrer de ser impossívela não produção de poluição, de tal modoque o uso máximo dos atributos de um bemcausará uma redução das qualidades deoutros bens. A solução adotada pelo direitoé impor compensações aos prejudicadospelo exercício do direito do causador da ex-ternalidade.

Como se pode perceber nos exemplosacima, a provocação de externalidades de-

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correntes do exercício de um direito se dácom freqüência no caso dos direitos absolu-tos, exercidos erga omnes. No entanto, isso émais difícil ocorrer com o contrato, porquesua estrutura se desenvolveu para que so-mente as partes que o celebram obtenhamefeitos jurídicos decorrentes do mesmo. Nãoé um instituto jurídico destinado à produ-ção de efeitos para terceiros. Isso porque ofundamento da liberdade de contratar é aautonomia da vontade, isto é, só é possívela existência de obrigação quando a própriapessoa se impõe esse compromisso, o qual,se não cumprido, pode ser exigido coerciti-vamente com fundamento em uma normajurídica a qual estabelece a obrigação decumprir os compromissos que assumiu pe-rante a outra parte. Dessa forma, quem nãoparticipa da relação contratual não se com-prometeu a nada, e, por isso, não está sujei-to a quaisquer efeitos jurídicos decorren-tes dessa relação contratual. A isso se dáo nome de princípio da relatividade dasobrigações.

No entanto, há situações em que o exer-cício de um direito relativo, como o direitode celebrar contratos, pode produzir exter-nalidades à comunidade. No direito brasi-leiro, o direito concorrencial e o direito agrá-rio têm essa função.

O direito concorrencial, entre outras coi-sas, zela para que a celebração de determi-nados contratos entre empresas que afetama organização dos mercados, tais como aaquisição de uma empresa por outra, jointventures, franchising e sociedades cooperati-vas, não produza externalidades no mer-cado.

A Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994,prevê dois tipos de controle para a preser-vação da concorrência: o controle de con-dutas e o controle da organização industrial.

O controle de condutas que constitueminfração à ordem econômica é feito em con-junto pelos arts. 20 e 21 da Lei no 8.884.

O art. 20 estabelece que “constituem in-fração da ordem econômica, independente-mente de culpa, os atos sob qualquer forma

manifestados, que tenham por objeto oupossam produzir os seguintes efeitos, ain-da que não sejam alcançados: I – limitar,falsear ou de qualquer forma prejudicar alivre concorrência ou a livre iniciativa; II –dominar mercado relevante de bens ou ser-viços; III – aumentar arbitrariamente os lu-cros; IV – exercer de forma abusiva posiçãodominante”. O art. 21 discrimina as condu-tas que configuram infração à ordem econô-mica, caso produza qualquer dos efeitos ti-pificados no art. 20 e seus incisos. Algumasdessas condutas previstas no art. 21 visamassegurar a função social do contrato.Isso porque a lei não admite que a liber-dade de contratar seja feita em prejuízoda sociedade.

Por exemplo, a formação de acordo paraa obtenção de conduta comercial uniformeou concertada entre concorrentes, tal comoprevista no inciso II do art. 21, pode ser ummeio para a obtenção de melhores resulta-dos econômicos para as partes do mesmo.O franchising consiste em uma rede de con-tratos entre o franqueador e o franqueado,por meio dos quais o franqueador, detentorde uma tecnologia própria para a fabrica-ção de produtos ou prestação de serviços, ede uma marca com boa reputação no merca-do, permite ao franqueado beneficiar-se des-ses bens, mediante remuneração e exclusi-vidade na comercialização dos produtos eserviços relacionados ao objeto do contrato.Dessa maneira, surge uma cooperação en-tre diversos agentes econômicos. As socie-dades cooperativas também podem produ-zir o mesmo efeito econômico, de ação con-certada entre concorrentes. Contudo, quan-do a ação concertada produzir efeitos pre-judiciais à concorrência ou aos consumido-res, a Lei veda a continuação desse acordo,ainda que não haja dolo por parte das par-tes do mesmo.

O exemplo mais interessante é o contro-le prévio da organização econômica de umdeterminado mercado. O art. 54 da Lei no

8.884 impõe, ao Conselho Administrativode Defesa Econômica – CADE, o julgamen-

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to dos “(...) atos, sob qualquer forma mani-festados, que possam limitar ou de qualquerforma prejudicar a livre concorrência, ouresultar na dominação de mercados relevan-tes de bens ou serviços”.

Nesse caso, a aquisição de uma empresaou por sua concorrente, ou por seu fornece-dor ou de quem é fornecedora, ou a forma-ção de uma empresa em que figure comosócios concorrentes em um determinadomercado (p. ex. joint ventures) somente poderáocorrer se as externalidades produzidas nomercado forem aceitáveis nos termos da lei.

Tendo em vista a idéia de função socialcomo “compensação”, o § 1o do art. 54 daLei no 8.884 permite ao CADE autorizar es-ses atos de concentração previstos no caputdo art. 54, desde que atendam as seguintescondições: I – tenham por objetivo, cumula-da ou alternativamente: a) aumentar a pro-dutividade; b) melhorar a qualidade de bensou serviços; c) propiciar a eficiência e o de-senvolvimento tecnológico ou econômico; II– os benefícios decorrentes sejam distribuí-dos eqüitativamente entre os seus partici-pantes, de um lado, e os consumidores ouusuários finais, de outro; III – não impliquemeliminação da concorrência de parte subs-tancial de mercado relevante de bens e ser-viços; IV – sejam observados os limites estri-tamente necessários para atingir os objeti-vos visados. O § 2o do art. 54 permite a apro-vação de atos de concentração, desde queatendidas pelo menos três das condiçõesprevistas nos incisos do § 1 o, quando neces-sários por motivos preponderantes da eco-nomia nacional e do bem comum, e desdeque não impliquem prejuízo ao consumidorou usuário final.

Assim, o direito permite que contratosde aquisição, fusão, joint ventures, coopera-tivas e franchising sejam realizados. Mas, poroutro lado, quando esses contratos produ-zem externalidades, exige-se que a socieda-de não seja prejudicada, ou, em determina-dos casos, que a sociedade participe dasvantagens da celebração desses contratos,como forma de compensação pelas perdas

que sofrerá por força das externalidades. Nes-sa perspectiva, a liberdade de contratar seráexercida na acepção “positiva” do termo.

O segundo exemplo, lembrado duranteos trabalhos do 1o Congresso Ítalo-Luso-Bra-sileiro de Direito Civil Comparado, é o di-reito agrário brasileiro. Tendo em vista quea exploração de atividade agropecuáriapode comprometer a preservação ambien-tal, a Lei no 4.504, de 30 de novembro de1964 (Estatuto da Terra), e o Decreto no

59.566, de 14 de novembro de 1966, impõema conservação dos recursos naturais comoobjeto dos contratos agrários:

Lei no 4.504“Art. 13 – Os contratos agrários regu-lam-se pelos princípios gerais que re-gem os contratos de Direito comum,no que concerne ao acordo de vonta-de e ao objeto, observados os seguin-tes preceitos de Direito Agrário:

(...)III – obrigatoriedade de cláusulas

irrevogáveis, estabelecidas pelo IBRA,que visem à conservação de recursosnaturais;”

Decreto no 59.566“Art 13. Nos contratos agrários, qual-quer que seja a sua forma, contarãoobrigatoriamente cláusulas que asse-gurem a conservação dos recursosnaturais e a proteção social e econô-mica dos arrendatários e dos parcei-ros-outorgados a saber (Art. 13, inci-sos III e V da Lei no 4.947-66);”

Pode-se concluir que a função social docontrato, tomada em sentido estrito, não estápresente em todos os contratos. Somente épossível falar em função social quando acelebração de determinado contrato produ-zir externalidades à sociedade. A compra-e-venda de um chocolate, ou de um automó-vel, não tem função social, porque terceirosnão sofrerão efeitos desse contrato, mas acompra-e-venda de uma empresa tem fun-ção social, porque isso pode afetar a organi-zação dos mercados, e a vida das pessoasem geral.

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7. A função social docontrato em sentido amplona jurisprudência paulista

Foi visto acima a previsão legal da fun-ção social do contrato. Agora resta analisara aplicação jurisprudencial desse instituto,e será a forma pela qual será dada a concre-tude ao art. 421 do Código Civil. A jurispru-dência, sobretudo no Estado de São Paulo,vem enfrentando a questão da função soci-al do contrato nos contratos em matéria deplanos de saúde. Entre 1998 a 2004, foramproferidos mais de cinqüenta acórdãos so-bre a mesma matéria. O problema enfrenta-do pelos tribunais é o seguinte: a pessoacontrata um plano de saúde, que exclui porvia contratual a cobertura de tratamento decirurgias de redução de estômago, displa-sia mamária e AIDS, entre outros.

Trata-se da contratação6 de um plano deseguro-saúde, cujo contrato previa expres-samente a exclusão do tratamento de dis-plasia mamária. A esposa do segurado ti-nha esse problema de saúde e foi operada.A companhia de seguros, sem saber que omotivo da cirurgia era a doença excluídacontratualmente, pagou pela mesma. Poste-riormente, ingressou com ação contra o se-gurado, para reaver o dinheiro pago ao hos-pital. O Tribunal condenou o segurado arestituir à companhia de seguros o valorpago pela cirurgia, com fundamento de queprevalecia a livre autonomia das partes deexcluir contratualmente a cobertura de de-terminadas doenças, posto que, em matériade seguros, é lícita a exclusão de determina-dos riscos, por serem tão graves ou exten-sos, que podem comprometer o equilíbrio damutualidade do seguro.

Referência expressa à função social docontrato foi feita, mas, mesmo assim, não foiaplicada ao caso concreto:

“A Turma Julgadora não estáalheia a doutrina atual que prega umanova função social do contrato, umtema sedutor e muito bem analisadopor Orlando Gomes e Antunes Varela

(‘Direito Econômico’, Saraiva, 1977).A inalteralidade das convenções(pacta sunt servanda) continua comofator de segurança, mas a boa-fé con-tratual obriga o juiz a buscar o equilí-brio pela finalidade do contrato, coma sua adaptação às necessidades re-ais do contratante socialmente maisfraco. (...) Rejeitar a exigibilidade dacobrança seria transformar o segurode natureza privada em assistênciasocial, agindo o Judiciário como in-terventor nas relações econômicaspara colocar empresas particulares noexercício de funções que são própriasdo Estado”.

Porém, nos últimos anos, houve umamudança de entendimento, no sentido detutelar o contrato com base na função socialdo contrato.

Nesse caso a ser analisado 7, que ilustraa mudança de entendimento sobre o tema, aautora da ação tinha obesidade mórbida(seu índice de massa corpórea era superiora 43) e processou o plano de saúde para au-torizar a cirurgia de redução de estômago.Essa cirurgia não era cadastrada pela AMB– Associação de Médicos Brasileiros, e ocontrato entre a autora e o plano de saúdeexcluía a cobertura de procedimentos cirúr-gicos não classificados nos catálogos médi-cos. O plano de saúde foi obrigado a autori-zar a cirurgia, com base na função socialdos contratos de planos de saúde:

“A autora, ora agravada, aderiu aoplano com a agravante quando me-nor, o que afasta a idéia de estar agin-do com má-fé (como hipóteses de do-enças pré-existentes ou de procedi-mentos cirúrgicos de alto custo, comotransplante de medula óssea, porexemplo). Sempre pagou as presta-ções para manter hígido o sistemaequilibado e o regime de custo benefí-cio. Agora, quando a urgência clamapela ‘gastrologia redutora’, uma chan-ce real de combate à obesidade mórbi-da, a recusa ao financiamento deve ser

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preponderante ao fator utilidade mé-dica e social da medida médica quese pretende realizar. Caso contrário,não cumpre o contrato sua funçãosocial”.

Ainda em casos de planos de saúde, tem-se proibido a rescisão unilateral de contra-tos cujo segurado seja pessoa com mais desessente anos, porque o risco faz partedesses contratos, e a rescisão consiste emviolação da função social do contrato:

“O pressuposto ideológico do con-trato não é uma matriz vulnerável. Aocontrário: a base da operacionalida-de é justamente o cumprimento daassistência médica sem discriminaçãodo conveniado, sem o que o ajuste per-de sua função social e passa a ser ca-tegorizado como instrumento rentáveldas entidades que exploram tais seg-mentos. O risco integra a comutativi-dade, de sorte que é impossível res-cindir o contrato pela presunção deque pessoa velha não oferece lucros,um absurdo que cumpre reprimir comrigor”. (TJSP. Ap. Cível no 82.043-4/0.3a Câmara de Direito Privado. Rel. Des.Enio Santarelli Zuliani. j. 01/02/2000).

Nesse caso, a rescisão unilateral do con-trato viola a função social do contrato, poisse o segurado idoso realiza sua contraparti-da, pagando as mensalidades do plano desaúde, não há por que interromper o contra-to. Permitir a interrupção do contratoimplicaria uma má circulação dos serviçosde atendimento médico. Por isso, nesse caso,a função social do contrato, aplicada resi-dualmente, pode ser um instrumento útilpara corrigir essa situação, tendo em vistaque não se pode falar em objeto ilícito, ouser possível aplicar outros institutosjurídicos. Porém, o aplicador da norma jurí-dica deve ficar atento à existência deinstitutos jurídicos já previstos no direitopara a solução do caso concreto, e nãoaplicar o art. 421 em toda e qualquersituação.

8. Precauções e critérios para aaplicação da função social do contrato

Por fim, é preciso refletir sobre o alcancedos efeitos da função social do contrato, afim de evitar que a aplicação desse institutopossa-se revelar injusta, ainda que bem in-tencionada.

Constata-se que, na aplicação do concei-to de função social do contrato, e em atendi-mento à solidariedade social, a empresaadministradora do seguro-saúde e os demaissegurados foram obrigados a socorrer a umadas seguradas, estendendo-se a coberturado plano para a operação de obesidademórbida. Em outras palavras, enquanto umdos segurados se beneficiou da cirurgia semcontrapartida financeira, a empresa admi-nistradora e os outros segurados (que nãotiveram acesso a esse benefício) tiveram quearcar para que apenas um dos seguradostivesse acesso à mesma.

Dessa forma, a aplicação do conceito defunção social do contrato sem qualquer cri-tério faz com que esse instituto se convertaem responsabilidade social da empresa (edas demais pessoas). É um fato esse que con-vém ao Estado, pois esse, por meio do usode um termo carregado de significado (afi-nal quem é contra a função social do contra-to?) poderá deixar de cumprir com suas obri-gações, no sentido de não disponibilizardeterminados serviços públicos. Se o Esta-do não existe para servir, então só se podeconcluir que este se tornou um fim em simesmo.

No caso das autorizações para a reali-zação das cirurgias, verifica-se que a em-presa de seguro-saúde, ao não cobrir deter-minadas doenças, não está, dessa forma,obtendo mais vantagens em prejuízo dossegurados. Ao contrário, a concessão des-sas cirurgias a um dos segurados represen-tará uma desvantagem para a empresa, epara os demais segurados. Assim, estendera cobertura a apenas um segurado consisteem enriquecimento sem causa, já que os de-mais segurados da mesma faixa etária esta-

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rão financiando um dos segurados, sem queessa possibilidade lhes seja facultada. Aocontrário, ainda que imbuído de boas inten-ções, pode-se fazer justiça em um caso me-diante a provocação de injustiça às demaispessoas na mesma situação. Por isso mes-mo, como medida de atendimento às neces-sidades dos segurados e preservação doequilíbrio contratual, promoveu-se a rees-truturação do setor.

É possível, a partir dos exemplos acima,estabelecer um critério para a aplicação dafunção social do contrato em sentido am-plo: quando um dos contratantes obtivervantagens injustificadas em um contrato,que implicar uma má circulação dos direi-tos de propriedade, e não houver um insti-tuto jurídico próprio para a correção dessaanomalia, aí sim se aplica a função socialdo contrato. Do contrário, a aplicação dafunção social do contrato implicará enrique-cimento sem causa para a outra parte.

Nos contratos analisados pelo CADE,verifica-se a imposição de função social,quando o contratante, ao exercer sua liber-dade, estiver obtendo uma vantagem des-proporcional em prejuízo da sociedade. Porexemplo, a constituição de uma joint ventureque configure cartel e fixe os preços de de-terminado produto ou serviço no valor maisalto possível. Fica evidente que haverá umaumento injustificado dos lucros em prejuí-zo dos consumidores. Por isso, a lei autori-za o CADE aprovar essa joint venture, con-tanto que a sociedade possa-se beneficiardesse contrato, como medida de justiça. Ou,quando isso não for possível, vetar a consti-tuição da mesma.

Logo, o critério para a aplicação da fun-ção social do contrato em sentido estrito é oseguinte: a liberdade de contratar deve aten-der à função social do contrato, somentequando o contratante estiver obtendo van-tagens injustificadas, porém lícitas, ou àcusta da produção de externalidades. As-sim, para compensar a sociedade pelas per-das que sofre, a função social do contratoimpõe deveres no exercício dessa liberdade

contratual, a fim de compensar a sociedadedos efeitos que sofre decorrentes do contrato.

Assim, propõe-se um esquema de apli-cação do princípio da função social do con-trato:

1. O exercício da liberdade de contratarprovoca externalidade à sociedade? Se nãohá, o contrato não tem função social; se sim,impõe-se o dever de compensar a sociedadecom fundamento na função social do con-trato.

2. Verificar se o contrato está desequili-brado para uma das partes.

3. Verificar se o reequilíbrio da relaçãocontratual implicará sacrifícios não relaci-onados com o contrato para a outra parte(responsabilidade social da empresa, enri-quecimento sem causa). Se causar sacrifíci-os, o contrato já cumpre sua função social.

4. Verificar se existe instituto jurídicodestinado a corrigir o desequilíbrio contra-tual. Se não houver instituto, aplica-se a fun-ção social do contrato.

9. Conclusão

A função social do contrato é um institu-to jurídico destinado à realização de justiçaao caso concreto. Trata-se de uma limitaçãoà liberdade de contratar, para que, em senti-do amplo, os institutos jurídicos produzamseus efeitos regulares; em sentido estrito,impõe deveres à liberdade de contratar,quando o seu exercício provocar externali-dades à sociedade.

Existem diversos institutos jurídicos queasseguram a função social do contrato emsentido amplo, entendida como finalidadesocial, como a lesão, a resolução por onero-sidade excessiva, bem como as normas deordem pública e a análise do objeto do con-trato. Por isso a aplicação do art. 421 doCódigo Civil é residual.

A função social do contrato em sentidoestrito está consagrada no direito concor-rencial e no direito agrário, que são ramosdo direito que tratam de relações jurídicascujo objeto é do interesse da coletividade,

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como o mercado e a exploração econômicado ambiente. Sua aplicação visa a compen-sar a sociedade dos efeitos que o contratopode causar a terceiros. Deve-se atentar parao fato de que a maior partes dos contratosnão causa externalidades a terceiros; masquando isso ocorrer, aí sim se aplica o art.421 do Código Civil.

Colocada como princípio de direito con-tratual no Código Civil, deve ser aplicadacom cautela, pois a falta de critérios de suaaplicação pode implicar responsabilidadesocial do indivíduo e das pessoas jurídicas,a qual, do ponto de vista jurídico, competeao Estado, bem como enriquecimento semcausa para quem da aplicação desse artigose beneficiar.

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Notas

1 Em 1931, o Papa Pio XI lançou a EncíclicaQuadragesimo Anno, a qual celebra os quarenta anosda Encíclica Rerum Novarum, e na qual se fazuma reinterpretação dessa última, de modo aevidenciar que o Papa Leão XIII já falava emfunção social.

2 Karl Renner (1870-1950) formou-se em direi-to, mas se tornou bibliotecário do Parlamento Aus-tríaco em 1896, ocasião em que escreveu a obrasobre a função social dos institutos jurídicos. Pos-teriormente, tornou-se deputado, Chanceler e Mi-nistro das Relações Exteriores da Áustria entre 1918e 1920. Foi Presidente da Assembléia de Deputa-dos da Áustria em 1933. Com o fim do III ReichAlemão, organizou o governo provisório da Áus-tria. Novamente foi Chanceler, e em 1945 tornou-sePresidente da Áustria.

3 O Código Civil de 2002 usa uma única vez otermo “função” como finalidade: “Art. 420. Se nocontrato for estipulado o direito de arrependimen-to para qualquer das partes, as arras ou sinal terãofunção unicamente indenizatória. Nesse caso, quemas deu perdê-las-á em benefício da outra parte; equem as recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente.Em ambos os casos, não haverá direito a indeniza-ção suplementar”. (grifos nossos)

4 Anos mais tarde, essa distinção entre bens deprodução e bens de consumo para a atribuição defunção social foi sutentada por Fábio KonderComparato (1986, p. 71-79).

5 Ao contrário da função social da propriedade,cujo conteúdo mínimo dos deveres está indicado

explicitamente na Constituição e no Código Civil, otermo “função social do contrato” não foi especifi-cado. Essa indeterminação de significado decorredo fato de se ter consubstanciado a função socialno Código Civil mediante o uso de uma cláusulageral. Essa opção pelo uso de cláusulas gerais é asegunda característica do texto do Código Civil de2002. (REALE, 2003, p. 17).

6 TJSP. Ap. Cível no 27.433-4/8. 1a Câmara deFérias. Rel. Des. Enio Santarelli Zuliani.Comarca deSão Paulo J. 06/03/1998, Rel. Des. Enio SantarelliZuliani.

7 TJSP, Ag. Instrumento no 233.379-4/8. 3a Câ-mara de Direito Privado. Rel. Des. Enio SantarelliZuliani. Comarca de S. Paulo. J. 26.02.2002.

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1. Introdução

John Rawls1 é considerado por BrianBarry (1994) como “the most original and in-teresting political philosopher of this century”.Sua obra A theory of justice, publicada em 1971pela Harvard University Press, trouxe novofôlego à Filosofia Política e produziu um dosmaiores debates intelectuais do século XX.2

O trabalho que se segue não tem por ob-jeto o estudo do complexo pensamento deJohn Rawls, mas, sim, a exposição da teoriaralwsiana da justiça, que adentre os seusaspectos políticos, jurídicos e filosóficosmais importantes, encontráveis na obra Atheory of justice.

Nesse esforço, cuidou-se, pois, de refle-tir sobre o justo e o injusto, a partir do para-

A teoria rawlsiana da justiça

Amandino Teixeira Nunes Junior

Amandino Teixeira Nunes Junior é Mestreem direito pela UFMG, doutor em Direito pelaUFPE, professor universitário e consultor le-gislativo da Câmara dos Deputados.

Sumário1. Introdução. 2. A obra de John Rawls. 3. A

teoria rawlsiana da justiça. 3.1. A justiça comoeqüidade (justice as fairness). 3.2. Os princípiosda justiça. 3.3. A seqüência de quatro estágiosde concretização dos princípios da justiça. 3.4.A justiça política e a constituição: o princípioda (igual) participação. 3.5. O conceito de justi-ça na economia política. 3.6. O bem como fimsupremo e o sentido da justiça. 4. As críticas àteoria rawlsiana da justiça. 5. Conclusão.

“A justiça é a primeira virtude das instituições soci-ais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento.”

John Rawls – “Uma teoria da justiça”

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digma ralwsiano, assentado na idéia de“justiça como eqüidade” (justice as fairness),em que a eqüidade reside precisamente noigualitarismo da “posição original”, isto é,num estado inicial do contrato social.

2. A obra de John Rawls“Uma teoria da justiça”, obra de John

Rawls, foi publicada, no Brasil, em 1997, pelaEditora Martins Fontes. Divide-se em trêspartes, num total de nove capítulos e sete-centos e oito páginas. A primeira parte tempor epígrafe Teoria; a segunda, Instituições; ea terceira, Objetivo.

Na primeira parte, Rawls defende a idéiada “justiça como eqüidade” (justice as fair-ness) e apresenta os princípios da justiça quesão escolhidos pelos indivíduos na “posi-ção original” (que corresponde ao “esta-do da natureza” na teoria do contrato so-cial), em que desconhecem que posiçãoeconômica ou que status ocuparão na so-ciedade.

Na segunda parte, Rawls sustenta a ne-cessidade de uma democracia constitucio-nal como pano de fundo para a aplicaçãodas idéias apresentadas na primeira parte.Na terceira (e última) parte, Rawls estabele-ce uma relação entre a teoria da justiça e osvalores da sociedade e o bem comum.

A obra de Rawls contempla os resulta-dos de várias décadas de pesquisa, publi-cados como artigos autônomos e anterioresdesenvolvidos pelo autor, que foram reuni-dos num único livro que trata sistematica-mente do tema da justiça. Propõe, em sínte-se, um modelo teórico pelo qual possamosclassificar como democrática e (mais oumenos justa) a estrutura básica de determi-nada sociedade moderna.

3. A teoria rawlsiana da justiçaJohn Rawls pretende apresentar uma te-

oria da justiça que nega o intuicionismo e outilitarismo e leva a um nível superior deabstração a clássica teoria do contrato soci-al tal como se encontra em Locke, Rousseau

e Kant. Nesse sentido, o professor em Har-vard é tido como um neocontratualista con-temporâneo.

O contrato original sustentado por Ra-wls não é o que inaugura a sociedade civilou o que define uma forma de governo emparticular. Na teoria rawlsiana, os princí-pios da justiça social, que se aplicam à es-trutura básica da sociedade, é que serão oobjeto do consenso original. Daí o conceitode “justiça como eqüidade” (justice as fair-ness) que define, a um só tempo, a origem, anatureza e a função dos princípios propos-tos por Rawls.

Os objetivos de Rawls são claros, no sen-tido de que ele se propõe a discutir e a des-bancar o utilitarismo e o intuicionismo. Anoção de eqüidade (fairness) é a regra de todoo espectro de reflexões introduzido por Ra-wls em torno da questão da justiça.

3.1. A justiça como eqüidade(justice as fairness)

Para Rawls, a justiça é a primeira virtu-de das instituições sociais, isto é, aquilo quea verdade é para a ciência, deve a justiça serpara as instituições sociais.3 Rawls concebea sociedade como um todo e suas instituiçõescomo corpos (em sentido amplo), negandoassim a visão individualista, que, por vezes,recai num utilitarismo, por ele combatido.

A definição ralwsiana da sociedade é ade uma associação mais ou menos auto-su-ficiente de indivíduos que, em seu relacio-namento, reconhecem regras de condutascomo obrigatórias, e que, na maioria das ve-zes, são obedecidas. Essas regras de condu-ta especificam um sistema de cooperaçãosocial concebido para realizar o bem comumdas pessoas.

Nesse contexto, surgem tanto identida-de de interesses como conflito de interessesentre as pessoas que compõem a sociedade,pois estas podem acordar ou discordarpelos mais variados motivos quanto às for-mas de repartição dos direitos e deveres edos benefícios e ônus gerados no convíviosocial.

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Assim, Rawls postula um conceito clás-sico de justiça, reconhecendo a existênciade um conflito de interesses e a necessidadede encontrar um standard quanto aos prin-cípios que deverão orientar a associaçãohumana. Para Rawls, há uma diversidadede interpretações de um mesmo conceito, epara a qual tenta encontrar um consenso nanoção de “justiça como eqüidade” (justice asfairness).

É uma dada concepção da justiça queRawls defende na sua obra por oposição aoutra, de caráter utilitarista, e que, segundoo próprio autor afirma no prefácio à ediçãobrasileira, é limitada e frágil para fundamen-tar as instituições da democracia constitu-cional. Qual é, então, a alternativa propostapor Rawls (2000, prefácio, p. 14)? Generali-zou-se o contratualismo clássico, conduzin-do-o a um mais elevado grau de abstração.

A idéia da “justiça como eqüidade” (jus-tice as fairness), como o próprio autor reco-nhece, deriva do pensamento de Kant, em-bora o primeiro negue o valor da generali-dade e da universalidade do segundo, porentender que não se tratam de princípiosinéditos na Filosofia (RAWLS, 2000, p. 275).

A idéia segundo a qual os princípiosmorais derivam de uma escolha racionalnão é inovadora em Rawls, pois Kant já adestacava na sua doutrina, bem como a no-ção da Filosofia Moral como o estudo daconcepção e o resultado de uma decisão ra-cional bem definida, o que contraria a ne-cessidade da aceitação geral.

É de observar que o “véu de ignorância”(veil of ignorance), mencionado por Rawls,priva as pessoas que ocupam a “posiçãooriginal” do conhecimento que as capacita-ria à decisão racional, possibilitando assima solução da oposição à aceitação geral.Rawls (2000, p. 277) defende ainda os prin-cípios da justiça como equiparáveis aos im-perativos categóricos de Kant e a noção de“posição original” e escolha desses princí-pios como aplicação prática dessa tese, ecultivo da ética, do respeito mútuo e da auto-estima.

Para assegurar o funcionamento da teo-ria da “justiça como eqüidade” (justice asfairness), Rawls serve-se de dois princípiosda justiça, escolhidos pelos indivíduos na“posição original”.

3.2. Os princípios da justiça

Rawls, na sua obra, apresenta dois prin-cípios que seriam escolhidos unanimemen-te pelos indivíduos na “posição original”,em que desconhecem qualquer informaçãoparticular sobre sua situação na sociedade,como, por exemplo, sua classe social, seupoder econômico e até mesmo seus dotes ehabilidades físico-naturais, como o grau deinteligência e de força, e suas idéias própri-as do Bem.

Por força de tais restrições próprias da“posição original”, Rawls (2000, p. 13) afir-ma que os indivíduos escolheriam os prin-cípios da justiça sob um “véu de ignorân-cia” (veil of ignorance). Trata-se de um expe-diente útil à demonstração da justiça dosprincípios rawlsianos, pois “isso garanteque ninguém é favorecido ou desfavorecidona escolha dos princípios pelo resultado doacaso natural ou pela contingência das cir-cunstâncias sociais. Uma vez que todos es-tão numa situação semelhante e ninguémpode designar princípios para favorecer suacondição particular, os princípios de justi-ça são o resultado de um consenso ou ajusteeqüitativo.”

Para Rawls (2000, p. 5), são dois os prin-cípios da justiça social, assim expressos:

“Primeiro: cada pessoa deve ter umdireito igual ao mais abrangente sis-tema de liberdades básicas iguaisque seja compatível com um siste-ma semelhante de liberdade para asoutras.Segundo: as desigualdades sociais eeconômicas devem ser ordenadas detal modo que sejam ao mesmo tempo:(a) consideradas como vantajosaspara todas dentro dos limites do ra-zoável, e (b) vinculadas a posições ecargos acessíveis a todos”.

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Esses princípios, para Rawls, têm comoobjeto primário a estrutura básica da socie-dade e presidem a distribuição de direitos edeveres, benefícios e ônus. O primeiro prin-cípio define as liberdades básicas enquantoque o segundo princípio regula a aplicaçãodo primeiro, corrigindo as desigualdadessociais.

Assim, o primeiro princípio aplica-se àsliberdades básicas, que devem ser distribu-ídas de modo eqüitativo para todos: liber-dades políticas, liberdade de pensamento,liberdade de consciência, liberdade de ex-pressão, liberdade de reunião, liberdade deintegridade física e moral, liberdade de pos-suir propriedade privada e liberdade de nãoser preso arbitrariamente.

O segundo princípio aplica-se às desi-gualdades sociais que somente são justasse for garantida uma igualdade eqüitativade oportunidades e se as desigualdades re-sultarem em benefícios para todos os indi-víduos, especialmente para os menos favo-recidos na sociedade.

Como salienta Eduardo C. B. Bittar (2000,p. 217-218):

“A aplicação de ambos os princípiosconfirma continuamente a realização da jus-tiça como eqüidade e igualdade. E isto so-bretudo porque se trata de uma teoria queidentifica as desigualdades naturais e pro-cura corrigi-las. Deve-se mesmo, numa teo-ria que tenha este perfil, buscar-se romper adesigualdade natural entre as pessoas, paraque assim se faça justiça. Não se trata dediscutir se a distribuição natural é ou nãojusta, mas sim de se discutir se a justiça dasinstituições é capaz de suprir diferenças queimpedem o exercício de iguais direitos; se-xos diferentes, corpos diversos, situaçõeseconômicas distintas, posições sociais di-versificadas não devem receber o mesmo tra-tamento. Mais que isto: os dois princípiosdevem se incumbir de fazer com que todosparticipem da melhor forma possível dasestruturas sociais de forma que a estruturacooperativa da sociedade facilite a manu-tenção de uma sociedade organizada”.

Esses princípios são expostos e defendi-dos por Rawls como bases para um justosistema de cooperação voluntária de todosos indivíduos na sociedade (tanto os maisafortunados quanto os menos afortunados),tendo em vista a consecução do bem comum.

3.3 A seqüência de quatro estágios deconcretização dos princípios da justiça

Na “posição original”, defende Rawls,os indivíduos definem e adotam racional-mente os princípios da justiça que são apli-cados à estrutura básica da sociedade, emcondições de total eqüidade (fairness) e sobo “véu de ignorância” (veil of ignorance), queimpede que os princípios sejam escolhidoscom base em interesses e preferências con-cretas.

Numa ordem lógica, depois de adotadosos princípios da justiça na “posição origi-nal”, é necessária a apresentação de umaseqüência de quatro estágios que explicita aaplicação dos princípios relativos às insti-tuições básicas. Cada estágio representa umaposição adequada para, sucessivamente, se-rem examinadas as questões da justiça.

Assim, com a aplicação dos princípiosda justiça na “posição original”, proceder-se-á à formação de uma convenção consti-tuinte que decidirá sobre a justiça das di-versas formas políticas e aprovará umaConstituição, que, por sua vez, determinaráum sistema de poderes políticos constituci-onais e os direitos básicos dos cidadãos, res-peitados sempre os princípios da justiça jáadotados na “posição original”.

A elaboração da Constituição pelos cons-tituintes eleitos na “posição original” não éabsolutamente neutra, de modo a desconsi-derar as condições políticas, econômicas eculturais da sociedade. Rawls sustenta queos convencionais devem, com as informa-ções disponíveis e sob condições de totaleqüidade, percorrer as hipóteses das Cons-tituições justas e factíveis procurando umaque, nas circunstâncias histórico-sociais elevando em conta as características daque-le povo, mostre-se com mais probabilidade

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de resultar em ordenações que satisfaçamos princípios da justiça. Para Rawls, isso éum caso de justiça procedimental imperfeita,pois qualquer procedimento político factívelpoderá vir a produzir um resultado injusto.

Constituição justa é aquela que consistenum processo justo, desenvolvido de modoa permitir um resultado justo, vale dizer,uma atividade política submetida a umaConstituição destinada às ordenações ade-quadas aos princípios da justiça.

O primeiro princípio da justiça constituio padrão primário para a convenção consti-tuinte. As exigências principais são que asliberdades básicas da pessoa e as liberda-des de consciência e de pensamento sejamprotegidas e que o processo político, no seuconjunto, seja justo.

O segundo princípio da justiça, que in-tervém no estágio legislativo (terceiro está-gio), obriga que as políticas econômicas esociais se orientem para a maximização dasexpectativas no longo prazo dos menos afor-tunados, respeitando as condições de igual-dade eqüitativa de oportunidades e man-tendo as liberdades iguais para todos. Nes-se ponto, o conjunto de fatos econômicos esociais é relevante.

O quarto estágio é o da aplicação dasnormas aos casos concretos, realizada pe-los juízes e administradores, e o da obedi-ência dos cidadãos às normas em geral4 ,sendo que a injustiça da lei não é uma razãosuficiente para não aderir a ela. Sempre quea estrutura básica da sociedade for justa,devemos reconhecer as leis injustas comoobrigatórias, desde que não excedam certoslimites de justiça.

Nesse estágio, não se observa qualquerresquício do “véu da ignorância” (veil of ig-norance), pois são as circunstâncias de cadacaso concreto que deverão ser examinadaspelos aplicadores do direito.5

3.4. A justiça política e a constituição: oprincípio da (igual) participação

Rawls define “justiça política” comoaquela que deriva da Constituição e põe em

prática o princípio da (igual) liberdade paraesta parte da estrutura básica. A Constitui-ção deve ser um processo justo que satisfa-ça as exigências da (igual) liberdade, deven-do ser concebida de modo que, entre todasas ordenações viáveis, seja aquela que te-nha mais possibilidades de conduzir a umsistema de legislação justo e eficaz.

Para Rawls (2000, p. 241), o princípio da(igual) liberdade, quando aplicado ao pro-cesso político definido pela Constituição,será referido como princípio da (igual) par-ticipação, que “exige que todos os cidadãostenham um direito igual de participar doprocesso constitucional, estabelecendo asleis às quais eles devem obedecer, e de de-terminar seu resultado final.”

O princípio da (igual) participação fun-da-se na idéia de que, se o Estado deve exer-cer uma autoridade final e coercitiva sobreum determinado território e se assim afetaas expectativas da vida das pessoas, o pro-cesso constitucional deve preservar a repre-sentação igual, presente na “posição origi-nal”, no mais alto grau possível.

O princípio da (igual) participação écompatível com a possibilidade de a Cons-tituição circunscrever as atribuições do Po-der Legislativo a diversos aspectos, inde-pendentemente de a maioria sólida dos elei-tores poder sempre alcançar seus objetivos,até mesmo mediante alteração institucional.Pressupõe, ainda, que todos os adultos men-talmente sadios, ressalvadas certas exceçõesgeralmente conhecidas, têm o direito de to-mar decisões na vida política, observada,na medida do possível, a regra “um eleitor,um voto”. A falta de unanimidade nas deli-berações políticas faz parte do contexto deaplicação da justiça, de modo que a inexis-tência de oposição sacrifica a democracia.

Segundo Rawls (2000, p. 241), a regra“um eleitor, um voto”, quando obedecidaestritamente, implica “que cada voto temaproximadamente o mesmo peso na deter-minação do resultado das eleições”. O prin-cípio da (igual) participação significa, ain-da, que todos os cidadãos devem ter um di-

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reito de acesso igual, pelo menos em senti-do formal, aos cargos públicos. Cada cida-dão pode aderir a partidos políticos, candi-datar-se a cargos eletivos e ocupar postosde autoridade, muito embora possa haverrestrições relativas à idade, residência, eassim por diante.

O alcance do princípio da (igual) parti-cipação, para Rawls, é delimitado pelasnormas constitucionais, que impõem limi-tes à regra da maioria. Assim, a liberdadepolítica mais ampla é aquela estabelecidapor uma Constituição que usa a estrita re-gra da maioria, segundo a qual uma mino-ria não pode dominar uma maioria paratoda e qualquer deliberação política. Porém,sempre que a Constituição limita a autori-dade e o âmbito das maiorias, quer exigin-do uma maior pluralidade para certas deli-berações, quer por meio de um elenco de di-reitos fundamentais que restrinja a atuaçãodo Poder Legislativo, a liberdade política émenos extensa.6

3.5. O conceito de justiça na economia política

Os princípios da justiça, para Rawls,podem servir como parte de uma doutrinade Economia Política, isto é, como padrõespelos quais podemos analisar as organiza-ções e políticas econômicas e suas institui-ções básicas.

“Uma doutrina da Economia Políticadeve concluir uma interpretação do bempúblico que se baseia numa concepção dejustiça. Deve orientar as reflexões do cida-dão quando ele considera as questões dapolítica econômica e social. O cidadão deveassumir a perspectiva da convenção consti-tuinte ou do estágio legislativo e avaliarcomo se aplicam os princípios da justiça.”(RAWLS, 2000, p. 286).

O efeito da legislação econômica e soci-al, segundo Rawls, é o de especificar a es-trutura básica. O sistema social dá formaaos desejos e aspirações de seus cidadãos.Determina, em parte, o tipo de pessoas quequerem ser e também que efetivamente são.O sistema econômico, por sua vez, não sa-

tisfaz apenas desejos e necessidades exis-tentes, mas também cria e regula as necessi-dades futuras.

A teoria da justiça pressupõe uma teoriado bem, mas dentro dos limites amplos,que não prejudiquem a escolha do tipo depessoas que os sujeitos querem ser. Umavez deduzidos os princípios da justiça, adoutrina contratualista fixa limites à con-cepção do bem, que decorrem da prioridadeda justiça sobre a eficiência e da prioridadeda liberdade sobre os benefícios econômi-cos e sociais.

O resultado dessas considerações, afir-ma Rawls (2000, p. 289), “é que a justiçacomo eqüidade não está à mercê de interes-ses e necessidades concretas”. O objetivo delongo alcance da sociedade é decidido nassuas linhas principais, independentemen-te dos desejos particulares e das necessida-des dos seus membros atuais. A estabili-dade da sociedade depende de um siste-ma justo que produza apoio para si mes-mo. Daí a necessidade de desencorajardesejos que colidam com os princípios dajustiça.

3.6. O bem como fim supremo eo sentido da justiça

Para Rawls, somente em uma socieda-de bem-ordenada pode-se realizar o bemcomo fim supremo. Como é definida, no en-tanto, uma sociedade bem-ordenada? Rawls(2000, p. 631) a caracteriza como aquela ra-cionalmente estruturada para promover obem-estar de seus membros e efetivamenteregulada por uma concepção pública de jus-tiça. A idéia-força “é que a justiça e o bemsão congruentes pelo menos nas circunstân-cias de uma sociedade bem-ordenada.”

É com base nessa concepção que emergea “justiça como eqüidade” (justice as fairness)e forma unidade o pensamento rawlsiano.Qual é o bem da justiça? Ao analisar o bemcomo racionalidade, Rawls o vincula à teo-ria da justiça, por oposição ao hedonismoutilitarista, e clama por estabilidade na sen-da da justiça. O bem é, pois, assegurado pe-

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los princípios da justiça, tal qual numa óti-ca cartesiana de dedução.

Nas palavras de Rawls (2000, p. 643):“Assim, uma sociedade bem-organiza-

da satisfaz os princípios da justiça, que sãocoletivamente racionais a partir da perspec-tiva da posição original; e do ponto de vistado indivíduo, o desejo de afirmar a concep-ção pública da justiça como fator determi-nante do nosso plano de vida é coerente comos princípios da escolha racional. Essas con-clusões apóiam os valores da comunidade,e, ao atingi-los, minha análise de justiçacomo eqüidade se completa.”

4. As críticas à teoriarawlsiana da justiça

Após o lançamento público de “Uma te-oria da justiça”, Rawls enfrentou um inten-so debate intelectual em torno da sua obra,o que tem sido fator de merecida atenção dacrítica contemporânea da teoria da “justiçacomo eqüidade” (justice as fairness).

Eduardo C. B. Bittar (2000, p. 223) lem-bra que “muitos foram os pontos atacadospela crítica, que ora se detém num aspectoisolado, ora se detém na organicidade e nacoerência da obra como um todo, ora se de-tém no que há de mais filosófico em suasestruturas de pensamento”.

Adiante, o autor citado enumera algunsdos principais pontos da obra de Rawlssujeitos à crítica:

• (...) Seria criticável a posição de Rawlsde dizer que as liberdades são elencáveisem uma série finita e reconhecida quase queaprioristicamente. Os direitos fundamentaisda primeira, segunda, terceira e quarta ge-ração estão para comprovar a refutação quese dirige a este aspecto de sua teoria (...).

• (...) Seria criticável o artificialismo domodelo original de contrato que está a per-mear sua hipótese para re-fundar as basesda sociedade moderna e de suas práticasinstitucionais; enfim, o que ocorre é que desteartificialismo é que surgem todas as elocu-brações da justiça como eqüidade (...).

• (...) Seria criticável a abnegação a qual-quer historicismo, ou a qualquer experiên-cia moral, política e jurídica da teoria, poispressupõe-se que seja possível definir naposição original qual o melhor sistema a sereleito para presidir as instituições humanaspela simples ruptura do véu da ignorância,independentemente de qualquer experiên-cia moral (...).

• (...) Seria criticável o racionalismo excathedra que professa Rawls, um pouco aoestilo kantiano, pressupondo experiência ecategorias de pensamento incomparáveis enão inseridos em qualquer fundamento his-tórico ou social (...).

• (...) Seria criticável a ideologia que es-taria a perpassar toda a sua construção teó-rica: a do liberalismo (...). (BITTAR, 2000, p.224-226).

Robert Nozick (1991), em seu livro“Anarquia, Estado e utopia“, formula tam-bém crítica a Rawls, no sentido de que não énecessário criar uma sociedade (como seinfere da “posição original” de Rawls), poisesta já existe e está funcionando e que nelahá uma repartição social. Rawls não partede um argumento dedutivo direto, mas, sim,de uma posição e de um processo preconi-zando que qualquer princípio emergentedaquela posição e daquele processo consti-tui princípio da justiça.

