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1 UNIVERSIDADE FEEVALE Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais Linha de Pesquisa em Memória e Identidade Nível de Mestrado ROGÉRIO DE VARGAS METZ COMIDA E CULTURA: A TRAJETÓRIA DO DISTRITO DE FORQUETA Novo Hamburgo 2019

ROGÉRIO DE VARGAS METZ · para um italiano e para os descendentes dos imigrantes, evidenciado na forma como a comunidade preza por sua terra e o alimento que ela proporciona. O objetivo

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UNIVERSIDADE FEEVALE

Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais

Linha de Pesquisa em Memória e Identidade

Nível de Mestrado

ROGÉRIO DE VARGAS METZ

COMIDA E CULTURA: A TRAJETÓRIA DO DISTRITO DE FORQUETA

Novo Hamburgo

2019

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ROGÉRIO DE VARGAS METZ

COMIDA E CULTURA: A TRAJETÓRIA DO DISTRITO DE FORQUETA

Dissertação de Mestrado apresentada como requisito à obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais, pela Universidade Feevale.

Orientador: Prof. Dr. Cleber Cristiano Prodanov

Novo Hamburgo

2019

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ROGÉRIO DE VARGAS METZ

Dissertação do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, com título Comida

e cultura: a trajetória do distrito de Forqueta, submetida à banca examinadora como

requisito parcial necessário à obtenção do título de Mestre.

Aprovada por:

_________________________________________

Profª. Drª. Cristina Ennes da Silva

Universidade Feevale

_________________________________________

Profª. Drª. Denise Amon

_________________________________________

Prof. Dr. Cleber Cristiano Prodanov (Orientador)

Universidade Feevale

Novo Hamburgo, 26 de fevereiro de 2019

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À Luís, pela dedicação,

companheirismo e paciência de sempre.

À Fran, Iri e Guile pelo apoio e incentivo.

Ao professor Cleber, pela longa

caminhada de ensinamentos, e ainda os

que estão por vir.

Á Cris e Kati pela amizade e ouvidos

sempre abertos.

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“Eu fecho meus olhos e quero entender onde estou, cozinhar é

sobre emoção, é sobre cultura, é sobre amor, é sobre memória”

- Massimo Bottura -

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RESUMO

Esta dissertação procurou estudar a cultura através da gastronomia da comunidade

de Forqueta em Caxias do Sul-RS. O tema foi escolhido pois são grandes as

referências à cultura italiana ainda hoje no distrito de Forqueta. Soma-se a isso o

entendimento da importância que o alimento, que será transformado em comida, tem

para um italiano e para os descendentes dos imigrantes, evidenciado na forma como

a comunidade preza por sua terra e o alimento que ela proporciona. O objetivo foi

analisar a cultura gastronômica da comunidade de Forqueta e identificar a formação

da sua identidade através da comida. Desta forma, a história de Forqueta, desde seu

surgimento aos dias atuais, foi identificada. Para isso, as tradições gastronômicas dos

imigrantes que foram mantidas e modificadas pela comunidade são apontadas e

descritas e a formação da identidade da comunidade através da comida foi

assinalada. Assim, para pontuar a comida como cultura, se teve como base os estudos

de Standage (2010), Revel (1996), Maciel (2005) e Montanari (2009, 2013). Estes

passos foram realizados para responder: como se deu a constituição da cultura

culinária (comida) no distrito de Forqueta? Como método, para obtenção da resposta,

foram utilizadas a pesquisa bibliográfica e a história oral, através de entrevistas com

moradores da localidade.

Palavras-chave: Cultura. Gastronomia. Forqueta.

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ABSTRACT

This dissertation sought to study the culture through the cuisine of the Forqueta

community in Caxias do Sul, RS. The theme was chosen because there are great

references to Italian culture still today in Forqueta district. Added to this is the

understanding of the importance that food, which will be transformed into food, has for

an Italian and for the descendants of immigrants, evidenced in the way the community

values its land and the food it provides. The objective was to analyze the culinary

culture of the Forqueta community and to identify the formation of their identity through

food. Thus, the history of Forqueta, since its emergence to the present day, has been

identified. For this, the gastronomic traditions of the immigrants that were maintained

and modified by the community are pointed out and described and the formation of the

identity of the community through the food was pointed out. Then, to evaluate food as

culture, it was based on the studies of Standage (2010), Revel (1996), Maciel (2005)

and Montanari (2009, 2013). These steps were taken to answer: how did the culinary

culture (food) take shape in Forqueta district? As a method, to obtain the answer, we

used bibliographic research and oral history, through interviews with residents of the

locality.

Keywords: Culture. Gastronomy. Forqueta.

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SOMMARIO

Questa tesi ha cercato di studiare la cultura attraverso la cucina della comunità

Forqueta a Caxias do Sul, RS. Il tema è stato scelto perché ci sono grandi riferimenti

alla cultura italiana anche oggi nel distretto di Forqueta. A questo si aggiunge la

consapevolezza dell'importanza che il cibo, che sarà trasformato in cibo, ha per un

italiano e per i discendenti degli immigrati, evidenziato nel modo in cui la comunità

valuta la sua terra e il cibo che fornisce. L'obiettivo è analizzare la cultura gastronomica

della comunità di Forqueta e identificare la formazione della propria identità attraverso

il cibo. In questo modo, è stata identificata la storia di Forqueta, dal suo emergere ai

nostri giorni. Per questo, sono state segnalate e descritte le tradizioni gastronomiche

degli immigrati mantenute e modificate dalla comunità e segnalata la formazione

dell'identità della comunità attraverso il cibo. Pertanto, per contrassegnare il cibo come

cultura, era basato su studi di Standage (2010), Revel (1996), Maciel (2005) e

Montanari (2009, 2013). Questi passi sono stati presi per rispondere: come è nata la

costituzione della cultura culinaria (cibo) nel distretto di Forqueta? Come metodo, per

ottenere la risposta, sono state utilizzate la ricerca bibliografica e la storia orale,

attraverso interviste ai residenti della località.

Parole chiave: Cultura. Gastronomia. Forqueta.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - Mapa da Colônia Caxias ........................................................................ 39

Imagem 2 - Fotografia das construções no centro urbano da Colônia Caxias .......... 41

Imagem 3 - Inauguração Estrada de Ferro 1910 ....................................................... 42

Imagem 4 - Busto de Dante Alighieri 1920 ................................................................ 44

Imagem 5 - Busto de Júlio de Castilhos 1920 ........................................................... 45

Imagem 6 - Retrato de Carlos II recebendo um abacaxi de John Rose .................... 65

Imagem 7 - Publicidade Coca-Cola ......................................................................... 106

Imagem 8 - Mesa posta em Le Nouveau Cuisinier royal et bourgeois .................... 110

Imagem 9 - Guia Michelin ....................................................................................... 119

Imagem 10 - 1941: Casal Francisco Bampi e Angelina Marchesini ........................ 133

Imagem 11 - Casamento de Amadeu Mazzochini com Lídia Longo ....................... 134

Imagem 12 - Macimino Bertotti e Família ................................................................ 135

Imagem 13 - Basílio Onzi com os filhos .................................................................. 137

Imagem 14 - Os imigrantes, irmãos Onzi ................................................................ 139

Imagem 15 - 1940: Antônio Marchesini casado com Angelina Onzi e filhos ........... 141

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Principais países de emigração e imigração - 1846-1932 ....................... 28

Quadro 2 - Valor em réis por braça quadrada de lote - 1875-1886 ........................... 40

Quadro 3 - Origem dos imigrantes Colônia Caxias - 1872-1886 ............................... 42

Quadro 4 - Relação dos imigrantes chegados à Colônia Caxias em 1874 ............... 43

Quadro 5 - Ração diária de um soldado holandês em 1648 ................................... 107

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11

2 OS CAMINHOS DOS IMIGRANTES ITALIANOS .................................................. 19

2.1 A UNIFICAÇÃO ITALIANA .............................................................................. 20

2.2 OS MOTIVOS QUE LEVARAM OS ITALIANOS A EMIGRAREM .................. 26

2.3 O BRASIL E A IMIGRAÇÃO ITALIANA .......................................................... 33

2.4 HISTÓRIA DE CAXIAS DO SUL ..................................................................... 37

3 COMIDA COMO MANIFESTAÇÃO DA CULTURA ................................................ 49

3.1 COMIDA COMO CULTURA: QUANDO PRODUZIDA .................................... 54

3.2 COMIDA COMO CULTURA: QUANDO PREPARADA ................................... 74

3.3 COMIDA COMO CULTURA: QUANDO CONSUMIDA ................................... 96

4 IDENTIDADE E A RELAÇÃO COM A COMIDA ................................................... 122

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 143

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 150

APÊNDICES ............................................................................................................ 154

APÊNDICE A – Entrevista com Itamyra Tonietto Bampi ..................................... 155

APÊNDICE B – Entrevista com Helena Maria Lango .......................................... 161

APÊNDICE C – Entrevista com Wilma Maria Argenta Bertotti ............................ 173

APÊNDICE D – Entrevista com Renata Terezinha Onzi ..................................... 185

APÊNDICE E – Entrevista com Hilário Basílio Onzi ............................................ 193

APÊNDICE F – Entrevista com Élide Marchesini ................................................ 201

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1 INTRODUÇÃO

Em 2015, conforme publicação online da Prefeitura Municipal de Caxias do

Sul, comemorou-se os 140 anos da imigração italiana no sul do Brasil, relembrando a

forte presença desta etnia no país. Forqueta é uma região administrativa de Caxias

do Sul-RS, situada à 15 km da sede administrativa municipal, considerada um parque

temático a céu aberto1. Em 1910, com a inauguração da estrada de ferro, observa-se

o desenvolvimento da região com a agricultura, principalmente o cultivo de uvas. A

localidade faz parte do Roteiro Turístico Vale Trentino, onde é possível conhecer

cantinas, visualizar o processo de produção de vinhos e sucos, desde a parreira e

seus cuidados até o envasamento das bebidas. Hoje, o distrito é o maior produtor de

uvas e vinhos do município, com mais de 150 milhões de litros por ano. Além disso,

Forqueta realiza a Festa do Vinho Novo a cada dois anos, nos três primeiros finais de

semana de julho. O evento conta com grandes exposições, shows, desfiles temáticos

e culinária típica.

As terras, que pertenciam a Luiz Antônio Feijó Júnior, deram origem à

localidade. A história diz que o nome “surgiu devido a abertura de uma casa de

comércio no entroncamento da Estrada Geral com a estrada que levava aos Santos

Anjos. Este tinha a forma de um garfo, uma “forchetta” em italiano, derivando daí o

nome”2. Suas comunidades, ainda mantem características da imigração – as casas

antigas, as igrejas, a culinária e as tradições.

Com o intuito de estudar a cultura culinária em região de colonização italiana,

este trabalho aborda a comida como manifestação da cultura, acerca de conhecer o

passado e os resquícios de tradições e costumes dos primeiros imigrantes, moradores

de Forqueta, Caxias do Sul-RS, hoje em dia. Para Montanari (2013), é perceptível que

esse tema – a gastronomia – invadiu a grande mídia e o imaginário popular no país.

Se multiplicaram, em todo o território nacional, os cursos técnicos e superiores de

gastronomia e seus correlatos, os jornais criaram cadernos específicos ou ampliaram

seu espaço editorial.

1 Caxias do Sul. Prefeitura Municipal de Caxias do Sul. Disponível em: https://caxias.rs.gov.br/gestao/subprefeituras/forqueta. Acesso em: 25/08/2017. 2 Caxias do Sul. Prefeitura Municipal de Caxias do Sul. Disponível em: https://caxias.rs.gov.br/gestao/subprefeituras/forqueta. Acesso em: 25/08/2017.

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Talvez o maior fenômeno midiático seja percebido pela televisão, seja ela

aberta ou a cabo, onde proliferam os programas sobre gastronomia. Esses programas

já ultrapassaram no Brasil a simples importação de apresentadores e “chefs”

internacionais e introduziram uma gama diversificada de conteúdo local, além disso,

tem adotado um estilo mais interativo com as competições em ampla faixa de idades,

especialmente com a grife do “MasterChef”3.

Revistas exploram cada vez mais o tema, discutem os processos de

transformação do alimento em comida, a harmonização com vinhos e espumantes e

apresentam receitas internacionais sugerindo o uso de ingredientes locais em

adaptações às marcas de chefs locais. Montanari (2013) atribui o sucesso da

gastronomia a mudanças culturais da sociedade brasileira nos últimos anos, pois

houve um processo de abertura do mundo, que deu acesso a bens de consumo

globais e a novas culturas e oportunidades de turismo como facilitadores desse

processo de aumento no interesse desta área do conhecimento. Como nos diz o autor:

Comida é cultura quando preparada, porque, uma vez adquiridos os produtos – base da sua alimentação, o homem o transforma mediante o uso do fogo e de uma elaborada tecnologia que se exprime nas práticas da cozinha. Comida é cultura quando consumida, porque o homem, embora podendo comer tudo, ou talvez justamente por isso, na verdade não come qualquer coisa, mas escolhe a própria comida. (MONTANARI, 2013, p.16).

A mesma cultura que marca o tempo de festa, que mantém a memória

espiritual e humana, é capaz de criar segmentos marcados pelo espaço físico, pelo

isolamento ou pela globalização, pelo ingrediente abundante ou escasso. De toda

forma, as comunidades mantiveram vivas importantes tradições, que mesmo

transplantadas a outros mundos, alguns elementos permaneceram intactos, abrindo-

se para novas experiências. Neste sentido, “entre as várias formas de identidade

sugeridas e comunicadas pelos hábitos alimentares, uma que hoje nos parece óbvia

é a do território, o comer geográfico” (MONTANARI, 2013, p.135).

3 MasterChef é uma franquia televisiva de competição de culinária criada por Franc Roddam, que se originou com a versão do Reino Unido em julho de 1990. O formato foi re-lançado e atualizado pela BBC em fevereiro de 2005 pelos produtores executivos suíços Franc Roddam e John Silver e pelo produtor da série Karen Ross. O formato do programa foi exportado em todo o mundo sob o mesmo logotipo MasterChef, e agora é produzido em mais de 40 países e vai ao ar em pelo menos 200 territórios. O formato já apareceu em quatro versões principais: a série principal MasterChef; MasterChef: The Professionals para chefs profissionais; Celebrity MasterChef com celebridades bem conhecidas como concorrentes e Junior MasterChef, uma versão criada e adaptada para as crianças, que foi desenvolvido pela primeira vez em 1994 e também tem proliferado para outros países fora do Reino Unido nos últimos anos, como no Brasil em 2015 (SILVA; PRODANOV; SCHEMES, 2016).

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Hohlfeldt (1979) diz que uma sociedade estável, que pretende assumir seu

passado e futuro, deve conhecer suas raízes, não para guardá-las nostalgicamente,

mas para conhecer sua identidade e assim constituir-se como um grupo de afirmação,

individualizado, possibilitando manter relações em igual nível com grupos afins. Este

mesmo autor define cultura como um conjunto de valores e atividades específicas de

um agrupamento social humano sobre natureza, isto é, sobre o elemento natural com

que o homem se defronta. Estas atividades significam uma manipulação, mais ou

menos utilitária, destes elementos naturais, em proveito desta comunidade, segundo

valores específicos.

Cultura não é somente uma referência que distingui uma categoria da

civilização, mas a forma de viver de um grupo, sociedade, país ou pessoa. Cultura é

“um mapa, um receituário, um código” por onde o ser humano pensa, classifica, estuda

e modifica o mundo e a si mesmo. Roberto DaMatta (1981, p. 1) nos diz que:

[...] cultura é uma palavra usada para classificar as pessoas e, às vezes, grupos sociais, servindo como uma arma discriminatória contra algum sexo, idade (“as gerações mais novas são incultas”), etnia (“os pretos não tem cultura”) ou mesmo sociedades inteiras, quando se diz que “os franceses são cultos e civilizados” em oposição aos americanos, que são “ignorantes e grosseiros”.

É importante deixar claro, desde o início, nosso posicionamento sobre a

distinção entre comida e alimento, pois nem tudo que é considerado alimento, se torna

comida. Desta forma, alimento é aquilo que capacita alguém a permanecer vivo, e

comida é o que se ingere com satisfação, que obedece a regras estabelecidas pelas

sociedades. DaMatta (1986) ilustra essa diferença com a imagem de um quadro, onde

a moldura é a representação do alimento, e o quadro, ou a arte, é a comida, que foi

escolhida para aquela moldura, ou seja, ele quer dizer que o alimento é universal, para

todos, amigos e inimigos, pessoas de perto ou de longe, mas a comida, estreita essa

relação, assim como o churrasco é comida para os gaúchos, sempre servido com

amigos que tenham intimidade.

Por exemplo, leite é alimento para as pessoas adultas, mas é comida para os

bebês, assim como o osso pode ser comida para cachorro, ou o milho para as

galinhas. Sendo assim, este trabalho acolhe essa diferença, onde alimento é tudo

aquilo que, quando tocado por uma devida cultura, se torna comida, com papel de

nutrir, gerar prazer, ou as duas coisas ao mesmo tempo.

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Por conseguinte, o problema de pesquisa que englobou essas temáticas foi

elaborado da seguinte forma: como se deu a constituição da cultura culinária (comida)

no distrito de Forqueta? E como hipóteses para responder essa interrogação: (1) a

cultura culinária, ou seja, a comida de Forqueta hoje é igual a comida italiana, mas

houveram adaptações de ingredientes; ou (2) ainda que a cultura culinária de

Forqueta tenha raízes italianas devido a herança deixada pelos imigrantes italianos,

vem mudando ao longo do tempo por influências da atualidade e da mistura de

culturas.

Para que seja possível confirmar, ou não, essas hipóteses, delimitou-se um

objetivo geral, que é analisar a cultura gastronômica da comunidade de Forqueta e

identificar a formação da sua identidade através da comida. Três objetivos específicos,

norteiam a construção do trabalho, que são: identificar a história de Forqueta, desde

seu surgimento aos dias atuais, no que se refere a imigração e gastronomia italiana;

identificar e descrever as tradições gastronômicas dos imigrantes que foram mantidas

e modificadas pela comunidade; e analisar a formação da identidade da comunidade

através da comida.

Para a escolha deste assunto, foram importantes as referências à cultura

italiana presentes, ainda hoje, no distrito de Forqueta. Por ter nascido nesta atmosfera,

e ser graduado em Gastronomia, a cultura culinária italiana foi escolhida como tema

deste trabalho. Vivi em Caxias do Sul até os 22 anos, e minha família ainda reside na

cidade. Por isso, faço visitas constantes ao local. Outro motivo pelo qual o tema foi

escolhido, deve-se ao entendimento da importância que o alimento, que será

transformado em comida, tem para um italiano e para os descendentes dos

imigrantes, evidenciado na forma como a comunidade de Forqueta preza por sua

terra, de onde são tirados o sustento e o alimento da comunidade.

Percebe-se que a tradição deixada pelos imigrantes italianos ainda é latente

na forma como seus descentes vivem, criam os filhos, cuidam da terra e do alimento

que produzem e consomem, se relacionam, fazem negócios, festejam datas

comemorativas. Por isso, a identidade dos imigrantes que formaram a comunidade,

foi forjada desde antes da sua chegada, quando se depararam com uma situação

totalmente diferente da qual foi projetada.

Toda a adversidade encontrada na chegada dos imigrantes formou uma nova

identidade, por adaptações feitas em tradições e comportamentos passados, mas que

ainda se mostram presentes na comunidade nos dias de hoje. Por exemplo,

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identificar-se como um italiano, mesmo não nascendo na Itália, e em alguns casos,

sem conhecer o país.

De acordo com Montanari (2013), como pano de fundo temos a sociedade

brasileira, nascida do grande encontro de diversas culturas, desde o nativo às mais

variadas origens europeias e africana que aqui se estabeleceram desde 1500, até as

mais recentes ondas migratórias vindas do oriente ao longo do século XIX e XX. O

país que se forma está repleto de diferenças, de influências e de oportunidades de

explorar e de superar o alimento e penetrar no mundo da comida, ou seja, acrescentar

o elemento mais humano que é o conhecimento a todo esse processo, a cultura.

A culinária italiana é muito discutida no meio gastronômico, pois juntamente

com os franceses, domina o cenário pelo mundo. A popularidade de massas e de

pizzas, é outro indicador da forte influência da cultura culinária italiana na região sul

do país. Destaca-se, portanto que estes aspectos culturais e o fato de ter nascido e

crescido em Caxias do Sul-RS, motivou-me a pesquisar e desenvolver esta pesquisa.

Ao tratar sobre comida como cultura, entendemos que são interdependentes, pois

uma comida ou uma receita existe e resiste devido à cultura que ela está inserida, fato

ampliado por ser formado em gastronomia e apaixonado por cozinha.

A metodologia, de acordo com Prodanov e Freitas (2009) examina e avalia as

técnicas de pesquisa, bem como a geração ou verificação de novos métodos que

conduzem à captação e ao processamento de informações com vistas à resolução de

problemas de investigação. Este estudo será de natureza aplicada, pois está dirigida

a gerar conhecimentos de aplicação prática solucionando assim, problemas

específicos.

Quanto aos objetivos, utilizou-se de cunho descritivo, porque não houve

interferência nos fenômenos pesquisados, apenas foram registrados e descritos.

Também, quanto aos procedimentos, empregou-se a pesquisa bibliográfica e em

fontes secundarias sobre a influência dos costumes gastronômicos dos imigrantes

italianos nos moradores da comunidade de Forqueta com o objetivo de compreender

quais os traços destas tradições ainda são visíveis na localidade.

Também utilizamos a pesquisa bibliográfica para a identificação histórica da

localidade, pois os acontecimentos históricos que concernem a saída dos imigrantes

de seu país, as condições que tinham, as condições da viagem, e como foram

recepcionados, é importante para entendermos como se comportaram e como isso

reflete na identidade dos seus descentes hoje. A pesquisa bibliográfica tem o intuito

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de colocar o pesquisador em contato com diversas fontes de pesquisa como livros,

revistas, publicações em periódicos e artigos científicos, jornais, monografias,

dissertações, teses, internet, entre outras. Porém, mesmo utilizando todas essas

fontes, a veracidade de seus conteúdos será preocupação constante do pesquisador.

Utilizou-se da história oral, pois sendo um método cientifico, Alberti (2004) diz

que é uma forma de adquirir conhecimento. Seu uso só é justificável por meio de

investigação científica, pois deve estar articulado com um projeto de pesquisa

predefinido. Quando projetos estiverem em meios de serem pensados em como

atingir os resultados, ou como obter respostas para as questões levantadas pelo

projeto, a história oral deve ser ativada.

Para Etienne François (2006), o objetivo da história oral é inovador, pois

pretende dar atenção aos “dominados, aos silenciosos e aos excluídos da história”,

também a histórias corriqueiras do dia a dia, da vida privada, a história local e

enraizada. A autora também se refere a uma história vista de baixo, enfatizando os

olhares e aos sentimentos, não englobados pela história convencional.

Meihy e Holanda (2007, p. 15) falam que

História oral é um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um projeto e que continua com o estabelecimento de um grupo de pessoas a serem entrevistadas. O projeto prevê: planejamento da condução das gravações com definição de locais, tempo de duração e demais fatores ambientais; transcrição e estabelecimentos de textos; conferência de produto escrito; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, a publicação dos resultados que devem, em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas.

Sendo assim, foram feitas entrevistas com membros da comunidade para

revelar novos e importantes aspectos da formação da identidade local, à luz da história

oral. Os principais conceitos abordados para a construção do referencial teórico

começam por investigar aspectos históricos da imigração italiana para o sul do Brasil.

Entender o êxodo italiano, que ocorreu a partir do ano de 1875, sabendo dos motivos

que os fizeram sair de seu país de origem e o porquê tinham o Brasil como destino,

mais especificamente, porque Caxias do Sul-RS como local de morada, retratando

assim a história do grupo até os dias de hoje. Para a construção desta etapa foram

utilizados autores como João Fábio Bertonha e sua obra Os Italianos de 2008, Loraine

Slomp Giron e Luís Alberto De Boni em Caxias do Sul: evolução histórica de 1977,

entre outros.

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Para contextualizar cultura, aproximamos três conceitos diferentes de cultura

a qualificações diferentes do olhar para a comida. Quando ela é vista sob a ótica de

quando é produzida, atrelando o homem à natureza, o conceito de cultura também

tem este viés, no caso abordado por Bronislaw Malinowski. Quando a perspectiva é a

comida quando preparada, onde paralelos do que é ou não natural são trabalhados,

o conceito de cultura também se utiliza destas diferenças, trabalhado por Lévi-Strauss.

E finalmente, quando a comida é consumida, trabalhando em múltiplos sentidos e

significados atribuídos às escolhas que fizemos do que comer, o conceito de cultura

de Geertz possibilita explicar esta possibilidade multifacetada. Finalizando o trabalho,

também abordamos o antropólogo Franz Boas. Seus estudos têm o intuito de

investigação para descobrir os processos pelos quais certas manifestações culturais

se desenvolvem. Ele trabalha com o olhar ao passado, pois acredita que para saber

a cultura de um povo, deve-se olhar sua história.

Outro conceito importante para a execução deste projeto são as concepções

de identidade. Para Hall (2005), identidades correspondentes a um determinado

mundo social estão em derrocada, já que a sociedade não pode mais ser vista como

determinada, mas em contínua transformação e movimento, fazendo com que novas

identidades apareçam continuamente, em um processo de esmigalhamento do

indivíduo contemporâneo.

Esta definição assinala uma mudança no conceito de identidade e sujeito, já

que as identidades contemporâneas estão sendo descentradas, ou seja, deslocadas

e fragmentadas e, como consequência, não é possível oferecer afirmações

conclusivas sobre o que é identidade, visto tratar-se de um aspecto complexo, que

envolve múltiplos fatores. Nesta etapa, como já citado, Stuart Hall e seus trabalhos

sobre identidade serão determinantes para a construção deste referencial.

Por fim, serão abordadas questões mais pontuais sobre comida e cultura.

Para Magalhães (2007), as práticas culinárias expressam aspectos fundamentais da

vida cotidiana de uma cultura, além de costumes, valores e tradições de uma época.

Esse processo transformador do alimento e sua singular convergência com o

conhecimento e a cultura foi capaz de criar elementos extremamente pessoais ligados

à nossa memória e a tradição familiar, bem como aspecto globais, universais. Ou seja,

de acordo com Garine (1987), o homem se alimenta conforme a sociedade a que ele

pertence, sendo possível a promoção de trocas e articulações quase globais.

Maciel (2005, p. 49) entende a alimentação do homem

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[...] como um ato social e cultural faz com que sejam produzidos diversos sistemas alimentares. Na constituição desses sistemas, intervêm fatores de ordem ecológica, histórica, cultural, social e econômica que implicam representações e imaginários sociais envolvendo escolhas e classificações. Assim, estando a alimentação humana impregnada pela cultura, é possível pensar os sistemas alimentares como sistemas simbólicos em que códigos sociais estão presentes atuando no estabelecimento de relações dos homens entre si e com a natureza.

Montanari (2009) destaca que a cozinha pode ser comparada à linguagem.

Para ele, os ingredientes seriam os vocábulos. As receitas, que transformam os

ingredientes em alimentos, a gramática. A sintaxe, ao cardápio ou a ordem dos pratos.

Também a retórica, o comportamento do comensal. A cozinha contém e expressa a

cultura de quem a está praticando, contempla tradições e identidade de grupos. A

cozinha pode ser usada como primeiro contato com culturas diversas, pois consumir

um alimento alheio parece mais fácil do que decodificar a sua língua. Magalhães

(2007) que diz que em torno da comida ocorrem diferentes formas de articulação do

social, do lúdico e do religioso, independente da religião.

Além disso, o processo de transformação não é restrito a uma ou algumas

classes sociais, ao contrário, mesmo em segmentos mais abastados e enobrecidas,

aqueles de maior pobreza surgem novas formas de inclusão cultural e de

transformação do alimento em comida. São essas as questões que nortearam nosso

trabalho, que giraram em torno da comunidade de Forqueta, sua identidade e comida,

sempre olhando a questão cultural como pano de fundo.

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2 OS CAMINHOS DOS IMIGRANTES ITALIANOS

Neste capítulo analisamos os motivos envolvidos na grande imigração de

italianos para o Brasil a partir da segunda metade do século XIX, pois servirá para

contextualizar historicamente um fenômeno importante para o Brasil e para a Itália.

Escolheu-se escrever sobre este assunto, pois será parte da pesquisa proposta neste

trabalho, focada num grupo de descendentes dos imigrantes das regiões do Vêneto e

do Tirol italiano, vindos para a região de Caxias do Sul, mais especificamente

Forqueta, bairro rural da cidade. Eles foram entrevistados, sob a luz da história oral,

para auxiliar o autor a responder o problema de pesquisa. Então, faz-se importante

retomar fatos históricos que envolveram os dois países e as influências que sofreram

os emigrantes.

Para tanto, primeiramente abordamos a situação da Itália a partir de 1796,

que ainda não tinha a formação atual que conhecemos. A unificação dos até então

Reinos da Itália, desencadeou uma situação pertinente para que as pessoas

cogitassem a saída do seu território para outros locais do mundo. Como uma das

figuras importantes, Napoleão Bonaparte4 (1769-1821) teve uma influência

significativa nos territórios italianos conquistados pelas suas tropas, fortalecendo o

Império da França, tornando os reinos do norte da Itália, aliados e fieis provedores de

variados produtos, sendo importante também nas negociações e disputas pelas terras

italianas quando os seus opositores brigavam pela unificação dos reinos para formar

um Reino Italiano independente.

Entre as situações enfrentadas pelo povo que viviam nas regiões hoje

italianas, a distribuição de terras, a falta de emprego e a falta de uma identidade

nacional são aspectos que sucederam a unificação, também tratados no segundo

subtítulo para justificar a saída histórica de uma maioria colona que não estava

4 Napoleão Bonaparte, nascido em 1769, morreu 1821, general francês, e imperador dos franceses, é um dos personagens mais célebres da história. Sua paixão era a expansão militar do domínio francês e, deixou a França maior do que era no início da Revolução em 1789. A partir dos nove anos, ele foi educado na França. Embora não seja o filho mais velho, assumiu a posição de chefe da família antes dos 16 anos. Tornou-se segundo-tenente de artilharia no regimento de La Fère, uma espécie de escola de treinamento para jovens oficiais de artilharia. Naquela época, a agitação que culminaria na Revolução Francesa já havia começado. Acreditava que uma mudança política era imperativa (GODECHOT, 2018).

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satisfeita com a abordagem do governo italiano e suas atitudes quanto a preocupação

com o bem-estar dessa parcela significativa da população.

A terceira e última parte deste capítulo, descreve como o Brasil estava

politicamente e economicamente em relação a abertura dos portos e de oportunidades

para europeus brancos. Ressalta-se as atitudes que elevam os ideais racistas do

Império daquela época, muitas vezes mascarado pela busca do crescimento

econômico, negando ao povo que já vivia em terras brasileiras o trabalho oferecido

aos europeus de forma geral.

2.1 A UNIFICAÇÃO ITALIANA

Para Possamai (2005), a nomeação de Napoleão Bonaparte como o

comandante das tropas francesas na Itália, em 1796, é o ponto inicial para entender

a unificação italiana. No final deste mesmo ano, com supervisão de Napoleão, cria-se

a República Transpadana5, com capital sediada em Milão. E, no início de 1797, a

união dos territórios de Emília, Módena, Bolonha e Ferrara, nomeada República

Cispadana, adota a bandeira tricolor (verde, branca e vermelha), anteriormente usada

por milícias revolucionárias como símbolo da vontade de unificação política da

península.

Em seguida, iniciaram-se confrontos na região de Lombardia6, norte da

península, entre franceses, que possuíam a região, e austríacos com intuito de

controle do território italiano, estendendo-se até a região neutra de Veneza, que mais

tarde foi tomada pelos franceses, sendo devolvida por Napoleão à Áustria em outubro

de 1797 através do Trattato di Campoformio7. Outro fato deste mesmo ano foi a

ocupação de Roma pelo rei de Nápoles, Ferdinando IV, pretendendo manter a

segurança do papado, levando Napoleão à conquista do sul da Itália. A ocupação

5 União do Ducado de Milão, do Ducado de Mântua e territórios do Vêneto. 6 Lombardia é uma das regiões italianas mais extensas. Localizado no extremo norte da península, faz fronteira com a Suíça. 7 Tratado de Concordata de Paz entre Áustria e França (17 de outubro de 1797), que marcou o fim da República de Veneza. O tratado previa a venda de Veneza com seus domínios para a Áustria; os franceses, além de algumas posses venezianas, obtiveram o reconhecimento da estrutura dada por Napoleão às regiões conquistadas na Itália. (Tradução Livre). Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/trattato-di-campoformio/. Acesso em: 15/03/2018.

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francesa em Nápoles, em 1799, estabeleceu a República Partenopea8, que veio a ser

o refúgio do rei Ferdinando IV, e o exílio do papa Pio VI, resultando em sua morte.

Quando Piemonte9 foi incorporado à França, em 1802, a República

Cisalpina10 também agregou algumas províncias do Vêneto11, passando a se chamar

República Italiana. Em 1805, com o Império estabelecido na França, a República

Italiana tornou-se o Reino da Itália, Napoleão como seu rei. No ano seguinte, o irmão

mais velho de Napoleão, José Bonaparte, foi coroado rei de Nápoles. Desta forma, é

possível verificar a importância do período napoleônico para o nascimento do ideal de

unificação da Itália. Paulo César Possamai (2005, p. 34) explica que:

[...] a fugaz unificação patrocinada pelos franceses na Itália deixou sementes. Enquanto os ativistas de esquerda lembravam com saudosismo as repúblicas instaladas pelas tropas francesas, os monarquistas sentiam nostalgia das monarquias implantadas por Napoleão. O que unia ambas as correntes era a ideia de que era possível tornar a Itália em Estado unitário.

Haviam sociedades secretas que arquitetavam a derrota de governos

absolutistas. No Norte, fundada em Turim em 1818, a Liga dos Mestres Sublimes e

Perfeitos, mirava a evacuação austríaca da Itália com o objetivo final de obter uma

sociedade comunista. No Sul, desde 1807 o grupo dos carbonários combatia o

absolutismo12 e o clericalismo13. Estes grupos, entre os anos de 1820 e 1830,

promoveram rebeliões por todo território peninsular, sempre reprimidas pelas forças

austríacas. Também havia um grupo, que queria a unificação, se diferenciando dos

demais por contar com ajuda externa para lutar contra os austríacos e agregar mais

reinos à causa. Desta forma, os piemonteses-sardenhos conseguiram libertar o norte

da Itália, agregando a Itália central e o sul. Vittorio Emmanuele II, rei de Piemonte-

Sardenha, em 1861, passou a usar o título de rei da Itália, mas a unificação ainda não

estava completa. Aliando-se à Prússia, declararam guerra contra a Áustria, sendo

8 Quando Napoleão ocupa Nápoles, passa a chama-la de República Partenopea, com a intenção de criar um Estado satélite para a França. 9 Região do noroeste da Itália, na fronteira com a Suíça e a França. Piemonte é a terra das montanhas: é cercada em três lados pela cadeia alpina, que aqui inclui os picos mais altos e os maiores glaciares da Itália. Disponível em: http://www.italia.it/it/scopri-litalia/piemonte.html. Acesso em: 15/03/2018. 10 União da República Cispadana com a República Transpadana e a província de Novara. 11 Localizado no nordeste da Itália, se estende até o Mar Adriático, atravessando uma larga faixa montanhosa e uma planície atravessada por rios, canais e a foz do rio Pó. 12 Refere-se ao sistema político de governo em que os dirigentes assumem poderes sem limitações ou restrições. 13 Influência e poder do clero, da Igreja.

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derrotados, mas graças a aliança, os prussianos vitoriosos asseguraram a anexação

do Vêneto em 1866.

Bertonha (2008) diz que se pode também olhar para a unificação italiana

através dos três principais nomes envolvidos nesta conquista. Giuseppe Mazzini,

nascido em 1805, viveu até o ano de 1872, foi um dos grandes defensores da ideia

de unificação. Fundou um grupo chamado Giovane Italia, que significa Jovem Itália,

participando de lutas a favor da união durante o século XIX, mesmo tendo poucos

resultados. Sua determinação era eliminar os austríacos do território italiano, mas não

tinha um perfil revolucionário, defendia a propriedade privada e não se agradava com

ideias socialistas. Sonhava com o levante contra a tirania e o despotismo de todos os

povos em todos os países.

Nascido em 1810, Camilo Benso, conhecido como conde de Cavour, tendia

para uma direção diferente. Se identificava com o nacionalismo, o liberalismo e o

progresso. Era membro da nobreza e homem de negócios, e com apoio da casa de

Savóia, soberanos no país, teve cargos no governo piemontês durante a década 1850.

Nestes cargos, transformou a economia e a sociedade, modernizando-as, com, por

exemplo, uma Constituição e propagando valores burgueses. Sua meta era centralizar

a família Savóia na unificação italiana, tornando o país uma extensão de Piemonte.

Não era a favor da junção popular no processo de unificação, pois acreditava que o

país deveria ser construído por estadistas e militares. Tanto que, em 1859,

providenciou uma aproximação do reino sardo-piemontês com a França e a Inglaterra,

aliando-se a Napoleão III para conquistar a Lombardia. No ano seguinte, outras

regiões foram agregadas confirmando sua lealdade ao rei de Piemonte, Vittorio

Emmanuele II, mas alguns liberais acreditavam que o poder de Vittorio era suficiente,

sem a inclusão do sul da península. E assim, chega-se ao terceiro nome, Giuseppe

Garibaldi.

Giuseppe Garibaldi (1807-1882), era homem do povo. Nascido nas camadas

mais populares da sociedade, em sua juventude foi marinheiro, sempre motivando

pessoas de diferentes classes sociais. Era apoiador de aspectos patrióticos difundidos

por Mazzini, sendo favorável aos regimes republicanos, onde o povo pudesse

escolher como seriam governados em uma nova Itália. Defendeu seus ideais em

diferentes países, como no Uruguai e no Brasil, na Revolução Farroupilha no Rio

Grande do Sul, voltando à Itália em 1848, onde teve participação ativa na revolução

pela independência.

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Garibaldi lançou uma política para forçar a anexação do Sul a Piemonte, e em

1860, com uma expedição organizada por ele, chegou a Sicília, e com pouco tempo

de estada, conseguiu o apoio popular e libertou toda a Itália meridional, com exceção

de Roma, do domínio dos Bourbons, família real francesa. O conde de Cavour (Camilo

Benso), representante da elite, não apoiava as atitudes de Garibaldi e seus aliados.

Com o passar do tempo, conseguiu reverter as conquistas de Garibaldi, porém se viu

obrigado a anexar o Sul ao novo reino, deixando a participação popular fora das

conquistas de Garibaldi.

Possamai (2005), afirma que ele foi considerado o inimigo número um da

Igreja Católica, atrapalhando os planos de retomada do poder e a não separação do

Estado e Igreja. Giuseppe defendia o liberalismo que tiravam os poderes da Igreja,

tendo em Roma o centro do poder representado pelo papa. Os italianos sempre

quiseram retomar a cidade de Roma, protegida pela França. Napoleão III, tentando

desviar a atenção de Roma, sugeriu mudar a capital, até então localizada em Turim,

para Florença, mas o sonho de retomar a cidade eterna e fazê-la capital da Itália

unificada era antigo. Em 1861, Cavour se posiciona a favor de transformar Roma na

capital da Itália, incentivando Giuseppe que afirma: “Roma ou morte”, iniciando um

levante logo abafado pela força francesa na cidade.

Giuseppe Garibaldi também provocava a Igreja por sua ligação com a

maçonaria. No ano de 1836, ele foi iniciado na maçonaria enquanto estava no Rio

Grande do Sul, pela loja ‘Asilo da Virtude’, e quando voltou para a Itália, foi nomeado

‘grão mestre ad vitam’, alto escalão da maçonaria italiana. Assim, os planos de

unificação foram interpretados pela Igreja como um plano da maçonaria para dizimar

o catolicismo.