Para Nozick, é imperfeita a teoria da jus-tiça rawlsiana, por se aplicar unicamente àestrutura básica da sociedade e não leva emconta os microcosmos sociais, o que podeconduzir a que a justiça seja alcançada como sacrifício de uma pluralidade de injusti-ças particulares.

Segundo Nozick, não é explicado porRawls como as pessoas, na “posição origi-nal”, escolheriam os princípios da justiçaque se referem a grupos e não a indivíduos.Não é também explicado por que os princí-pios da justiça se limitam à estrutura básicada sociedade.

Michael Walzer (1993), em Las esferas dela justicia: una defensa del pluralismo y la igual-dad, apresenta-se também como crítico de

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Rawls, sustentando que a justiça é uma cons-trução humana, sendo duvidosa sua distri-buição segundo critério único. Walzer afir-ma que os próprios princípios da justiça sãopluralísticos na sua forma, de maneira quediferentes bens sociais devem ser distribuí-dos por diferentes motivos, segundo dife-rentes procedimentos e por agentes diferen-tes.

Para Walzer, a teoria rawlsiana da justi-ça é uma antiga e profunda convicção dosfilósofos que escreveram sobre o tema desdea Antigüidade: a de que só existe um siste-ma distributivo de justiça e que a Filosofiapode abrangê-lo e determiná-lo.

As críticas à teoria da “justiça como eqüi-dade” (justice as fairness) não chegaram, noentanto, a abalar os pressupostos metodo-lógicos e o sistema de idéias de Rawls. “Oponto agora atingido por Rawls na via deelaboração e defesa de sua teoria da justiçaencontra-se a uma certa distância de suaconcepção original, embora os seus princí-pios da justiça não tenham mudado subs-tancialmente. Em vez disso, o que se alterourealmente foi o equilíbrio das justificações ea sua compreensão no que respeita ao seuempenhamento na atividade da filosofiapolítica.” (KUHATAS, 1995, p. 114).

Na verdade, “o que há de substancial namudança de postura de Rawls é a sua re-avaliação de abrangência da teoria da justi-ça como eqüidade: esta deixa de ter a ambi-ção de ser uma teoria da justiça universal,para resumir-se a uma teoria da justiça de-mocrática. Assim, as restrições que lhe trou-xeram os críticos foi o que proporcionou aRawls a mudança não tão substancial deseu sistema de idéias. Se isto representouou não um avanço para Rawls é o que sediscute, mas o que se deve dizer é que a alte-ração veio de encontro a uma necessidadede seu espectro de enfoque: a democracia.”(BITTAR, 2000, p. 226).

Em síntese, “a teoria rawlsiana da justi-ça não se modificou substancialmente, masapenas a sua aplicação a um tipo de socie-dade concreta.” (RICOEUR, 1995)

Mas que tipo de sociedade concreta?Muito provavelmente, a social-democrata.Com efeito, a teoria da justiça de Rawls bus-ca integrar as liberdades civis e políticascom os direitos econômicos, sociais e cultu-rais. Transforma-se em modelo para os go-vernos social-democratas que se instalaramno mundo ocidental. Entre o liberalismoextremo e o socialismo ortodoxo, Rawls pro-põe uma alternativa intermediária, a quedenomina “justiça como eqüidade” (justiceas fairness).

Daí por que Rawls não desenvolve umateoria da democracia, estritamente falandode sua obra “Uma teoria da justiça”. Noentanto, desenvolve um amplo espectro dereflexões fundado na “eqüidade” (fairness)para orientar a ação política e a escolha emsociedades democráticas e que envolve, im-plicitamente, uma concepção alternativa dedemocracia.

5. Conclusão

“Uma teoria da justiça”, de John Rawls,pode ser considerada (como de resto as rea-ções externadas pelas críticas) uma obracomplexa e fascinante, cuja leitura é indis-pensável aos políticos, juristas, filósofos,enfim, aos cientistas sociais.

Trata-se de uma teoria da justiça quedesbanca as doutrinas tradicionais – a uti-litarista e a intuicionista – e generaliza ocontratualismo clássico (tal qual se encon-tra em Locke, Rousseau e Kant), conduzin-do-o a um mais elevado grau de abstração.Por meio dela, Rawls tenta mostrar que épossível a defesa de um modelo de justiçaque propõe um comprometimento e estabe-lece formas de cooperação entre os indiví-duos para a construção de uma sociedadeem que valores como a liberdade, a igualda-de, a solidariedade, a auto-estima e o res-peito mútuo estejam em pauta.

Um modelo, portanto, que se distinguedo pregado pelo utilitarismo, que tem comoúnico princípio da justiça a maximizaçãoda utilidade de cada indivíduo, sem qual-

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quer comprometimento entre os indivídu-os, que, em tese, estariam motivados exclu-sivamente pela maximização da própriautilidade.

O professor em Harvard recupera a no-ção de contrato social, que é uma categoriaoriginariamente jusnaturalista, para apre-sentá-lo sob novo formato: não mais comoum acordo realizado entre os indivíduos nafundação da sociedade política, mas, sim,como uma formulação racional capaz derenortear as normas sociais, a partir do con-ceito de justiça eqüitativa. Daí porque Ra-wls é tido como um neocontratualista con-temporâneo.

Aqui se destaca a concepção da “justiçacomo eqüidade” (justice as fairness), na quala eqüidade reside precisamente no igualita-rismo da “posição original”, momento hi-potético, e não histórico, em que as pessoaspodem optar por direitos e deveres e decidiros rumos da sociedade em que vivem. Essaopção racional faz com que a teoria da justi-ça ralwsiana não se realize subjetivamente,no sentido de que não se confunde com umbem de um indivíduo, mas institucional-mente (aplicável às instituições sociais),objetivamente (compartilhável no convíviosocial) e coletivamente (geradora de um bemcomunitário e não individual).

A grandiosidade da obra de Rawls estáexatamente na sua preocupação com o ins-titucional, com o público, com o coletivo: sea justiça existe, ela é definida em função dacapacidade que as instituições básicas dasociedade possuem de realizá-la, de concre-tizá-la. A “justiça como eqüidade” (justiceas fairness) é pensada por Rawls para apli-cação ao que ele chama de estrutura básicade uma democracia constitucional moder-na. A estrutura básica designa as institui-ções políticas, sociais e econômicas dessasociedade, e o modo pelo qual se combinamnum sistema de cooperação social, cujosparticipantes são os próprios cidadãos,como pessoas livres e iguais.

Assim, “o objeto primário da justiça é aestrutura básica da sociedade, ou mais exa-

tamente, a maneira pela qual as instituiçõessociais mais importantes distribuem direi-tos e deveres e determinam a divisão de van-tagens provenientes da cooperação social.”(RAWLS, 2000, p. 8).

Para além disso, trata-se de uma concep-ção de justiça que tem como fundamentobásico a observância de dois princípios: pri-meiro, o acesso garantido aos direitos e li-berdades fundamentais de expressão, deconsciência, de atuação política, de pos-suir propriedade privada, de não ser presoarbitrariamente etc., que compõem a idéianormativa das democracias ocidentais; se-gundo, as desigualdades seriam admissí-veis se proveitosas para todos, em especialpara os desfavorecidos. “A idéia intuitiva éde que a ordem social não deve estabelecer eassegurar perspectivas mais atraentes dosque estão em melhores condições a não serque, fazendo isso, traga também vantagenspara os menos afortunados.” (RAWLS, 2000,p. 80).

Os princípios da justiça, que regulam aescolha de uma Constituição política, de-vem ser aplicados, em primeiro lugar, àsprofundas e difusas desigualdades sociais,supostamente inevitáveis na estrutura bá-sica de qualquer sociedade.

Os princípios da justiça rawlsianos são,pois, modelares das instituições e suficien-temente significativos para a produção daliberdade, da igualdade e da solidariedade.

Na verdade, “a teoria da justiça de JohnRawls tem o mérito de ser a primeira grandeteoria geral sobre a justiça, tendo provoca-do uma reorientação no pensamento filosó-fico americano, até então interessado emquestões epistemológicas e lingüísticas, paraos problemas ético-sociais, e também propi-ciado um novo tipo de igualitarismo teóri-co, um igualitarismo não mais de oportuni-dades, mas de resultados.” (SILVA, 1998, p.221).

As principais resistências a Rawls refe-rem-se à abnegação de qualquer historicis-mo ou de qualquer experiência moral e àimpossibilidade de seu critério único de jus-

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tiça regular diversas classes da sociedade.Mas Rawls alega que jamais pretendeu umconceito metafísico de justiça, mas, sim, po-lítico, resultante de um acordo político dasdiferenças e da multiplicidade de concep-ções de justiça existentes na estrutura dasociedade democrática moderna.

E aí surpreende positivamente o profes-sor em Harvard, ao propor o consenso polí-tico como peça fundamental do jogo demo-crático e da legitimação da justiça como teo-ria integral (apesar de fazer nascer os prin-cípios da justiça de uma situação hipotéti-ca: a “posição original”). A liberdade e aigualdade estão bem evidentes no sistema de“freios e contrapesos” (checks and balances) ena ordem constitucional – o seu garante.

No plano jurídico, em especial, mencio-nem-se o dever de cumprimento da lei in-justa, a definição de desobediência civile a definição de objeção de

consciência, porquanto diretamente re-lacionadas aos aplicadores do direito.

Ressalte-se que, para Rawls, não é qual-quer alegação de injustiça que inviabilizaráa aplicação do direito. É mister que haja gra-ve e evidente violação dos princípios da jus-tiça, contidos na estrutura básica da socie-dade, para que seja possível a resistência àlei injusta.

Quanto à funcionalidade e à viabilida-de da teoria da “justiça como eqüidade” (jus-tice as fairness), acreditamos que seu desen-volvimento e suas conclusões falam por sisó. Vale dizer, embora passível de críticasmateriais e metodológicas, constitui a teo-ria rawlsiana da justiça instrumento sobre-modo útil para avaliar a legitimidade dadominação política, econômica e social exer-cida nas sociedades concretas modernas,designadamente quanto ao conceito do jus-to e ao conceito do igualitário, consideran-do o caráter substancial (e não meramenteformalista) que Rawls confere aos princípi-os de justiça social por ele propostos.

No caso brasileiro, ou seja, analisando aestrutura básica da sociedade brasileira emfunção dos princípios rawlsianos da justi-

ça anteriormente examinados, constata-seum quadro desolador: uma nação castiga-da por uma desigualdade e por uma injusti-ça profundas, que subsistem e se prolongampor décadas e décadas, séculos e séculos.

Note-se que tal conclusão não tem porbase um referencial teórico de natureza so-cialista ou comunista, mas, sim, um referen-cial teórico elaborado por um dos mais pres-tigiados pensadores da atualidade, oriundoda pátria do capitalismo na sua expressãomáxima – os Estados Unidos da América.

Por derradeiro, convém consignar queuma reflexão político-filosófico-jurídica,como a que tentamos realizar no presentetrabalho, indica a viabilidade da constru-ção de uma teoria substancial da justiça eda igualdade que supere tanto o formalis-mo do positivismo quanto a metafísica dojusnaturalismo, como é o caso da teoria da“justiça como eqüidade” (justice as fairness)de John Rawls.

Como bem salienta Rawls (2000, p. XIII-XIV):

“Minha esperança é a de que a justiçacomo eqüidade pareça razoável e útil, mes-mo que não seja totalmente convincente parauma grande gama de orientações políticasponderadas, e portanto expresse uma parteessencial do núcleo comum da tradição de-mocrática.”

Rawls desenvolve uma teoria da justiçaque vai de encontro à doutrina utilitarista.Uma teoria que, tal como afirma o próprioautor, espera parecer razoável e útil e que semostre muito mais apropriada às institui-ções de uma sociedade democrática, poden-do certamente auxiliar na reflexão sobre asbases de uma concepção alternativa dedemocracia, que se afaste do modelo com-petitivo, e que tenha a cooperação e a soli-dariedade como fundamentos de um proje-to comum de sociedade.

Toda a discussão entre o comunitaris-mo e o liberalismo se faz hoje à sombra dateoria da justiça de Rawls. Nesse diapasão,as críticas a Rawls são críticas ao comuni-tarismo e ao liberalismo.

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WALZER, Michael. Las esferas de la justicia: una de-fensa del pluralismo y la igualdad. México: Fondode Cultura Económica, 1993.

Notas1 John Rawls faleceu em 24 de novembro de

2002, aos 81 anos de idade. Foi professor em Har-vard.

2 A propósito desse debate, registre-se o seguinteexcerto. “What explains the unusually wide inte-rest in Rawls’ work? One obvious factor is that manyreaders and editors found in Rawls’ work a welco-me return to an older tradition of substantive ratherthan semantic moral and political philosophy. Ra-wls’ approach stands in sharp contrast to the workof the logical positivists and the analytical school ingeneral”. DANIELS, 1989, p. 31).

3 Nas exatas palavras de Rawls (2000, p. 3): “Ajustiça é a primeira virtude das instituições sociaiscomo a verdade o é dos sistemas de pensamento”.Na teoria ralwsiana, isso significa dizer que umasociedade bem organizada possui a máxima ade-rência das pessoas que a compõem não por outrocritério senão pela justiça, traduzida na construçãoe na atuação das instituições básicas de uma soci-edade.

4 Segundo Rawls (2000, p. 401-402), nessa fasede aplicação das normas, deve prevalecer a teoriada obediência parcial, que é excepcionada peloscasos de desobediência civil, definida como ato pú-blico, não violento, consciente e político, contrário àlei e geralmente praticado para provocar mudan-ças na lei e nas políticas governamentais; e deobjeção da consciência, definida como a desobediên-cia a uma injunção legal ou a uma ordem adminis-trativa, por razões religiosas ou morais.

5 O esquema de quatro estágios demonstra umafaceta interessante na teoria ralwsiana da justiça. Éque Rawls não adota uma “fórmula de justiça”específica para afirmar que determinada norma sejajusta ou injusta. Essa assertiva, para Rawls, liga-seà noção de justiça procedimental perfeita, que pri-oriza o procedimento justo, que pode ou não incor-rer num resultado também justo.

6 Rawls (2000, p. 249) sintetiza assim as limita-ções ao princípio da (igual) participação: “A Cons-tituição pode definir uma liberdade de participa-ção mais ou menos extensiva; pode permitir desi-gualdades nas liberdades públicas; e maiores oumenores recursos sociais podem ser destinados agarantir o valor dessas liberdades para o cidadãorepresentativo”.

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1. Objecto quase (introdução)

“Não perguntamos ao sonhador por que está so-nhando, não requeremos do pensador as razões do seupensar, mas de um e de outro quereríamos conheceraonde os levaram, ou levaram eles, o pensamento e osonho, aquela pequena constelação de brevidades aque costumamos chamar conclusões.” (SARAMAGO,1997, p. 216).

Este estudo pretende formular uma abor-dagem inicial, de um ponto de vista concei-tual, da prática da auditoria tal como se veioa configurar na sociedade contemporânea.Seu foco está na auditoria como demandasocial e nos contornos gerais da sua práti-ca, apresentando um marco geral que parteda abstração das principais característicasda auditoria moderna (“qualquer” audito-ria), com a subseqüente aplicação desse ro-teiro para analisar algumas das suas mo-dalidades.

A jangada de pedraOs caminhos da auditoria

Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt

Fernando Moutinho Ramalho Bittencourté Economista e Consultor, Especialista em Au-ditoria pela PUC/MG, Analista de ControleExterno no Tribunal de Contas da União.

Sumário1. Objecto quase (introdução). 2. O conto da

ilha desconhecida (em busca do sentido da au-ditoria). 3. Que farei com este livro? (a audito-ria como demanda ou programmatic demand ofaudit). 4. Levantado do chão (esboço de ummarco conceitual provisório). 5. Todos os no-mes (modalidades e práticas). 5.1. Auditoriaindependente das demonstrações financeiras.5.2. Auditoria financeira. 5.3. Auditoria de le-galidade ou conformidade. 5.4. Auditoria tri-butária. 5.5. Auditoria interna. 5.6. Auditoriaoperacional. 5.7. Outras modalidades.

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Este “programa de pesquisa”, audacio-so a ponto de ser temerário, não é fixadopela ambição de quem o segue, mas pelademanda social pela reflexão sobre essetema, por precária e provisória que possavir a ser essa reflexão. Suas seções são con-duzidas por reflexões colhidas na prosa deJosé Saramago, e seus títulos são os títulosde suas obras. Essa curiosa busca de umamatriz literária – para um tema visto, emgeral, como tão “objetivo” – vem da necessi-dade essencial de cultivar a humildade aoaceitar que a busca do conhecimento é, sem-pre, artesanato precário que não pode sepretender isento da fragilidade humananem livre dos impulsos subjetivos que só aexpressão artística pode, palidamente, re-fletir. Afinal, “claro que sei algumas coisas,mas o importante não é isso. O que contarealmente não é o que sei, mas o queintuo.”(SARAMAGO, 1997, p. 571).

2. O conto da ilha desconhecida(em busca do sentido da auditoria)

“Por minha parte, sem qualquer pretensão de ori-ginalidade conceptual ou formal, defendi a ideia de quea intuição não é mais do que uma ferramenta não cons-ciente da razão, e que as contradições e oposições entrea razão e a intuição, sempre beligerantemente procla-madas, não passam de uma falácia. Pensando agoramelhor, não tenho a certeza de ter razão, provavelmenteé só intuição.” (SARAMAGO, 1999, p. 131).

A palavra “auditoria” nos dias de hojetem inúmeros sentidos, praticamente umpara cada pessoa e para cada contexto emque é utilizada.

No cotidiano social, “auditoria” pode serfreqüentemente associada a “fiscalização”,descoberta de irregularidades e ilícitos.Pede-se uma “auditoria” em resposta a qual-quer denúncia ou suspeita (geralmente emmatéria econômica ou financeira), qualquerque seja o grau de precisão dessas suspei-tas. Em meios empresariais ou técnicos, “au-ditoria” é entendida mais precisamentecomo a atividade de verificação contábil, queocupa a parcela mais visível e numerosa

daqueles profissionais que se denominamauditores. Nesse ambiente, a tentativa de seobter precisão na definição desse termo fazcom que a referência a uma demanda porfiscalização seja amiúde acompanhada deanálises baseadas nas normas e padrões daauditoria estritamente contábil (ainda quenão se esteja tratando de contabilidade oudemonstrativos financeiros). (CABEZA SAL-VADOR, 2000, p. 41; IZIQUE, 2004, p. 22).

De fato, a denominação e os primeirospassos das atividades que hoje se conhe-cem por auditoria no mundo ocidental tive-ram origem nas verificações de contasfinanceiras devidas a proprietários priva-dos e aos tesouros reais (POWER, 1999, p.16; NAVARRO GARCÍA, 1999, p. 168-172).Não trataremos aqui da evolução históricadessa atividade, que já tem bibliografia ex-tensa e satisfatória (POWER, 1999, p. 16-20,45-49; MOTTA, 1992; POLLIT, 1999). É sufi-ciente lembrar que essa trajetória da audito-ria levou-a, nos dias de hoje, a alcançar es-paços muito mais amplos que a mera revi-são de documentos contábeis. Basta entãoconstatar agora que a visão convencionalda auditoria (tanto no senso comum quantono jargão habitual dos negócios) tornou-seincapaz de oferecer um sentido comum parausuários, profissionais e governo.

Não se trata apenas de “dar um nome”.A formulação adequada de conceitos a res-peito de qualquer objeto de conhecimento éo primeiro passo para abordá-lo e gerar in-formação sobre ele, quer no sentido teórico,quer na sua aplicação prática – “Para estu-dar atributos, o pesquisador deve, em pri-meira instância, reconhecer o objeto, o ser,cujos atributos quer estudar” (PEREIRA,2001, p. 30). Pois bem, sendo insuficienterecorrer ao registro histórico da auditoriapara situá-la contemporaneamente, e sen-do ainda menos útil a simples listagem dasdiferentes práticas atuais (mesmo supondoque essa extensa compilação fosse materi-almente possível, o que parece bem poucosensato), como se pode iniciar a abordagemdesse tema?

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Várias tentativas de aproximação se fi-zeram. Uma delas, com pretensões genera-lizantes, situa a auditoria no contexto geralda “teoria da agência”. De forte base micro-econômica neoclássica, inicia constatandoque a organização da atividade econômicaem firmas somente pode ser alcançada me-diante contratos entre os indivíduos queaportam algum recurso (capital, força de tra-balho, capacidade gerencial, tecnologia)para o empreendimento comum. Tais con-tratos discriminam os direitos específicos decada parte (acionistas, credores, gerência,trabalhadores) sobre os resultados da firma.Esses contratos, porém, não serão instru-mentos eficazes para administrar o conflitode interesses entre cada um dos indivíduosintervenientes caso cada uma das partes nãopossa saber se eles estão sendo cumpridospelos demais. Diversos recursos de informa-ção devem então ser mobilizados para o“monitoramento” dos contratos.

No caso mais comum da empresa comer-cial, os registros contábeis têm sido um dosrepositórios de informação mais importan-tes no monitoramento dos contratos, e fre-qüentemente os direitos e obrigações dosatores são estabelecidos em função dos nú-meros contábeis. No entanto, os própriosregistros e demonstrativos contábeis sãotambém suscetíveis de conflitos de interes-ses na sua produção, e portanto exigem umoutro instrumento de verificação para queas partes que não produzem essa informa-ção (essencialmente, para todos os demaisque não fazem parte da administração dire-ta da organização) tenham maior confiançaem que os números estejam apresentadossegundo critérios por eles aceitos1:

“De fato, dado que muitas das pre-visões contratuais e legais dirigidas areduzir os custos de agência referem-se a magnitudes contábeis, [...] e que,em geral, a contabilidade oferece in-formação indireta sobre o rendimentoda gestão, os administradores devempreocupar-se em oferecer antecipada-mente credibilidade aos investidores

em relação à integridade da informa-ção contábil; e para tal finalidade nãolhes resta mais remédio que contrataros serviços de um auditor externo,posto que a informação interna – namedida em que é formulada por quemtem incentivos para retocá-la e inclu-sive falsificá-la em seu favor – não ofe-rece confiabilidade ou credibilidade.”2

(PAZ-ARES, 1996, p. 31-32).Esse caso particular (a garantia de al-

guns contratantes, como credores ou acio-nistas, ante a confiabilidade das informa-ções produzidas por outra parte contratan-te, a gerência da empresa) ilustra a formula-ção geral feita pela teoria da agência quantoao papel da auditoria: sempre que há umarelação entre duas partes em que uma delas(o “agente”) deve render contas de suasações à outra parte (o “principal”), e sem-pre que essa relação é tão complexa que osprincipais estão distantes das ações dosagentes e são incapazes de verificá-las pes-soal e diretamente, surge a demanda pelaauditoria, como forma de defesa dos “prin-cipais” contra o moral hazard 3 (porque osagentes têm presumivelmente interesses dis-tintos e contrários aos dos principais, e po-dem agir contra estes últimos) e contra as“assimetrias de informação” (porque osagentes encontram-se em posição de maioracesso aos fatos e dados da realidade en-volvida, inclusive podendo alcançar o po-der de manipular a produção da informa-ção para fazê-la atender aos seus própriosinteresses). (POWER, 1999, p. 5).

Essa abordagem da auditoria tem seusméritos. Identifica elementos fundamentaisa considerar em qualquer situação: a rela-ção de prestação de contas entre partes; oconflito de interesse latente entre os indiví-duos envolvidos; o conteúdo essencialmen-te informacional dessa “economia do con-trole” em que se vê envolvida a auditoria(DÍAZ, 1996, p. 51-55). Esses elementos es-tarão presentes em todos os desenvolvimen-tos conceituais posteriores, inclusive os queapresentaremos neste trabalho. Em particu-

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lar, a noção de uma relação de prestação decontas entre partes ganhou notoriedade epeso no debate público: mais conhecidacomo a expresão original accountability, nãomais se pode pretender discorrer sobre a go-vernança pública ou empresarial sem tê-laem papel central... Mas não seguiremos poresse caminho, apesar de aproveitar suascontribuições.

É preciso explicar o porquê. Power (1999,p. 5) lembra que essa abordagem abstraicompletamente o contexto institucional emque estão inseridos os “agentes” e “princi-pais”: diferentes comunidades instituirãodiferentes formas de accountability nas quaisas próprias categorias de “agente” e “prin-cipal” terão atores diferentes (quem serão,por exemplo, os “principais” relevantesnuma relação de prestação de contas de umaempresa pública: os acionistas? os contri-buintes? os residentes em sua área de atua-ção? todos os eleitores?).

Indo além, deixamos essa trilha essenci-almente porque, à semelhança da economianeoclássica, limita-se a umas quantas hipó-teses abstratas que são desdobradas em con-clusões dedutivas contidas nas premissasde partida. Ainda que epistemologicamen-te inatacável, essa visão não leva a lugaralgum: “Como no caso de toda teoria dedu-tiva, não se pode ir mais longe do que inda-gar se ela tem algum valor explicativo”(FURTADO, 1985, p. 140). Na insubstituí-vel descrição de Celso Furtado (1985, p. 139):“Em outras palavras, ignoremos o mundoreal e observemos uma caixa vazia. E come-çava a descrever essa caixa [...]”. Além doquestionável ponto de partida, essa abor-dagem leva a deduções curiosas como a queo “mercado” poderia antecipar qualquer ris-co de manipulação contábil por parte da ge-rência de uma empresa e descontá-lo nocusto do capital fornecido, razão pela qualquem mais “precisaria” da auditoria inde-pendente seria a própria gerência (e não osinvestidores e credores) (PAZ-ARES, 1996,p. 29-31). Por mais estarrecedor que seja, esseresultado é decorrência inexorável das hi-

póteses utilizadas.4 Dedução perfeita, masde escassa utilidade fora da caixa vazia dateoria.

Mais importante ainda, discutir a audi-toria nos termos em que colocamos o pro-blema exige, sobretudo, observar a sua fina-lidade real, os seus efeitos. Exige fazer aponte entre teoria e prática, abstraindo darealidade concreta algum quadro teórico dereferência para a análise, montar os concei-tos dedutivos para com eles acolher a inves-tigação empírica e jamais esquecer as impli-cações para a ação. No campo da ação pú-blica, essa não é uma situação inusitada: aevolução da análise de políticas públicas(que tem grandes áreas de interseção comnosso tema principal, como adiante se verá)experimentou contínuas redefinições entre“teoria” e “prática”, “ciência” e “consulto-ria”, “inputs” e “outputs”, que em muito seassemelham às tentativas de entender “aidéia de auditoria” (POWER, 1999, p. 4;MENY; THOENIG, 1992, p. 43-46; REIS,2000, p. 45-46). A auditoria, em particular,reconhecidamente “tem sido concebidacomo uma disciplina em que se prestou umaespecial atenção a suas aplicações práticase ocorreu uma importante exclusão de suasconsiderações teóricas”.5

3. Que farei com este livro? (aauditoria como demanda ou

programmatic demand of audit)“Mas o pior de tudo ainda não foi Guterres ter

declarado que a política é, em primeiro lugar, a artede não dizer a verdade, o pior foi que depois de o terdito não apareceu, que eu saiba, um só senhor, desdea esquerda à direita, a corrigi-lo, que não senhor, quea verdade terá de ser o objectivo único e último dapolítica. Pela muito simples razão de que só dessamaneira poderão salvar-se ambas: a verdade pela po-lítica, a política pela verdade.” (SARAMAGO, 1997,p. 593).

Para tanto, podemos tentar em primeirolugar, e brevemente, contextualizar a deman-da social pela auditoria: seria possível (me-diante generalizações empíricas que certa-

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mente terão caráter tentativo e provisório)descrever o que se demanda, o que se vempedindo à auditoria? Em seguida, o que sepoderia generalizar das práticas daquelesque se têm como auditores em geral e queassim são considerados?

No primeiro ponto, a moderna socieda-de ocidental tem vivido, na opinião de al-guns autores6, uma “explosão da auditoria”:

“No fim dos anos 80 e começo dosanos 90, a palavra ‘auditoria’ come-çou a ser usada na Inglaterra com fre-qüência crescente numa ampla varie-dade de contextos. Além da regulaçãoda contabilidade da empresa privadapela auditoria financeira, práticas deauditoria ambiental, auditoria de de-sempenho, auditoria de gestão, audi-toria forense, auditoria de sistemas deinformação, auditorias de proprieda-de intelectual, auditoria médica, e au-ditoria da tecnologia emergiram e, emgraus variados, adquiriram um certopatamar de aceitação e estabilidadeinstitucional. Um número crescente deindivíduos encontrou-se sujeito a no-vas ou mais intensas exigências decontabilidade e auditoria. Em resumo,uma crescente população de ‘audita-dos’ começou a experimentar umaonda de verificações formalizadas edetalhadas sobre o que eles fazem.”7

(POWER, 1999, p. 3).Essa é a primeira acepção de auditoria

que nos importa considerar: a “auditoriacomo demanda”.8 Toda prática social podeser caracterizada por aspectos programáti-cos (normativos) e tecnológicos (operacio-nais). Os elementos programáticos são asidéias a respeito da missão ou finalidadedaquela prática, idéias que têm o (crítico)papel de vincular essa prática aos objetivossociais mais amplos que circulam na esferapolítica. Nessa visão “programática” daauditoria, são formuladas demandas am-plas aos auditores em geral, e de algumamaneira presume-se que a prática deles écapaz de atender a tais demandas. Já a “tec-

nologia” da auditoria compõe-se das tare-fas e rotinas mais ou menos concretas quesão levadas a cabo pelos praticantes – amos-tragens, check lists, revisões analíticas, etc.9

E como “demanda” a auditoria é, supos-tamente, toda forma de abertura das organi-zações a um escrutínio externo independen-te, que se destina a fornecer uma base derecursos de informação para o controle efe-tivo dessas organizações10 por todos aque-les que tenham direito a exercê-lo.11

Assim, a cada percepção de fraude ouproblemas em algum ramo de atividade,surge o clamor por “mais auditoria”, refor-çando as expectativas sociais em torno dealgum agente verificador que, por procedi-mentos mais ou menos claros, possa “regu-larizar” ou “moralizar” esse setor. Curiosa-mente, a constatação de fracassos das audi-torias em atender a essas intenções em ca-sos individuais não dá margem a uma que-bra na confiança “programática” na audi-toria como meio de prevenção de fraudes ouirregularidades, mas tão-somente abre es-paços para demandas por mudanças ou re-formas visando a uma auditoria “melhor”(“Auditores são censurados, conferênciassão organizadas, artigos são publicados e,com muita freqüência, novas orientações deauditoria são editadas. As coisas então ‘aco-modam-se’ até a próxima ocorrência”).12

Essa prevalência de expectativas recor-rentes quanto a soluções que venham, gene-ricamente, da “auditoria” pode ser ilustra-da exatamente pelo mais estrondoso fracas-so de qualquer intenção de controle e pre-venção de fraudes no mundo corporativoda época recente: os escândalos contábeisocorridos no mercado de capitais mundial(especialmente no norte-americano) a par-tir de 1999. Diante da constatação de umelenco enciclopédico de fraudes de todanatureza13 , a reação coletiva (tanto dosgovernos quanto dos mecanismos de auto-regulação dos mercados financeiros e capi-tais, assim como da imprensa e opinião pú-blica em geral) vem no sentido de estabele-cer mais e mais rigorosas normas e novos

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critérios para as práticas de auditoria. Amaterialização quase simbólica da reaçãoda economia mundial aos episódios de frau-de e manipulação corporativa é a lei federalnorte-americana Sarbanes-Oxley , logoreproduzida em legislações ao redor domundo (BERGAMINI JÚNIOR, 2002, p. 44;HERNANDEZ OLMO, 2001, p. 21-22;McCONNEL JÚNIOR; BANKS, 2003; LO-RINC, 2004). E Sarbanes-Oxley nada mais éque a criação de novas regras e estruturaspara a prática da auditoria contábil e daprodução da informação contábil que é pu-blicada e auditada.14

O apelo programático da “auditoriacomo solução” é tão impactante, então, quea resposta a um autêntico colapso de todosos mecanismos de controle (regras e audito-ria) é exatamente... mais auditoria!

Enfim, nosso objeto de estudo não é umamera especulação teórica: sob essa denomi-nação, existem poderosos interesses e ato-res sociais. É necessário, portanto, seguir nabusca de seus fundamentos.

Porém, antes de passar à segunda ver-tente (a auditoria como “tecnologia”), é le-gítimo a qualquer observador questionar aplausibilidade de toda essa expectativa so-cial que envolve a auditoria como deman-da. Aquilo que a auditoria pode oferecer àsociedade corresponde ao que dela seespera?

As respostas disponíveis, a partir da ge-neralização empírica, não são otimistas.Power (1999, p. 7) estende o conceito relati-vamente conhecido do “excesso de expecta-tivas” sobre o parecer do auditor indepen-dente das demonstrações contábeis15 paraum gap mais amplo entre a auditoria comodemanda e as reais capacidades operacio-nais de sua prática:

“[...] este nível de atração programáti-ca pela idéia de auditoria e o nível datecnologia de auditoria estão vincu-lados de uma forma apenas precária.O campo da auditoria é caracterizadopor uma defasagem entre a explosãode demandas e expectativas progra-

máticas quanto à auditoria e as estó-rias mais ‘paroquiais’ que nos sãocontadas sobre sua capacidade ope-racional subjacente.” (POWER, 1999,p. 7).16

Então, se não há segurança em afirmarque a demanda formulada à atividade deauditoria em geral é satisfeita, qual o senti-do de estudar ou escrever sobre ela? Paraquê continuar?

O estudo da auditoria como prática,contra viento y marea, surge como necessárioexatamente porque existem intensas deman-das sociais por verificação e garantia deaccountability (melhor dizendo, redução dosriscos inerentes à accountability), e essas de-mandas não têm ainda uma correspondên-cia na oferta dos auditores em geral. Sendoassim, qualquer análise que busque compre-ender o que se produz no trabalho auditori-al (ou como se o produz), por mais tentativaque seja, tem o potencial de contribuir àaproximação das posições divergentes dousuário da auditoria e do seu produtor –tanto de forma “educativa” (elevar a com-preensão do usuário sobre “o modo peloqual os auditores desenvolveram seu traba-lho e a forma pela qual os resultados domesmo devem ser interpretados”) quanto navertente de “conteúdo”, buscando “solu-ções construtivas que tratem de satisfazeràs expectativas de seus usuários, sempreque sejam razoáveis”.16 Na formulação deManuel Orta Pérez (1996, p. 11):

“[...] Existe uma ampla literaturasobre a prática que estamos segurosque contribuiu para melhorar a quali-dade dos trabalhos que efetuam os au-ditores. Nosso interesse centra-se emdefinir os aspectos teóricos que sejamcapazes de explicar o processo de au-ditoria.”17

Mas como falar de auditoria como con-junto de práticas se já descartamos umaabordagem puramente dedutiva como a dateoria de agência (dela aproveitando ape-nas as noções teóricas mais gerais)? De ondepartir para poder contemplar a realidade da

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prática e os seus múltiplos contextos insti-tucionais?

4. Levantado do chão (esboço deum marco conceitual provisório)

“[...] analisar com as pinças de um senso sufici-entemente comum para ficar ao alcance de toda agente, a questão da natureza do poder e do seu exer-cício, identificar quem efectivamente o detém, averi-guar como foi que a ele chegou, verificar o uso quedele faz, os meios de que se serve e os fins a queaponta.” (SARAMAGO, 1999, p. 486).

Tendo presente o objetivo já enunciadode contribuir para uma conexão entre teoriae prática no campo da auditoria, a soluçãodos problemas práticos não prescinde dodesenvolvimento e utilização dos compo-nentes teóricos da respectiva área de conhe-cimento.18 Isso se pode obter mediante ummarco conceitual próprio que permita, den-tro das limitações da teoria:

a) descrever a prática existente,b) prescrever a prática futura,c) definir os termos-chave e os conceitos

fundamentais (ORTA PÉREZ, 1996, p. 11).O instrumento provisório que propore-

mos parte de uma conceituação de audito-ria que é fruto de um longo processo de dis-cussão e consolidação das entidades inter-nacionais que congregam os auditores fi-nanceiros e contábeis. Ante a constataçãode que os clientes demandam a esse segmen-to cada vez mais serviços distintos da tradi-cional verificação das contas anuais, essasorganizações tiveram que elaborar um con-ceito que fosse ao mesmo tempo genérico(para abarcar toda a variedade de deman-das advindas da “explosão da auditoria”)e realista (de modo a ser útil para aplicaçãoe orientação dos auditores em campo). Esseduplo objetivo foi alcançado mediante a ob-servação do processo de trabalho das audi-torias em suas inúmeras variações e a iden-tificação dos seus traços ou elementos co-muns.19

Esses conceitos foram gerados e sistema-tizados por várias entidades de auditores: a

International Federation of Accountants – IFAC(2000) e o American Institute of Certified PublicAccountants – AICPA (SILVA, 2000), ambossob a denominação de Assurance Services,bem como a American Accounting Association(ORTA PÉREZ, 1996), esta já denominandoprecisamente auditoria. Uma versão com umgrau maior de generalidade, utilizando-seda teoria geral de sistemas, também é apre-sentada em obras técnicas doutrinárias(NEWTON, 2001). Utilizaremos, por seumaior poder descritivo, a definição do IFAC(2000, p. 116-121), adaptando sua redaçãopara os objetivos deste trabalho20:

• Um serviço ou encargo de auditoria21

é a avaliação por um auditor profissionalde um assunto determinado que é respon-sabilidade de outra pessoa, mediante a uti-lização de critérios adequados e identificá-veis, com o fim de expressar uma conclusãoque transmita a um destinatário predeter-minado um certo nível de confiabilidade ousegurança acerca do assunto em questão.

• Um serviço ou encargo de auditoriarealizado por auditores profissionais pre-tende, portanto, aumentar a credibilidadeda informação acerca de um assunto deter-minado, mediante a avaliação sobre se esseassunto guarda conformidade, em todos osseus aspectos mais significativos, com cri-térios adequados, melhorando assim a pro-babilidade de que a informação venha aten-der às necessidades de seu usuário ou des-tinatário.

• São elementos imprescindíveis deum serviço ou encargo de auditoria, portan-to:

a) uma relação tripartite que envolva:I) um auditor profissional,II) uma parte responsável pelo assunto

determinado ou pela informação prestada,III) um destinatário predeterminado da

informação.Obs.: essa é exatamente a relação de

accountability que a teoria de agência desta-ca.

b) um assunto determinado que será ob-jeto da auditoria;

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Obs.: será sobre esse assunto que o audi-tor emitirá conclusões; pode revestir-se dasmais variadas formas: dados financeiros ounão financeiros (ex: demonstrativos contá-beis, indicadores de gestão, relatórios esta-tísticos), sistemas e processos (ex: mecanis-mos de controle interno ou governança cor-porativa), ou condutas (ex: cumprimento deleis e regulamentos).

c) critérios adequados (normas ou refe-rências usadas como base de medição ouavaliação do objeto de auditoria);

Obs.: a respeito desses critérios, oferece-se amplo detalhamento adiante.

d) um processo de encargo ou contrata-ção; e

Obs.: esse processo, que dará forma à mis-são do auditor, pode ser de iniciativa daparte responsável, do destinatário da infor-mação ou de terceiros (a exemplo dos man-datos legais para auditoria de contas gover-namentais).

e) uma conclusão obtida pelo auditor etransmitida às pessoas definidas nos termosde sua contratação ou encargo.

Obs.: a conclusão pode referir-se ao as-sunto objeto da auditoria em geral (ex: umaopinião sobre a prática de gestão em umaempresa), o que configuraria um “encargode informação direta”, ou a afirmações fei-tas pela parte responsável acerca do assun-to (ex: uma opinião sobre o relatório de ges-tão apresentado pelos administradores deuma empresa), o que configuraria um“encargo de autenticação”. (IFAC, 2000, p.120-121).

• Para que a avaliação do auditor te-nha efeitos significativos na credibilidadeda informação que examina, é necessárioainda que o auditor seja independente daparte responsável pelo assunto determina-do, no sentido de que não tenha interessespessoais (não seja parte interessada) no re-sultado das verificações, o que permitiráemitir sua opinião de forma inteiramenteimparcial (VALDERRAMA, 1997, p. 117).Essa independência significa a inexistên-cia de quaisquer impedimentos pessoais,

externos ou organizacionais para opinarimparcialmente em relação à matéria objetoda auditoria e em relação à parte responsá-vel por ela. Pelas mesmas razões, a inde-pendência aqui estabelecida é de caráterobjetivo, o que implica que também seja con-siderado um impedimento qualquer fato oucondição que possa levar razoavelmente umterceiro interessado a questionar a suaindependência (atitude e aparência inde-pendentes). (ESTADOS UNIDOS, 1992, p.3-5).

É necessário atentar, porém, que a inde-pendência não é obrigatória perante o destinatá-rio da opinião do auditor: como é esse destina-tário que demanda a verificação da infor-mação, poderá achar conveniente realizaros exames diretamente por seus emprega-dos ou contratados. Nesse caso, o valor dacredibilidade da informação ficará restritoa este stakeholder que providenciou a execu-ção do encargo de auditoria, não sendo omesmo frente a terceiros não envolvidos (ex:uma empresa com uma participação acio-nária significativa em outra que envie seuspróprios funcionários para uma revisão decontas da participada).

Por fim, cabe aqui esclarecer uma dúvi-da que pode afetar os praticantes da audito-ria que estejam acompanhando esse esforçode sistematização: fala-se de examinar, com-parar e informar. Nada se diz, no caso, sobrerecomendar ou corrigir. Dificilmente um au-ditor experiente deixará de incluir em suasresponsabilidades o trabalho de recomen-dar as soluções que se lhe apresentem paraos problemas identificados no ente audita-do. Dificilmente deixará de considerar queseu trabalho não agregará valor se não seaventurar pelo caminho da proposta deaperfeiçoamento (trilha muito mais arrisca-da que a simples constatação da coincidên-cia ou não com os critérios).

Não ignoramos essa posição, e de fatocompartilhamos dela. Mas lembramos queo esforço que se faz aqui é no sentido estrita-mente analítico, de identificar traços co-muns das diferentes atividades de audito-

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ria. Pretendemos inicialmente entender aauditoria como forma de produção e orga-nização do conhecimento sobre a realida-de. O uso posterior desse conhecimento, quepode ocorrer sob diversas formas que adi-ante veremos (simples divulgação pública;recomendações; negociações com o ente au-ditado; fixação de sanções), está de momen-to fora do nosso campo de visão.

Isso põe em evidência, então, que a “len-te” analítica está focalizada sobre a funçãode auditoria, não sobre o profissional. É evi-dente que aquele auditor que levanta as in-formações, que estabelece e confirma critéri-os, pode e deve reivindicar um papel rele-vante na aplicação do conhecimento por elegerado. A limitação de objeto que aqui esta-belecemos não pretende sustentar qualquerrestrição do campo de atuação do profissio-nal auditor, mas decorre simplesmente dalimitação das possibilidades deste estudo.Reconhecemos que o auditor tem várias mis-sões relevantes, mas neste momento tenta-mos contribuir com ele em uma delas, a deproduzir conhecimento.

5. Todos os nomes(modalidades e práticas)

“[...] a palavra, a palavra, e todas as coisas destemundo, as nomeadas e as não nomeadas, as conheci-das e as secretas, as visíveis e as invisíveis, como umbando de aves que se cansasse de voar e descesse dasnuvens, foram pousando pouco a pouco nos seuslugares, preenchendo as ausências e reordenando ossentidos.” (SARAMAGO, 2000, p. 127).

O marco conceitual aqui delineado, comtodas as suas limitações, permite iniciar comrazoável segurança o tratamento de umaparte considerável das modalidades e tipo-logias de auditoria com que nos defronta-mos no cotidiano da prática social. Todas,ou quase todas, são verificações, por tercei-ros independentes, de assuntos de respon-sabilidade de outros, segundo critérios pre-estabelecidos e de conhecimento de todasas partes envolvidas, verificações essas in-formadas aos diferentes stakeholders.

Façamos, então, um levantamento (omais extenso que nos estiver ao alcance)nessas modalidades de auditoria que ocu-pam o universo dessa “explosão da audito-ria”. Com isso, poderemos não somente tes-tar a robustez do marco conceitual propos-to mas também repassar as diferentes for-mas de verificação que, sob o nome de audi-toria, vêm sendo cristalizadas na prática enos regulamentos de um sem-número deorganizações.