Entretanto, Bertonha (2008), fala de localidades que hoje reconhecemos

como italianos somente foram incorporados mais tarde. Como por exemplo o Vêneto,

que com ajuda da Prússia foi anexado em 1866, já mencionado anteriormente, Roma

sendo incorporada em 1870, o Trento e a Venezia-Giulia, só inclusos em 1918.

A tomada de Roma dos franceses ainda teve que driblar os esforços da Igreja

em desfavor ao liberalismo. Neste sentido, a Igreja Católica enrijecia sua posição ao

conservadorismo sempre que o liberalismo avançava. Em 1864 foi lançado o Syllabus

errorum, um catálogo que expunha a posição da Igreja em 80 aspectos considerados

inaceitáveis. Tudo que ameaçasse a posição de poder da Igreja estava escrito nesse

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catalogo, como “a separação do Estado e Igreja, a liberdade de culto e de imprensa,

a maçonaria, o socialismo, o racionalismo e o liberalismo” (POSSAMAI, 2005, p. 38).

Possamai (2005) confirma que este catálogo acalmou os católicos mais

conservadores, desagradou os liberais e entre os não crentes figurou a insipiência da

Igreja Católica. A Igreja tinha o liberalismo como a origem do mal do presente e do

futuro, assim como do socialismo. Por outro lado, os liberalistas tinham a religião como

opositora da ciência e do progresso.

Com dificuldades, os monarcas católicos não estavam conseguindo manter

os privilégios prometidos à Igreja, que por sua vez, foi perdendo a confiança nas

monarquias devido aos avanços liberais em toda a Europa. Quando Roma foi tomada,

Pio IX, papa em exercício, não aceitando a perda, refugiou-se no Vaticano, sendo

então considerado um prisioneiro de guerra. Não reconheceu o Estado unificado

italiano, proibindo os fis de participarem das eleições do reino, criando um abismo

entre os católicos e o novo governo. Baseando-se nas ideias de Cavour, ‘Igreja livre

em um Estado livre’, se davam as relações entre o papa e o reino italiano,

regimentadas através da ‘Lei das Garantias’, após a tomada de Roma, assegurando

ao papa a liberdade em usufruir de seu poder como pontífice da Igreja Católica. Esta

mesma lei assegurava a jurisdição da Cidade Leonina, que futuramente se tornaria a

Cidade do Vaticano, da basílica de São João Latrão e do Castel Gandolfo.

Já a região trentina, anexada ao reino mais tarde, teve uma trajetória própria.

No século IX, era uma cidade livre pertencente ao Sacro Império Romano-Germânico,

sendo governada por príncipes-bispos que conseguiram assegurar a liberdade da

região até 1803. A partir daí Napoleão Bonaparte entregou o Trentino à Áustria. Em

1805 os austríacos passam a integrar um grupo contra a França. Derrotados pelos

franceses, foram obrigados a entregar o Tirol e o Trentino à Baviera, que por sua vez

tinham laços com os franceses. Em 1809 os governantes da Baviera impuseram aos

homens tiroleses e trentinos o alistamento militar obrigatório, gerando revolta contra o

novo governo. Vendo uma possibilidade de retomada da região, a Áustria apoia a

revolta, mas a situação foi controlada por Napoleão que assina o Tratado de Paris,

em 1810, que transferia o poder de comando da região para o reino napoleônico da

Itália.

Em 1815 os austríacos voltaram a ter domino das terras devido a derrota de

Napoleão, onde, no ano seguinte, resultou na integração formal do principado de

Trento à província do Tirol, sendo chamada de Tirol Meridional. Esse movimento do

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governo austríaco incomodou tiroleses instruídos, que em 1848 enviaram a Viena um

abaixo assinado solicitando a autonomia do Trentino, não só sendo ignorados pelo

governo, como proibidos de usar o nome “Trentino”, só era possível usar Tirol

Meridional ou Tirol Italiano.

Por terem partido de ideais liberais, os esforços pela unificação da Itália

dificultaram a anexação do Trentino, pois a influência do clero católico tinha força

considerável na província. Os camponeses não se interessavam pela luta,

concentrando os esforços somente à burguesia. A base da sociedade trentina era

formada pelo conservadorismo e pelo clericalismo, composto em maioria pelos

camponeses, lembrando que a ocupação de Roma não teve apoio popular pelos

mesmos motivos. É possível aproximar o poder da Igreja sobre os camponeses do

Trentino ao que o Estado nacional simboliza para os burgueses emergentes, ou seja,

a igreja, para os trentinos, era a única fonte de sabedoria, e deveria ser ouvida e

obedecida. Os padres, nessas regiões, não eram somente sacerdotes, mas sim

líderes intelectuais. A maioria dos camponeses tinham a moral católica como

verdadeira e única, gerando uma autoridade dirigida pela Igreja.

O comandante que defendeu o Tirol das primeiras tropas francesas, Andreas

Hofer, liderou uma revolução, contando com italianos, alemães e espanhóis, contra

os franceses e bávaros em 1809 pois era contra as reformas impostas pelo governo

da Baviera querendo defender a continuação da ‘sagrada terra do Tirol’ como tradição.

Para os camponeses a terra sagrada deveria ser defendida, inibindo a perspectiva

nacionalista italiana no Trentino, atingindo somente a uma restrita porção de

burgueses moradores da capital da província. No ano em que estouraram diversas

revoluções por toda a Europa, 1848, o imperador Ferdinando se refugiou entre os

tiroleses fieis. Os vencedores desta revolta foram os conservadores, facilitando a volta

do conservadorismo com força total.

Ainda assim, o liberalismo encontrou espaço, principalmente a partir de 1860.

O bispo de Linz foi encarcerado por escrever uma advertência contra o

anticlericalismo, sendo salvo pelo imperador Francisco José. Esta ligação do

imperador com a Igreja era importante para a união do império em tempos que o

nacionalismo contaminava as elites. Francisco José utilizava os sentimentos católicos

para que seus súditos italianos afastassem a investida do governo anticlerical do reino

da Itália, atingindo seu objetivo entre os trentinos.

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Porém, Bertonha (2008), informa que em 1861 foi proclamado o Estado

italiano formalmente constituído, restando a tarefa mais difícil, a construção de uma

nacionalidade. Neste período, o sentimento de pertencimento, ou a ‘italianidade’,

como a conhecemos, se relacionava apenas a região onde cada cidadão nasceu. No

processo de unificação, ou seja, no surgimento de uma Estado italiano independente,

que foi chamado de risorgimento (ressurgimento em italiano), a motivação dos

piemonteses e dos apoiadores da causa tinha uma forma mais ideológica e cultural

do que econômica. Não eram motivações econômicas porque o Estado piemontês

estava mais inclinado à França e à países germânicos do que ao restante do território

peninsular, pois a economia do restante dos Estados italianos, principalmente os do

Sul, eram fracas demais para instigar interesse da burguesia piemontesa.

Segundo Hobsbawm (2010), haviam situações de servidão em áreas de terras

italianas, que se assemelhavam a regiões na Espanha, ambas com características

econômicas semelhantes, porém com fatores legais diferentes no estatuto dos

camponeses. Em regra geral, se tratavam de áreas de propriedade da nobreza, sendo

provável que regiões da Sicília e da Andaluzia, na Espanha, fossem oriundos de terras

romanas, onde seus escravos e colonos converteram-se em trabalhadores, sem terras

próprias. As fontes de renda dos duques e barões eram provenientes da criação de

gado, da produção de trigo, e da usurpação de todas as possibilidades, tanto das

pessoas como da terra.

2.2 OS MOTIVOS QUE LEVARAM OS ITALIANOS A EMIGRAREM

Segundo Santos (2006) a unificação da Itália foi o fator que definiu a saída de

milhares de italianos rumo à América, pois era uma das tentativas de superação da

pobreza e da fome, que muitas famílias passavam na época. Entretanto, fatores como

problemas políticos, econômicos e sociais, também influenciaram a saída massiva de

italianos rumo ao Brasil. Os problemas políticos se baseavam em distribuições de

terras, propriedades da elite. Os fatores econômicos estavam principalmente na falta

de capital. Poucos detinham o dinheiro, e não se dispunham gastá-lo em novas

indústrias, as quais gerariam mais empregos.

Giron (1977) fala que a falta de trabalho que esse fator desencadeou,

fortaleceu a necessidade de saída do território, pois quando havia trabalho, como

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jornaleiro ou em área rural nas terras de outros, remuneravam mal, não sendo

suficiente para o sustento da família. As crises sociais, devido a pensamentos políticos

de desinteresse aos movimentos nacionalistas, deixavam o povo sem esperanças de

melhora. A miséria e a displicência dos governantes motivaram o surto demográfico,

que agravou a situação social do país. A única esperança seria a emigração.

Segundo Bueno (2012), muitos habitantes de zonas rurais italianas, não

tinham outra opção para escapar das condições degradantes de vida a não ser

emigrar. A crise econômica do campo, causada em partes pela revolução industrial, e

por mudanças políticas não compreendida por todos, traziam dificuldades cada vez

maiores. Reforçando esses argumentos, nota-se que entre os anos de 1876 e 1901,

5,7 milhões de italianos saíram de seu país.

De acordo com Bertonha (2008), aproximadamente 26 milhões de pessoas

saíram da Itália com destinos a outros países entre os anos de 1870 e 1970. Este

número de pessoas corresponde a população que a Itália tinha em 1870. Dentro

destes, muitos retornaram para seu país, mas entre 7 a 8 milhões não retornaram.

Desta forma, é possível compreender a importância das migrações na história italiana

e como o território contava com um povo de emigrantes. A constituição geográfica

italiana colabora para a explicação deste fenômeno. Com uma composição

montanhosa, dificultava o acesso aos produtos para o sustento das famílias, então

migrar para as planícies ou para as cidades seria o certo a fazer.

Em períodos contemporâneos, quando as artes e a cultura italiana

começaram a ser demandadas por outros povos, comerciantes, artesões e

intelectuais emigravam com frequência para o exterior. Dentre os que mais emigravam

estavam os trabalhadores que não encontravam trabalho em suas áreas em territórios

italianos, predominantemente pobres, se comparados com as elites. Mesmo antes da

unificação, os nortenhos buscavam trabalho na França, na Suíça, na Áustria e na

Alemanha. Como as fronteiras nacionais não tinham significado para estas pessoas,

trabalhavam nas colheitas e em obras públicas nestes países pois tinham

necessidade de mão-de-obra. A emigração dos italianos é considerada um dos

fenômenos mais inerentes e longevos, não podendo ser reduzido a fugas de fome e

pobreza em momentos árduos, mas sim um modo de vida, sobrevivência econômica,

mesmo significando que uma parte da vida aconteceria fora de seu local de

nascimento.

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Antes de 1870, poucos saíram do país, principalmente se comparado ao

grande número de alemães, irlandeses, escandinavos e britânicos emigrantes. Porém,

após 1870, chamado pelos italianos de ‘a grande emigração’, saíram em massa para

a América, e continuaram procurando trabalho em países da Europa. Um ponto que

pode ajudar a entender esse fato é a história da Europa e do capitalismo no século

XIX.

Entrando na Revolução Industrial, o norte da Europa, na primeira metade do

século XIX, causaram grandes alterações na sociedade com melhores sistemas de

transportes, como ferrovias e navios mais rápidos, controle de enfermidades e de

taxas de mortalidade, aumento na produção de mercadorias tanto no meio rural como

no urbano. Em contrapartida, dizimavam pequenos agricultores e artesões pela

concorrência de grandes propriedades rurais e novas indústrias, pois tinham uma

capacidade ampliada de capital e tecnologia para as produções de alimentos e

produtos manufaturados até melhores e mais baratos. Neste período, a população

cresceu exponencialmente, dificultando ainda mais o acesso ao trabalho. Muitos

ficaram desamparados, tendo como opção morrer de fome, trabalhar em fábricas ou

se aventurar em outros países, sendo esta última a alternativa escolhida por muitos.

As emigrações e imigrações nesse período podem ser exemplificadas pelo

quadro 1:

Quadro 1 - Principais países de emigração e imigração - 1846-1932

Países de emigração (em milhões de emigrantes)

Escandinávia 2,1

Polônia e Império Russo 2,9

Alemanha 4,9

Império Austro-húnguro 6,2

Espanha e Portugal 6,5

Itália 11,1

Grã-Bretanha e Irlanda 16,0

Países de imigração (em milhões de imigrantes)

Estados Unidos 32,4

Argentina e Uruguai 7,1

Canadá 5,2

Brasil 4,4

Austrália e Nova Zelândia 3,5

Fonte: (BERTONHA, 2008, p. 83)

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A partir da segunda metade do século XIX e o começo do XX, a emigração

dos países citados parou de crescer, pois a população também desacelerou,

permitindo que as indústrias absorvessem os cidadãos saídos dos campos. Outros

motivos ainda alavancavam os índices de emigrantes como o desejo de fazer fortunas,

ou perseguições religiosas e políticas. João Fábio Bertonha (2008, p. 84) afirma que:

[...] é no contexto mais geral da mudança social no campo europeu com a entrada do modo capitalista de produção em cena no século XIX que está a chave para compreender a emigração europeia no período, incluindo a originária da Itália.

Os modelos capitalistas e a industrialização chegaram mais tarde na Itália,

comparando com o norte da Europa, porem geraram praticamente os mesmos efeitos,

ou seja, a incapacidade dos camponeses em competir com os grandes produtores e

ao uso de trigo americano e russo, que entrou no mercado em 1880. Em seguida veio

a falência, pois tinham que pagar os impostos e o restante das despesas, vendo-se

obrigados a vender suas terras e tendo que escolher entre a penúria, o trabalho

incansável e mal remunerado na indústria ou a já tradicional emigração.

Para Possamai (2005), os agentes de emigração, na década de 1870, o

cenário era bem melhor. O modelo político-administrativo imposto pela Casa de

Savóia era centralizador e excluía o Reino de Piemonte-Sardenha. No Sul, as tarifas

aduaneiras não foram mais cobradas, prejudicando a economia local, conservando-

se uma estrutura feudal. As terras católicas, que agora pertencem ao Estado liberal

não cumpriram as promessas de serem redistribuídas aos camponeses, mas foram

vendidas a terceiros. A abolição de conventos pôs fim a trabalhos voluntários e obras

de caridade, gerando revoltas cruelmente contidas pelo exército.

A guerra pela unificação deixou o novo governo economicamente debilitado,

e as fraquezas do poder político não ajudavam a resolver os problemas econômicos.

Para alguns, faltavam laços que unissem poder público e o restante da população,

especialmente os camponeses, que somente acontecia em uma amostra pequena em

Piemonte. O grande fator de união dos italianos neste período era a Igreja, mas tinha

um papa que recusava apoiar a unificação. Resultando destes fatores, somente 2%

da população tinham direitos eleitorais quando 80% só sabiam o dialeto da região

onde nasceram.

Segundo Bertonha (2008), a unificação leva a culpa da situação que os

italianos se encontravam, porque somente a partir dela que se forma o mercado

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capitalista unificado, iniciando a entrada da concorrência capitalista aumentando a

crise camponesa. Claro que a escolha do Estado em apoiar a indústria em detrimento

ao campo e não se posicionando contra os latifúndios do Sul, pois mantinham

camponeses em estrema pobreza, para não perder o apoio dos grandes proprietários

de terras, contribuíram fortemente para o agravamento da situação dos trabalhadores

rurais.

Mesmo considerando outras possibilidades, como por exemplo, aqueles que

saíram à procura de novos mercados para seus empreendimentos, os que queriam

escapar do serviço militar e de perseguições políticas, os poucos operários militantes

contra o fascismo, o avanço do capitalismo somado a economia e as características

da sociedade italiana da época, também eram motivos que colaboravam para a

decisão de emigrar. E ainda deve-se considerar os avanços tecnológicos, como

ferrovias e navios a vapor que ajudaram a locomoção dos italianos pelo mundo,

entrando para os prós pela emigração.

Importante ressaltar que, no período em que os italianos começam a optar por

emigrar, havia um mercado de mão-de-obra já em muitos países, ou seja, os países

de destino dos emigrantes estavam prontos para oferecer-lhes trabalho. Alguns

pontos contribuíram para a geração da demanda pela mão-de-obra, como a abolição

da escravatura em colônias europeias no continente americano, a disseminação das

indústrias por todo o mundo, e a independência de Estados americanos. O primeiro

ponto contribuiu com um número significativo de mão-de-obra na agricultura, o

segundo alavancou milhares de trabalhos braçais em obras sociais, na indústria e em

serviços urbanos, já o terceiro ponto colaborou com o plano de construção de novos

Estados nacionais que apostavam que emigrantes europeus poderiam representar

progresso e civilização, gerando uma demanda massiva de povoadores europeus.

O século XIX movimentou muitos emigrantes pelo mundo, até a Primeira

Guerra Mundial, e os italianos se adaptaram muito bem nestas condições. Assim,

forneceram a força braçal na construção de tuneis austríacos e suíços, represas e

ferrovias na américa do Norte, e trilhos para bondes em Montevidéu. Na França e em

regiões da Argentina, colaboraram com a agricultura, e nos Estados Unidos e

Alemanha, na área de mineração. No Brasil, como chegaram antes da industrialização

foram a base para ela, também desenvolveram trabalhos na agricultura, e nos

canaviais. De forma geral, formavam um grupo de trabalhadores braçais, tanto no

meio rural como no urbano, em trabalhos que não exigiam qualificação, voltados para

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o sexo masculino. Visualizando estes fatores, a quantidade de italianos emigrantes é

impressionante.

Quando se notou que a unificação ampararia as emigrações para o Brasil,

Possamai (2005), afirma que o governo imperial decidiu não tardar a reconhecer o

reino da Itália, mesmo sendo um dos últimos países a fazê-lo, instruindo o

representante do Brasil em Turim manter uma política neutra e abstinente diante das

anexações ao reino de Piemonte-Sardenha. O Brasil também não se posicionou

contra a abolição dos Estados Pontifícios nem mesmo, como se esperava, pelo fim do

Reino das Duas Sicílias, já que Dom Pedro II era casado com um membro da família

real deste país.

Dedicando-se no nordeste da Itália, sobretudo na região do Vêneto, que

carregava a fama de que os camponeses seriam trabalhadores e submissos às

autoridades, ficavam os agentes brasileiros, utilizando a ajuda de prefeitos, vigários,

secretários municipais e mestres de escolas. Porém, os emigrantes provenientes de

regiões como Sicília, Romanha e Marcas, tinham seus contratos recendidos pela fama

de serem um povo propenso a apoiar rebeliões. Os preferidos eram os emigrantes

lombardos e vênetos, por se associarem a sobriedade, a simplicidade, e

principalmente a brandura. A Igreja também apoiava esses povos, por serem muito

ligados às tradições familiares, evitando casamentos mistos.

O local em que os emigrantes ficariam no Brasil, era decidido em conjunto

entre os governos brasileiros e italianos. Assim, a grande parte dos italianos que

chegaram às colônias do nordeste gaúcho, saíram do Vêneto (54%), Lombardia

(33%), Trento (7%), Friuli-Venezia Giulia (4,5%), além outras regiões (1,5%). Na

região central do Rio Grande do Sul, o processo se repetiu, Vêneto (70%), Friuli-

Venezia Giulia (14,4%), Trento (6,5%), Lombardia (5%), Emília Romanha (2,7%),

Toscana (1%), Piemonte (0,3%) e da Ligúria (0,1%). As regiões montanhosas do

Vêneto enviaram muitos emigrantes devido a carência de mantimentos e, em

consequência, o grande número de pessoas sem grandes posses materiais. Então,

as difíceis situações econômicas dos primeiros anos de uma Itália unificada não

ajudaram os cidadãos a forjar sua legitima identidade italiana, mas sim ao contrário.

A chegada dos agentes de emigração em aldeias do norte da Itália, espalhou

a ideia de que os países americanos eram perfeitos, verdadeiros Édens, deixando os

camponeses muito interessados nas propostas, em grande parte incentivados por

membros do baixo clero. Alguns desses padres resguardavam os camponeses de

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ameaças dos donos das terras e das autoridades municipais, encorajando-os a

emigrar. Enquanto a Igreja ansiava pela emigração, porque acreditava que o Brasil

seria um espaço onde não haveria avanços de ideias liberais e socialistas, correntes

de pensamentos que ganham cada vez mais espaço na Europa, os camponeses

sonhavam com uma terra abundante onde com certeza seriam donos de terras.

A religião estava aproveitando a situação, das emigrações em massa, para

sobrepor aos desejos dos camponeses, os seus próprios desejos. Pois era pensando

em que o catolicismo estava diminuindo seus seguidores na Europa como um todo,

devido ao grande número de pessoas adeptas aos ideais do liberalismo, não era bom

que os italianos menos instruídos emigrassem para estes países. Mas sim, para

países da américa latina, que ainda eram fortemente católicos, sabendo que a américa

do Norte tinha uma maioria protestante. Então, os padres das aldeias, organizavam

reuniões para exaltar o Brasil e suas terras abundantes. Há relatos inclusive de alguns

párocos que fizeram a viagem juntamente com seus aldeões, chegando ao Brasil e

sendo nomeados responsáveis pela fé nos lugares onde seu grupo deveria se

assentar.

A imprensa também teve dois momentos em relação às grandes emigrações.

Por um lado, controlada pela Igreja, seguindo o caminho dos párocos, ajudavam na

decisão de emigrar enaltecendo as vantagens de uma terra nova para os colonos. A

Igreja passou a criticar a desagregação da família tradicional, causada pelo trabalho

militar, tirando os homens jovens de suas famílias, obrigando as jovens mulheres a

buscar empregos no meio urbano, pois eram formas de aumentar a renda familiar. E

por outro, a imprensa controlada pelos donos das grandes terras, tendo que noticiar

que haviam grandes espaços de terras improdutivas por falta de mão-de-obra,

denegriam os emigrantes. Porém, houve um momento que as posições se inverteram.

Havendo algumas greves, os grandes proprietários começaram a preferir a emigração

do que a revolta, daí começou a noticiar a emigração de outra forma, passando de

problema à solução para o progresso do país, aumentando a procura pela Marinha e

a expansão comercial da Itália com outros continentes. A partir disso, os colonos não

são mais suspeitos, são pioneiros. O Brasil e a Argentina, passaram a ser países de

terras abundantes e virgens, que deveriam ser fecundadas pelos colonos italianos.

Pode-se dividir a posição do governo em três etapas. Primeiramente, teve

momentos de grande oposição à emigração em massa depois à sua defesa; com o

aumento de pensamentos esquerdistas, a visão da emigração em massa era como a

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solução para os problemas socioeconômicos; e num terceiro momento, que durou até

o início da Primeira Guerra Mundial, com o avanço da industrialização, a Itália deixa

de ser um pais primeiramente agrícola, então as emigrações começam a ser

negociadas com o governo que aprova ou não a emigração devido à situação do país

naquele momento. Por isso é importante frisar que:

[...] o movimento emigratório representou um importante elemento do desenvolvimento capitalista italiano à medida que contribuiu para o equilíbrio socioeconômico da Itália, reduzindo o excedente populacional e tornando-se uma fonte de lucros, através das remessas de poupança dos imigrantes. (IOTTI, 2001, p. 44).

Com estes pontos expostos, é possível entender como a Itália chegou ao

momento onde houveram as grandes emigrações. Uma parte também importante foi

a organização e as motivações brasileiras para que estes emigrantes optassem pelo

Brasil e não a um outro país.

2.3 O BRASIL E A IMIGRAÇÃO ITALIANA

Segundo Giron (1996), a necessidade em substituir o trabalhador escravo, por

um trabalhador livre e branco, deixando evidente o racismo, e a política envolvida na

colonização, formam os fatores decisivos para que a imigração em massa de

europeus para o Brasil acontecesse de forma bem-sucedida. Porém, a situação da

mão-de-obra poderia ter sido resolvida com o uso do trabalho dos próprios brasileiros.

Sabemos disso pois houve um deslocamento da grande população nordestina rumo

à Amazônia, no final do século XIX. Isto aumenta a sugestão de uma política

imigratória de branqueamento da população. O Império, então, nega aos brasileiros o

que propõe aos europeus.

Curioso notar que o Brasil foi um dos poucos países que montou uma empresa

colonizadora que visava o benefício e não a exploração dos imigrantes. Porém, esse

processo todo poderia ter sido direcionado aos brasileiros, ou aos escravos libertos.

Não houve nenhuma tentativa de incluir essas pessoas nos tipos de trabalho no qual

os imigrantes vieram para fazer. O governo achou melhor atestar a falta de capacidade

dos não-brancos para o trabalho, sem oferecer-lhes quaisquer condições. Neste

sentido, “o Império brasileiro tratou seus súditos de forma discriminatória e

preconceituosa” (GIRON, 1996, p. 64).

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O Governo Imperial brasileiro classificava os nativos de incapazes para os

serviços, tendo assim um amparo para a busca de imigrantes europeus, negando

também a imigração chinesa. De acordo com a ideia da classe dominante, os brancos

europeus, por serem superiores, garantiriam uma população maior e, a longo prazo,

evitariam o nascimento de um Império negro no Brasil, pois havia uma população

predominantemente negra, mulata e mestiça que poderia significar o fracasso da

nação. Essas informações evidenciam o racismo que estava presente na necessidade

de mão-de-obra europeia, que era justificada pelo aumento da produtividade agrícola

e o branqueamento da população brasileira.

Por outro lado, Hormeyer (1986), o Governo Provincial do Rio Grande do Sul,

estava em processos para que houvesse aumento da população nas colônias,

cercando toda a Serra do Nordeste, sendo assim um lugar pacífico, obrigando o povo

indígena que ali vivia a fixarem-se e a civilizarem-se. Haviam também as recompensas

financeiras, com a imigração, o Brasil conseguiria uma entrada maior de dinheiro e de

trabalhadores, que aumentariam a produção, o consumo e a importação e exportação

no comércio. Os impostos aduaneiros também aumentariam a arrecadação do

Governo. Esses pontos se sobressaiam aos esforços do Estado para aumentar a

imigração no país.

Loraine Slomp Giron (1996, p. 57) reforça que:

Há alguns pontos que merecem algumas reflexões: de um lado a organização da empresa imigratória, e de outro a da empresa emigratória. Em 1870, a imigração italiana passa a ser intensificada, por motivos conjunturais brasileiros, representados pelo aumento da produção do café, bem como mundiais: a restrição à imigração para os Estados Unidos e a situação política italiana. Com a extinção do sistema de parceria, o Governo passará a subvencionar a vinda dos imigrantes [...].

Pensado no retorno econômico, a empresa imigratória brasileira e italiana se

unem. Os lucros ficam entre as companhias de navegação da Itália e as companhias

comerciais. Os custos eram cobertos pelo governo imperial e com o provincial que

precisavam manter a recém-criada máquina administrativa. Os lucros destes governos

viriam da venda das terras, como na colônia Caxias que estavam à venda 144.000

(cento e quarenta e quatro mil) braças quadradas (equivalente a 645.120m², sendo

cada braça 4,48m²) que renderiam 720:000$000 (setecentos e vinte contos de réis,

difícil de ser transformado para nossa moeda atual, devido a inflação e outras variáveis

do momento).

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Hormeyer (1986), diz que durante a investida da empresa imigratória brasileira

na Itália, houveram boatos que o Brasil somente tinha interesse em substituir a mão-

de-obra escrava, e não criar donos de terras. Para não ofuscar os imigrantes, uma lei

foi criada com todas as regras definas para os imigrantes que viriam por conta própria,

ou seja, pagariam do próprio bolso a viagem e quisesse ganhar as terras do Estado

brasileiro e daqueles que o Governo pagaria também a viagem. Nesta lei também

haviam os preços de algumas colônias, e o funcionamento delas, com as regras dos

coronéis, responsáveis pelas terras a serem ocupadas pelos imigrantes. Assim ficava

mais claro que o Estado não queria somente substituir os escravos pelos imigrantes,

mas sim povoar as suas terras com novos proprietários e trabalhadores livres.

Outra acusação que o Governo brasileiro encarou foi o isolamento dos

imigrantes alemães, pois o Governo temia que eles fossem se organizar contra o

Estado, por estarem muito próximos uns dos outros. Por isso, o Estado parou de

conceder terras estaduais nas proximidades de São Leopoldo-RS. Viu-se uma

preocupação do Governo em assentar imigrantes em pequenas colônias, aumentando

do cultivo destas, na expectativa de que atraíssem compradores para as terras

intermediarias, gerando mais concorrência aos produtos alemães, enfraquecendo-os.

Ainda seria possível observar que o extermínio das comunidades indígenas

era uma das ideias do governo quando as terras dadas aos imigrantes ficavam ao

redor das terras dos índios. Mas um olhar mais aproximado permite-nos verificar que

o ideal seria que o índio, pelo exemplo dos moradores dos arredores, aprendesse a

cultivar, fixassem suas residências, e viver da agricultura, de forma pacífica, para

movimentar mais o comércio. Porém, o que leva a pensar neste extermínio, seria o

fato de que essas colônias que rodeavam as terras dos índios, eram militares. Assim

eram porque se fazia necessário assentar o que restou das tropas alemãs contratadas

pelo governo brasileiro.

Para Vanini (2004), se faz necessário separar os dois movimentos migratórios

italianos para o Brasil. Um na região Centro-Sul, onde os imigrantes foram colonos

nas plantações de café, substituindo o trabalhador escravizado, e quando conseguiam

juntar dinheiro suficiente, compravam suas terras. Já no Rio Grande do Sul, desde o

início do processo migratório, eram destinados a ocupar colônias, como proprietários

de pequeno porte, em terras da Serra gaúcha, que não eram propícias para a criação

de gado. Esses não tinham que substituir os escravos, mesmo porque os imigrantes

começaram a chegar antes mesmo dos senhores pensarem no fim da escravidão.

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Quando os imigrantes saiam do porto de Genova, passavam quarenta dias

atravessando o oceano Atlântico, chegavam ao Rio de Janeiro, desembarcavam para

cumprir a quarentena. Esse processo era supervisionado por médicos e tinha como

objetivo evitar que doenças europeias causassem epidemias no território brasileiro ou

alguma doença contraída na viagem se alastrasse. Após esse tempo, os imigrantes

seguiam para o sul, novamente pelo mar, em pequenos barcos a vapor, em direção

aos portos de Rio Grande e Porto Alegre.

O Rio Grande do Sul conhece o processo imigratório desde 1824, quando as

terras começaram a ser povoadas pelos imigrantes vindos, principalmente, de estados

germânicos. Estes começaram a produzir alimentos para a zona urbana e

movimentaram as receitas do Estado. Isso ajudou o governo gaúcho com a produção

pecuária charqueadora, voltada ao mercado externo, com incentivo do governo

imperial.

Giron (1996), afirma que assim que chegavam, os imigrantes eram destinados

a trabalhos como a abertura de picadas, de caminhos e no desmatamento da região.

Em 1875 inicia-se o povoamento da Colônia de Caxias, que fazia parte das zonas

pouco exploradas pelos portugueses, pois seu interesse maior era a criação de gado,

preferindo as planícies para este tipo de cultura. Querendo diminuir os gastos com a

imigração, quatro anos depois, o governo não tinha interesse em abrir mais colônias.

Os gastos que o governo teve, foram repostos, em parte, pela dívida que os colonos

tinham com a compra das terras. Essa dívida provinha também do incentivo dado pelo

governo, pelo auxilio em alimentação que recebiam logo na chegada, as sementes e

os instrumentos agrícolas que adquiriam. Saia direto do bolso do imigrante a viagem

da Europa para o Brasil, a viagem até o núcleo colonial a qual eram destinados, no

caso dos imigrantes que vieram para o sul, e a hospedagem nos barracões.

Importante para este levantamento histórico são as informações sobre a

Colônia Caxias, que hoje é a cidade de Caxias do Sul-RS, da qual Forqueta é um de

seus distritos. Por isso a próxima etapa deste trabalho está destinada a expor essas

informações.

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2.4 HISTÓRIA DE CAXIAS DO SUL

No início do século XIX, Machado (2001) diz que a população do Rio Grande

do Sul era pequena, espalhada nas estâncias de criação de gado, nos povoados de

interior e poucas cidades como Rio Grande, Porto Alegre, Rio Pardo e Viamão.

Durante os primeiros tempos de povoamento do nosso estado, a posse era a forma

de acesso destas pequenas propriedades rurais, por isso que o governo providenciou

a formação e a consolidação de maneira oficial, ou seja, legalizou a posse. Assim,

com a ideia de povoar as terras utilizando imigrantes europeus, haviam as planícies

no Vale do rio Caí e do Rio dos Sinos, o Planalto, e a Encosta Superior da Serra do

Nordeste, sendo todas essas chamadas de terras devolutas, que de acordo com o art.

3°, da Lei 601 de 28/10/1848, eram terras não ocupadas por posse, que passaram a

ser legitimas após essa lei.

Giron (1977) aborda que a distribuição de terras devolutas, feita pelo Governo

Imperial, teve duas formas empregadas, a de parceria e a de pequenas propriedades,

sendo a última a mais utilizada. Esta ação queria resolver a problemática da mão-de-

obra no Sul, mas acabou gerando outro problema, o surgimento de minifúndios. Desta

forma os imigrantes alemães, chegados ao RS a partir de 1824, iniciam novas culturas

como a do fumo e do algodão.

De acordo com Machado (2001), a formação oficial de Caxias do Sul inicia no

último quarto do século XIX, para abrigar os imigrantes que chegariam ao RS para

povoar e colonizar esses espaços ainda não utilizados. Antes disso, a região era

ocupada por índios caingangues e tropeiros que a chamavam de Campos dos

Bugres14. Em 1875 criou-se a Colônia aos Fundos de Nova Palmira, chamada assim

pela sua localização ao sul de Nova Petrópolis, Picada Feliz e Nova Palmira, colônias

alemãs15, preparação para a chegada dos primeiros imigrantes italianos, ainda no

mesmo ano. Já em 1877 foi renomeada para Colônia Caxias, sediando a

administração do projeto de colonização da região.

Com o Decreto 6.129, em 23 de fevereiro 1876, criou-se a Inspetoria Geral de

Terras, que tinha a responsabilidade de promoção, fiscalização e direção dos

14 CAXIAS DO SUL. Prefeitura Municipal de Caxias do Sul. Disponível em: https://caxias.rs.gov.br/a-cidade/origem-do-nome. Acesso em: 29/05/2018. 15 CAXIAS DO SUL. Prefeitura Municipal de Caxias do Sul. Disponível em: https://caxias.rs.gov.br/a-cidade/origem-do-nome. Acesso em: 29/05/2018.

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trabalhos da imigração e colonização, organizar o registro dos imigrantes e demarcar

as terras. Essa inspetoria estava ligada ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras

Públicas, e seu correspondente estadual, a Inspetoria Especial de Terras e

Colonização, sediada em Porto Alegre, se responsabilizava pela fixação dos

imigrantes, de acordo com as legislações vigentes. A autoridade era do diretor da

Colônia, engenheiro-chefe, que coordenava a demarcação das terras e dirigia todos

os negócios e serviços da Colônia. Ele tinha a autoridade também de expedir títulos

provisórios ou definitivos de propriedade, visualizando a arrecadação da Colônia,

como a utilização do trabalho dos imigrantes na construção das estradas.

Assim, foram demarcadas 17 léguas quadradas, que representavam uma

área de 144.000 braças quadradas (cada braça equivale a 4,48m²). A sede

administrativa ficou localizada na primeira légua, mas logo transferida para a quinta

légua, sendo nomeada Sede Dante, nome dado em homenagem ao poeta Dante

Alighieri, que recebeu construções de prédios para abrigar os primeiros imigrantes e

os funcionários da Comissão de Terras. Em 1879, foi aprovada uma planta que se

destinava a localizar uma zona urbana, com poucas ruas pois ainda se tratava de uma

vila no início de seu desenvolvimento.

Giron (1977), confirma que a demarcação das terras iniciou pela região hoje

conhecida como Forqueta, no limite ao sul da Colônia. Assim, a légua tinha 5.500m

em cada lado, e todas as léguas tinham seus travessões. A partir daí, tinha-se lotes

de terras, de áreas variadas, diversificando também o número de lotes por travessão,

mas em média eram 32 lotes por travessão e 132 lotes por légua. É possível visualizar

as demarcações das léguas na imagem 1. Quando os imigrantes chegaram, tinham a

sua disposição aproximadamente 2.500 lotes. Entre os anos de 1875 e 1886

distribuiu-se 1.600 lotes. Esses espaços de terra tinham seus valores, estipulados pela

Comissão de Terras, cobrados dos imigrantes que as ocuparam, o quadro 2 traz

informações sobre valores e número de lotes correspondentes.

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Imagem 1 - Mapa da Colônia Caxias

Fonte: (ARQUIVO MUNICIPAL, 2018)

O lote recebido pelo imigrante, não tinha relação com a quantidade de filhos,

ou de pessoas da mesma família, mas sim pela possibilidade de pagamento pela terra.

Era possível adquirir desde um lote inteiro, meio lote ou até mesmo um quarto de lote.

Há registros de imigrantes com dois lotes, mas, de acordo com os documentos

recuperados, não houve como determinar porque estes colonos receberam dois lotes.

Como explicitado no quadro 2, não houveram relação entre o valor das terras e a

qualidade do terreno, pois a maioria foi vendida a 3 réis a braça quadrada, e nestes

terrenos era possível encontrar diferentes relevos, arroios, entre outros. Essa variação

de preços pode ser atribuída ao tempo, que foi passando e aumentando o valor, ou a

arbitrariedade da Comissão que estipulava os valores aos diferentes lotes.

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Quadro 2 - Valor em réis por braça quadrada de lote - 1875-1886

Réis Número de lotes %

2 14 1,05

3 659 49,11

4 207 15,44

5 211 15,74

6 101 7,54

7 27 2,02

8 122 9,10

Total 1.341 100,00

Fonte: (GIRON, 1977, p. 23)

Já nos lotes urbanos, Machado (2001) fala dos vários artesãos e comerciantes

que emigraram para o Brasil, compunham juntamente com os funcionários do

governo, fazendeiros e tropeiros dos Campos de Cima da Serra, os habitantes deste

local. Iniciaram a construção dos primeiros casarios, com casas simples e

campesinas, como ilustrado pela imagem 2, com material extraído do desmatamento

da região, conforme os lotes eram ocupados pelos colonos. Nesta época a vida dos

moradores ainda era precária, pois o iniciado meio urbano era distante de outras

localidades mais desenvolvidas e a estrada que levava a esses centros tinha

péssimas condições.

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Imagem 2 - Fotografia das construções no centro urbano da Colônia Caxias

Fonte: (MACHADO, 2001, p. 35)

Sendo assim, o local precisou ser autossuficiente, produziam os objetos e

utensílios necessários para a vida cotidiana, questão também resolvida desta forma

no meio rural, dando origem as primeiras oficinas, pequenas fábricas, e os primeiros

artesanatos. Já na agricultura, quando a fase de produção para a sobrevivência das

famílias passou, houveram excedentes que começaram a ser comercializados em

outros centros regionais por um grupo de imigrantes organizados, que se dedicaram

ao comércio e exportações de produtos coloniais. Após a superação dos adventos de

começo de vida e um novo local, tanto no meio urbano como rural, aos poucos, as

coisas foram se organizando para assegurar que o grupo sobrevivesse, além de

contribuir com o crescimento e sua propagação.

Através da Associação dos Comerciantes, os líderes das atividades

econômicas procuravam a união do grupo. E logo nos primeiros atos da nova

entidade, foram postos à prova a sua capacidade de liderança e seu poder para a

pressão, pois confrontavam o Intendente Municipal que se negava a reconhecer a

legitimidade da Associação. Com estas primeiras dificuldades vencidas, passaram a

tratar de problemas que dificultavam o bom andamento das atividades comerciais,

como a melhoria das estradas e das comunicações, a construção da ferrovia que

ligava a região à capital (imagem 3 mostra a inauguração da estrada de ferro em

1910), a cobrança dos impostos, entre outas coisas. Assim, o espaço urbano foi

adquirindo notoriedade, pois a economia crescia mostrando a capacidade e a

importância da região.

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Imagem 3 - Inauguração Estrada de Ferro 1910

Fonte: (MACHADO, 2001, p. 181)

A Colônia Caxias tinha na sua constituição, segundo Giron (1977), imigrantes

italianos, mas não somente eles. Além desses, outras etnias constituíam o local.

Austríacos, alemães, espanhóis, eram algumas das nacionalidades presentes na

Colônia. O quadro 3 informa as nacionalidades que ocupavam a Colônia Caxias entre

os anos de 1872 até 1886, e que representa a constituição da cidade grande que

Caxias do Sul se tornou.

Quadro 3 - Origem dos imigrantes Colônia Caxias - 1872-1886

Nacionalidade Número de imigrantes %

Italianos 2.909 70,99

Austríacos 975 23,80

Brasileiros 86 2,10

Boêmios 57 1,39

Alemães 39 0,95

Franceses 15 0,37

Espanhóis 11 0,27

Ingleses 3 0,07

Argentinos 2 0,04

Húngaros 1 0,02

Total 4.127 100,00

Fonte: (GIRON, 1977, p. 29)

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Os diversos imigrantes chegaram ao Brasil entre os anos de 1850 e 1930, e

em Caxias esse período compreende os anos de 1872 até 1913. Atribui-se o ano de

1872 pois esta é a data que os débitos com os lotes de terra estão descritos nos

documentos da Fazenda Nacional. Neste ano, a região já tinha 22 habitantes, todos

imigrantes da Boêmia, região que pertencia ao Império Austríaco e hoje corresponde

à República Checa. Entre os bohemios que chegaram ao RS, os primeiros a serem

direcionados à Forqueta, foram registrados em 1874, como mostra o quadro 4.

Quadro 4 - Relação dos imigrantes chegados à Colônia Caxias em 1874

Data da Chegada

Imigrante Lote Légua Travessão Dependentes

04/08 Johan Weiss 3 Forqueta dos Bohemios 6

04/08 August Hübner 4 Forqueta dos Bohemios 8

Ao todo 16 pessoas Fonte: (GIRON, 1977, p. 32)

A Sede Dante, sendo o núcleo urbano, atraiu todos os imigrantes artesãos,

ao mesmo tempo que os imigrantes agricultores se estabeleceram no núcleo rural da

Colônia. Desta forma, “os imigrantes, com suas profissões e seus ofícios, transferiram

para a colônia todos os hábitos e costumes da Itália, tendo aumentado o número de

ofícios de acordo com as necessidades da nova terra” (1977, p. 34). É interessante

notar que houveram trajetórias diferentes do que aquela que o imaginário social

constrói, de imigrantes pobres que permaneceram pobres durante suas vidas, pois o

imigrante Felice Laner, chegado a Colônia no ano de 1876, angariou o lote 42, com

642.200m², situado no travessão Santa Thereza, pertencente à 5° légua, além deste,

23.232m² na Sede Dante. Era oleiro de profissão e comprou essas terras citadas

depois de mais ou menos 6 anos de sua chegada.

Machado (2001) afirma que logo a vila de casas de madeira foi se

transformando, ganhando melhores construções, inclusive de alvenaria. Em 1927, o

segundo código administrativo não permitia a construções de madeira no centro,

demostrando que a administração municipal tinha uma preocupação com a seleção

de moradores da área central, pois privilegiava a elite que vinha se formando no local.

É possível ter um vislumbre da região na imagem 4, registro do busto de Dante

Alighieri, na praça que leva seu nome em meados dos anos 1920, e na imagem 5, na

mesma praça e no mesmo ano, o busto de Júlio de Castilhos, ambos permanecem no

mesmo local atualmente. E assim, os investimentos foram todos direcionados para o

centro da cidade, em infraestrutura básica, acrescendo mais o valor das terras,

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aumentando ainda mais a segmentação dos moradores da região central, ou seja,

quem tinha poder aquisitivo maior. Na década de 30, o centro recebeu pavimentação

das ruas, canalização da água e esgoto, novas vias foram abertas, tudo em

conformidade com o crescimento econômico que o fortalecimento comercial e

industrial apresentava.

Imagem 4 - Busto de Dante Alighieri 1920

Fonte: (LOPES, 2014)

Já na década de 50, o que muda bastante é a composição da população.

Acostumados a encontrar rostos de descendentes italianos, de pele branca, olhos

claros e cabelos loiros, a vinda de brasileiros começou a trazer peles morenas,

cabelos e olhos escuros à região. E no lado econômico, as pequenas fábricas e

oficinas se transformaram em indústrias tecnológicas e dinâmicas atraindo muitas

pessoas de fora da cidade, que simbolizam os novos migrantes que acompanham a

industrialização, trazendo consigo novos costumes, agregando à polenta o charque e

ao vinho o chimarrão.

De forma direta, de acordo com Giron (1977), é possível contar a história

administrativa de Caxias em três fases: a colonial, que inicia em 1875 e vai até 1884,

comandada pela Comissão de Terras; a fase distrital, que acontece entre os anos de

1884 a 1890, com a administração feita por duas frentes, uma por São Sebastião do

Caí e outra também pela Comissão; e a última, a fase municipal, que iniciou em 1890

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e dura até os dias de hoje, e teve seu comando ditado pela Intendência e pela

Comissão até 1894, e após isso pela municipalidade.

A fase colonial corresponde ao período que a região era colônia. Esta foi uma

fase de intensas atividades, como a chegada dos imigrantes a sua distribuição nos

lotes, a abertura das matas fechadas da região, entre outras. A legislação que

abordava a acolhida aos imigrantes era boa, mas quando posta em ação não foi

satisfatória. Haviam muitos imigrantes insatisfeitos, a viagem da Itália até Santos ou

Rio de Janeiro era longa, muitos morriam, as bagagens eram extraviadas com muita

frequência. Do porto destas cidades até Porto Alegre, vinham de barco a vapor, e dali

encaminhados a São Sebastião pelo rio Caí e depois de cargueiros até a colônia.

Ficavam em barracões entre 6 meses, até 2 anos, e nestes locais a peste se alastrava,

crianças morriam, a febre atacava os adultos e não tinha recurso para combater a

enfermidade.

Imagem 5 - Busto de Júlio de Castilhos 1920

Fonte: (LOPES, 2014)

Assim, alguns voltaram para a Europa, outros rumaram para os Estados

Unidos e Argentina, mas a maioria permaneceu no Brasil. Para quem ficou, e ainda

não podia colher as plantações, trabalhavam por jornadas para a Comissão. Ai, o

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momento de ganhar seu lote era demorado, alguns tinham erros de demarcação, e

somente em 1882 começaram a receber os títulos provisórios, que ganhavam quando

uma certa quantia do valor do lote estivesse paga.

Na fase distrital, a Colônia Caxias se emancipou e ficou dependente

administrativamente de São Sebastião do Caí, se tornando o 5° Distrito da cidade.

Essa mudança não gerou muitos movimentos no que já acontecia administrativamente

na colônia, pois a Comissão de Terras ainda tinha forte ligação com a região do Caí,

mas divergindo em muitos aspectos entre si. No ano de 1884, Caxias ascende a

categoria de freguesia, o que a faz se desvincular da Paróquia de São José do

Hortêncio da Feliz, e neste mesmo ano a Comissão de Terras, para cuidar melhor do

assentamento dos imigrantes, se divide em 3, uma parte permanecendo em Caxias,

outra em Nova Milano e a última em Nova Trento.

Também nesta fase, os colonos que não saldaram suas dividas tiveram seus

lotes leiloados para garantir que a Fazenda Imperial recebesse sua parte sobre as

terras da região. Os registros civis, que antes eram responsabilidade da Comissão,

passaram a ser da Igreja, pois não havia funcionários nomeados para esta tarefa. E

pelo mesmo motivo, a Comissão passou a São Sebastião a responsabilidade da

construção e manutenção das estradas. Em 1885 a região contava com um número

aproximado de 10.000 habitantes, e já havia uma certa relação comercial com a

capital. Porém, nenhum colono participava da política local.

E a fase municipal, inicialmente, foi marcada pela insatisfação da população

devido às disputas entre as administrações da Comissão e de São Sebastião, pois

prejudicava o bom andamento dos trabalhos. A disputa pelo poder existente entre São

Sebastião do Caí e a Comissão, possivelmente causou muitos problemas na cobrança

de impostos dos contribuintes. Por isso, muito se solicitou a emancipação ao Governo

do Estado, que no Ato Estadual n°257, de 20 de junho de 1890, criou o município de

Caxias. Então, um governo municipal foi estruturado, com um Intendente, responsável

por todos os serviços, e um conselho com 7 membros, que tinha a missão de votar

como seriam executadas as ideias do Intendente. Em cada distrito, haviam um

Subintendente. Estes eram eleitos pelo prazo de 4 anos, podendo ser reelegíveis,

desde que residentes no país por 6 anos.

Desta forma, os imigrantes começaram a ter vida ativa na política, sendo

eleitos membros do conselho, mesmo atuando violentamente contra alguns

intendentes, pois estes eram quase sempre antigos membros da Comissão de Terras

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ou funcionários públicos. A organização política permaneceu assim até o Estado Novo

em 1937, e com este regime, os prefeitos passaram a ser nomeados pelo Governo.

Foi um período de muitas obras administrativas pois o cenário na Segunda Guerra

Mundial permitiu a expansão econômica, não só da região como também do país.

Nesta época, e até antes dela, os imigrantes sofriam represálias, ocorriam muitos

incidentes envolvendo-os. Era noticiado nos jornais locais, inclusive nos redigidos em

italiano, a simpatia pelo Eixo, que a Itália fazia parte, grupo que se formou para

combater os inimigos, que eram os Aliados, na Segunda Guerra. Então o Brasil se

juntou aos Aliados, deixando a situação ainda mais tensa para os imigrantes. Depois

disso, ainda muitas mudanças territoriais ocorreram, como a entrada e a saída de

localidades da configuração regional do município.

Para Machado (2001), não se pode falar em Caxias do Sul sem mencionar a

Festa da Uva. A uva e o vinho foram os grandes líderes da atividade econômica de

Caxias por muito tempo. O vinho tinha entrada certa nos estados de São Paulo, Rio

de Janeiro, Minas Gerais, e outros. Sendo assim, exigia muito trabalho dos produtores

para mantê-lo no mercado e combater a concorrência estrangeira, fraudes e

falsificações que desvirtuava a qualidade do produto. Para tentar achar uma solução,

as autoridades municipais e estaduais criaram alianças com os produtores e

exportadores do vinho.

A uva ganhou sua festa em 1931, e assim marcou seu lugar como elemento-

símbolo das comemorações da festa que serviu como vitrine dos produtores de Caxias

do Sul. Mas, desde 1881, ainda na Colônia Caxias, ocorriam as exposições dos

produtores de uva da região, tradição que se mantém até os dias de hoje, marcando

a trajetória “de lutas na busca de novos mercados cada vez mais distantes para os

produtores caxienses” (MACHADO, 2001, p. 198).

Contextualizando a localidade de onde os entrevistados desta pesquisa

residem, e até onde alguns deles nasceram, São Virgílio, segundo Barbosa (1980), é

uma pequena localidade, pertencente a Segunda Légua da antiga Colônia Caxias,

que fica a 12km do centro da cidade e 8km da vila de Forqueta. Abrange uma área

montanhosa que pertencem as famílias de origem italiana, que praticamente na sua

totalidade, são descendentes dos pioneiros que aqui chegaram em 1875. De lá, é

possível avistar as cidades de Farroupilha, Nova Petrópolis, e a noite a iluminação de

Porto Alegre. Tem como base econômica para seus moradores e proprietários de

terras, a vitivinicultura, facilitada pelo solo pedregoso.

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Quase não há terrenos planos, as propriedades se conduzem para dois vales,

abismos que na sua maioria são intransponíveis. Em suas terras encontram-se

cavernas naturais, que já serviram como moradas indígenas. Ali, já foram encontrados

objetos como panelas, machados de pedra, entre outros, atribuídos aos indígenas

caingangues que habitavam a região. O primeiro imigrante que se assentou no

travessão São Virgílio foi Francisco Bampi, com sua esposa e os 3 filhos. Logo após,

chegaram Eugênio Onzi e seus quatro irmãos, Francisco Lazzaretti, Pedro Perottoni,

Celeste Boniatti, Luís Marchesini, Luís Paniz, Antônio Fiamoncini, Adolfo Capeletti,

Francisco Perini, Francisco Vitti, João Bertotti, João Deconz, Antônio Fruet, Pasqual

Polesso, Antônio Berna, João Mezzomo, Carlos Bertotti, José Bampi e João Ferrari.

Este grupo de imigrantes iniciou o ardo trabalho com a terra, investindo contra

a agressividade e hostilidade da natureza local. Com pouca bagagem, fazendo as

viagens como podiam, puxando crianças pela mão, abriam picadas no matagal, reféns

do tempo como o frio, a chuva, algumas vezes a neve, e vivendo da caça e dos

pinhões. A derrubada de árvores grandes, como os pinheiros, forneceu material para

a construção das primeiras casas. Alguns desses pioneiros são reconhecidos pela

administração local, pois ruas de Caxias foram nomeadas a partir deles, como Basílio

Onzi, Luiz Marchesini e João Batista Bampi. Algumas dessas famílias também estão

representadas neste trabalho. Foram entrevistados para contribuir com a metodologia

escolhida para embasar este trabalho, a história oral. Entre elas, os Onzi, os

Marchesini, os Bertotti, os Bampi, e outras, colaboraram com suas histórias.

Estes fatos, provenientes de pesquisa bibliográfica, explicam resumidamente,

como uma parte significante da população do nosso Estado e da cidade de Caxias do

Sul foi constituída. Este trabalho procura se apoiar na comida como uma peça

fundamental da identidade desses imigrantes, sendo a ligação destas pessoas com a

identidade italiana, como se autodenominam. Por isso, o próximo capitulo vai explorar

as condições da comida como cultura e os processos culturais que giram em torno

dela.

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3 COMIDA COMO MANIFESTAÇÃO DA CULTURA

Este capítulo da dissertação pretende explorar três etapas que englobam a

representação da comida como cultura. Iniciando pela perspectiva de quando a

comida é produzida, ou seja, quando o homem se relaciona diretamente com a

natureza, antes de poder modificá-la profundamente para atender a demandas mais

pontuais. Desta forma, serão descritos fenômenos históricos, de sociedades antigas

tradicionais que iniciaram os trabalhos com a agricultura e a domesticação de animais,

moldando suas culturas. Dentre este espectro, mostra-se o início dos processos de

adequação das sazonalidades e como se lidava com o tempo da terra, ou a

conservação dos alimentos de épocas passadas. Também o domínio e o

conhecimento do espaço necessário para o desenvolvimento da agricultura.

Obviamente esses conhecimentos geraram conflitos, que também são abordados no

texto.

Na sequência, o texto aborda outra questão que exprime os indicadores

culturais a respeito da comida, a preparação da comida. Este aspecto engloba a

descoberta e o domínio do fogo, que foi um dos principais acontecimentos que

alteraram o curso das civilizações, não só no aspecto alimentar, mas em muitos

outros. As diferenças entre a cozinha escrita, ou os registros que foram criados sobre

os ingredientes e as formas de cozinhar, normalmente associada as elites, e a cozinha

oral, transmitida de geração para geração, priorizando o saber fazer e a observação,

associada aos menos afortunados. O espaço que a alimentação gerou para afirmar o

não pertencimento à uma cultura, renegando hábitos e costumes, ou a cocção de

alimentos como forma de pureza e santidade. Neste sentido, as diferenças entre a

comida assada e a cozida, e o simbolismo que cada uma carrega. Depois, os prazeres

que o comer bem pode proporcionar e os cuidados com a saúde através da

alimentação.

E por fim, as manifestações culturais que acontecem quando a comida é

escolhida pelo homem. Esta etapa aborda relatos como o entendimento de que o

gosto por determinada comida ou o desgosto são produtos culturais, como se originam

e se mantem, e podem demarcar diferenças e semelhanças sociais. Também, as

manifestações de poder e diferenciações sociais realizadas através do que se comia,

ou da quantidade do que se consumia. As importantes datas comemorativas e as

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comidas atreladas a elas. E, mais recente, a distinção entre uma cozinha internacional

e uma regional, o que cada uma representa e como se relacionam entre si. Finalizando

as colocações, já na atualidade, as alterações na cultura alimentar acarretada pela

globalização e industrialização, e como o homem lida com essas diferentes opções

para alimentar-se.

Importante ressaltar que cada uma destas etapas está relacionada com um

conceito de cultura diferente. Esta decisão foi tomada levando em conta que cada

processo cultural alimentar descrito tem sua particularidade, que pode ser notado de

formas diferentes em sociedades diferentes ao longo do tempo. A cultura não pode

ser definida com somente um conceito, estático, pelo contrário, os conceitos de

cultura, assim como ela própria, são vivos, mutáveis, sempre em movimento. Desta

mesma forma opera a comida, ela muda conforme a necessidade ou os desejos das

sociedades, pode ser abundante ou escassa, rústica ou sofisticada, transformada ou

transformadora. Conforme indicamos anteriormente, com o intuito de confirmar uma

das hipóteses, e atingir os objetivos, retomamos o problema de pesquisa: Como se

deu a constituição da cultura culinária (comida) no distrito de Forqueta?

Por isso, os conceitos de cultura escolhidos para compor os subtítulos estão

relacionados ao tipo de comida que eles se referem. No primeiro caso, comida como

cultura quando produzida, o conceito de cultura utilizado foi aquele escrito por

Branislaw Malinowski (1975), pois esta concepção aproxima o homem da natureza,

encontrando as formas que um complementa a outra. Na segunda etapa, comida

quando cultura quando preparada, onde o homem começa a usar seus conhecimentos

para alterar a natura, o antropólogo discorda de Malinowski e desenvolve sua visão

conceitual de cultura. Levi-Strauss (1982), aponta justamente o oposto, que natureza

e o homem são duas forças distintas, que interagem, mas que representam duas

coisas opostas. No terceiro e último tópico, comida como cultura quando escolhida,

utilizou-se de um conceito que mostrasse a multiplicidade de maneiras de viver e de

estudar o homem e suas sociedades. Geertz (2008) aborda o homem e as teias que

ele mesmo cria, nomeando essas teias cultura.

É neste capítulo também que se faz necessário explanar sobre a metodologia

aplicada ao trabalho. A pesquisa bibliográfica foi utilizada, pois se trata de pesquisa

construída a partir de material já publicado como livros, revistas, artigos, entre outros.

Como parte deste tipo de pesquisa, houve preocupação na verificação da veracidade

dos dados, sempre com atenção a possíveis contradições que essas obras podem

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abordar (PRODANOV; FREITAS, 2009). Também se utilizou de história oral para

completar a estrutura metodológica, e optou-se por trazer os resultados das

entrevistas com moradores da comunidade objeto deste estudo, juntamente com a

teoria abordada. Nos dias atuais, segundo Amado e Ferreira (2006), há uma grande

distância entre o crescimento da história oral e a pouca quantidade de publicações

sobre o tema, em língua portuguesa. Entende-se história oral como metodologia,

porém remete a uma dimensão também teórica. Sua introdução no Brasil se deu nos

anos 70, porém somente no início dos anos 90 ganhou notoriedade.

A história oral, segundo François (2006), poderia ser inovadora por causa de

seus objetos, pois normalmente ela dá atenção especial à história do cotidiano e da

vida privada, à história local e enraizada. Conseguiria ser inovadora também pelas

suas abordagens, que dão prioridade para uma história vista de baixo, pois ela dá

atenção às maneiras de ver e sentir, preferindo as estruturas objetivas e visões

subjetivas, e percursos individuais, em uma deliberação micro histórica.

A história oral, para Alberti (2004), como um método de pesquisa, privilegia o

feitio de entrevistas com pessoas que participaram ou testemunharam acontecimentos

para que o pesquisador possa se aproximar do objeto de seu estudo. Por

consequência, este método produz fontes para consultas, as entrevistas, para outros

estudos, podendo fazer parte de um acervo acessível a outros pesquisadores.

Prins (2011, p. 165) explica que

Os historiadores das sociedades modernas [...] em geral são bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado. [...] muitos podiam nessa altura ser um pouco mais generosos e admitir a história oral [...] como uma ilustração agradável e útil; mas poucos aceitariam que tais materiais possam se tornar essenciais no estudo das sociedades modernas, documentadas.

Participar de uma sociedade onde a cultura de palavra escrita é dominante,

desprezando a palavra falada, tem como efeito sua cauterização. Alguns historiadores

tradicionais, que dão preferencias por documentos, normalmente buscam qualidades

em suas fontes, e nenhuma está em fontes orais. Eles buscam precisão na forma,

pois para eles, a evidência deve ser estável em sua natureza. Eles tratam seus

documentos como artefatos. Entretanto, o testemunho, sem dúvidas é uma forma fixa

fisicamente. Da mesma forma que um documento, ele pode ser testado de várias

maneiras, através de variados meios comparativos, textuais, estruturais, físicos, entre

outros.

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Meihy e Holanda (2007), dizem que o início das entrevistas em história oral,

com gravações, necessita que se preste atenção nas emissões orais com a intenção

de encadear ideias designadas para o registro ou para explicar interesses

anteriormente planejados. As entrevistas são a manifestação do que pode ser

chamado de documentação oral, um suporte material advindo de linguagem verbal, é

uma fórmula programada e se liga a projetos que a justificam.

Os registros em história oral podem ser analisados para favorecer estudos

como de identidade e memória coletiva. Utilizando a memória, ela vincula-se com a

identidade do grupo que está sendo entrevistado. Não se trata de um procedimento

ou ato único, e sim de uma soma planejada de ações pensadas como um todo. Desta

maneira, se torna fundamental que haja uma proposta previamente estipulada para

responder três questões que orientam a história oral: de quem? Como? E por quê?

Acerca da memória, apoia-se em teoria abordada por Michael Pollak (1989),

que no texto “Memória, Esquecimento, Silêncio” trata sobre as relações existentes

entre memória e identidade social, especificamente sobre as histórias de vida ou,

como chamamos hoje o método história oral. O autor afirma que: “a memória deve ser

entendida como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno

construído coletivamente e submetido a flutuações, mudanças constantes” (POLLAK,

1989, p. 3).

O autor constantemente se refere a uma memória individual como também

uma coletiva, para esboçar que são equivalentes em termos científicos. Então, os

elementos constituintes das memórias individuais e coletivas, são os acontecimentos

vividos pessoalmente em primeiro lugar, enquanto os acontecimentos que são vividos

pelo grupo, pela sociedade que o indivíduo está inserido, são chamados de “vividos

por tabela”.

Neste sentido, a pessoa não necessariamente precisa ter participado do

ocorrido, mas a memória daquilo pode ocupar tamanha proporção que ficaria difícil

determinar sua participação efetiva. É perfeitamente possível que por socialização

histórica ocorra uma identificação com o passado tão forte que o autor chama de uma

memória quase herdada. Ainda assim, a memória é seletiva, nem tudo fica gravado.

A memória sofre alterações, reflexo do momento em que elas são articuladas. Para

ele, “as preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da

memória” (POLLAK, 1989, p. 4). Este contexto também se aplica à memória coletiva,

por ser uma memória ainda mais estruturada que a individual. Outro dado importante

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abordado pelo autor, é a ligação estreita com o fenômeno de sentimento de

identidade. Ele diz que este sentimento é o significado da imagem de si, para si e para

os outros.

Retomando a história oral como método, segundo Meihy e Holanda (2007), o

grupo que está sendo entrevistado deve receber explicação pelas razões que levou a

ser escolhido. No início da entrevista, deve-se explicar o projeto, o porquê foi

convidado e o destino das gravações. O local da entrevista deve ser pré-agendado

sendo de escolha do entrevistado. O tempo de entrevista deve ser premeditado, e de

preferência, que todos os entrevistados utilizem a mesma quantidade de tempo,

mesmo que isto se torne muito difícil. Então, há a passagem do oral para o escrito, e

este processo é complexo e demanda tempo. Por isso, é importante salientar ao

entrevistado que pode demorar até ele visualizar o resultado. É prudente esclarecer

que nada será divulgado sem a prévia autorização do entrevistado.

Como descreve o procedimento, os entrevistados foram contatados com

antecedência, questionados sobre sua participação e contribuição com o assunto,

convergindo no aceite do convite. Com agendamento prévio, as entrevistas

aconteceram nas casas dos entrevistados, em horários que melhor lhe convinham,

nos dias 12 e 13 de maio de 2018. A média de tempo de entrevista que cada uma das

6 pessoas utilizou para responder o questionário semiestruturado foi de 45 minutos.

Todas as entrevistas foram gravadas com dispositivo móvel e transcritas

posteriormente.

A passagem do oral para o escrito deve ser muito cuidadosa, pois deve-se

prezar o valor documental do resultado obtido com as entrevistas. Por este motivo,

não é aconselhável produzir conteúdo de história oral por vias como o telefone ou a

internet, por exemplo. O contato direto, afeta de maneira decisiva as formas de

exposição das narrações.

Os resultados provenientes das entrevistas devem se tornar documentos de

base escrita, mesmo que derivados de diálogos verbais. A oralidade quando

transformada em escrita congela a narração e a realidade do momento da fala. O

estado fluído da fala se estratifica, tornando o momento de fala prisioneiro das letras

escritas. Pode-se chamar os resultados da história oral de grupal, cultural, social ou

mesmo coletivo, pois cria vínculos entre as pessoas, já que suas memórias são

expressas em termos comunitários, revelando uma construção de identidades.

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História oral sempre será social, pois o indivíduo só se explica em vida comunitária.

Meihy e Holanda (2007, p. 26-27), alertam que:

Por meio da história oral, por exemplo, movimentos de minorias culturais e discriminadas – principalmente de mulheres, índios, homossexuais, negros, desempregados, pessoas com necessidades especiais, além de migrantes, imigrantes e exilados – têm encontrado espaço para validar suas experiências, dando sentido social aos lances vividos sob diferentes circunstâncias.

Neste sentido, é importante definir os passos que implicam cinco momentos

principais: (1) elaboração do projeto, muito importante pois define critérios de como

proceder; (2) gravação, é fundamental pois é a forma de materializar o processo; (3)

estabelecimento do documento escrito, deve determinar o tipo de transcrição e seus

futuros usos; (4) eventual análise, pode ou não acontecer, pois vai depender do

objetivo do projeto (5) arquivamento, remete aos cuidados e responsabilidades do

resultado das entrevistas; E por fim, (6) a devolução social, relaciona-se ao

compromisso comunitário que a história oral requer, pois deve sempre gerar retorno

ao grupo estudado. Com estas definições acertadas, segue a continuidade do tema

proposto.

3.1 COMIDA COMO CULTURA: QUANDO PRODUZIDA

É importante iniciar esta etapa da dissertação abordando o conceito de cultura

que mais se aproxima ao tema que o subtítulo aborda. Colaborando com o vínculo

entre homem e natureza, Bronislaw Malinowski (1884-1942), antropólogo polonês,

considerado um dos fundadores da antropologia social, compôs sua teoria sobre

cultura utilizando esses dois aspectos: a natureza e o homem. Para ele, o

entendimento da cultura, deve atingir a todos, nas mais variadas áreas do

conhecimento. Além disso, acredita que a cultura deve ser definida baseada no fator

biológico. Ele afirma:

Os sêres humanos são uma espécie animal. Estão sujeitos a condições elementares que têm de ser atendidas de modo que os indivíduos possam sobreviver, a raça continuar e os organismos em conjunto ser mantidos em condições de funcionamento. Ademais, com sua bagagem de artefatos e sua capacidade para produzi-los e apreciá-los, o homem cria um ambiente secundário. (MALINOWSKI, 1975, p. 42).

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Satisfazer as necessidades orgânicas e básicas da humanidade, é apontada

por Malinowski (1975), como condição imposta em cada cultura, ou seja, se deve

sempre procurar uma forma de satisfação das necessidades nutritivas, reprodutivas e

higiênicas do homem, em qualquer cultura. A satisfação destes aspectos leva a

construção de um novo ambiente, que ele chama de secundário ou artificial, e que

vem a ser a personificação da cultura, pois deve ser continuamente reproduzido,

mantido e administrado. Assim, se apresenta um novo padrão de vida, que se

relaciona a um certo nível cultural da sociedade.

A tradição cultural deverá ser transmitida de geração para geração, pois isto

define o formato educacional dentro de cada cultura, já que a essência deve ser

renovada e mantida em funcionamento. Porém, antes disso, o homem precisa manter

saciado o seu organismo. Então, procura elaborar condições para ser possível se

alimentar, se aquecer e se abrigar, protegendo-se de perigos externos, físicos,

animais ou humanos. Estas questões são resolvidas através da criação de artefatos,

de organização em grupos e pelo desenvolvimento de conhecimento. Para Malinowski

(1975) é possível aproximar uma realização cultural de uma necessidade humana

básica através da funcionalidade. Ele aponta a função como a realização de uma

necessidade, pelo meio de uma atividade realizada pelos seres humanos que

cooperam, que utilizam algum artefato e que consomem bens.

Sendo assim, o antropólogo centra o conceito em organização, pois para

realizar qualquer ação, os humanos necessitam estar organizados. Este conceito

requer uma estrutura predefinida, com fatores universais que podem ser aplicados a

diferentes formatos culturais. Ele também suscita afirmar que uma série de fatores

tradicionais reúnem os homens. Dentro desta reunião, também deve-se afirmar que

há uma relação definida uns com os outros e entre os seus membros e o ambiente,

natural e artificial. Assim, agem em conjunto para satisfazer seus desejos e isso deixa

uma marca no ambiente.

Neste caso, a cultura é a soma de instituições que são independentes, mas

também coordenadas. Assim, ela se dá a partir de alguns princípios, como por

exemplo, a comunhão dos de sangue, a procriação, a proximidade espacial, a

expertise em relação as atividades, e o uso de poder na formação política. Desta

forma, “Cada cultura deve sua integridade e sua alto-suficiência ao fato de que satisfaz

tôda a gama de necessidades básicas, instrumentais e integrativas” (MALINOWSKI,

1975, p. 46).

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A cultura é o meio que o homem utiliza para chegar aos seus fins, são os

meios que o permitem viver, padroniza a sua segurança, conforto e prosperidade.

Também é a forma de obter poder, para criar bens e valores além de suas qualidades

animais e orgânicas. Neste sentido, se pode afirmar que o homem transforma o

ambiente físico em que vive, pois não há um sistema organizado de atividades sem

uma base física e sem os equipamentos necessários. Nenhuma atividade humana

acontece sem o uso de objetos materiais, ou seja, sem o uso de elementos de cultura

material. Nem mesmo afirma-se que exista uma atividade humana somente

fisiológica. Estes processos fisiológicos do corpo humano são diretamente afetados

por questões como a ventilação, rotinas nutricionais, condições de segurança ou

perigo, satisfação ou ansiedade, medo ou esperança. Existe uma assídua relação

entre o organismo e o meio em que ele vive, que no caso é a cultura.

Nós humanos, vivemos sob normas, costumes, tradições e regras, pois são

resultado da relação dos processos orgânicos e a manipulação que o homem faz em

seu ambiente. A cultura também afeta alguns parâmetros que não são acessíveis a

olho nu, como ideias e valores, interesses e crenças, folclore e religiões. Malinowski

(1975, p. 73) afirma que:

Quando as pessoas comem ou repousam, quando elas se atraem mútuamente ou se envolvem na côrte, quando elas se aquecem ao fogo, dormem sôbre um catre, quando elas buscam alimento e água para preparar uma refeição, nós não nos surpreendemos, não temos dificuldade em fazer um relato claro ou revelar a membros de uma cultura diferente, em nosso país, o que está realmente acontecendo.

Todas as relações com a nutrição humana, os ciclos de vida, sexo,

nascimentos, crescimentos e morte, é fatalmente cheio de perturbações fisiológicas

do corpo dos participantes. Desta forma, se as complexidades dos comportamentos

culturais forem abordadas, é necessário relacioná-los a processos orgânicos do corpo

humano e aos desejos e emoções ou perturbações que devem ser controladas pela

cultura.

Com o conceito de cultura definido, este aspecto da comida, quando

produzida, inicia pela criação de plantas e animais, ou seja, a invenção da agricultura

e da domesticação de animais. Segundo Montanari (2013), em primeiras sociedades

onde viviam caçadores e coletores, era suficiente o aproveitamento destes recursos

vindos da natureza. Porém, com o crescimento destas sociedades, as populações se

viam necessitadas a aumentar a quantidade de comida, e essa questão diversificou

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as sociedades, que se dedicavam a agricultura e ao pastoreio, gerando a própria

comida, fazendo uma seleção dos recursos que tinham a disposição. Assim,

houveram mudanças de uma economia predatória para uma economia de produção,

sendo decisivo na relação do homem com o ambiente e na sua cultura.

Neste sentido, pode-se aproximar a vivência dos primeiros imigrantes

italianos, assentados nos lotes da antiga Colônia Caxias. A relação se faz quando eles

chegam a uma terra intocada, mas necessitam comer e tirar seus sustentos

financeiros desta terra. Nos depoimentos, provenientes das entrevistas realizadas

com descendentes destes imigrantes, destaca-se a respeito deste assunto:

[...] a chegada não foi fácil, foi bem difícil, porque chegaram e não tinha nada nada além de uns galhos de arvore pra eles dormi [...], e não sei como é que eles comiam naquelas horas né (APÊNDICE B, p. 163).

[...] era noite tinha que tirar leite, tratar os bicho, porco e que que tinha

(APÊNDICE C, p. 174).

Nós que plantava, feijão a gente plantava (APÊNDICE C, p. 174).

[...] pra vive eles viviam de caça (APÊNDICE D, p. 186).

[...] cria porco por exemplo tem que trabalha [...], que pra te criação tem que planta também que se não tu vai compra (APÊNDICE E, p. 194).

[...] então o governo deu umas sementes pra eles e umas ferramenta né, não muitas, mas o necessário e aí eles entraram pelo mato, que só tinha mato naquela época né, floresta, floresta fechada, e eles começaram a derrubada de árvores, e cortaram, fizeram as tabuas, as coisas pra construir as casinha deles (APÊNDICE F, p. 201).

[...] depois foram derrubando o mato e aí então eles começaram a planta, plantavam a coisa principal que começaram a planta porque o italiano gosta muito de polenta (APÊNDICE F, p. 202).

[...] trouxeram umas muda de parreira da Itália, [...], e plantaram, então ai começaram com o cultivo da parreira né, então eles tiveram que arruma uma cooperativa, pra pode fabrica o vinho porque nem todos tinham maquina essas coisas né, e a cooperativa de Forqueta foi uma das primeiras do município (APÊNDICE F, p. 204).

Montanari (2013) afirma que esta situação não exclui as formas variadas de

abastecimento de alimentos que duraram milênios, mesmo quando se introduziu

práticas agrícolas na idade neolítica. Desta forma, os dois modos constituíam

historicamente as formas de entender a relação entre homem e meio ambiente,

extremos com variadas aplicações materiais e simbólicas, que de certa forma, nos

atinge ainda hoje. Com cuidado para não cometer erros, a sociedade da civilização

industrial e pós-industrial procurou certificar a “naturalidade” das práticas agrícolas, as

quais consideramos hoje “tradicionais”, o que nos leva a crer que são originais e

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antiquadas. Os antigos pensavam na agricultura como o momento de quebra com o

passado, de inovação, como o momento que faz do homem um civil, diferenciando-o

da natureza, separando-o dos animais e do homem selvagem que era considerado

antes.

Por mais satisfatório que seja o pensamento de que a agricultura é um

processo natural, de acordo com Standage (2010), no passado, ela era inovadora.

Para esses antigos, a visão de campos cultivados, que se estendem ao horizonte,

poderia ser inusitada. Somente a 11 mil anos que se iniciou o cultivo de alimentos,

anteriormente a isto, havia a coleta de alimento. Este foi um fator decisivo para uma

mudança no estilo de vida, pois antes, esses povos eram nômades, e utilizavam da

caça e da coleta para se nutrir. A troca de um meio natural para um tecnológico, de

coleta para produção de alimentos foi repentino e muito recente.

Outram (2009) afirma que em alguns lugares do mundo, as pessoas

descobriram sozinhas que poderiam plantar para comer. Há 10 mil anos, no Antigo

Oriente Próximo (Oriente Médio), o trigo e a cevada foram domesticados. Entre 8 e 9

mil anos, o milho e o feijão foram cultivados pela primeira vez na América Central, e o

arroz na China. E ainda, mais tarde, as batatas nos Andes, o sorgo (cereal parecido

com o milho) na África também são importantes. Mesmo antes de serem

domesticados e cultivados, já faziam parte da dieta dos povos naqueles locais. O

mesmo acontece com a domesticação de animais. Entre 8 e 9 mil anos, no Antigo

Oriente Próximo (Oriente Médio), cabras, ovelhas, gado e porcos foram domesticados.

Na Ásia, cavalos e camelos foram domesticados há 5 ou 6 mil anos atrás. É provável

que galinhas tenham sido domesticadas no Sudoeste Asiático por volta de 8 mil anos

atrás, seguidos pelos patos, 3 mil anos depois. Também é possível identificar a

domesticação de perus no México, lhamas nos Andes, coelhos na Europa e renas na

Rússia.

Massimo Montanari (2013, p. 22 e 23) afirma:

O fato é que a domesticação das plantas e dos animais de certo modo permite ao homem tornar-se dono do mundo natural, declarar-se fora da relação de dependência total em que sempre viveu (ou melhor, imaginava ter sempre vivido: porque também o aproveitamento do território por meio das atividades de caça e coleta exige um saber fazer, um conhecimento, uma cultura).

Na seleção de plantas, as mais nutritivas e produtivas recebiam atenção

especial. Cada parte do globo selecionou seu cereal preferido, desta forma que o trigo

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foi o eleito no mediterrâneo, o sorgo (cereal parecido com o milho) na África, o arroz

na Ásia e o milho na América. A partir destes cereais, várias relações se fizeram, como

o poder político, o imaginário cultural, e os ritos religiosos. É possível afirmar que até

o nascimento das cidades estão relacionados com o desenvolvimento da agricultura,

pois as questões materiais eram e ainda são importantes, como o acúmulo de bens,

riquezas e desenvolvimento tecnológico, e questões mentais, por separação do

homem da natureza, tornando-se senhor de si, ocupando um espaço próprio para

habitar.

Em um cenário de desenvolvimento, os humanos e as sociedades não

somente se adequam às condições impostas pelo ambiente, eles a modificam, em

alguns casos, mudanças profundas, incluindo novas culturas, e isso acarreta numa

modificação da paisagem. Pode-se usar de exemplo, iniciado na Idade Média e que

continua na Idade Moderna, os cultivos de arroz no nordeste da Ásia ou a viticultura

(plantio de uvas) na Europa centro-setentrional, pois são regiões que necessitaram de

tecnologias diferenciadas pela constituição ambiental que se apresentam.

Outram (2009), afirma que os povos pré-históricos contavam com um

estômago resistente a comidas que nós não comeríamos hoje. Esses alimentos

estariam estragados, semiapodrecidos, e é provável que gostavam do sabor. Um

exemplo pode ser notado através de criadores de cavalos no Cazaquistão,

apreciadores de uma bebida chamada koumiss, feita de leite de égua fermentado. No

gosto ocidental contemporâneo, a bebida ativa as reações do corpo à comida

estragada. Mas para aquela população, é uma bebida muito valorizada. Questionados

se não consumiam o leite fresco, responderam que desta forma o leite não tem gosto

de nada. É possível entender esta preferência pelo leite fermentado, pois não era

possível estocar o leite e mantê-lo fresco sem a ajuda de uma geladeira.

Alan K. Outram (2009, p. 42), afirma:

É certo que alguns povos pré-históricos pouco estocavam alimentos, mas também há evidência de vários métodos de armazenamento, como a defumação e a secagem. Além disso, eles simplesmente toleravam alimentos que definiríamos como estragados, [...]. Gosto é uma questão de costume.