5.1. Auditoria independente dasdemonstrações financeiras

A vertente historicamente mais tradicio-nal da auditoria, e pela qual a atividade émais conhecida, é a auditoria das demons-trações contábeis das entidades e organiza-ções. Trata-se, portanto, de matéria estrita-mente contábil; se utilizamos aqui, para de-nominá-la, uma expressão que não contéma referência “contábil” é por utilizar a de-nominação legal no Brasil (por meio dos arts.176 e 177 da Lei no 6.404/74, que definemem caráter exaustivo o escopo e as condi-ções desse tipo de auditoria).

A literatura técnica internacional assimdescreve essa atividade:

“As especiais características daauditoria exigem a descrição de suasnotas diferenciadoras como melhorinstrumento de análise de seu concei-to. Tais notas diferenciadoras são asseguintes:

Função desenvolvida por pro-fissionais competentes e indepen-dentes

De acordo com normas objeti-vas de trabalho

Consistente no exame da con-tabilidade e do sistema de contro-le interno da empresa

Com o objetivo de emitir umrelatório onde seja manifestadauma opinião técnica afirmando seas contas anuais expressam razo-avelmente, em todos os seus as-pectos significativos, a imagem fiel

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do patrimônio e da situação finan-ceira da entidade, assim como doresultado de suas operações

De acordo com princípios decontabilidade geralmente aceitose com a legislação vigente

Aplicados uniformemente emrelação ao exercício anterior.”22

Se buscarmos o fundamento normativoda norma técnica brasileira de auditoria(NBC-T-11 apud FRANCO; MARRA, 1991,p. 53):

“11.1.1.1 – a auditoria indepen-dente das demonstrações contábeisconstitui o conjunto de procedimen-tos técnicos que tem por objetivo aemissão de parecer sobre a adequa-ção com que estas representam a po-sição patrimonial e financeira, o re-sultado das operações, as mutaçõesdo patrimônio líquido e as origens eaplicações de recursos da entidadeauditada, consoante as Normas Bra-sileiras de Contabilidade e a legisla-ção específica, no que for pertinente.

Parágrafo primeiro – No âm-bito das atividades reguladas pelaComissão de Valores Mobiliários– CVM – aplica-se a DeliberaçãoCVM/29/86.

Parágrafo segundo – Na ausên-cia de disposições específicas, preva-lecem as práticas já consagradas pelaProfissão contábil, formalizadas ounão pelos seus organismos próprios.”(grifo nosso).

Em resumo, o auditor contábil externo(um terceiro independente da empresa ou enti-dade que audita) compara as contas por elaescrituradas (uma afirmação feita sobre o pa-trimônio da entidade e suas variações) à reali-dade factual, de acordo com os princípiosde contabilidade geralmente aceitos e com alegislação (critério predeterminado por lei epelas normas técnicas da atividade, e expressa-mente mencionado nos próprios pareceres). Seuspareceres são então publicados em conjun-to com as demonstrações auditadas – quan-

do tal obrigação constar em lei ou regula-mento – ou entregues à parte interessadaem sua contratação (concretizando assim acomunicação da conclusão a respeito da confia-bilidade atribuída pelo auditor aos demons-trativos contábeis, que foram o assunto sub-metido ao seu exame).

Destaque especial merece aqui a identi-ficação dos princípios de contabilidade ge-ralmente aceitos como critérios em funçãodos quais o auditor constrói sua opinião.Geralmente tratada como óbvia, essa vincu-lação poucas vezes é explicitada:

“Esta denominação genérica incluium conjunto de postulados, conceitose normas que são aceitos com carátergeral pelos especialistas da contabili-dade e pelas organizações profissio-nais. Costumam ser compilados e sis-tematizados pelos organismos que re-gulam a atividade contábil ou incluem-se nos textos legais de caráter mercan-til e contábil.

A existência destes princípios ge-rais contribui para objetivizar a infor-mação contábil estabelecendo um con-junto de critérios homogêneos que ser-vem de referência ao profissional, so-bretudo em relação àqueles aspectosda prática contábil em que é necessáriaa aplicação de um juízo subjetivo.”23

5.2. Auditoria financeira

As exigências de accountability no setorpúblico têm imposto às entidades governa-mentais encarregadas do controle a obriga-ção de examinar as finanças públicas sobum sem-número de perspectivas, não apenaslimitadas à confiabilidade dos demonstrati-vos contábeis padronizados, mas estenden-do-se a todos os aspectos de gestão financeira:

“a. Partes ou segmentos de de-monstrativos financeiros.

b. Informação financeira (ex: de-monstrativos de receitas e despesas,demonstrativos de recebimentos e de-sembolsos de caixa, demonstrativosde ativos fixos).

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c. Relatórios e cronogramas sobrematérias financeiras, tais como gas-tos com programas ou serviços espe-cíficos, solicitações orçamentárias, evariações entre o desempenho finan-ceiro real e estimado.

d. Contratos (ex: propostas de lici-tação, preços de contratos, valoresfaturados, valores devidos em resci-sões contratuais, cumprimento dostermos dos contratos).

e. Subvenções.f. Sistemas e estruturas de controle

interno sobre a contabilidade, a emis-são de relatórios financeiros e o pro-cessamento de transações.

g. Sistemas informatizados.h. Sistemas financeiros (ex: siste-

mas de folha de pagamento).i. Fraudes.”24 (ESTADOS UNIDOS,

1992, p. 2).Auditoria financeira, portanto, é noção

muito mais ampla que auditoria contábil.Indispensável lembrar ainda que pratica-mente todo o campo de aplicação da audi-toria financeira tem total equivalência comos problemas das organizações privadas,sendo esta área notável pela sua similari-dade (em objeto e métodos) no setor públicoe na área empresarial e não-governamentalem geral.

As normas de auditoria governamentaladotadas como padrão de excelência em ní-vel internacional (o Yellow Book do então Ge-neral Accounting Office norte-americano25) tra-zem uma definição estendida para a audito-ria financeira (nela incluindo, como subdivi-são específica, a auditoria de demonstrativos):

“As auditorias financeiras inclu-em auditorias das demonstrações fi-nanceiras e auditorias relacionadas àgestão financeira.

a. As auditorias das demons-trações financeiras determinam(1) se as demonstrações financei-ras de uma entidade auditadaapresentam corretamente a posi-ção financeira, o resultado das

operações e os fluxos de caixa oumodificações na posição financei-ra de acordo com princípios decontabilidade geralmente aceitos,e (2) se a entidade respeitou as leise regulamentos para aquelastransações e eventos que podemter um efeito significativo nasdemonstrações financeiras.

b. As auditorias relacionadasà gestão financeira incluem a de-terminação de (1) se os relatóriosfinanceiros e itens relacionados,tais como dados, contas ou fun-dos estão corretamente apresen-tados, (2) se a informação finan-ceira é apresentada de acordo comcritérios previamente estabeleci-dos ou explicitados na auditoria,e (3) se a entidade seguiu as exi-gências regulamentares específi-cas na gestão financeira.”26

Novamente, o marco conceitual aplica-se: o auditor avalia as questões financeiras(seja a gestão em si, sejam as informaçõesque o gestor presta sobre elas) à luz de crité-rios fixados externamente (os princípios decontabilidade geralmente aceitos, no casodas demonstrações contábeis ou financei-ras, e as leis e regulamentos financeiros, emcaráter geral) ou desenvolvidos e explicita-dos na própria auditoria.

5.3. Auditoria de legalidade ou conformidade

A natureza regulada e formal da admi-nistração pública em geral tem reflexos tam-bém na atividade de verificação do contro-le. As entidades governamentais encarrega-das desse controle têm freqüentemente a res-ponsabilidade de abordar, em suas verifi-cações, não apenas o cumprimento de prin-cípios de boa gestão financeira, mas tam-bém a observância de uma extensa coleçãode normas e procedimentos detalhados emrelação a todos os aspectos da atividadeadministrativa. Assim, temas tão diversoscomo o ritual procedimental das licitações,a observância dos princípios legais na ges-

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tão de pessoal, os requisitos para disposi-ção do patrimônio estão incluídos no esco-po de trabalhos de auditoria.

Essa situação dá lugar a uma autênticanova modalidade de auditoria: aquela de-dicada à verificação estrita do cumprimen-to da legislação ou dos regulamentos relati-vamente a determinada área examinada. Adenominação específica pode variar, mas oconteúdo essencial é o mesmo27:

“Auditoria de conformidade – Ins-trumento de fiscalização utilizadopelo Tribunal para examinar a legali-dade e a legitimidade dos atos de ges-tão dos responsáveis sujeitos a suajurisdição, quanto ao aspecto contá-bil, financeiro, orçamentário e patri-monial. (BRASIL, 2003, p. 15).

A auditoria de conformidade tratade verificar que os atos, operações eprocedimentos de gestão foram de-senvolvidos em conformidade com asnormas, disposições e diretrizes quesejam aplicáveis.”28

Naturalmente, essa modalidade temuma ampla área de interseção com a audi-toria financeira mencionada no item anteri-or. Isso se deve a que também a atividadefinanceira da administração pública é deta-lhadamente regulada, em forma e conteú-do, por normas tão ou mais rigorosas queaquelas válidas para todos os demais as-pectos de gestão:

“Por outro lado, desde o momentoem que é realizada pela Administra-ção, [a administração financeira,FMRB] ao tempo em que é financeira éatividade administrativa; circunstân-cia que vai determinar sua sujeição àspeculiaridades próprias do funciona-mento dos entes administrativos e queafetará muito particularmente a formapela qual esta atividade se produz e seexterioriza.

Como atividade administrativadesenvolvida no marco de um Estadode Direito, a Atividade Financeira daAdministração vai estar submetida a

um estrito padrão procedimental, aexigências de expressão formal dosatos em que se materializa e à fiscali-zação dos Tribunais de justiça [...]”.29

Assim, faz sentido falar numa modali-dade específica de auditoria de regularida-de, distinta da auditoria financeira mas so-brepondo-se em parte ao seu escopo. Existi-rão auditorias de conformidade que não se-rão financeiras (por exemplo, a verificaçãodo cumprimento de requisitos legais paraseleção de ocupantes de cargos públicos, taiscomo a publicidade da seleção, a observân-cia de concursos públicos e o atendimentode requisitos de escolaridade). Existirãoauditorias financeiras que não serão de con-formidade (a exemplo de uma avaliação dosriscos financeiros a que está exposto oportfolio da dívida pública em função dasvariáveis macroeconômicas). E ainda exis-tirão, com muita freqüência, trabalhos queserão tanto de natureza financeira quantode conformidade (o exemplo mais paradig-mático é o da auditoria da execução da des-pesa pública, quando se verifica o cumpri-mento das leis e regulamentos no ato de gas-to público, que é de natureza essencialmen-te financeira).

Uma vez mais, o marco conceitual pro-posto consegue abranger também essasmodalidades: a verificação independentepode exercer-se sobre qualquer aspecto dagestão pública (ou mesmo na gestão priva-da, quando a questão do cumprimento denormas internas ou externas assumir rele-vância para a organização interessada), quepassa a representar o assunto sobre o qual aopinião será emitida. Os critérios não pode-riam ser mais explícitos: as leis e regulamen-tos que se apliquem aos assuntos examina-dos. Os destinatários da opinião do auditorpodem ser dos mais variados: o próprio po-der estatal por meio de seus organismos decontrole externo ou interno.

5.4. Auditoria tributária

Uma das modalidades de auditoria demaior ressonância e impacto na sociedade

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atual é a auditoria tributária ou de impos-tos. Sob esse nome, mencionam-se váriasformas de atuação da administração tribu-tária, inclusive com efeitos sancionadoressobre os contribuintes.

Sem pretender uma tipificação rigorosasob o ponto de vista jurídico, ousamos afir-mar aqui que uma grande parcela das atua-ções do Fisco pode, sim, enquadrar-se per-feitamente no marco conceitual de audito-ria que aqui se apresenta.30 Trata-se da veri-ficação realizada pelos agentes fiscais jun-to aos contribuintes quanto a fatos econô-micos, financeiros ou contábeis com relevân-cia tributária.

“As atuações de comprovação einvestigação da Inspeção de Tributosterão por objeto verificar o adequadocumprimento pelos sujeitos passivosou responsáveis tributários de suasobrigações e deveres para com a Fa-zenda Pública.

Por ocasião destas atuações, a Ins-peção comprovará a exatidão e vera-cidade dos fatos e circunstâncias dequalquer natureza registrados pelossujeitos passivos ou responsáveis tri-butários em quantas declarações ecomunicações se exijam para cada tri-buto. Do mesmo modo, investigará apossível existência de elementos defato ou outros antecedentes com trans-cendência tributária que sejam desco-nhecidos total ou parcialmente pelaAdministração. Finalmente, determi-nará, se for o caso, a exatidão das ope-rações de liquidação tributária prati-cadas pelos sujeitos passivos ou res-ponsáveis por retenções e estabelece-rá a regularização que considere pro-cedente da situação tributária dosmesmos.”31

A atuação do Fisco tem, portanto, trêsetapas: uma de coleta e organização de in-formação (movimento financeiro e econômi-co do contribuinte; lançamentos tributáriospor ele realizados, etc.); a segunda, de avali-ação dessa informação segundo o ponto de

vista da legislação tributária; a terceira, fi-nalmente, de imposição de gravames tribu-tários sobre o contribuinte. As duas primei-ras em conjunto, portanto, formam uma ati-vidade rigorosamente de auditoria, nos ter-mos que aqui se expõe. Nelas é emitida umaopinião por parte de um agente indepen-dente da parte responsável (que no caso é ocontribuinte), acerca de assuntos de nature-za financeira (movimento dos negócios docontribuinte e seus fluxos tributários), combase em critérios predefinidos (a legislaçãotributária), comunicada a um terceiro alheioà parte responsável (o destinatário daopinião, nesse caso, é o próprio Fisco)32. Aterceira etapa (lavratura de autos, imposi-ção de multas, etc.), por sua vez, ainda quepossa ser feita pelo mesmo agente fiscal eno mesmo momento, não integra o seu pa-pel de auditor (dentro do conceito teóricoque aqui abordamos).33

5.5. Auditoria interna

A função de auditoria interna dentro dasorganizações já alcançou, após uma longaconsolidação histórica, um sentido e umanatureza próprios, sem que se possa maisdizer de maneira informada que é simples-mente “aquela realizada por integrantes daprópria organização”.34 A conceituaçãooperacional mais difundida que hoje é leva-da à prática é a do Institute of Internal Auditors(IIA) norte-americano, que define a audito-ria interna como

“Uma atividade independente eobjetiva de verificação e consultoria,destinada a agregar valor e melhoraras operações de uma organização. Elaajuda a organização a cumprir seusobjetivos trazendo uma abordagemsistemática e disciplinada à avaliaçãoe melhoria da efetividade dos proces-sos de gestão de risco, controle e go-vernança.”35

Enfim, o trabalho de auditoria internaem um sentido lato é o de assessoramento àdireção da organização. Como a própriadefinição já evidencia, inclui a verificação e

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a consultoria. Esta última tem assumido pro-porção crescente do trabalho do auditor e évista pela direção das organizações comoessencial em suas atribuições (“a direçãoespera que o auditor traga-lhe soluções anteproblemas ou riscos para a gestão da em-presa, mesmo quando tais soluções não te-nham sido solicitadas.”36). Daí já se vê umaespecificidade do trabalho de auditoria in-terna, o de ter inerentemente um conteúdode valorações, recomendações e conselhos.Esses conteúdos não se incluem, a rigor, noquadro conceitual de auditoria que apresen-tamos. Por outro lado, várias outras atua-ções da auditoria interna podem ser consi-deradas conteúdos inteiramente inseridosno referido quadro conceitual (“avaliar o graude cumprimento das normas e procedimen-tos estabelecidos pela direção”; “verificar aconfiabilidade e qualidade da informaçãoque recebe a direção, e que seja adequada”).

Sob o ponto de vista da independênciado auditor, nosso marco conceitual modifi-ca alguns preconceitos já cristalizados, se-gundo os quais “o auditor interno não teriaindependência” por ser funcionário da or-ganização em que atua. A independêncianão se afere em relação a uma organizaçãoem abstrato, mas em relação à parte respon-sável pelo assunto ou informação a ser exa-minada. Estando o auditor interno direta-mente subordinado à instância máxima deuma empresa (ao seu Conselho de Admi-nistração, por exemplo), não será dependen-te de uma das divisões de linha da organi-zação sobre cuja gestão deva pronunciar-se(lembremos da observação segundo a quala dependência em relação ao destinatário daopinião não descaracteriza um determinadoencargo como um encargo de auditoria). Jánão será independente, no entanto, se tiverque examinar atos da instância a que esti-ver subordinado (por exemplo, avaliar a le-galidade de deliberações do Conselho deAdministração ante qualquer critério da le-gislação empresarial). No setor público, oauditor integrante de uma controladoria ouauditoria-geral subordinada ao titular do

Poder Executivo de um Estado ou Municí-pio está em situação de independência pe-rante outras repartições e organizações domesmo Poder Executivo. Por outro lado,nada impede que os serviços de verificaçãoe consultoria da auditoria interna sejamcontratados a firmas externas de auditoria– de fato, é corrente no mundo corporativo ooutsourcing de serviços de auditoria inter-na.37 E nesse caso, cabe perguntar: uma em-presa contratada para desempenhar as fun-ções da auditoria interna de outra organi-zação seria “mais independente” que umdepartamento de auditoria interna compos-to por funcionários da organização?

Em síntese, do vasto catálogo de atribui-ções conquistadas pelos auditores internosnas organizações, algumas podem ser clas-sificadas dentro do marco conceitual daauditoria, outras possuem finalidades e ca-racterísticas distintas. Não se lhes pode clas-sificar a priori, sendo necessário examinarcaso a caso cada um dos encargos, em bus-ca da presença de todos os elementos cons-tantes do marco conceitual.

Isso não significa uma inadequação ouimprecisão das definições usuais de audi-toria interna (tal como a do IIA), nem tam-pouco põe em cheque o modelo conceitualque apresentamos: essa divergência deve-se às diferentes origens dos conceitos. Asnormas do IIA têm por foco o beneficiáriodo trabalho do auditor interno (a direção daprópria organização) e as áreas de atuaçãoprioritária (gerência de riscos, controle egovernança), enquanto o estudo da audito-ria em geral tem sua atenção concentradana natureza do trabalho em si. Aqui cabemais uma vez a ressalva que já expressa-mos ao final do item 3: a circunstância deque coexistem tarefas que analiticamentesão consideradas auditoria e aquelas quepertencem a outro tipo de trabalho não pre-vine, de maneira alguma, a sua realizaçãopelos mesmos profissionais (ao contrário, oconhecimento da realidade proporcionadopelas missões estritamente auditoriais per-mite que o auditor interno esteja em privile-

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giada posição para oferecer consultoria eassessoramento). A distinção aqui estabele-cida é tão-somente para fins de compreen-são do processo de auditoria.

5.6. Auditoria operacional

5.6.1. Origens e definições

As duas últimas décadas testemunha-ram o aparecimento, no mundo ocidental,de novos “estilos” ou demandas programá-ticas em relação à gestão pública: abrigadasob um rótulo generalizante de “New PublicManagement” (NPM) está uma larga coleçãode iniciativas e direcionamentos que alcan-çaram em maior ou menor medida quasetodos os governos (dos quais os paísesanglo-saxões são exemplo paradigmático,a começar pelo Reino Unido – que teve aprecedência histórica com as iniciativas dosgovernos Thatcher na década de 80 – e pelaNova Zelândia – que levou esse paradigmade gestão aos seus limites extremos). Aindamais amplamente que na prática governa-mental, esse movimento implantou-se nasteorias, nos discursos, nas doutrinas e nastécnicas de administração pública contem-porâneas, mesmo naqueles países que per-maneceram mais próximos a uma adminis-tração clássica burocrático-weberiana, resis-tindo à implementação do compromissoprogramático do (NPM) em suas legislações.

Esse novo paradigma gerencial não éuma prática unificada, mas uma variedadede elementos programáticos (muitas vezessuperpondo-se entre si) tomados de emprés-timo ao universo conceitual da administra-ção privada:

“[...] controle de custos, transparênciafinanceira, autonomização de sub-unidades organizacionais, descentra-lização da autoridade gerencial, cria-ção de mecanismos de mercado equase-mercado separando as funçõesde aquisição e produção [de bens eserviços públicos, FMRB] e a sua vin-culação através de contratos, e o re-forço da responsabilidade (accounta-

bility) perante os clientes pela quali-dade do serviço através da criação deindicadores de desempenho.”38

Cada um desses elementos traz consigoum aumento na intensidade e volume dosfluxos de informação financeira e não-finan-ceira, bem como na formação de arranjoscontratuais. Esse é, como vimos, o fator es-sencial na demanda por serviços de audito-ria em geral. E não mais de uma naturezaapenas monetária, pois o que se tem queverificar não são apenas os números contá-beis mas os processos e produtos que umgoverno cada vez mais reduzido (na reali-dade ou no objetivo) “encomenda” ou “con-trata” com terceiros (empresas privadas,autoridades locais, agências independentesou semi-independentes, organizações não-governamentais). Na busca de preencheressa necessidade, as instituições de audito-ria pública dos países centrais foram desen-volvendo (e disseminando tanto aos seusníveis locais de governo quanto aos demaispaíses) uma nova prática de auditoria queavança sobre os aspectos finalísticos da ges-tão pública.39

Também as organizações privadas vêmdemandando, por pressão da competitivi-dade, mais recursos de conhecimento e in-tervenção gerencial. Esse conjunto de méto-dos e técnicas estruturados num todo coe-rente vem sendo, também, tratado como umamodalidade de auditoria.

“Desta maneira, dirigentes e con-sultores necessitam de métodos queposibilitem melhor conhecimento daorganização e de seu entorno, que per-mitam identificar os pontos fortes efracos de sua configuração atual, queajudem a encontrar novos objetivos edesenhos mais eficazes e eficientes e,por último, demandam técnicas queconsigam implementar estes desejosde mudança.”40

Essa demanda pela extensão do conhe-cimento e da prática auditorial para áreasvinculadas à gestão das organizações emsentido lato, mas incomparavelmente mais

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amplas que a simples gestão financeira oulegalidade, é tão intensa que se reflete nagrande quantidade de denominações queassume (várias delas com sentidos diferen-tes para os mesmos termos). Nos estudosvoltados ao setor privado, pode-se encon-trar referências a auditoria operacional, au-ditoria operativa, auditoria gerencial,auditoria administrativa, auditoria deoperações, auditoria organizativa (MÁS;RAMIÓ, 1997, p. 29-30; NEWTON, 2001, p.61; VALDERRAMA, 1997, p. 27). Naquelasobras enfocando o setor público, por sua vez,a variedade não é menor: auditoria de de-sempenho ou de performance, com suas sub-divisões de auditoria de economia e eficiên-cia e auditoria de programas; auditoria denatureza operacional, divididas em audito-ria de desempenho operacional e avaliaçãode programas; controle financeiro de pro-gramas; value-for-money audit.41

Portanto, para tentar uma aproximaçãorigorosa desse fenômeno de proliferação denomes e metodologias, é indispensável fa-zer-se uma escolha prévia de qual ou quaisimplementações práticas desse conceito sevai utilizar. Inicialmente, a taxonomia de-senvolvida do GAO norte-americano42 é amatriz da maioria das definições atualmen-te em uso, que em geral para ela convergem.Segundo o Yellow Book, trata-se da audito-ria de desempenho, que compreende dois sub-tipos distintos:

a) a auditoria de economia e eficiência, des-tinada a verificar se a entidade auditadaadquire, protege e usa seus recursos de for-ma econômica e eficiente, as causas de even-tuais práticas antieconômicas ou ineficien-tes e o cumprimento das normas legais e re-gulamentares referentes a economia e efici-ência (ESTADOS UNIDOS, 1992, p. 2-3)43; e

b) a auditoria de programas, voltada paradeterminar a extensão do atingimento dosobjetivos fixados para a ação pública emcada programa ou atividade auditada porparte da autoridade política ou legislativa,a efetividade das atividades auditadas e ocumprimento das normas legais e regula-

mentares aplicáveis ao programa ou ativi-dade44. (ESTADOS UNIDOS, 1992, p. 2-3).

Não obstante a obrigatória referência ànomenclatura do GAO como ponto de par-tida, devemos partir para uma especifica-ção um pouco diferente das diferentes ativi-dades de auditoria operacional com as quaistrabalharemos. Essa definição inclui na au-ditoria de desempenho operacional (e nãona auditoria de programas) a análise da efi-cácia (atingimento de objetivos) e exclui tam-bém da auditoria de programas a aprecia-ção do cumprimento de normas legais a elapertinentes. Essa divisão parece-nos maisrazoável em função das especificidades daavaliação de programas e de efetividade, queadiante veremos. Essa definição de audito-ria operacional, ainda, superpõe-se commais precisão ao conceito usual desse tipode auditoria na empresa privada.45 Por fim,ao corresponder à nomenclatura do Tribu-nal de Contas da União, insere-se com maisfacilidade no amplo movimento de disse-minação desse tipo de trabalho que o referi-do Tribunal vem promovendo no setor pú-blico brasileiro.

Assim, adotamos para os fins propostosuma definição em tudo similar à que expõeo Tribunal de Contas da União em docu-mento de trabalho. Nele, a Auditoria deNatureza Operacional (ANOp) é a avalia-ção sistemática dos programas, projetos, ati-vidades e sistemas de uma organização, de-compondo-se em46 (BRASIL, 2000, p. 15-18):

I) Auditoria de Desempenho Operacio-nal, que é a modalidade de auditoria volta-da para o exame da ação da entidade ouatividade auditada quanto aos aspectos daeconomicidade, eficiência e eficácia, exami-nando para tanto:

a) como a entidade adquire, protege eutiliza seus recursos;

b) as causas de práticas antieconômicase ineficientes;

c) o cumprimento das metas previstas; ed) a obediência aos dispositivos legais

aplicáveis aos aspectos da economicidade,eficiência e eficácia da gestão.

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II) Avaliação de programas, que tem porobjetivo examinar a efetividade dos progra-mas e projetos, isto é, em que medida as açõesimplementadas lograram produzir os efei-tos pretendidos pelos seus empreendedores.

Essas duas definições têm o efeito de co-brir em seu escopo as demandas programá-ticas feitas à auditoria como ferramenta deconexão entre a formulação e a implemen-tação descentralizada da política pública,que é a exigência principal feita aos audito-res pela disseminação da ideologia do NewPublic Management. De fato, a variedade depossibilidades que um esforço nesse senti-do abre é muito rica. Uma Auditoria de De-sempenho Operacional pode, por exemplo,verificar se uma entidade47:

– segue práticas adequadas e vantajo-sas de aquisição de bens ou serviços;

– adquire recursos com a especificação,qualidade e na quantidade adequadas,no momento necessário, ao custo maisbaixo possível;

– protege e mantém adequadamente seusrecursos;

– evita duplicação de esforços por em-pregados e a realização de trabalhosque têm pouca ou nenhuma utilidadepara a organização;

– evita a ociosidade e o excesso de pes-soal;

– usa procedimentos operacionais efici-entes;

– usa a quantidade mínima de recursos(pessoal, equipamentos e instalações)para produzir e entregar bens e servi-ços em qualidade e quantidade apro-priadas, no tempo adequado;

– atinge os objetivos previstos ou plane-jados por ela na execução de seus pro-gramas de trabalho, referidos em ter-mos de volume de produtos ou servi-ços ofertados;

– tem sistemas adequados de medição eprestação de contas no que se refere aeconomia, eficiência e eficácia.

Uma Avaliação de Programas, por suavez, pode, por exemplo, analisar48:

– se os objetivos de um programa pro-posto, recém-iniciado ou em andamen-to são adequados ou relevantes;

– a extensão em que um programa atin-ge os resultados desejados, referidosem termos dos benefícios sociais de-correntes dos produtos ou serviços porele ofertados;

– a efetividade de um programa ou deseus componentes individuais;

– se os gestores desenvolveram e consi-deraram alternativas para a oferta doprograma que poderiam gerar os resul-tados desejados com mais efetividadeou a um custo menor;

– se um programa complementa, dupli-ca, superpõe-se ou entra em conflitocom outros programas relacionados;

– as maneiras de um determinado pro-grama obter melhores resultados;

– se os sistemas de medição e prestaçãode contas no que se refere a efetividadesão adequados.

Desde logo, as definições apresentadas(que refletem de forma sintética as práticasrealizadas) encaixam-se perfeitamente nomarco conceitual de auditoria. Os assuntossobre os quais opinam os auditores têm fron-teiras menos precisas; os critérios são cons-truídos ad hoc para cada auditoria; as exi-gências da interação mais próxima com osauditados leva o auditor a adotar um perfilcomportamental mais aberto e menos vin-culado ao ar severo e lacônico tradicional-mente associado à auditoria de regularida-de. Em que pesem todas essas particulari-dades, estão presentes claramente os ele-mentos conceituais acima identificados: umassunto determinado (cuja identificação emtermos objetivos é um dos principais desafi-os metodológicos desse tipo de auditoria),os critérios de auditoria compilados pelosauditores, o exame sistemático do objeto deauditoria e a opinião, na forma de relatório,dirigida aos destinatários das informações(nesse caso, não só as instâncias de contro-le mas também – e principalmente – os pró-prios entes auditados).

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5.6.2. As dimensões do desempenho

Naturalmente, em sendo as definiçõestão dependentes da conceituação das di-mensões do desempenho, é necessário ex-por com clareza também o significado dosconceitos de economicidade, eficiência e efi-cácia. Se apresentamos acima a noção decritérios de auditoria, padrões aplicáveis acada caso que se examina,49 podemos trataras dimensões do desempenho como catego-rias que organizam os critérios individuais,ou mais ousadamente como “metacritérios”que categorizam o foco ou a perspectiva quecada critério procura alcançar.

A especificação dos conceitos vem tam-bém da mesma fonte:

Economicidade – minimização dos custosdos recursos utilizados na consecução deuma atividade, sem comprometimento dospadrões de qualidade;50

Eficiência – relação entre os produtos(bens e serviços) gerados por uma atividadee os custos dos insumos empregados, emum determinado período de tempo;51

Eficácia – grau de alcance das metas pro-gramadas, em um determinado período detempo, independentemente dos custos im-plicados;52

Efetividade – relação entre os resultadosalcançados (impactos observados) e os ob-jetivos (impactos esperados) que motivarama atuação institucional.53

Nesta última dimensão, estão incorpo-radas possivelmente as maiores dificulda-des em todo o universo da ANOp, uma vezque não se lida apenas com variáveis inter-nas ou instrumentais (recursos aplicados,produção mensurada), mas com os efeitosque a ação da entidade auditada causa noseu ambiente externo. Em primeiro lugar,pelo que se refere aos efeitos em si (SUÉCIA,1999, p. 31-35). Identificar com precisão equantificar os efeitos (não a produção pla-nejada e medida) de qualquer ação não énunca uma tarefa simples, inclusive porqueos efeitos desejados são amiúde enunciadosde maneira qualitativa e normativa, em

termos gerais e abstratos, tais como “asegurança em uma coletividade” (MENY;THOENIG, 1992, p. 94). Além disso, podemexistir externalidades positivas ou negati-vas geradas pela ação auditada em outrasáreas da vida social, que provavelmente dei-xarão de ser examinadas na sua auditoriamas representam um componente da efeti-vidade do programa. Por outro lado, e prin-cipalmente, há o problema da causalidade:os efeitos observados na variável-objeto doprograma analisado podem ter vindo de ou-tras políticas públicas ou de fatores exóge-nos da vida social que não têm correlação como próprio programa (MENY; THOENIG,1992, p. 95; CANO, 2002, p. 16-17).

Também não se pode deixar de reconhe-cer a emergência de novos parâmetros dedesempenho para a ação das organizações(em particular no âmbito público) que ain-da não alcançaram sua posição na formali-zação normativa. São o reflexo concreto denovos problemas que ingressaram na agen-da pública desde então, quer seja por ex-pressarem carências objetivas da socieda-de, quer por veicularem a decisão subjetivade grupos ou parcelas que, em nome da so-ciedade como um todo, qualificam-nos comoum problema social (MENY; THOENIG,1992, p. 119). Referimo-nos a dimensões taiscomo:

– a eqüidade (de que trataremos logo adi-ante);

– a transparência e a responsabilização(o grau em que uma determinada açãopermite a visibilidade e a prestação decontas de seus recursos e objetivos,bem como a atribuição clara de respon-sabilidades aos diferentes agentes nelaenvolvidos);

– a participação social (a abertura queuma determinada política pública con-templa para que nela se veiculem asopiniões e preferências dos interessa-dos, o que não apenas é instrumentalmas tem um valor por si próprio –como mecanismo pedagógico de auto-organização popular);

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– sustentabilidade (num sentido mais es-trito, a compatibilidade de uma açãocom a sua inserção no meio ambientenatural que a cerca e que deve abrigá-la; num sentido lato, a capacidade deessa ação gerar por si própria os recur-sos – financeiros, materiais e naturais– que lhe assegurem a continuidade).

Entre esses novos atores na arena daavaliação de programas, projetos e entida-des, há um que é praticamente inescapável,e corresponde à demanda política contem-porânea (especialmente no Brasil): a eqüi-dade. Com várias definições possíveis,pode-se tratá-la como a medida da possibi-lidade de acesso aos benefícios de umadeterminada ação por parte dos grupossociais menos favorecidos em comparaçãocom as mesmas possibilidades da média dopaís. Avaliar a eqüidade significa examinarse há uma distribuição igualitária dosrecursos entre os que têm direito a recebê-los. (ANGLÈS, 1999, p. 19). No Brasil, oprincípio da eqüidade está contemplado emsede constitucional, quando o art. 3o, incisoIII, da Carta Magna insere como objetivofundamental da República “erradicar a po-breza e a marginalização e reduzir asdesi-gualdades sociais e regionais”, secundadopelo art. 170, inciso III, que fixa comoprincípio da ordem econômica a “reduçãodas desigualdades regionais e sociais”.

Se consolidada está em sua legitimida-de, porém, muito falta ao conceito de eqüi-dade para ganhar consenso em sua opera-cionalização (circunstância esta, aliás, queafeta em maior ou menor grau todas as de-mais dimensões do desempenho). Em pri-meiro lugar, em um nível de grande abstra-ção teórica, a busca da eqüidade é às vezesentendida como potencialmente contraditó-ria com as condições de eficiência econômi-ca, por opor-se em última instância às pos-sibilidade de desigualdade que representa-riam indispensável incentivo à busca de efi-ciência por parte dos agentes econômicosindividuais (COHEN; FRANCO, 1993, p.23). Ainda que essa discussão possa pros-

perar no nível da sociologia, ou da filosofiaeconômica, não deve, porém, afetar demasi-adamente a ordem de preocupações da ava-liação de programas; essa atividade atépode, em algum momento, discutir o méritoda fixação de tais ou quais objetivos parauma ação, mérito esse que pode alcançar osuposto trade off eqüidade vs. eficiência; noentanto, raramente uma avaliação concretaalcança nível de generalidade tão grandeem que esse trade off seja uma preocupaçãopotencial (a trajetória mais provável é o es-tudo de um programa, projeto ou entidadeespecífico, cuja dimensão não tem o poten-cial de provocar isoladamente diferençasestruturais que alcancem tal generalidade).

A segunda discussão, por sua vez, temmais repercussão na prática da avaliação:trata-se de qual é o fundamento da eqüida-de: se a igualdade de oportunidades (ou deacesso aos recursos de um dado programa)ou a igualdade de resultados (ou de recebi-mento dos benefícios do programa)54.

“A igualdade de oportunidadespretende colocar todos os indivíduosna mesma situação inicial, procuran-do que as recompensas sejam dadasde acordo ‘com os méritos’. [...] Aigualdade de resultados pretendealcançar uma distribuição finaligualitária, independentemente dodesempenho dos indivíduos e de suacontribuição à sociedade.” (COHEN;FRANCO, 1993, p. 23).

A concepção de igualdade de resultadosé combatida até mesmo com alguma violên-cia por grande parte da ciência social:

“A posição dominante aceita oprincípio da igualdade no ponto departida, outorgando oportunidadessimilares a todos, ao mesmo tempo emque pretende que a distribuição final,que será desigual, se mantenha den-tro de certas margens consideradasaceitáveis em cada contexto social”(COHEN; FRANCO, 1993, p. 25).

É preciso, porém, não perder de vista es-sas duas dimensões ao discutir os méritos

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de critérios de eqüidade: se a igualdade deoportunidades parece razoável para a mai-or parte dos fenômenos econômicos (ex: ofe-recer a todo estudante que o deseje a mesmaqualidade de ensino profissionalizante, dei-xando ao mérito de cada um a sua inserçãono mercado de trabalho e a conseqüente ge-ração de renda), não se pode conceber umadesigualdade de resultados no oferecimen-to de direitos sociais básicos (ex: atendimen-to médico em situações de risco de vida, ouacesso à justiça com igualdade de condiçõesentre as partes), desigualdade essa que étalvez o mais intolerável traço do subdesen-volvimento brasileiro.

5.6.3. Auditoria de naturezaoperacional versus auditoria de

conformidade – uma falsa polêmica

“A verdade, permito-me eu comentar agora, sópede olhos que a vejam. O pior é quando as pessoasteimam em olhar para outro lado.” (SARAMAGO,1999, p. 168).

Neste ponto, é útil estender-nos um pou-co sobre as diferenças entre a auditoria con-vencional (de conformidade ou financeira)e a ANOp. Essas diferenças suscitam nãopoucas angústias e reações dos auditores jáexperientes, especialmente no setor públi-co, que temem algo como uma descaracteri-zação (ou perda de poder) do papel de suasorganizações.

Quanto aos fundamentos legais no di-reito brasileiro, a atribuição de competênci-as às instituições públicas de controle quederiva da Constituição Federal é explícitaem incluir ambos os tipos de verificações.Os princípios constitucionais de adminis-tração pública incluem tanto a legalidade emoralidade quanto a eficiência (art. 37 daConstituição Federal). O mandato das insti-tuições públicas de controle (interno ou ex-terno) na Constituição alcança a verificaçãoda legalidade, legitimidade e economicida-de da ação pública (art. 70), podendo o sis-tema de controle externo auditar a ação nosâmbitos contábil, financeiro, orçamentário,

patrimonial e operacional (art. 71, inciso IV).O sistema de controle interno, por sua vez,tem a responsabilidade explícita de avaliaro cumprimento das metas do planejamentogovernamental (art. 74, inciso I) e de avaliaros resultados quanto à eficácia e eficiênciada gestão (art. 74, inciso II). Tais mandatosconstitucionais são válidos tanto para o ní-vel federal quanto nas administrações regi-onais (art. 75). Existe portanto, desde a ma-triz de todo o ordenamento jurídico, a previ-são e a demanda do trabalho auditorial so-bre as dimensões do desempenho da açãopública.

Os critérios sobre os quais efetuar a açãode controle representam a primeira diferen-ça significativa: no trabalho de legalidade,são explícitos na lei e regulamentos, nãocabendo outros.55 Os critérios para a audi-toria de natureza operacional, por sua vez,têm de ser construídos ad hoc praticamenteem cada auditoria, com origem nas maisdiversas fontes (na própria legislação, quan-do existente, nos padrões técnicos da áreaprofissional auditada; no desempenho his-tórico do ente auditado; no desempenho deentidades semelhantes, em práticas geren-ciais ou operacionais aceitas pelo auditadocomo aplicáveis; nos objetivos fixados aoente auditado por ele próprio ou pelo poderpúblico correspondente, ou nos termos decontratos que vinculem o auditado).

No que se refere às conseqüências daação de controle, também há diferenças des-tacadas: o mandato legal para a auditoriade legalidade e financeira fala em julgar eresponsabilizar, permitindo exigir respon-sabilidades pecuniárias e impor sanções;para os aspectos operacionais, fala em ava-liar, emitir pronunciamentos de naturezaopinativa. Assim, uma auditoria de legali-dade poderá conter determinações de cum-primento coercitivo pelo auditado, funda-mentada na obrigatoriedade da legislaçãoem que se fundamenta. Uma auditoria denatureza operacional, por sua vez, terá cri-térios muito menos imperativos sobre osquais consolidar-se. Ainda que o mandato

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legal permita a avaliação nessas dimensões,conceitos como eficiência, eficácia, efetivi-dade ou eqüidade não são normas específi-cas e inequívocas que prescrevem compor-tamentos predeterminados. No sentido ju-rídico, são normas programáticas, de apli-cação diferida e não imediata, a serem ma-terializadas pela atividade do legislador (ela-borando normas e regulamentos) e do ad-ministrador (por meio dos atos de gestão).Emitem “preceitos a serem cumpridos peloPoder Público, como ‘programas das respec-tivas atividades, pretendendo unicamentea consecução dos fins sociais pelo Estado’”(MORAES, 2000, p. 41). Dessa forma, o entecontrolador está funcionando como um in-terlocutor mais nessa materialização da in-tenção constitucionalmente consagrada, si-tuando-se numa posição de co-participaçãonessa produção dos objetivos sociais pelaAdministração. Dessa forma, não existe ofundamento legal que permite a atuaçãocoercitiva do ente controlador, que tem derecorrer à capacidade de persuasão de seusargumentos técnicos objetivamente lança-dos em seus relatórios. Assim, os produtosessenciais da auditoria operacional são aopinião do auditor acerca do desempenhona atividade examinada e as eventuais re-comendações fundamentadas que sua aná-lise permita formular56. Algumas propostasmetodológicas chegam a incluir como eta-pa da auditoria operacional, após a emis-são de propostas ou recomendações, umaverdadeira negociação entre os auditores eos responsáveis pela entidade ou programaexaminados, de forma a atingir os resulta-dos preconizados pelas recomendações.(MÁS; RAMIÓ, 1997, p. 42-47).

Alguns poderão ver nisso uma “dimi-nuição” dos poderes ou do papel dos ór-gãos de controle. Entendemos que não pro-cede esse temor. Em primeiro lugar, porquea dimensão operacional foi acrescentada pelaConstituição de 1988 às missões do contro-le, sem que as demais atribuições de legali-dade fossem excluídas de sua competência.Em segundo lugar, porque não se deve de

modo algum subestimar o efeito que a sim-ples disseminação da informação objetivasobre a gestão pública tem no sistema sócio-político, sendo capaz de influenciar vigoro-samente a própria condução das ações emquestão (a demanda por informação e aná-lise chega a preceder e pautar as iniciativasdas instituições de controle). Num contextoinstitucional democrático, a discussão téc-nica fundamentada dos assuntos públicosé por si própria uma fonte considerável depoder; uma organização de controle capazde abordar com segurança os problemas desua clientela do ponto de vista técnico-gerencial, oferecendo análises objetivas, cor-retas, bem apresentadas – e portanto persu-asivas –, conquista um espaço de interven-ção adicional em relação às suas competên-cias de fiscalização estritamente jurídico-formais.

Em função dessas mesmas característi-cas, a auditoria operacional pressupõe aexistência de algumas características na ati-vidade sob exame e na relação entre o audi-tor e os gestores sob auditoria. Os mecanis-mos de gestão (especialmente orçamentári-os, estatísticos e contábeis) devem ter con-sistência e abrangência tais que permitam,ao menos em um nível mínimo, a análise darealidade relativa àquele programa ou ins-tituição. Caso não possuam potencialidadesuficiente para isso, essa constatação serápossivelmente a conclusão mais importan-te da auditoria, que poderá então indicar anecessidade e as condições de criação demecanismos hábeis à gestão da atividadeauditada (ANGLÈS, 1999, p. 25-26). Exis-tem mesmo metodologias de auditoria ope-racional que incluem, como parte essencialde sua intervenção, uma negociação préviacom a entidade objeto da auditoria para de-finir, em conjunto, um sistema previamenteconcertado de planejamento, estabelecimen-to de objetivos e produção de indicadores.(ESPANHA, 1997, p. 14-17, 79-92).

Outro imperativo para o sucesso de umaauditoria operacional é o relacionamentocooperativo que se espera seja estabelecido

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entre o auditor e o seu cliente (ANGLÈS,1999, p. 27-28). Não se está tratando de sim-ples constatação de não-conformidades anteum padrão objetivo predefinido e obrigató-rio, como a auditoria de legalidade, que podeser feita (e muitas vezes tem exatamente deser feita) num contexto de maior distancia-mento e mesmo conflito de interesses. A na-tureza dos dados a serem captados, a cons-trução dos critérios, a comparação entre unse outros, são freqüentemente sujeitos a lacu-nas e ambigüidades que dificilmente sãosuperáveis sem uma postura cooperativa deambas as partes. Isso requer uma posturainstitucional e pessoal dos responsáveispela auditoria que, longe de representar umadiminuição de sua condição de trabalho, evi-dencia (e exige) um grau maior de profissio-nalismo e garante, quando atingido, um res-peito ainda maior à instituição de controle.

Por fim, existem algumas outras distin-ções entre ambas as modalidades que mere-cem a reflexão57:

– as auditorias de regularidade podemabranger uma grande entidade e utili-zar mais intensamente os mecanismosde amostragem; as auditorias operaci-onais têm de limitar-se a um alcancemais restrito (uma subunidade da or-ganização, um determinado processogerencial, um programa de governo,etc.);

– as auditorias de regularidade podem,em alguns casos, referir-se de maneiraglobal a uma entidade ou programa (ex:detectada uma diferença materialmen-te relevante nos balanços de uma su-bunidade, todo o balanço de uma or-ganização pode ser classificado incor-reto ou inadequado); as auditorias ope-racionais exigem, em geral, a identifi-cação mais precisa possível dos ele-mentos (programas, funções, subuni-dades) que geraram uma opinião ad-versa sobre o desempenho;

– as auditorias de regularidade podemreferir-se a um horizonte temporal de-limitado e esgotar-se na opinião sobre

ele (p. ex., as contas ou a gestão de umdeterminado exercício); essa limitaçãofaz pouco sentido na auditoria opera-cional, uma vez que o seu objetivo éexatamente encontrar os meios de me-lhorar o desempenho; em geral, as au-ditorias operacionais requerem suces-sivas verificações para acompanhar ograu de implementação das recomen-dações realizadas e o efeito que tive-ram;

– as auditorias de regularidade usambasicamente evidências documentais(quando muito, acrescidas de levanta-mentos físicos como contagens de cai-xa, inventários de estoque, etc.), quetêm características mais diretas e con-clusivas; o universo de evidências ne-cessário à análise da auditoria opera-cional é no mais das vezes muito maisamplo, incluindo fortemente compo-nentes analíticos e narrativos (entre-vistas, observações diretas), que po-dem ter natureza mais circunstanciale controversa.

5.7. Outras modalidades

A aplicação do modelo conceitual aci-ma exposto permite tentar alcançar aindamuitas outras modalidades de verificaçãoque estão em pleno andamento e que exce-dem às possibilidades do autor e do estudodescrevê-las, ficando apenas lançada a hi-pótese de que são instâncias de um mesmotipo de atividade de auditoria, entre elasvariando apenas o assunto de sobre o quese vai opinar, os critérios utilizados e osdestinatários da informação. Referimo-nos,por exemplo, às auditorias ambientais58, àsauditorias de controle de qualidade59, àsauditorias médicas60 e às auditorias de sis-temas informatizados61. Acreditamos queessa enorme variedade de modalidades pos-síveis não apenas demonstra a óbvia impos-sibilidade do autor em abordar minimamen-te todo o campo da auditoria moderna, mastambém corrobora as hipóteses já apresen-tadas de uma “explosão” da demanda pro-

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Notas

1 Cf. WATTS; ZIMMERMANN, 1986, p. 196-199; RABELO; SILVEIRA, 1999, p. 6-8.

2 “En efecto, dado que muchas de las previsionescontractuales y legales dirigidas a reducir los costes deagencia se refieren a magnitudes contables [...] y que, engeneral, la contabilidad ofrece información indirecta so-bre el rendimiento de la gestión, los administradores hande preocuparse de hacer creíble de antemano a los inverso-res la integridad de la información contable; y a tal efectono les queda más remedio que contratar los servicios deun auditor externo, puesto que la información interna –en la medida en que es formulada por quienes tienenincentivos para retocarla e incluso falsificarla a su favor –no ofrece fiabilidad o credibilidad.”

3 A tradução literal dessa expressão seria “riscomoral”. Preferimos manter aqui a expressão origi-nal para evidenciar que se trata de um construtoteórico específico, que apenas tem um significa-do claro no contexto semântico de textos de ci-ência social (na vertente metodológica da ratio-nal choice ou public choice), podendo ser confun-dida se a utilizarmos no sentido literal fora des-se contexto.

4 Especialmente a Efficient Markets Hypothesis(EMH) – (WATTS; ZIMMERMANN, 1986, p. 17-19).

5 “[...] ha sido concebida como una disciplina enla que se ha prestado una especial atención a susaplicaciones prácticas y ha habido una importanteexclusión de sus consideraciones teóricas”. (ORTAPÉREZ, 1996, p. 11).

6 Cf. POWER, 1999, p. 3-9 (a obra de MichaelPower é seminal para essa vertente do estudo daauditoria); PENTLAND, 2000, p. 307-309.

7 “During the late 1980s and early 1990s, the word‘audit’ began to be used in Britain with growing frequencyin a wide variety of contexts. In addition to the regulationof private company accounting by financial audit,practices of environmental audit, value for money audit,management audit, forensic audit, data audit, intellectualproperty audit, medical audit, and technology auditemerged and, to varying degrees, acquired a degree ofinstitutional stability and acceptance. Increasing numbersof individuals found themselves subject to new or moreintensive accounting and audit requirements. In short, agrowing population of ‘auditees’ began to experience awave of formalized and detailed checking up on whatthey do.”

8 Traduzimos por “auditoria como demanda”as expressões “audit as program” e “programmaticdemand of audit” originais de Power (1999). Umaprimeira opção havia sido “auditoria como pro-grama” , mas o uso didático de versões anterioresdeste texto revelou que essa opção causa em mui-tos leitores confusão entre o conceito de que setrata e a noção instrumental de “programa deauditoria”, de uso corrente na terminologia téc-nica de auditoria, e que denota exatamente ocontrário (é um componente da “auditoria comotecnologia”).

9 Cf. POWER, 1999, p. 6. Observe-se que a dis-tinção entre “programa” e “tecnologia” foi formu-lada em caráter geral para qualquer prática social(ROSE; MILLER, 1992) e é utilizada nos mesmostermos por Pentland (2000, p. 309).

10 Note-se que por “organizações” podemos en-tender uma empresa comercial, uma entidade go-vernamental, uma política pública, um conjuntode prestadores de serviço ou qualquer empreendi-mento conjunto entre pessoas.

11 Essas partes com interesses legítimos no em-preendimento já foram contempladas no debatepúblico (técnico e político) com a denominaçãostakeholders.

12 Cf. POWER, 1999, p. 33. “Auditors are censured,conferences are organized, articles are published and, veryoften, new audit guidance is issued. Things settle downuntil the next time.”

13 Listados de maneira didática em BergaminiJr. (2002).

14 De una primera lectura puede deducirse que no setrata de una Ley sistemática, al menos si nos atenemos ala gran heterogeneidad de los aspectos que aborda, relati-vos al mercado de valores, a la supervisión de los audito-res externos, al funcionamiento de las sociedades y a lasresponsabilidades de sus administradores y gestores.(HERNÁNDEZ OLMO, 2001, p. 22).

15 “Excesso de expectativas” ou audit expectationsgap, fenômeno recorrente segundo o qual o públicoespera que “o auditor contribua a proteger os inte-resses dos acionistas, credores, empregados e opúblico em geral, dando-lhes segurança da exati-dão das demonstrações contábeis, a continuidadedo funcionamento da sociedade, a existência defraudes, o cumprimento correto por parte da soci-edade de suas obrigações fiscais, previdenciárias elegais e a atuação responsável da sociedade emtermos meio-ambientais e sociais” (TABOADA,2000, p. 1000), esperança essa inteiramente em de-sacordo com a capacidade informativa dos parece-res de auditoria contábil (CABAL GARCÍA, 2000,p. 21, 35; TABOADA, 2000, p. 100-101).

16 “[...] this level of programmatic appeal to the ideaof audit and the level of audit technology are only looselycoupled. The auditing field is characterized by a gapbetween the explosion of programmatic demands and

gramática por auditoria em vários camposda vida social e da possibilidade de estabe-lecer, por abstração, alguns traços comunsnessa proliferação de “auditorias”.

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expectations of auditing and the more ́ local´ stories whichare told of its underlying operational capability.” [nomesmo sentido, Pentland (2000, p. 309)].

17 “el modo en que los auditores han desarrollado sutrabajo y la forma en que han de interpretarse los resulta-dos del mismo”; “soluciones constructivas que traten desatisfacer las expectativas de sus usuarios, en tanto enquanto sean razonables.” (CABAL GARCÍA, 2000, p.35).

18 “[..] Existe una amplia literatura sobre la prácticaque estamos seguros ha contribuido a mejorar la calidadde los trabajos que efectúan los auditores. Nuestro interésse centra en definir los aspectos teóricos que sean capacesde explicar el proceso de auditoría.”

19 “El objetivo de este trabajo de investigación esproponer una conexión entre ambas, porque estamos con-vencidos de que la única solución segura para los proble-mas prácticos es a través del desarrollo y utilización desus correspondientes componentes teóricos. Éstos debendefinirse en el seno de un marco conceptual propio.”(ORTA PÉREZ, 1996, p. 11).

20 As definições que passaremos a expor inse-rem-se numa seqüência epistemológica que buscaparalelo com os métodos da Economia Política clás-sica. Essa ciência, segundo Oskar Lange (1986, p.97-99) caracteriza-se por três comportamentos su-cessivos de pesquisas: a abstração, a concretizaçãoprogressiva e a verificação. O primeiro passo, que é oque nos interessa aqui, “consiste em isolar, pelopensamento, os elementos essenciais – quer dizer,aqueles que, em condições determinadas, se repe-tem constantemente – do processo econômico, as-sim como as relações constantes que surgem entreeles”. Essa abstração busca eliminar “tudo que ésecundário, fortuito, isto é, que só se produz detempos em tempos, ´por acaso´, e em destacar oque, em condições determinadas, se produz cons-tantemente, se repete constantemente, isto é, o queé essencial, ou seja, necessário”. É o produto dessaabstração, no caso da auditoria, que apresentare-mos aqui, avançando sumariamente em algumasaplicações de concretização progressiva e esperan-do suscitar conclusões suficientemente interessan-tes para que sejam aperfeiçoadas e tomadas porhipóteses válidas para verificação.

21 Para efeitos comparativos, as outras defini-ções são:

Auditoria: “Es el proceso sistemático de obtener yevaluar objetivamente la evidencia acerca de las afir-maciones relacionadas con actos y acontecimientoseconómicos, a fin de evaluar tales declaraciones a laluz de los criterios establecidos y comunicar el resulta-do a las partes interesadas.” (ORTA PÉREZ, 1996,p. 21, grifos no original).

Assurance services são “os serviços profissionaisindependentes que aperfeiçoam a qualidade dasinformações e/ou seu contexto para os usuários”.(SILVA, 2000, p. 40).

Auditoria “es la función independiente al siste-ma de comparar (o sea, el auditor sería el grupo decontrole) las características o condiciones controla-das, a través del uso de pautas, normas o elemen-tos para medirlas (sensor), determinar las desviaci-ones e informar al organismo o sector del cual laauditoría depende (grupo activante) el que está je-rárquicamente ubicado por encima del sistema au-ditado.” (NEWTON, 2001, p. 5).

22 Assurance services, em inglês; Encargos de confi-abilidad, em espanhol.

23 “Las especiales características de la auditoría exi-gen la descripción de sus notas diferenciadoras como me-jor instrumento de análisis de su concepto. Dichas notasdiferenciadoras son las siguientes:

Función desarrollada por profesionales competentese independientes.

De acuerdo con normas objetivas de trabajoConsistente en el examen de la contabilidad y del

sistema de control interno de la empresaCon el objetivo de emitir un informe donde se mani-

fieste una opinión técnica sobre si dichas cuentas anualesexpresan razonablemente, en todos sus aspectos signifi-cativos, la imagen fiel del patrimonio y de la situaciónfinanciera de dicha entidad, así como del resultado de susoperaciones

De acuerdo a principios de contabilidad generalmen-te aceptados y a la legislación vigente

Aplicados uniformemente respecto al ejercicioanterior.” (VALDERRAMA, 1997, p. 21-24).

24 “Esta denominación genérica incluye un conjuntode postulados, conceptos y normas que son aceptados concarácter general por los expertos de la contabilidad y porlas organizaciones profesionales. Suelen ser recopiladas ysistematizados por los organismos que regulan la activi-dad contable o se incluyen en los textos legales de caráctermercantil y contable. La existencia de estos principiosgenerales contribuye a objetivizar la información conta-ble estableciendo un conjunto de criterios homogéneosque sirven de referencia al profesional, sobre todo, en rela-ción con aquellos aspectos de la práctica contable en la quees necesario la aplicación de un juicio subjetivo.”(VALDERRAMA, 1997, p. 91)

25 “a. Segments of financial statements.b. Financial information (e.g., statement of revenue

and expenses, statement of cash receipts anddisbursements, statement of fixed assets).

c. Reports and schedules on financial matters, suchas expenditures for specific programs or services, budgetrequests, and variances between estimated and actualfinancial performance.

d. Contracts (e.g., bid proposals, contract pricing,amounts billed, amounts due on termination claims,compliance with contract terms.

e. Grants.f. Internal control systems and structure over

accounting, financial reporting, and transactionprocessing.

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Brasília a. 42 n. 168 out./dez. 2005 251

g. Computer-based systems.h. Financial systems (e.g., payroll systems).i. Fraud.”26 “[...] el Yellow Book ha estat considerat con la

Bíblia dels profesionals de l’auditoría del sector públic;aquesta consideració s’ha anat reforçant amb l’aparició decada una de les edicions revisades següentes.” (ANGLÉSapud ESTADOS UNIDOS, 1992, p. 1). A institui-ção teve recentemente sua denominação alteradapara Government Accountability Office, permanecen-do o acrônimo GAO.

27 “Financial audits include financial statement andfinancial related audits.

a. Financial statement audits determine (1)whether the financial statements of an audited entitypresent fairly the financial position, results ofoperations, and cash flows or changes in financialposition in accordance with generally acceptedaccounting principles, and (2) whether the entityhas complied with laws and regulations for thosetransactions and events that may have a materialeffect on the financial statements.

b. Financial related audits include determining (1)whether financial reports and related items, such aselements, accounts, or funds are fairly presented, (2)whether financial information is presented in accordancewith established or stated criteria, and (3) whether theentity has adhered to specific financial compliancerequirements.” (ESTADOS UNIDOS, 1992, p. 1-2).

28 A denominação “auditoria de legalidade” éproposta por Anglès (1999, p. 29).

29 “La auditoría de cumplimiento trata de verificarque los actos, operaciones y procedimientos de gestión sehan desarrollado de conformidad con las normas, dispo-siciones y directrices que sean de aplicación”. Normasde Auditoría del Sector Público, Resolución 1/1998de la Intervención General de la Administración delEstado, item 2.1.7 (ESPANHA, 2001, p. 219).

30 “Por otra parte, desde el momento en que es reali-zada por la Administración, a la vez que financiera esactividad administrativa; circunstancia que va a deter-minar su sujeción a las peculiaridades propias del funci-onamiento de los entes administrativos y que afectarámuy particularmente a la forma en que esta actividad seproduce y se manifiesta hacia el exterior.

Como actividad administrativa desarrollada en elmarco de un Estado de Derecho, la Actividad Financierade la Administración va a estar sometida a un estrictocauce procedimental, a unas exigencias de expresión for-mal de los actos en que se materializa y a la fiscalizaciónde los Tribunales de justicia [...]” (FOL, 1999, p. 23).

31 Com posicionamento similar, Newton (2001,p. 5).

32 “Las actuaciones de comprobación e investigaciónde la Inspección de los Tributos tendrán por objeto veri-ficar el adecuado cumplimiento por los sujetos pasivos uobligados tributarios de sus obligaciones y deberes paracon la Hacienda Pública.

Con ocasión de estas actuaciones, la Inspección com-probará la exactitud y veracidad de los hechos y circuns-tancias de cualquier naturaleza consignados por los suje-tos pasivos u obligados tributarios en cuantas declaraci-ones y comunicaciones se exijan para cada tributo. Asi-mismo, investigará la posible existencia de elementos dehecho u otros antecedentes con trascendencia tributariaque sean desconocidos total o parcialmente por la Admi-nistración. Finalmente, determinará, en su caso, la exac-titud de las operaciones de liquidación tributaria practi-cadas por los sujetos pasivos o retenedores y establecerá laregularización que estime procedente de la situación tribu-taria de aquéllos.” (Espanha. Real Decreto 939/1986,de 25 de abril, por el que se aprueba el ReglamentoGeneral de la Inspección de los Tributos, arts. 10,apartados 1 e 2 apud BRAVO, 1998, p. 423-424).

33 Essa situação ilustra o caso de a independên-cia do auditor aplicar-se ante a parte responsávelpelo assunto ou informação (o contribuinte) masnão em relação ao destinatário da informação (oFisco).

34 Poder-se-ia argumentar, com razão, que aauditoria tributária como aqui está apresentada éum dos casos de auditoria que reúne os atributosde auditoria financeira e de auditoria de legalidade(tal como expostos nos itens 4.2 e 4.3 acima). Nãohá dúvida sobre isso. Não obstante, preferimos si-tuá-la num item à parte pela dimensão econômicae pelo interesse que desperta dentro do conjunto dademanda social pela auditoria, que justificam umaabordagem individualizada.

35 Pelo que se segue, teremos que discordar en-tão de Fowler Newton (2001, p. 61) quando afirmaque “caracterizar a una auditoría como externa ointerna depende de la situación del sujeto con res-pecto al ente auditado y no del propósito u objetodel examen”.

36 “An independent, objective, assurance and consul-ting activity designed to add value and improve anorganization´s operations. It helps an organization ac-complish its objectives by bringing a systematic, disci-plined approach to evaluate and improve effectiveness ofrisk management, control and governance processes.”(INSTITUTE OF INTERNAL AUDITORS apudDIAMOND, 2002, p. 6). Com o mesmo conteúdo,porém com linguagem um pouco diferente, basea-da na normativa anterior do mesmo Instituto,Valderrama (1997, p. 26-27); Newton (2001, p. 60);Jund (2002, p. 26-27).

37 “La dirección espera que el auditor le aporte soluci-ones ante problemas o riesgos para la gestión de la empre-sa, aún cuando aquéllas no hayan sido requeridas.”(VALDERRAMA, 1997, p. 29).

38 “Opinions about how to bring about changes inthe IA function vary among the executives. One provensolution is to use outside vendors. In fact, over half (58percent) of the companies in this survey use outsideresources.” (KPMG, 1999, p. 8).

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Revista de Informação Legislativa252

39 “[...] cost control, financial transparency, theautonomization of organizational sub-units, thedecentralization of management authority, the creationof market and quasi-market mechanisms separatingpurchasing and providing functions and their linkagevia contracts, and the enhancement of accountability tocustomers for the quality of service via the creation ofperformance indicators.” (POWER, 1999, p. 43).

40 Esta seção está amplamente baseada em Power(1999, p. 43-52).

41 “De esta manera, directivos y consultores necesi-tan unos métodos que posibiliten un mejor conocimientode la organización y de su entorno, que permitan identi-ficar los puntos fuertes y débiles de su configuración actu-al, que ayuden a encontrar nuevos objetivos y diseñosmás eficaces y eficientes y, por último, requieren unastécnicas que consigan implementar estos anhelos de cam-bio.” (MAS; RAMIÓ, 1997, p. 15-16).

42 Cf. ANGLÈS, 1999, p. 11; ESTADOS UNIDOS,1992, p. 2-3; BRASIL, 2000, p. 15-20; POWER, 1999,p. 49-50; SUÉCIA, 1999, p. 17; ESPANHA, 2001, p.219-220; FERNÁNDEZ-MOLINA, 1996, p. 173-175.

43 Contida no Yellow Book do GAO, a que já nosreferimos acima (ESTADOS UNIDOS, 1992).

44 Essa posição (economy and efficiency audits)pretende, ainda, abarcar uma nomenclatura utili-zada pelo NAO inglês e muito difundida, a value-for-money audit (VFM) .

45 Naturalmente, pode-se incluir serviços, fun-ções ou entidades como objetos de auditoria, aolado de programas e atividades.

46 “El alcance del trabajo de auditoría administrativaconsiste en el análisis de las distintas áreas de trabajo enla empresa, de las funciones que desarrollan, de lasresponsabilidades establecidas y de los objetivos marca-dos, tanto en lo referente a la evaluación de los mismos ysu adecuación con los objetivos generales de la empresa,como a su cumplimiento o control operativo.”(VALDERRAMA, 1997, p. 26);

“Auditoria interna ou operacional – Ação e objetivo:Exame dos controles internos e avaliação da eficiência eeficácia da gestão; Finalidade: promover melhoria noscontroles operacionais e na gestão de recursos.” (PEREZJUNIOR, 1998, p. 15).

47 Apenas retiramos aqui a referência a ações,entidades ou órgãos “públicos”, “governamentais”ou “jurisdicionados”, por entender que, em nívelconceitual, inexistirá diferença em função da natu-reza pública ou privada do ente auditado.

48 Adaptação de GAO (ESTADOS UNIDOS,1992, p. 2-5).

49 Adaptação de GAO (ESTADOS UNIDOS,1992, p. 2-5).

50 Para uma apresentação mais extensa do tema“critérios de auditoria”: Bittencourt (2000).

51 No mesmo sentido com ligeiras alterações deléxico, INTOSAI (1995, p. 149) e RRV (SUÉCIA,1999, p. 29).

52 Cf. BRASIL, 2000, p. 108, ficando claro que arelação entre os produtos e os custos deve ser veri-ficada “em um determinado período de tempo”, oque não consta da definição de INTOSAI (1995, p.150); em RRV (SUÉCIA, 1999, p. 29), existe a men-ção a dois tipos de eficiência utilizados na lingua-gem corrente (aquela relacionando custo e produtoe a que limita-se a verificar a relação pessoal em-pregado/produto).

53 Cf. BRASIL, 2000, p. 108, em que fica claroque o conceito independe dos custos implicados.Em outra definição (INTOSAI, 1995, p. 149), essadimensão está omissa. Essa independência da efi-cácia em relação aos custos é criticada em RRV(SUÉCIA, 1999, p. 32). No entanto, em face daexistência do conceito de eficiência, entendemosadequada a utilização da definição mencionada.Claro fica, ainda, que a auditoria operacional talcomo aqui definida deixa para a auditoria de pro-gramas as considerações de efetividade (a relaçãoentre os resultados – impactos observados – e osobjetivos – impactos esperados – de uma açãopública (BRASIL, 2000, p. 107).

54 Cf. BRASIL, 2000, p. 107; SUÉCIA, 1999, p.32-33, enxerga a efetividade como os “efeitos com-parados com os objetivos e relacionados aos recur-sos usados para atingir os objetivos”. Reconhecen-do que esta definição afasta-se do modelo pa-drão da INTOSAI (refletido no conceito usadopelo TCU), alegando que não é suficiente paraenfocar simultaneamente os resultados e o usodos recursos, sendo insuficiente como mediçãodo value for money.

55 Essa dicotomia é também tratada, por vezes,como o dilema “igualdade” versus “eqüidade”.

56 O que não quer dizer, de maneira alguma,que a interpretação e aplicação da lei e regulamen-tos não seja uma tarefa muitas vezes cheia de dú-vidas e ambigüidades.

57 Aqui também cabe relembrar a advertência jáconstante ao final da seção 3, segundo a qual alimitação conceitual da auditoria à emissão de opi-nião é instrumento exclusivamente analítico, nãoimplicando de modo algum que o profissional deauditoria não deva estender seu trabalho a quantosdesdobramentos a sua análise permita.

58 Anglès (1999, p. 30) realiza um inventáriobastante sugestivo das diferenças entre os dois ti-pos de auditoria.

59 Cf. LIMA, 2000; POWER, 1999, p. 60-66, 85-86.

60 Cf. WERKEMA, 1995, p. 106; POWER, 1999,p. 57-60.

61 Cf. POWER, 1999, p. 104-111.62 Cf. GERARDO PIATTINI; DEL PESO, 1998,

especialmente p. 28-29; AUDIBRA, [19-?].

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Brasília a. 42 n. 168 out./dez. 2005 255

1. GeneralidadesO Direito Administrativo tem sido um

dos ramos da Ciência Jurídica que mais temevoluído nos últimos tempos. A moderni-dade de gestão e a busca pela eficiência naprestação dos chamados serviços públicos(guindada a princípio constitucionalfederal) direcionaram legisladores, adminis-tradores e julgadores a reestruturarem o mo-delo estatal. O direito público, por seu tur-no, aproximou-se do direito privado, dadosos fenômenos de descentralização adminis-trativa, as terceirizações, concessões, per-missões, autorizações, bem como as crescen-tes parcerias entre setor público e iniciativaprivada.

Tal multiplicação de parcerias – fusões,incorporações, joint-ventures e outros novosgrupos societários – gerou a substituição daconcorrência (e da competição simples) pelaparceria, a ponto de Wald (2004) afirmar que“[...] o espírito da parceria modificou pro-fundamente as relações entre as partes,multiplicando-se o mesmo entre o Estado eas empresas privadas, entre fornecedores,uns com os outros ou com consumidores,entre empresas de países distintos, entredistribuidores de mercadorias, entre insti-

Como fiscalizar as PPPs

Marcelo Henrique Pereira

Marcelo Henrique Pereira é Mestre em Ci-ência Jurídica. Advogado. Auditor Fiscal deControle Externo do Tribunal de Contas deSanta Catarina. Professor Universitário (Gra-duação e Pós).

Sumário1. Generalidades. 2. O Contrato de Parceria

Público-Privada. 3. A fiscalização das PPPs pe-los órgãos de controle externo. 4. Considera-ções finais.

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Revista de Informação Legislativa256

tuições de fim lucrativo e outras sem essafinalidade”.

Conhecidas mundialmente pela siglaPPP, em alusão ao acrônimo inglês de PublicPrivate Partnership, as parcerias entre os se-tores público e privado vêm ganhando es-paço e força no mundo contemporâneo,como forma de viabilizar a implantação,entre outros, de projetos de infra-estruturabásica, sendo uma forma de expressão, in-clusive, da chamada responsabilidade so-cial atribuída ao capital privado.

Constituem uma modalidade de vínculojurídico entre entidades públicas e privadas, queassumem conjuntamente a realização de em-preendimentos, serviços ou atividades de in-teresse público – exluindo-se as atividadesprivativas do Estado – com compartilhamen-to de riscos e financiamento privado com ga-rantias estatais1 . São um modelo alternativoà política de privatizações.

Nelas, o financiamento e a responsabili-dade pelo investimento inicial pertencem aosetor privado (não mais com o Estado ouempresa pública). Concluída a obra, o ser-viço público será prestado pela empresa comrecursos próprios e com certa liberdade deação, presentes certas garantias financeirasdo Estado. Assim, a iniciativa privada via-biliza oportunidades de lucro com base namargem de segurança oferecida pela Admi-nistração Pública.

A atualidade do tema e a conjuntura bra-sileira importam na projeção da utilizaçãodas PPPs para contemplar projetos especí-ficos nas áreas de saúde (como hospitais),de esportes (como os estádios poliesportivos),assim como de educação (como prédios esco-lares) e uma infinidade de outras áreas desti-nadas ao bem-estar da comunidade.

Considera-se a PPP uma estrutura atra-tiva, tanto pela prioridade do órgão gover-namental em regulamentar a operacionali-dade de novas obras/serviços/atividadespúblicos, quanto pela oportunidade e ur-gência que o país espera em relação à suaimplementação, sobretudo pela geração deemprego e reativação da economia.

A tendência legislativa, assim, apontapara a estabilidade de um marco regulató-rio, calcado na aplicação consistente, ao lon-go do tempo, de regras básicas de forma aassegurar que se possa planejar a atividadee prever resultados futuros, e, em paralelo,que se possa garantir o cumprimento dosprincípios constitucionais e legais afetos àadministração pública e, ainda, o respeito àResponsabilidade Fiscal. Esse marco advémda edição da Lei Federal n o 11.079, de30.12.2004, redefinindo a forma de relaci-onamento entre Estado e empresa priva-da, para fins de prestação de serviçospúblicos.

2. O Contrato de ParceriaPúblico-Privada

O Contrato de PPP é o instrumento ad-ministrativo de pactuação relativo a obras,serviços e atividades de interesse público,cuja responsabilidade pelo investimento epela exploração incumbe, no todo ou emparte, ao ente privado, e a viabilidadeeconômico-financeira do empreendimen-to depende de um fluxo de receitas (totalou parcialmente proveniente do setorpúblico).

Acha-se sujeito às normas do Direito Ad-ministrativo concernentes à concessão, àpermissão e às licitações, no que couber.

Além das diretrizes comuns a todos oscontratos, a PPP deverá prever as metas e osresultados a serem atingidos, bem como aestimativa de prazos e gastos para o alcan-ce de tais resultados. Serão também objetode determinação contratual as formas e oscritérios objetivos de avaliação de desempe-nho, a forma de remuneração, bem como oprazo para amortização dos investimentosefetuados pelo ente privado. Oportuno pre-ver-se, no contrato, cláusulas estabelecen-do a obrigação do contratado de obter re-cursos financeiros e sujeição aos riscos donegócio, bem como a possibilidade de tér-mino do contrato pelo montante financeiroretornado ao investimento realizado. O con-

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trato deverá conter a identificação dos ges-tores responsáveis pela execução e fiscali-zação do projeto contratado.

O novo marco a ser implementado pelasPPPs rompe com alguns paradigmas esta-belecidos pela legislação vigente, havendoa necessidade de interpretação cominadacom dispositivos de leis esparsas ou, comono caso da Lei brasileira, a autorização ex-pressa para a introdução de um novo modusoperandi no que tange aos procedimentos delicitação, contratação e endividamento pú-blicos.

Segundo especialistas do Governo, omarco legal converte-se em uma lei geral (deaplicabilidade estendida a Estados e Muni-cípios – mesmo que alguns destes já tenhama sua lei local sobre PPPs), estabelecendo-seum novo procedimento de contratação emque se justifique a parceria, em detrimentode outras modalidades contratuais, já con-templadas na legislação em curso. Procu-rou-se, assim, viabilizar um tipo de contra-tação que observasse rigorosamente as pre-missas legais contidas na Lei de Contabili-dade Pública e na Lei de ResponsabilidadeFiscal, por exemplo.

O grande foco do projeto é o debate nalinha jurídica, principalmente no que tangeà maior/menor liberalidade do ente priva-do parceiro na execução de obras/serviçose na fixação de tarifas ou na remuneraçãocom recursos públicos. Todavia, o equacio-namento do tema PPP extravasa as defini-ções legais, em razão da diversidade de tó-picos culturais e financeiros que nortei-am a gestão administrativa brasileira, bemcomo para a transparência da atuaçãodas fontes de financiamento para tais in-vestimentos.

3. A fiscalização das PPPs pelosórgãos de controle externo

Atualmente, no que tange ao Sistema deFiscalização dos Tribunais de Contas, tem-se como fundamentais as diretrizes consti-tucionais e legais:

1. Controle externo – fiscalização contá-bil, financeira, orçamentária, operacional epatrimonial, consoante os critérios da lega-lidade, legitimidade, economicidade, apli-cação das subvenções e renúncia de recei-tas (art. 70);

2. Prestação de Contas e respectivo jul-gamento – do órgão estatal e da empresaprivada parceira que “assuma obrigaçõesde natureza pecuniária” (parágrafo únicodo art. 70 e art. 71, II) –, bem como a instau-ração de Tomada de Contas Especial, se con-figurada a ocorrência de desfalque, desviode bens ou outra irregularidade de que re-sulte dano ao erário (art. 47 c/c 93 da LeiFederal no 8.443/92 – Lei Orgânica do Tri-bunal de Contas da União – LOTCU);

3. Fiscalização dos repasses de recursosgovernamentais (art. 71, VI);

4. Assinar prazo para a adoção de pro-vidências necessárias ao exato cumprimen-to da lei (art. 71, IX);

5. Avaliação do cumprimento aos prin-cípios constitucionais de legalidade, impes-soalidade, moralidade, publicidade e efici-ência (art. 37), e legais da legitimidade e eco-nomicidade dos atos de gestão e a aplica-ção de subvenções e a renúncia de receitas(art. 1o, § 1o, da LOTCU);

6. Análise da obrigatoriedade do certa-me licitatório para a efetivação da parceria(art. 37, XXI);

7. Exame da participação dos usuáriosdos serviços públicos na gestão dos mes-mos (art. 37, § 3o);

8. Definição dos critérios de exame dasPPPs, conforme atos e instruções normati-vas sobre matéria de suas atribuições e so-bre a organização dos processos que lhedevam ser submetidos (art. 3o, da LOTCU);

9. Aplicação de medidas jurídico-fisca-lizatórias (incluindo-se sanções legais e re-gimentais) aos responsáveis por entidadesdotadas de personalidade jurídica de direi-to privado que recebam contribuições pa-rafiscais e prestem serviço de interesse pú-blico ou social (arts. 5o, V, e 56 a 60 daLOTCU);

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10. Realização de inspeções e auditoriasde natureza contábil, financeira, orçamen-tária, operacional e patrimonial, incluindo-se projetos e programas autorizados na leiorçamentária anual, avaliando os seus re-sultados quanto à eficácia, eficiência e eco-nomicidade (art. 38, I e IV, da LOTCU);

11. Acompanhamento dos editais de li-citação, os contratos2, inclusive administra-tivos, e os convênios, acordos, ajustes ououtros instrumentos congêneres (art. 41, I, b,da LOTCU); e,

12. Declaração de inidoneidade do lici-tante, verificada fraude no âmbito do com-petitório ou do contrato, para participar, poraté cinco anos, de licitação na Administra-ção Pública Federal (art. 46 da LOTCU).

Enquadrando-se a PPP como um contra-to, o Congresso Nacional poderá sustá-lo,em caso de irregularidades (art. 71, § 1o).

A partir do modelo de fiscalização exis-tente, há que se permitir a configuração denovas atribuições ao Sistema Tribunal deContas, no exame das PPPs. Nesse sentido,o Controle Externo haverá de mensurar, en-tre outros: 1) eventuais descumprimentosdas regras fixadas pela LRF (aferição da res-ponsabilidade fiscal na celebração/execu-ção das parcerias); 2) a efetiva participaçãoda Sociedade quanto à eleição de áreas pri-oritárias para os investimentos (aos moldesdos orçamentos participativos); 3) a atua-ção das chamadas Controladorias do Esta-do e o cumprimento do princípio da trans-parência dos contratos de PPPs; 4) o des-cumprimento à ordem cronológica das exi-gibilidades, em razão da prioridade aos pa-gamentos dos contratos de PPPs; e, 5) o res-peito aos direitos trabalhistas dos emprega-dos contratados para tais empreendimen-tos (tanto no curso do contrato quanto nashipóteses de vencimento antecipado do con-trato).

Entendemos, assim, que se deveria ado-tar o mesmo mecanismo de controle efetua-do em relação aos Editais de ConcorrênciaPública (Controle Concomitante de Atos Ad-ministrativos), os quais, no Estado de Santa

Catarina, são submetidos a exame prévio,por parte da Corte de Contas, que analisaaspectos de legalidade, juridicidade e fina-lidade, entre outros. É o dispositivo do Re-gimento Interno do Pretório Catarinense(Resolução no TC 06/01, art. 54): “O Tribu-nal de Contas poderá solicitar, para exame3,até o dia útil imediatamente anterior à datado recebimento das propostas, cópia de edi-tal de licitação, na modalidade de concor-rência, já publicado”.

Como modalidade de fiscalização, a Au-ditoria de Gestão seria o método apropria-do para um melhor equacionamento dasvariantes político-administrativas presentesno contrato de parceria. Referida auditoriaé a “[...] que visa a medir a eficiência de umaadministração” (DE SÁ, 1993, p. 37).

Na Auditoria de Gestão, dever-se-á men-surar, por exemplo: 1) a avaliação do inte-resse do investimento privado na economia;2) a estabilidade legal (cumprimento fiel doscontratos); 3) o respeito aos marcos regula-tórios (definidos, claros e permanentes); 4)a atuação dos entes reguladores, com auto-nomia e independência; 5) a equação inte-resse público x taxas de retorno; e, 6) a atua-ção eficiente dos fundos de captação e aaplicação dos recursos obtidos, com a qua-lidade na prestação dos serviços públicos(eficiência nas missões do Estado e no em-prego de recursos públicos).

Além disso, cremos ser necessária a afe-rição objetiva dos diversos riscos existentesao “negócio” das PPPs: a) risco tecnológico(em relação a possíveis defasagens em ra-zão de inovações tecnológicas); b) risco dedemanda (poderá cair a demanda por talou qual serviço, permanecendo o compro-misso de remuneração estatal ao ente priva-do); c) risco de competição (oferecimento, nomercado, de serviços melhores ou mais ba-ratos); d) risco cambial (depreciação da mo-eda nacional, em caso de financiamentosindexados em moeda estrangeira); e) riscode inadimplência (elevada taxa de inadim-plência, pelos consumidores, forçando oEstado a remunerar o ente privado, comple-

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mentarmente); f) risco regulatório (reformada regulação do setor, a qualquer momento,poderá resultar em indenização ao ente pri-vado); e, g) risco de impacto social/ambien-tal negativo (inexistência, no PL no 2546/03, de consultas públicas ou licenciamentoambiental)4.

Numa macroanálise, assim, o controleexterno das PPPs deverá propiciar uma am-pla diagnose, fornecendo ao setor público eao Poder Legislativo informações que en-quadrem:

1. Se a PPP proporcionou (ou não) ao entepúblico alguma economia mensurável ouganho identificado de eficiência5;

2. Se ocorreram, na prática, resultadospositivos para a Sociedade, comparando-sea nova gestão com as anteriores, de titulari-dade estatal – Exame de qualidade;

3. Se as tarifas adotadas – como margemde financiamento do sistema – foram soci-almente justas (e não, tão-somente, gerado-ras de auto-sustentabilidade para o finan-ciamento);

4. Se persistem as possibilidades de cap-tação de recursos financeiros, humanos ououtros, do mercado privado, em quantitati-vo expressivo (retroalimentação do sistema);

5. Se o (s) parceiro (s) privado(s) perma-nece(m) motivado(s) (econômica e financei-ramente) e comprometido(s) com a implan-tação e a continuidade do empreendimento(novos investimentos, ampliação, etc.);

6. Se o cronograma de desembolso nãotem sido alterado em razão de ações públi-cas ou privadas censuráveis, responsabili-zando-se pessoal e institucionalmente os ato-res (públicos ou privados) pelos atrasos; e,

7. Se os possíveis conflitos contratuaisou as petições egressas da coletividade (usu-ários, empresas ou terceiros) ou do MP têmsido equacionadas adequadamente, via ar-bitragem ou via máquina judiciária.

Ao fim, a grande equação do controle ex-terno levaria ao seguinte resultado: o SetorPúblico experimentou alguma economiamensurável de recursos, um ganho identifi-cado de eficiência e uma geração de resulta-

dos externamente positivos (qualidade daprestação do serviço para o usuário/contri-buinte/cidadão) com sua realização.

Neste tópico, a pergunta final que nãoquer calar é: estão os Tribunais de Contassuficientemente aparelhados para tais examestécnicos?

4. Considerações finais

Viu-se que as Parcerias Público-Privadassurgem como alternativa aos usuais mode-los de contratação pública vigentes nopaís, há décadas, inspirados nas fórmu-las legais tradicionais da licitação, daconcessão e da pactuação de convênios econgêneres.

A PPP, definida como uma modalidadejurídica de vínculo entre entidades públi-cas e privadas, para a assunção da realiza-ção de atividades de interesse público, des-taca-se pelo compartilhamento de riscos epelo financiamento privado com garantiasestatais, configura a possibilidade de cap-tação de recursos privados (nacionais e in-ternacionais) para a execução de obras e/ou o aparelhamento da malha de serviçospúblicos, hoje estrangulados pela indispo-nibilidade de recursos orçamentários, egres-sos da tributação usual.

Na ótica de Pinto (2004), com a adoçãodas PPPs,

“[...] o setor público assegura a contri-buição de conhecimento técnico e tec-nológico, inovação e sistemas sofisti-cados de administração de riscos e,sobretudo, a satisfação do interessepúblico. Por seu turno, o setor priva-do encontra neles oportunidades re-ais de negócios e retorno adequadopara seus investimentos. A utilizaçãodos projetos PPP contribuirá para asatisfação das necessidades ditadaspelo interesse público, bem como con-tribuirá para a reativação da ativida-de econômica, não devendo ser esque-cido o seu potencial de geração diretae indireta de empregos”.

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Sendo possível sugerir ao Congresso ouao próprio Tribunal de Contas da União, noque tange aos procedimentos de fiscaliza-ção dos contratos de PPPs, seria importanteincluir entre o rol de responsáveis por re-cursos públicos, no que concerne à obriga-toriedade de remessa às cortes de contas,das declarações de rendimentos e bens,os titulares e administradores de empre-sas parceiras dessa nova modalidade degestão.

Ao contornar as barreiras políticas e con-vencer, pela prática, quanto à credibilidadedo uso de recursos governamentais em pro-jetos de risco, com eficiência, o Estado pode-rá retomar o seu processo de crescimentoeconômico-social.

Espera-se que a PPP possa ser o meio deviabilização de projetos considerados invi-áveis pelo modelo tradicional como as con-cessões plenas, resultando em parcerias quepossam ser sólidas, seguras, equilibradas e,principalmente, duradouras, a bem do inte-resse público.

Notas1 Mencionam-se, entre tais garantias, o paga-

mento de tarifas e a rentabilidade do setor privado.2 Assinando prazo, se for o caso, para a adoção

de providências necessárias ao exato cumprimentoda lei (art. 45, da LOTCU).

3 Do exame, consoante o art. 55, I, do RITCE,poderão advir: 1) a argüição das ilegalidades que oato contiver; 2) a cientificação do gestor da unida-de interessada para adoção de medidas corretivasou anulação da licitação; 3) o encaminhamento doprocesso ao órgão de controle competente para con-siderar as ilegalidades no exame do processo lici-tatório, do contrato e aditivos respectivos; e, 4)o encaminhamento ao Tribunal de cópia docu-mental do processo licitatório e do contrato res-pectivo até o terceiro dia útil subseqüente à suapublicação.

4 O impacto social poderá refletir-se em au-mento de preços dos serviços, repressão ou arrochosalarial e desemprego.

5 Há o risco de adoção de um modelo emalgumas áreas vitais que apenas desloquem gastospresentes para um fluxo necessário de desembol-sos futuros, apenas “empurrando” o estrangula-

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Capítulo I – O surgimento deuma nova ordem de direitos

O jurista do século XXI não vai podermais, como o fizeram seus antecessores, iso-lar-se em seu campo de trabalho, ante a in-terdisciplinaridade cada vez maior do Di-reito com outros ramos da ciência. Assim éque as descobertas científicas reveladas nasúltimas décadas do século passado e no li-miar do novo milênio vêm produzindo sur-preendentes reflexos sobre os relacionamen-tos do homem em sociedade, a exigir legis-lação estatal específica.

O Direito Ambiental, por exemplo, vemalcançando, gradativamente, sua autono-mia normativa e disciplinar, em face da cres-cente preocupação mundial e brasileira paracom a preservação do meio ambiente e dosrecursos naturais do nosso planeta Terra.Os advogados ambientalistas, que hoje mi-litam em todos os Tribunais do País, sãoobrigados, sob pena de exclusão, a adquiri-rem conhecimentos na área de EngenhariaGenética, para entenderem, por exemplo, oque são os denominados organismos gene-

Direitos genéticos como direitos dapersonalidade

Iduna E. Weinert

Iduna E. Weinert é Juíza Federal aposenta-da; ex-Procuradora da República; ex-Professo-ra Assistente da Universidade de Brasília

SumárioCapítulo I – O surgimento de uma nova or-

dem de direitos. Capítulo II – Os reflexos dosavanços da engenharia genética na ordem jurí-dica. Capítulo III – O histórico dos DIREITOSGENÉTICOS e da Biossegurança no Brasil. Ca-pítulo IV – A nova Lei de Biossegurança.Conclusões

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ticamente modificados (OGM), objeto de tan-ta polêmica internacional. Necessitarão,ainda, de conceitos básicos de Medicina eBiologia, para compreenderem melhor osefeitos danosos dos agrotóxicos sobre o or-ganismo humano e as lavouras, bem comode Engenharia Florestal, com a crescentedevastação de nossas florestas.

Por sua significativa expansão, o Direi-to Ambiental vem-se transformando em im-portantíssimo ramo do Direito, ao lado denovas áreas de atuação jurídica, em plenodesenvolvimento, a exigir a presença do le-gislador, tais como o Direito da Informática,o Direito Espacial, o Direito das Telecomu-nicações e outros.