Debater o gosto alimentar de povos muito antigos é um desafio. Já que esses

povos não registravam seus hábitos. Historiadores procuram resquícios materiais que

foram deixados por esses povos há milhares de anos. O trabalho é basicamente

revirar o lixo antigo à procura de comidas e cultura material. Pela comida encontrada,

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é possível presumir o que aquelas pessoas comiam, e pelo descobrimento de itens

como fornos, lareiras, panelas e utensílios, seria possível imaginar como a comida era

preparada e consumida. Porém, entender o porquê se escolhia aquela comida e se

gostavam dela ainda é uma tarefa difícil.

Os tipos de vestígios de alimentos que são encontrados são aqueles

resistentes a decomposição biológica. Infelizmente muitos alimentos sendo

compostos de matéria orgânica, são facilmente decompostos. Mas, ossos de animais

são resistentes, pois são materiais inorgânicos, e se o solo onde estiverem não for

muito ácido, podem resistir milhares de anos. Esses ossos podem revelar mais do que

a espécie de animal que esses povos comiam, é possível verificar se eram animais

selvagens ou domésticos, portanto, caçados ou criados, pode demonstrar a idade e o

sexo do animal e demonstrar mais a respeito dos rebanhos. Quando caçados, esses

ossos podem revelar preferencias do caçador, como a época de caça ou até sobre o

gosto particular dele. Em animais criados, pode mostrar como os criadores os

mantinham, como a separação entre macho e fêmea, e a separação por idade, por

exemplo. Ou até a diferenciação de animais para leite, corte ou produção de lã. Essas

escolhas mostram não só questões econômicas e de meio ambiente, mas também de

preferências culturais e alimentares.

É possível verificar através dos ossos a forma como os animais eram abatidos,

e como essa determinada cultura repartia seu alimento para o consumo. Outram

(2009, p. 36) afirma que “O abate é uma prática tão enraizada culturalmente que, até

os dias de hoje, revela claramente diferenças regionais e pode se relacionar a

costumes da época e gosto em consumo de carne”.

Algumas técnicas de analise biomolecular foram aplicadas a questões

culturais que tem relação a costumes de alimentação, revelando detalhes sobre o

paladar de povos antigos. Os restos humanos analisados, direcionaram a forma de

estudo sobre a dieta humana. Algumas doenças, como o raquitismo, mostram a

deficiência de certos alimentos, mas também podem revelar a qualidade e a

quantidade de alimentos. O consumo alimentar, acaba por revelar muito sobre a

cultura, os costumes e o paladar dos povos estudados. O que hoje se come em último

caso, pode ter sido a principal fonte de alimentação em algum ponto do passado.

Para Montanari (2013), o formato cultural que as primeiras organizações

sociais agrícolas mantinham, que contam que nasceram dos ritos naturais e nos ciclos

das estações, criaram a representação de um homem, que organiza artificialmente a

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sua comida. É artificial pois não existe na natureza e serve para demarcar a diferença

entre natureza e cultura, distingue os animais dos homens. Para exemplificar, na

região mediterrânea, que corresponde a região do trigo, o pão, proveniente deste

cereal explica essa relação entre comida artificial e a natureza. O pão, além de

nutricional, como símbolo não existe na natureza e somente os homens sabem como

ele deve ser feito. O ato de fazer o pão envolve uma sofisticada tecnologia que inicia

no cultivo do grão e vai até o final da preparação do produto, dentro deste espectro

há uma série de etapas complexas, que são resultantes de diversas experiências e

observações. Assim, o pão se torna um marco da saída da humanidade de uma

condição animalesca para uma situação civilizatória.

O pão, é popular até nos dias de hoje. Os imigrantes, antes de sair de seu

país, sabiam como prepará-los e o apreciavam, porém quando aqui chegaram, não

tinham condições de reproduzir as receitas por falta de ingredientes. Estes relatos

contribuem:

Era muito difícil pra faze pão, meu pai dizia sempre: tem que plantar trigo. Mas nem tinha trigo né (APÊNDICE A, p. 157).

Se fazia polenta, a única coisa que se comia era a polenta, porque pão não tinha (APÊNDICE A, p. 157).

Assim como o pão, o vinho e a cerveja (preparações fermentadas), não são

extraídas da natureza, mas são representantes de um saber e de uma tecnologia

aplicada aos seus ingredientes, evidenciando o domínio do homem sobre os meios

naturais, para seu próprio benefício. Neste cenário, a cultura é responsável pela união

entre a tradição e a inovação. A tradição traz os saberes, as técnicas aplicadas, e os

ensinamentos transmitidos, já a inovação agrega saberes, técnicas e ensinamentos

que deslocam o homem do ambiente, possibilitando-o viver novas realidades,

“inovação bem-sucedida: assim poderíamos definir a tradição. A cultura é a interface

entre as duas perspectivas” (MONTANARI, 2013, p. 27).

Quando pensamos em desenvolvimento histórico das sociedades, a

economia doméstica, da qual se utilizava da agricultura e do pastoreio, está

diretamente contrária a economia selvagem, que se mantem devido a tomada dos

alimentos. Os contrapontos dessas economias, que abrangem tanto o reino animal

como o vegetal, estariam em questões como criar animais ou caçá-los, plantar frutos

para a colheita ou recolher o que a natureza desenvolveu por ela mesma. Essas

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diferenças levantam a hipótese do sedentarismo e do nomadismo. Vistas por essa

perspectiva, há uma mudança, pois assim a caça e o pastoreio, tanto em locais não

cultivados e locais de mata, aproximam-se como tipo de economia, tirando a relação

sedentária atribuída ao cultivo agrícola.

Uma das alternativas encontradas pelos imigrantes italianos para saciar a

fome de suas famílias era a caça. E tratando-se de matas virgens, conseguiam caçar

animais selvagens com certa facilidade. Há relatos que corroboram:

O que mais eles comiam então era caça, tinha caça que dava medo, comiam até carne pura (APÊNDICE B, p. 163).

[...] eu me lembro que teve um senhor que falô, [...] que eles iam na mesa e ele dizia pros filho: comem carne, porque a polenta tá escassa tem pôca, comem carne bastante, porque carne tinha até (APÊNDICE B, p. 163).

[...] naquela época eles se alimentavam mais de caça, porque não tinha outra coisa pra come, e como tinha pinheiros e o pinhão, na época do pinhão, então eles comiam mais carne, do que outras coisas (APÊNDICE F, p. 202).

E a carne eles caçavam, eles adoravam a caça, os italiano “bah”, pra caça é, então tudo que era bicho eles matavam e comiam né, então era mais fácil pra eles do que a polenta (APÊNDICE F, p. 202).

Standage (2010) diz que além da caça, o sustento alimentar necessitava

outros ingredientes, antes obtidos diretamente da natureza. Mas, o crescimento da

população, ocasionado pelo sedentarismo dos povos nômades, contribuiu para a

implantação da agricultura. Cada vez que se deslocavam, caçadores-coletores

nômades carregavam tudo que possuíam, incluindo seus filhos. Quando essa criança

podia caminhar por conta própria, aos três ou quatro anos, seus pais poderiam pensar

em ter outro filho. Ao deixaram de ser nômades, não tinham mais esse problema, pois

como estavam estabelecidos em um único local, poderiam ter quantos filhos

quisessem. Assim, a demanda por alimento nos arredores destes locais aumentou,

incentivando um plantio excedente, chegando assim à agricultura. Porém, essa teoria

pode ser refutada quando se analisa que a densidade populacional em algumas partes

do mundo cresceu somente depois que a agricultura já estava estabelecida, e não

anteriormente a ela.

Outros fatores podem ter sido cruciais para o estabelecimento definitivo da

agricultura. Tom Standage (2010, p.34) afirma que:

A agricultura pode ter sido estimulada pela competição social, quando grupos rivais competiam para promover os banquetes mais suntuosos; isso poderia

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explicar por que, em algumas partes do mundo, alimentos de luxo parecem ter sido domesticados antes de alimentos de primeira necessidade.

Para Montanari (2013), as diferenças entre o plantio e as florestas, que

corresponde a oposição entre cultura e natureza, traz consigo a contradição entre

plantas e animais, ou seja, a produtos vegetais e produtos de base animal, como as

carnes e os laticínios. De outro lado, em sociedades agrícolas e sedentárias é possível

encontrar ritos de fertilidade onde os protagonistas são cerais e ciclos das estações

do ano. Mitos e ritos também são encontrados em comunidades de caçadores e

pastores, onde o protagonismo pertence aos animais.

Nestas circunstancias, o homem se projeta fora da natureza, porém a

natureza é um modelo cultural, que não só é válida para modelos antigos de

sociedade, onde se originaram os mitos e ritos já mencionados, mas também a épocas

recentes, até que, na Idade Média, essa relação entre os dois modelos alimentares

inicia uma mudança. Anterior a Idade Média, eram símbolo de duas civilizações

distintas, que depreciavam uma à outra, classificando-a como inferior e até mesmo

bárbara. Então, ocorreram as invasões bárbaras no império romano, levando a

dominação e dando o poder aos bárbaros e assim a sua cultura, incluindo a alimentar,

que passou a ser importante, como acontece com os costumes de vida de vencedores,

como com o american way of life (estilo de vida americano) nos dias atuais.

Salienta-se ainda que, tanto pastorear como caçar, geraram uma nova

economia, assim como as tradições agrícolas romanas passaram a ser incorporadas

pelos bárbaros. Quando essas duas formas de cultura se encontram, na Idade Média,

e interagem entre si, inicia-se uma nova forma de alimentar-se, reconhecida hoje

como europeia, que dá o mesmo peso simbólico ao pão e a carne, ao cultivo vegetal

e o que a natureza gera sem a intervenção humana. Daí em diante, não se tem mais

duas opções culturais divergentes, mas sim elementos de um cruzamento, que na

verdade, representavam dois processos culturais, duas práticas culturais, ambas

representando a interação do homem com o meio ambiente. Esta nova cultura,

resultado da junção dos dois modelos, passou a representar uma vivência alimentar

marcada pela variedade de recursos e de gêneros consumidos, que ainda hoje se

apresenta com uma riqueza patrimonial alimentar e gastronômica única no mundo.

No Rio Grande do Sul, um dos símbolos da cultura gastronômica, que

representa os italianos, é a polenta. A facilidade de prepará-la nos dias atuais, faz com

que este prato seja reproduzido em muitas dietas domésticas e em restaurantes. Mas

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nem sempre foi assim, pois quando os primeiros imigrantes chegaram, não tinham

fácil acesso aos ingredientes para produzir a polenta, assim como mostram esses

relatos:

[...] antigamente era a farinha de moinho verdadeiro, o nosso milho, que a gente ia, só que agora tu compra a farinha e tu faz aquela polenta com farinha mais grossa (APÊNDICE C, p. 176).

Plantado aqui, colhia o milho, plantava no saco botava nas costa, cortava o mato e ia embora, de a pé, olha que passaram errado né? (APÊNDICE E, p.

198).

[...] primeiro ano que a gente não tinha condição montava numa mula com o saco em cima, sacos comprido, dois metro (risos), montava em cima da mula e ia no moinho, daí nesse moinho próprio, o próprio trigo eles te moinha, tu esperava tu vinha pra casa com a farinha do teu trigo, hoje não existe mais isso ali né (APÊNDICE E, p. 199).

[...] então eles plantaram milho né, só que só tinha um moinho que era lá em Nova Milano e como aqui é longe até lá né e não tinha transporte não tinha nada, então eles tinham que carrega nas costas, então eles pegavam aquele saco de milho e iam, porque demorava horas pra chega lá né, pra ir no moinho, então lá faziam a farinha, pra depois faze a polenta pra come junto com a carne né e ai então os pais sempre diziam pros filho: comam carne poupem a farinha. Porque era muito sacrifício ir até lá, muito trabalho (APÊNDICE F, p. 202).

Era difícil, porque só tinha aquele moinho lá, eles tinham que ir com o trigo, tinha que planta o trigo (APÊNDICE F, p. 203).

Considerando este aspecto, pode-se notar que nas sociedades tradicionais a

relação entre natureza e cultura também pode ser problematizada com respeito ao

tempo, ou seja, na sazonalidade dos alimentos. A época do ano determina tanto as

espécies vegetais disponíveis como o comportamento dos animais. Relacionar os

ritmos de vida com o da natureza sempre desempenhou papel importante para a

humanidade, que de uma certa forma visou o controle e a modificação desses tempos

naturais. Apesar de ideias que pregam um equilíbrio perfeito entre homem e natureza,

o objetivo sempre foi atingir um ambiente sem estações climáticas, onde o tempo

estivesse sob controle. Um exemplo disto pode ser encontrado na Bíblia, mais

especificamente no Éden, descrito como um paraíso que está sempre na primavera,

sendo possível colher alimentos sempre frescos.

Standage (2010) contribui com a imagem 6, que mostra o rei Carlos II da

Inglaterra. A pintura mostra o rei em um jardim admirável e com uma grande casa ao

fundo. Perto dele, ajoelhado está John Rose, o jardineiro real, presenteando-o com

um abacaxi. Naquele tempo, essa fruta era extremamente rara na Inglaterra, pois era

trazida das Índias Ocidentais, e dificilmente chegava em condições para o consumo.

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Muito valorizada, era conhecida como fruta dos reis, reforçada pela coroa de folhas

que apresenta.

Imagem 6 - Retrato de Carlos II recebendo um abacaxi de John Rose

Fonte: (STANDAGE, 2010, p. 120)

Em 1668, o abacaxi evidenciava o poder naval crescente da Inglaterra em um

banquete que o rei Carlos II ofereceu para o embaixador francês Charles Colbert.

Neste período, a Inglaterra e a França pleiteavam colônias nas Índias Ocidentais, e a

presença do abacaxi na sobremesa oferecida pelo inglês, deixou claro o

comprometimento dele com o território que proveu a fruta. Existem relatos que contam

que Carlos II cortou ele mesmo pedaços da fruta em seu próprio prato, oferecendo

aos presentes. Poderia representar um ato de humildade, mas na realidade queria

demonstrar que somente um rei teria o poder de possuir abacaxis e oferecê-lo aos

seus convidados.

Então, Montanari (2013) afirma que a ciência e a tecnologia, em um primeiro

momento, visando a economia agrícola e mais tarde voltando-se para a Revolução

Industrial, sempre buscaram dois fatores principais, alongar o tempo ou pará-lo. Para

alcançar esses dois fatores, usou-se da diversificação das espécies e de formas para

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a conservação de alimentos. A partir disso, foi necessário diferenciar as espécies para

ser possível que elas se reproduzissem por muito tempo, durante o maior período do

ano possível. Assim, esticava-se o tempo destes alimentos para estarem disponíveis

ao longo de meses, quase que exageradamente em relação ao que sabemos sobre

esse assunto hoje. Para que o rei Luís XIV tivesse peras servidas em suas refeições,

eram plantadas quinhentas qualidades da fruta, sendo assim possível manter peras

frescas como alimento do rei. Neste sentido, apesar de suas limitações, os cidadãos

comuns também buscavam variar os recursos que tinham a disposição, como muitas

qualidades de árvores, na horta e no campo, para manter a família alimentada durante

as diferentes estações do ano.

Depois disto, houveram buscas de formas efetivas de conservação dos

alimentos, tanto vegetal como animal, para a sua utilização fora do ciclo natural do

produto. Os camponeses, não tendo muitas opções, utilizavam mais os alimentos

como os cereais e legumes, pois tinham uma conservação longa, sem a necessidade

de grandes alterações da rotina, e poderiam ser armazenados em lugares secos,

elevados ou subterrâneos. Porém, no caso dos alimentos perecíveis, muito se estudou

para o desenvolvimento de técnicas que aumentassem o seu tempo de vida.

Nos tempos antigos, por ensinamentos de Aristóteles, os alimentos deveriam

ser retirados do contato com o ar, por exemplo, envolvendo maçãs com argila. Mas a

desidratação foi o método mais usado e poderia ser feito de várias formas, como

utilizar do calor do sol para eliminar a hidratação do alimento, em outros locais, onde

o clima não favorecia o uso do sol, a fumaça era utilizada para o mesmo propósito.

Uma técnica era usada em ambos os locais, o uso do sal, que além de dar sabor aos

alimentos, tinha o potencial de desidratá-los e conservá-los através do tempo. As

carnes, os peixes e as verduras eram conservadas com o uso do sal, pois a parcela

da população que se utilizava desta técnica, não poderia confiar nas estações do ano.

Por isso, o gosto pelo sal vem de longa data e sempre atrelado a uma cozinha pobre.

Há também relatos de conservação com vinagre, ingrediente acessível aos

camponeses, óleo, item mais caro, não sendo muito utilizado, mel e açúcar, que entrou

na Europa na Idade Média, sendo item disponível a poucos, perdendo esse status no

início de 1800. Desta forma, desenhou-se um gosto doce e um gosto salgado como

modelos alimentares, que faziam distinção social. A manipulação e a modificação do

estado natural dos alimentos foram técnicas tão usadas como a fermentação, que tem

grande peso do ponto de vista cultural e até simbólico, pois marca a capacidade

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humana de manipular e reverter o processo natural de putrefação. Daí, nascem

queijos e outros derivados do leite, presuntos e outros embutidos que fermentam com

o sal. Essa fermentação, aplicada a verduras gerou o chucrute na Europa setentrional,

sendo aplicada também pelos japoneses e em diversas outras regiões do mundo.

Porém, a conservação sem alteração de sabor se deu com a utilização do frio,

que desde a Idade Antiga utilizava o gelo e a neve, recolhidos para utilização privada,

em espécies de geladeiras em casas particulares ou em empresas agrícolas, ou

também recolhidos pelo governo, como por exemplo em geladeiras públicas

construídas em Paris, e logo depois da construção da última geladeira pública

construída no final dos Oitocentos, a indústria do frio, que neste mesmo período

desenvolveu os primeiros frigoríficos e mais à frente os congeladores, efetivou a

conservação de alimentos sem alterar o sabor.

Segundo Massimo Montanari (2013, p.40),

Os métodos de conservação dos alimentos, aprimorados pelo impulso da fome, rapidamente ultrapassaram tal dimensão com um tipo de transferência tecnológica que os viu aplicados à alta gastronomia: assim nasceram muitos “produtos típicos” que constituem uma parte decisiva do nosso patrimônio gastronômico. Revelam-se, dessa forma, vínculos talvez insuspeitos entre o mundo da fome e o mundo do prazer.

Standage (2010), diz que para melhorar a alimentação de soldados e

marinheiros que estivessem em guerras, em 1795, o governo francês prometeu

premiar quem inventasse uma maneira de conservar comida. Entre as regras para a

premiação, estavam pontos como a produção barata destes novos itens alimentícios,

deveria ser de fácil transporte, e ser mais saboroso e nutritivo do que a comida e das

formas de conservação que já se utilizavam naquele período. Um irlandês, Robert

Boyle, conhecido como pai da química, criou uma bomba a vácuo e a partir dela, fez

várias descobertas. Uma delas, foi entender que a decomposição dos alimentos

acontecia em decorrência da presença de ar. Assim, tentou preservar comida em

frascos vedados. Desta forma, entendeu que não era somente o contato com o ar que

decompunha a comida.

De acordo com Montanari (2013), é possível identificar que as técnicas e

ideias nascem não somente do poder e do luxo, mas também da necessidade e da

pobreza. Sabendo disso, surge o encantamento pela história alimentar, pois com os

esforços para acabar com a angústia da fome, também se procura oportunidades de

sentir prazer. Esta luta pelo controle do tempo está diretamente ligada com a luta pelo

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espaço. Ter disponível comida de lugares distantes, buscando afugentar limitações

de território, além de acabar com a variabilidade sazonal dos produtos estão

relacionados com este tema. As ações sobre o tempo e sobre o espaço se perpassam

e se fortalecem alternadamente.

Standage (2010), conta que o físico francês, Denis Papin, seguindo o trabalho

de Boyle, já citado, envasou comida a vácuo em garrafas e depois as aqueceu,

pareceu melhorar as condições das comidas, mas ainda haviam comidas estragadas

neste processo. Neste tempo, o que levava a putrefação não era compreendido em

sua totalidade. E mesmo com o trabalho de Boyle, Papin e outros, o problema

permaneceu sem solução por um tempo.

Montanari (2013), diz que com o passar do tempo, a ação sobre o espaço

torna-se progressivamente mais importante do que a ação sobre o tempo. É possível

notar essa importância já na Idade Média, pois é ali que as correntes comerciais

mundiais começam a se engrandecer, demostradas pelas viagens que percorreram o

globo terrestre e cresceram no século XVI. Determinante para essa afirmação foi o

avanço nos transportes, alavancada pela Revolução Industrial, tornando-se possível

diminuir os problemas com armazenamento e conservação dos alimentos. Essa

relação do homem com o espaço, ao longo do tempo, evoluiu até culminar, nos dias

atuais na globalização como a conhecemos hoje.

Para Standage (2010), o prêmio que o governo francês ofereceu para quem

desenvolvesse uma comida mais saborosa e que durasse mais tempo, para alimentar

as tropas em campanhas militares, quem finalmente o ganhou não foi um cientista,

mas sim um cozinheiro. Nascido da região de Champagne, França, em 1749, Nicolas

Appert, era consagrado na cozinha, servindo nobres, até se estabelecer como

confeiteiro em Paris, em 1781. Neste ramo, estava acostumado a utilizar açúcar para

conservar frutas, e se questionava se era possível utilizar a mesma técnica para

conservar outros alimentos. Então, começou a experimentar armazenando comidas

em garrafas de champanhe vedadas. Em 1795, morando na aldeia de Ivry-sur-Seine,

começou a vender comidas em conserva, e em 1804, instalou uma pequena fábrica

no local. Logo, a Marinha francesa testou algumas de suas comidas, respondendo

positivamente quanto a qualidade dos produtos.

Em um relatório, os franceses elogiaram o caldo engarrafado, e apontavam

que o caldo de carne bovina cozida, de outra garrafa, também era bom, mas mais

fraco que o primeiro, e a carne em si, bastante comestível. Apontaram também que

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as vagens e ervilhas, com ou sem carne, tinham sabor de frescas ou recém colhidas.

Appert descreve o seu método de conservação da seguinte forma: inicia-se o

processo por acomodar as comidas que se deseja preservar em garrafas ou frascos;

depois, fechar o recipiente escolhido, com muito cuidado, pois a vedação era parte

importante do processo; então, submeter o frasco à água fervente; por fim, retirá-los

da água fervente no tempo apropriado. Os tempos, que cada tipo de comida deveria

ficar em água fervente, foram listadas por Appert, normalmente era um processo

longo.

Nicolas Appert não conhecia as pesquisas de Boyle, Papin ou outros sobre a

conservação. Inventou seu método por experimentar formas de conservar as comidas

e não tinha noção do porquê funcionavam. Até que, em 1860, Louis Pasteur, químico

francês, entendeu que a decomposição tinha causa na ação de micróbios, e estes

poderiam morrer com a aplicação de calor. Assim, desde Papin, submeter os frascos

ao calor, retardava a decomposição das comidas. O que Papin não aplicou, foi o

tempo suficiente para que o micróbio morresse. Appert acertou, com tentativa e erro,

o tempo que cada comida deveria ficar em água fervente, muitas vezes por longas

horas, e alguns mais que outros.

A qualidade dos produtos de Appert chamaram a atenção de Paris, tornando-

se itens de luxo por lá. Devido ao sucesso, sua fábrica empregava 40 mulheres que

preparavam a comida, às engarrafavam, e às ferviam em caldeirões. Então, em 1809,

foi chamado pelas autoridades francesas para demonstrar seus métodos. Com a

supervisão desta delegação, ele preparou várias garrafas, e um mês depois voltaram

para provar o resultado do método, considerado excelente. Assim, ganhou o

mencionado prêmio, 12 mil francos, mas com a condição de publicar os detalhes

completos do método, para que todo o país pudesse reproduzir sua técnica e não

patentear o método na França. Publicou o livro chamado L’Art de conserver pendant

plusiers années toutes les substances animales e végétales16.

Logo após a publicação do livro, em Londres, Peter Durant patenteou uma

técnica para conservar comida idêntica à de Appert. Este, a vendeu por 1.000 libras

para um engenheiro que trabalhava com produtos de metal, Bryan Donkin. Assim, ao

invés de armazenar a comida em garrafas, passaram a usar latas de ferro, revestidas

de estanho. Há suspeitas de que o próprio Appert tenha negociado a patente na

16 A arte de preservar por vários anos todas as substâncias animais e vegetais (traduzido pelo autor).

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Inglaterra com Durant, mas o negócio não teve sucesso, pois França e Inglaterra eram

inimigas, impossibilitando Appert de divulgar sua relação de negócios com Durant.

Então, Appert centrou-se no refinamento de seu método, abastecendo o exército e a

marinha francesa com comida enlatada, mas continuou vendendo comida engarrafada

também.

A utilização de comida enlatada foi adotada rapidamente, pois foram

encontradas latas de comida conservada junto a soldados franceses no campo de

batalha em Watrerloo, em 1815, onde Napoleão foi derrotado pelos russos.

Interessante notar que essas primeiras latas teriam que ser abertas com martelos e

cinzeis. Abridores de latas só apareceram em 1860, quando os civis também

utilizavam comida enlatada em suas dietas. Naquela época, comida enlatada era

novidade ou artigo de luxo. Mas não continuou assim por muito tempo, pois a grande

demanda militar, incentivou a automação do processo produtivo. Descobriu-se

também que a inclusão de cloreto de cálcio à água, elevava o ponto de ebulição e

reduzia o tempo de fervura exigido. Desta forma, a produção aumentava e o preço

diminuía, tornando o produto acessível para a população. Nos Estados Unidos, a

produção entre 1860 e 1870 passou de 5 milhões de latas por ano para 30 milhões,

enfatizando a importância da descoberta de Appert até os dias atuais.

Sobre as formas de conservação de alimentos e comidas, é de amplo

conhecimento que nos primeiros anos da chegada da imigração ao Sul do Brasil

usava-se formas diferentes das utilizadas hoje para manter a integridade de alimentos

e comidas. Seguem algumas das formas utilizadas pelos ancestrais dos entrevistados,

e alguns comentários sobre a conservação de itens alimentícios:

Não, ela (mãe da entrevistada) nem tinha freezer coitadinha, eu fiz ora casá e depois ela comprou uma geladeira (APÊNDICE B, p. 166).

A gente fazia então tudo na hora, fazia e comia (APÊNDICE B, p. 166).

[...] por que não tinha geladeira não tinha essas coisa pra mante né, então diz que eles viviam de caça (APÊNDICE D, p. 186).

[...] é ou de repente as miudezas assim, os ossinho, os pezinho do porco salgavam e guardavam na salmoura, pra vive era assim (APÊNDICE D, p.

186).

[...] e era uma tradição assim porque não tinha o que tem hoje, geladeira, freezer pra conservar essas coisa então quando vinha um pedaço assim era uma festa, magina, era uma coisa nova né (APÊNDICE D, p. 191).

[...] naquela época por exemplo tu comia tomate só na época né, quando tu plantava que vinha porque não era sempre que dava, agora com as estufa,

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com todos essas coisas novas que tem ali, tem toda hora, todo dia, vai no mercado se não tem aqui eles vem de fora né, então agora é super bom (APÊNDICE F, p. 203).

Somos privilegiados hoje, pois Montanari (2013) diz que é possível encontrar

produtos frescos em todas as estações do ano, já que a distribuição das diferentes

zonas de produção mundial é eficiente. Esta situação configura uma realidade

revolucionaria, quando se trata de um país rico, equiparada com a dimensão

planetária da economia alimentícia e a grandiosidade das sociedades existentes,

porque os custos para essa distribuição mundial de produtos alimentares diversos

diminuiu muito, e ficou facilitada devido as técnicas mercadológicas atribuídas a esse

segmento da economia, possibilitando o acesso para várias faixas sociais à produtos

diferenciados.

Olhando pela lente cultural, essa revolução é mais significante. Esse acesso

aos produtos satisfaz desejos e necessidades antigos da humanidade, mesmo

quando eles se realizavam de forma mais localizada e ficavam disponíveis a poucos

consumidores. Hoje, encontra-se nas prateleiras de nossos supermercados produtos

exóticos vindos de lugares distantes, mas há um paradoxo, pois, a atenção se volta

para os produtos provenientes do nosso território.

Então, o jogo do poder sobre o controle desses recursos gerou conflitos em

diferentes sociedades. Nesta perspectiva, deve-se reconsiderar alguns pontos já

citados, pois estes conflitos se mostram em diferentes formas de acordo com a

comunidade social e cultural, envolvendo relações da natureza e a cultura da qual se

está observando. Em sociedades consideradas simples, as relações de poder

acontecem entre as classes sociais dominantes e as subalternas, como por exemplo,

um grupo de senhores emergentes que controlam o trabalho do camponês, a

utilização dos recursos proveniente das florestas, as trocas comerciais, ou seja, tudo

o que envolve a economia alimentar.

Neste cenário, os protestos e revoltas dos camponeses pretendem melhorar

as suas situações em relação a esses senhores, porém quase nunca atingem um

patamar suficiente para conseguir que suas reivindicações sejam atendidas. Essas

revoltas aconteciam com mais frequência quando os senhores restringiam para si o

direito sobre a caça e pastagem. Como reflexo destes conflitos, é possível

compreender a popularidade de lendas como a de Hobin Hood, refletindo o gosto

aventureiro pelas margens da sociedade e o ideal de um mundo onde se pudesse

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caçar e comer carne com liberdade. Essa liberdade é o fio condutor das reivindicações

dos ingleses em 1381, e dos alemães em 1525.

Já na Itália, onde o urbano se sobressai ao rural, esses conflitos aparecem

justamente nestas condições. Neste caso, a dominação acontece da mesma forma,

em todas as etapas da produção alimentar. Aqui, o grupo dominante, que são as

famílias que detém o poder das cidades, impõem a ordem sob o alimento, mas

primeiramente atendendo as suas próprias necessidades, nem sempre levando em

conta as necessidades da comunidade de onde esses alimentos saíram. É daí, da

falta de comida, que os camponeses migram do campo para às portas da cidade em

busca de comida, sendo expulsos, algumas vezes até com o uso de violência.

Segundo Revel (1996), essa condição, de controle dos mais fortes sobre os

mais fracos, gerou a comida de pobre. Pode-se citar o exemplo dos gregos e seu

desjejum, que continha pão encharcado de vinho. Esse era o único momento do dia

em que o vinho puro era consumido, pois o vinho que bebiam antes ou durante as

refeições era misturado com água. O vinho e o pão foram pilares alimentares da

civilização ocidental até o século XX. Uma expressão francesa diz tremper la soupe,

que significa despejar o caldo da sopa sobre fatias de pão, e em algumas regiões da

França, os camponeses misturavam vinho a esse caldo. Somente no século XX que

o pão perde o seu papel na sociedade para a carne. Mas antes disso, a carne tinha

um preço alto, e era consumida somente em dias de festa, e até que as batatas não

chegaram, vindas da América para a Europa, no século XVIII, o trigo manteve o papel

principal na alimentação humana.

Ainda há conflitos que saem dos parâmetros já exemplificados, como quando

um grupo dominante age sobre uma sociedade que não é a sua. Por exemplo, quando

um senhor feudal, que controla os alimentos do seu próprio território, gera conflitos e

tensões com outros feudos, levando a relação dominantes-dominados para outra

sociedade. Por isso, os séculos X e XII apresentam um padrão de hierarquia

determinada, que regula não só a política, mas a economia também. Nas cidades

acontecem o mesmo movimento, as que são maiores subjugam as menores, como no

exemplo de Bolonha no século XIII, que impõe às cidades menores dos arredores o

pagamento de uma devida quantidade de alimentos, que são recolhidos mesmo

quando não se tem uma boa colheita. Desta forma, os dominados se veem obrigados

a se deslocar a outras localidades para comprar os produtos que não conseguiram

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produzir, “Bolonha emprestava dinheiro à cidade de Ímola para adquirir produtos na

Romagna” também como forma de controle (MONTANARI, 2013, p.50).

Quando as sociedades se desenvolvem e se tornam mais complexas, a

relação entre dominadores e dominados continua existindo, mas em grande escala.

Como exemplo pode-se descrever a relação existente entre a Inglaterra e a Irlanda,

onde os ingleses ficavam com produtos como a carne e o trigo, deixando para

consumo dos irlandeses só produtos com menos valor comercial e nutritivo. Devido a

essa questão, ao longo do século XIX, os irlandeses se alimentaram quase que

somente por batatas, levando a uma grande desnutrição em 1846 e 47, e só não

matou quem emigrou para outros locais, fato este que não foi causado pela falta de

alimento, mas sim pela dominação do mais forte sobre o mais fraco.

De acordo com Chonchol (1989), recuperado por Carneiro (2003, p. 23),

Dante, na Divina Comédia, define fome como “a primeira das calamidades que

assolam a humanidade. Sua conseqüência é a morte mais miserável de todas. A fome

provoca um suplício lento, dores prolongadas [...]”. Se alimentar é lutar contra a fome,

mas nem sempre se ganha essa luta. A localização e a densidade populacional são

fatores que influenciam a competência da produção de alimentos. A disponibilidade

de alimentos tem sido desigual, também por isso, a fome arruína o passado e o

presente.

No século XVI, Montanari (2013) aborda o controle alimentar ganhava uma

ampliação mundial com o domínio europeu sobre a Ásia, e após Colombo, também

na América. Em todas essas localidades houveram mudanças na produção de

alimentos para atender aos europeus, que usavam destes territórios como produtores

de comida, exportando tudo o que era essencial para a dieta europeia, começando

assim uma época importante para as colonizações e a escravidão.

A questão da fome é muito presente nas histórias contadas pelos

descendentes dos imigrantes italianos. É de conhecimento popular que a fome foi o

motivo que levou seus antecessores a saírem do seu território natal. Como já

abordado no capítulo anterior, a fome sim foi uma as questões relevantes para que

viessem ao Brasil, porém, aqui chegando, se depararam com ela novamente, de forma

diferente, mas ainda assim, lidaram com a fome. Pode-se verificar através destes

comentários:

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[...] só que meu pai dizia se comia só feijão de noite era só sopa (sopa de feijão) e vai (APÊNDICE A, p. 157).

Era tudo bem dize diferente agora né, [...], a gente comia um ovo em 7 pessoa, na minha família (APÊNDICE A, p. 157).

Olha meu pai contava pouca coisa porque ele passa os dele né, a gente quando era pequeno a gente passava fome, que nem eu, não tinha, nem conheci minha mãe, ela tava sempre doente, meu pai cuidava dela e era 8 irmão, daí a gente passava fome, não foi fácil (APÊNDICE A, p. 158).

[...] naquela época a gente tinha fome, porque tu ia trabalhar na colônia era pesado, a gente na minha época antes de casá ainda, a gente trabalhava com alfafa, então as vezes de noite chovia, o tempo chovia a gente tinha que sai as 1 2 horas da madrugada ajunta aquela coisa pra guarda que a gente achava que hoje não vai chove, fico ali fora, tinha que levanta e ir pra colônia faze isso ai, não era fácil, agora é tudo mais fácil, tudo já tá mais na mão as

coisa, não é que nem na nossa época (APÊNDICE C, p. 175).

Eles eram 14 irmãos do meu pai né, então se dividia, depois com os vizinhos também quando carneava algum porco era sempre um pedaço pra cada vizinho, era sempre assim e se trocava, por exemplo meu pai eu lembro do meu pai faze isso, era um pedaço pros Marchesini, pedaço pros Caberlon, pedaço pros Postalli, e assim quando eles carneava então também voltava o pedacinho (APÊNDICE D, p. 191).

[...] e naquela época só tinha, é tudo limitado né porque a família era grande, tudo famílias de 10 12, tive uma tia que ela tinha 21 filhos (APÊNDICE F, p. 204).

Por outro lado, o embate entre nações ricas e pobres demarca cada vez mais

o grandioso conflito de interesses que define a sociedade atual, como se houvesse

uma versão ampliada dos conflitos pelo domínio dos recursos alimentares que sempre

participaram da história dos homens. De toda forma, mesmo alterando o contexto para

a atualidade, há uma representação da luta de classes (MONTANARI, 2013).

Abordadas estas temáticas, segue-se o caminho observando o próximo

estágio da comida como cultura, quando a comida é preparada, quando há a invenção

da cozinha, com o domínio e o uso do fogo e de outras técnicas que alteram a

configuração de um determinado alimento.

3.2 COMIDA COMO CULTURA: QUANDO PREPARADA

Assim como o subtítulo anterior, esta etapa da dissertação também irá iniciar

com uma definição de cultura. Então, para evidenciar a diferença entre natureza e

cultura, Lévi-Strauss (1982), aborda um conceito de cultura diferente. Ao mesmo

tempo que é um ser biológico, o homem também é um ser social. Estímulos físico-

biológicos e os psicossociais muitas vezes reagem da mesma forma, mas nos faz

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perguntar se o medo de uma criança ao escuro é uma manifestação de sua natureza

animal, ou é resultado de histórias contatas por alguém familiar. Muitas vezes, as

causas não parecem se diferenciar e o sujeito responde de forma a integrar o biológico

e o social em seu comportamento. Desta forma, pode-se considerar que “a cultura não

pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem simplesmente superposta à

vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma

para realizar uma síntese de nova ordem” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 42).

Com um provável conhecimento de linguagem, ritos funerários entre outros

aspectos, o homem de Neandertal, não pode ser considerado como vivendo no estado

de natureza. Assim, pode-se entender a diferença entre estado de natureza e estado

de sociedade. Ao mesmo tempo que é um ser biológico, o homem é também um ser

social. Na maioria das vezes, a resposta aos estímulos reproduz uma integração das

fontes biológicas e das fontes sociais de seu comportamento.

Não se pode negar que haja verdade nos dois lados, mas privilegiar um dos

dois, pode ocasionar o não entendimento dos dois fatores. “Onde acaba a natureza?

Onde começa a cultura? É possível conceber vários meios de responder esta dupla

questão. Mas todos mostraram-se até agora singularmente decepcionantes” (LÉVI-

STRAUSS, 1982, p. 42).

Lévi-Strauss (1982), sugere um método para estudo. Consiste em isolar um

recém-nascido para que suas reações nas primeiras horas ou primeiros dias de vida,

fossem observadas. Ele diz que os resultados obtidos neste experimento teriam

origem psicobiológicas, pois não teriam ligações culturais impostas. Mas, este tipo de

teste é limitado, pois essas observações são precoces, porque podem ser substituídos

em dias ou poucas semanas. É também um motivo, a questão de se a reação

estudada não está presente por ter origem cultural ou porque a fisiologia que o

condicionam não estariam ainda presentes. A única forma de resolver essas questões

seria prolongar a observação, em alguns meses ou até anos. Mesmo assim, seria

desafiador, pois seguir as rigorosas condições de isolamento não é menos artificial

que o meio cultural que se pretende extrair.

Então, estuda-se no homem a expressão de tipos de comportamento pré-

culturais. Para atingir resultados, realiza-se o caminho inverso, buscando atitudes e

manifestações precursores da cultura. No comportamento humano e no

comportamento animal estão ilustradas as diferenças entre cultura e natureza. Estes

dois comportamentos são citados, porque neles encontram-se atributos da natureza,

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como o instinto, o equipamento anatômico que permite o agir do instinto, e a

transmissão hereditária de como sobreviver e manter a espécie. No entanto, para

descobrir o traçado do comportamento humano, os mamíferos superiores devem ser

analisados, como os macacos antropoides.

Mas estas pesquisas em macacos também não revelaram muita coisa.

Nenhuma diferença anatômica impede o macaco de associar sons da linguagem, até

mesmo conjuntos silábicos, e assim mesmo, não há linguagem e nem a atribuição aos

sons um cunho de significados. Nas outras áreas estudas, houveram as mesmas

constatações. Lévi-Strauss (1982, p. 46) explica:

É que, com efeito, há um círculo vicioso ao se procurar na natureza a origem das regras institucionais que supõem – mais ainda, que são já – a cultura, e cuja instauração no interior de um grupo dificilmente pode ser concebida sem a intervenção da linguagem. A constância e a regularidade existem, a bem dizer, tanto na natureza quanto na cultura. Mas na primeira aparecem precisamente no domínio em que na segunda se manifestam mais fracamente, e vice-versa. Em um caso, é o domínio da herança biológica, em outro, o da tradição externa. Não se poderia pedir a uma ilusória continuidade entre as duas ordens que explicasse os pontos em que se opõem.

Isto posto, não há experiência que mostre o ponto de passagem entre as

coisas da natureza e as coisas da cultura. As experiências relatadas não foram em

vão, por mais negativos que possam parecer seus resultados. Foi possível entender

que a ausência de regras em comportamentos não instintivos é o critério mais válido

das atitudes sociais. Em tudo que é possível manifestar alguma regra, pode-se

confirmar a presença da cultura. Resumindo, o autor diz que é fácil encontrar, dentro

do universal, o critério da natureza, porque o que é constante em toda a humanidade

não faz parte dos costumes, das técnicas e das instituições que marcam os grupos,

os diferenciam e os opõem.

A norma e a universalidade apresentam uma análise ideal, pois podem isolar

o natural e o cultural. Assim, tudo que é universal no homem relaciona-se a ordem

natural e se expressa na espontaneidade, e o que está ligado a uma norma, relaciona-

se à cultura.

Entendendo este conceito de cultura, a sequência do trabalho vai interpelar

mais um aspecto da comida, quando ela é preparada. Então, de acordo com Montanari

(2013), como diferenciar a comida dos homens da comida dos animais? Assim como

abordado anteriormente, o homem consome o que a natureza disponibiliza, e ainda

aprendeu a produzi-la. Porém, isso representa somente a primeira fase, de localização

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dos alimentos, mas não o consumo desses alimentos. O homem seleciona o que come

a partir de suas preferências individuais e coletivas, normalmente ligadas a valores,

significados e gostos em constante diversificação. Mesmo que de forma elementar, as

raças animais também desenvolvem hábitos para gostos diferenciados, e para os

homens isso não basta para entender o seu modo de comer.

Para Pinsky (2011), a eficácia do deslocamento, realizado pelos nossos

antigos ancestrais (homo erectus), de água, alimentos e do domínio do fogo,

capacitou-os a desenvolver uma autonomia que o permitiu realizar viagens de longas

distâncias, assim como aquelas que saíram da África com destino a Ásia e a Europa.

A capacidade de controle sobre o fogo é um dos pontos que separam os homens dos

animais. Entre muitas funções, o fogo aproxima as pessoas, reforçando laços sociais.

Também tem função mística de espantar espíritos do mal.

Desta forma, Montanari (2013) diz que somente o homem tem como principal

ponto de diversidade, a capacidade de acender e usar o fogo, e o domínio desta

tecnologia permite-lhe, entre outas coisas, fazer cozinha. Esta atividade humana por

excelência, é a forma de transformar o produto da natureza em algo diversificado, pois

as mudanças químicas que o cozimento e combinação de insumos provocam, permite

levar à boca um alimento fabricado, ou talvez artificial. Assim, nota-se que antigas

lendas e mitos representam a dominação do fogo como o ponto inicial da civilização

humana. O que é cru e o que é cozido representam polos opostos, assim como entre

a natureza e a cultura.

A mitologia grega diz que o fogo era posse dos deuses, até que Prometeu o

entrega aos homens. Este ato foi considerado um gesto de piedade de um deus aos

seres indefesos, pois o irmão de Prometeu, Epimeteu, era responsável por distribuir

habilidades aos homens, esqueceu de incluir o domínio do fogo. Então Prometeu

rouba o fogo de Hefesto e o entrega aos homens, para remediar a distração do irmão.

Assim, ele se torna o verdadeiro criador da humanidade, pois o fogo representa uma

elevação do plano animal e o aprendizado das técnicas de domínio da natureza. O

domínio do fogo torna o homem um ser divino, deixa de ser submisso, domando os

processos naturais que agora ele modifica e controla. Por isso, Prometeu irrita os

deuses e é punido por eles.

Segundo a abordagem de Pinsky (2011), a administração ou a dominação do

fogo gerou ganhos simbólicos e objetivos. Quando começou a assar a carne antes de

consumi-la, tornou-a mais digestível, e assim passou a ter um sono mais proveitoso.

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Esse sono realizado em torno do fogo, possibilitou um melhor descanso do corpo, sem

muitos sustos, pois o fogo também espantava os aninais selvagens que poderiam se

aproximar e ameaçar a integridade dos homens.

Montanari (2013), afirma que a carga simbólica do mito grego é refletida na

cozinha, relacionada ao uso do fogo, se faz necessário no entendimento de uma

constituição da identidade humana. Porque daquele momento para frente não se pode

mais afirmar-se homem, sem cozinhar a própria comida, e rejeitar a possibilidade de

cozinhar significa negar a civilização, assunto que será melhor abordado na

continuidade do trabalho. O método que transforma a natureza, guia o trabalho do

cozinheiro. Formatos, consistências, cores são alteradas com técnicas que

pressupõem um afastamento da naturalidade. O cozinheiro que pertencia a cultura

pré-moderna, até o século XVII, foi apontado como um artista que não tinha

compromisso com as atribuições originais dos produtos. Quando apareceu uma

cozinha natural, derruba essa imagem e sugere uma nova ideia de natureza. Esse

ciclo é recorrente na história do passado, e ainda hoje.

Quando os entrevistados lembram das histórias contadas sobre a chegada de

seus antepassados ao Rio Grande do Sul, comentam que não foi uma época fácil pela

falta de infraestrutura. Um ponto que se nota nas lembranças e até mesmo nos dias

de hoje, é o uso do fogo para diferentes funções. Tanto como para proteção, como

para se aquecer no frio, ou para preparar a caça, que era a fonte de alimento da época,

e hoje utilizado nos famosos churrascos nas casas de cada um ou nas festas das

comunidades. Desta forma, é visível a importância do domínio do fogo para os

imigrantes e para seus descendentes. Seguem alguns relatos que demonstram este

ponto:

[...] era mais churrasco (APÊNDICE C, p. 177).

[...] churrasco, galeto, as vezes carne de porco é sempre o mesmo cardápio porque ele fez sucesso então não pode muda né (APÊNDICE D, p. 188).

[...] fizemo costelasso, então a partir das 6 hora da manhã já tinha o fogo e a carne assando né, e levo até a uma hora pra fica pronto (APÊNDICE D, p.

188).

Porque se tinha aquele fogo, aquela brasa pra esquenta a água pra mata o porco, daí abria o porco, tirava toda aquelas miudeza dentro e botava no espeto, salgava, botava em cima da brasa e comia na hora (APÊNDICE E, p.

194).

[...] e meu pai sempre contava que meu bisavô eles tinham bastante criança né porque naquela época era tudo famílias grande, então diz que um sempre

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ficava de plantão de noite em redor da casa fazendo fogo para afasta os animais ferozes que eles comiam as crianças (APÊNDICE F, p. 202).

Então eles tinham que fica cuidando e sempre com fogo que aí o bicho tinha medo de fogo porque diz que vinha onça, vinha leão, vinha esses bicho, então eles ficavam um de plantão pra pode cuida das crianças (APÊNDICE F, p.

202).

A hoje é diferente, hoje o churrasco é o prato principal porque uma que é mais fácil de faze, mais rápido (APÊNDICE F, p. 207).

Segundo Leal (1998), é antigo o entendimento de que a comida quente é

substanciosa. Ainda mais antigo é o fogo, pois é possível encontrar vestígios dele há

cerca de 1,5 milhões de anos. Sendo fonte de luz e calor, não era estranho associa-

lo à magia e ao sobrenatural, como citado anteriormente. Era aquecimento nas épocas

frias, espantava animais selvagens, e um tempo depois, o homem começou a assar

sua caça ou pesca, deixando de ser consumida crua.

A conservação dos alimentos também mudou a partir do uso do fogo. O autor

afirma:

As técnicas mais antigas surgiram na Pré-história, quando o homem aprendeu que os alimentos se deterioravam no ar e no calor, perdendo a pureza e as propriedades nutritivas. Os cerais passaram a ser torrados sobre as brasas na pedra, e as carnes, aves e pescados, defumados ou secos por exposição ao calor do fogo. Mais tarde, as carnes foram secas por exposição ao sol, como também as frutas e os vegetais. (LEAL 1998, p. 17).

Porém, Montanari (2013) diz que não é sempre que o fogo e a cozinha estão

associados. De um modo, determinar o processo culinário meramente à

transformação dos alimentos por meio do fogo é simplório. Se fosse desta forma, se

excluiria as preparações que não necessitam de algum tipo de calor para que haja

cozimento, como as técnicas japonesas relacionas aos peixes crus. Não é possível

extrair essa prática da chamada grande cozinha, mesmo ela não utilizando fogo. De

outro modo, há quem defenda que cozinhar alimentos não é sinônimo de cozinha. Por

exemplo, em uma tradição da China, há diferença entre cozinhar e fazer cozinha. Na

primeira, se emprega o fogo, e na segunda há habilidade técnica de implicações

estéticas e artísticas. Assim, quando esse conceito confronta o ocidental, onde as

duas relações se exprimem de uma única forma, ou seja, o cozinhar (ou cooking),

pode ser interpretado como uma abordagem banal da comida, que só atinge um

destino, que só serve para tornar comestível os alimentos.

Essa separação causa ainda mais discussão, mas não é impeditiva de uma

representação simbólica que o próprio homem fez de si, onde o fogo dominado e o

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cozimento dos alimentos sejam os elementos primordiais na construção de identidade

humana e da saída do estado selvagem para o estado civilizado. Mas o pensamento

chinês ilumina a pluralidade de significados da palavra cozinha, que amplifica as

possibilidades, das mais singelas até as mais elaboradas, desde as práticas caseiras

do dia a dia até as expertises de grandes especialistas. De maneira geral, pode-se

definir cozinha como uma reunião de técnicas que objetivam preparar alimentos.

Para Leal (1998), o fogo possibilitou o desenvolvimento da tecnologia de

cozinhar, e daí surge a arte. Pigmentos eram elaborados a partir do cozimento da

gordura animal, misturada ao sangue do abate dos mesmos. Usavam essas misturas

para registar representações da caça de animais, entre outras figuras. Esses registros

deixados em rochas, paredes ou tetos de cavernas ou grutas, se mantiveram por

muitos anos.

Mesmo sendo uma compreensão ampla e ao mesmo tempo simples,

Montanari (2013) afirma que quando se averigua a sociedade, a época e o lugar, as

técnicas culinárias podem ser mais ou menos inclusivas, isto é, alcançam uma

variedade de operações quanto a especialidade da atividade, de seu nível maior ou

menor de profissionalização e de sua interação com a economia comercial. Por

exemplo, o abate, o corte e a moagem de carnes não são mais parte das práticas de

cozinha europeia contemporânea, mas no passado faziam e ainda hoje sociedades

camponesas não terceirizam esse trabalho. Mesmo assim, as ações complexas da

cozinha não estão vinculadas a um plano profissional de cozinheiros, mas sim ao

contrário, pois é para preparar os alimentos de sustento mais simples que técnicas

complexas sofreram mudanças.

Cita-se as variadas operações que são necessárias para preparar a tortilla no

México ou o cuscuz e a moagem do milho na África, e os processos que a mandioca

deve passar para ser comestível no Brasil e na Oceania. Realizações como estas

exigem muito tempo de trabalho especializado normalmente realizados por mulheres,

principais personagens do trabalho de cozinha e possuidoras das técnicas

transmitidas pela prática e a imitação. Em algumas sociedades tudo isto está

incumbido na ideia de cozinha, mas em sociedades industrializadas as técnicas

necessárias para o preparo de comidas habituais são muito mais rápidas e limitadas,

sabendo que muitos dos processos são executados pela indústria agroalimentícia. De

mais a mais, em grandes centros industrializados, a atividade alimentar inclina-se para

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a saída da esfera doméstica para se tornar profissão aplicada em restaurantes. Neste

caso, a cozinha muda de sexo, de prática feminina passa a ser masculina.

Essas diferentes faces das sociedades e, consequentemente, das cozinhas,

chamou a atenção de diversos estudiosos. Em estudos sociológicos é possível

verificar que somente sociedades complexas, que são vigorosamente hierarquizadas

e estatizadas, que aparecem historicamente na Europa e na Ásia, criaram

circunstâncias para o surgimento de uma cozinha profissional, distinta da doméstica.

De outro lado, em sociedades tribais ou pouco estatizadas, não há conhecimento fora

do contexto familiar sobre outros tipos de cozinha. Os estudos sociológicos ainda

apontam que países com longa tradição escrita aperfeiçoaram a literatura técnica

culinária, responsável por acumular as receitas de cozinha.

A concepção da memória escrita na cozinha possibilita que o conhecimento

se torne acumulativo, se firma como área de conhecimento, o que não acontece em

sociedades de tradição oral. Massimo Montanari (2013, p. 62) afirma:

A cozinha escrita permite codificar em um repertório estabelecido e reconhecido, as práticas e as técnicas elaboradas em determinada sociedade. A cozinha oral teoricamente está destinada, em longa prazo, a não deixar traços de si.

Entretanto, além das diferenças apontadas entre sociedades de tradição

escrita e tradição oral, ainda é necessário entender que grupos dentro dessas

sociedades se diferenciavam. Não há registros que apontam qual era a cultura

alimentar camponesa na Idade Média, pois mesmo sendo uma sociedade de tradição

escrita, quem registrava os textos e quem consumia esses registros eram as elites,

ou seja, as altas castas tinham acesso a esses registros, mas não as classes

subalternas, que mantinham suas tradições em transmissão oral.

Neste sentido, sabendo que os primeiros imigrantes italianos vindos ao Rio

Grande do Sul, tinham dificuldades em acessar alguns alimentos, também não

utilizavam a escrita como meio de registro de técnicas ou de suas histórias. Quando

questionados ao conhecimento de tecnologias, ou o saber fazer na vida cotidiana, os

entrevistados não citam, em nenhum contexto, que aprenderam algo a partir de algum

relato escrito. O que comentam, neste caso, é o aprendizado a partir de ensinamentos

falados e o que se praticava em si, ou seja, olhavam como seus pais ou avós faziam,

e repetiam. Sobre este contexto, pode-se trazer ao texto os seguintes relatos:

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Nossa se ela fazia, aprendi com ela (APÊNDICE B, p. 166).

Tudo eu te diria, tudo o que a minha vó passou pra minha mãe e ela passou pra mim, tudo aprendi com a minha mãe, cuida da horta, cuida dos bichinho, das vaca, tira o leite, tudo com a mãe, tudo foi herdado da mãe, é, do pai também, mas digamos sempre a mãe mais que, que faz essa parte né

(APÊNDICE B, p. 169).

[...] aprendi com a madrasta, eu tinha 7 ano quando perdi a mãe e a vó já tava meia velinha (APÊNDICE C, p. 179). Por exemplo, parreira né, parreira eu aprendi do meu pai, porque o Basílio eu não conheci ele, porque morrero muitos anos atrás, ma eu fui aprendendo com meu pai o negócio de planta parreira né, tem que, dá mão de obra isso, construí um parreiral não é fácil, porque tem que planta as muda, poste, o arame, e aprendi tudo do meu pai isso ali (APÊNDICE E, p. 196).

Revel (1996) diz que a cozinha erudita e a camponesa, e seus

entrecruzamentos, sendo as fontes da arte na gastronomia, a história da gastronomia

é baseada na erudita pois é a que deixou indícios escritos. Os cultuados livros de

culinárias são resultados de pesquisas, invenções ou indicativos de mudanças, e não

de repetições dos costumes de uma sociedade. Os escritos que se tem acesso, são

aqueles que foram de alguma forma memoráveis, como aniversários da realeza,

cardápios de festas grandiosas, entre outras. Este fato atrapalha quando se quer

entender a vida comum das sociedades. Porém, se o que se quer é verificar a história

da gastronomia quanto arte, é nestes relatos que se deve buscar as fontes, já que

nestes momentos especiais haviam concessões e verbas financeiras para que a

imaginação excepcional pudesse ser posta em prática.

Segundo Montanari (2013), o processo, nada simples, de atribuir o papel da

sociedade camponesa na produção alimentar, no que envolve a distribuição, no

conjunto de símbolos concedidos ao comportamento e ao consumo surge de

documentação. Ainda mais difícil é o acesso à documentação relacionada a cozinha,

formas de preparo, registro de preferências ou gostos alimentares. Então, lembrando

que se considera que a cultura escrita era produzida pelas elites destinada também

para as elites, e a fonte oral, aonde estaria a cultura camponesa, não é mais acessível,

conclui-se que somente a cozinha de poucas pessoas ricas nos foi informada,

enquanto a cozinha de muitas pessoas pobres está silenciada, ou no máximo fazer

parte de hipóteses dadas as circunstâncias de realidades históricas.

Entretanto, quando se examina melhor das fontes, vestígios diversos surgem.

Por mais que os textos não sejam expressões diretas à cultura popular, eles

apresentam fielmente o que não se espera. Em livros de receitas medievais e

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renascentistas, é possível perceber uma ligação sucessiva entre a cozinha da elite e

uma cozinha que pode ser representante da cultura camponesa. De fato, a cultura dos

aristocratas e dos burgueses ergue barreiras de comportamento intransitáveis,

principalmente na alimentação, entre as classes mais altas e classes baixas, porém

isso não exclui uma confluência de gostos e hábitos.

Revel (1996), diz que a cozinha camponesa tinha em seu benefício a

proximidade com a terra, o conhecimento dos produtos regionais e suas

sazonalidades, tendo harmonia com a natureza. Esse saber, era transmitido entre as

gerações pela oralidade, pela imitação e pelo hábito. Realizar tarefas que foram

testadas e tiveram seus equipamentos de cozinhas associados, claramente se nota a

presença da tradição. Essa cozinha não era itinerante, não sem seus produtos

tradicionais. Por outro lado, a cozinha de elite, se ocupava da invenção, renovação e

na experimentação. Tanto é que, desde a Antiguidade até nos dias atuais,

principalmente na Europa, irão surgir revoluções gastronômicas, em algumas se viu

uma retomada do passado, como a volta da união do doce e o salgado, de carnes

com frutas, de carnes com crustáceos. Esses, considerados extravagantes, eram a

regra na Idade Média.

De acordo com Montanari (2013), a inflexibilidade dos símbolos que

representam os dois estilos de vida, dos camponeses e dos senhores, está

diretamente proporcional ao convívio de produtos e sabores camponeses presentes

nas cozinhas da elite. Se deparando com alimentos que todos associavam aos menos

abastados, as elites alteravam a representação daquilo para fazê-la parte da área

social privilegiada. Desta forma, os livros de receitas se tornam portentosos e

esquecidas fontes que poderiam reconstruir a cultura oral popular. No livro italiano

mais antigo (séculos XIII-XIV) de receitas, Liber de coquina (Livro de Cozinha),

introduz as verduras, que julga mais fáceis, expondo dez receitas de couve, depois

espinafre, aí erva-doce ou funcho. Adiante, aparecem legumes como grão-de-bico,

lentilha, ervilha, feijão. Entretanto, na Idade Média, todos esses alimentos eram

considerados pobres. E os ensinamentos do livro eram expressamente destinado a

cozinha da elite, deixando claro que o discurso e a prática eram evidentemente

divergentes.

No ano de 1536, no mês de abril, o imperador Carlos V esteve em Roma

tentando uma aliança com o novo papa, Paulo III. O cardeal italiano Lorenzo

Campeggi hospedou o imperador e ofereceu um memorável jantar, suntuoso, como

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era de se esperar. Como a época da visita correspondia a Quaresma, não era possível

servir carne, mas o relato é de que os pratos servidos eram incrivelmente variados,

ricos e refinados, evidenciando que, mesmo cumprindo com as obrigações litúrgicas,

era possível servir um ótimo jantar. A ideia de privação, que faz menção à data, não

era sentida. O responsável por esta façanha foi Bartolomeo Scappi. Este profissional

exerceu o ofício em variadas cidades italianas até chegar em Roma, e ainda serviu

outros dois pontífices da igreja Católica. No ano de 1570, depois de uma longa carreira

nas cozinhas, relatou suas vivências num abundante volume de receitas que nomeou

Obra, somente. Estas receitas escritas foram amplamente difundidas e seu nome

muito lembrado, reforçando a cozinha de elite.

Ingredientes e suas humildades, se tornavam nobres quando entravam para

o sistema gastronômico simbólico, porém, como um simples ingrediente da receita,

sem protagonismo, em pratos notórios. Em escritos do século XV encontra-se

afirmações como a que diz que o alho sempre é associado a comida rústica, mas

quando acrescentado a marrecos assados, se torna nobre. Desta forma, um molho

preparado com alhos no pilão, tipicamente camponês, pode aparecer em livros de

receitas para a alta sociedade, o que ganhou a notoriedade será o que o molho

acompanha.

Para Dickie (2013), até o meio do século XX, pessoas comuns do interior da

Itália comiam mal, refletindo outras partes do mundo, e há registros em documentos

que comprovam isso. Diversas pesquisas atestam que as condições do interior

italiano, nos anos seguintes à unificação do país, como visto no capítulo dois deste

trabalho, no ano de 1861, eram desfavoráveis a muitos. A pobreza e a alimentação

ruim são temas de ditos populares que são ouvidos até hoje, como: Quando pobre

come frango, um dos dois está doente; Alho é o tempero do camponês; O molho de

São Bernardo faz a comida ficar boa.

Entre os camponeses, frango era item raro, normalmente para alimentar

doentes, e quando esses animais adoeciam, os camponeses tinham mais acesso a

eles. As especiarias eram muito apreciadas nas mesas das elites, desde a Idade

Média até, no mínimo, o século XVII, não sendo acessíveis aos camponeses. Mas não

era o caso do alho, alho-poro e cebola, porque exalavam pobreza. Não significava que

os ricos desprezavam estes itens, mas sim depreciavam os que não tinham

alternativas. Felizmente, a receita do molho de São Bernardo se perdeu, pois, este

era um código que significava fome.

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De acordo com Montanari (2013), a exaltação de produtos pobres, tornando-

os preciosos também é notório. Especialmente se tratando de especiarias. Quando as

comidas estão condimentadas são dignas das mesas dos senhores. Essa dinâmica

exige que haja uma base comum de cultura culinária, onde as práticas e hábitos

alimentares sejam colaterais. Por outro lado, comidas excepcionalmente de pobre são

as polentas, as sopas de alguns cereais, legumes ou castanhas. Estas preparações

caracterizam-se pela saciedade, pois devem encher a barriga e espantar a fome,

garantindo a sobrevivência no dia a dia. Mesmo assim, esses estilos de preparos se

fizeram presentes nos livros de receitas, como papas de favas ou de castanhas com

leite. E ainda aqui, os papas ou mingaus serviam de acompanhamento, como indica

o Liber de coquina, servir um mingau de farinha como acompanhamento de cabrito

assado. As preparações com consistência pastosa ainda apareciam nestes

receituários como alimentos para doentes, pois não continham muitos condimentos, e

justamente por sua simplicidade eram provenientes das culturas populares.

Para os descendentes dos imigrantes italianos entrevistados para este

trabalho, a relação com a pobreza é muito presente. Suas memórias se voltam às

dificuldades da vida de seus antepassados, quando chegaram ao Brasil. Nas histórias

que os entrevistados contaram, há uma frequência do tema fome. E, como este tema

relata no decorrer, o que é cozido e o que é assado, deixa de marcar o que é comida

de rico e de pobre, pois a maioria se encontra na mesma condição, sem equipamentos

que possam demarcar uma condição social diferenciada. Neste caso, os seguintes

relatos corroboram o texto:

[...] a gente quando era pequeno a gente passava fome (APÊNDICE A, p.

158).

[...] saíram de lá porque faltava até comida né (APÊNDICE B, p. 163).

Uma carne nunca falta (Marido da entrevistada: sim, nunca falta, graças a deus) nunca, é (APÊNDICE B, p. 164).

[...] mais era polenta essas coisa, de meio dia também a gente levava essas comida, a gente fazia salada, até as vez eu falo pro filho, botava dentro daquelas latinha de azeite quadrada que antigamente vinha de coisa, ai a gente levava pra roça e a gente lá com prato repartia a comida assim na colônia (APÊNDICE C, p. 174).

[...] comam carne poupem a farinha (APÊNDICE F, p. 202).

Em vista disso, nota-se que a cultura gastronômica da sociedade menos

abastada não está perdida. Como visto, algumas delas foram transmitidas pelos

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dominantes, reforçados também pelo modo que os escritos apresentam os preparos

dos pratos. Montanari (2013, p. 69) explica:

[...] a visibilidade da cozinha pobre (portanto, da cultura popular) nos receituários da elite da Idade Média e do Renascimento, que é o momento decisivo de formação da cultura gastronômica italiana, é favorecida pelas modalidades particulares com as quais o trabalho do cozinheiro parece se desenvolver.

Resumidamente, as culturas tanto altas como baixas se acumulam, pois ou

se acrescentam ingredientes nobres a produtos simples, ou se aproximam preparos

nobres a preparos simples. Depois disso tudo amplamente compartilhado, surgem os

elementos de diversidade. É importante perceber que esses elementos de diversidade

se relacionam às práticas de cozinhas contemporâneas. A cozinha requintada,

aplicada em grandes famílias e depois em grandes restaurantes, se diferencia não

somente pelas finalizações, mas também pelo pré-preparo. Os franceses do século

XVII e XVIII, ensinaram muitas das técnicas de pré-preparo usadas até hoje, como

fundos ou caldos (feitos à base de legumes ou carnes, de cor clara ou escura, usados

em receitas de molhos, e etc.), e até mesmo o roux (base para alguns preparos, que

consiste no cozimento de farinha de trigo na manteiga).

Segundo Revel (1996), é importante ressaltar que a cozinha honesta não deve

se apoiar na acumulação, somente misturar não significa combinar. Os preparos mais

excêntricos podem ser pesados e sem sabor. Ao contrário, os preparos mais simples

podem representar a alta gastronomia, por combinações e preparos adequados de

dois, três ou mais ingredientes simples que resultem em sabor original.

Montanari (2013) fala que os livros de receitas de cozinheiros atuais também

não creditavam à cozinha pobre, pois se de alguma forma a utilizavam, dificilmente se

nota que estavam relacionadas a cozinhas mais humildes. Então, se o ponto de

partida reflete um código comum da cozinha, a confiabilidade dos livros de receita da

elite como reflexo da cozinha de pobre, e como meio de resgate dela, se eleva. A

sociedade da escrita deve proteger as características da cultura oral, que mesmo não

emitida na escrita, está presente de modo indireto, e não menos perceptível.

É na cozinha que encontramos um dos símbolos da civilização e da

manifestação da cultura. E é nela também que se pode negar as duas, contestando

os valores que elas representam. Para exemplificar, associa-se o que é consumido

cru com o que é selvagem, e é relacionável com os que escolhem o que não é cultural,

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mesmo assim, escolha repleta de cultura. Pode-se encontrar este comportamento nos

eremitas17, que através de escolha consciente e coerente, utilizam este

comportamento alimentar para reforçar a distância do mundo, excluindo da prática de

cozinha todas as intervenções do fogo. Mesmo querendo se distanciar do convívio

cultural, este afastamento representa o uso cultural desta opção, uma utopia para

além do mundo que se conhece.

Carneiro (2003), contribui dizendo que a história das religiões incluiu a

interpretação e a representação do consumo de alimentos. É possível encontrar um

deus para cada alimento em quase todas as civilizações, como por exemplo, os

cogumelos alucinógenos no México, são chamados de carne de deus, a ayahuasca,

bebida sagrada de origem indígena é cultuada na religião do Santo Daime, no Brasil,

a própria expulsão de Adão e Eva do paraíso se deu devido ao ato de comer um fruto

proibido.

Em tradições cristãs, Montanari (2013) aborda que o que é selvagem é uma

representação alimentar do mito da providência, momento em que o homem era feliz,

pois não tinha sido condenado a procurar a sua própria comida, situação que mudou

devido ao pecado. O que é cru tem um significado semelhante, pois é utilizado para

reforçar a distância da humanidade pecadora, tendo como objetivo a recuperação do

divino. É carregando estes significados que, nos primeiros séculos cristãos, se

apoiavam comportamentos dos solitários, moradores de desertos da Síria e do Egito.

Relatos contam que se alimentavam somente de ervas e raízes cruas, ou que não

comiam alimentos que passaram pelo fogo a sete anos, outros a dezoito anos.

Aconselhavam que, para procurar a santidade, não se devia cozinhar nada, não

provar nada cozido.

Então, retomando Carneiro (2003), o ato de alimentar-se assume um papel

de separar as religiões e seus adeptos, se tornando muito mais do que somente

satisfazer as necessidades do corpo. O cruzamento de mitos com a alimentação

demonstra a fome e a sede como um reflexo do que é selvagem, animalesco, que

deixam de ser assim quando entram para o convívio social no mundo clássico, pois

assim o consumo passa a ser moderado, tornando os homens sociáveis.

Relacionar o cru ao que é mais humilde e o que é assado ao que é mais

requintado, e respectivamente o ensopado e o cozido, se diferem para os imigrantes

17 Pessoa que, por penitência, vive solitária no deserto ou no ermo; eremitão, ermita, ermitão (MICHAELIS, 2018).

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italianos que vieram para o Brasil no final do século XIX. Porque quando aqui

chegaram, para alimentar-se, recorreram à caça, já que não tinham plantações de

outros alimentos, pois eles mesmos tiveram que desmatar as áreas onde, mais tarde,

plantariam. Então, preparar a caça diretamente no fogo ou em algum meio líquido,

representavam a mesma coisa, o sustento alimentar das famílias. O uso do meio

líquido, como sopas, ensopados, caldos, eram muito utilizados para aumentar a

utilidade dos alimentos, pois as famílias grandes eram obrigadas a multiplicar o que

tinham. Seguem alguns relatos que exemplificam este argumento:

Sopa de feijão (APÊNDICE A, p. 157).

[...] no dia a gente faz a sopa tem o galeto no espeto tem o churrasco, mas isso com os homem né, a minha parte é faze a sopa, o risoto, a maionese, cuida de todas essas coisas, saladas, é cuida disso (APÊNDICE B, p. 166).

[...] mais era sopa de feijão de noite nossas janta era sopa de feijão e até de manhã a gente tomava sopa antes de ir pro trabalho (APÊNDICE C, p. 174).

[...] então a gente fazia uma sopa, um churrasco e pão e salada era isso

(APÊNDICE C, p. 177).

Churrasco com certeza, uma sopa também eles fazia, antigamente no começo acho que nem sopa ia faze, me parece, era mais churrasco, até a gente compra o churrasco e botava um espeto fora, em baixo de uma árvore, comprava um pão, uma salada e ai fora em baixo duma árvore, também isso

a gente fez ainda, não sei se alguém comentou isso (APÊNDICE C, p. 178).

Pimenta e sal e dava uma sapecada nas brasa e a gente comia, ma que coisa boa (APÊNDICE E, p. 194).

[...] 3, 4 vezes por semana é um espeto de carne na churrasqueira, porque é menos mão de obra (APÊNDICE E, p. 195).

[...] faziam numa cova, buraco na terra né e cozinhava lá, ma lá na minha, no meu pai lá então a mãe fazia os frango temperado no dia seguinte e botava no forno, forno a lenha e deixava lá toda a manhã, cozinhava, quando chegava o meio dia tava bem vermelhinho assim, ai ela cortava em pedaço e colocava nos prato e fazia um brodo, um caldo assim de galinha que deixo dias na, fechada né que daí então elas ficavam gorda, bonita, ai matavam e faziam a sopa, e fazia agnoline, aqueles agnoline (APÊNDICE F, p 206).

Mais tarde muda-se o cenário, mas a questão do cru permanece. Então a

floresta do Ocidente é a protagonista. Neste momento os relatos apresentam as

mesmas situações, pessoas solitárias que somente se alimentavam de ervas

silvestres cruas, ou de frutas, ervas e raízes, nunca provando algo cozido. Estes

relatos expõem as proezas destes eremitas, evidenciando que suas escolhas são

intelectuais e culturais. São culturais pois a ‘não cultura’ é transmitida entre os

homens, um aprende a não comer alimentos cozidos com o outro. O ideal deste

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movimento, seria a aprendizagem do modelo por animais ou do próprio Deus, assim

poderia ser considerado ‘não cultura’. Nos relatos chamados Vidas dos padres,

aparece a seguinte descrição:

[...] um asceta que, tendo-se retirado para o deserto para viver em perfeita solidão, escolheu se alimentar apenas de ervas e raízes silvestres, obviamente cruas. Mas havia um problema: não sabia distinguir as ervas boas das más. Ele provava todas, mas algumas escondiam, por trás do aspecto convidativo, uma natureza venenosa, de modo que o eremita era tomado de indizíveis dores no ventre, ânsias de vômito e febres. Então, por medo de morrer, começou a desconfiar de tudo que parecia comestível e deixou de comer completamente, arriscando-se novamente a morrer, desta vez de fome. Depois de sete dias, eis o milagre: uma cabra selvagem lhe aparece, aproxima-se do feixe de ervas que o eremita tinha apanhado mas não ousava tocar, começa a separar com a boca as plantas venenosas das boas e lhe mostra quais deve comer. (MONTANARI, 2013, p. 73-74).

Então, compreendendo como se alimentar sem ingerir plantas venenosas,

sobrevive no deserto. Esta passagem insinua-se por revelar que a escolha, dos

eremitas, da não cultura é cultural. Desta forma, se entende que alimentar-se de

recursos silvestres, como a natureza concedeu, não é um mecanismo fácil e intrínseco

ao homem, mas sim algo que se aprende sobre o território e seus recursos, que são

transmitidos por alguém que já os conhece. Neste caso, quem transmitiu o

ensinamento foi um animal, enviado por deus. “Não há outros homens para transmitir

cultura ao eremita solitário, mas da cultura ele não pode abdicar” (MONTANARI, 2013,

p. 74).

Como já citado, Carneiro (2003) diz que a escolha de determinada prática

alimentar estabelece o limite entre o ser selvagem do ser civilizado. Estas práticas

alimentares diversas representam mais do que hábitos, identificam a aceitação de

regras religiosas ou até mesmo códigos morais. Fazendo parte de uma herança

cultural, estes hábitos e tradições, são passados de geração em geração, no momento

em que a alimentação se inicia, com o leite materno, permanecendo parte do

indivíduo, no nível consciente, nas escolhas religiosas ou dietéticas, e no inconsciente,

nas mentalidades e nos gostos coletivos.

Montanari (2013) indica que em nossa época, com ideias que favorecem o

meio ambiente, as atitudes com relação ao cru em hábitos alimentares, encontrou um

aliado, a descoberta de vitaminas, ou seja, quanto menos se cozinha os alimentos,

mais preservadas essas vitaminas estarão. Essa nova visão do alimento cru,

caracterizou-se por ser uma cozinha saudável, e se difere grandemente das linhas de

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pensamento mais antigas, que acreditavam em longos processos de manipulação e

cozimento para que fossem saudáveis.

As inquietações culturais envoltas nas práticas de cozinha atuam de uma

certa forma, nunca de forma neutra. Por trás de hábitos, como por exemplo, comer

carnes assadas e rejeitar carnes cozidas, é de fácil distinção que, além de predileções

individuais, há valores culturais pertinentes. Não somente no passado, ainda hoje o

que é assado e o que é cozido têm distinção em seus significados. Fazem parte da

oposição natureza e cultura, doméstico e selvagem. São questões opostas, como já

abordado, porém, as escolhas relacionadas a natureza, não deixam de ser culturais.

E mesmo assim, o discurso pertinente à escolha da natureza, não fica prejudicado,

também não fica impedido de classificar o assado exclusivamente como parte da

natureza ou do selvagem, visto que somente seja necessário o uso do fogo.

Flandrin (2009) traz o seguinte exemplo, os ingleses admiravam a carne de

boi, e acreditavam que os bois criados em seu país eram de qualidade superior à de

outros. Achavam curioso que na Espanha, a carne de boi era mais barata do que a de

ovelha. Desta forma, através da carne do boi, julgavam quão boa era a gastronomia

do país, enquanto os franceses e italianos faziam este julgamento através da

qualidade dos pães, até porque durante muito tempo a carne de boi foi considerada

por estes uma ‘carne vil’, onde somente poderia ser útil a pessoas rudes, e somente

servindo para os ricos em forma de caldos.

Montanari (2013) diz que, como seria possível imaginar, depois de uma

caçada que abastece a vida alimentar de aristocratas medievais, sem que a

preparasse espetada, girando em cima de uma chama. Para esses e outros homens,

o gosto desta carne era um hábito incontestável, aparecendo em registros históricos.

Estes hábitos eram contestados pelos médicos, tentando fazer com que se comesse

com moderação. Esse processo afirma que os comportamentos alimentares não só

dependem de valores econômicos, nutricionais ou saudáveis, mas também de

escolhas ou restrições relacionadas ao imaginário e ao simbolismo que carrega o

homem.

Por outro lado, o que é cozido, que passa em um meio líquido, em meio ao

fogo, requer o uso de algum utensílio, recipiente, que nada mais é do que um material

cultural, sendo assim carregado de significados relacionados ao que é doméstico. O

ambiente de casa que se relaciona ao que é cozido, e não mais as matas, ou o

selvagem, e tem na cozinha camponesa o que mais o caracteriza. Alguns valores

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atribuídos ao cozido, como domesticidade, cultura, relação do doce com a comida,

estão fazendo parte de uma realidade, nos dias de hoje, onde há uma maior

comodidade e rentabilidade. A relação destes e outros valores, fazem mais sentido ao

camponês do que aos nobres, pois o aproveitamento de tudo que o alimento possa

prover é uma preocupação dos mais pobres, justamente, quando alguma peça de

carne é cozida em meio líquido, os caldos que, em espeto ao fogo se perdem, são

mantidos, ou não desperdiçados, enriquecendo outras preparações, como sopas,

molhos, outras carnes, cereais, legumes e verduras.

Flandrin (2009), comenta sobre relatos de considerados maus hábitos de

alguns italianos quando ferviam carnes antes de assá-las. A questão se resumia a

ferver por muito tempo pedaços que seriam assados posteriormente, com a

justificativa de que o resultado seria uma carne macia e sem sangue. Era uma prática

inconsistente, que fazia com que a carne perdesse seus sucos, ou sua humidade, que

atribui à carne macies. Desta forma então, condenada pelos visitantes de outros

países que não atualizavam esta técnica.

Em direção oposta, Carneiro (2003) fala sobre os orientais serem pouco

carnívoros. Os japoneses são amplamente conhecidos por comer peixe, não tendo

hábitos de ingerir nem mesmo produtos provenientes do leite, ou ovos. Os indianos,

são predominantemente vegetarianos, e utilizam a força do gado para tração ou como

fornecedores de leite. Já os chineses, consomem todas as carnes, mesmo as menos

aceitas em outros países, como de cães, porém não são adeptos do uso do leite.

Para Montanari (2013), a oposição entre o assado e o cozido, está

diretamente associado ao paralelo de gêneros. Quando a panela sobre o fogão, ligado

ao doméstico, representa competências femininas, o feitio do fogo para assar a carne,

se relaciona ao masculino. Por mais ambíguo que pareça, este ainda é um processo

do pensamento moderno relacionado a comida. O churrasco, que ainda por sugestão

antiga, pode relacionar-se com meneios rudes, aduzem a cozinha mais rebuscada ou

a doméstica.

Usa-se o fogo e as técnicas culinárias para melhorar os sabores dos

alimentos, mas também para torná-los mais seguros do ponto de vista da saúde. A

colaboração entre a cozinha e a ciência da nutrição é um fato, que se originou na

cultura alimentar, e quiçá seja possível concernir ao momento em que o homem

dominou o uso do fogo para cozinhar alimentos. Objetivando que a comida estivesse

mais higiênica e saborosa, esse passo foi dado, então nasceu, juntamente com a

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cozinha, a nutrição. No decorrer do tempo, a relação das duas, ficou mais consciente

e estabelecida, se desenrolando como ciência nutricional de prática médica.