Há, entretanto, uma nova ordem de di-reitos que, não obstante sua íntima e indis-sociável relação com o ser humano, aindanão despertou a devida atenção dos juris-tas brasileiros, embora já tenha produzidorelevantes reflexos nos mais antigos e con-sagrados ramos jurídicos: o Direito Civil e oDireito Penal, sendo imprevisíveis as reper-cussões que possam, futuramente, fazer sen-tir-se em outras áreas da Ciência Jurídica.

E que direitos seriam esses? Embora suadenominação ainda não tenha obtido con-sagração legal ou doutrinária, parece ade-quado falar-se em DIREITOS GENÉTICOS,expressão que se originaria do extraordiná-rio desenvolvimento da Genética Humanae que estaria referida, no campo jurídico, adireitos atribuídos ao homem em razão desua composição genética, ou seja, da cole-ção de seus genes ou, mais especificamente,de seu genoma, bem como da manipulaçãodesse material genético.

E por que razão o genoma humano, re-centemente decifrado, iria gerar direitos naordem jurídica brasileira quando, à primei-ra vista, parece tratar-se de conhecimentoespecífico das áreas da Biotecnologia e daEngenharia Genética?

Cumpre fazer, a esse ponto, breve refle-xão no sentido de situar os ora em diantechamados DIREITOS GENÉTICOS no con-texto da Ciência do Direito.

No que tange à natureza jurídica dessanova categoria, torna-se impositiva, inicial-mente, sua inclusão entre os direitos natu-rais do homem, vez que diretamente relaci-onados ao substrato físico do ser humano,colocando-os ao abrigo dos princípios ge-rais já consagrados do Jusnaturalismo. Valelembrar, contudo, que a recíproca não é ver-dadeira: nem todos os direitos naturais sãodessa espécie. O direito à liberdade, porexemplo, que de há muito foi reconhecidocomo um dos direitos naturais fundamen-tais da pessoa humana, não se confundirá,jamais, com um direito derivado de sua com-posição genética, dado o caráter persona-líssimo dessa última.

Os DIREITOS GENÉTICOS estão a reve-lar, também, que, além de pertencerem aohomem por sua própria natureza, integramsua personalidade de forma ainda mais ín-tima e indissociável do que alguns dos di-reitos da personalidade já consagrados nasordens jurídicas nacional e internacional,tendo em vista suas características de uni-cidade, intransmissibilidade e irrenuncia-bilidade.

Com efeito, a incorporação do chamadocódigo genético humano aos caracteres in-dividuais, diferenciadores da pessoa huma-na, deixa evidente que se cogita de um ele-mento que integra sua personalidade de for-ma objetiva, que forma seu substrato físico,ao lado de outros componentes, tais como aimagem, a filiação e as impressões digitais,passíveis de verificação material, sendo cer-to, porém, que há dados, concernentes à per-sonalidade do ser humano, que dependemde avaliação subjetiva, tais como a honra, aboa fama e a respeitabilidade, evidencian-do a grande diversidade dos bens jurídicosenvolvidos no estudo dos direitos da perso-nalidade, em espécie.

Em seu livro “Os Direitos da Personali-dade”, o Prof. Carlos Alberto Bittar (1989)oferece extensa classificação dos mesmos,indicando, ainda, a tutela jurídica disponí-vel para sua proteção. A enumeração pro-posta revela os aspectos de objetividade e

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subjetividade a serem considerados no es-tudo dos direitos que integram a personali-dade do homem. Na 2a edição revista e atu-alizada do mesmo livro, à pág. 23, oferece oProf. Bittar (1995) simples e objetiva defini-ção de direitos da personalidade, em queacrescenta, à sua natureza jurídica, sua co-notação jusnaturalista, verbis: “Por direitosdo homem, ou da personalidade, devem en-tender-se aqueles que o ser humano tem emface de sua própria condição. São como ano-tamos – os direitos naturais, ou inatos, im-postergáveis ao Estado, e inerentes à natu-reza livre do homem”.

Trabalho mais recente, de autoria daProfa. Ana Cristina Rafful, publicado em2000 sob o título “A Reprodução Artificial –e os direitos da Personalidade”, ainda à luzdo Código Civil de l9l6, analisa de formaextensa e minuciosa as novas técnicas dereprodução artificial, focalizando, também,os reflexos das mesmas nos casos de res-ponsabilização civil por dano moral ao em-brião e ao nascituro, bem como a proteçãojurídica a este último, ensinamentos essesque impõem, de forma definitiva, a inclusãodos DIREITOS GENÉTICOS, necessaria-mente envolvidos nas referidas técnicas,entre os direitos da personalidade, de quetrata o novo Código Civil.

Sendo incontestável, como se vê, que osdireitos que se derivam do substrato físicodo homem, de sua composição genética,além de serem direitos naturais, integramde forma objetiva sua personalidade, cabeindagar: por que o legislador brasileiro, aoelaborar o novo diploma civil, não incluiuos DIREITOS GENÉTICOS de forma clara epositiva e não cuidou, pois, de sua prote-ção, nos arts. 11 a 21, que compõem o Capí-tulo II – Dos Direitos da Personalidade, doTítulo I – Das Pessoas Naturais, do Livro I –Das Pessoas, da Parte Geral do novo Có-digo Civil brasileiro, a Lei no 10.406, de10 de janeiro de 2002, que entrou em vi-gor um ano após sua publicação? Váriassão as considerações a serem tecidas, emresposta.

Verifica-se, de pronto, que o legislador,ao introduzir no novo diploma civil um ca-pítulo dedicado aos “Direitos da Personali-dade”, nada mais fez do que dar regulamen-tação legal e nova qualificação jurídica adireitos já inscritos na Constituição Federalde 5 de outubro de 1988, mais precisamenteno Título II – Dos Direitos e Garantias Fun-damentais, Capítulo I – Dos Direitos e De-veres Individuais e Coletivos.

Com efeito, tem-se que numerosos direi-tos inscritos nos incisos que compõem o art.5o, da nossa Carta Magna, vieram a integraro novo capítulo do Código Civil de 2002,denominado “Dos Direitos da Personalida-de”, tais como o direito à inviolabilidade daintimidade, da vida privada, da honra e daimagem (inciso X); o direito conferido comexclusividade aos autores à utilização, pu-blicação ou reprodução de suas obras, trans-missível aos herdeiros pelo tempo que a leifixar (inciso XXVII); o direito à proteção dasparticipações individuais em obras coleti-vas e da reprodução da imagem e voz hu-manas, inclusive nas atividades desporti-vas (inciso XXVIII, letra a) e outros aspectosde produção intelectual (letra b, mesmo in-ciso), bem como a possibilidade de restriçãoà publicidade dos atos processuais, em de-fesa da intimidade (inciso LX), direitos es-ses que, além de outros, passaram a ser re-conhecidos como de natureza personalíssi-ma, sendo tidos como intransmissíveis e ir-renunciáveis, não podendo o seu exercíciosofrer limitação voluntária (Código Civil,art. 11).

Observa-se, ainda, que direitos, já con-sagrados em legislação esparsa, foram in-cluídos entre os direitos da personalidade,valendo citar o direito ao nome (nele incluí-do o prenome), ao sobrenome e ainda aopseudônimo, o direito à disposição de par-tes do corpo, nas situações previstas, bemcomo o direito à doação de órgãos para finsde transplante, após a morte.

Constata-se, entretanto, que o legisladorcivil, apesar de não ter incluído os DIREI-TOS GENÉTICOS, expressamente, entre os

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direitos da personalidade, de que cuidamos artigos 11 a 21, surpreendeu a comuni-dade jurídica brasileira ao introduzir nomesmo e novo diploma legal, embora de for-ma totalmente assistemática, a figura da re-produção artificial assistida, em suas mo-dalidades homóloga e heteróloga, median-te manipulação de material genético, ao tra-tar da filiação, no Livro IV, que trata do Di-reito de Família.

Com efeito, no Livro IV – Do Direito deFamília, Título I – Do Direito Pessoal, Subtí-tulo I – Do Casamento, Capítulo II – Da Fili-ação, foram inscritas normas no sentido deque:

“Art. 1597 – Presumem-se conce-bidos na constância do casamento osfilhos:

.................................................................III – havidos por fecundação arti-

ficial homóloga, mesmo que falecidoo marido;

IV – havidos, a qualquer tempo,quando se tratar de embriões exce-dentários, decorrentes de concepçãoartificial homóloga;

V – havidos por inseminação arti-ficial heteróloga, desde que tenha pré-via autorização do marido.

Ao presumir como concebidos na cons-tância do casamento os filhos havidos porfecundação artificial homóloga ou heteró-loga, admitiu o novo Código Civil brasilei-ro, implicitamente, a existência de uma novaordem de direitos, oriundos da manipula-ção genética de material humano, no caso, oóvulo da mãe e o sêmen do pai (incisos III eIV) ou de outro homem (inciso V), dando aessa manipulação efeitos jurídicos, como osda filiação. Deixou de dispor, porém, sobrea natureza personalíssima dos direitos dosdetentores do material genético manipula-do, bem como do filho assim havido, ao nãoincluir, sob a proteção conferida aos direi-tos da personalidade, os DIREITOS GENÉ-TICOS pertencentes, no caso, à mãe, ao pai,ao filho ou, ainda, ao doador do sêmen, emevidente omissão.

Sendo o código genético individual ou ochamado genoma humano parte indissoci-ável e inconfundível do homem, pela suaunicidade, impõe-se que, aos direitos oriun-dos da manipulação de material genéticonas técnicas de reprodução assistida pre-vistas nos dispositivos supracitados, sejadada a denominação de DIREITOS GENÉ-TICOS e que, por comporem eles, de formaobjetiva, a personalidade do ser humano,sejam incluídos na enumeração contida nosarts. 11 a 21, do novo diploma legal, paraque referidos direitos possam dispor da pro-teção legal ali prevista.

Indiscutível, contudo, a importância dopasso dado pelo legislador pátrio ao incor-porar ao novo diploma civil conhecimentosoriundos de outro ramo científico, no caso,a Biologia Genética Humana, tentando di-minuir a tão proclamada mora da lei em re-lação ao fato social. Falhou, porém, ao nãorealizar a indispensável adaptação sistemá-tica do Código, prevendo os inevitáveis re-flexos que esses novos conceitos produziri-am sobre outras áreas do Direito Civil, igual-mente cobertas pelo diploma legal, como, porexemplo, o Direito das Sucessões.

O ilustre civilista Silvio Rodrigues(2002), na mais recente edição de seu alen-tado “Direito Civil”, acrescentou a seguinteanotação, relativamente às inovações conti-das no art. 1597 do novo Código:

“Audaz o legislador ao incluir osfilhos assim nascidos neste artigo re-lativo à identificação da paternidade.Porém, irresponsável, e muito, por nãoter regulamentado essa matéria noCódigo. Assim, a introdução dessesincisos os tornam órfãos e, totalmentedesamparados.

Como, quando, em que circunstân-cias a procriação assistida pode serpromovida? Realizada em útero deoutra mulher que não a esposa, pre-valecem essas regras? O doador dosêmen pode buscar o reconhecimentode seu filho biológico? Dissolvido ocasamento, o material genético pode

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ser utilizado irrestritamente ou have-rá necessidade de autorização do seufornecedor? Qual o destino dos em-briões excedentários não utilizados eaté quando pode ser feita a sua trans-ferência à mulher? Os filhos nascidosna forma proposta pelos incisos III eIV, após a morte do pai, serão convo-cados como herdeiros, considerandoque se identificam os herdeiros do fa-lecido na data da abertura da suces-são? E ainda mais grave: os filhos nas-cidos por inseminação artificial hete-róloga podem ser excluídos desse sta-tus por ação negatória de paternidadeou investigação em face dos pais bio-lógicos?”.

A essas hipóteses, acima aventadas, cer-tamente muitas outras vão somar-se, na me-dida em que se desenvolvem, de forma es-pantosamente rápida, as novas técnicas dereprodução assistida, de utilização cada vezmaior por casais com problemas de inferti-lidade.

Algumas questões deverão ser enfrenta-das preliminarmente, porém, vez que suasrespostas vão constituir os pressupostos detoda uma doutrina a ser construída no cam-po do Direito Civil, relativamente aos DI-REITOS GENÉTICOS, envolvendo as con-seqüências jurídicas de procedimentosmédicos relacionados à reprodução hu-mana artificial, seja ela homóloga ou he-teróloga, valendo ressaltar, entre elas, asseguintes:

1) Deve o embrião humano ser conside-rado pessoa de direitos, na qualidade depessoa concebida, antes mesmo de ser im-plantado no útero feminino?

2) Se positiva a resposta à primeira per-gunta, vale indagar: seria o embrião huma-no equivalente, do ponto de vista jurídico,ao nascituro, de cuja proteção cuida o art.2o, segunda parte, do novo Código Civil bra-sileiro?

3) Se negativa a resposta às perguntasanteriores, ou seja, se não for reconhecidoao embrião humano resultante de fertili-

zação in vitro o status jurídico de pessoade direitos ou de nascituro, como qualifi-cá-lo, perante o nosso ordenamento jurí-dico?

4) Não sendo pessoa, nem nascituro,poderia o embrião humano, fruto de inse-minação artificial, antes de ser implantadono útero feminino, ser considerado comocoisa e, nessa qualidade, tornar-se objeto dedireitos?

As respostas a essas cruciantes questões,até agora oferecidas por alguns juristas epor biólogos, denotam, claramente, estarapoiadas em duas orientações distintas:uma religiosa, ética ou cultural e a outra ci-entífica.

Ana Cristina Rafful (2000), na obra an-tes referida, parece adotar o primeiro posi-cionamento ao entender que não se podenegar a qualidade de pessoa ao embriãohumano, ainda que não investida da capa-cidade jurídica, ressalvando, porém, não serrazoável qualificá-lo como nascituro, antesque o mesmo seja implantado no útero deuma mulher; rejeita, ainda, a idéia de tratá-lo como coisa e, como tal, torná-lo objeto dedireitos. Para resolver o impasse relativo aodestino a ser dado ao número, cada vezmaior, de embriões humanos congelados,excedentes de processos de reprodução ar-tificial, a autora defende a solução preconi-zada pelo Comitê Nacional d’Étique (CNE)da França, em 1989, no sentido de ser per-mitida a adoção legal de tais embriões, coma inclusão de preceito em nosso ordenamen-to jurídico.

A Biofísica Lygia da Veiga Pereira (2002),após lembrar que um embrião de cinco diasconstitui, basicamente, um conglomeradoamorfo de células, reconhece ser delicada aquestão relativa ao destino a ser dado aosembriões excedentes de processos de fertili-zação in vitro, por envolver aspectos legais,éticos, culturais e religiosos que dizem res-peito à definição de vida, concluindo porgarantir que o embrião excedente trará mui-to mais benefícios à vida de pessoas já vivasna forma de células-tronco embrionárias do

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que no fundo de uma lata de lixo, onde édescartado nas clínicas de reprodução as-sistida.

É imperioso, como visto, que juristas elegisladores se mobilizem, com a maior pres-teza possível, no sentido de definir os ru-mos que a legislação brasileira vai seguir,dando respostas claras e objetivas às ques-tões levantadas, bem como promovendo acriação de novos dispositivos legais desti-nados a suprir as lacunas que, a cada mo-mento, vão-se revelando na aplicação da leipelos nossos juízes, realizando não apenasa sistematização das normas do novo Códi-go Civil, que entrou em vigor em 2003, à re-alidade científica do século XXI, bem comoacrescentando ao elenco de direitos da per-sonalidade constantes dos arts. 11 a 21, doCódigo, os DIREITOS GENÉTICOS, comodemonstrado anteriormente.

E seria esse acréscimo possível, perantea nova legislação civil?

Na Exposição de Motivos do Supervisorda Comissão Revisora e Elaboradora do Có-digo Civil, Prof. Miguel Reale, lê-se, relati-vamente à Parte Geral do Código, o seguin-te esclarecimento:

“17 – .......................................................c) Todo um capítulo novo foi dedi-

cado aos Direitos da Personalidade,visando à sua salvaguarda, sob múl-tiplos aspectos, desde a proteção dis-pensada ao nome e à imagem até odireito de se dispor do próprio corpopara fins científicos ou altruísticos.Tratando-se de matéria de per si com-plexa e de significação ética essenci-al, foi preferido o enunciado de pou-cas normas dotadas de rigor e clare-za, cujos objetivos permitirão os natu-rais desenvolvimentos da doutrina ejurisprudência.”

Vê-se, pois, que o legislador brasileirodeixou espaço apenas para que doutrina-dores e Juízes possam dar sua contribuiçãona interpretação das normas do novo capí-tulo do Código Civil. Parece claro, contudo,que a enumeração de direitos contida nos

referidos dispositivos (arts. 11 a 21) é denumerus abertus e não numerus clausus, ou seja,meramente exemplificativa e não restritiva,dando margem a que, por meio de futurasemendas ao texto, novos direitos possam seracrescentados a ela. Entender de outra for-ma seria condenar tão importante diplomalegal, nos seus primeiros anos de existên-cia, a um precoce anacronismo.

Capítulo II – Os reflexos dosavanços da engenharia

genética na ordem jurídica

O mundo assiste hoje, num misto de es-panto, admiração e esperanças, à revelaçãode descobertas científicas no campo da Ge-nética que prometem não apenas amenizaro sofrimento físico do ser humano como,também, fornecer valiosos subsídios a ou-tras ciências e, entre elas, à Ciência do Di-reito. Já se fala mesmo em um novo ramocientífico, a GENÔMICA, que se ocupa doestudo do conjunto dos genes existentes nascélulas dos organismos vivos, de sua distri-buição nos cromossomos e da forma como éregulado e controlado seu uso pelas célu-las.

Em novembro de 2001, a prestigiosa re-vista francesa “Science & Vie” publicou de-talhada reportagem sob o título L’embryonmédicament em que analisou os surpreenden-tes poderes das chamadas células-troncoressaltando que, embora milhares de biólo-gos, no mundo inteiro, debrucem-se sobreos benefícios que essas cellules à tout fairepoderão trazer para a humanidade, seus tra-balhos suscitam ferrenha oposição. Ao abor-dar as immenses perspectives thérapeutiquesdas células germinais, a reportagem referiu-se a inúmeras doenças que poderão encon-trar cura a partir do cultivo de tecidos desti-nados a reparar os órgãos afetados, pela clo-nagem terapêutica, sem qualquer risco derejeição. Vale destacar, entre as enfermida-des citadas: afecções da córnea e do cristali-no (olhos); males de Alzheimer, Parkinsone esclerose (cérebro); osteoporose e poliar-

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trite (ossos, cartilagem); imunodeficiência ehemorragias (sangue); infarte do miocárdio(coração); hepatite e cirrose (fígado); câncer(medula óssea, pulmões e rins) e diabetes(pâncreas), além de a técnica poder ser utili-zada com sucesso na recomposição da pele,vítima de queimaduras. A amplitude dosbenefícios a serem alcançados faz-nos pen-sar em verdadeiro milagre da ciência, emdescobertas de tal magnitude que se torna-rão, sem dúvida, marcos irreversíveis nahistória da humanidade.

No Brasil, expressões como “exame deDNA”, “reprodução assistida”, “insemina-ção artificial”, “células-tronco” freqüentamo noticiário quase que diariamente e já setornaram familiares aos leigos que se inte-ressam pelos progressos da ciência. Tam-bém no âmbito jurídico, novos conhecimen-tos e novas técnicas são constantementeacrescentados ao instrumental de que sevalem os Juízes para a solução dos litígiosque lhes são submetidos.

No que concerne ao destino a ser dadoaos embriões excedentários de processos deinseminação artificial, objeto de uma das in-dagações colocadas pelo Prof. Silvio Rodri-gues (2002), verifica-se que o reconhecimentodos DIREITOS GENÉTICOS das partes en-volvidas nos mesmos constitui tema de acir-rada polêmica em todo o mundo, abrangen-do, ainda, os aspectos éticos e religiosos. Apropósito, o “Jornal Hoje”, transmitido pelaTV Globo, no dia l/10/2003, trouxe ao co-nhecimento do público brasileiro decisõesda Justiça britânica que, em processos dis-tintos, negou a duas mulheres que se havi-am tornado estéreis após o divórcio o direi-to de utilizarem os embriões congelados quetinham sido gerados durante o casamentode cada uma delas, à consideração de queos ex-maridos negaram a permissão parasua utilização, sendo certo que a lei inglesaexige que ambos os cônjuges concordem coma referida manipulação do material genéti-co, mesmo após o divórcio do casal.

Quanto às novas hipóteses de filiaçãopresumida previstas no art. 1597, do Códi-

go Civil de 2002, vale registrar, pelo inedi-tismo, caso ocorrido no Estado de Minas Ge-rais que ganhou projeção nacional graças àmídia televisiva e escrita, consoante se vêde matéria publicada no jornal “Correio Bra-ziliense” do dia l5/6/2004, sob o título “Cri-ança gerada pela avó é registrada”, e querevelou lacuna existente no nosso ordena-mento jurídico.

Em resumo, relata a notícia: uma avó de53 anos gerou em seu útero o embrião resul-tante de fecundação em laboratório do óvu-lo retirado dos ovários de sua nora (que nas-ceu desprovida de útero) e do esperma deseu filho, em técnica conhecida como “úte-ro de substituição”. Após o nascimento, otabelião do Cartório de Registro Civil dasPessoas Naturais de Nova Lima, regiãometropolitana de Belo Horizonte, negou-sea proceder ao registro da criança em nomeda mãe biológica, tendo em vista que da de-claração de “nascido vivo”, fornecida pelamaternidade, cuja apresentação é obrigató-ria para o registro, constava o nome da avócomo sendo a mãe da menina.

Suscitada dúvida perante o MM Juiz da1a Vara Cível de Nova Lima, e após ter sidorealizado, a requerimento do MinistérioPúblico, um exame de DNA que comprovoua maternidade da criança, foi a mesma jul-gada improcedente. Em sua decisão, desta-cou o magistrado a falta de amparo legalpara sua solução, sustentando que “mesmoo recente Código Civil (de 2002) prevê ape-nas hipóteses de presunção de paternida-de, já que a maternidade era tida como cer-ta” e acrescenta, mais adiante: “Tive de mevaler, sobretudo, do bom senso, sem fecharos olhos para os avanços científicos, autori-zando, afinal, fosse efetuado o registro dacriança em nome da mãe biológica.”

Embora, como bem lembrou o MM Juizsupracitado, o novo Código Civil não tenharegulamentado a questão, sabe-se que a Re-solução no 1358, de 11/11/1992, do Conse-lho Federal de Medicina, tem dado amparoa procedimentos médicos similares, quan-do estabeleceu “Normas Éticas para a Utili-

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zação das Técnicas de Reprodução Assisti-da”. Entre seus “Princípios Gerais”, incluiuum item (VII) relativo ao que chamou de“gestação de substituição (doação tempo-rária do útero)”, em que é permitida a utili-zação das técnicas de que trata, “desde queexista um problema médico que impeça oucontra-indique a gestação na doadora ge-nética”, dispondo, ainda, que “as doadorastemporárias do útero devem pertencer à fa-mília da doadora genética, num parentescoaté o segundo grau”, requisitos que, comovisto, achavam-se presentes no caso ocorri-do no Estado de Minas Gerais.

A situação acima referida deixou eviden-te a importância do exame de DNA na solu-ção de processos de investigação de mater-nidade, hipótese não prevista no novo di-ploma civil, embora esse procedimento ve-nha sendo largamente utilizado quando setrata de investigação de paternidade. Con-quanto alguns juristas brasileiros sustentemque o exame de DNA não poderá ser exigi-do do réu, sob pena de violação do seu di-reito à privacidade, cabendo ao autor daação produzir as provas cabíveis, a impren-sa já registrou caso em que houve inversãodo ônus da prova: ante a recusa do réu emfazer o referido exame, decidiu a Justiça bra-sileira que caberia a ele provar que não era opai (“Jornal Nacional” de 20/10/2004 –Rede Globo de Televisão).

No campo do Direito Penal, tem-se quenovos casos concretos estão a demonstrar aimportância cada vez maior dos conheci-mentos da Genética Humana no deslindede delitos, conforme se vê de reportagempublicada no jornal “O Globo”, edição dodia 16/11/2003, sob o título “DNA abre ho-rizontes na apuração de crimes”. Dela veri-fica-se que o exame de DNA foi utilizadocom sucesso para a solução de caso de estu-pro em que a vítima, na ocasião do examede corpo de delito, conseguiu colher e con-servar material genético do estuprador sufi-ciente a comprovar a autoria do crime, quan-do da ocorrência de novo estupro, em novavítima.

Outro e relevante exemplo de utilizaçãodo exame de DNA em processo criminal, ci-tado na reportagem, ocorreu em Brasília, Dis-trito Federal, onde, pela primeira vez, emjulgamento perante o Tribunal do Júri, veri-ficou-se a condenação de acusado de homi-cídio com base em exame de DNA de peque-na quantidade de sangue da vítima, encon-trada no porta-malas do carro do réu, semque o corpo da mesma tenha sido localiza-do, ressaltando, ainda, a reportagem, que oresultado do julgamento dá partida a umnovo capítulo no deslinde dos crimes, em-bora a modernização dos órgãos de segu-rança pública, bem como a apuração dosdelitos, esteja muito atrasada em nosso País.

Sobre esse último julgamento, e na mes-ma reportagem, encontra-se registrada a opi-nião do ilustre advogado criminalista NélioMachado, amplamente favorável ao acolhi-mento, pelo Tribunal do Júri do Distrito Fe-deral, da prova pericial representada peloexame de DNA, embora ressalte o pontopolêmico que esse exame ofereceria, qualseja, o direito individual de recusa em sub-meter-se ao mesmo, que qualquer um podeexercitar, em defesa do seu direito à privaci-dade ou à vida privada, aspecto controversoesse abordado na mesma reportagem, à luzdos dispositivos da Constituição Federal(art. 5o, inc. X) e do novo Código Civil (art.21), que cuidam de sua proteção. Sendo osdireitos à privacidade e à vida privada re-conhecidos como direitos da personalida-de do ser humano, mostrou-se evidente, nocaso em tela, a existência de outro direito,da mesma natureza e que seria igualmenteviolado, qual seja, o DIREITO GENÉTICO, odireito de propriedade do material genéticopertencente ao réu, contido nas células de seuorganismo, a ser utilizado no exame de DNA.

A preocupação com a privacidade pare-ce ter algum fundamento, especialmentequando, na vida moderna, deparamo-noscom situações em que o acesso ao códigogenético de uma pessoa poderá transformar-se em fator de discriminação ou prejuízopara a mesma.

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Sendo certo que a Biologia Genética Hu-mana já foi capaz de identificar e continuaa fazê-lo, em número crescente, alguns dosgenes contidos nos cromossomos, presen-tes no DNA, responsáveis por terríveis do-enças que flagelam a humanidade, tais comoo mal de Alzheimer, o câncer de mama, omal de Parkinson, a obesidade e muitas ou-tras, a mídia internacional vem periodica-mente registrando casos em que empresasprivadas estariam a exigir, como parte docurriculum vitae apresentado por candida-tos a empregos, a inclusão de exame deDNA, recusando-se a admitir aqueles cujoresultado revele a presença de gene respon-sável por alguma doença que possa vir aimpedi-los, no futuro, de trabalhar. O fatorepresentaria não apenas a violação ao di-reito à privacidade individual como tambéma introdução de novo elemento de discrimi-nação, de natureza genética, nas relaçõesde trabalho, sendo certo que a Ciência vemseguidamente demonstrando que a simplespresença, no DNA, de gene responsávelpor alguma doença não significa, neces-sariamente, que o indivíduo vá desenvol-vê-la no futuro, vez que outros fatores te-rão que estar presentes, para que issoocorra.

Outro exemplo, que vem sendo noticia-do pela imprensa, fala de companhias se-guradoras que estariam exigindo a apresen-tação do exame de DNA quando da assina-tura de contrato de seguro de vida, objeti-vando, igualmente, discriminar o pretenden-te ao seguro, com base em informações con-tidas no referido exame. Se isso já está ocor-rendo no Brasil ainda não é certo; pode-seafirmar, contudo, que a inexistência de leiregulamentando o assunto propiciará, cer-tamente, que casos de discriminação gené-tica, ou de violação de DIREITOS GENÉTI-COS, venham a desaguar no Judiciário, di-ficultando o labor dos magistrados.

Caberia, a este ponto, perguntar: estari-am os DIREITOS GENÉTICOS cobertos pelaproteção à vida privada, ou à privacidade,assegurada pela Constituição Federal e pelo

novo Código Civil, confundindo-se com es-ses direitos?

Exemplos práticos, anteriormente referi-dos, respondem à questão: no caso das mu-lheres britânicas divorciadas que tiveramnegado pela Justiça o direito de utilizaçãodos embriões produzidos na constância docasamento, esteve em causa o DIREITO GE-NÉTICO dos ex-maridos, a quem pertenciao esperma utilizado nos processos de ferti-lização, não se vislumbrando qualquer as-pecto relacionado ao seu direito à privaci-dade; o mesmo pode-se dizer do DIREITOGENÉTICO da mãe biológica, de ter sua fi-lha registrada, embora tenha sido ela gera-da no útero da avó, caso ocorrido em NovaLima, região metropolitana de Belo Hori-zonte. Enquanto isso, nos episódios relati-vos à exigência de apresentação do examede DNA para obtenção de emprego ou se-guro de vida, nota-se que, além de uma pos-sível violação ao direito à privacidade, ocor-reria, também, a violação a um DIREITOGENÉTICO, vez que a decifração do genoma,pelo exame de material genético encontradonos 23 pares de cromossomos da célula, ope-ra-se mediante a manipulação desse materi-al, que é parte integrante do corpo humano eé propriedade exclusiva do indivíduo.

Em alguns países do chamado PrimeiroMundo, porém, polêmicas de caráter moralou ético, ou preocupações com a privacida-de individual, vêm cedendo lugar à pratici-dade e ao auxílio valioso dos conhecimen-tos da genética humana. Exemplo disso estáocorrendo na Inglaterra em que, por deter-minação do Primeiro Ministro Tony Blair,deverá ser elaborado um cadastro genéticode toda a população do País, com o objetivode fornecer dados mais precisos que as im-pressões digitais na apuração de crimes oumesmo nos casos de investigação de pater-nidade, segundo informação dada pelo Dr.Gustavo Dalton, perito criminal e biólogo,durante o programa “Globo Comunidade”,transmitido em 9/3/2003 pela Rede Globode televisão, que versou o tema “Exame deDNA”.

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Muitos outros exemplos envolvendo adiscussão de DIREITOS GENÉTICOS pode-rão ser citados para salientar os benefíciosextremamente importantes que as mais re-centes descobertas científicas no campo daGenética Humana poderão ter no desenvol-vimento da Ciência do Direito, casos que dei-xarão evidente a existência de lacunas noordenamento jurídico brasileiro, bem comode obstáculos de várias naturezas, a difi-cultarem não apenas o progresso da pes-quisa científica no País, mas também o tra-balho dos Juízes, ao julgarem as situaçõesinéditas que lhes são submetidas.

Em verdade, observa-se verdadeira cor-rida de âmbito internacional objetivandonovas conquistas no campo da BiologiaGenética Humana, corrida essa nem sem-pre movida por preocupações humanitári-as, mas, antes, por grandes interesses eco-nômicos, uma vez que grandes empresasprivadas estão investindo enormes recursosvisando obter, afinal, o patenteamento dasdescobertas científicas, para sua exploraçãoeconômica.

Também no âmbito acadêmico, nota-sea mesma competitividade movida, dessavez, pelo desejo de notoriedade dos cientis-tas. Nesse sentido, notícia publicada em pá-gina da WEB, em 11 de agosto de 2004, re-gistra que o Reino Unido, em posição pio-neira na Europa, autorizou a Universidadede Newcastle a promover a clonagem de em-briões humanos para serem utilizados empesquisas para tratamentos contra os ma-les de Parkinson e Alzheimer, e a diabetes(NOTÍCIAS - CIÊNCIA... , 2004), ou seja, li-berou a chamada clonagem terapêutica, en-quanto, nos Estados Unidos, segundo notí-cia vinculada na WEB em 29 de julho de2004, cientistas da Escola de Medicina daUniversidade de Stanford, na Califórnia, ob-tiveram sucesso na utilização de células-tronco fetais para reflorestar com novos neu-rônios regiões do cérebro de ratos que foramdanificadas, mostrando-se animados antea possibilidade de utilização de células-tronco fetais humanas em pesquisas com o

mesmo objetivo, tendo em vista que sobre asmesmas não recaem as limitações impostaspela legislação americana quanto às célu-las embrionária (NOTÍCIAS - CIÊNCIA...,2004).

Capítulo III – O histórico dosDIREITOS GENÉTICOS eda Biossegurança no Brasil

Nosso País deu importante passo no sen-tido de regulamentar as questões relativasao tema ao editar a Lei no 8.974, de 5 de ja-neiro de 1995, mais conhecida como Lei deBiossegurança, de cujo projeto foi autor oentão Senador Marco Maciel, diploma esseque, embora tenha representado expressivoavanço no equacionamento de novas e rele-vantes questões surgidas no meio social,mostrou-se tímido, ao se deixar limitar pe-las graves restrições que ao legislador fo-ram impostas por questões de caráter ético ereligioso. Por essa razão, tornou-se logo ana-crônico, pressionado pelo espantoso pro-gresso alcançado por outros ramos do co-nhecimento científico, especialmente nocampo da Biogenética Humana.

O anacronismo da Lei de Biossegurançade 1995 bem como os reflexos que vinha pro-duzindo sobre o labor diário dos juízes bra-sileiros foi assinalado pelo Ministro NilsonNaves (2003), à época Presidente do Superi-or Tribunal de Justiça, em artigo publicadosob o título “Bioética e Justiça”:

“Certo é que a rápida evolução ci-entífica trará aos tribunais feitos emnúmero crescente. O Judiciário nãopode funcionar num vazio jurídico, eo vácuo aumentará à medida que aciência evoluir aceleradamente, por-que a feitura da lei é, por necessidade,fruto de longa reflexão. O Judiciáriohaverá de guiar-se sempre por normaslegais e, não as tendo, haverá de sesocorrer à analogia, aos costumes e aosprincípios gerais de direito, levandoem conta, sempre, as exigências dobem comum e o papel criador da ju-

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risprudência. Contudo, atuará comorientação mais firme, menos sujeitaa disputas, se dispuser formal e mate-rialmente de normas diretas e claras,que se nortearão pelas decisões ema-nadas de um diálogo multidisciplinare acordadas – oxalá – por todos os in-teressados”.

No artigo acima, seu autor colocou, ain-da, temas concernentes à Bioética, ou seja, àciência que leva em consideração os aspec-tos éticos necessariamente envolvidos em to-das as questões relacionadas à manipula-ção de material genético humano e que, emgrande parte, interessam ao Direito. Trata-se, em verdade, de campo extremamentepolêmico no qual assistimos aos constantesembates entre os avanços da Biogenética eos entraves de ordem ética, religiosa, econô-mica e social que a eles são opostos.

Para a Igreja Católica, por exemplo, acei-tar qualquer forma de manipulação dessematerial genético, seja para fins reproduti-vos ou terapêuticos, representa, em últimaanálise, a negação de um dos seus mais po-derosos dogmas, segundo o qual o fenômenoda fecundação e da geração de uma nova vidaé obra divina, não sendo de se admitir a par-ticipação da mão humana no processo.

No que concerne aos aspectos éticos en-volvidos nas modernas técnicas da Enge-nharia Genética, vozes contundentes têm-se levantado contra a utilização das mes-mas com fins lucrativos, como se vê do livro“O Mercado Humano – Estudo Bioético daCompra e Venda de Partes do Corpo”, deautoria de Giovanni Berlinguer e VolneiGarrafa (2001), valendo lembrar, ainda, ar-tigo intitulado “Bioética e Biodireito – Prin-cípios e Paradigmas”, escrito por Vito An-tônio Boccuzzi Neto ([200-?]), bem como tra-balho apresentado por Dirce Guilhem eMauro Machado do Prado (2001) sob o títu-lo “Bioética, Legislação e Tecnologias Re-produtivas”, em Simpósio promovido peloConselho Federal de Medicina.

Críticas são feitas, por outro lado, aosaspectos econômicos e sociais envolvidos

nas atuais conquistas científicas no campoda Biologia Genética Humana, no sentidode que tais avanços, por exigirem altíssimosinvestimentos financeiros em pesquisas,tanto públicos como privados, tornarão oacesso a eles privilégio de pouquíssimos, emdetrimento do restante da humanidade, sen-do de se lembrar, por fim, a possibilidade,existente em alguns países, de patenteamen-to, por entidades de pesquisa particulares,das descobertas científicas obtidas em seuslaboratórios, restringindo, ainda mais, a uti-lização das mesmas.

Nesse tumultuado cenário, uma questãodestacou-se sobremaneira, não apenas pe-las fantásticas perspectivas que prometeabrir à Medicina, como pelos inevitáveis re-flexos que trará à Ciência do Direito: a clo-nagem humana, em suas modalidades re-produtiva e terapêutica, sendo certo que aclonagem de animais é técnica conhecida ejá largamente utilizada em vários países,inclusive no Brasil. A popularização dotema clonagem humana gerou, até, umanovela televisiva que se chamou “O Clo-ne”, produzida pela Rede Globo de tele-visão...

O que se observa, em verdade, é umagrande desinformação, para não dizer ig-norância, sobre tão relevante matéria e, natentativa de esclarecer as inúmeras dúvidasexistentes, livros para leigos, contendo en-sinamentos altamente esclarecedores, têmsurgido, tais como “Clones Humanos”, deClara Pinto Correia (2000), e “Clonagem –Fatos e Mitos”, de Lygia da Veiga Pereira(2002), ambas as autoras cientistas, reconhe-cidamente qualificadas na área de BiologiaGenética Humana, mas que não enfrentam,nem era de esperar que o fizessem, os aspec-tos jurídicos necessariamente decorrentesda utilização das técnicas de clonagem,no que concerne aos DIREITOS GENÉTI-COS dos fornecedores do material mani-pulado. No mesmo sentido, visando me-lhor esclarecer leigos interessados no pal-pitante assunto, vêm sendo publicadoslivretos sob o título “Folha Explica”, com

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valiosas informações sobre DNA, alimen-tos transgênicos e clones, entre outros te-mas.

A clonagem para fins reprodutivos, ouseja, sua utilização para criar seres huma-nos pelo método que deu origem à ovelhaDolly, na Inglaterra, tem merecido conde-nação internacional quase unânime, embo-ra já se tenha ouvido, por vezes, notícia so-bre experiências nesse sentido, realizadasem países que não proíbem expressamenteo processo.

O mesmo não ocorre, porém, com a clo-nagem chamada terapêutica, voltada parao tratamento de inúmeras enfermidades queafligem a humanidade por meio de técnicasde Engenharia Genética. Com efeito, a mo-dalidade vem ganhando, a cada dia, umnúmero cada vez maior de defensores, entremédicos e cientistas, com o apoio fervorosodaqueles que serão eventualmente benefici-ados por essas técnicas, já se falando, inclu-sive, em uma “terapia genética”. A críticamais contundente que se levantava contra aclonagem terapêutica referia-se à utilizaçãode células germinais humanas encontradasnos embriões, obstáculo esse não apenas decaráter ético e religioso, como também legal,devido a Lei 8974/95 que capitulava comocrime, em seu art. 13, a manipulação genéti-ca de tais células.

A Biologia Genética Humana avança apassos largos, porém. E, em resposta às li-mitações impostas à utilização das célulasgerminais humanas contidas nos embriões,vem revelando a existência de células-tron-co em outros tecidos do organismo huma-no, tais como a medula óssea, os cordõesumbilicais e outros, cujo emprego afastarianão apenas os óbices éticos e religiosos,como também os riscos de rejeição.

O Congresso Nacional, diante do eviden-te anacronismo da nossa legislação e sensí-vel à necessidade urgente de legislar sobretão importante matéria, aprovou, após lon-gos debates, a nova Lei de Biossegurança, jásancionada, com alguns vetos, pelo Presi-dente da República (Lei no 11.105, de 24 de

março de 2005), que veio a abrir amplas pos-sibilidades à pesquisa genética no País, nãosomente no que tange à genética humana,como também à proteção do meio ambientecontra a utilização indiscriminada de pro-dutos agrícolas geneticamente modificados,os chamados organismos geneticamentemodificados, ou OGM.

Capítulo IV – A nova Lei deBiossegurança

O meio científico brasileiro, que se acha-va tolhido pelas barreiras impostas pelo art.13 da Lei no 8974, de 1995, mostrou-se entu-siasmado ante as perspectivas de avançoem suas pesquisas, em razão das inovaçõesintroduzidas pela nova Lei de Biosseguran-ça (Lei no 11.105, de 24 de março de 2005)que, em seu art. 5o dispõe, verbis :

“Art. 5o - É permitida, para fins depesquisa e terapia, a utilização de cé-lulas-tronco embrionárias, obtidas deembriões humanos produzidos porfertilização in vitro, e não utilizadosno respectivo procedimento, atendi-das as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ouII – sejam embriões congelados há

3 (três) anos ou mais, na data da pu-blicação desta Lei ou que, já congela-dos na data da publicação desta Lei,depois de completarem 3 (três) anos,contados a partir da data de congela-mento.

§ 1o – Em qualquer caso, é necessá-rio o consentimento dos genitores.

§ 2o – Instituições de pesquisa eserviços de saúde que realizem pes-quisa ou terapia com células-troncoembrionárias humanas deverão sub-meter seus projetos à apreciação eaprovação dos respectivos comitês deética em pesquisa.

§ 3o – É vedada a comercializa-ção do material biológico a que serefere este artigo e sua prática im-plica o crime tipificado no art. 15 da

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Lei n o 9.434, de 4 de fevereiro de1997.”

Os preceitos contidos no artigo supradeixam evidente a opção feita pelo Congres-so Nacional, no sentido de negar ao embriãohumano, obtido em processo de fertilizaçãofeita em laboratório, a qualificação jurídicade pessoa, para todo e qualquer efeito legal,tipificando como crime, outrossim, a comer-cialização do material biológico obtido, sobas penas da lei. Pressionado pela comuni-dade científica bem como por imensa legiãode portadores de doenças incuráveis ou le-sões irrecuperáveis, cuja única esperançarepousa na terapia genética, adotou o legis-lador pátrio postura rigorosamente científi-ca, sem qualquer conotação religiosa, em-bora revestida de cuidados éticos e de preo-cupação cultural.

Ocorre, porém, que a possibilidade deprogresso científico que a nova Lei de Bios-segurança enseja, no que se refere à pesqui-sa e cura, mediante terapia genética, de mo-léstias que castigam a nossa população, tra-zendo enormes gastos aos serviços de saú-de pública, acha-se obstaculizada, pelo me-nos, temporariamente, por atos do PoderExecutivo e ações do Ministério Público Fe-deral.

Com efeito, sete vetos foram apostos peloPresidente da República ao novo diplomalegal, aguardando apreciação pelo Congres-so Nacional, que poderá rejeitá-los ou não.

Por outro lado, o Procurador-Geral daRepública ajuizou, no Supremo Tribunal Fe-deral, duas ações, questionando a constitu-cionalidade de dispositivos da Lei n o 11.105,de 24 de março de 2005.

Na primeira ação, protocolizada em 30de maio subseqüente (ADI no 3.510), argúi ainconstitucionalidade do art. 5o e seus pa-rágrafos, que permitem a utilização de célu-las-tronco de embriões humanos produzi-dos por fertilização in vitro e não utilizadosno respectivo procedimento, sob o funda-mento de que os mesmos ferem a proteçãoque a nossa Carta Magna confere ao direitoà vida e à dignidade da pessoa humana.

Numa segunda ação (ADI 3.526), o Che-fe do Ministério Público Federal questionaa constitucionalidade de diversos artigos domesmo diploma legal, que estabelecem nor-mas de segurança e mecanismos de fiscali-zação de atividades que envolvam organis-mos geneticamente modificados (OGMs) eseus derivados, bem como de dispositivosversando a competência atribuída à Comis-são Técnica Nacional de Biossegurança(CTNBio), cabendo, agora, à nossa Supre-ma Corte manifestar-se, em definitiva ins-tância, sobre a conformidade dos preceitosda nova Lei de Biossegurança à Constitui-ção Federal.

O certo, porém, é que nem o acatamentopelo Congresso Nacional, dos vetos presi-denciais à Lei no 11.105, de 24 de março de2005, nem o provimento, pelo Supremo Tri-bunal Federal, das Ações Diretas de Incons-titucionalidade interpostas pelo MinistérioPúblico Federal, acima referidos, invalida-rão as inovações introduzidas pelo CódigoCivil que entrou em vigor em 2003, no quediz respeito a atribuir efeitos jurídicos a pro-cedimentos de inseminação artificial, homó-loga ou heteróloga (art. 1.597, incisos III, IVe V), no caso, os da filiação.

Conclusões

Toda essa profusão de informações co-letadas e aqui referidas representa, apenas,uma gota no oceano imprevisível de pers-pectivas que a ciência moderna, e, em espe-cial, a Biologia Genética, vem abrindo aosnossos olhos, trazendo a esperança de diasmelhores, com menos sofrimentos, para aespécie humana.

Quanto ao Brasil, espera-se que faça oque estão fazendo os países do chamado Pri-meiro Mundo, investindo recursos na pes-quisa científica a fim de colhermos, certa-mente, valiosos resultados, com a cura dedoenças e a diminuição do encargo socialdo Estado no campo da saúde.

Cabe aos nossos juristas e, em especial,aos civilistas fazerem um estudo sistemáti-

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Somente por meio desse esforço conjun-to, poderá o Brasil capacitar-se a usufruir oadmirável progresso da ciência no séculoXXI.

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Rafael Silveira e Silva

1. IntroduçãoA importância recente que têm adquiri-

do as entidades fechadas de previdênciacomplementar, popularmente conhecidascomo fundos de pensão, deve-se, em grandeparte, aos volumosos recursos por elas acu-mulados, hoje girando em torno de R$ 280bilhões. Essa significativa cifra despertamuitos interesses, envolvendo diversas are-nas decisórias, em especial as que envolvempolíticas públicas e o mercado financeiro ede capitais. Afinal, em plena crise fiscal, oEstado vem procurando alternativas viáveispara a sustentabilidade do crescimento na-

O poder público e os fundos de pensãoRazões e fundamentos para um projeto de agênciaregulatória

Rafael Silveira e Silva é Consultor Legisla-tivo do Senado Federal, mestrando em ciênciapolítica pela UnB, ex-Analista do Banco Cen-tral, ex-integrante da carreira de Especialistaem Políticas Públicas e Gestão Governamental.

Sumário1. Introdução. 2. O sistema. 3. Possibilidade

de mudanças. 3.1. Mudança institucional: a pers-pectiva dos custos de transação políticos. 3.2.Primeiros passos: motivações da mudança cons-titucional. 4. Modernização do marco legal:aspectos relevantes. 5. Construção argumenta-tiva do Governo e demais grupos de interesse.5.1. Análise do discurso no processo legislati-vo. 5.2. Exposição de motivos. 5.3. Audiênciaspúblicas. 5.4. Comparação entre os discursos:governo x demais agentes. 5.5. Proposiçõesaprovadas. 6. Regulamentação do marco legal.7. Ineficiência institucional. 7.1. Conflito inter-burocrático dentro do órgão normativo. 7.2.Projeto de uma agência reguladora. 8. Ensaiode fortalecimento para o aparato de fiscaliza-ção e regulação do Estado. 8.1. Breve descriçãoda Medida Provisória no 233, de 2004. 8.2. Ava-liações e reflexões sobre a proposta. 8.3. Ajus-tes possíveis. 9. Considerações finais.

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cional. Na esteira desse papel de grandesinvestidores, a modernização do sistemaprivado de aposentadoria foi inserida noconjunto de propostas de reforma da previ-dência, ocupando, assim, não apenas espa-ço na mídia, mas parte relevante dos deba-tes ocorridos no Congresso.

Além disso, tamanho volume de recur-sos chama a atenção para diversos gruposorganizados, cujos interesses, em muitos ca-sos, depõem contra os interesses do própriosegmento dos fundos de pensão. Portanto,a discussão sobre o fortalecimento da fisca-lização e da regulação sobre esse setor ga-nha cada vez mais fôlego e atenção da opi-nião pública. Nos últimos meses, multipli-cam-se denúncias de irregularidades sobreas atividades de dirigentes de fundos depensão, tal como costumam sobressair peri-odicamente nos últimos quinze anos. NoSenado Federal, a discussão da criação daSuperintendência Nacional de PrevidênciaComplementar, pela Medida Provisória no

233, de 2004, levantou questões sobre o mo-delo adotado pelo governo, suscitando-se acriação, via projeto de lei, de uma autarquiaespecial sob a forma de agência reguladora.

Nesse sentido, o presente estudo temcomo objetivo avaliar os movimentos insti-tucionais que marcaram a primeira grandemudança para os fundos de pensão, a apro-vação da Lei Complementar n o 109, de 29 demaio de 2001, o marco legal do setor.

Serão observadas especificamente aspropostas que contribuiriam diretamentepara a maior credibilidade do regime nor-mativo dos fundos de pensão. Além da sig-nificativa soma de recursos financeiros, aescolha específica desse regime também sejustifica pelo fato de esse segmento:

I – agrupar entidades patrocinadas porempresas públicas e de economia mista, as-pecto esse que denotava maior atenção porparte dos agentes políticos;

II – ter assumido a condição de investi-dores institucionais, com capacidade de in-fluenciar os mercados financeiro e de capi-tais, tornando-se, inclusive, possíveis alter-

nativas de financiamento da produção e deprojetos de infra-estrutura;

III – reunir, a despeito da grandiosida-de, várias fragilidades e inconsistências re-lativamente à garantia dos direitos dos par-ticipantes.

Com base nessas diretrizes, o processode reestruturação da previdência privadapassou a contar com alguns desafios, entreos quais a elaboração de uma nova matrizinstitucional que assegure pleno desenvol-vimento do sistema e que tenha condiçõesde melhor lidar com as demandas dos di-versos atores (participantes, fundos de pen-são, associações de classe, mercado finan-ceiro e de capitais e o próprio Governo), queestabelecem várias abordagens estratégicaspara a consecução dos seus objetivos.

Assim, com base em uma perspectivaneo-institucionalista, será também analisa-da, à luz da evolução histórica e das recen-tes mudanças, a estrutura administrativaresponsável pelo arcabouço legal e regula-mentar do mercado operado pelos fundosde pensão, de maneira a elucidar os fatoresque influem no processo de formulação eimplementação das políticas relativas à pre-vidência privada fechada. Essa avaliação éde grande utilidade, especialmente quandose tem em vista o tema do controle da ativi-dade normativa do poder público na regu-lação dos mercados.

Na seção 2, é apresentada uma síntesedo sistema de previdência complementar,de forma a delinear sua importância no ce-nário contemporâneo brasileiro. A seção 3traça aspectos teóricos da escola neo-insti-tucionalista, a qual evidencia o relevantepapel das instituições no processo de for-mação das políticas públicas, especialmen-te a abordagem dos custos de transação.Ademais, no mesmo capítulo, são evidenci-ados alguns aspectos que explicam a inser-ção da previdência complementar no seioda reforma constitucional que tratou da pre-vidência geral. Na seção 4, são feitos comen-tários sobre a necessidade de ajuste no apa-relhamento do Poder Público no âmbito da

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reforma do marco regulatório à época vigen-te. Na seção 5, é dada ênfase na análise daargumentação adotada pelo governo para aaprovação das mudanças, bem como no dis-curso dos demais atores envolvidos. Nesseitem, é utilizado o método da análise do dis-curso como forma de mapeamento de estra-tégias e da posição dos diversos interessa-dos no mercado operado pelos fundos depensão. A Seção 6 delineia os mecanismosatualmente vigentes para a regulamentaçãodo segmento de fundos de pensão. A seção7 é dedicada a uma avaliação institucionalda atuação do Poder Executivo no seu pa-pel de regulamentador, retomando-se a abor-dagem dos custos transacionais políticos.Na seção 8, em continuação à análise reali-zada no capítulo anterior, é avaliada a Me-dida Provisória no 233, de 2004, que con-substancia a última iniciativa governamen-tal sobre a atuação do Poder Público na fis-calização e na normatização do segmentode fundos de pensão. Nesse item, além daavaliação dos dispositivos da mencionadanorma, são oferecidas algumas sugestões,mas no contexto de um novo projeto de leide iniciativa do governo para criar umaagência reguladora para o setor.

2. O sistema

A previdência é um tema de fundamen-tal importância para a paz social e para ocrescimento da economia. Para qualquer tra-balhador interessa saber se, no momento emque sua capacidade laboral estiver diminu-indo, ele poderá contar com um fluxo de ren-da que o compensará da perda parcial outotal do rendimento ou se sua família estaráefetivamente amparada em sua ausência(ROGIERI, 1998).

Pode-se afirmar que há três formas deobter a cobertura de caráter previdenciário:pelo estatal básico, pela formação de umapoupança individual e pelo privado (com-plementar).

A primeira, representada pelo RegimeGeral de Previdência Social (RGPS) e pela

maioria dos regimes próprios de servidorespúblicos, apresenta patrimônio acumuladonulo, uma vez que os benefícios previstospara determinado período são repartidospelos contribuintes daquele mesmo perío-do, o que gera, nas condições atuais, altograu de incerteza em relação ao equilíbrioatuarial futuro.

A segunda forma possui um perfil dedifícil mensuração, pois depende inteira-mente da renda e da capacidade de o traba-lhador conseguir organizá-la e administrá-la no longo prazo, na maioria das vezes comauxílio de produtos oferecidos pelo sistemafinanceiro. Nesse caso, não existem garan-tias firmes de que a acumulação de recursosserá preservada para fins previdenciários.

Finalmente, a terceira forma é a que apre-senta fundamentos relativamente mais só-lidos, na medida em que existem possibili-dades reais de formação de uma poupançade longo prazo que permite custear paga-mentos de rendas de aposentadoria e finan-ciar projetos econômicos com potencial dedinamizar e desenvolver a economia. Essaalternativa é conhecida atualmente comoregime de previdência complementar.

Esse terceiro sistema destina-se a conce-der aos seus associados benefícios adicio-nais às aposentadorias e pensões do RGPSe tem como principais agentes as entidadesfechadas e abertas de previdência comple-mentar, ambas de caráter privado, e as soci-edades seguradoras.

Segundo dados de setembro de 2004, asentidades fechadas (fundos de pensão) reú-nem aproximadamente 6,5 milhões de par-ticipantes, entre trabalhadores (vinculadosa diversas empresas patrocinadoras) e seusdependentes, com estoque de recursos parainvestimentos de aproximadamente R$ 232bilhões. Também de acordo com dados domesmo período, as entidades abertas e associedades seguradoras, que atuam na ofer-ta de produtos com características seme-lhantes aos oferecidos pelo sistema finan-ceiro, congregam até 3,7 milhões de partici-pantes, somando cerca de R$ 55,7 bilhões1.

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Por essas estatísticas, pode-se notar a robus-tez econômica desses segmentos, cuja influ-ência é expressiva em vários setores da eco-nomia, especialmente mercado de capitaise mercado financeiro.

É interessante notar que, enquanto os ati-vos vinculados à previdência privada doBrasil representam cerca de 16% do PIB, essacifra já deve superar os 100% em países maisdesenvolvidos. Nesses, a previdência com-plementar cumpre importante papel no sen-tido da captação de poupanças, da sua agre-gação e da sua aplicação, do seu direciona-mento para investimentos de longo prazo,especialmente os de cunho produtivo.

3. Possibilidade de mudanças

3.1. Mudança institucional: a perspectiva doscustos de transação políticos

As políticas públicas não são concebi-das por um processo cujas decisões são uni-camente de ordem técnica, na ilusão de que,achada a solução que possa maximizar oudesenvolver o bem-estar social, esta será in-tegralmente implementada conforme foi con-cebida pelos especialistas, bem como atin-girá os efeitos por eles desejados. Na verda-de, a proposta inicial, por mais bem conce-bida que possa ser, é tão-somente o iníciodo processo que, na sua essência, é políticoem todos os estágios.

O lado político não apenas se manifestano processo legislativo stricto sensu, mas tam-bém na implementação, a qual igualmenteinclui decisões administrativas estratégicas,tais como a escolha ou formação de umaagência governamental para “cuidar” dedeterminada tarefa em face da política esco-lhida, além da sua subseqüente operacio-nalização (DIXIT, 1996).

A tradição normativa sobre os estudosda economia política costuma analisar aspolíticas levando em conta o paradigma dateoria econômica neoclássica da firma. En-quanto essa tem por foco a maximização dolucro, a abordagem normativa observa a

política pública como maximizadora dobem-estar. Essa abordagem tem apresenta-do muitas limitações, pois, no mundo real,as políticas, definitivamente, não assumemesse papel de maneira tão pura.

Nesse sentido, vários economistas, reco-nhecendo a inadequação da visão da firmaacima exposta, principalmente quanto àaplicação tácita do postulado da racionali-dade, propuseram a inclusão das institui-ções2 como elementos fundamentais para aformulação e aplicação das políticas. Nessesentido, analisam o papel dos denomina-dos custos transacionais como uma cone-xão entre instituições e custos de produção.Custos de transação, sob a ótica econômica,podem ser evidenciados da seguinte forma:

“os custos de transação podem serconceituados como aqueles corres-pondentes às atividades de celebra-ção dos contratos necessários ao exer-cício da atividade econômica, inclu-indo também as despesas necessári-as à execução das obrigações assimcontratadas, mesmo quando isso deveocorrer posteriormente à atividadeprodutiva” (BRUNA, 2003, p. 31).

A noção de custos de transação compre-ende o “preço” a ser pago na negociaçãodos interesses em conflito, bem como aquelerelativo à organização e articulação dos in-teressados com vistas à consecução de seusobjetivos comuns (BRUNA, 2003). Tal pre-ço pode ser encarado tanto do ponto de vis-ta econômico como político.

Mantendo-se o paralelismo com a teoriaeconômica, a análise política também se be-neficia da abordagem dos custos de transa-ção, abrindo a “caixa preta” do processo deformulação de políticas, examinando-se osvários trabalhos e mecanismos internos aele subjacentes. Nesse sentido, tal processoé influenciado pelo Legislativo, pelo Execu-tivo e suas “agências”, lobbies de grupos deinteresse, meio de comunicação, entre ou-tros (DIXIT, 1996).

Desse modo, o Estado, quando decide in-troduzir reformas em determinado marco re-

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gulatório, pode, com isso, deparar-se comas duas naturezas dos custos de transação.

Ao desejar reduzir os custos de transa-ção econômicos de algum setor, o governodeseja estimular trocas econômicas, querpela redução da incerteza antes dominante,quer pela diminuição da necessidade de ne-gociação e organização. Com isso, incenti-vam-se os indivíduos a dedicar-se às tro-cas, e as organizações, à produção ou aooferecimento de serviços, pois ambos conta-rão com a certeza de poderem apropriar-sedo resultado de seu trabalho, além de redu-zir ou mesmo de eliminar os esforços neces-sários à autotutela dos interesses individu-ais (BRUNA, 2003). Trata-se de modificarregras para realizar mudanças de ações, deatitudes.

Tomando-se por base que qualquer polí-tica de governo, em especial a de viés econô-mico, é um jogo dinâmico, inevitavelmentesurgem custos de transação políticos, poisos atores fazem movimentos estratégicos emque manipulam ações e regras. Logo, a for-mulação da política também deve ser consi-derada como um processo contínuo, imper-feito, incompleto, de dinâmica poderosa,porém lenta. Em decorrência dessa nature-za, a análise da política que envolve o exa-me dos custos transacionais procura enten-der a evolução das estruturas de governan-ça existentes para lidar com eles (DIXIT,1996).

Tais limitações do processo de formula-ção das políticas públicas, em face das ins-tituições vigentes, podem ser removidas ouflexibilizadas ao longo do tempo, principal-mente quando oportunidades de reformasganham força no cenário.

Verifica-se, dessa forma, uma estreita re-lação desses conceitos com a disposição dogoverno para modernizar o aparato legal daprevidência complementar, de maneira aoferecer regras mais flexíveis, adaptáveis àsmudanças do mercado e, principalmente,críveis, de maneira a incentivar cada vezmais indivíduos a buscarem a complemen-tação de suas aposentadorias, e o sistema a

desencadear externalidades positivas paratoda economia.

Por outro lado, a mesma reforma se de-para com custos transacionais de caráter po-lítico, resultado de diversos interesses do go-verno e dos grupos de interesse (fundos depensão, participantes, investidores, patro-cinadores, entre outros). Nesse caso, o “pre-ço” relaciona-se com o poder de decisão so-bre os parâmetros que serão determinadosaos dispositivos legais, ou seja, à regula-mentação. Do lado do governo, além da pre-ocupação fiscal, existe o interesse de con-duzir os fundos de pensão para a consecu-ção de seus objetivos de política econômica,tendo em vista serem grandes investidores.De sua parte, os agentes privados, tendo emvista sua não-autonomia em relação às suasescolhas no mercado de bens e serviços3, sãoinduzidos a se confrontar com a necessida-de de desenvolver estratégias de atuaçãojunto ao processo político, complementan-do suas estratégias convencionais de mer-cado (MONTEIRO, 2004).

A abordagem de custos de transaçãopode contribuir para a compreensão domodo pelo qual grupos de interesse, aindaque pequenos, podem controlar poderesdesproporcionais a sua representatividadee com isso amoldar as instituições a seuspróprios interesses. Parte-se do pressupos-to de que pequenos grupos de pressão têmmaior capacidade de organização e, portan-to, possuem maiores condições de sucessoem suas ações do que grande grupos quelutem por medidas que beneficiem um nú-mero maior de pessoas. Sérgio Bruna (2003,p. 35), baseando-se em Olson, afirma que

“as dificuldades de coordenação fa-zem com que estes últimos, apesar dereunirem um número maior de indi-víduos, não possuam força e agilida-de necessárias para neutralizar asações de grupos menores, que acabamvencendo a maior parte das disputas.Por isso seria equivocado acreditar nosurgimento de um equilíbrio naturalresultante do embate dos grupos de

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interesse, revelando-se o processo de-cisório como um jogo irregular e alea-tório, incapaz de ser controlado pelamera atuação desses grupos”.

As causas identificadas dessa suprema-cia repousam não só na distribuição desi-gual dos custos e benefícios das mudançasempreendidas, como também na assimetriaexistente entre esses grupos na distribuiçãode informações sobre essas mudanças(BRUNA, 2003).

3.2. Primeiros passos: motivaçõesda mudança constitucional

A expansão do segmento de previdên-cia privada ocorreu de forma mais acelera-da a partir dos anos 90, fato esse impulsio-nado pela conquista da estabilidade de pre-ços obtida com a implementação do PlanoReal.

Contudo, o pagamento de benefícios deplanos vinculados a fundos de pensão cujopatrocinador é indiretamente o GovernoFederal vinha comprometendo boa parte dosrecursos acumulados. Tal aspecto ganharelevância quando se observa que mais de60% dos recursos são de fundos patrocina-dos por empresas públicas, o que remete àpreocupação em relação ao nível de com-prometimento do Tesouro e possível impli-cação sobre o déficit público. Não obstante,incentivar o crescimento desse sistema sig-nifica uma boa probabilidade de angariarnovas fontes de financiamento para empre-sas e projetos vitais para o crescimento doPaís.

Mirando a diminuição do risco para osgastos públicos e o incentivo para a acumu-lação de poupança previdenciária, o Gover-no Federal decidiu incluir, no âmbito dasreformas por ele propostas, alterações visan-do à modernização do regime de previdên-cia privada. A experiência internacional re-vela que, sem uma previdência complemen-tar privada de ampla cobertura e financei-ramente saudável, nenhuma reforma amplada previdência consegue alcançar seus ob-jetivos. Basta observar que países como Es-

tados Unidos, Inglaterra e Austrália, quepossuem regimes previdenciários mais ma-duros, têm um sistema muito desenvolvidode previdência complementar.

Dessa forma, com a promulgação daEmenda Constitucional no 20, de 1998, pro-curou-se redimensionar a previdência com-plementar, ampliando o espaço político etécnico para um trabalho de reestruturaçãodesse regime previdenciário.

Para a consecução dos objetivos almeja-dos, optou-se por uma redação constitucio-nal que desvinculasse o regime privado doRGPS, de maneira a torná-lo flexível o sufi-ciente para seu pleno desenvolvimento. Paratanto, o art. 202 estabeleceu três característi-cas básicas para a previdência privada: (i)caráter complementar, sem substituir o re-gime oficial; (ii) organização autônoma; (iii)ser facultativa, contrapondo-se com a obri-gatoriedade do regime oficial. Além disso, omencionado artigo determinou que leicomplementar dispusesse sobre a organi-zação do sistema.

Com base nessas diretrizes, o proces-so de reestruturação da previdência pri-vada passou a contar com os seguintesdesafios:

I – substituição do diploma legal vigen-te que dispunha sobre previdência comple-mentar privada no Brasil, a Lei no 6.435, de1977, a qual estabelecia, de forma ainda ine-ficaz, dispositivos que garantissem a defe-sa de vários direitos dos participantes dosplanos de benefícios;

II – garantia de acesso a trabalhadores,sem vínculos empregatícios com empresas,tais como profissionais liberais, pequenosempresários, a planos de benefício previden-ciários complementares, democratizando osegmento e contribuindo para a elevação dapoupança previdenciária do País;

III – perspectiva de que a União, Esta-dos, Distrito Federal e Municípios viessema constituir fundos de pensão para seus res-pectivos servidores, contribuindo para equa-cionar o problema das despesas previden-ciárias dos entes estatais;

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IV – estruturação de governança adequa-da para a administração pública, com o obje-tivo de aprimorar e fortalecer a área de regu-lação e de fiscalização dos fundos de pensão.

Todos esses desafios, na moderna visãoda economia política, podem ser analisadossob a perspectiva dos chamados “custos detransação”.

4. Modernização do marco legal:aspectos relevantes

Até 1977, poucas eram as opções existen-tes em matéria de previdência privada. Se nãohouvesse iniciativa por parte dos emprega-dores, aos trabalhadores não restava outraopção a não ser a contribuição para o regimede contas individuais dos Montepios4, cujaatuação foi limitada, terminando, muitosdeles, por perder a credibilidade. A experi-ência brasileira com os planos previdenciá-rios dessas instituições, muito dissemina-dos nos anos 60, representa significativoexemplo de empreendimento privado malsucedido na área da previdência. A ausên-cia de um sistema financeiro mais organi-zado e a inexistência de uma fiscalizaçãoestatal mais adequada fizeram com que apoupança de milhares de trabalhadores,vítimas de propaganda enganosa, perdesseseu valor real, uma vez que os contratos nãocontinham cláusulas ante processos infla-cionários (GUSHIKEN, 2002).

Mesmo os empregados de empresas pas-savam por situações de incerteza, uma vezque esses dependiam de esquemas especi-almente montados. Na verdade, tais esque-mas se constituíam apenas de fundos con-tábeis e provisões que os empresários fa-ziam com o objetivo de ajudar na aposen-tadoria e na pensão dos funcionários. Osvalores figuravam no passivo das empre-sas, caracterizando iniciativa exclusiva dospatrões e, portanto, sem contar com amparoou garantia de qualquer tipo de regulamen-tação no campo previdenciário (SILVA, 2000).

A trajetória da previdência privada to-mou novos rumos no Brasil em julho de1977, com a edição da Lei no 6.435, que veio

disciplinar o funcionamento dos fundos depensão no país. Essa lei lançou a arquitetu-ra fundamental para o surgimento de umsistema que fosse alternativa de complemen-tação de previdência, da qual estava ausen-te a grande maioria da população de nossoPaís.

É necessário evidenciar que, devido aofato de a época em questão ter sido caracte-rizada pelo investimento estatal em infra-estrutura, levando, em muitos casos, à cria-ção de empresas públicas ou de economiamista, tornou-se prática comum criar fun-dos de complementação para os benefíciosprevidenciários como parte da política derecursos humanos dessas instituições. Nes-se sentido, o embrião da Lei n o 6.435, de 1977,tomou por base experiências como a caixade previdência dos funcionários do Bancodo Brasil (PREVI) e o Sistema Supletivode Seguridade Social (SSSS), implantadoem 1970 pelo general Ernesto Geisel coma criação da Petros (BELTRÃO, 2004).

Retrato bastante interessante da Lei no

6.435, de 1977, foi feito pelo ex-Secretário dePrevidência Complementar, Paulo Kliass(2000, p. 112):

“Naquele momento, o foco da legisla-ção era as entidades patrocinadaspelas empresas públicas federais, ba-sicamente. Eram entidades que, à épo-ca, possuíam um grau de autonomiabastante grande, e um grau de auto-nomia mais elevado que as própriasempresas patrocinadoras, que tam-bém já tinham um grau de autonomiaelevado. Aquele era o momento do iní-cio de um esforço concentrado de me-tas fiscais a serem estabelecidas ecumpridas pelo Governo, de um lado,e, por outro lado, o início de um meca-nismo de dívida pública, o início dofuncionamento de critérios fiscaispara rolagem do endividamento doEstado brasileiro, que até então eramausentes no País”.

Na verdade o Governo objetivava disci-plinar o setor e manter seu crescimento sob

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sua tutela para administrar a enorme pou-pança que seria gerada pelos fundos de pen-são, procurando, ademais, moralizar umsegmento que havia experimentado algu-mas atividades mal sucedidas. Nessa estei-ra, os fundos de pensão foram caracteriza-dos como investidores institucionais e, prin-cipalmente, utilizados como instrumento depolítica econômico-financeira, na medida emque as aplicações de suas reservas passarama ser direcionadas por normas oficiais.

Por essa razão, a concepção da Lei no

6.435, de 1977, refletiu um sistema com forteviés estatal, muito embora tivesse sido ajus-tada de forma que se criassem condiçõespara que o setor privado da economia, pormeio de empresas que instituíssem planosde benefícios para seus funcionários, tam-bém pudesse dela se valer, passando estesetor, anos depois, a liderar em número osegmento5.

Nos anos de implantação e consolida-ção do sistema de previdência complemen-tar, sob os auspícios da citada lei, várias li-ções puderam ser apreendidas entre os acer-tos e desacertos inerentes a todo processode consolidação. A lei refletiu as preocupa-ções e os anseios manifestados à época, pe-ríodo em que não havia, obviamente, condi-ções de se vislumbrar o Brasil de 20 ou 30anos à frente, assim como não seria possí-vel supor as profundas transformações tec-nológicas e a geopolítica com que as naçõesiriam se defrontar. A necessidade de ajustespor meio de um novo diploma legal tornou-se cada vez mais iminente, na medida emque a curva de crescimento de recursos in-dicava crescimento significativo, passando de1% do PIB, em 1978, para 17%, atualmente.

Dadas as rápidas mudanças socioeco-nômicas, a legislação passou a ser muito res-tritiva e, em alguns aspectos, anacrônica,pois sua evolução não vinha acontecendocom a mesma velocidade verificada no ce-nário econômico e nas relações de trabalho.

Diante de uma população economica-mente ativa de quase 70 milhões de pesso-as, existem apenas 3 milhões de participan-

tes de fundos de pensão. Assim, era neces-sária a devida atualização das regras, flexi-bilizando-as para dar condições idênticaspara que o empresariado e as diversas cate-gorias sociais e econômicas deste País pu-dessem criar seus próprios fundos de pen-são. A tendência predominante é a univer-salização de acesso à previdência comple-mentar.

Para entender a atuação do Estado so-bre o sistema de previdência complemen-tar, é importante evidenciar que a Lei no

6.435, de 1977, conferiu ao Poder Executivoplenos poderes para a criação das instânci-as de atuação do poder público no que tan-ge ao mercado de fundos de pensão. Deve-se frisar que as circunstâncias à época nãopermitiam o pleno exercício da crítica e dopoder de veto do Poder Legislativo, princi-palmente no que concerne aos dispositivosde delegação mais consistentes e apropria-dos ao equilíbrio e à harmonia entre os po-deres da União.

Nesse sentido, o Presidente editou o De-creto no 81.240, de 20 de janeiro de 1978, queregulamentou a citada lei, criando duas ins-tâncias de atuação do governo: um órgãonormativo, representado pelo Conselho daPrevidência Complementar (CPC), e um ór-gão executivo, a Secretaria de PrevidênciaComplementar (SPC), ambos integrantes daestrutura do então Ministério da Previdên-cia e Assistência Social.

Essa organização foi idealizada em umaépoca em que o processo decisório se fun-damentava nos conselhos e colegiados, ge-ralmente formados pelos titulares dos mi-nistérios e pelas “tecnoburocracias” vincu-ladas aos temas objeto das deliberações6. Aformação original do CPC, também estabe-lecida pelo Decreto no 81.240, de 1978, foi aseguinte:

“Art. 16. O CPC compor-se-á dosseguintes membros:

I – Ministro da Previdência e Assis-tência Social, na função de presidente;

II – Secretário de Previdência Com-plementar;

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III – representante do Ministério doTrabalho;

IV – representante do Ministério daFazenda;

V – representante do Ministério daIndústria e do Comércio;

VI – dois representantes do Órgãode atuária e estatística do MPAS;

(...)VIII – dois representantes de enti-

dades fechadas de previdência priva-da e respectivos suplentes, nomeadospelo Presidente da República, commandato de 2 (dois) anos, podendoser reconduzidos”.

Os representantes dos ministérios indi-cados nos incisos III, IV, V e VI eram desig-nados pelo respectivo Ministro de Estado. Per-cebe-se, ainda, que foi uma estrutura extre-mamente insulada, sem acesso aos demaisatores envolvidos no mercado de previdên-cia complementar, tais como os patrocinado-res, os participantes e os fundos de pensão.

Interessante observar que a primeira al-teração na composição do CPC ocorreu apósquatorze anos, reflexo da inexpressividadeda atuação dos governos no período com-preendido entre o final do período militar edurante a Nova República. O primeiro mo-vimento de mudança representou a instala-ção dos mecanismos de participação corpo-rativa no processo decisório, não apenascom a inclusão de representantes dos seg-mentos externos ao governo, mas com parti-cipação majoritária no órgão colegiado, re-nomeado Conselho de Gestão da Previdên-cia Complementar (CGPC).

A importância desse vínculo no CGPCresidiu no fato de que, por meio desse órgãocolegiado, podia-se influenciar distintossegmentos e estágios do processo decisóriode políticas e disposições normativas. Paraos dirigentes e burocratas do governo, o vín-culo serviu para obter informações, legiti-mação, aquiescência ou mesmo um certograu de subordinação. Observa-se, assim, osurgimento de uma espécie de dualismo deinteresses na arena de debates do CGPC, em

que, formalmente, todos contribuíam para ahigidez do mercado de fundos de pensão,mas, na realidade, competia-se pela obten-ção de vantagens7.

Por sua parte, a SPC somente veio a setornar um órgão mais atuante a partir de1994, principalmente com o impulso ofere-cido ao Sistema pela maior estabilidade depreços e devido ao processo de investiga-ção (e, de certa forma, de avaliação) realiza-do pela CPI dos Fundos de Pensão, realiza-da ao longo do ano de 2003. Iniciou-se ummovimento de organização administrativadaquela Secretaria, destacando-se ações desupervisão, autorizações e formação de umabase de informações públicas. Ainda assim,a estrutura da SPC sempre foi muito débilem face das responsabilidades assumidas.O não-aparelhamento desse órgão pode serconsiderado como um forte indício de temorde custos de transação advindos da perdade poder político de alguns segmentos dogoverno, bem como de necessidade de me-lhoria na governança dos fundos de pen-são, na iminência de um melhor aparelha-mento da supervisão do Estado.

Pode-se constatar essa realidade ao ob-servar o órgão executivo das entidades aber-tas de previdência, a Susep. Tomando porbase o panorama entre os anos de 1999 e2001, época da discussão do projeto de lei,esse órgão supervisionou instituições quereuniam cerca de R$ 18 bilhões de ativos,contando com aproximadamente 200 fun-cionários. A SPC, que supervisionou um seg-mento de entidades que reunia ativos deaproximadamente R$ 144 bilhões, possuíacerca de 80 funcionários, todos cedidos poroutros órgãos do governo, ou seja, sem qua-dro próprio.

Assim, dois problemas se evidenciamdesse contexto:

a) a defesa do processo democrático noprocesso decisório que regula o mercadooperado pelos fundos de pensão, o que re-mete a questões como delegação de pode-res, os limites sobre a questão da legitimida-de e a transparência;

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b) a necessidade de o governo buscarmaior qualidade em sua organização, deforma a melhor dispor sobre as questões nor-mativas e exercer a fiscalização com auto-nomia.

Portanto, dada a imensa variedade deinteresses despertados, bem como o grandevolume de recursos envolvidos, uma refor-mulação dos dispositivos da Lei no 6.435,de 1977, no que tange aos aspectos da regu-lamentação do setor de fundos de pensão,tornou-se cada vez mais imperiosa.

A cada momento histórico e político, sur-gem novas formas de gestão pública que seadaptam à moldura jurídica e, ao mesmotempo, provocam sobre esses movimentosde mudança. Nesse sentido, em um proces-so contínuo de aperfeiçoamento das insti-tuições democráticas, a idéia renovadora daimplantação de uma agência autônoma quepudesse reunir atribuições reguladoras e fis-calizadoras surgiu como inspiração parauma possível mudança institucional para osetor de previdência privada, na medidaem que, em vários outros casos, significouganhos de credibilidade e independência.

5. Construção argumentativa doGoverno e demais grupos de interesse

Antes de iniciar o estudo dos argumen-tos que fundamentaram o projeto de lei, pro-põe-se uma breve discussão acerca do usode técnicas discursivas que permitem pro-vocar ou aumentar a adesão a teses que sãoapresentadas para qualquer assentimento(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996).

Parte-se do pressuposto de que não hápossibilidade de adotar solução puramenteracional para todos os problemas, em parti-cular aqueles que envolvam um juízo devalor, o que conduz, naturalmente, à buscade uma racionalidade ética, de uma lógicaespecífica para os valores.

Considera-se que a lógica da argumen-tação é decididamente uma lógica dos valo-res, uma lógica do razoável, do preferível.Mas a maior parte dos usos da linguagem

não reúne a unanimidade exigida, porexemplo, uma lógica do tipo matemático,particularmente nos campos de atuação emque ocorre controvérsia de opiniões (a polí-tica, por exemplo), nos quais se recorre a téc-nicas argumentativas.

Interpretando Perelman, Meyers (1993)propõe a seguinte idéia:

“O racional e o razoável constitu-em o domínio da razão da maneiracomo se deseja conceber atualmente.Por que fazer referência ao razoávelquando se trata de Racionalismo ar-gumentativo não-demonstrativo?Pura e simplesmente porque a conclu-são, nada tendo de constringente oude necessário na lógica argumentati-va, só se impõe como tal diante de va-lores, de lugares comuns para os pro-tagonistas, os quais são levados a ado-tá-la com base nestes pressupostos. Aconclusão de uma argumentaçãonão-formal resulta de uma escolha quesempre pode ser discutida e contesta-da, que pode impor-se definitivamen-te porque, no âmbito da sociedade edada a herança compartilhada entreo enunciador e o auditório, é razoáveluma conclusão em vez de outra. Seriaracional se pudéssemos concluir “so-mente” isto em vez daquilo. Mas to-dos sabemos, pelas discussões àsquais nos entregamos todos os diasno nosso trabalho ou alhures, que asconclusões que queremos ver adota-das nada têm de inevitável, e que elaspodem gerar convicção baseando-se,unicamente, em seu caráter razoável”.

Nesse sentido, a retórica é utilizada comoinstrumento para se chegar a um acordosobre valores e sua aplicação sem abando-nar o campo da razão, mas ao mesmo tem-po transcendendo as categorias da lógicaformal (PERELMAN, 2004).

De acordo com essa perspectiva, a no-ção de “acordo” retomada pela retórica tor-na-se necessária nos casos em que, segun-do Perelman (2004, p. 137),

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“faltam ou são insuficientes os meiosde prova e, sobretudo, quando o obje-to do debate não é a verdade de umaproposição, mas sim o valor de umadecisão, de uma opção ou de umaação, consideradas como justas, eqüi-tativas, razoáveis, honrosas ou con-forme o direito”.

O conceito de acordo ainda pode ser des-dobrado na noção de acordo prévio. Acor-dos prévios são determinadas proposiçõesincontroversas que já se encontram aceitaspelo auditório antes do início do discurso.Sobre essas proposições o “orador” poderábasear seu discurso, procurando transferira adesão do auditório8 em relação aos acor-dos prévios para a tese que apresenta.

Usando a retórica para um auditório ge-nérico, ou seja, sem a concentração de espe-cialistas, a retórica exerce a persuasão pormeio de um discurso de linguagem comum,ou de uma linguagem comum adaptadaconforme as circunstâncias, e não de umalinguagem técnica ou especializada.

Assim, é interessante notar que o Con-gresso Nacional, pelo fato de reunir pesso-as de diversas origens, não necessariamen-te constitui um setor específico, mas, na acep-ção original, atua como um conjunto repre-sentativo da população. Entretanto é neces-sário destacar que, para o sucesso da argu-mentação, quanto melhor se conhece o au-ditório, maior é o número de acordos prévi-os que se tem à disposição, e, portanto, me-lhor fundamentada ela será.

Conclui-se, portanto, que a retórica nãose limita a transmitir noções neutras e pu-ras, mas tem sempre em vista um determi-nado comportamento concreto resultante dapersuasão por ela exercida, já que se propõea modificar não só as convicções, mas tam-bém as atitudes.

5.1. Análise do discurso no processo legislativo

O processo político envolve a habilida-de de obter adesões, dentro de um ativo pro-cesso de interação em torno de princípios eopiniões, para a consecução de políticas e

programas públicos (SCHMIDT, 2002). A ar-gumentação e a utilização da retórica parao convencimento dos diversos auditóriossão processadas por meio do discurso, ex-pressão essa que não se restringe ao pro-nunciamento de parlamentares, mas incluitodos os instrumentos que, diretamente ouindiretamente, transmitem idéias.

Portanto, são também veículos de discur-so as plataformas partidárias, pronuncia-mentos e comunicações do governo, mani-festações da oposição, debates públicos (aíincluídas as audiências públicas organiza-das pelo Congresso Nacional), comentáriosda mídia, entre outros.

O discurso pode, às vezes, exercer o pa-pel determinante sobre uma mudança de po-lítica, servindo de instrumento para supe-rar obstáculos institucionais e favorecer ocaminho para novas perspectivas tambémde cunho institucional, as quais, comumen-te, são consolidadas por meio de reformaslegislativas.

Como veículo de conjunção de idéias, odiscurso exerce a função de tornar evidenteque a reforma proposta não é apenas neces-sária, oferecendo razoabilidade para a novainiciativa de política. Porém, freqüentemen-te o discurso pode ser apenas mera repro-dução de uma mudança de política, reflexodos interesses dos atores políticos relevan-tes e uma expressão de path dependence9 .Nesse caso, deixa de ser retórico.

Seu efeito pode ser mais ou menos sig-nificativo, dependendo das instituições edos contextos envolvidos em cada refor-ma. Assim, a força do discurso pode serverificada pelo modo como ele é construídoe focado.

Nessa perspectiva, entende-se importan-te uma análise dos textos e das opiniões re-gistradas relativamente ao projeto de lei tra-tado neste estudo, observando-se a organi-zação interna dos enunciados e as caracte-rísticas textuais. Por uma perspectiva críti-ca, a análise considerará esses documentoscomo produtos acabados, resultados de umasérie de decisões tomadas pelo autor cons-

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ciente e inconscientemente. De acordo comFernandez & Pessalli (2003, p. 209):

“(...) a retórica fornece instrumentosúteis de interpretação. Ler de umaperspectiva retórica significa um es-forço em sublinhar como o autor tentaalcançar suas metas de persuasãodados os limites que deve enfrentar edado seu contexto social e intelectual”.

Portanto, na interpretação do discurso,será observada a retórica utilizada, partin-do-se do pressuposto de que o texto produ-zido é um produto estratégico das decisõesgovernamentais.

Não se pode deixar de ressaltar que odiscurso produzido pela manifestação deconvidados em audiências públicas tambémpossui características semelhantes à cons-trução discursiva do governo, porém sem ariqueza de artifícios textuais que podem as-sumir múltiplas características para aten-der múltiplos auditórios. A manifestação nocampo das idéias realizada nas audiênciaspúblicas é um mecanismo de influência degrupos de interesse e, portanto, mais nítidae focada para a consecução do objetivo es-pecífico de persuadir parlamentares de umadeterminada comissão temática.

Por meio dessa verificação, será possí-vel perscrutar o pensamento do governo edos demais atores envolvidos, bem como osmecanismos argumentativos para conseguira adesão dos parlamentares. É importantesalientar que os raciocínios não apenas secingem ao Congresso Nacional, mas nor-malmente procuram disseminar-se pelosdiversos mecanismos de comunicação, prin-cipalmente a imprensa, de maneira a tornarseu discurso não apenas racional, mas tam-bém persuasivo.

Por fim, cumpre destacar que a avaliaçãodiscursiva pode revelar uma excelente técni-ca para entendermos os custos de transaçãoembutidos em qualquer tentativa de reforma.

5.2. Exposição de motivos

Para verificar a retórica utilizada pelogoverno para atrair adesões dos parlamen-

tares, serão avaliadas as idéias contidas naExposição de Motivos (EM) no 28, de 15 demarço de 1999, anexa ao projeto registradocomo PLC 10/1999. As exposições de moti-vos, como veículos de discurso, ao contrá-rio do senso comum, não constituem merasformalidades para o encaminhamento deproposições, mas, sim, ricos instrumentosde pesquisa para investigar minuciosamen-te os elementos de retórica empregados pelogoverno.

Na exposição de motivos, ficam clarosvários aspectos que fazem referência espe-cífica à motivação do projeto, aos objetivosda lei e às conseqüências desejáveis das pro-posições.

“3. Como extensão lógica da Reforma daPrevidência, que busca ajustar-se a prin-cípios de maior justiça, transferindo aosgrupos mais privilegiados da sociedademaior responsabilidade em prover seuspróprios meios nos casos de sobrevivên-cia, invalidez e morte, decorre a neces-sidade de uma revisão do quadro re-gulatório do regime de previdênciacomplementar vigente em nosso País,a fim de conferir-lhe maior credibilida-de, profissionalismo, transparência e,principalmente, estabilidade de regras”(grifamos).

O primeiro trecho destacado revela a gê-nese da iniciativa do governo, buscando es-tabelecer uma nítida desvinculação entre areforma da previdência privada e as refor-mas do Regime Geral de Previdência Sociale da aposentadoria do serviço público. Oargumento utilizado é a idéia de ajuste aos“princípios de maior justiça” com base namaior independência e condição financeirado segmento social mais privilegiado. Amensagem é a de que o Estado não tem obri-gação de garantir a renda de aposentadoriadas faixas de maior renda da população,cabendo tão-somente a elas essa responsa-bilidade.

Além disso, definem-se como princípiosdesejáveis ao quadro normativo a credibili-dade, o profissionalismo, a transparência e,

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principalmente, a estabilidade de regras. Sãoelementos que devem ser observados parareduzir os custos de transação que envol-vem todas as atividades dos fundos de pen-são, pois oferecem a mínima segurança paraque os agentes privados (participantes eempresas) possam inserir-se no mercado defundos de pensão, dado o aspecto intertem-poral de suas decisões.

“4. Além da necessária estabilidadenas regras, uma vez que a previdên-cia complementar trabalha com com-promissos intergeracionais, a presen-te proposta de lei complementar bus-ca dotar o regime de flexibilidade, evi-tando o atual “engessamento” de re-gras num diploma legal desta enver-gadura, de forma que possamos esta-belecer as condições para uma expansãosustentada da poupança coletiva. Dessemodo, estarão estabelecidas as condi-ções para a modernização do regime deprevidência complementar, com seus re-flexos positivos em relação ao aumen-to da poupança agregada, bem como peloestímulo aos investimentos que demandamfinanciamentos de médio e longo prazos esua relevante contribuição para a me-lhoria do nível de emprego” (grifamos).

No item 4, começam a ficar evidentes as-pectos vinculados ao propósito do projeto eàs conseqüências desejáveis para sua apro-vação. Como objetivo, ressalta-se a flexibili-dade do regime de previdência complemen-tar, de maneira a expandir a “poupança co-letiva” com sustentabilidade. Como conse-qüências desejáveis, o governo cita, basea-do na modernização do regime de previdên-cia complementar, a expansão da poupan-ça agregada e o estímulo a investimentos delonga maturação, inferindo-se como aque-les que, entre outros aspectos, podem favo-recer a melhoria do nível de emprego.