As orientações do médico romano Galeno, do século I d.C, diziam:

[...] todo ser vivo – homens, animais, plantas – possui uma “natureza” particular em razão da combinação de quatro fatores, agrupados dois a dois: quente/frio, seco/úmido. Por sua vez, eles derivam da combinação dos quatro elementos (fogo, ar, terra, água) que constituem o Universo. O homem pode se dizer em perfeita saúde quando em seu organismo os vários elementos se combinam de modo equilibrado, balanceado. Se um deles prevalece sobre os outros, seja por estado eventual de doença, pela idade (os mais jovens são mais “quentes” e “úmidos”, os velhos mais “frios” e “secos”), pelo clima e ambiente em que vive, pela atividade que desenvolve ou por qualquer outra razão, é indispensável restaurar o equilíbrio com providências adequadas, primeiramente o controle da alimentação. (MONTANARI, 2013, p. 84).

As práticas destas orientações se davam na identificação da doença que

acometia o indivíduo, por exemplo, se a enfermidade deixava o paciente mais “úmido”,

deveria ingerir, preferencialmente, alimentos de natureza “seca” e reciprocamente. E

aqueles que estivessem saudáveis, deveriam alimentar-se com equilíbrio das

naturezas. E é neste processo, que a cozinha se manifesta, pois, a natureza não

entrega alimentos perfeitamente equilibrados. Então, se certo alimento está

desequilibrado no quesito “quente”, a cozinha, com suas técnicas, o modifica no

quesito “frio”, ou complementa-o, usando modalidades de combinações, com outros

insumos “frios”.

A ingestão de azedos, ácidos ou amargos pode provocar reações maléficas,

de dor extrema. Por outro lado, as ingestões agradáveis percorrem caminhos

menores, inclusive com pouca diferença entre o que é insosso para aquilo que agrada

o gosto. Contudo, o gosto, indicado por Brillat Savarin (1995) como um sentido,

proporciona satisfações variadas, por exemplo, o prazer de comer com moderação

não é companheiro da fadiga; é um prazer atemporal, engloba todas as idades, e

todas as condições sociais; aparece no mínimo uma vez por dia ou mais; se mistura

aos outros sentidos e pode reconfortar a ausência de algum deles. Quando o homem

se alimenta, experimenta um bem-estar indecifrável e particular, isto implica em

compensar perdas e prolongar a vida.

A respeito de prazer no ato de alimentar-se, os entrevistados responderam

suas comidas preferidas, as que mais preparam, e isto se reflete no prazer que sentem

quando comem estes pratos. É notório que a carne é item importante da alimentação

da localidade. Este processo pode ser atrelado a falta deste ingrediente na dieta de

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camponeses italianos antes das imigrações, pois era corriqueiro dos hábitos

alimentares dos ricos. Quando chegam ao Brasil, a fartura da caça nas matas virgens

que foram destinados a tomar, torna o ingrediente parte permanente e essencial à

alimentação e sobrevivência das famílias. Alguns relatos das entrevistas referente a

este assunto:

Só que de meio dia carne não tinha de vaca só de porco, aí não gostava (APÊNDICE A, p. 156).

[...] A massa e que, carne também, todo dia tem que te carne né (APÊNDICE

A, p. 157).

Bom, a sopa, seria em primeiro lugar, a nossa sopa de agnoline, depois que comeram a sopa se falta alguma outra coisinha não é problema (APÊNDICE

B, p. 168).

[...] aquilo era comida preferida dos italiano (feijão), [...], as vezes a gente fazia um arroz, mas sempre a maioria, quase sempre tinha um feijão junto, que eu me lembro né (APÊNDICE C, p. 174).

[...] agora tudo vem do mercado, tudo vem com porcaria junto não é mais aquela comida que tu faz, por quanto que tu cuida mas não é, o que tu compra tu não sabe o que vem na tua mão, porque naquela época não tinha né

(APÊNDICE C, p. 175).

[...] então nós queria sempre uma bolinha daquelas de queijo que era bom né, que era que nem uma ricota né (APÊNDICE D, p. 187).

[...] então é churrasco com massa ou com maionese ou com batata doce

caramelada (APÊNDICE D, p. 187). Que coisa boa, dá saudades hoje de come isso ali, botava bastante pimenta em cima (APÊNDICE E, p. 194).

Primeiro lugar sopa de agnoline (risos), leso, churrasco de gado, de porco, de galeto, salada vinho, refrigerante, pão (APÊNDICE E, p. 196).

Ó, aqui em casa se come de tudo né, mas o macarrão é (APÊNDICE F, p. 203).

As minhas neta quando vem na casa da vó é ‘vó faz os macarrão’, o que elas adoram é o macarrão e o sagu com creme (APÊNDICE F, p. 203).

[...] minha mãe era muito caprichosa, ela gostava de faze os pratinho dela bem enfeitadinho, ela botava uns bife à milanesa nos bolinho de batata assim sabe (APÊNDICE F, p. 205).

[...] tu vem na minha casa hoje almoça, convidava o outro e convidava, e todos os convidado tu formava esse grupo, e quando a gente ia pra festa da comunidade deles eles faziam a mesma coisa, então a gente ia almoça numa casa numa festa na outra ia almoça numa outra e era tão bom, tão bom porque o pessoal conversava e, ai era uma maravilha, eu achava muito melhor que agora as festa (APÊNDICE F, p. 206).

Agora é assim sabe, tu chega no salão, todo mundo senta, todo mundo come, vem o rifão e depois todo mundo vai embora (APÊNDICE F, p. 206).

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Sobre a importância da carne, e da comida em abundância na vida dos recém-

chegados, é possível encontrar cartas que estes enviavam para os familiares que

permaneciam na Itália, aguardando saber se fariam ou não a viagem de migração.

Este é um dos exemplos, uma carta enviada por Paulo Rossato, entre dezembro de

1883 e junho de 1885, que dizia:

Caríssimo Pai

A 22 de junho recebi a tão esperada carta de vocês, que expediram a 4 de maio. Soube que a 14 de abril foi-me enviada outra carta, mas que não recebi...

Se quiserem que lhes faça saber como é a América, posso dizer que quem tem um pouco de vontade de trabalhar tem comida e bebida à vontade, e sem preocupações, porque os patrões, nós os deixamos na Itália. Meu cunhado Pedro, que venha sem temor, que eu lhe garanto. O mesmo vale para meu cunhado Luís: há lugar para colocar um moinho em nosso travessão, no nº 12, e isto é necessário, porque temos que ir longe para mandar moer o trigo, (mais de 5 horas de caminho). Mas se ele pretende partir, que me escreva logo, que reservo para ele uma colônia, ou meia ou um quarto (...).

(...) há comida para todos. Quando vocês chegarem, haverei eu de providenciar pela comida. Por enquanto, agora começo a semear o trigo e depois o corto para plantar milho. (DE BONI, 1997, p. 55-56).

Outro exemplo, em 1885, o italiano Andrea Pozzobon também relatou aos

seus parentes na Itália sobre o que comiam:

Deus meu, quanta abundância. Carnes de gado, porco, ovelha, de aves e peixes. Verduras e frutas, principalmente bananas e melancias. (CORTI,

1998).

É possível encontrar, ainda hoje, de acordo com Montanari (2013),

combinações orientadas pela linha de pensamento medieval. Sobreviveram até hoje,

porque foram absorvidas pelo hábito, como, por exemplo, o consumo do queijo com

peras ou de melões com presunto. Neste exemplo, o melão e a pera representavam

o úmido copioso, indicados como prejudicial à saúde, por isso, consumidos com

queijos e presuntos, pois representavam a porção seca da refeição, ressequindo o

excesso de umidade dos anteriores. Aí, entra em cena uma alternativa, que é notória

em sua capacidade de ressecamento, o uso do sal. Na França, era comum salpicar

sal no melão, porém, ele ainda era perigoso à saúde, pois além de úmido, ele é frio.

Resolvia-se o problema, consumindo-o acompanhado de uma taça de vinho do porto.

Por esta razão, a receita de peras ao vinho (peras cozidas em vinho tinto), ainda hoje

é replicada.

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O profissionalismo de cozinheiros era exposto através da arte da cozinha em

conjunto com o saber médico, porque assim despendiam atenção aos molhos que

acompanhavam carnes e peixes com a finalidade de agregar mais sabor, para que

fossem mais digeríveis. Este conjunto de pensamentos e ações faziam parte dos

hábitos pré-modernos, uma vez que para serem absorvidos pelo organismo, deveriam

estimular os sucos digestivos através do prazer de comer. Por exemplo, molhos a

base de alho deveriam acompanhar carnes duras e gordas, pois esta união estimularia

o apetite, tornando mais fácil para o organismo digeri-la.

Tratados de nutrição, como do médico Maino de Maineri, do século XIV,

traziam traços de receituários de cozinha, pois tinham grande qualidade na sugestão

de práticas relacionadas ao cozimento de alimentos, modos de fazer e de

acompanhamentos. Respectivamente, era fácil de encontrar traços de dicas médicas

em livros de receitas, dizia-se que médico e cozinheiro eram as duas faces do mesmo

saber. Eram preceitos compartilhados, pois cozinha e nutrição falam a mesma

linguagem, tanto que os sentidos, quente e frio, seco e úmido, não eram genéricos,

mas teorias provenientes de experiências sensoriais. E ainda convergem

conhecimentos eruditos com o camponês, análises científicas e práticas do dia a dia.

Revel (1996), ao refletir sobre livros da época em que se acreditava haver

uma revolução na gastronomia, no século XVI, muito por causa da invasão da cozinha

italiana no restante da Europa, destaca-se um livro escrito em latim, chamado De

honesta voluptate et valetudine (O livro da honesta volúpia), atribuído a Bartolommeo

Sacchi, de família italiana ilustre com cargos de prestigio na corte de Roma. Com o

autor sendo um homem humanista, o objetivo do livro foi conceder o desfrute dos

prazeres da mesa, porém mantendo a atenção a certas regras e aconselhar a boa

saúde. Ao mesmo tempo, todos os livros de cozinha gregos objetivavam também

participar da medicina.

Segundo as ideias de Montanari (2013), a associação do prazer e saúde, em

culturas pré-modernas, eram sempre postas em prática, onde um reforçava o outro

mutuamente. A situação onde o prazer de comer era saudável, era a base dos

conceitos de dietética antiga, medieval. E as normas de saúde eram regras

alimentares, não sendo vistas como restritivas, assim como parecem sugerir dietas

contemporâneas, mas sim uma concepção de uma cultura gastronômica. Isto não

exclui a possibilidade de alimentar-se sem visar a saúde, pois quando o objetivo era

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o prestígio social ou a pura gula, entre outros motivos, essas regras de prazer ao

comer e união do que é saudável, não eram levados em conta.

Porém, a partir dos séculos XVII e XVIII, a nutrição passou a falar outra língua.

Começou a se basear na análise química mais do que na análise física. O quente e

frio, seco e úmido deram lugar a fórmulas, e a expressões não mais ligadas a

experiência sensorial. Ninguém conhece o sabor do carboidrato ou o gosto das

vitaminas. A relação prazer/saúde, concebida a muito tempo atrás, ligada as primeiras

experiências de cozimento dos alimentos, permanece sendo importante peça cultural

no Homo edens.

Então, dando continuidade a explanação sobre as formas que a comida se

apresenta culturalmente, passa-se para a última abordagem da comida, quando

consumida pelo homem, atrelada a mais um conceito diferente dos já abordados sobre

o que é cultura.

3.3 COMIDA COMO CULTURA: QUANDO CONSUMIDA

Finalizando este capítulo, e mantendo o formato vindo dos outros subtítulos,

também abordará a cultura com o conceito de um antropólogo. Assim sendo, falar-se-

á de Cliford Geertz (2008). No início de sua obra A Interpretação das Culturas, ele

defende que cultura é basicamente semiótica, então:

[...] o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma explicação. (GEERTZ, 2008, p. 15).

Geertz (2008) também identifica o que o antropólogo francês Lévi-Strauss,

cujo conceito de cultura foi abordado no subtítulo anterior, desconstruiu. O que se

trazia como forma de identificar a cultura, ou seja, a redução do que é complexo em

algo simples. A partir disto, Lévi-Strauss (1982) afirma que na verdade deve-se

substituir o que é complexo e não compreensível por outro complexo mais

compreensível. Todavia, o autor diz que se tratando do estudo do homem, e

avançando sobre as afirmações de Lévi-Strauss, que muitas vezes, se tratando da

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explicação, se deve substituir quadros simples por complexos, ao mesmo tempo que

se busca, de algum jeito, manter a clareza dos quadros simples.

Enquanto isso, entre os homens há grandes diferenças, como em crenças,

valores, costumes, instituições, entre outros. Nota-se que estas diferenças, tanto

ocorrem no tempo como de local para local, mas não definem a natureza do homem,

e ainda confundem, pois ele afirma que são simples acréscimos, ofuscando o que

verdadeiramente é o ser humano. A natureza humana retratada por algo constante,

apesar do tempo, ou do local, ou de circunstâncias, ou de estudos e profissões, ou

modas passageiras, ou até opiniões temporárias, pode ser ilusória, pois o que o

homem é possivelmente está tão enraizado com o local onde ele está, quem ele acha

que é e nas coisas que ele acredita, tornando estas questões inseparáveis.

Considerar estas possibilidades, proporcionou o surgimento do conceito de

cultura e o fim da análise uniforme do homem. Também, estas possibilidades tornam

muito difícil pensar no que é natural, universal, constante, convencional, local e

variável no homem. Assim, tentar traçar essa linha pode ser o mesmo que falsificar a

situação humana, ou pode representar, mesmo que de forma responsável, uma má

interpretação.

Geertz (2008, p. 49) afirma que

[...] o homem é um composto de "níveis", cada um deles superposto aos inferiores e reforçando o que estão acima dele. À medida que se analisa o homem, retira-se camada após camada, sendo cada uma dessas camadas completa e irredutível em si mesma, e revelando uma outra espécie de camada muito diferente embaixo dela. Retiram-se as variegadas formas de cultura e se encontram as regularidades estruturais e funcionais da organização social. Descascam-se estas, por sua vez, e se encontram debaixo os fatore psicológicos — "as necessidades básicas" ou o-que-tem-você — que as suportam e as tornam possíveis. Retiram-se os fatores psicológicos e surgem então os fundamentos biológicos — anatómicos, fisiológicos-neurológicos — de todo o edifício da vida humana.

As particularidades culturais, quando usadas para definir o homem, espantam

alguns teóricos pois tentam buscar igualdades universais entre os homens, e de frente

com a infinidade de comportamentos humanos, sentem medo de se perder nesse

redemoinho de relativismo cultural tão agitado que pode representar a falta de algo

fixo para apoiar a pesquisa. Um fenômeno cultural não retrata a natureza dos homens,

a não ser que este fenômeno seja universal na prática, pois para as ciências o

importante não é se os fenômenos são comuns a todos, mas se eles podem revelar

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os processos naturais escondidos neles. Encontrar o céu em um grão de areia não é

privilégio dos poetas.

Geertz (2008) resume este ponto dizendo que é necessário buscar ligações

sistemáticas entre os diferentes fenômenos ao invés de buscar identidades

substantivas entre fenômenos similares. E para que se alcance este propósito com

sucesso, fatores como os biológicos, psicológicos, sociológicos e culturais se tornem

as variáveis dentro das formas de análise. O que deveria acontecer é que os diferentes

tipos de teorias e conceitos se integrem, de forma que resulte em formulações

significativas que englobem as descobertas que cada área de estudo tem.

Desta forma, o autor propõe duas ideias, a primeira indica que não se olhe

para a cultura através de padrões concretos de comportamentos, como os costumes,

usos, tradições, mas sim como ferramentas de controle, como planos, receitas, regras,

instruções, usando da linguagem utilizada entre os engenheiros da computação,

programas, que ditam o comportamento. A segunda diz que o homem é extremamente

dependente destes mecanismos de controle ou programas culturais, que não nascem

com ele, mas que ordenam seu comportamento.

O entendimento da cultura como uma forma de controle perpassa a hipótese

de que o pensamento humano é essencialmente social e público. Estes pensamentos

contêm não somente o que está na cabeça, mas sim em um trânsito entre esses

pensamentos e símbolos significantes, como gestos, desenhos, sons musicais,

objetos, entre outros, que se relacionam com os significados da realidade. Esses

símbolos já estavam em uso quando se nasce e permanecem quando se morre, neste

tempo, se alteram com acréscimos, eliminações, e alterações parciais. “A cultura, a

totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência

humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base de sua

especificidade” (GEERTZ, 2008, p. 58).

Tendo em mente este conceito de cultura, o texto seguirá para mais uma

etapa do tema comida, quando ela é finalmente consumida. Assim, Montanari (2013)

diz que não há comida boa ou ruim, alguém nos ensinou a fazer esta distinção. O

órgão que distingue o bom do ruim não é a língua, mas sim o cérebro, que

culturalmente aprende e transmite critérios de valoração. Porém, esses critérios são

mutáveis dentro do espaço e tempo. Em uma devida época, algo tido como positivo,

em outros tempos pode ser rejeitado. O que em um determinado local é considerado

iguaria, em outro lugar pode ser repugnante. A definição do gosto das pessoas faz

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parte de um conjunto de patrimônios culturais dessa sociedade. Assim, como as

diferentes comunidades têm suas próprias predileções, elas podem sofrer mudanças

ao longo do tempo.

Entre os sentidos humanos, Savarin (1995) afirma que o gosto conecta o

homem ao que é saboroso, através de sensações que estes causam nos órgãos que

devem apreciá-los. Sendo incentivado pelo apetite, fome e sede, o gosto é o suporte

para que os indivíduos cresçam, se desenvolvam e se conservem, também na

reparação de perdas causadas pelo tempo. O homem possui um instinto particular

que o alerta para a necessidade de alimentar-se, e vai a procura, pega o que supõem

que saciará suas necessidades, come, e assim sucessivamente. Desta forma, o gosto

tem duas funções principais, (1) é um convite, através do prazer, a compensar as

perdas que o tempo e a ação da vida exercem sobre as sociedades, e (2) auxilia na

escolha, entre as variadas opções que a natureza oferece, do que é próprio para o

consumo.

De acordo com Montanari (2013), o conhecimento do gosto de civilizações

antigas passa por duas interpretações diferentes do termo. A primeira é quando o

ponto é o sabor, a sensação pessoal que passa pela língua e pelo palato, ou seja,

cada pessoa tem uma experiência diferente, só sua, íntima, efêmera, intransmissível.

Olhando por estes aspectos, o sabor histórico da comida está perdido. A segunda

forma de entender o gosto é pelo saber, a avaliação sensorial do que é bom e o que

é ruim, o que satisfaz e o que não satisfaz, e neste caso, essas avaliações não são

formadas na língua e sim no cérebro. Neste sentido, o gosto não é subjetivo e

incomunicável, mas sim coletivo e comunicável. Se trata de um processo cultural que

é carregado desde o nascimento juntamente com circunstâncias que ajudam a

estabelecer valores da sociedade. Sendo assim, este segundo aspecto pode ser

estudado historicamente, através de memórias, achados arqueológicos e demais

peculiaridades deixadas pelas comunidades.

Investigando retrospectivamente, de hoje em direção a Idade Média, a

cozinha se difere muito. Hoje, pode-se dizer que a cozinha é analítica, pois procura

distinguir os sabores, doces, salgados, amargos, azedos, picantes, entre outros, e

cada um tem seu espaço, seja em pratos individuais ou na ordem de refeições. Neste

aspecto, se busca o sabor original de cada alimento, mais uma vez evidenciado nas

diferenças entre os sabores. Mas nem sempre foi assim, e só é assim, devido a uma

revolução que aconteceu na França entre os séculos XVII e XVIII.

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Em “Carta aos mordomos” (da metade do século XVII), Nicolas de Bonnefons

recomenda que a sopa de couve, deve ter sabor de couve, o nabo de nabo, e o alho-

poró de alho-poró. Pode parecer simplório, e perturbador em sua insignificância, mas

essa recomendação revolucionou os modos de pensar e de comer que vinham de

séculos. A cozinha, antes disso, era muito baseada na mistura dos sabores. Neste

momento, não eram analíticos, mas sim sintéticos, ou seja, mais valia juntar do que

separar. Indo de encontro com as regras da nutrição, que buscava uma alimentação

equilibrada, que contivesse todas as qualidades nutricionais, o prato perfeito seria o

que unisse todos os sabores, consequentemente todas as virtudes. Desta forma, o

cozinheiro necessitava interceder nos insumos, transformar as características de

forma mais ou menos radical. Exemplifica-se através do apresso que a cultura

medieval e renascentista tinha pelo gosto agridoce, que adicionava açúcar ao que era

azedo, gerando novos sabores e suavizando comidas, por mérito de dois novos

produtos, levados à Europa pelos árabes, o mel e o vinagre, que ainda hoje se fazem

presentes, como na cozinha alemã. Caracterizavam a cozinha medieval as compotas

de mirtilo, peras e maçãs que acompanham carnes de caça. Na cozinha medieval

italiana, o que se destacava era a mostarda de Cremona, que agrega ao picante das

especiarias, o doce do açúcar. Também, o pombo em crosta de mel, tradição

marroquina medieval, entre outras que, em busca de equilíbrio, encurtaram as

distâncias entre os sabores.

Leal (1998) ponta que a Idade Média durou mil anos, e foi marcada por

tempestades, invernos rigorosos, doenças e medo, o rico e o miserável, o senhor e o

servo, dominador e dominado. Haviam muitas guerras e muita fome, tanto que a

expectativa de vida das pessoas chegava a 34 anos, devido a alimentação precária e

insuficiente. Não tinham conhecimento de medicação para as doenças. Porém, na

cozinha apresentavam o luxo ao invés da sabedoria. Os ingredientes eram somente

misturados, não havendo preocupação com a combinação, o que tinha valor era a

apresentação dos pratos, e não a preparação.

Outra característica que separa os tempos de hoje dos mais antigos é o uso

de gorduras para o preparo de comidas. Montanari (2013) diz que a meio milênio atrás,

a cozinha era prevalentemente magra, como por exemplo, no feitio de molhos,

acompanhamentos de carnes e peixes, que se utilizavam de vinhos, vinagres, sucos

cítricos, agraz (suco de uva não madura), miolos de pães, fígados, leite de amêndoas,

ovos. Hoje, faz mais sentido, pensar em molhos gordurosos, com base de óleos e

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manteiga, como as maioneses, o bechamel, entre outros, preparos que mudaram

completamente o gosto e a aparência das comidas.

Além destes pontos, são notórias as técnicas de cozimento aplicadas, que

também sobrepunham e misturavam os sabores, ao invés de diferenciá-los ou

decompô-los. Algumas técnicas, como escaldar, assar, fritar, aquecer, grelhar, entre

outras, eram, no passado, usados em um mesmo alimento, sobrepostos ou

acumulados como partes de um mesmo preparo. Algumas vezes, esses processos

respondiam questões práticas, como por exemplo o escaldar antecedente de carnes,

que tinham o intuito de conservação, até serem servidas, e passassem por outro tipo

de preparo ou técnica para amaciar a textura de carnes.

Este processo, de pré-cozimento de peças de carnes, se fazia necessária aos

novos moradores da serra gaúcha, a partir de 1875. Tanto era, que não tinham outro

meio de conservar o alimento. Quando um morador abatia um animal, um porco ou

uma vaca, era costume repartir alguns pedaços com os vizinhos, e toda comunidade

assim o fazia. Para não perder o presente e não precisar consumir assim que o

ganhavam, utilizavam desta técnica para conservá-lo, com o auxílio da gordura do

próprio animal abatido. Assim segue o relato:

[...] eles pegava e cozinhava a carne junto e guardava junto com a banha, pra conserva (APÊNDICE D, p. 186).

Mas, além destas, respondiam ao gosto da época, pois utilizar de técnicas

variadas em um mesmo alimento, resulta em sabores e consistências diversas,

lembrando que havia um cuidado com a sensibilidade antiga e medieval, que trazia

uma relação tátil com as comidas mais acentuada que a atual, pois a manipulação

destas se dava, muitas vezes, sem o uso de talheres, somente a colher se fazia

necessária em alimentos líquidos.

O garfo só aparecia como forma de refinamento dos costumes de convívio, ou

pela necessidade de comer massas por exemplo, pois eram muito quentes e

escorregadias. Coincidentemente esse processo se inicia na Itália antes de outros

lugares, porque foi ali que, no final da Idade Média, a cultura da massa se instalou.

Porém, para as carnes, mesmo que em épocas mais recentes, o uso do garfo

continuou não parecendo natural e sua higiene era contestada.

Segundo Araújo et al. (2005), a Itália foi responsável por aprimorar as

pastelarias, as geleias, as compotas e doces de frutas, e a partir disso, outros países

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foram adotando estas novas receitas. Marco Polo (mercador italiano da Idade Média,

que passou muito tempo na China), trouxe da China a pasta, ou a massa, que era

preparada pelos chineses usando farinha de trigo, ou soja, dando origem aos talharins

e espaguetes italianos. Quando ofereceram a Marco Polo, foi temperada com gordura

de peixe, deixando o mercador impressionado, levando-o a transportá-la para a Itália.

Mais um ponto merece destaque, segundo Montanari (2013), no que diz

respeito a mudança na relação com a comida do passado para o presente, quando,

na metade do século XIX, se difundiu o chamado serviço à russa, que nada mais é do

que servir aos convidados sucessivos pratos com ordem predeterminada e iguais para

todos, o que hoje acontece normalmente, e até parece óbvio. O modelo anterior a

este, ainda hoje encontrado na China e no Japão, consistia em servir as comidas

sobre a mesa, todas ao mesmo tempo, e cada convidado escolhia-os e ordenava-os

de acordo com o gosto pessoal.

Refletindo sobre os comportamentos sociais, e verificando que estes passam

por um momento de escolha, os meios usados para realizar estas escolhas são

diferenciados, e focando nos modelos de gostos, para verificar como eles se iniciam

e se modificam durante o tempo, é preciso identificar de quem está se falando. É

notório que a fome de muitos e a abastança de poucos, duvidosamente fazem com

que se tenha a mesma oportunidade de escolha. Reforçando que se todos devem ter

direito de satisfazer suas necessidades de nutrição com prazer, os processos pelos

quais as sociedades o fazem, são também diversos.

A noção histórica do gosto é um objeto de intensas especulações literárias que abrangem afirmações de identidades culinárias. Não é apenas como um campo específico de investigação da disciplina histórica ou antropológica que a alimentação interessa à ciência e constitui-se um objeto científico. Esse saber é também empírico e, antes de tudo, uma atividade prática: “a prova do pudim é comê-lo”. Uma ciência de um gozo constitui uma arte, portanto é também como aspecto da história da arte, tanto no seu aspecto técnico como literário. (CARNEIRO, 2003, p. 123).

Deveras, se mudarmos o ponto de vista social referente a pobreza e a riqueza,

de acordo com Montanari (2013), o mecanismo de formação do gosto também se

altera, o que era desejado, deixa de ser o abundante para ser o raro, e o que enche e

mata a fome passa ser aquele que estimula a comer mais. Pode-se citar o exemplo

dos trabalhos do botânico Costanzo Felici, que contam que pessoas transgrediam a

ordem da dietética e comiam salada entre pratos da refeição, pois se acreditava que

a salada aguçava o apetite, estimulando a comer ainda mais.

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Um exemplo sobre a comida rara, foi o uso de especiarias, quando ainda eram

privilégios de pessoas ricas, eram muito usadas nessas cozinhas, mas assim que a

oferta aumentou, e os preços caíram, ficando mais acessíveis a pessoas de poder

aquisitivo mais baixos, foram abandonadas pelas elites. Assim, não podendo mais

afirmar sua diferença através do uso de especiarias, as elites buscaram outros

insumos para se afirmar, como a manteiga, produtos confeitados, frutas frescas, que

por ser perecível e delicada eram tidas como itens de luxo, ou seja, no fim da Idade

Média e início da Idade Moderna, precisavam estar nas mesas dos ricos, mesmo elas

não sendo indicadas pelos médicos da época, pois eram atreladas a humores frios e

úmidos, prejudicando a digestão. Assim, o imaginário social se sobressai a razão.

Para Carneiro (2003), os sabores são mais do que o usufruto de um sentido

que aponta a comensalidade das coisas. O gosto diferente de cada comunidade os

caracteriza, também diferem as épocas de uma mesma cultura. O amadurecimento

das culturas não é só medido pelas conquistas espirituais ou realizações materiais,

mas também pelo grau de composição de suas técnicas e criações alimentares, que

afirmam ao mesmo tempo as expressões técnicas materiais e inventividade artística

das sociedades.

O historiador francês, especialista em Idade Média, Jacques Le Goff,

lembrado por Montanari (2013), escreveu que no medievo, a comida representava a

forma que as camadas dominantes utilizavam para demonstrar sua superioridade, ou

seja, através do luxo e ostentação alimentar, exibiam um comportamento de classe.

Então, seria possível afirmar que os recursos alimentares eram as primeiras

preocupações, ou obsessões dos homens, onde a abundância de itens alimentícios

pontuava a situação de privilégio social e de poder.

Esta situação, não marca apenas uma sociedade ou uma determinada época,

todas as sociedades e suas culturas tradicionais foram marcadas pela fome, ou pelo

medo da fome (através de escassez, de epidemia, de guerra, as três desgraças que

se implorava intervenção divina), mas o medo, por si só, compreendido como uma

atitude psicológica humana, e também como uma realidade cultural social, refletia-se

no coletivo através de gestos, escolhas, comportamentos. Desta forma, surgiu a

necessidade de uma comida funcional, que serviria para a sobrevivência diária, que

nada mais era do que a satisfação do desejo da quantidade, ou seja, o desejo de ter

a barriga cheia, e de ter uma dispensa abastecida. E a qualidade desta quantia, era

importante, mas vinham em segundo plano.

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Oddone Longo (1998, p. 269) comenta sobre os gregos:

Em que consistia a “alimentação dos outros?” As descrições e os relatos etnográficos e antropológicos, reais ou imaginários, dão-nos uma idéia. Mesmo entre os próprios gregos, as diferenças, bem acentuadas, refletiam, certamente, as disparidades econômicas e a estratificação social. Os textos literários mostram isso: pense-se na alimentação muito rica em carne dos guerreiros, não só gregos, mas também troianos, da Ilíada, assim como no banquete permanente dos pretendentes na Odisséia. Mas é sobretudo em relação a outras culturas que a alimentação grega revela suas características específicas, e alimentação, nesse caso, é sinônimo de “estilo de vida” (bios).

Por estes motivos que, antes de tudo, os poderosos se definiam como grandes

comedores. Para Montanari (2013), em narrativas do ano 888, o duque Guido di

Spoleto não pode assumir o poder como rei porque era de conhecimento de todos que

ele comia pouco, seus eleitores diziam que ele não poderia reinar sobre eles já que

se contentava com refeições modestas. Nesses casos, seria o mesmo dizer que

comer demais, e ser capaz de consumir mais comidas que outras pessoas não era

apenas uma demonstração dos privilégios que esta pessoa tinha, mas sim de uma

obrigação social, uma diretriz do comportamento de classe, que os poderosos não

podiam abdicar para não levantar questionamentos da ordem que se estabeleceu.

Esta questão se relacionava também com concepções físicas do poder, do qual o

chefe, ou o guerreiro, podendo consumir grandes quantidades de comida, mostrava

ser forte e vigoroso, capaz de demonstrar sua superioridade sobre seus súditos.

Não é por acaso que os nomes que os guerreiros recebiam, no medievo, eram

provenientes do mundo animal, como lobos, ursos, leões, pois assim simbolizavam a

força animal. Animais sempre carnívoros, porque desta forma reforçavam a imagem

cultural que o consumo de carne conferia mais força e coragem, nutriam o corpo e

repunham a massa muscular, justamente necessidades que os guerreiros tinham que

suprir, legitimando seu poder. Também implicava à caça, que eram contadas através

de cansativas perseguições e duelos, dando mais prestígio ao guerreiro, pois assim

indicava que este era habilidoso com armas e práticas de guerra.

Para Araújo et al. (2005), com uma dieta simples, em evolução, os gregos

elaboraram costumes parecidos aos dos romanos no que dizia respeito à mesa e a

hospitalidade. Os banquetes eram longos, e apreciavam comer muito, o que não

queria dizer que comiam bem. Ao longo do tempo, melhoraram a qualidade das

comidas, deixando nas mãos dos cozinheiros a responsabilidade de melhorar as

combinações dos pratos. Quando recebiam convidados especiais, eles mesmos, junto

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com os cozinheiros, preparavam as refeições. Desta forma, os ricos passaram de

gourmands (guloso, que come muito) para gourmets (apreciador e entendedor de

alimentos e vinhos).

De acordo com Montanari (2013), o passar dos anos destituiu a questão da

quantidade de comida atrelada ao poder e ao prestigio social. Então, o poder passou

a ser representado de outra forma, através do direito adquirido, por vias hereditárias.

A passagem de uma nobreza de fato, conquistada pelos mais fortes e mais ricos, para

uma nobreza de direito, adquirida através de laços de sangue, também se relaciona

com modelos alimentares. Antes, comer muito demonstrava superioridade, que

passou a ser um direito que não necessariamente se devesse exercer. O que

importava era ter uma grande quantidade para depois distribuí-la. A linguagem

alimentar se torna mais ostentatória, cenográfica e teatral. Foi esta a forma de exibir

o privilégio alimentar até o limiar da contemporaneidade.

Esta formalização que passou a fazer parte das refeições nobres, não excluiu

o exagero ao comer, pois ser gordo era bonito, era indicação de riqueza e de bem-

estar. Traço que ainda aparece nos dias de hoje quando, normalmente alguém com

idade mais avançada, comenta que o outro está muito magro, e pergunta se está

faltando comida. A cultura da magreza, nas sociedades pré-modernas, era reprovada

e considerada marginal. As esculturas de arte grega, romana, renascentista, e

barroca, indicavam o ideal estético arredondado da época. Importante dizer que não

se buscava a obesidade, mas o corpo magro não despertava desejo, tanto que

Shakespeare escreveu que “dos magros é preciso desconfiar”.

Em nome de novos ideais e novas políticas, contra a velha ordem, intelectuais

burgueses, por volta dos anos 1700, propuseram um novo modelo cultural estético,

que valorizava a magreza, atrelada a ligeireza, produtividade e eficiência. O desapego

dos anos 1800, retomou alguns pontos das características medievais de penitência

cristã, ajudando a evidenciar a imagem do corpo magro, esbelto e ágil, corpo de elites,

que trabalham pelos seus bens e riquezas. Logo, durante o século XIX, principalmente

no século XX, as formas corporais arredondadas deixam de demonstrar superioridade

social. Pela lógica industrial da produção de comida, a popularidade do consumo inclui

novas classes sociais à fartura de comida. E, como já abordado, o fato que deixa de

ser privilégio de poucos ricos, não mais os representa. Desta forma, ser gordo não é

mais bem visto pelas elites.

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Junto a isso, Romagnoli (1998), diz que o que impulsionou a mudança do

comportamento à mesa foram a abdicação da promiscuidade e de modos rudes.

Regras de como se comportar à mesa, escritas no século XII e manuais do século

XVI, muito difundidos, como De civilitate morum puerilium, explicando sobre como

educar crianças, de Erasmo, e regras escritas para jovens oficiais da Alsácia, que

proibiam a limpeza do nariz nas toalhas de mesa, cuspidas no prato, ou devolver

ossos roídos e comidas que já foram à boca de volta ao prato, foram postos em prática

para que houvesse um requinte à mesa.

A partir daí, para Montanari (2013), os novos membros da elite se

diferenciaram de outras formas, passaram a comer pouco, especialmente

aumentando o consumo de vegetais. Os padrões estéticos de magreza, cheios de

referências à saúde, no início dos anos 1900, se difundiram pela Europa, porém, com

a vivência devastadora da guerra, que marca a fome, fazem com que os modelos

arredondados voltem a ser cultuados. Nos anos 1950, os anúncios publicitários

mostravam figuras femininas “cheinhas”, como mostra a imagem 7. Já os anos 70 e

80 o modelo de corpo magro reaparece para indicar que, no plano cultural, a relação

com a comida está invertida, onde o perigo e o medo do excesso substituíram o perigo

e o medo da fome.

Imagem 7 - Publicidade Coca-Cola

Fonte: Coca-Cola Brasil18

A tradição de fartura de comida na sociedade industrial pós-moderna, retrata

novos problemas com soluções difíceis para a cultura, marcada pelo medo da fome e

com desejo de comer muito. Em países ricos, se proliferam as doenças causadas pelo

excesso alimentar, se tornando um fenômeno em massa, coisa que antigamente fazia

parte da vida somente dos privilegiados. Assim, o problema gira em torno da diferença

18 Disponível em: https://www.cocacolabrasil.com.br/sobre-a-coca-cola-brasil/a-historia-da-coca-cola-brasil. Acesso em: 18/10/2018.

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entre o desenvolvimento econômico e o processo cultural, a era é de abundância, mas

as atitudes mentais, culturais, se desenvolvem para um mundo de fome.

Dickie (2013), mostra que em um salto, entre 1958 e 1963, uma nação de

trabalhadores rurais se transformaram em operários industriais na Itália. Desta forma,

a tão sonhada revolução alimentar também se fez presente. Como os imigrantes, os

italianos deixaram de se alimentar de comidas que lembravam o passado difícil,

representado principalmente pela polenta. Em uma média, todos no território italiano,

entre homens, mulheres e crianças, comiam mais de 60 gramas de farinha de milho

por dia. No final da década de 60, essa média caiu dois terços, e no início dos anos

80, o consumo de polenta era pequena demais para ser registrada. Essa queda está

relacionada ao aumento do consumo de carne, que no ano da unificação, 1861, se

estimava que o consumo de carne era de 12 quilos por pessoa ao ano, ou seja, 33

gramas de carne por dia. Passados um século, em 1960, houve aumento para 60

gramas por dia. Em 1975, já se calcula que o consumo estivesse em 170 gramas por

dia, e em 1989, os italianos consumiam mais carne que os ingleses.

Para ilustrar, o quadro 5 informa a quantidade de comida que estava acessível

para um soldado holandês no ano de 1648.

Quadro 5 - Ração diária de um soldado holandês em 1648

Quantidade (em gramas)

Calorias Protídeos Lipídios Glucídios

Carne (boi ou porco

102 204 15 16 0

Moréia seca 68 177 42 1,2 0

Farinha de centeio

489 1.653 48,9 9,8 342

Óleo 68 612 0 68 0

Manteiga 68 524 0,3 58 0,3

Queijo 68 237 19 17 2

TOTAL 863 3.407 125,2 170 344,3

Fonte: (MORINEAU, 1998, p. 577)

Lembrado por Montanari (2013), Anthelme Brillat Savarin, em 1826, escreveu

na obra Fisiologia do Gosto: “diz-me o que comes e te direi quem és”. Sua intenção

era comportamental, queria dizer basicamente que o modo de comer de alguém,

revelava a sua personalidade e seu caráter. Contudo, em vias históricas, esta

afirmação assume significados mais amplos, abrangendo a natureza social, mais que

a individual. A qualidade do que se come é entendido pelas culturas tradicionais como

um lugar de pertencimento social, e ao mesmo tempo a revela. Então, além da

quantidade, a qualidade da comida tem força para comunicar a posição social. Neste

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caso, repete-se que o nobre se firma como consumidor de carne, com ênfase na caça,

pois representa a força, e o camponês, continua vinculado aos insumos vindos da

terra, como os cereais, hortaliças, entre outros. Lembrando que mesmo ligado aos

produtos da terra, os camponeses também caçavam, então consumiam carne, mas

em quantidades menores que os nobres.

No fim da Idade Média, a imagem da nobreza e do poder não era mais a

mesma. Deixou de representar o guerreiro, e a força não é mais o seu traço

característico, mas sim a cortesia, e com isso um novo modo de se comportar em

grupo. A nobreza não precisava mais comer muito, mas sim identificar o que é bom e

o que é ruim, e desta forma, limitar-se e controlar-se. Assim, deviam recusar o

alimento que não era digno de sua posição, e em uma só olhada, saber o que lhe

convinha.

Estudando as receitas, encontram-se inovações, segundo Flandrin (1998), no

que diz respeito à cozinha das elites, como na escolha dos alimentos e no

desenvolvimento de gostos por legumes, frutas, laticínios, carnes de açougue e

temperos. Os temperos com gostos fortes, como os ácidos e os carregados de

especiarias, muito utilizados no início da Idade Média na França, deixam de ser

usados, substituídos por temperos mais gordurosos ou açucarados. Na época, eram

tidos como delicados, pois respeitavam mais os sabores dos alimentos. Essa

tendência, se espalhou por outros países da Europa, além da França, como na

Inglaterra, Polônia, Alemanha, Itália e Espanha.

Montanari (2013) diz que os religiosos, monges e sacerdotes, mediavam

outras formas de imagem social. Eles representavam um comportamento alimentar

codificado. Em específico os monges tinham as regras escritas que norteavam cada

ato de suas vidas do dia a dia. Uma delas era a exclusão da carne dos hábitos

alimentares, principalmente de animais quadrúpedes, e assim o faziam para contrapor

a representação cultural da carne sobre o exercício do poder, da força, da violência.

Negar a carne, indicava apartar-se da sedução do poder, sendo sinal de humildade

espiritual. Lembrando que a maioria dos monges vinham de linhagens nobres, e desta

forma, tinham que renegar os privilégios que tinham, se tratando de uma escolha

deliberada, e era aí que todo o valor da experiência se encontrava.

Ainda no espectro da nutrição, as ligações se fortalecem, pois, religiosos não

necessitam nutrir o corpo comendo carne, mas sim uma aproximação com o céu,

através de uma alimentação mais leve, e por isso, as regras alimentícias dos monges

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abrem exceções para carne de aves. Este fato se reforça quando se menciona que,

nos últimos séculos da Idade Média, as elites italianas e europeias, deixaram de

valorizar a carne de animais de grande porte, como cervos, javalis, ursos,

substituindo-os por aves como os faisões ou as perdizes, indicando as mudanças

culturais que ocorriam na época. Mudanças que também ocorriam em outros campos

culturais, como a diminuição da necessidade de haver guerreiros, menos relacionados

ao uso de força corporal, para o uso mais acentuado da gestão administrativa e

política do poder, evidenciados pelas indicações de médicos que diziam que as carnes

de aves eram comidas ideais para quem estava atrelado a trabalhos que exigiam

talentos e inteligências.

Em tempos recentes, o consumo alimentar e os estilos de vida, relacionados

a status sociais permanecem com modalidades diferenciadas. A qualidade do que se

come se define, sabendo que o atributo social se caracteriza pelo direito/dever de

consumir itens de qualidade, ligando certos tipos de alimentos a somente certo tipo

de consumidor. Tanto que, na Europa do século XVIII, o café era atribuído a

burgueses, pois era uma bebida conhecida por manter a mente alerta, facilitando o

trabalho, aumentando a produtividade, e o chocolate atribuído aos aristocráticos,

porque era mais suave e delicado. Mais tarde, no século seguinte, o café se

popularizou e os símbolos que ele trazia mudaram, mudanças naturais que acontecem

com os processos culturais das sociedades ao longo do tempo. Assim como a batata,

que os europeus do século XVIII consideravam comida de camponês, ou mesmo de

animais, mas no século seguinte entrou com força na alta cozinha burguesa e

aristocrática.

Outro fato sobre o final da Idade Média, abordado por Hyman e Hyman (1998),

diz respeito aos livros publicados na época. O último a ser lançado no século XVII a

trazer novidades foi Le Cuisinier roïal et bourgeois, de Massialot, e era o primeiro a

informar, com modelo de dicionário, e mostrar plantas de mesas postas, com toalha e

sobre ela pratos e travessas (a imagem 8 é um exemplo). No ano seguinte, La

Nouvelle Instruction pour faire les confitures é lançado, complementando o primeiro e

formando a primeira obra culinária composta por mais de um volume. Devido a suas

revisões e reedições, foi o único tratado a relatar as mudanças que vinham ocorrendo

nas produções culinárias do século XVIII. Justamente por isso, notou-se uma

estagnação no lançamento de novos títulos sobre o assunto durante esse período,

entre 1691, quando Le Cuisinier roïal et bourgeois foi lançado, até 1734, quando este

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foi relançado com o nome Le Nouveau Cuisinier royal et bourgeois, ganhando outros

três volumes para a parte de culinária.

Imagem 8 - Mesa posta em Le Nouveau Cuisinier royal et bourgeois

Fonte: Le Floc’h19

Para Montanari (2013), uma concepção da cultura alimentar, que parece ter

se deixado de lado nos dias de hoje, é aquela que significava a comida ao passar do

tempo. As sociedades do passado, atrelavam a preparação deste ou daquele alimento

de acordo com o calendário, como o Natal bem marcado com suas comidas, a Páscoa

da mesma forma, o verão e o inverno também. Neste ponto, as questões culturais

prevaleciam sobre as questões naturais, ou de sazonalidade dos alimentos. Do século

IV em diante o calendário litúrgico obrigou os devotos a distinguir quando poderiam

comer alimentos gordos e magros, alternando gorduras animais com os vegetais, as

carnes mais pesadas com carnes de peixes, o queijo com verduras. Mas também era

possível que estes pratos estivessem ligados ao calendário natural, como comer carne

de porco na festa de Santo Antônio, em janeiro, justamente na época de abater os

19 Disponível em: http://www.lefloch-drouot.fr/html/fiche.jsp?id=1757812&np=&lng=fr&npp=150&ordre=&aff=&r=&&setLng=en. Acesso em: 18/10/2018.

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porcos. Em produtos panificados, como os pães, ou as massas e doces, já que não

dependem da sazonalidade para serem produzidos, o que os diferenciavam para cada

festa eram as formas, as dobras e os recheios. Por exemplo, o panetone é

praticamente sinônimo de Natal, e isso não acontece porque ele é preparado de

determinado modo, mas sim porque é feito para esta ocasião específica.

Entre as várias formas de identidade sugeridas e comunicadas pelos hábitos alimentares, uma que hoje nos parece óbvia é a do território: “o comer geográfico”, conhecer ou exprimir uma cultura de território por meio de uma cozinha, dos produtos, das receitas, nos parece absolutamente “natural”. Mas esse lugar-comum consolidado, segundo o qual a “cozinha de território” seria uma realidade antiquíssima, nativa, atávica, é um equívoco sobre o qual é oportuno refletir atentamente. (MONTANARI, 2013, p. 135).

Desta forma, se faz necessário identificar a distinção entre produtos e pratos,

a receita isoladamente, a cozinha, e o conjunto de pratos e regras. Os pratos locais,

relacionados aos produtos locais, sempre existiram, e assim a comida está

diretamente relacionada aos recursos que o local disponibiliza. Porém, os

conhecimentos de origem dos produtos alimentícios não faziam parte da cultura do

território, ou em anseios pelo comer geográfico, porque o objetivo dos gastrônomos

pré-modernos não era se posicionar em determinada cultura, ou conhecer o território

através dos sabores que ele dispõe, mas sim acumular as experiências, reunir à mesa

todos os territórios possíveis, em uma espécie de banquete universal.

Segundo Carneiro (2003), a revolução alimentar ocorreu quando os

continentes se interligaram com as navegações, quando produtos variados

começaram a viajar de continente para continente, alterando radicalmente

praticamente todas as sociedades do mundo. A pimenta, canela, cravo, e noz-

moscada, especiarias asiáticas, espalharam-se pela Europa e outros continentes. O

milho, batata, tomate, amendoim, pimentões, que são insumos americanos, se

espalharam pelo globo terrestre. A cana de açúcar, o chá, o café e o chocolate,

mudaram o padrão do consumo de bebidas, que juntamente com o tabaco, entraram

nos hábitos internacionais. O trigo e a uva, viajaram com os emigrantes para diferentes

locais, e o álcool destilado adentrou novos mercados. Essas viagens dos alimentos

pelos oceanos e o seu impacto esboçaram o início da era contemporânea.

Na época imperial, Montanari (2013) diz que Roma foi bem quista pelos

escritores por ter todos os produtos locais ao mesmo tempo, com uma oferta muito

variada, que objetivava superar a importância local, ultrapassando o território. Essa

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cultura polivalente reforça que a mesa é um local universal, desde a dos mais ricos

até a dos mais pobres. O primeiro objetivo permanece sendo o de congregar todo tipo

de produto, todo tipo de local, em um só lugar, que é a mesa posta. Ainda na Idade

Média, os mercados de Bolonha e Milão, eram famosos não só por terem alimentos

locais, mas pela eficácia de realizar trocas interterritoriais, inter-regionais,

internacionais. Da mesma forma, durante séculos, o mercado de Paris funcionava da

mesma forma, sendo também famoso pelos mesmos motivos.

O mesmo vale para os pratos e especialidades locais. Assim como os

produtos, os pratos também aparecem ligados ao território, aos recursos e às

tradições. Neste caso, também se nota que o objetivo é impróprio, não os utilizando

para identificar culturas diversas, mas para agrupá-los e misturá-los, assim como na

antiguidade e na Idade Média, que os livros de receitas listavam receitas de várias

procedências, como de Roma, de Treviso, de Apúlia, da Lombardia, entre outros.

Mestre Martino, o cozinheiro italiano mais famoso do século XV, listava em seu

receituário a couve à romana, torta bolonhesa, ovos à florentina e muitas outras

receitas locais. Assim, não há dúvidas de que nesta cultura, o que se buscava era a

união, juntar experiências diversas, italianas, alemãs, francesas, catalãs, inglesas,

entre outras. Este estilo de cozinha universal era encontrado em toda a Europa.

Para Carneiro (2003), o comércio alimentar entre os oceanos, acumulou

capital e modificou profundamente a vida social de todo o mundo. Já em processo de

expansão desde a Baixa Idade Média, a cultura árabe difundiu alguns produtos

asiáticos na Europa, como o arroz, o algodão, as frutas cítricas, as mangas, a cana

de açúcar, a berinjela, entre outros. Neste processo, as Cruzadas distribuíram ainda

mais esses produtos pelas diversas sociedades, e a nobreza incorporou-os como

parte de sua grandeza. Porém, assim que estes produtos começaram a ser acessíveis

para camadas sociais mais baixas, surgiram os primeiros mercados mundiais,

principalmente com o auxílio das especiarias, do açúcar e de bebidas quentes como

o chocolate, o chá e o café.

Afinal, Montanari (2013) afirma que os pratos e produtos locais não vão

valorizar as cozinhas de território na antiguidade, nem na Idade Média, e nem no

renascimento. Com o passar do tempo, o cuidado com a cozinha de território começou

a ser tomado. A mudança foi percebida quando se concluiu a estação do

universalismo medieval e renascentista, quando as identidades nacionais se definem

e se fortalecem, ou melhor, se constroem, marcando também as identidades

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regionais. O orgulho de pertencer a estas identidades cresce nos séculos XVIII e XIX,

quando, no caso italiano, aparecem os livros de receitas específicas de Piemonte,

Lombardia, Cremona, Macerata e Nápoles. O livro “O Apicio moderno”, de Francesco

Leonardi, de 1790, possivelmente seja o primeiro a reunir hábitos regionais italianos,

mas o fato de pouco representar o regional, assim como o conhecemos hoje, ainda

estava presente.

Os hábitos e práticas alimentares de grupos sociais, práticas estas distantes ou recentes que podem vir a constituírem-se em tradições culinárias, fazem, muitas vezes, com que o indivíduo se considere inserido num contexto sociocultural que lhe outorga uma identidade, reafirmada pela memória gustativa. Tal reflexão encontra guaridas explicativas na obra A invenção das tradições, organizada por E. Hobsbawm e E. Ranger, com a segunda edição publicada em português, em 1997, a qual permite suporte teórico à questão das tradições culinárias. (SANTOS, 2005, p. 15).

De acordo com Montanari (2013), a regionalidade ainda estava em formação

naquele período, e o que a ajudou a se concretizar, no ano de 1891, foi a publicação

do livro “La scienza in cucina e l’arte di mangiar bene” (A ciência na cozinha e a arte

de comer bem), de Pellegrino Artusi. Este livro alcançou um sucesso espantoso, e em

mais de cem anos, ganhou dezenas de edições, permanecendo entre os mais

duradouros best-sellers italianos (assim como Pinóquio). O livro declarava que seu

objetivo era unificar a Itália, que tinha acabado de se tornar um Estado unitário,

também na cozinha, através da reunião de fragmentos de culturas locais que se

pretendia apresentar às burguesias das cidades em construção. O autor, Artusi, não

tinha acesso a todas as tradições locais, então as criava, as inventava, adaptando-as

a um gosto da maioria que ele mesmo decidiu.

O projeto de unificação proposto por Artusi, funcionou melhor do que a

unificação através da língua. Mas essa unificação, por meio de certa padronização de

gostos de consumo, aconteceu através de mais conhecimento e de mais valorização

das características locais, tipificando as muitas culturas, as muitas Itálias, por meio da

curiosidade, do conhecimento e do respeito mútuo. Claro que nem todas as regiões

foram bem representadas no receituário de Artusi, e algumas nem se quer aparecem,

porém, as mais apreciadas e qualificadas cozinhas regionais, estimadas por todo o

país, até hoje, estão presentes no livro, pois para a cultura do recém unificado país,

as escolhas de Artusi faziam sentido. Essa regionalidade, ou força local das cidades

e seus territórios, hoje evidencia a cozinha italiana, tornando-a competitiva e mais

atual que outras, como por exemplo a francesa, que se consolida através de um

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modelo nacional, de regras culinárias. No passado, a cultura alimentar regional

poderia ser considerada como a fraqueza italiana, mas transformou-se em um ponto

forte, com o passar do tempo.

Os gostos locais não pertencem ao passado, pois somente nos últimos dois

séculos houveram mudanças culturais, lentas, que inverteram os critérios de

avaliação. O momento em que as cozinhas regionais ganham força, é justamente o

período de industrialização, no século XIX. Pode parecer contradição, mas com o

começo do processo de padronização, a globalização de mercados e de maneiras de

se alimentar, incitou um cuidado diferenciado com as culturas regionais, ou seja, a

criação, baseada em fragmentos propagados pela história, de sistemas denominados

cozinhas regionais. Não se pode afirmar que foi uma ideia nova, porque as diferenças

entre as localidades sempre existiram, mas o território como noção e como dado

positivo foi a nova criação.

Em gastronomia, para Revel (1996), assim como em outras áreas, a história

é intrínseca à geografia. Hoje, um francês poderia se chocar com a junção de doces

e salgados em um mesmo prato, normais para alemães, como o clássico molho de

menta, açúcar e vinagre que os ingleses servem juntamente com o cordeiro. Esse

mesmo francês pode esquecer que o açúcar, há dois séculos atrás, era componente

do preparo de carnes e pratos salgados franceses, sendo parte da tradição medieval

europeia. Não que a cozinha francesa seja a principal ou tenha dominado o mundo,

mas o inverso é verdadeiro, pois receitas do mundo foram incorporadas a cozinha

francesa. Entende-se por uma cozinha veneziana, irlandesa, ou outra, um corpus de

receitas fixas, diretamente ligadas a seu local e aos seus recursos. Entende-se por

cozinha internacional, não um corpus de receitas, mas sim a reunião de seus métodos,

de seus princípios, que variam de acordo com a disponibilidade local e financeira,

mesmo dentro do próprio país, por variáveis de sazonalidade, por exemplo.

Na atualidade, Montanari (2013) diz que o território estabelece valores

completos nas escolhas alimentares. Os restaurantes mais falados do momento,

ostentam como referência de qualidade a oferta de uma cozinha ligada ao território

em que ele faz parte e aos mercados de produtos locais frescos. Esta inovação,

mesmo que baseada em tradições antigas, acontece juntamente com outros

fenômenos tanto econômicos como culturais. O âmbito econômico, relaciona-se com

o desenvolvimento industrial da alimentação. Na área cultural, a mudança do gosto,

que já vinha acontecendo nos últimos séculos, deixou de valorizar a intervenção

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maciça dos cozinheiros no sabor natural dos alimentos, característica da cozinha pré-

moderna, e a partir dos séculos XVII e XVIII, inicialmente na França, espalhando-se

pela Europa, uma nova cultura, do gosto natural dos alimentos.

Outro fenômeno acontece quando a sociedade da fome, ligada a valores de

consumo alimentar muito relevante para a época, que foi o uso da comida como

diferenciação social, pois todas as sociedades tradicionais utilizaram o modo de comer

como um dos primeiros diferenciadores entre as pessoas e suas classes, passando

para uma sociedade da abundância, onde o acesso aos alimentos atinge classes mais

baixas, tornando a diferenciação social mais difícil de acontecer através da comida, e

onde o valor do território se torna o novo diferencial social, valorizando a comida

geográfica. Relacionar e elaborar estes raciocínios não seria possível em uma

sociedade classista como as da Europa pré-moderna. Não seria possível surgir o

pensamento de comida territorial, na Idade Média, porque a percepção de território

desta época debilita as diferenças sociais. Quando o ideal da cozinha se torna o

espaço, todos tem o direito de ocupá-lo, o senhor e o camponês. Evidenciar o

território, neste caso, sob um ponto de vista cultural, deixaria de utilizar a comida como

primeira e principal ferramenta de diferença. Exatamente por isto, o conceito de

cozinha regional não pode ser antigo.

Segundo Revel (1996), a expressão “cozinha internacional” pode ser vista de

duas formas contrárias. Por um lado, representa uma cozinha sem raiz, desconhecida,

que permite a exigência da retomada dos pratos da terra. Do outro lado, nomeia a

grande cozinha, que é capaz de internacionalizar-se, pois os chefs a conhecem em

suas bases, e já que a domina, são capazes de utilizar estas bases em novas criações.

Um bom número de receitas, reavaliadas, podem ser internacionalizadas. O curry

indiano, a paella valenciana, o chucrute alemão, o fritto misto à italiana (prato que

antigamente serviam fritas as entranhas dos porcos abatidos), são possíveis de

internacionalização, e se forem aprimoradas, podem representam melhor a cozinha

internacional do que a regional. Em outros casos, este processo é impossível, pois o

sabor da terra local, ou de técnicas relacionadas a um habitat específico, e até mesmo

do cheiro do ar, as especificidades do clima, podem influenciar negativamente a

tentativa de reprodução de alguma receita e arruiná-la.

Na cultura alimentar contemporânea, para Montanari (2013), um tema

recorrente é a relação que envolve a cozinha territorial e a internacional, que

representam um modelo local e global, respectivamente. A cozinha regional, somente

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nos dias atuais, ganhou força cultural, tendo uma trajetória parecida com a da

globalização alimentar, mas com resultados diferentes. Desta forma, desenha-se um

paradoxo, pois antes, em sociedades subdivididas, como a antiga e a medieval, o

desejo era de ter um modelo universal de consumo, onde todos tivessem a chance de

ser reconhecidos. Mas hoje, no mundo onde sabe-se de tudo, os valores locais se

afirmam.

Lembrando que o texto já indicou que a cozinha de território é uma invenção

moderna, por outro lado a cozinha internacional possui raízes antigas. Pode-se notar

o passado da cozinha internacional quando citada a cozinha romana mediterrânea,

ou a medieval europeia, pois ambas foram universais, disponíveis em todos os locais

conhecidos e frequentados. A diferença entre estas e a cozinha internacional que

conhecemos hoje não está em quanto internacionalizada era, mas sim quantas

pessoas atingiam em determinados níveis sociais, lembrando que nestes momentos

históricos, essas elites que podiam aderir a essas cozinhas, não eram numerosas,

traçando um paralelo com o momento atual, mesmo não atingindo a população como

um todo, atinge um percentual muito maior.

Com a intenção de incorporar pratos regionais, Revel (1996) diz que a cozinha

internacional necessita contemplar os modos de preparo e a origem de elementos

aromáticos, pois a partir disso será capaz de manipular novas composições e

adaptações quando reproduzida em lugares diferentes. É este o processo que move

a cozinha internacional, a curiosidade, que se difere da regional, porque essa deve

manter-se rotineira, exclusiva, e assim preservar seu status, visto que não deve mudar

o registro de sabores que já possui. Neste circuito, um bom cozinheiro que queira

deslocar um cuscuz norte-africano por exemplo, deve considerar atentamente a

composição original da receita, e não tanto aos ingredientes dela, como o grão de

bico, molho picante, sêmola de trigo, entre outros, mas sim a arte de tratar a sêmola

para que se torne um bom cuscuz, também para a qualidade da carne que será usada,

uma vez que utilizada a carne errada, se torna um exemplo de uma má cozinha

internacional, indicando que o idealizador deste erro, não foi capaz de entender os

princípios da receita original.

Para Montanari (2013), é visível que no decorrer do último século a

homogeneidade do consumo se fortaleceu, seja pela facilidade de comunicação e

trocas, seja pela massiva presença de indústrias alimentícias multinacionais que

controlam os mercados. É enorme a quantidade de pessoas, de diferentes países,

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classes sociais, culturas, que consomem Coca-Cola, suco de laranja, bife com batata

frita, massa, arroz, entre outros. A cerveja e o vinho se tornam cada vez mais

consumidos em lugares onde um predominava sobre o outro. O pão branco, que era

praticamente consumido só pela elite, hoje é item indispensável em muitos lugares. A

porção diária de consumo de carne aumentou em todos os lugares, inclusive naqueles

que são conhecidos por consumir mais vegetais, como os vinculados à cozinha

mediterrânea. É todo um novo universo alimentar, não elitista, mas de massa. Porém,

é necessário que perante essa expansão da globalização alimentar não ofusque os

modelos culturais antigos.

Neste sentido, os entrevistados expressaram seus sentimentos quando

questionados sobre as mudanças que o passar do tempo ocasionou em suas vidas.

Todos identificam as grandes mudanças de vida de seus avós, depois de seus pais,

deles e agora de filhos e netos, pois os valores e princípios também mudaram, além

das práticas de trabalho e relações familiares. Questionados sobre as diferenças na

alimentação e em que se tem disponibilidade e acesso, eles responderam:

Totalmente diferente pros meus filhos e pros netos então mudou mais um pouco [...] agora ma mudo totalmente, totalmente, totalmente, a menina por exemplo ela ta com 20 anos ela trabalha estuda mas ela, faze comida até ela sabe, mas não sabe nem, se fosse dize, lava as roupas e passa ferro e faze tudo como nós fizemo, não (APÊNDICE B, p. 170).

Diferente, diferente, a minha filha já bastante diferente e a neta então que eu tenho só uma neta também bem diferente, eles, é, é outro, outra vida agora [...] a os neto eles é diferente, eles não tem que aprende na horta, eles é tudo diferente os guri né, em vez as menina seria, teria essa parte, mas nada disso é, fazia crochê, qualquer coisa, de tudo que vinha pela frente né mas agora não querem nada com nada (APÊNDICE B, p. 170).

[...] agora é o celular e o computador tem gente brigando com o colega do outro lado (APÊNDICE B, p. 170).

[...] agora eles fazem é tortei, é risoto, é galeto, essas coisa toda né, antigamente não tinha aqueles tortei, aquele galeto, faz uns ano pra cá tem tudo isso ai né, a gente mudo tudo (APÊNDICE C, p. 177).

Olha, o exemplo, acho que isso ai foi se perdendo sabe, os filós, que se reuniam as famílias ai jogava baralho, ai era servido um brodo, era servido os grostolis minha mãe fazia, conforme o grupo então, numa casa era uma coisa na outra era outra, mas aqui eu lembro que a minha mãe falava que os homem jogavam baralho e as mulher conversando ou alguma fazia trabalho manual enquanto minha mãe preparava os grostoli e o café, ou o brodo com eles achavam melhor né, isso ai, que eu lembro disso ai, depois o que mudou um pouco foi no decorrer do tempo foi se perdendo muita coisa, por exemplo, a minha mãe ela fazia um prato que é quando tinha sobras de pão ela de manhã cedo a primeira coisa que ela fazia ela botava, ai ela fazia o seguinte não botava fora nunca pão, porque diz que passaram necessidade quando jovem né, então ela botava leite, açúcar, um pouquinho de sal, ovos e fazia ela fazia, misturava bem, desmanchava bem aquele pão sabe? Bem

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desmanchado, botava um pouquinho de canela em pó, e bem pouco cravo, porque cravo é forte né, e cozinhava botava no forno, enquanto ela fazia o almoço, outras coisa ela preparava e ia assando essa forma à milanesa que eles falavam (APÊNDICE D, p. 189-190).

Olha, ninguém quer mais nada com nada, a preferência é acha pronto, eu vejo pelo meus sobrinhos, não os mais velhos, por exemplo que nem o Gilmar a Jacira, Janice, essas ai não, essas ai ainda toma a iniciativa fazem, mas meus netos sobrinhos então isso não querem nada (APÊNDICE D, p. 190).

[...] ma te garanto que tu vai pergunta pra um rapaz ali de 14 15 anos uma moça, não sabe nada, porque quando conversa também, agora tem aqueles celulares ali, ninguém escuta ninguém (risos) (APÊNDICE D, p. 192).

Agora, meus netos por exemplo não aprendeu nada da colônia porque nasceram na cidade, então na cidade, agora meu filho que trabalha mesma coisa que o pai, só que mora na cidade né, ma ele sabe faze tudo o negócio

da colônia (APÊNDICE E, p. 197).

[...] hoje tu vai lá com dinheiro, tu compra o que tu qué, sem trabalha (risos)

(APÊNDICE E, p. 199).

Hoje? Ish, hoje a gente passa bem (risos), hoje a gente passa bem porque a gente tem tudo que qué né (APÊNDICE F, p. 203).

Mudo muito, muito, principalmente depois que começo essa informática, essas coisas ali então bah, a juventude é bem diferente agora, eles não conhecem nada dos sacrifícios dos antigos (risos) (APÊNDICE F, p. 203).

Agora é assim sabe, tu chega no salão, todo mundo senta, todo mundo come, vem o rifão e depois todo mundo vai embora, pronto quando é três hora já acabo a festa, em vez ali na antigamente continuava até noite, pessoal conversava os rapazes as moças, ai era muito melhor (APÊNDICE F, p. 206).

A hoje é diferente, hoje o churrasco é o prato principal porque uma que é mais fácil de faze, mais rápido, o pessoal não que trabalha muito, e é diferente hoje, hoje tem maionese essas coisas toda, ao invés daquela época lá a gente fazia uma salada de batata com ovo ma tudo picadinho dentro assim no, nada de maionese, bem diferente (APÊNDICE F, p. 207).

[...] porque hoje é só internet, é tudo, tv, e fica na tv olhando, só essas coisa agora, mas aquela época era muito bom essas surpresa, esses filó, ai faziam pipoca, cozinhava amendoim e ia de tudo, pinhão (APÊNDICE F, p. 207).

Como exemplos dessa globalização alimentar, Montanari (2013) conta que é

possível encontrar em um famoso restaurante em Paris, um prato chamado Spoon,

de Alain Ducasse, que consiste em permitir ao consumidor que escolha, dentre as três

colunas de opções, os alimentos descritos no menu escrito em inglês e francês. O

Guia Michelin20 (Imagem 9) caracteriza este prato como “planetário” pela diversidade

20 “Tal como acontece com todas as grandes invenções que mudaram o curso da história, o guia MICHELIN não começou como o icônico guia de restaurantes que é hoje. De fato, suas raízes eram muito mais simples: o pequeno guia vermelho foi originalmente concebido simplesmente para encorajar mais motoristas a pegar a estrada. Pela primeira vez, contemplaram-se uma lista de hotéis em Paris e listas de restaurantes de acordo com categorias específicas. Foram excluídos os anúncios pagos do guia. Em 1926, o guia começou a conceder as estrelas aos restaurantes em destaque, inicialmente marcando-os apenas com uma única estrela. Cinco anos depois, uma hierarquia de zero,

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das opções desenvolvidas pelo Chef. A primeira coluna descreve as carnes e peixes,

que podem ser servidas cruas, semicozidas ou cozidas de várias formas diferentes.

Na segunda coluna se escolhe os acompanhamentos e na terceira os molhos. Isto

possibilita ao consumidor a montar um prato da forma que mais o agrada e a criar

pratos que podem cruzar etnias, ou seja, poderão ser pratos ítalo-indo-nipo-

mexicanos ou ainda outra coisa. As louças que servirão esses pratos também podem

variar, e os talheres podem ser substituídos por pauzinhos.

Imagem 9 - Guia Michelin

Fonte: guide.michelin.com

De acordo com Carneiro (2003), vale ressaltar que uma revolução silenciosa

tem importância para que a gastronomia e o prazer de comer se constituíssem no

formato que se conhece hoje, que foram as evoluções das maneiras à mesa. A

utilização do garfo substituindo as mãos, o uso do guardanapo, o pão redondo e chato

foi substituído pelo prato, o uso de cadeiras e da própria mesa, que ainda hoje

diferencia o Ocidente e o Oriente, onde por exemplo, os japoneses tradicionais ainda

comem sem o uso de cadeira, ou indianos que nem mesmo a mesa utilizam.

As bebidas também fazem parte deste processo, vinhos e águas têm

diferentes proveniências. Este modelo, não propõe um modelo único de consumo,

todos os exemplos citados neste texto a este respeito mostram o contrário. Todavia,

a globalização alimentar não apaga as diferenças dos locais. Alguns hábitos territoriais

específicos se mantêm, como o consumo de vinho pelos europeus mais ao sul e o

consumo de cerveja pelos europeus mais ao norte, mesmo que esse habito tenha

exceções. “Embora que condicionadas pela padronização dos consumos, as

uma, duas e três estrelas foram introduzidas e, em 1936, os critérios para os rankings estrelados foram publicados” Disponível em: https://guide.michelin.com/br/sao-paulo/about-us. Acesso em: 18/10/2018.

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especificidades locais permanecem arraigadas nos hábitos, talvez principalmente no

plano popular” (MONTANARI, 2013, p. 149).

A atual comensalidade, ou os consumidores contemporâneos, abordado por

Araújo et al. (2005), representam a falta de tempo para alimentar-se de produtos

frescos, pela utilização de tecnologias inovadoras no preparo e conservação de

alimentos, pela mudança de local onde se realizam as refeições, e pela abundância

de oferta de insumos pelo mundo. Nesse processo, as conversas que se tinham ao

redor das mesas deram lugar a utensílios descartáveis e lanchonetes de comida

rápida. O cozimento dos alimentos ficou mais simples. A industrialização alterou o

estilo de vida humano. Dois fatores sustentam essas alterações: a necessidade de

consumir menos calorias, já que as condições de trabalho e de lazer não exigem mais

um alto consumo calórico, e a despreocupação com a qualidade dos alimentos, já que

agora é necessária uma alta produção industrial deles, com valor publicitário

agregado, salientando a praticidade que a vida contemporânea exige.

Para Montanari (2013), mesmo quando uma mesma comida ou bebida é

presente na cultura de diferentes sociedades, elas podem apresentar diferenças. Por

exemplo, o chocolate tem diferentes níveis de doçura dependendo onde está sendo

comercializado. Quando os chocolates suíços são vendidos na França, são menos

doces, pois assim atende ao gosto dos consumidores franceses. O café também pode

ser exemplo, pois é uma bebida consumida no mundo todo, mas preparado de formas

muito distintas. Ainda nas bebidas, a Coca-Cola, símbolo de uniformização do gosto,

não mantém o sabor em todos os locais, utilizando pesquisas de mercado para

adequar o sabor em cada região.

Há um caso ainda significativo a se abordar neste tema, que foi a implantação

do hambúrguer, trazido da Disney americana para a Eurodisney em Paris. O modelo

de preparo da comida foi implementado tal e qual o norte americano, mas não

funcionou em Paris. O motivo foi simples, quem frequenta a Eurodisney gosta sim de

hambúrguer, mas somente o consome em horários de refeições, e não durante o dia

todo, sem horário específico como o consumir americano. A organização de

funcionários era excessiva em partes da manhã e tarde, mas insuficiente ao meio-dia,

quando se formavam filas gigantescas para consumir o produto. Então, transformando

o hambúrguer em um item de almoço, em substituição ao sanduiche ou bife, foi

finalmente aceito. Isto exemplifica que, quando algo é transportado de uma cultura

para outra, deve sofrer alterações em sua concepção original. É assim que funcionam

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as operações da gigante McDonald’s, que marcam as diferenças nacionais e regionais

nos sabores oferecidos, até mesmo nos formatos dos lanches.

Analisando todo este conteúdo abordado até aqui, é fácil constatar que a

cozinha global e a local podem coabitar, gerando um novo modelo de consumo, que

alguns sociólogos já nomearam de “glo-cal”:

Porque as identidades, além de serem mutáveis no tempo, são múltiplas: o fato de que eu seja cidadão do mundo não me impede de ser cidadão europeu, e cidadão italiano, e cidadão da minha cidade, e cidadão da minha família, e assim por diante, multiplicando. Cada uma dessas identidades tem a sua forma particular de expressão alimentar, que, se apesar das aparências, não se contrapõe às outras, mas convive com elas: não há qualquer contradição em se comer no McDonald’s e, na refeição seguinte, querer tagliatelle caseiro ou a receita particular do restaurante da região. Nesses dois momentos, com esses dois gestos, apenas aparentemente contraditórios, tão diverso em conteúdo e em significado, exprimimos duas das identidades diversas que nos definem. (MONTANARI, 2013, p. 153).

Sabendo da importância de entender mais sobre a identidade, e para que o

problema de pesquisa seja respondido com plenitude, o próximo capítulo vai abordar

trabalhos de teóricos sobre a constituição da identidade, como identificar e como se

aplicam estas teorias nas sociedades, com foco nos entrevistados que contribuíram

com este estudo.

Para isto, explanações sobre o conceito do tema identidade irão abrir o

capítulo, com autores como Manuel Castells (2002), e seu trabalho publicado no livro

“O poder da identidade”. Stuart Hall (2005) também contribuirá com considerações do

livro “A identidade cultural na pós-modernidade”, e relações com a comida serão

construídas com o auxílio de autores como Massimo Montanari (2013) e Denise Amon

(2014). Ainda assim, relatos dos entrevistados enriquecerão as relações entre

identidade e comida, com o intuito de responder ao problema de pesquisa proposto

para este trabalho.

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4 IDENTIDADE E A RELAÇÃO COM A COMIDA

Nesta etapa, o trabalho irá abordar o tema identidade. Para isso, teorias que

conceituam o tema serão descritas, e trabalhos de autores que façam relação entre a

identidade e a comida estarão presentes. Assim, a fonte que um povo utiliza para dar

significado às coisas refletidas em suas experiências, é o que Manuel Castells (2002)

indica como identidade. Por isso, o processo de concepção desses significados, com

base em características culturais, ou em um conjunto de atribuições culturais inter-

relacionadas representam o que é a identidade. Não fica difícil entender que as

identidades são construídas, mas como, a partir de quê, quem a constrói, e com que

finalidade, são pontos importantes no entendimento do conceito. A construção da

identidade se utiliza de material histórico, geográfico, biológico, de instituições

produtivas e reprodutivas, da memória coletiva, das fantasias pessoais, pelos apelos

religiosos e pelas relações de poder existentes nas sociedades.

Todos esses materiais são processados pelos sujeitos e grupos sociais, que

os reorganizam, ressignificando tudo de acordo com as tendências e projetos culturais

próprios. Sendo assim, Craig Calhoun (1994), com quem Castells (2002) dialoga,

sugere que não se tem conhecimento de comunidades ou povos que não tenham

nomes, idiomas ou suas próprias culturas, onde apareçam alguma forma de

diferenciação entre o eu e o outro, o nós e o eles. O autoconhecimento perpassa a

diferença entre o eu e o outro.

O conteúdo simbólico dessas identidades é determinante para a construção e

para o propósito delas, assim como o que elas significam para quem se identifica com

elas, ou as excluem. Sabendo que a concepção social da identidade se relaciona

diretamente com as concepções de poder, segundo Castells (2002), pode-se verificar

a diferença entre três formatos e origens de construções de identidades: (1) identidade

legitimadora; (2) identidade de resistência; (3) identidade de projeto. A identidade

legitimadora, é aquela que é utilizada por instituições que já dominam as sociedades,

e pretendem continuar a dominar os indivíduos, com o pano de fundo nacionalista. A

identidade de resistência, é aquela criada pelos indivíduos dominados, baseada em

impedimentos para os princípios das instituições dominantes. E a identidade de

projeto, é aquela que reúne o material cultural disponível para configurar uma

identidade diferente das anteriores, que seja capaz de redefinir seu lugar na

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sociedade, e a partir disso, busca alterar toda a estrutura social já construída, como

exemplo pode-se citar o feminismo, que não se caracteriza como resistência, mas sim

enfrenta o sistema patriarcal, atingindo muitas outras estâncias, como a estrutura de

produção, reprodução, sexualidade e personalidade marcantes nas sociedades já

estabelecidas historicamente.

Diferente dos apontamentos de Castlles (2002), as discussões sobre o tema

identidade sempre estiveram em pauta, principalmente em teorias sociais. Stuart Hall

(2005) diz que no centro destas discussões encontram-se argumentos como o

enfraquecimento de velhas identidades, que a longo tempo consolidaram o mundo

social, dando lugar a novas identidades que fragmentam os indivíduos

contemporâneos, que até então eram vistos como sujeitos consubstanciados. Para

entender melhor essa fragmentação atual da identidade, é importante distinguir as três

concepções distintas sobre identidade: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e

o contemporâneo.

O sujeito do Iluminismo tinha uma construção centrada, unificada, que nascia

com ele, se desenvolvia com o seu crescimento, mas permanecia estática, ou idêntica,

ao longo da vida. O ser era sua identidade, e o individualismo era uma marca da

época. Já o sujeito sociológico mostrava uma maior complexidade, perdendo a

individualidade e a autonomia, relacionando a identidade com as pessoas que eram

importantes para ele, aqueles que interviam sobre valores, sentidos e símbolos, ou

seja, a cultura, da sociedade que faziam parte. Neste ponto de vista, a identidade se

forma a partir da interação entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda apresenta um

centro, o eu real, mas se transforma quando interage com culturas diferentes e as

identidades inseridas nesta nova cultura.

Deste modo, projeta-se “nós mesmos” em identidades culturais, juntamente

com a internalização de significados e valores dessas culturas, que acabam fazendo

parte do que o sujeito diz ser. Assim, a identidade une os sujeitos aos processos

culturais em que habitam. Entretanto, todo esse processo está em mudança, o sujeito

está se tornando fragmentado, portando não somente uma identidade, mas muitas

delas. Esta fragmentação possibilitou o surgimento do sujeito contemporâneo, que é

aquele que não tem uma identidade fixa ou permanente. Neste caso, a identidade

passa a ser móvel, gerada e transformada constantemente. Assim é possível que os

sujeitos assumam identidades diferentes em momentos diferentes. “[...] à medida em

que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos

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confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades

possíveis” (HALL, 2005, p. 13).

Para Hall (2005), a identidade é marcada pela diferença e por meio de

símbolos. A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar

possível optar entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de

subjetividade. A identidade se forma ao longo do tempo, através de processos

inconscientes. A representação, compreendida como um processo cultural,

estabelece identidades individuais e coletivas, e sistemas simbólicos, podendo

responder questões como: Quem eu sou?

As sociedades hoje estão em constante mudança, o que as difere muito das

sociedades tradicionais antigas, porém, os mais significativos são as transformações

do tempo e espaço, onde não há mais um local específico onde acontecem as

relações sociais, mas sim, vários locais simultâneos. Ernest Laclau (1990) contribui

com um conceito de deslocamento, dizendo que uma estrutura deslocada, é aquela

que não tem mais seu centro localizado onde sempre esteve, não substituído por um

novo centro, mas sim muitos outros centros. Neste sentido, as sociedades

contemporâneas não possuem um único centro, como a família, ou a religião, muito

menos um único meio de organização e articulação. A característica marcante da

sociedade contemporânea é a diferença, pois há um atravessamento de variadas

visões e conflitos sociais que geram muitas posições de sujeito, ou identidades, para

os membros dessas sociedades.