Pode-se observar que os argumentos dogoverno começam a ser alinhados a um “dis-curso econômico”10. Com a flexibilidade e amodernização, busca-se o aumento da pou-pança coletiva, a qual, no final de todo um

processo, repercutirá na elevação dos inves-timentos produtivos e no aumento do em-prego, por meio da poupança agregada.

A construção dessa idéia favorece a ade-são dos parlamentares, na medida em queos temas do emprego e do investimento pro-dutivo, adjacentes às temáticas do cresci-mento econômico e do desenvolvimento so-cial, têm um apelo político acentuado, poisleva em conta o impacto distributivo de polí-ticas públicas, bem como a visibilidade dobenefício líquido dessas políticas nos respec-tivos redutos eleitorais (MONTEIRO, 2004).

Vale também ressaltar que o tema do cres-cimento econômico vem ganhando cada vezmais relevo no debate econômico brasileiro,tendo em vista que a estabilidade, patroci-nada por forte contingenciamento fiscal epor mecanismos como taxas de câmbio (emum primeiro momento) e taxas de juros (apartir da introdução do modelo de metas deinflação administrado pelo Banco Central),tem provocado tímidos percentuais de cres-cimento do PIB. Assim, desde a implemen-tação dessas políticas, buscam-se alternati-vas que privilegiem a elevação do produto,o que remete facilmente à ligação entre fun-dos de pensão e seus recursos financeiros.

Na medida em que essa idéia é domi-nante, qualquer política pública que tenhapor meta colaborar com os mecanismos demercado, seja previdenciário ou financeiro,afasta-se da condição de política públicageradora de interferência nociva em proces-sos benéficos de equilíbrio. Assim, o assun-to previdência privada obtém “licença” parafazer parte das discussões de ordem econô-mica, tendendo, obviamente, a se sobressairem relação aos demais.

Isso também pode ser explicado pelo sig-nificativo número de atores envolvidos in-diretamente no assunto previdenciário, en-tre os quais as instituições financeiras e ascompanhias (S.A.). As primeiras, como ofer-tantes de serviços e as outras, como veícu-los de investimento/retorno. Esses dois gru-pos, que para fins de simplificação chama-remos mercado financeiro, constituem um

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auditório especializado e com poder de in-fluência significativo sobre as demais pla-téias. Daí a preocupação pela conciliaçãocom o discurso econômico, de forma a cha-mar a atenção de mais de um auditório.

“5. Para a concretização da referida ex-pansão, é necessário prover o Estado dosmeios suficientes para assegurar a eficá-cia do regime. Nesse contexto, ‘ eficácia’é tratada como um conceito amplo que ser-ve de teto a seis pilares: (i) flexibilidadede criação e organização de planos ede entidades de previdência comple-mentar, visando à expansão do regi-me de previdência complementar; (ii)credibilidade do regime de previdên-cia complementar; (iii) incremento daprofissionalização dos gestores dasentidades de previdência complemen-tar; (iv) transparência junto aos parti-cipantes; (v) prudência na gestão deativos; e (vi) fortalecimento da capacida-de de regulação e fiscalização do Estado”(grifamos).

Nesse quinto trecho, a expansão da pou-pança coletiva fica estritamente vinculadaà eficácia do regime. Por sua vez, a eficáciadeve ser garantida pelo Estado, que terá porinstrumentos necessários seis pilares. É in-teressante notar que os itens i, iii, iv e v nãosão, na verdade, instrumentos do Estado,mas conseqüências desejáveis da sua inter-venção, por meio de sua ação regulamenta-dora e/ou fiscalizadora, ou seja, do item vi.

O item ii, a credibilidade do regime, aoque parece, mereceria estar ao lado da eficá-cia para garantir a expansão do próprio re-gime. Não obstante, pode ser elemento dereforço para o que parece ser a principalidéia do parágrafo, o item vi, a necessidadede fortalecimento da capacidade de regula-ção e fiscalização do Estado. Se essa atua-ção for efetiva, ao mesmo tempo em que cons-truirá sua credibilidade institucional, cola-borará também para a credibilidade do sis-tema como um todo. O equívoco de constru-ção do argumento deste parágrafo pareceser corrigido no seguinte. Vejamos:

“6. A maior credibilidade do regime deprevidência complementar institucio-nalizará e consolidará uma modalidadede poupança interna pouco explorada emnosso País – a de perfil de longo prazo–, o que facilitará a redução do grau ex-tremado de dependência de capitais exter-nos e voláteis a que nações que aindanão atingiram o nível pleno de desen-volvimento estão sujeitas. Para essaconsolidação da poupança de longo pra-zo, a credibilidade é irmã da transparên-cia da gestão e do pleno acesso de informa-ções aos participantes de entidades deprevidência complementar. Por essarazão, esses são outros dois objetivos coli-mados com o presente projeto” (grifamos).

Esse sexto parágrafo é extremamente re-velador, pois reforça idéias inicialmente tra-tadas nos parágrafos anteriores.

Como dissemos, a credibilidade foi colo-cada no seu devido lugar, pois colaborarápara a expansão da poupança coletiva. Ob-serva-se, contudo, que a ênfase deixa de seressa poupança coletiva, passando a ser a“poupança interna de longo prazo”. Deve-mos observar que, tratando-se de expansãodo sistema, poupança coletiva oferece con-dições para poupança agregada, que, porsua vez, pode assumir contornos de pou-pança de longo prazo. Nesse caso, somentecom credibilidade se consegue criar ambi-ente para esse tipo de poupança.

Novamente, nota-se a farta utilização dodiscurso econômico, argumentando-se quea formação de poupança de longo prazo re-duz a necessidade de capitais externos evoláteis para fecharmos as contas do balan-ço de pagamentos brasileiro.

Além do mais, dois outros objetivos doprojeto de lei são: transparência da gestão epleno acesso de informações aos participan-tes. Nesse sentido, começamos a verificar queo discurso do governo é entrecortado pormúltiplos objetivos e conseqüências desejá-veis, de forma que salta aos olhos do audi-tório o aspecto da relevância da matéria.Mais adiante comentaremos.

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“7. As entidades de previdência pri-vada, especialmente as fechadas, po-derão tornar-se, sob eficaz regulação eatenta fiscalização, atores estratégicosno financiamento doméstico de investi-mentos de longo prazo e de grandeporte, destacadamente nas áreas d einfra-estrutura e no setor moderno de ser-viços. Espera-se, dessa forma, relevan-tes impactos multiplicadores sobre aretomada do crescimento econômico e so-bre o nível de emprego em várias regiõesdo País, consolidando seu processo dedesenvolvimento humano e de inte-gração físico-econômica” (grifamos).

Outro aspecto interessante no discurso éa circularidade dos argumentos, utilizando-se de outros termos ou denominações paratratar dos mesmos temas, tal como podemosobservar no último item sétimo. Observamosa importância de três idéias já mencionadas:

I – ação do Estado: sob eficaz regulação eatenta fiscalização;

II – formação de poupança de longo pra-zo: atores estratégicos no financiamento domésti-co de investimentos de longo prazo (...) nas áreasde infra-estrutura e no setor moderno de serviços;

III – como conseqüência do item anteri-or, impacto positivo sobre o crescimento eco-nômico e o nível de emprego.

“8. Outro aspecto a ser considerado éa expansão prevista dos ativos financei-ros das entidades de previdência quecontribuirá para o desenvolvimento eaperfeiçoamento do mercado brasileiro decapitais, diversificando o espectro deprodutos financeiros existentes e apro-fundando a profissionalização dos re-cursos humanos das instituições fi-nanceiras aqui sediadas. Cabe men-cionar que instituições e mercados fi-nanceiros amplamente desenvolvidosconstituem-se em condição indispensá-vel para atrair e reter poupança externaem bases duradouras” (grifamos).

O parágrafo oitavo é dedicado à defesada tese de que os recursos dos fundos depensão propiciam elevação dos ativos fi-

nanceiros, o que representaria fator dina-mizador dos mercados financeiro e de capi-tais. Outro aspecto interessante desse pará-grafo é a menção de que sistema financeiroforte atrai capitais externos com bases du-radouras, fazendo um contraponto à defesacontra a dependência dos “capitais exter-nos voláteis”. Essa idéia salienta o conceitode poupança agregada, que representa asoma das poupanças interna e externa, asquais repercutem sobre os investimentos.

“10. Convém que façamos uma brevecontextualização da situação da pre-vidência complementar em nosso Paíse no exterior. Apenas em relação àsentidades fechadas, existem 353 fun-dos de pensão, com ativos da ordemde 10% do Produto Interno Bruto e umtotal de 6.408.373 beneficiários, entreparticipantes e dependentes. Em paí-ses onde a previdência complemen-tar já está desenvolvida e consolida-da, esse percentual em relação ao PIBé expressivamente superior. Para seter idéia, os ativos das entidades deprevidência complementar alcançamo valor de 120% do PIB na Holanda,100% na Suíça, 78% nos Estados Uni-dos e 40% no Japão. Se considerar-mos, também, o potencial das entida-des abertas, comparando com a expe-riência internacional, podemos con-cluir com segurança que a capacidadede crescimento da previdência complemen-tar no Brasil é significativa, bem como suasexternalidades positivas nas áreas sociale econômica” (grifamos).

Do ponto de vista da retórica, os argu-mentos que fazem uso de experiências in-ternacionais trazem ao discurso uma boadose de legitimidade, especialmente quan-do as boas práticas são oriundas de paísesdesenvolvidos. Assim, o “transporte de pers-pectiva”, sem ressaltar aspectos institucio-nais também relevantes para a construçãodas experiências de cada um dos países ci-tados, acaba tendo igualmente um efeitopoderoso sobre o auditório.

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“11. Cabe observar, em relação à po-pulação beneficiada pelo regime deprevidência complementar, que ain-da existem outros 48 milhões de bra-sileiros integrantes da População Eco-nomicamente Ativa – PEA, que nãoestão vinculados a nenhum sistemafechado de poupança previdenciáriae se constituem, portanto, numa po-pulação alvo para a previdência com-plementar. Segundo dados da últimaPesquisa Nacional por Amostragemde Domicílios – PNAD, elaboradapelo Instituto Brasileiro de Geografiae Estatística – IBGE, pelo menos 3 mi-lhões de pessoas integrantes da PEA têmaltas faixas salariais e bons níveis dequalificação profissional, constituindo-se em participantes potenciais da pre-vidência complementar” (grifamos).

Os argumentos do tipo quantitativo sãoextremamente úteis para demonstrar logi-camente a sua robustez, assim como paraimpressionar o auditório, principalmente noque concerne à coerência com a idéia do item10. Entretanto, uma leitura mais atenta podeacusar debilidade da informação utilizada.

Infere-se que 48 milhões de pessoas nãovinculadas a fundos de previdência priva-da são alvo do sistema após a moderniza-ção. Com o intento de tornar esse argumen-to não falacioso (pois nem todas essas pes-soas possuem renda suficiente para contra-tar um plano de benefício), usa-se a infor-mação de que 3 milhões de trabalhadorescom faixa salarial elevada seriam partici-pantes potenciais da previdência comple-mentar. Entretanto, o erro da informaçãoreside no fato de que esses 3 milhões de pes-soas já possam integrar um plano de benefí-cios de algum fundo de pensão ou mesmoter integrado plano privado de uma segura-dora ou entidade de previdência aberta. Odetalhe fundamental da informação é, pois,que ela se refere à totalidade da PEA, e não àparcela dos 48 milhões inicialmente citados.

Na defesa da idéia do instituidor, o gover-no sempre se preocupou em informar de ma-

neira contundente sobre as vantagens dessaproposta, sendo, em muitas oportunidades,excessivamente otimista em suas projeções11.

“16. Inspirada em experiências bem suce-didas em países da União Européia e nosEstados Unidos, outra inovação desteprojeto é a criação da figura do insti-tuidor, como forma de constituição deentidades fechadas de previdênciacomplementar. Trata-se de possibili-tar a pessoas jurídicas de caráter pro-fissional, classista ou setorial, a op-ção de instituir para seus associadosou membros uma entidade fechada deprevidência complementar, além d econtribuir para a expansão do regime. Oinstituidor democratizará o acesso de ex-pressiva parcela da população à previdên-cia complementar, antes restrito aos em-pregados de uma empresa, chamada pa-trocinadora” (grifamos).

Iniciando a apresentação das inovaçõesmais significativas do projeto de lei, nesseparágrafo expõe-se a noção da figura do ins-tituidor. Duas idéias fundamentais são ofe-recidas: o argumento de reforço sobre as ex-periências internacionais, que traz legitimi-dade à proposta, e a exposição do efeito de-sejável, qual seja democratizar o acesso aosplanos de fundos de pensão, antes restritoapenas aos empregados de empresas.

Uma leitura mais atenta, contudo, expõea retórica da indução, pois o enunciado “de-mocratizará o acesso de expressiva parcelada população à previdência complementar”eleva ao status de certeza o que é uma merapossibilidade. Isso se justifica pelo fato deque o acesso à previdência complementarocorre por facilidades legais, mas servindo-se de um requisito primordial, que é a ren-da. O próprio discurso se choca com a idéiadefendida pelo parágrafo 11.

O que, sem dúvida, não se pode negar éque o acréscimo pode ser significativo, des-de que comparativamente analisado com asituação anterior à mudança institucional.

“18. A modernização do regime deprevidência complementar passa, ne-

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cessariamente, pelo caminho da flexi-bilização, ao reconhecermos a dinâmica domercado de trabalho no Brasil, introdu-zimos a figura da portabilidade, quese constitui na possibilidade de o par-ticipante de uma entidade de previ-dência complementar, em razão dotérmino de seu vínculo com o patroci-nador ou instituidor, transferir suapoupança acumulada para o plano debenefícios de outra entidade. Assim,a portabilidade não caracterizará res-gate de poupança e sua conversão emliquidez, mas tão-somente uma trans-ferência interinstitucional de ativos,evitando que haja perdas súbitas de sol-vência no regime de previdência comple-mentar” (grifamos).

Nesse parágrafo, são apresentados osinstitutos da portabilidade e do benefícioproporcional diferido, sendo neles utiliza-das as idéias de consenso entre especialis-tas e o mercado.

É interessante notar que, em cada trechoexplicativo, foi introduzida uma idéia quechamaremos de “cláusula de segurança”,consubstanciada nas declarações “evitan-do que haja perdas súbitas de solvência noregime” e “garantido o equilíbrio e a solvên-cia do regime”. Por esses enunciados, nota-sea necessidade de garantir ao auditório quenão haverá riscos para os fundos de pensão,participantes e patrocinadoras, conferindo àspropostas a certeza de sua funcionalidade.

“25. O regime de previdência comple-mentar funciona basicamente comoinstrumento de poupança de longo pra-zo. Esse tipo de poupança é social-mente mais desejável, do ponto de vistada promoção do desenvolvimento econô-mico, do que a poupança de curto pra-zo. Dessa forma, estabelecemos quesobre as contribuições aportadas paraas entidades de previdência comple-mentar não incide tributação, sendo opagamento de resgate e dos respecti-vos benefícios sujeitos à incidência deimposto sobre a renda” (grifamos).

Apesar de a parte do projeto de lei quetrata da mudança do regime tributário nãoser objeto deste estudo, esse parágrafo foiselecionado com a intenção de destacarmosa relevância do argumento de que “a previ-dência complementar é instrumento de pou-pança de longo prazo” e da promoção dodesenvolvimento econômico.

Percebe-se que a superveniência desseargumento confirma o uso da retórica parainserir a matéria do projeto de lei no seio dodebate econômico. Processo semelhantepode ser encontrado quanto à abordagemdada ao tema previdência social durante oprocesso de reforma, o qual foi desalojadodo contexto mais amplo dos atendimentossociais e encaixado como um dos pilarespara o ajuste fiscal, mesmo levando-se emconsideração a ausência de um novo regi-me constitucional (MONTEIRO, 2004).

Todavia, enquanto a estimativa deganhos potenciais relativamente à reduçãodos gastos constituiu-se em ingredientecentral da retórica da mudança (MELO,2002), a nova disciplina do funcionamentodos fundos de pensão, da maneira como foidefendida, sempre foi tida como umaalternativa à falta de recursos estatais, e nãocomo um remédio para o ajuste fiscal.

“26. Em consonância com a ReformaAdministrativa implementada porVossa Excelência, propomos o reforçodo órgão regulador e fiscalizador das en-tidades de previdência complementar, aexemplo do que já implementado nas áre-as de telecomunicações, energia elétrica,petróleo e vigilância sanitária. Assim,entre outras atribuições, caberá aomencionado órgão estabelecer pa-drões mínimos de segurança econô-mico-financeira e atuarial para preser-vação da liquidez e da solvência dosplanos de benefícios e das respectivasentidades, fixar critérios e normaspara constituição de reservas técnicas,exigir a clareza, completude e fidedig-nidade de demonstrações financeirase avaliações atuariais, inclusive com

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abertura e justificativa das premissase cálculos destas últimas, e definircondições que assegurem transparên-cia, acesso a informações e fornecimen-to de dados dos citados planos” (gri-famos).

A exposição não deixa dúvidas: propõecomo novo agente de atuação estatal o ór-gão regulador e fiscalizador, ou, pelo enten-dimento comum, uma agência reguladora.Sugere-se, então, o término da estrutura dualaté então existente, coexistindo, em um únicoórgão, o papel exercido pela administraçãodireta como agente fiscalizador, a SPC, e umcolegiado como órgão regulador, o CGPC.

De maneira geral, o governo, ao assumira postura “progressista” na defesa dessa re-forma, sentiu que não bastava argumentara favor dela simplesmente com base na fle-xibilidade, credibilidade, profissionalismo,transparência e, principalmente, na estabi-lidade de regras. Para maior efeito retórico,alegou-se que a política era imperativa paramanter à distância qualquer possibilidade detrava no crescimento da poupança interna e,em decorrência, no crescimento econômico.Veremos mais adiante que esse mecanismoargumentativo apresenta um curto alcance.

5.3. Audiências públicas

A audiência pública é um instrumentode apoio ao processo decisório que visa ofe-recer espaço para a manifestação da socie-dade civil. É normalmente instalada quan-do a proposição interfere diretamente em in-teresses de vários atores sociais. Com isso,busca-se melhorar a comunicação com a so-ciedade, sob o entendimento de que a trans-parência é um dos princípios fundamentaispara se alcançar a credibilidade, tão neces-sária para o cumprimento da missão cons-titucional do Poder Legislativo.

Especificamente falando sobre a trami-tação do PLC 10/99, vários grupos foramconvidados a colaborar no debate: fundosde pensão, órgãos representativos, associa-ções de classe, sindicatos, bem como autori-dades do governo, e todos puderam defen-

der seus argumentos. As audiências ocorre-ram na Câmara dos Deputados, em um to-tal de doze reuniões, ao longo das quais osassuntos pertinentes às entidades abertas, ob-viamente, também foram objeto de discussão.

A seguir, resumiremos os argumentosoferecidos por cada grupo de participantes,e, por meio deles, avaliaremos sua posturaperante o projeto, especialmente no que con-cerne ao(s) órgão(s) fiscalizador e regulador.

Representantes de fundos de pensão queparticiparam das discussões com relação aoestabelecimento de um órgão regulador e fis-calizador defenderam a continuidade daseparação de tarefas, ou seja, a diferencia-ção entre os órgãos.

As associações convidadas foram aABRAPP, a APEP, a Associação Nacionalde Previdência Privada (ANAPP) e o Sindi-cado das Entidades de Previdência Fecha-da (SINDAP). Os mencionados órgãos re-presentativos defenderam a continuidadeda separação de tarefas, ou seja, a diferenci-ação entre os órgãos.

Os sindicatos de trabalhadores que con-tribuíram na audiência pública foram aConfederação Geral do Trabalhadores(CGT), Força Sindical e Central Única dosTrabalhadores (CUT). A única que pareceuter melhor conhecimento do mercado dosfundos de pensão foi a CUT. Essa centralsindical defendeu que a atividade de fisca-lização do setor deve ficar a cargo do Minis-tério da Previdência.

No entanto, de maneira inusitada, a CUTdeclarou preocupação com o fato de o Mi-nistério da Fazenda estar interessado em sero órgão fiscalizador ou controlador dos fun-dos de pensão12, bem como em relação à re-gulamentação do art. 5 o do projeto de lei (quedefine o órgão regulador e fiscalizador). Talinformação aparentemente soa de maneiraestranha, pois nunca houve pronunciamen-to oficial nesse sentido. Contudo, pode serfruto de uma informação privilegiada ou apercepção de um conflito interburocráticoentre os Ministérios da Fazenda e da Previ-dência Social.

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A entidade de classe vinculada ao mer-cado de previdência complementar que foiconvidada a participar das audiências pú-blicas foi o Instituto Brasileiro de Atuária(IBA), sociedade civil, sem fins lucrativos, queexerce o papel de disciplinamento técnico eda atuação profissional dos atuários13. An-tes de observar as opiniões manifestadas poresse instituto, é relevante pontuarmos aspec-tos específicos que envolvem sua atuação.

O IBA tem como base de associação es-pecialistas ainda raros no Brasil, os atuári-os, o que lhe garante um poder de influên-cia considerável sobre qualquer política (in-clusive pública) que envolva parâmetros denatureza atuarial em diversos tipos de enti-dades, principalmente fundos de pensão, se-guradoras, entidades abertas de previdên-cia e empresas de capitalização.

Dada a natureza do funcionamento des-sas entidades, existem algumas atribuiçõesque somente podem ser realizadas pelosprofissionais de atuária, entre elas a elabo-ração das bases técnicas dos planos. Alémdisso, possui responsabilidade legal sobreas demonstrações contábeis e atuariais deinstituições de previdência, seguro e capi-talização. É um processo semelhante à prer-rogativa dos contadores sobre o balanço dasempresas.

A ascendência política do IBA foi signi-ficativa, apresentando grande influência naesfera de decisões governamentais para osmercados de previdência privada, princi-palmente no âmbito do CGPC14. Portanto,dada a especificidade do IBA, seu discursoé caracterizado como de autoridade, talcomo explica Bourdieu (1991):

“A especificidade do discurso de au-toridade (curso, sermão etc.) reside nofato de que não basta que ele seja com-preendido (em alguns casos, ele podeinclusive não ser compreendido semperder seu poder), é preciso que eleseja reconhecido enquanto tal paraque possa exercer seu efeito próprio”.

Na audiência pública de que participou,o representante do IBA iniciou sua palestra

destacando que somente a atuária poderágarantir a exeqüibilidade da previdência,seja ela básica ou complementar. Sua inter-venção centrou-se mais em aspectos técni-cos do texto, mas não se absteve de defenderque o órgão regulador deve ser separado dofiscalizador.

As opiniões manifestadas pelo institutosão reveladoras, na medida em que põemem foco o problema do jogo de interessescuja arena é o CGPC. A propósito, outrosrepresentantes do CGPC como a ABRAPPe, posteriormente, a APEP também apresen-taram alguns argumentos divergentes daspropostas governamentais, elevando-se,assim, as chances de conflitos e dificulda-des na oportunidade da regulamentação daLei Complementar no 109, de 2001, relativa-mente ao efetivo funcionamento dos novosinstitutos.

Parece-nos interessante, também, ressal-tar fato singular ocorrido nas audiências pú-blicas que foram mais direcionadas aos dis-positivos referentes às entidades abertas deprevidência e seguradoras. Falava, na opor-tunidade, o Superintendente da Susep, oqual, ao final de sua exposição, manifestou-se contrário à figura do instituidor, alegan-do esse ser um controlador com baixo com-promisso de resultado, diferenciando-se dopatrocinador pelo fato de não carregar o ris-co, o que, no seu entendimento, prejudica agovernança das instituições.

Tal afirmação deixa entrever que as equi-pes do governo não estavam em plena sin-tonia, o que corrobora a tese de que o projetode lei foi fruto de trabalhos de concepçõesdiferenciadas em relação aos mercados deprevidência privada, desvelando certo con-flito interburocrático.

Os participantes da audiência públicanão manifestaram posições radicalmentecontrárias à proposta, contudo também nãodemonstraram apoio irrestrito. De maneirageral, as opiniões se mantiveram em umaposição intermediária, apoiando ou recu-sando certos dispositivos. Tal postura reve-la, ainda, certa insegurança em relação a

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mudanças, as quais poderiam interferir empontos de atuação já consagrados dentro dosegmento. Entretanto, nenhum agente apre-sentou manifestação contrária às diretrizesdefendidas pelo governo (novamente, flexi-bilidade, credibilidade, etc). Daí, a posturadúbia e, em vários sentidos, conservadora.

5.4. Comparação entre os discursos:governo x demais agentes

Os diferentes pontos de vista expressospelo governo e pelos demais agentes de cer-ta forma refletem o debate entre tendênciasprogressistas e conservadoras, sem neces-sariamente caracterizar tais posições de ma-neira maniqueísta, mas, simplesmente, doponto de vista da origem e das conseqüên ciasdas mudanças propostas.

A linha progressista do governo segue oraciocínio da “reforma em continuação”, ouseja, que os avanços conseguidos com a Leino 6.435, de 1977, devem ter continuidade,mas por meio de um instrumento mais mo-derno, adequado às contingências moder-nas. Além disso, existe grande respaldo ofe-recido pelas experiências internacionaisbem-sucedidas e firmemente defendidas pororganismos multilaterais (BID, FMI, etc).

A linha conservadora dos agentes podeser notada (i) pela resistência da obrigatori-edade e da formatação técnica envolvendoos institutos da portabilidade e do BPD; (ii)pelo temor da revogação da Lei no 6.435, de1977; (iii) pela união das atividades regula-doras e fiscalizadoras exercidas pelo gover-no; (iv) pelas dúvidas e receios gerados pelafigura do instituidor; e, finalmente, (v) peladefesa contundente da legislação em vigor,em especial as exposições de algumas cen-trais sindicais.

Sobre esse debate de idéias, Hirschman(1992) ofereceu valiosa contribuição quan-do tratou de mapear a retórica conservado-ra em vários acontecimentos da história,chamando o conjunto de argumentos con-servadores de “retórica da intransigência”.Entre as teses conservadoras elencadas porHirschman, uma delas chama atenção pela

similaridade em relação à postura conser-vadora assumida pelos agentes: a tese daameaça.

Segundo Hirschman (1992, p. 73), a teseda ameaça:

“(…) assevera que a mudança propos-ta, ainda que talvez desejável em si,acarreta custos ou conseqüências ina-ceitáveis de um ou outro tipo”.

O autor ainda tece esclarecimentos acer-ca daqueles que se servem dessa tese comolinha de argumentação conservadora:

“Os que argumentam nesse senti-do não afirmam que a reforma propos-ta é em si errada; em vez disso, ale-gam que ela conduzirá a uma seqüên-cia de eventos tal que seria perigosa-mente imprudente, ou apenas inde-sejável, tomar o rumo (intrinseca-mente justo ou correto) proposto”(HIRSCHMAN, 1992, p. 74).

“Além disso, com esse tipo de ar-gumentação, o reacionário veste-semais uma vez com a roupagem do pro-gressista e argumenta como se tanto oprogresso antigo quanto o novo fos-sem desejáveis, e então, de modo típi-co, mostra de que maneira uma novareforma, se levada a cabo, poria emperigo mortal outra mais antiga e mui-to apreciada, que poderia ter sidoposta em prática recentemente”(HIRSCHMAN, 1992, p. 75).

Identificou-se, na manifestação dos agen-tes, certa sobrevalorização da legislação emvigor, ressaltando que ela satisfazia plena-mente às necessidades do mercado e, ain-da, o fato de que, com ela, o segmento ga-nhou impulso e força nos últimos anos.Nesse sentido, utilizaram-se largamente datese da ameaça, pois a raiz de quase todosos argumentos era a de que o custo da refor-ma ou mudança proposta era alto demais,pois colocaria em perigo outra “preciosa”realização anterior.

Hirschman (1992, p. 126) também obser-va características do pensamento progres-sista:

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“(…) os observadores progressistasconcentram-se nas razões pelas quaisuma reforma nova e outra antiga te-rão uma interação positiva e não ne-gativa. A propensão a argumentar emfavor dessa espécie de interação afor-tunada e positiva, ou, tal como o cha-mo, apoio mútuo, é uma das marcas re-gistradas do temperamento progres-sista”.

Conclui o citado autor que“os reacionários exageram os danosque qualquer nova ação ou interven-ção causará à reforma mais antiga,enquanto os progressistas têm exces-siva confiança em que todas as refor-mas são mutuamente solidárias, me-diante o que eles gostam de chamarde princípio da sinergia” (HIRSCH-MAN, 1992, p. 127).

Diante dessas idéias, percebe-se que, noCongresso Nacional, acabam ocorrendo for-tes disputas, as quais, com auxílio da retóri-ca e de teses argumentativas como as defen-didas por Hirschman, determinam a realface de uma proposição legislativa.

5.5. Proposições aprovadas

É importante descrever as modificaçõesimplementadas pelo Congresso nos textosdas proposições mais relevantes para os finsdeste trabalho, bem como uma rápida ex-planação acerca do conteúdo de cada umadelas, de maneira a verificarmos as trans-formações ocorridas com os debates propor-cionados pelo Poder Legislativo.

Em primeiro lugar, deve-se ressaltar queas audiências públicas foram determinan-tes para as modificações implementadaspelo Congresso, em especial em relação àsemendas do relator da proposta na Câmarados Deputados, Deputado César Castro. ORelatório da Comissão Especial da Câma-ra, relativamente aos propósitos deste tra-balho, manifesta que a indefinição dos ór-gãos reguladores e fiscalizadores fragilizaos objetivos de imprimir maior credibilida-de ao regime de previdência complementar

e de fortalecimento da capacidade de regu-lação e fiscalização do Estado.

O Senado Federal, dado o extenso deba-te já ocorrido na Câmara, optou por não re-alizar novas audiências. Todas as alteraçõespropostas pelo substitutivo da Câmara fo-ram acatadas, sendo introduzido apenasum dispositivo de aprimoramento técnico(relativo ao instituto da portabilidade).

Acerca do órgão regulador e fiscaliza-dor, a mudança em relação ao projeto apre-sentado pelo governo foi a seguinte:

I – Projeto de Lei do Governo:“Art. 75. A vinculação, as atribui-

ções e demais aspectos relativos aosórgãos ou órgão regulador e fiscaliza-dor de que trata o art. 5 o desta Lei Com-plementar serão estabelecidos pormeio de lei, observado o disposto noinciso VI do art. 84 da ConstituiçãoFederal”.

II – Lei Complementar 109/2001:“Art. 74. Até que seja publicada a

lei de que trata o art. 5 o desta Lei Com-plementar, as funções do órgão regu-lador e do órgão fiscalizador serãoexercidas pelo Ministério da Previ-dência e Assistência Social, por inter-médio, respectivamente, do Conselhode Gestão da Previdência Comple-mentar (CGPC) e da Secretaria de Pre-vidência Complementar (SPC), relati-vamente às entidades fechadas, e peloMinistério da Fazenda, por intermé-dio do Conselho Nacional de SegurosPrivados (CNSP) e da Superintendên-cia de Seguros Privados (SUSEP), emrelação, respectivamente, à regulaçãoe fiscalização das entidades abertas”.

A questão do órgão regulador e fiscali-zador será objeto de lei específica e, segun-do a opinião do governo à época, não have-rá prejuízos da organização legal vigente,seja no que se refere às entidades abertas,seja no que se refere às entidades fechadas.Certamente a intenção era de iniciar, ime-diatamente após a publicação da lei com-plementar, a tramitação do projeto de lei

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específico sobre o órgão regulador e fis-calizador.

Entretanto, esse suposto vácuo legal dei-xou desconfortáveis os demais agentes en-volvidos e, especialmente, os parlamenta-res. Novamente, ao longo do processo legis-lativo nas duas Casas do Congresso, nãoobservamos qualquer articulação políticaem torno de uma proposta de órgão regula-dor e fiscalizador; ao contrário, houve umagrande ausência do governo nesse particu-lar. Na verdade, apesar do discurso em de-fesa de um órgão dessa categoria na exposi-ção de motivos, o próprio corpo do projetodeixou margem para dúvidas em relação apossíveis “vazios legais” caso o projeto fos-se aprovado na sua forma original.

Entendemos que essa leniência do go-verno não foi simplesmente reflexo de faltade habilidade política ou incapacidade ar-gumentativa. Como veremos adiante, existea possibilidade de disputas interburocráti-cas, envolvendo Ministério da Previdênciae o poder de veto do Ministério da Fazenda,terem minado qualquer disposição da Presi-dência da República em apresentar o projeto.

6. Regulamentação do marco legal

A participação do Poder Executivo noprocesso legislativo também pode ser con-siderada por meio da edição de normas re-gulamentares, igualmente criadoras de re-gras gerais, de maneira a fazer cumprir asleis aprovadas no Congresso.

Tal participação, outrossim, é explicadapela complexidade que envolve o tema pre-videnciário, tornando-se materialmente im-possível para o legislador ordinário prevertodas as possíveis mutações sociais de for-ma a atender interesse público, o qual per-meia a prestação de serviços e as atividadesdo mercado regulado.

Lembra-nos Menezello (2002, p. 121):“(...) deparamo-nos com o fato de quenovas relações jurídicas passam a serdisciplinadas por comandos infrale-gais que devem ser legítimos, válidos

e eficazes, ou seja, está ocorrendo ajuridicização de várias disciplinasque antes estavam fora do campo doDireito”.

Portanto, as delegações são necessáriasdevido à multiplicidade de fatores e à im-possibilidade de que o Congresso tenha osconhecimentos e a experiência necessáriospara legislar exaustivamente.

Nesse sentido, a autora ainda acrescenta:“(...) o legislador, no momento da ela-boração de cada uma das leis de re-gência das agências, optou, como po-lítica legislativa, por legislar por meiode preceitos de ordem geral, determi-nando que as especificidades de cadasetor devam ser reguladas pelas agên-cias mediante a aprovação de atos nor-mativos obrigatórios” (MENEZELLO,2002, p. 122).

Assim, ainda afirma Menezello que qual-quer ato regulatório – ato normativo secun-dário – que pretenda disciplinar direitosdeve originar-se e estar submetido aos dita-mes da legislação aprovada pelo Poder Le-gislativo.

Tais observações são importantes, pois,em última instância, a efetividade da refor-ma é alcançada ou não conforme a sua re-gulamentação. Portanto, torna-se importan-te verificar o grau de adequação das nor-mas de hierarquia inferior à lei complemen-tar, bem como o processo de articulação po-lítica que envolveu tal processo.

É interessante ressaltar que, até o ano de1999, o referido conselho funcionou de ma-neira errática, apresentando uma “produção”normativa pequena. Sobre esse panorama,deve-se, no entanto, evidenciar que a atuaçãomais efetiva do Estado sobre a atividade dosfundos de pensão iniciou-se a partir de 1994.Além disso, boa parte das atividades doCGPC cingiram-se ao julgamento de recur-sos administrativos oriundos de autos de in-fração expedidos pela SPC, o que ocupou sig-nificativa parte da agenda do conselho.

Ainda assim, como ficou constatado notexto da Lei Complementar no 109, de 2001, o

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CGPC permaneceu como órgão normativodas atividades dos fundos de pensão.

O instrumento utilizado pelo CGPC nasua atividade regulamentar é a resolução,cujas determinações podem ser desdobra-das em normas de caráter eminentementetécnico, tais como as instruções normativasutilizadas pela SPC. Coube ao CGPC deba-ter e decidir sobre determinados aspectos,especialmente os relativos à figura do insti-tuidor e aos quatro institutos que devem fa-zer parte dos planos de benefícios (portabi-lidade, Benefício Proporcional Diferido, res-gate e autopatrocínio), de forma a expedirresoluções que dispusessem em maioresdetalhes os preceitos da Lei Complementarno 109, de 2001.

É interessante, antes de analisarmos commais detalhes as resoluções, contextualizaro ambiente decisório com que se revestiu oCGPC ao longo dos debates que resultaramnas normas vigentes.

O referido colegiado somente iniciouseus trabalhos de regulamentação da leicomplementar no ano de 2002. Contribuiupara esse atraso a sucessiva troca de Minis-tros de Estado e, principalmente, de Secre-tários de Previdência Complementar, res-ponsáveis diretos pela agenda do colegia-do15. Apesar disso, os trabalhos foram des-tacados pelo Ministério da Previdência e As-sistência Social (MPAS) como a prioridademáxima para o CGPC no ano de 200216. Aestratégia adotada foi a discussão e aprova-ção de cada inovação em separado, de for-ma a garantir a aprovação até o final domandato do Presidente da República.

A primeira minuta de resolução foi apre-sentada em abril de 2002 e versou sobre por-tabilidade. Sua votação aconteceu apenasao final de junho e revestiu-se de muita ten-são. Na sua 66a reunião, ficou evidente osurgimento de uma clivagem no CGPC: ogrupo formado pelos representantes do go-verno e o grupo dos representantes dos de-mais atores. A minuta foi apresentada pelaequipe da SPC e foi duramente criticada pelosegundo grupo, que manifestou contrarie-

dade perante o bloco do governo17. Nessecontexto, foi aprovada a Resolução n o 9, pu-blicada em 27 de junho de 2002.

A segunda resolução aprovada foi a re-ferente à figura do instituidor. Também nes-sa reunião, as fissuras abertas pelas discus-sões sobre portabilidade não se cicatriza-ram. As tensões ainda permaneceram laten-tes, tendo em vista o choque entre os gruposdo setor público e do privado. Novamente,prevaleceu boa parte do texto de iniciativada SPC. O texto aprovado foi publicado em17 de setembro de 2002, como Resolução no

12 do CGPC.As demais resoluções foram votadas em

um clima de maior tranqüilidade, dado omaior consenso existente entre os dois gru-pos relativamente ao BPD (Resolução no 13,de 2 de outubro de 2002) e ao resgate. Im-portante ressaltar que a última resoluçãoaprovada pelo CGPC no ano de 2002, a re-lativa ao instituto do resgate, inexplicavel-mente, não foi sequer publicada, não permi-tindo que seus dispositivos tivessem qual-quer efeito sobre o mercado.

O ano de 2003 serviu para consolidar aregulamentação aprovada no ano anterior,redefinindo em parte os dispositivos apro-vados. Isso foi possibilitado pela iniciativado governo de redefinir sua postura, procu-rando retomar a adesão do setor privado àsdecisões do governo, principalmente doCGPC. Para isso, procurou reequilibrar opoder de voto e a composição do conselhoem um número menor de grupos de interes-se (Ver Tabela 1, na Seção 7).

7. Ineficiência institucional

Como se pôde observar, o momento daregulamentação da Lei Complementar no

109, de 2001, foi ilustrativo, na medidaem que se evidenciaram problemas insti-tucionais que, de alguma forma, colabo-raram para a maior lentidão da publica-ção das regras essenciais para o funciona-mento dos comemorados avanços legais. Daí,revela-se um problema fundamental, princi-

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palmente no que diz respeito à delegação depoderes e ao processo democrático.

Sobre essa questão, Sérgio Bruna (2003,p. 57) observa que:

“a ação cada vez mais presente do Po-der Executivo sobre a economia,abrangendo inclusive o exercício defunções normativas, criou um vaziono que diz respeito aos modos de legi-timação dessa nova modalidade deatuação estatal, principalmente tendoem vista a forma pela qual deva serrealizado o controle das novas fun-ções da administração, pois os novosagentes normativos são desprovidosda responsabilidade política tradici-onalmente conferida aos representan-tes políticos do processo eleitoral”.

Portanto, uma das questões relativas àregulação é identificar quais indivíduos ougrupos de indivíduos são capazes de utili-zar o Estado para alcançar seus interesses,ou quais são aqueles selecionados pelo Es-tado para serem usados para a consecuçãodos interesses de outrem (BRUNA, 2003).Nesse sentido, nossa atenção volta-se parao CGPC, seu significado e seus conflitos, bemcomo as burocracias ligadas aos Ministéri-os da Fazenda e da Previdência Social.

7.1. Conflito interburocráticodentro do órgão normativo

Uma das características principais doCGPC, como pudemos verificar, é a co-par-ticipação de agentes públicos e agentes pri-vados, com a vantagem para o Poder Execu-tivo, dada a flexibilidade oferecida pela lei,de publicar, a qualquer momento, novo De-creto alterando a composição daquele Con-selho, algo que aconteceu em outras cincooportunidades, sendo a última em 2003, noinício do mandato do Presidente Luís InácioLula da Silva.

Como se verifica no Quadro 1, a compo-sição do CGPC expandiu-se de maneira sig-nificativa, passando, gradativamente, a in-corporar a burocracia atuante na área eco-nômica do governo (Banco Central, CVM,Susep, MPOG), a reforçar a equipe do pró-prio MPAS com as representações adicio-nais da SPC e da SPS, bem como a elevar onível de representatividade dos atores domercado de previdência fechado, com des-taque para a Associação Brasileira das En-tidades Fechadas de Previdência Privada(ABRAPP), entidade que se coloca comoprincipal interlocutor dos fundos de pen-são.

Quadro 1 – Composição do CGPC – Decretos PresidenciaisDecreto no 607/92 Decreto no

1.114/94 Decreto no 2.774/98

Decreto no 4.003/2001

Decreto no 4.678/2003

Ministro MPAS Ministro MPAS Ministro MPAS Ministro MPAS Ministro MPAS Secretário SPC Secretário SPC Secretário SPC Secretário SPC Secretário SPC

Representante MiniFaz

Representante MiniFaz

Representante MiniFaz

Representante MiniFaz

2 Representantes Fundos de Pensão

2 Representantes Fundos de Pensão

2 Representantes Fundos de Pensão

Representante dos Fundos de Pensão

Representante dos Fundos de Pensão

2 Representantes Participantes

2 Representantes Participantes

2 Representantes Participantes

Representantes Participantes

Representante Participantes

2 Representantes Patrocinadoras

2 Representantes Patrocinadoras

2 Representantes Patrocinadoras

Representante Patrocinadoras

Representante Patrocinadoras / instituidores

ABRAPP ABRAPP ABRAPP ABRAPP ABRAPP Representante SPC Representante SPC Representante SPC

2 Representantes SEPLAN

2 Representantes Minist. Planej.

Representante MPOG

Representante MPOG

INSS INSS - Banco Central Banco Central Banco Central CVM CVM CVM Representante SPS Representante SPS Representante SPS Representante SPS IBA IBA IBA/ANCEPP Susep APEP

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Siglas Utilizadas: MiniFaz – Ministério da Fazenda; ABRAPP – Associação Brasileira dasEntidades de Previdência Privada; SEPLAN – Secretaria de Planejamento da Presidência daRepública; CVM – Comissão de Valores Mobiliários; IBA – Instituto Brasileiro de Atuária; SEST– Secretaria de Controle das Estatais; MPOG – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;SPS – Secretaria de Previdência Social; ANCEPP – Associação Nacional dos Contadores dasEntidades de Previdência Privada; APEP – Associação das Patrocinadoras Privadas.

A composição do CGPC a partir de 2001pode ser entendida como um movimentoestratégico de alguns participantes, especi-almente os que estiveram nas audiênciaspúblicas no Congresso, na tentativa de tam-bém influenciar a posterior regulamentaçãoda lei. Em resposta, o governo, buscandorevestir de maior legitimidade as decisõesdo CGPC, incorporou naquele colegiadodois integrantes que participaram ativamen-te do período de tramitação da lei comple-mentar: a Susep (como membro do governo)e a APEP (agregando a participação do se-tor privado).

Mesmo garantindo a maioria da compo-sição, o Governo, nessa tentativa de “demo-

cratizar” a participação do CGPC, provo-cou inchaço da estrutura desse órgão, cri-ando sérias dificuldades, como as que pu-demos observar na regulamentação da LeiComplementar no 109, de 2001.

Observa-se, pela Tabela 1, que a compo-sição de forças, que não são necessariamen-te atreladas ao número de votos, alterou-seao longo do tempo, conforme as estratégiasadotadas pelos agentes e pelo governo. Nes-sa perspectiva, considera-se grupo de inte-resse cada Ministério representado, osfundos de pensão, os participantes, os pa-trocinadores e os representantes de outrasclasses.

Tabela 1 – Poder de voto e representatividade no CGPC

Em várias oportunidades, a composiçãodo CGPC privilegiou alguns grupos de in-teresse, concedendo-lhes maior poder devoto. Considerando o ano de 2001, destaca-mos os seguintes grupos:

a) Ministério da Previdência Social – 3votos (4 votos se o Ministro do MPS estiverpresidindo as reuniões);

b) Ministério da Fazenda – 4 votos (5votos se considerarmos o MPOG, conformea conjuntura do governo anterior);

c) Fundos de pensão – 2 votos.

Nesse sentido, é válido levar em conta ahipótese de que os agentes do governo to-mam parte das decisões do CGPC, compar-tilhando dos sucessos e dos insucessos comos agentes privados.

Sobre os movimentos estratégicos, cola-bora Dixit (1996, p. 30, 31) nos seguintes ter-mos:

“Podemos ver cada decisão políti-ca não como uma escolha feita paramaximizar a função de bem estar so-cial, mas como um episódio ou jogo

Setor Público Setor Privado Total

Normas Votos Grupos de Interesse Votos Grupos de

Interesse Votos Grupos de Interesse

Decreto no 81.240/78 7 3 2 1 9 4 Decreto no 607/92 2 1 8 3 10 4 Decreto no 1.114/94 10 3 8 4 18 7 Decreto no 2.774/98 10 3 8 4 18 7 Decreto no 4.003/2001 9 3 6 4 15 7 Decreto no 4.678/2003 5 3 4 3 9 6

Fonte: elaboração própria

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de uma competição, com regras e ins-tituições já estabelecidas, mas queadmite espaço para manobras para re-alizar movimentos estratégicos capa-zes de afetar ou alterar futuras regrase instituições”.

O uso da estrutura institucional dual (ór-gão regulador/órgão fiscalizador) nessesúltimos anos parece enquadrar-se na ques-tão dos mecanismos institucionais auto-re-forçantes defendidos por Douglass North(1990), que fazem com que uma matriz ins-titucional permaneça locked in (uma vez al-cançada uma solução, é difícil sair dela) ecrie path dependence (“trajetória de dependên-cia”). Esses mecanismos são centrais noscomportamentos das organizações e emsuas perspectivas de mudanças, pois sãoeminentemente conservadores, mantenedo-res do status quo.

Uma vez escolhida uma opção de funci-onamento, mesmo que as instituições exis-tentes não sejam as melhores para gerar, comefetividade, o desenvolvimento do setor,como há retornos institucionais crescentespara os grupos de interesse, a tendência éde que elas persistam. Nesse caso, é possí-vel haver mudanças institucionais margi-nais e, ainda assim, a partir dos arranjos jáconstituídos (TOYOSHIMA, 1999).

Assim, as mudanças institucionais queforam implementadas, ou seja, alteração dosmembros CGPC, das rotinas de funciona-mento interno desse colegiado e todas asnormas que surgiram da interação com aSPC, deram-se exclusivamente com base naestrutura órgão regulador-executor, geran-do, muitas vezes, medidas tão-somente in-crementais para o funcionamento do mer-cado de fundos de pensão.

Se as instituições desenvolvidas não fo-ram necessariamente eficientes para o ple-no desempenho da previdência privada,isso provavelmente se deve aos arranjos ins-titucionais que foram moldados, em grandeparte, pelo conflito de interesses daquelesque possuem poder de barganha, ou seja, osintegrantes do CGPC. Já a partir do momen-

to em que surgiu a oportunidade de refor-mulação da Lei no 6.435, de 1977, havia apercepção de engessamento do processo de-cisório, colocando em evidência questiona-mentos acerca da verdadeira representati-vidade do setor privado e dos participantesdentro do conselho.

Podemos utilizar-nos da mesma visãoque Dixit (1996, p. 30) apresenta sobre apolítica econômica, estendendo-a para a for-mulação de políticas públicas de maneirageral. Esse processo é visto como

“um jogo dinâmico, de condições in-certas e mutantes, e cujas normas sãoao menos parcialmente feitas pelosparticipantes tal como eles desejam.Cada participante tentará manipulara operação subseqüente do jogo paratentar conseguir resultados que favo-recerão seus próprios interesses”.

7.2. Projeto de uma agência reguladora

Segundo Sola, Garman e Marques (2002,p. 120),

“Deve-se reconhecer que, em um con-texto democrático, o principal requi-sito desse processo é um ato de dele-gação política de autoridade – dospolíticos para outros atores –, ato quecertamente pode ter conseqüênciasdesejáveis, desde que os formulado-res de políticas públicas incluam aquestão da transparência e da accoun-tability nesse ato de delegação”.

A criação e o funcionamento das autar-quias especiais, tais como as agências regu-ladoras, num processo contínuo de aperfei-çoamento das instituições democráticas, têmsido adotados como alternativa para umnovo arranjo institucional que permita mai-or percepção e sensibilidade na participa-ção da construção das normas regulatóriase na elaboração das decisões administrati-vas. Ademais, seria uma solução para o gra-ve problema da descontinuidade adminis-trativa provocada pela grande circulação deMinistros e Secretários de Estado, bem comopara a dificuldade de se preservar a “me-

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mória” do órgão, elemento essencial paraqualquer desenvolvimento da gestão do sis-tema.

Ainda assim, como pudemos verificar, aalternativa institucional das agências regu-ladoras não prosperou para o segmento dosfundos de pensão. Há boa possibilidade denão ter ocorrido consenso dentro do gover-no acerca da criação desse tipo de órgão.

À época, inclusive, foi divulgado pelaimprensa que havia estudos para a criaçãode uma superagência para fiscalizar e nor-matizar os mercados de seguros, previdên-cia privada (aberta e fechada) e de capitais.Tal proposta estaria sendo desenhada pelaequipe do então presidente do Banco Cen-tral, Armínio Fraga18, mas não prosperou.

Outro aspecto interessante a ser eviden-ciado, e que reforça a tese da disputa ou con-flito intragovernamental, é que a equipe doMPAS encaminhou à Presidência da Repú-blica, em 9 de março de 1999, ou seja, antesmesmo de ser enviado projeto de lei comple-mentar, projeto de lei que transformaria aSPC na Agência Nacional de PrevidênciaComplementar (ANPC)19.

Esse projeto propunha a criação da agên-cia que cuidaria exclusivamente de fiscali-zar e normatizar as atividades dos fundosde pensão. Seria uma autarquia especial nosmoldes das agências já criadas (Aneel, ANP,Anatel, etc), com autonomia administrativae financeira e estabilidade para os respecti-vos dirigentes.

A agência teria em sua estrutura umConselho Diretor (Diretoria) composto porcinco membros, que seriam nomeados peloPresidente da República, depois de aprova-dos pelo Senado Federal. Os membros doConselho Diretor, entre os quais seria defi-nido o Presidente da agência, teriam estabi-lidade no cargo, cujo mandato seria de qua-tro anos, e não poderiam, nos 24 meses queantecedessem à sua nomeação, ter mantidovínculo empregatício ou contratual com ór-gãos ou empresas patrocinadoras, assimcomo com fundos de pensão. Essas e outraslimitações buscariam assegurar para os ad-

ministradores da ANPC total independên-cia do setor.

Como alternativa ao CGPC, o projeto pre-via a criação de um Conselho Consultivoda Previdência Complementar, por meio doqual a sociedade participaria das decisõesda Agência. Seria composto por represen-tantes de órgãos governamentais (Ministé-rios da Fazenda, Planejamento, Orçamentoe Gestão, Banco Central, Cade, CVM, etc.),participantes de fundos de pensão, patroci-nadores, entidades, órgãos técnicos do sis-tema e de defesa do consumidor. Caberia aesse conselho tão-somente opinar sobre aspropostas de políticas e diretrizes governa-mentais para o sistema.

Como instrumento auxiliar para a parti-cipação da sociedade e para viabilizar o en-caminhamento e a solução das diversas de-mandas relativas aos fundos de pensão, oprojeto da ANPC previa uma Ouvidoria, cujopapel seria ouvir as reclamações e denúnci-as de qualquer cidadão ou entidade relati-vas a infringências a normas do sistema deprevidência complementar, bem como en-caminhá-las para a manifestação e provi-dências dos órgãos responsáveis. O Ouvi-dor seria nomeado pelo Presidente da Re-pública, para um mandato de dois anos, enão teria qualquer vinculação hierárquicacom os Conselhos Diretor e Consultivo, as-segurando, dessa forma, a autonomia técni-ca e organizacional para o exercício do cargo.

Finalmente, além de quadros técnicospróprios, a ANPC contaria com recursosprovenientes de uma taxa de fiscalização,suficientes para assegurar a sua autonomiaorçamentária e financeira.

Não resta dúvida de que, ao idealizar afigura de um órgão regulador e fiscalizadorque concentre poderes que antes eram com-partilhados, o governo entendeu que a es-trutura vigente não poderia atender aos prin-cípios propostos para um bom quadro nor-mativo (credibilidade, profissionalismo,transparência e estabilidade de regras). Ain-da assim, relembrando North (1990), se omecanismo de lock-in configurado pela exis-

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tência do CGPC vem atuando, significa di-zer que sua trajetória é significativa para adeterminação da estrutura institucionaldual, e esta, por sua vez, tem força para in-fluenciar a matriz institucional futura. A li-gação do passado com o presente e o futuroé dada pelo histórico, significando que asinstituições apresentam características depath dependence.

Observa-se, então, que a Lei Complemen-tar no 109, de 2001, não alterou a estruturainstitucional vigente no que tange à atua-ção do Poder Público, e não se pode afirmarque houve omissão. Pelo contrário, defende-mos que a decisão pela manutenção das es-truturas administrativas foi uma decisão degoverno, nitidamente influenciada pelos quepoderiam, em potencial, perder sua parcelade poder no âmbito da previdência privada.

Esse conflito interburocrático é compre-ensível, pois uma agência exclusiva paracuidar de previdência aberta e fechada se-ria um órgão que reuniria significativo po-der, o qual, ainda hoje, é partilhado entre osMinistérios da Fazenda e da Previdência So-cial. Pergunta-se: a qual ministério estaagência estaria vinculada? Sem dúvida, ne-nhuma das partes abriria facilmente mãode suas influências, ainda mais em se tra-tando da transferência de atribuições forte-mente vinculadas a decisões normativas,para, tão-somente, participar do processoatuando de maneira consultiva.

Mesmo levando em conta que o projetoabrangeria apenas o segmento de previdên-cia complementar fechada, ambas as repre-sentações, do governo (principalmente oMinistério da Fazenda) e da iniciativa pri-vada, perderiam precioso espaço de mano-bra no processo decisório das normas paraos fundos de pensão. Isso também se justifi-ca pelo fato de que o CGPC é um órgão pou-co transparente, pois nunca divulgou ade-quadamente suas atas (que, até há poucotempo, ainda estavam disponíveis no sítiodo MPS na internet). As minutas de resolu-ção também não são apresentadas para asociedade antes das reuniões do conselho e

muito menos há apresentação de exposiçãode motivos (inclusive para os próprios con-selheiros).

Como braço normativo do sistema ope-rado pelos fundos de pensão, o CGPC gozade certa autonomia (do ponto de vista deci-sório), mas pouca responsabilização. Tal as-pecto está intimamente relacionado com aquestão da transparência.

Nesse sentido, Melo (2001, p. 58, 59) nosoferece duas importantes reflexões:

“Além disso, a forma de operaçãodessas agências – que é fortemente pu-blicizada – contrasta de forma mar-cante com aquela de órgãos regulado-res internos à burocracia, cujos proce-dimentos e processo decisório obede-cem a padrões de sigilo de informa-ções típicos de administração públi-ca ordinária”.

“O caso de baixa responsabiliza-ção e alto insulamento está associadoa situações nas quais os decisores de-têm alto grau de autonomia em umquadro de escassa capacidade decontrole social no sistema político”.

Para manter o equilíbrio entre a autono-mia dos reguladores e sua responsabiliza-ção, Villela e Maciel (1999, p. 17) propõemalgumas medidas, entre as quais destaca-mos: (i) estabelecer elevados padrões detransparência nos procedimentos regula-tórios; (ii) estipular exigências rigorosasna elaboração de relatórios, inclusive umrelatório anual; e (iii) estipular escrutíniolegislativo das propostas orçamentárias daagência.

Logo, nesse modelo, há sérios problemasde assimetria de informação e baixa eficiên-cia, tal como demonstra novamente Melo(2001, p. 61), no quadro da página a seguir.

Nesse caso, fica claro que os custos detransação hoje existentes devido às carac-terísticas da matriz decisória atual, taiscomo os conflitos entre os policymarkers, adificuldade de articulação intragoverna-mental, a assimetria de informação (dada apouca transparência do processo), não tive-

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ram a devida solução, o que impediu sua re-dução.

Na verdade, os agentes que são benefici-ados pela estrutura atual temem que qual-quer mudança institucional reverta para elesem outros custos (também transacionais)decorrentes da perda de poder (decisório epolítico), tais como construção de outroscanais de influência, necessidade de adap-tações relativamente a novas exigências re-gulamentares (principalmente por parte dosfundos de pensão), entre outros aspectos quecaracterizam custos transacionais (econô-micos e políticos). Sintetizando: arranjosinstitucionais que beneficiam determinadacota de agentes podem impor custos maisaltos a outros.

Portanto, percebe-se o porquê de o proje-to da ANPC sequer ter sido submetido à de-liberação do Legislativo.

Outro fator de significado valor paraavaliar a decisão de criar um órgão danatureza de uma agência estatal é o custoque a sociedade deverá suportar, em ter-mos financeiros, em troca dos benefíciosque seriam alcançados pela melhor super-visão e normatização dos fundos de pen-são. Nesse caso, o modelo adotado pelogoverno para esse tipo de organização édeterminante para saber se haverá “défi-cit” para a sociedade, sendo-lhe imposta umcusto de transação que supera os benefícios,ou se haverá “superávit”, revelando sucessoda nova estrutura de governança.

8. Ensaio de fortalecimento parao aparato de fiscalização e

regulação do Estado

Instituições podem ser estabelecidas deforma “ineficiente” para lidar com os cus-tos transacionais decorrentes de um relaci-onamento econômico, social e político, po-dendo, entretanto, ser consideradas “reme-diáveis”. Ainda assim, “a maior parte dasmudanças é lenta e gradual” (NORTH,1990, p. 89).

Utilizando idéia defendida por Monteiro(2004, p. 112), o uso de medidas provisóri-as, infelizmente, oferece “ao Executivo aoportunidade de selecionar políticas queestão mais próximas da escolha ideal dosburocratas”, implementando políticas se-gundo suas próprias preferências.

Não obstante as escolhas estarem longede ser maximizadoras, existem aspectos re-levantes que atenuam o modelo em vigor,obedecendo a uma lógica do tipo “secondbest” (SOLA; KUGELMAS, 2002).

Por meio da Medida Provisória no 233,de 30 de dezembro de 2004, o Governo criounova estrutura administrativa para fiscali-zar e regulamentar o mercado operado pe-los fundos de pensão, especialmente quan-to à criação de uma autarquia, a Superin-tendência Nacional de Previdência Comple-mentar – PREVIC. Por motivos alheios àsdiscussões atinentes à própria previdênciacomplementar, essa Medida Provisória teve

Responsabilização Baixa Alta

Baixa Baixa eficiência sistêmica

Baixa eficiência produzida por baixa capacidade institucional

Alta Baixa eficiência produzida por desincentivos ao desempenho

Eficiência

Del

egaç

ão

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Revista de Informação Legislativa308

seu prazo de vigência encerrado sem quehouvesse deliberação do Senado Federal,perdendo eficácia. Não obstante, seu texto éuma interessante amostra de vantagensconstruídas, bem como de ausências quepoderiam comprometer o fortalecimento dosistema, principalmente no que tange aocontrole social e equilíbrio de poderes.

8.1. Breve descrição da MedidaProvisória no 233, de 2004

O arranjo definido pela MPV no 233, de2004, estabeleceu três instâncias de atuaçãodo Poder Público no mercado operado pe-los fundos de pensão.

A primeira e mais importante foi a cria-ção da Superintendência Nacional de Pre-vidência Complementar (PREVIC), autar-quia de natureza especial, com autonomiaadministrativa, financeira, patrimônio pró-prio, vinculada ao Ministério da Previdên-cia Social. Teria como competência fiscali-zar e supervisionar os fundos de pensão,bem como executar as políticas para o regi-me de previdência complementar fechado.Para tanto, além de poder aplicar penalida-des nos termos da legislação pertinente,poderia expedir instruções e procedimen-tos para a aplicação das normas, bem comoefetuaria diversos tipos de autorizações, hojede atribuição da SPC, tais como as de cons-tituição e de funcionamento de fundos depensão, celebração de convênios, decreta-ção de intervenção e liquidação extrajudicial,e outras ações de sua área de competência.

A PREVIC foi apresentada com a seguinteestrutura: Diretoria Colegiada, Procurado-ria Federal, Ouvidoria e Corregedoria, alémde coordenações gerais de caráter técnico.A Diretoria Colegiada seria composta porum Diretor-Superintendente e quatro dire-tores, indicados pelo Ministro da Previdên-cia Social e nomeados pelo Presidente daRepública. Aos membros desse colegiadoseria vedado o exercício de qualquer outraatividade profissional, empresarial, sindi-cal ou de direção político-partidária, salvomagistério. A Procuradoria Federal Especi-

alizada teria seu quadro constituído porProcuradores Federais, vinculados à estru-tura da Advocacia Geral da União – AGU,com conhecimento sobre previdência priva-da, o que contribui para a profissionaliza-ção e a estabilidade dos quadros da admi-nistração previdenciária. Por fim, a Ouvi-doria, segundo a exposição de motivos daMPV no 233, de 2004, atuaria junto à Direto-ria, mas sem subordinação hierárquica aesta, o que lhe asseguraria, em tese, autono-mia e independência de atuação no cum-primento de suas atividades institucionais.

A MPV no 233, de 2004, previa o estabe-lecimento de metas de gestão e de desempe-nho para a PREVIC, mediante acordo cele-brado entre o Ministério da Previdência So-cial e a Diretoria Colegiada. Essas metasdurariam, no mínimo, um ano e seriam pe-riodicamente avaliadas e, conforme o caso,revisadas.

Além de dotações orçamentárias e recur-sos de convênios e acordos com organismosnacionais e internacionais, as receitas daPREVIC seriam constituídas principalmen-te pela Taxa de Fiscalização e Controle daPrevidência Complementar – TAFIC e doproduto da arrecadação de multas. A TAFICconstituiria uma contribuição recolhida tri-mestralmente dos fundos de pensão, cujofato gerador seria o montante de recursosgarantidores vinculados a cada plano debenefício administrado.

A MPV no 233, de 2004, previa, ainda,um quadro de auditores, que passaria dosatuais 92 para 300, além de a Superinten-dência poder contar com uma carreira a sercomposta por 120 especialistas de nível su-perior em Previdência Complementar; ou-tra, por 100 analistas de nível superior e mais80 técnicos de nível médio, totalizando umquadro de 600 servidores. Os atuais 230 ser-vidores da SPC seriam aproveitados e osdemais seriam contratados por concursopúblico.

Outro órgão novo seria a Secretaria dePolíticas de Previdência Complementar(SPPC), um desmembramento da atual SPC,

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e seria responsável pela elaboração de polí-ticas de governo e diretrizes para a Previ-dência Complementar, servindo de elo en-tre o Conselho Nacional de PrevidênciaComplementar e a PREVIC.

Por fim, seria criado o Conselho Nacio-nal de Previdência Complementar (CNPC),substituindo o atual Conselho de Gestão daPrevidência Complementar. Esse órgão se-ria responsável por fixar as políticas pro-postas pela SPPC e normatizar o sistema defundos de pensão. Foi restabelecida a estru-tura da Câmara de Recursos, com a finali-dade exclusiva de julgar os recursos refe-rentes a penalidades administrativas.

A MPV no 233, de 2004, estabeleceu umacomposição para o CNPC semelhante à atualcomposição do CGPC, adaptando-a aosnovos órgãos criados. Como novidades noconjunto de conselheiros, temos a inserção(i) do Diretor-Superintendente da PREVIC,(ii) do representante da Secretaria de Políti-cas de Previdência Complementar do Mi-nistério da Previdência Social e (iii) de re-presentante de instituidores de entidadesfechadas de previdência complementar.

A grande vantagem da composição doCNPC é que a composição de forças entreagentes públicos e privados está estabeleci-da na lei, atenuando a discricionariedadedo Executivo para determiná-la. Caberá tão-somente ao Presidente da República a liber-dade de nomear os representantes que ocu-parão lugares no conselho.

8.2. Avaliações e reflexões sobre a proposta

A MPV no 233, de 2004, inspirou-se namaioria das propostas do antigo projeto daANPC apresentado pelo MPAS em 1999.Entretanto, como pudemos verificar, o cus-to político de transação de arcar com umaagência que concentre poderes de fiscaliza-ção e de regulação foi por demais elevadopara as burocracias do Ministério da Fazen-da e para os demais agentes privados.

Além do motivo acima, o projeto daPREVIC foi montado com a forma de supe-rintendência provavelmente pelo fato de que

hoje se discute o poder de atuação e a inde-pendência das agências reguladoras exis-tentes, processo no qual se observa um gran-de movimento do Governo para retomar o po-der decisório dos Ministérios setoriais, parti-cularmente no desenho das grandes políti-cas e diretrizes nas grandes áreas de atuação.

Nesse sentido, a MPV no 233, de 2004,também seguiu alguns princípios que nor-tearam o Projeto de Lei no 3.337, de 2004, deiniciativa do Poder Executivo, que pretendeestabelecer uma espécie de lei orgânica dasagências reguladoras. Tal projeto contémdispositivos que reduzem a independênciadas agências em relação ao Poder Executi-vo, procurando, entre outras coisas, trans-ferir atribuições que hoje pertencem às agên-cias para os Ministérios e estabelecer ummaior controle social sobre as agências.

8.2.1. Manutenção dos poderes daadministração direta

Para evitar que o exercício de competên-cias de governo fosse realizado por umaagência independente, a MPV no 233, de2004, criou os três órgãos já citados, quedeverão trabalhar em sintonia: a PREVIC,como fiscalizadora e executora das leis e nor-mas; o CNPC, como órgão regulador e árbi-tro de penalidades administrativas; e a SPPC,como órgão responsável pela articulação daspolíticas públicas relativas ao sistema.

Tal matriz institucional tem por objetivoestabelecer maior coerência de políticas noconjunto do governo e evitar que funçõeslegislativas, executivas e judiciárias estejampresentes em um único órgão (a tese do “Es-tado dentro do Estado”). Como pudemosverificar, com a manutenção do binômio ór-gão regulador e órgão fiscalizador, haveriaenormes possibilidades de aberturas a gru-pos de interesses ou de conflitos internos,provocando forte déficit democrático e en-traves para o desenvolvimento do setor .

8.2.2. Contrato de gestão e desempenho

Essa iniciativa inspira-se no conceito deagências de atuação executiva, na medida

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em que coloca a autarquia na condição deexecutora de políticas traçadas mediantediretrizes ministeriais, em consonância coma estrutura administrativa a ser criada.

Com a introdução da figura do contratode gestão determina-se um padrão mais ob-jetivo para a avaliação do desempenho doórgão. Entretanto, para que mudanças degoverno não impliquem mudanças bruscasnas ações da PREVIC, os contratos de ges-tão devem ter como base a aderência dasatividades a uma diretriz estável.

Outra preocupação é a possibilidade deocorrerem choques exógenos entre a deci-são do regulador, baseada em informaçõesex ante, e a avaliação do Ministério, feita expost. Esses choques devem ser levados emconta quando a PREVIC for avaliada, o quepode tornar difícil apreciar suas decisões,pois nela estão envolvidos elementos desubjetividade.

Por isso, é útil ter algum mecanismo quefaça esses órgãos prestarem contas de suasações. Nesse sentido, o contrato de gestãodeverá aperfeiçoar o acompanhamento dagestão da PREVIC, promovendo maiortransparência e controle social. Tal necessi-dade é necessária, mesmo que implique umapossibilidade de perda de autonomia regu-latória.

Ainda assim, pode-se dizer que a MPVno 233, de 2004, apesar de conferir à socie-dade um instrumento de controle e de trans-parência de suas ações, não prevê a presta-ção de contas ao Congresso Nacional, ele-vando a possibilidade de o Poder Executivofazer ingerências no que concerne às ativi-dades de regulação sobre os fundos de pen-são.

Finalmente, como já se verificou, o ins-trumento dos contratos de gestão constituiuma maneira de aproximá-la do modelo deagência executora de políticas públicas. Emúltima instância, pode-se afirmar que o es-tabelecimento do contrato de gestão qualifi-ca a PREVIC como uma agência executiva,ou seja, ao instituto criado pela EmendaConstitucional no 19, de 4 de junho de 1998.

Agências executivas não são mais que au-tarquias ou fundações preexistentes, diplo-madas por intermédio de um decreto doPoder Executivo, que celebrem contrato degestão com a administração direta.

8.2.3. TAFIC

Sabe-se que esse tipo de instrumento éum dos fundamentos para assegurar a in-dependência efetiva das agências, garantin-do-lhes capacidade operacional condizen-te às suas responsabilidades. Entretanto,não é esse o caso em tela.

A criação de uma taxa para oferecer au-tonomia financeira à PREVIC faz transpa-recer, então, um vício de origem: que tipo deautonomia terá um órgão totalmente subor-dinado ao MPS? A resposta, que parece seróbvia, pode mascarar um objetivo totalmen-te estranho aos compromissos pela manu-tenção da higidez do sistema operado pelosfundos de pensão: o contingenciamentoimposto pelo Tesouro Nacional, muito pro-vavelmente para utilizar parte das receitasdos órgãos para fazer superávit primário.

A Medida Provisória prescreve no seuart. 14 que a TAFIC será “recolhida ao Te-souro Nacional”. Dessa forma, a indepen-dência para uso dessa taxa pela PREVIC équestionável, dado que a prática de contin-genciamento largamente utilizada pelo go-verno vem sistematicamente impedindo queas agências reguladoras façam uso efetivode toda sua fonte de recursos, prejudicandosua operação, bem como comprometendosua imagem, caso demonstre, em algum mo-mento, falhas de supervisão por condiçõesde funcionamento precárias. Dessa forma,mesmo não sendo uma agência reguladora“pura”, são atribuídos à PREVIC mecanis-mos semelhantes de autofinanciamento,bem como há imensa chance de se aplicaros instrumentos perversos de desvio de fi-nalidade de recursos. De se notar que o Pro-jeto de Conversão no 10, de 2005, aprovadopela Câmara dos Deputados, havia incor-porado no texto uma emenda que determi-nava o recolhimento da TAFIC diretamente

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aos cofres da PREVIC. Tal iniciativa, se nãofor solução, pelo menos impõe maiores re-sistências ao Tesouro.

8.2.4. Ouvidorias

De acordo com a exposição de motivos20,haverá um Ouvidor que atuará junto ao Con-selho Diretor sem subordinação hierárqui-ca e exercerá suas atribuições, sem acumu-lação com outras funções. Recomenda-seque o Ouvidor tenha acesso a todos os pro-cessos da PREVIC e que conte com o apoioadministrativo de que necessitar, competin-do-lhe produzir, periodicamente ou quan-do julgar oportuno, relatórios sobre a atua-ção da agência. Poderiam ser atribuições doOuvidor zelar pela qualidade dos serviçosprestados pela agência e acompanhar o pro-cesso interno de apuração de denúncias ereclamações dos interessados contra a atu-ação dela ou contra a atuação dos entes re-gulados. A transparência e o controle socialsobre a PREVIC serão beneficiados com aexistência do Ouvidor .

8.3. Ajustes possíveis

Entendemos que, apesar das dificulda-des hoje impostas sobre o Poder Legislativoem face do mecanismo quase impositivo dasmedidas provisórias, ainda é possível que oCongresso possa agregar boas contribui-ções ao aparato institucional proposto peloGoverno Federal.

A questão a ser verificada realça a im-portância da tensão entre delegação e respon-sabilização subjacente à criação de autarqui-as especiais ou agências independentes.

Descrevendo argumentos de Kiewet eMcCubbins (1991), Melo (2001) identificaum repertório de instrumentos que o Con-gresso pode utilizar para reduzir o custo dedelegação (agency losses) e aumentar a visi-bilidade das questões para a base de con-trole dos parlamentares. Nesse sentido, des-tacamos os seguintes:

a) screening, ou seja, filtragem de agentesdurante o processo de recrutamento parareduzir “seleção adversa”;

b) desenhos contratuais específicos,tais como incentivos para compensação epunição de comportamento, ou relationalcontracting em casos de “contratos incom-pletos”;

c) exigência de prestação de contas deta-lhada.

Utilizando essas noções, apresentamosalgumas contribuições para um futuro pro-jeto de lei do governo de agência reguladorado setor, de maneira a tornar crível e harmô-nica a nova ação regulatória e de fiscaliza-ção. Asseveramos que elas são compatíveisou até coincidentes com o antigo anteproje-to de lei de criação da Agência Nacional daPrevidência Complementar apresentadopelo Ministério da Previdência em 1999,proposta essa que consideramos ser menosparcial e mais permeável ao controle socialque a estrutura apresentada pela MPV no

233, de 2004. Outrossim, elas poderão serfatores de redução de custos de transaçãopolíticos, na medida em que podem favore-cer a diminuição da assimetria de informa-ção e prestigiar mecanismos mais democrá-ticos, via controle social e interpoderes.

8.3.1. Aprovação de dirigentespelo Senado Federal

Tal como acontece com as agências re-guladoras, seria recomendável que os dire-tores de uma agência para os fundos de pen-são se submetessem à sabatina do Senado,para terem confirmadas suas nomeações. Éimportante ressaltar que esse procedimentonão se dirige apenas às agências já existen-tes, mas a órgãos de grande relevância, taiscomo o Banco Central e a CVM, autarquiasvinculadas ao Ministério da Fazenda21. Por-tanto, dada a importância estratégica dosegmento de fundos de pensão em váriasdimensões da sociedade, seria relevante es-tabelecer o mesmo mecanismo para os diri-gentes da agência. Deve-se ressaltar que oOuvidor, por ser também indicado pelo Po-der Executivo, poderá estar com este com-prometido. Portanto, seria recomendável queo critério sugerido para a posse dos direto-

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res pudesse ser da mesma forma estendidoao Ouvidor.

8.3.2. Avaliação do contrato de gestão

O ideal seria atribuir ao Poder Legislati-vo um controle mais efetivo sobre as ativi-dades da agência, além do já previsto moni-toramento a ser exercido pela Casa Civil epelos Ministérios da Previdência Social e doPlanejamento, Orçamento e Gestão. Essecontrole poderá ser especialmente usadopara verificar a compatibilidade das açõesadotadas pelas agências com as políticasdefinidas para os setores regulados, alémde seguir preceito constitucional que atri-bui ao Congresso Nacional ou a qualquerde suas Casas a competência de fiscalizar econtrolar os atos do Poder Executivo, tarefaque requer amplo acesso a informações re-lacionadas a esses atos. Também é matériapassível de emenda por parte do Parlamento.

8.3.3. Consultas e exposição de motivos

Como valioso instrumento de controle so-cial e de transparência, a utilização da con-sulta pública poderia ser estendida aos atosnormativos da agência, previamente à to-mada de decisão pelos Conselheiros e pelaDiretoria Colegiada. Nesse sentido, a medi-da contribui para que a regulação seja efeti-va e busque a harmonia entre a proteção aosparticipantes e aos assistidos, o equilíbrioeconômico-financeiro dos fundos de pensãoe o equilíbrio atuarial dos planos de benefí-cio. Dessa maneira, seria um instrumentoinclusivo de formação e de legitimação depolíticas públicas na área previdenciária,sem afetar a autoridade executiva nas mãosdo poder público (SOLA; KUGELMAS;WHITEHEAD, 2002).

O ganho de transparência, no entanto,não ocorre sem custos. O dispositivo pode-ria trazer morosidade às decisões gerenci-ais das agências. Ademais, nem sempre apublicidade exigida pelos procedimentos daconsulta pública é compatível com decisõessobre determinados temas ou ações admi-nistrativas. Para evitar esse problema, as

consultas públicas poderiam, por exemplo,restringir-se às resoluções e a instruçõesnormativas da agência com repercussões di-retas sobre os participantes, resguardando-se as normas relativas a procedimentos es-tratégicos, tais como os de fiscalização. Esteúltimo ponto é extremamente importantepara garantir a transparência das agênciasa respeito de um assunto que interessa dire-tamente aos participantes/assistidos. Aotornar público o processo de revisão dosparâmetros ou dos dispositivos do plano,diminui-se o risco de que o regulador/fis-calizador seja benevolente com o regulado/fiscalizado. Além disso, deve-se estabelecerum prazo mínimo para as consultas.

Adjacente às consultas, um aspecto im-portante e que costuma ser negligenciadopelo braço normativo do segmento operadopelos fundos de pensão é a falta de exposi-ção de motivos das resoluções aprovadas.Como pudemos verificar ao longo deste es-tudo, a exposição de motivos é instrumentoimportante para tornar públicas as inten-ções do proponente, permitindo-se, inclusi-ve, que a participação na consulta públicaseja mais eficaz. Também não se deve dei-xar de lado o fato de que os atos normativosdevem ser devidamente avaliados à luz dosmotivos invocados, exigindo-se que hajauma conexão lógica entre os motivos alega-dos e as finalidades propostas, sob pena denão atender ao requisito de razoabilidade(BRUNA, 2003).

Portanto, combinando-se elementos deconsulta pública com a exigência de umaexposição de motivos, a administração pú-blica estará evitando que seus procedimen-tos normativos sejam despidos de sentidoprático ou legítimo.

Tal sugestão, além disso, não é original.Os arts. 40 e 42 da Lei no 9.472, de 1997,obrigam a Anatel a submeter minutas dosatos normativos que pretenda editar a umprocedimento de consulta pública, justifi-cando a decisão que vier a adotar por meiode uma exposição de motivos. Deve-se res-saltar, ainda, que esse caso não é único no

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que tange à existência de dispositivos legaisque determinem, de alguma forma, mecanis-mos de consulta pública para edição de atosnormativos22.

9. Considerações finais

Ao longo deste trabalho, pretendeu-sefazer uma revisão do processo de mudançado marco regulatório no tocante aos dispo-sitivos que disciplinam o segmento opera-do pelas entidades fechadas de previdên-cia complementar (fundos de pensão), pro-curando acompanhar desdobramentos téc-nicos e políticos desde a apresentação daproposta pelo Executivo até a fase de regu-lamentação, no mesmo poder.

Com relação às mudanças empreendi-das nos dispositivos legais, percebeu-se queo alcance pretendido esteve longe de ser al-cançado, pelo menos da forma propagadapelas autoridades do governo; levando-seem conta que as mudanças, mesmo demons-trando aspectos de modernização, não re-presentaram rupturas com a situação ante-rior. Assim, quaisquer efeitos delas resul-tantes deverão acontecer em um prazo detempo relativamente mais longo.

Nessa visão, Dixit (1996, p. 26) afirmaque “mudança de regras ou normas freqüen-temente falham quando pretendem realizarum completo rompimento com o passadoantes esperado”. O autor ainda reforça seuargumento citando uma observação similarà de North (1990) ao dizer que “mudança(r)evolucionária nunca é revolucionária talcomo desejam seus defensores”.

Os efeitos das normas também são senti-dos mais lentamente, tendo em vista aquiloque podemos chamar de inércia das normassociais informais, que permeiam todo o pro-cesso político e decisório. Nesse sentido, aabordagem dos custos transacionais é útilna medida em que se percebeu a implicaçãodesses custos não apenas na esfera econômi-ca, mas principalmente na esfera política.

Outro elemento importante que devemosevidenciar é a utilidade da metodologia da

avaliação do discurso para aprimorar a per-cepção dos agentes dentro do processo po-lítico e decisório. Por ela pôde-se perceberos reais objetivos, as contradições e foi pos-sível desvendar as estratégias para a ade-são dos diversos “auditórios” envolvidosna temática da previdência complementar.

Verificando as etapas do processo, foipossível perceber o papel de diversos agen-tes interessados ou na mudança ou na con-servação do status quo.

“Os grupos (de interesse) têm par-ticularmente fortes motivos para for-mar coalizões para interceder pelacontinuidade da política. Assim, apolítica pode persistir por um longoperíodo a despeito dos grandes cus-tos que infligem o resto da economia”(DIXIT, 1996, p. 26).

Como se poderia esperar, os agentes pri-vados, de maneira geral, mantiveram umapostura mais conservadora. No entanto, aocontrário do senso comum, foi observadoque o movimento dentro do governo se divi-diu em duas instâncias. No campo da mo-dernização dos parâmetros técnicos, o mo-vimento foi majoritariamente a favor dasmudanças, mas, no campo da organizaçãoinstitucional, a burocracia governamentalsofreu uma dissensão, revelando conflito deinteresses, principalmente entre o Ministé-rio da Fazenda e o da Previdência Social.

Assim, matrizes institucionais mais mo-dernas que as utilizadas, tais como a im-plantação de uma agência reguladora parao segmento, foram totalmente impedidas,dado o impasse interno do governo e a açãodos grupos de interesse privados. SegundoNorth (1990), parte-se do pressuposto de quea luta dos agentes econômicos por diferen-tes formas de organização leva a um equilí-brio das instituições, que não é, contudo, ne-cessariamente eficiente. Portanto, não deveser necessário que todos estejam obrigatori-amente felizes com o arranjo institucional,mas tão-somente que se julgue que o custode qualquer mudança não se justifique emfunção do benefício esperado.

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Não obstante, as limitações institucio-nais que guiaram os movimentos estratégi-cos dos agentes conduziram a uma tentati-va de equilíbrio, consubstanciado pelaproposta de criação da SuperintendênciaNacional de Previdência Complementar(PREVIC). Como se observou, a iniciativareforça substancialmente o aparato de su-pervisão dos fundos de pensão, deixando-se, entretanto, a esfera das decisões norma-tivas pluralmente compartilhada, de manei-ra semelhante ao que vem sendo feito.

Ainda assim, existem alguns gargalosque devem ser vencidos, de maneira a nãopermitir que a inércia dos arranjos informaisestabeleça novos mecanismos auto-refor-çantes (lock in e path dependence), impedindoque novos avanços sejam alcançados.

Finalmente, espera-se que as contribui-ções oferecidas por este trabalho possam co-laborar para o debate dentro do Congressosobre a MPV no 233, de 2004. Todas elas vi-sam ao reforço democrático da ação dosnovos órgãos propostos, por meio da insti-tuição de mecanismos de controle entre osPoderes, e de transparência, de forma a per-mitir a elevação do padrão da política deação regulatória dos fundos de pensão.

Notas1 De acordo com a Superintendência de Seguros

Privados (Susep), o número de participantes esta-va assim distribuído entre os diversos produtos:1,65 milhão vinculados às EAPC, 3,7 milhões àssociedades seguradoras e 1,85 milhão vinculados aplanos do tipo Plano Gerador de Benefícios Livre(PGBL).

2 Instituições são as regras do jogo da socieda-de ou, mais formalmente, são as restrições que es-truturam a interação humana. Elas são compostaspor regras formais (estatutos, regulamentos), in-formais (convenções, normas de comportamento ecódigos de conduta auto-impostos) e o enforcementde ambas (NORTH, 1990). As instituições possu-em várias funções: reduzir as incertezas, introduzirregularidade e estabilidade ao dia-a-dia, servir deguia para as interações humanas, propagar infor-mação, determinar as estruturas de incentivos eajudar as pessoas a decodificar o contexto socialde forma a torná-las aptas para fazer escolhas etomar decisões.

3 A não-autonomia dos agentes privados en-contra significado “na extensão em que eles têmseus conjuntos de escolhas condicionados por umavariedade de decisões estabelecidas no processopolítico em que se define o fluxo de regulação oupolítica econômica (...)” (MONTEIRO, 2004, p. 17).

4 Entidades sem fins lucrativos que comercia-lizavam planos prometendo benefícios tecnicamenteinsustentáveis.

5 Mesmo ocorrendo um expressivo crescimentodo número de entidades de previdência complemen-tar patrocinadas pelo setor privado, em termos devolume de recursos, o setor estatal sempre foi am-plamente majoritário. Hoje, 63% do patrimônio to-tal cabe às entidades patrocinadas por empresaspúblicas, enquanto 37% dos ativos do segmentocabem às privadas (Dados MPS/SPC, mar-2004).

6 Dois traços básicos podem ilustrar esse mo-delo: (i) centralização autoritária do exercício depoder no Executivo; e (ii) aprofundamento da frag-mentação do Estado (CODATO, 1997).

7 Esse movimento se assemelhou, em algunsaspectos, ao movimento de reação da grande bur-guesia brasileira contra a centralização das deci-sões de política econômica, na figura do antigoConselho de Desenvolvimento Econômico (CDE)criado por Geisel.

8 O conjunto de pessoas que o “orador” desejainfluenciar mediante seu discurso.

9 De acordo com Melo (2002), “grosso modo,path dependency descreve o viés criado pelo estadode coisas num momento inicial (ou anterior a deter-minados fenômenos) sobre o curso futuro dos acon-tecimentos. O conceito foi formulado (...) para ex-plicar porque algumas instituições adquirem ‘resi-liência’ ao longo do tempo”.

10 Aqui entendido como o uso de terminologiasda ciência econômica utilizadas em diversos meiosde comunicação e não a linguagem técnica e especí-fica que somente os estudiosos da economia com-preendem.

11 Ver estudo Uma simulação do crescimento dosistema de previdência complementar com o ingresso dos“instituidores”, publicado na revista ConjunturaSocial, editada pelo Ministério da Previdência Soci-al (v. 10, n. 3, jul/ago/set, pp. 108, 1999).

12 Diário da Câmara dos Deputados, 2/12/1999, p. 01847.

13 O IBA não possui competência legal para afiscalização do exercício profissional do atuário.

14 Apenas a partir do Decreto no 4.678, de 2003,o IBA não foi mais convidado a participar do CGPC.

15 A partir da gestão do Ministro Waldeck Or-nélas, os trabalhos acerca da Lei Complementarforam iniciados, com auxílio da equipe do Secretá-rio de Previdência Complementar Paulo Kliass. Emdezembro de 2000, assumiu a SPC Solange Paiva,ainda na gestão de Waldeck Ornélas, durante o

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processo de tramitação da Lei Complementar noCongresso. Logo em seguida, o Ministério foi assu-mido por Roberto Brant. Apesar de ter sido manti-da na SPC, Solange Paiva não conseguiu ficar emsintonia com os trabalhos daquela pasta exigidospelo Ministro. Então, assumiu José Roberto Savóia,à época Secretário-Adjunto, o qual dirigiu a SPCaté o final do mandato do Presidente FernandoHenrique Cardoso. Nesse ínterim, assumiu o Mi-nistério José Cechin, no âmbito da última reformaministerial do mandato de Fernando Henrique, ba-seada em critérios mais técnicos, com baixo impac-to político sobre a relação entre os partidos. JoséCechin era Secretário Executivo do Ministério daPrevidência Social desde 1995. Assim, ao longo decinco anos, tivemos três ministros e três secretáriosda SPC. Mesmo levando em conta que houve avan-ços na atuação do Estado sobre o mercado opera-do pelos fundos de pensão, a circulação de dirigen-tes é fator inibidor de qualquer processo de apri-moramento institucional.

16 Fonte: Ata da 64a Reunião do CGPC – MPAS.17 A votação em bloco não significou ausência

de sugestões ou aprimoramentos por parte dosdemais integrantes do governo. A posição em blocofoi eminentemente política.

18 Reportagem da Folha de São Paulo, CadernoFolhaInvest, de 11 de junho de 2001.

19 Essa informação foi publicada na RevistaConjuntura Social, p. 42-43, jul. set. 1999.

20 No texto da MP, não há qualquer dispositivoque esclareça o funcionamento da Ouvidoria. Pro-vavelmente, o Poder Executivo o fará por meio dedecreto.

21 Para o Banco Central, existem dois dispositi-vos constitucionais que estabelecem o procedimen-to de aprovação de nomes para a diretoria e Presi-dência: (i) o art. 52, inciso III, alínea “d”, determi-nando que é competência privativa do Senado Fe-deral aprovar, por voto secreto, após argüição pú-blica; e (ii) o art. 84, inciso XIV, que estabelece acompetência privativa do Presidente da Repúblicapara nomear esses dirigentes, após aprovação doSenado Federal. Para a CVM, a aprovação do Pre-sidente e dos diretores está estabelecida no art. 6o

da Lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, com aredação dada pela Lei no 10.411, de 26 de fevereirode 2002.

22 Outros exemplos podem ser verificados pe-los seguintes dispositivos: (i) art. 4o, § 3o, da Lei no

9.427, de 1996 (lei da Aneel); (ii) art. 19 da Lei no

9.478, de 1997 (lei da ANP).

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