Um dos grandes descentramentos do pensamento do século XX, que

proporcionou o surgimento de múltiplas identidades, foi a descoberta do inconsciente,

por Freud. Nesta teoria, Freud diz que as identidades, as sexualidades e os desejos

tem formação em bases simbólicas e processos psíquicos do inconsciente, que

funciona logicamente, diferente da razão, e acaba com a existência de sujeitos com

identidades fixas, aquele “penso, logo existo” de Descartes não existe mais. Então,

inicia-se a formação do eu aos olhos do outro, ainda criança, quando ela relaciona os

sistemas simbólicos fora dela, que é o momento de absorção de informações como a

língua, a cultura e a diferença sexual. Junto a estes sentimentos, acontecem as

contradições e aqueles que ficam sem solução, como os de amor e ódio pelo pai, ou

o conflito de agradar ou rejeitar a mãe, são importantíssimos para a formação do

inconsciente do sujeito, pois o deixam “dividido”, acompanhando a pessoa pelo resto

de sua vida. Mesmo com esta divisão identitária, a vivência do indivíduo permanece

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como se estivesse unida, sob a perspectiva de ser uma pessoa unificada. Por estes

aspectos que a psicanálise identifica a origem da identidade.

Sendo assim, a identidade é algo que se forma, ao longo do tempo, não algo

inerte, que passa a existir no momento do nascimento. E como não é estática,

permanece incompleta, sempre em processo de formação. Hall (2005, p. 39) afirma

que:

A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado de plenitude.

Uma dessas identidades, importante para abordar, é a identidade nacional.

Na atualidade, as culturas nacionais nas quais os sujeitos nascem, representam uma

das mais relevantes fontes de identidade cultural. Quando é necessário se auto definir,

brasileiros, italianos, ingleses, franceses normalmente são as primeiras respostas.

Porém, essa identidade não está impressa nos genes dos sujeitos, mas se pensa

nelas como parte da natureza humana. Então, as identidades nacionais, se formam a

partir de representações, por exemplo, sabe-se o que é ser brasileiro, ou italiano,

graças à um conjunto de significados representados pela cultura nacional. Essa ideia

de cultura nacional é relativamente nova, pois em sociedades mais antigas, essa

lealdade e identificação “eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região” (HALL,

2005, p. 49), agora, são devotadas à cultura nacional. A cultura nacional foi e é útil

para a criação de padronização de alfabetização, o uso de uma única língua,

homogeneizou a cultura e contribuiu para que a industrialização prosperasse.

Um intricado processo de mudanças, que vem sendo chamado de

globalização, tem tido poder para deslocar as identidades nacionais, o que vem

acontecendo desde o final do século XX. A globalização diz respeito àqueles

processos que tem escala global, que ultrapassam as fronteiras nacionais, agrupando

e conectando comunidades e instituições no espaço-tempo, deixando o mundo um

local mais interconectado. Desde os anos 70, tanto a abrangência quanto a velocidade

da integração global se intensificaram, tornando os fluxos e os laços entre as nações

mais estreitos. Porém, esses processos causam efeitos sobre as identidades culturais,

como a desintegração de identidades nacionais relacionadas ao crescimento da

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homogeneização cultural, as identidades regionais e locais estão ganhando forças

resistindo contra a globalização, e o declínio das identidades nacionais que estão

dando lugar à novas identidades hibridas.

Desta forma, uma das principais características do efeito da globalização

sobre as identidades nacionais é a constrição do espaço-tempo, pois é notável que o

mundo se tornou menor, com distâncias mais curtas. Eventos em um devido local

afetam de imediato outros locais muito distancias entre si. Esse fator tem influência

sobre a identidade, porque o tempo e o espaço estão relacionados diretamente com

as representações. Assim, os meios de representação, como a escrita, a arte, a

fotografia, ou sistemas de telecomunicações, traduzem os objetos em dimensões de

tempo e de espaço. As diferentes fases culturais combinam de forma diferenciada as

relações de espaço-tempo. Pode-se citar como exemplo eventos como a teoria da

relatividade de Einstein, ou as pinturas cubistas de Picasso, entre muitos outros.

Certos teóricos têm falado que estes processos enfraqueceram os formatos

nacionais de identidade cultural, através da falta de identificação dos indivíduos com

as culturas nacionais, em contraponto com outras ligações culturais mais fortes,

especialmente quando relacionados com direitos legais e cidadania, reforçando

identidades locais, regionais e comunitárias. Os movimentos culturais entre países e

o consumismo possibilitam identidades partilhadas, pois são compradores para os

mesmos bens e mesmos serviços, espectadores para as mesmas mensagens e

imagens, tudo isso para pessoas que podem estar muito distantes umas das outras.

“À medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências

externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se

tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural” (HALL,

2005, p. 74).

Mesmo quando se reside em pequenas vilas, ou pequenas comunidades é

possível receber, através da TV e do rádio, mensagens e imagens de culturas

diferentes. Desta forma, mesmo afastados de grandes meios urbanos, identidades

locais não estão imunes às influências da globalização. As identidades flutuam

livremente quando cresce as influências de mercados globais que ditam estilos,

lugares internacionais para viagens, imagens da mídia e o sistema de comunicação

sempre globais. Por isso, os sujeitos estão em contato com variadas formas de

identidade, que apelam a partes diferentes dos sujeitos, se tornando uma questão de

escolhas pessoais, e um dos grandes responsáveis por isso foi o consumismo, tanto

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como realidade, como sonho, ou seja, aqueles que podem consumir, ou aqueles que

sonham em consumir. Assim, as identidades nacionais são representadas pelo

vínculo ao local, eventos, símbolos, histórias pessoais, que podem ser formas

particulares de se sentir pertencente. Essas questões se tencionam com as

identidades mais universais, como por exemplo uma identificação maior com a

humanidade do que com a brasilidade.

Isto posto, identifica-se a identidade relacionada à comida, pois um dos pontos

importantes deste aspecto, de acordo com Montanari (2013), é o comer junto, porque

é tradição na raça humana. Quando reunidos, os gestos que sozinhos são funcionais,

passam a ser comunicativos, ou seja, a reunião imediatamente dá sentido aos gestos

que envolvem o comer. Assim, a comida passa a exercer um papel cultural, além de

nutrir. Nas sociedades contemporâneas, onde há abundância alimentar, a comida

perde o valor nutricional, enfatizando os outros significados. Desta forma, a

alimentação se constitui como um sistema linguístico cheio de valores, pois em

qualquer nível social, a aceitação de alguém à mesa, é o primeiro indício de

pertencimento ao grupo, podendo ser a família, ou outros grupos maiores como uma

confraria, uma corporação, que afirmam à mesa suas identidades coletivas.

Para Maciel (2005), há um encontro de cultura e natureza na alimentação dos

sujeitos, porque comer é necessário, mas a escolha do que comer, quando e com

quem, são processos que fazem a alimentação ganhar significados. Desta forma, esse

fenômeno não é somente a forma de manter a nutrição, pois mesmo isso está

relacionado ao sistema cultural que se está inserido, ou ao que se prefere seguir. E

assim, se tem diferentes formas de nutrir-se, indicando uma grande diversidade

cultural. Indo além de questões biológicas, alimentar-se é um ato social e cultural que

produzem variados sistemas alimentares. A criação destes sistemas mistura fatores

ecológicos, históricos, culturais, sociais e econômicos diretamente relacionados às

representações de uma sociedade. “Assim, estando a alimentação humana

impregnada pela cultura, é possível pensar os sistemas alimentares como sistemas

simbólicos em que códigos sociais estão presentes atuando no estabelecimento de

relações dos homens entre si e com a natureza” (MACIEL, 2005, p. 49).

Se o comer junto pode representar uma metáfora da vida, Montanari (2013)

diz que não está sempre em perfeita harmonia, representando também as relações

que acontecem no grupo. Como por exemplo, as diferentes atribuições entre homens

e mulheres em diferentes sociedades, homens sentados, mulheres ao redor prontas

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para servir, comendo em pé. O lugar à mesa também é cheio de significados em

sociedades e épocas diferentes, como por exemplo, o chefe ao centro e de acordo

com a importância do restante do grupo seus lugares são definidos. Esses rituais

ainda acontecem hoje, em relações formais, mas ao mesmo tempo também marcam

a falta de hierarquias, como por exemplo com uso de mesas redondas. E as maneiras

à mesa também podem definir quem as conhece, e por isso pertence e pode acessá-

la, de quem não conhece e não pode acessá-la, tornando o comportamento alimentar

outro sinal de impedimentos sociais.

Como a linguagem é uma poderosa ferramenta identitária, pode-se relacionar

ela com a comida, pois representam sistemas de sinais, chamadas de códigos de

comunicação, que tanto dentro como fora da sociedade que as transmitem, estão

cheias de valores e significados, podendo ser sinais econômicos, sociais, políticos,

religiosos, étnicos, estéticos, entre outros. Da mesma forma que a língua, a comida

armazena e transporta a cultura de quem a prática, pois ela é cheia de tradições e

identidades de um determinado grupo. Por isso, a comida é um extraordinário meio

de representação e troca cultural, e um forte instrumento de identidade. É uma das

primeiras formas de contato com novas culturas, justamente porque comer a comida

de outras pessoas é mais fácil do que decifrar sua língua. A comida é mediadora de

diferentes culturas e possibilita que as invenções, cruzamentos e contaminações

aconteçam.

Maciel (2005) afirma que as cozinhas diferentes, nada mais são do que as

formas estabelecidas de se alimentar pela cultura, com seus códigos e

reconhecimentos, onde os pratos são seus ingredientes. Há também a chamada

cozinha emblemática, ou pratos emblemáticos, representantes de certos grupos. O

emblema, desta forma, é um discurso que fala sobre pertencimento, ou seja, uma

identidade. Quando se fala da cozinha de um determinado grupo, se ultrapassa o

conjunto de pratos que se dizem emblemáticos, são elementos de tradição

organizados de modo a formar particularidades daquele grupo, que não se encontram

em outras cozinhas. Desta forma, essas cozinhas identitárias, sempre sujeitas a

transformação, reforçam a identidade como um processo dinâmico e coletivo em

constante mudança.

As noções de identidade e troca, usadas com frequência quando os assuntos

envolvem a comida, para Montanari (2013), podem ser usadas de forma contraposta,

como se a troca, que nada mais é do que o confronto entre identidades distintas, fosse

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contrária a proteção dessas identidades, de patrimônios culturais, que as sociedades

identificam em seus passados. Neste sentido, acentua-se a desconfiança pelo

diferente, com medo de contaminação, criando formas de impedir a mistura. Então a

história é evocada para conjurar as origens e as raízes para ajudar a conservar a

identidade como ela é. Entretanto, a história nos aponta o contrário, ela informa que a

identidade cultural não representa o espírito dos povos, nem fazem parte da genética

da sociedade, mas sim modifica-se e redefine-se inúmeras vezes, para possibilitar a

adaptação às novas situações que acontecem quando culturas diferentes se

encontram.

Quando a tradição romana, reforçada pelo cristianismo, encontra a tradição

bárbara, surge uma nova civilização. A cultura do pão e vinho, e do óleo se funde com

a cultura da carne, da cerveja e das gorduras animais, gerando um modelo novo de

produção e consumo, onde a carne, principalmente a de porco, aparecia juntamente

com o pão como ponto alto do sistema, representando significado tanto simbólico

como econômico, fazendo esse um dos pontos altos da cultura alimentar, porque eles,

o pão e o porco, acompanhados de vinho, se tornaram símbolos da identidade

europeia. Enquanto isso acontecia, na costa do Mediterrâneo uma nova fé se

estabelecia, a islâmica, que não significava o pão da mesma forma, até rejeitava o

vinho e o porco, classificando-os como impuros. Esses fatos fizeram com que valores

diferentes fossem trabalhados em regiões diferentes da Europa, consequentemente

nas suas identidades também.

Com a construção da já conhecida dieta mediterrânea, celebrada,

principalmente pela mídia americana como consequência de sabedorias antigas e de

tradições de longas datas, descobre-se que as identidades alimentares, e culturais,

são resultantes da história, porém parcialmente imputável a situações ambientais e

geográficas. Vale salientar que se dirigir à dieta mediterrânea no singular, exclui uma

diversidade grande que a geografia proporciona, e mesmo assim, muitas coisas que

se atribui à dieta mediterrânea não tem origem nesta região, mas são produtos de

uma história de trocas e de cruzamentos com outras regiões e outros continentes. As

cozinhas mediterrâneas contemporâneas não são muito antigas, salvo o uso do pão,

vinho, azeite de oliva, carne ovina, cebola e algumas outras coisas. Os sabores

mediterrâneos atuais, acentuam a modernidade de tudo que dá personalidade a essa

cozinha, como a berinjela e a alcachofra foram herança da Idade Média tardia, ou o

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feijão, o tomate, as batatas, o milho, entre muitos outros que vieram das américas. “As

identidades não estão escritas no céu” (MONTANARI, 2013, p. 188).

Na contemporaneidade, Maciel (2005) diz que devido à

internacionalização/globalização, os chamados fast-food, restaurantes de comidas

rápidas, e os restaurantes étnicos, expandiram. Houveram aqueles que enxergavam

essas inovações como ameaças às cozinhas mais tradicionais, mas o contrário

aconteceu, aumentou o consumo de fast-food, mas não acabou com as outras

cozinhas, fortaleceu a comida tradicional local, como forma de afirmação da

identidade da comunidade. Há muito o que estudar a respeito das identidades, mas é

sempre importante lembrar que não se deve olhar para ela como uma coisa estática,

concreta, mas algo que se transforma e que possui múltiplos sentidos. O ato de comer,

em uma cozinha organizada, é símbolo de uma das muitas identidades do ser

humano, por onde é possível se orientar e se diferenciar de outros, assim como a

língua. Neste sentido, as cozinhas viabilizam a percepção e a expressão de estilos de

vida de determinado indivíduo ou grupo, onde fica claro o sinal de pertencimento e o

código de reconhecimento social.

Repetindo que a comida revela a identidade, e oportuniza sua alegação,

Denise Amon (2014) aponta que os modos de preparos de pratos que são passados

de geração para geração, seja por meios orais ou escritos, afirmam a identidade e ao

mesmo tempo a transformam, pois quem executa a receita altera o seu ato de fazer,

que pode ser a adaptação de ingredientes ou procedimentos, convertendo assim a

tradição daquele preparo. As comidas de comunidades de imigrantes têm um

vislumbre a parte, pois por um ponto de vista precisam se manter estáticas, garantindo

a identidade do grupo, mas por outro, dependem da realidade do local, em relação ao

acesso de ingredientes, tendo que realizar alterações para manter a receita.

As relações entre comida e identidade se tornam obstáculos quando se pensa

em transformações de hábitos alimentares. A comida e os ritos que envolvem o

alimentar-se são representações, e compreender estas representações apontam para

conjecturas nas mudanças alimentares, mesmo assim, sendo processos complexos,

levam tempo para modificarem-se. A dificuldade da transformação apresenta um

ponto importante das representações, que é a questão afetiva manifestada nas

crenças.

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Considerando representações como comida e essas baseadas prioritariamente em crenças, entendendo que as crenças são enraizadas na sociedade, cultivadas e transmitidas socialmente e têm uma dimensão afetiva que as fundamenta, mais do que a dimensão cognitiva, a transformação nas representações passa pela transformação nas crenças e esta não pode prescindir da comunidade. (AMON, 2014, p. 187).

Comunidade, neste caso, indica relações de afeto que sobressaem a relações

burocráticas ou funcionais características de uma sociedade. Essas pessoas se

relacionam, buscam aceitação e afetos, também aceitam e dão afeto, ou seja, não

são números que compõem estatísticas ou seres isolados. Na comunidade todos se

conhecem pelo nome, dando sentido humano a seus membros. Por isso, a

comunidade é primordial para fundação e manutenção de crenças, é também ela que

as transforma, pois, a mudança deve acontecer com todos, e não com somente um.

Para Castells (2002), o material histórico, geográfico, memórias coletivas,

entre outros, são fatores que constroem as identidades, e são estes os pontos que

conseguimos encontrar nas entrevistas cedidas, através de história oral, pelos

moradores de Forqueta. O que se aprendeu com os pais e avós, o conhecimento dos

terrenos em que moram e que os sustentam, nutricionalmente economicamente e

culturalmente, as histórias contadas que todos ouviram e contam para visitantes e

familiares, estão muito presentes na vida da comunidade. Exemplos destas questões

aparecem nestes relatos:

Olha, foi bom, mas assim, teve umas pergunta que me fizeram, o que que nós tinha ido faze lá? Eu disse que a gente tinha ido pra ve da onde que saíram nosso descendentes né, que saíram da Itália, então, as nossas raízes né, mas então diz ela, numa loja lá foi isso, ela disse, ma vieram faze o que aqui na Itália que o Brasil é belíssimo (APÊNDICE B, p. 161).

É isso depois de grandinhos na escola, na escola comecemo a aprende, porque o pai e a mãe não falava, na família ninguém falava, então ali nos aprendemo, na escola mesmo (APÊNDICE B, p. 166).

Caiu da moda, mas uma vez se arrumava as roupa, costura, com 8 anos eu costurava, costurei um macacãozinho pra minha irmãzinha, que ela não tinha roupa, a mãe corto e deixou ali, com 8 anos eu costurei e vesti nela e levei ela pra mama na roça (APÊNDICE B, p. 169).

É, e isso sim me marco que eu nunca mais esqueci essa parte é, eu costurava, costurava tudo, fazia toda a roupa, todo meu enxoval, tudo, fiz tudo

(APÊNDICE B, p. 170).

Não, quere eu gostaria de ter ido, agora nessa época não, mas antigamente eu gostaria de ter ido pra Itália, que a minha vó veio da Itália, ela me contava muita coisa de lá da Itália né (APÊNDICE C, p. 173).

Por exemplo, o que eles comia lá, como é que eles vivia, no inverno, onde eles dormia junto de, aonde dormia as vaca os bichos e eles dormia lá dentro

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que não tinha casa pra dormi, que era inverno então era tudo aquele quente que era dos próprios animais que davam pra eles né, e comia comida, era tudo coisa mais simples, feijão, arroz, polenta fazia bastante, carne de porco, radicci, verdura assim bastante também, lá na Itália e é isso né (APÊNDICE

C, p. 173).

Antigamente não era na comunidade, quando casei, uns ano, era cada um, fazia festa cada um era em casa, convidava seus amigo na família, não era na sociedade, era em família, então, por exemplo, eu tinha os meu parente, parente do marido e então era lá em casa, então a gente fazia uma sopa, um churrasco e pão e salada era isso, e depois começo a faze mais salões de festa ai começaro faze no salão, que dava muito transtorno assim pra faze cada um na família, era muito trabalho né, então fizero isso ali né (APÊNDICE

C, p. 177).

[...] de Nova Milano eles vieram mora ali onde que é o Mario Bampi, aí do lado do salão, ali que é a morada dos meus antepassados até existe ainda a

casinha onde eles tavam morando né (APÊNDICE D, p. 186).

[...] e olha pra nós graças a deus como meus pais contavam, nunca falto comida, então assim, graças a deus nunca falto comida, nunca, pobrezinho sim com condições financeiras poucas que não tinha como produzi né, então era polenta, queijo salame que eles faziam com o que produziam né, era assim que vivia, carne de mercado não, eles não tinha, porque não tinha dinheiro pra compra (APÊNDICE D, p. 186-187).

Então assim eles contaram que foram chutados de lá porque prometeram que aqui no Brasil tinha a tal da cucanha, tinha até salame pendurado em árvores, e os pobrezinhos vieram, confiando né, vieram e aqui encontraram o que? Mato, né, sem casa sem moradia, sem condições de construí, e aí sabe isso aí me marco, eu disse po, com tanta coisa bonita aqui no Brasil pra vê porque que a gente vai pra Itália, que terá coisa mais interessante lá vê onde nosso antepassados saíram né, mas não me atrai (APÊNDICE D, p. 185).

Lá era de muito sacrifício, diz que passavam, eram muito podres, o governo diz que não ajudava em nada, por isso que eles se afastavam de lá e vinham pra cá, por causa que lá não tinha, não tinha futuro, tinha muita população, e aqui não tinha então eles vieram pra cá (APÊNDICE F, p. 203).

A Imagem 10 mostra os antepassados da família Bampi, cujos descendentes

participaram das entrevistas deste trabalho.

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Imagem 10 - 1941: Casal Francisco Bampi e Angelina Marchesini

Fonte: (BARBOSA, 1980, p. 52)

Já Hall (2005) aponta que na atualidade o sujeito não tem mais uma

identidade estagnada, que nasce e morre com o indivíduo, diferente do sujeito do

iluminismo e o sociológico. O sujeito contemporâneo tem muitas identidades, uma

para cada tipo de ocasião, cada grupo social, cada espaço de convívio. Essas novas

identidades surgem quando há interação com culturas diferentes, modos de vida

diferentes. Os entrevistados, vivem muito tempo em contato com as mesmas pessoas,

outros moradores da comunidade, mas seus filhos e outros conhecidos, moradores

de meio urbano, interagem e proporcionam este cruzamento de culturas, fazendo com

que as novas identidades apareçam. Estes são alguns comentários que corroboram

neste ponto:

Agora o povo não vai mais na igreja (APÊNDICE A, p. 160).

Não, bem diferente, bem diferente, as massas la, eles fazem bastante massa né, os tempero deles bem diferentes, eles usam bastante o, como é? O manjericão né, e que nós por exemplo aqui na minha casa não uso, tem gente que usa que ocupa né faze os molho e tal né mas não ocupo (APÊNDICE B,

p. 162).

Olha, tem coisa parecida que agora a gente tem muita outras coisas, a gente faz curso, tem outras comida muito diferente, só que é comida mais que faz mal do que bem, e naquela época era uma coisa mais boa, mais, como é que eu digo, verdadeira, não tinha tratamento, não tinha nada dessas coisas né, e agora tudo vem do mercado, tudo vem com porcaria junto não é mais aquela comida que tu faz, por quanto que tu cuida mas não é, o que tu compra tu não sabe o que vem na tua mão, porque naquela época não tinha né (APÊNDICE C, p. 175).

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[...] porque quando a minha mãe fazia o fermento era diferente, o fermento ela fazia com batata, ela ralava a batata e botava açúcar e sal e deixava fermenta, quando fazia o pão então ela reservava uma parte daquele fermento pra próxima vez então ela reforçava então ela botava mais uma batata mais um poquinho de açúcar um poquinho de sal então ela levava um dia inteiro pra fazer o pão, porque tinha que deixar crescer né, e agora não, agora é feito com a máquina e as formas são iguais só o fermento é de mercado né (APÊNDICE D, p. 187-188).

A bom, hoje tu vai lá com dinheiro, tu compra o que tu qué, sem trabalha (risos) (APÊNDICE E, p. 199).

Hoje? Ish, hoje a gente passa bem (risos), hoje a gente passa bem porque a gente tem tudo que qué né, naquela época por exemplo tu comia tomate só na época né, quando tu plantava que vinha porque não era sempre que dava, agora com as estufa, com todos esses coisas novas que tem ali, tem toda hora, todo dia, vai no mercado se não tem aqui eles vem de fora né, então

agora é super bom (APÊNDICE F, p. 203).

Na Imagem 11 encontram-se membros da família Longo, recordados com

apresso pelos familiares.

Imagem 11 - Casamento de Amadeu Mazzochini com Lídia Longo

Fonte: (BARBOSA, 1980, p. 53)

Uma questão interessante de traçar paralelos é em relação a identidade

nacional. O país onde se nasce, e a cultura que ele emana, é uma das principais

fontes de identidade cultural. Quando os sujeitos são questionados sobre quem são,

normalmente iniciam dizendo onde nasceram. Como essa característica não está no

DNA humano, essa identidade se forma quando as representações são apresentadas,

como, por exemplo, quando se fala que italianos falam com as mãos, ou que

brasileiros amam futebol. A língua é ouvida desde o nascimento e ajuda a formar esta

identidade, pois ela marca a diferença entre brasileiros e italianos, por exemplo.

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Porém, a globalização tem mudado esta perspectiva, pois neste cenário, as

identidades de outros países estão disponíveis para qualquer pessoa em qualquer

lugar, dando aos sujeitos a opção de escolher qual identidade nacional quer seguir.

Este processo está desgastando as identidades nacionais, porém reforçando

identidades regionais ou locais. Por isso que há resistência da parte dos moradores

de Forqueta, mudar a forma de preparo de algum prato típico do local, por exemplo,

não servir o agnolini, ou capeletti, em forma de sopa. Mantendo a sopa de agnolini no

cardápio de festas e da comida de casa, mentem-se a identidade local. Eis alguns

comentários sobre este assunto:

Porque uma, a gente já ta acostumado aqui né, do nostro jeito, e eu o Brasil, o Brasil, sim (APÊNDICE B, p. 162).

A sopa de agnoline, a lesso, crem, pao, vinho é... massa e risoto (APÊNDICE

A, p. 158).

Aqui a gente faz também bastante é tortei, os agnoline, tudo esse tipo de massa (APÊNDICE B, p. 165).

[...] por isso que eu digo de repente nem é uma farinha como era antigamente, e aquela farinha fina eu fazia bastante aquela, antigamente era aquela farinha de moinho verdadeiro de pedra, e agora em vez é quase farinha comprada, aquela farinha de pedra, apesar de que ninguém, assim mesmo não gostam muito dessa polenta de farinha fina, a minha família, tem gente que nem meu genro, minha filha ela faz com aquela farinha fina, aquela polenta eu até gosto daquela, é boa, só que é mais difícil pra começa ela, que ela “embalota” muito

assim (APÊNDICE C, p. 176).

Na Imagem 12 conhecemos os antepassados da família Bertotti.

Imagem 12 - Macimino Bertotti e Família

Fonte: Acervo da família Bertotti

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É neste caso que nossos entrevistados, inconscientemente, se dizem

italianos, ou seja, assumem a identidade nacional diferente da brasileira, onde

nasceram. Sendo descendentes de imigrantes vindos da Itália, e hoje, mantendo

tradições ditas italianas através de representações, como as comidas e bebidas,

spaguetti com molho vermelho, polenta e o vinho, mesmo quando a cultura alimentar

dos imigrantes mudou muito quando chegaram ao Brasil, por muitos motivos, como a

falta de ingredientes tradicionais italianos, substituídos por ingredientes brasileiros, ou

o aumento do consumo de carne, que por ser de difícil acesso às famílias na Itália, no

Brasil, podiam caçar e consumir a carne dos animais abatidos à vontade. A partir

desse ponto que nota-se uma identidade alimentar hibrida, pois ela não é totalmente

italiana, porque não é possível reproduzir as mesmas condições em um país diferente,

não é totalmente brasileira, porque o conhecimento alimentar que os imigrantes

tinham, e tentavam reproduzir, era diferente de um sujeito brasileiro, surgindo assim

uma terceira identidade alimentar, que unindo todas essas experiências, resultou no

que hoje, é a típica comida servida em festas ou do dia a dia de um morador de

Forqueta. Para exemplificar, seguem relatos:

A parte da comida olha, não posso me queixa, a comida tava boa por tudo onde fomos, fomo bem aceito e a comida, ótima (APÊNDICE B, p. 162).

Nos dias especial também, a maioria era churrasco, um churrasquinho, uma sopa, salada, umas batata, uma maionese essas coisa, pão, a gente fazia uns doce, fazia uns bolo, umas torta, biscoito pra depois toma o café, isso também tinha sempre, isso ali, em festa (APÊNDICE C, p. 178).

As minhas neta quando vem na casa da vó é ‘vó faz os macarrão’, o que elas adoram é o macarrão e o sagu com creme, que ainda são comidas antigas né, embora que os primeiros não tinham maquina pra faze os macarrão né, então eles amassavam a massa com o rolo em cima da mesa né e cortava assim, mas (APÊNDICE F, p. 203).

E a minha mãe fazia aqueles prato com, eu adorava quando chegava a festa, que ela botava aqueles bife à milanesa com aqueles bolinho de batata, bolinho de batata, ela fazia que nem um croquete assim sabe, cozinhava as batata, ela cozinhava as batata, um quilo de batata, dois ovos, duas colheres de sopa de farinha de trigo, sal ela botava um pouquinho de salsa, um pouquinho de pimenta a gosto e depois esmagava tudo e modelava, fazia uns croquete, passava na farinha de rosca ou farinha de trigo e fritava, ficava uma delícia (APÊNDICE F, p. 207).

Na Imagem 13 homens pertencentes à família Onzi.

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Imagem 13 - Basílio Onzi com os filhos

Fonte: (BARBOSA, 1980, p. 75)

Quando há reunião de membros da comunidade estudada, assim como em

qualquer outra reunião de pessoas que envolve comida, tudo ganha sentidos

diferentes, a comida agora, além de nutrir, passa a exercer um papel cultural. Todo o

ritual da alimentação tem seus significados, como por exemplo, quem ocupa

determinados lugares a mesa. Nenhuma das casas visitadas tinha mesa redonda na

cozinha, item que poderia tirar o status de chefe da família de quem se senta à

cabeceira da mesa, normalmente o patriarca, ou de quem prepara os vários tipos de

alimentos servidos, ou quais foram os convidados, e na casa de quem a reunião

acontece, entre outros aspectos culturais cheios de significados. Mesmo a escolha do

que ingerir apenas pensando em nutrir-se é um processo cultural, muito influenciado

pela globalização. Hoje, as reuniões da comunidade, de acordo com os dados obtidos

nas entrevistas, acontecem nas grandes festas dos salões paroquiais, normalmente

comemorando o dia do padroeiro da comunidade ou as bênçãos alcançadas com as

colheitas da região. Seguem trechos correlatos:

Enche a barriga e depois vai (APÊNDICE A, p. 159).

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Nós temo nosso padroeiro né que agora nós vamo te a festa dia 8 de julho, então é sempre assim, o padroeiro, depois tem outras coisa, depois nos temo uma tortelada, numa outra ocasião em setembro e é isso aqui na nossa comunidade, mas em geral, no geral aqui, é isso que acontece então

(APÊNDICE B, p. 167).

Olha, as comida dessas festa geralmente o prato, o cardápio é sempre o mesmo, a gente se reúne uma semana duas pra prepara os agnoline pra sopa né, depois então aquele dia é sopa de agnoline, lesso, maionese, risoto e churrasco, galeto, as vezes carne de porco é sempre o mesmo cardápio porque ele fez sucesso então não pode muda né, é isso que faz, e parta da turma depois se divide né, quem trabalha na cozinha faz uma coisa, quem cuida do churrasco é outra, quem cuida das panela é outra turma, quem ornamenta o salão é outra turma é assim que funciona as festas (APÊNDICE

D, p. 188).

É aqui em São Virgílio, não eu gosto da festa aqui em São Virgílio, todo mundo de acordo, se faz uma festa muito bonita, bom tu foi ainda em festa aqui né? (APÊNDICE E, p. 195).

E a gente tem que se ajuda né, participa, se não não sai nada né, e tu fica sempre em casa como é que não pode sabe alguma coisa né (APÊNDICE E, p. 196).

Sim, sim, os agnoline trouxeram da Itália aqueles agnoline, então a receita né, então eles iam fazendo os agnoline, então só no dia de festa que tu comia os agnoline, os galeto assim (APÊNDICE F, p. 206).

As festas antigamente era uma festa por ano que eles faziam na comunidade, não tinha salão, tinha assim, só tinha a igreja e um pequeno boteco, bodega eles chamavam né, e nesses festas então o pessoal ia pra festa, então vinha de todas as comunidades da redondeza né, e nessas festa então a família fazia em casa a festa, então me lembro que lá em casa tinha uma sala grande então a gente estendia aquela mesa que cabia lá umas 20, 25 pessoas (APÊNDICE F, p. 206).

Participaram das entrevistas dois irmãos da família Onzi. Na imagem 14

constam outros membros da mesma família.

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Imagem 14 - Os imigrantes, irmãos Onzi

Fonte: (BARBOSA, 1980, p. 75)

As diferentes comunidades se reúnem nos salões, pagam pelo almoço, e o

cardápio não muda (inconscientemente, para manter a identidade italiana, e atrair

visitantes em busca desta gastronomia), sopa de agnolini, prato indispensável nas

festas, risoto, preparo de arroz branco com molho vermelho, não o tipicamente italiano

(todo o preparo de arroz com qualquer tipo de complemento é chamado de risoto),

pão, saladas, normalmente radicci e tomates, e muita carne, porco, frango (galeto) e

bovina. Muitos relataram a memória de outro tipo de encontro, os filós, onde o local

era a casa de algum membro da comunidade, cada convidado levava alguma comida,

havia muita música e uma separação de afazeres masculinos e femininos, por

exemplo, o jogo de cartas para os homens e trabalhos manuais, como tricô e crochê,

para as mulheres. Segue um relato sobre o filó:

Embora que hoje, hoje não tem mais aquela, antigamente o pessoal assim de lazer essa coisa, eles iam muito no filó, de noite, então eles iam nas famílias, porque não tinha rádio, não tinha nada pra se comunica, não tinha, então eles tratavam, bom tal noite nós vamo na família tal, vamo faze uma surpresa, alguém estava de aniversario, bom na minha família por parte do meu pai, todo mundo tocava, então lá era bandeon, era acordeon, era, então era aquela festa, então cada um levava alguma coisa pra comemora lá, um bolo, uns grostoli, alguma coisa eles faziam né, então lá dançavam pulavam

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dentro de casa assim, era uma beleza, dia de hoje não tem mais isso

(APÊNDICE F, p. 207).

Nestas ocasiões, as comidas não eram diferentes daquelas servidas nas

festas atuais, mas o que diferencia é a disponibilidade de insumos. Esse tipo de

reunião, era costume da geração passada, e naquela época, não era possível se

deslocar até um mercado, como facilmente é feito hoje, onde haveriam todos os

ingredientes que atualmente estão à disposição. Por isso, a quantidade de carne

servida, era menor, a sopa de agnolini, não era servida em todos as reuniões, pois

nem sempre tinham farinha de trigo disponível para preparar a massa, mas o brodo,

que é o caldo da sopa, era servido sempre. Toda festa, em casa ou no salão paroquial,

reforça a identidade alimentar italiana do grupo, moradores e visitantes, pois estão

repletos de representações de cultura, através das tradições culinárias dos primeiros

imigrantes.

Na atualidade, o grupo estudado se defende dos efeitos da globalização, ou

seja, a mudança de suas identidades, como já exposto, mantendo os cardápios e

celebrando as festas das comunidades da região. Porém, eles mesmos apontam que

atualmente não vivem mais como seus antepassados, e usufruem de comodidades

que antes não tinham acesso, como por exemplo, comprar toda a carne consumida

no dia a dia em supermercados, ou a farinha de milho para o preparo da polenta. Isso

mostra que houveram mudanças em seus estilos de vida, e consequentemente em

suas identidades. O que prevalece nesse caso, não é como a carne chegou em suas

casas, nem se a farinha de milho não é mais produzida em moinhos rústicos, mas sim

estas comidas estarem à mesa, assim como seus antepassados as tinham. É desta

forma que os processos de manutenção da identidade alimentar do grupo estudado

se atualizam, pois, nenhuma identidade é estática. Alguns relatos amparam este

ponto:

Mas, se vão perdendo, agora é o celular e o computador tem gente brigando

com o colega do outro lado (APÊNDICE B, p. 170).

[...] outras coisas assim vai se perdendo porque a gente fala, aqui em casa ainda quando vem meus sobrinhos a gente fala muito desses antepassados, o que fizeram pra construção da igreja a construção da comunidade, a gente fala muito dessas coisa, ma te garanto que tu vai pergunta pra um rapaz ali de 14 15 anos uma moça, não sabe nada, porque quando conversa também, agora tem aqueles celulares ali, ninguém escuta ninguém (risos) (APÊNDICE

D, p. 192).

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Aqui em casa eu te digo a verdade, é todo... 3, 4 vezes por semana é um espeto de carne na churrasqueira, porque é menos mão de obra, moro aqui eu e a Renata só, então bota só um espeto de carne na churrasqueira ali e se come com massa ou pão, salada, isso ali, sem vinho, porque vinho não se toma (risos) (APÊNDICE E, p. 195).

As minha neta, tenho duas neta só então elas, uma ta se formando agora arquiteta e a outra ta tirando administração de empresa, então já elas não vão mais naquele que nem nós assim né, de trabalha faze comida essas coisa toda, porque o dia de hoje tem empregada né então eles, facilita, é que elas trabalham fora né então se obrigam, se obrigam a pega empregada né, faxineira essas coisa toda, mas nós continuamo na tradição (APÊNDICE F,

p. 208).

Por fim, a Imagem 15 mostra antepassados da família Marchesini, cujos

descendentes colaboraram com esta pesquisa.

Imagem 15 - 1940: Antônio Marchesini casado com Angelina Onzi e filhos

Fonte: (BARBOSA, 1980, p. 95)

Sobre o conceito de comunidade trazido por Denise Amon (2014), é possível

empregá-lo à comunidade estudada. São pessoas que se relacionam com laços de

afeto, que se sobrepõe às relações burocráticas que eventualmente acontecem entre

as famílias. As relações de respeito e afeto são evidentes, pois desde a chegada dos

primeiros imigrantes, essas famílias interagem entre si, houveram ajuda nos períodos

de necessidade e comemorações na bonança. Todos se conhecem pelo nome, e

principalmente pelo sobrenome, herança direta dos italianos, evidenciando a

identidade do grupo. E neste aspecto de união que as mudanças acontecem, pois

quando uma família não planta milho, pois o trabalho que a cultura exige já não é vista

com bons olhos, porque ir ao mercado e comprar os derivados do milho, é muito mais

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fácil, influencia todas as outras famílias da comunidade a fazer o mesmo. Desta forma,

a identidade vai se transformando.

Assim, de acordo com Montanari (2013), toda a história contada lembra uma

cultura, uma tradição, uma identidade resultante de uma história dinâmica nascida de

trocas, cruzamentos e contaminações. Os modelos de práticas alimentares são os

resultados de encontros entre culturas diferentes, proporcionada pela circulação que

o homem fez ao longo do tempo e dos locais do mundo. E quanto mais essas trocas

aconteciam, mais interessante as culturas alimentares, e a cultura geral, se tornavam.

Um intrincado sistema existe quando se tenta buscar as raízes, mesmo que feita com

método crítico, não chega a definir um ponto de início, mas sim um cruzamento de

linhas e vai ficar cada vez mais complicado de desfazer os nós. Desta forma, somos

nós (humanos) que somos o ponto de início, pois a identidade não existe no início,

mas sim no final do trajeto.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso trabalho, inicialmente, procurou contextualizar historicamente a vinda

dos imigrantes italianos para o Brasil, e mais especificamente para o sul do país. Neste

sentido, vale lembrar de um conceito de cultura, proposto por Franz Boas (2005) onde

“Os costumes e as crenças, em si mesmos, não constituem a finalidade última da

pesquisa. Queremos saber as razões pelas quais tais costumes e crenças existem -

em outras palavras, desejamos descobrir a história de seu desenvolvimento” (BOAS,

2005, p. 33). Este autor afirma que sabendo da história de um povo, chegaremos a

sua cultura. Então, pesquisar sobre os motivos que levaram os moradores de regiões

europeias para terras brasileiras, foi essencial para entender esta cultura. Justamente

esse foi um dos motivos da maciça saída de emigrantes para diversos países, a

unificação de territórios, formando o que hoje conhecemos como Itália. Este processo

deixou muitas famílias em situação de miséria, entre outras coisas.

Ao mesmo tempo, o governo brasileiro da época tinha preocupações

econômicas e sociais, e buscava por trabalhadores livres e brancos para suprir essas

necessidades. Então, negociações entre os governos do Brasil e Itália aconteceram

para que houvesse facilidade de saída, transporte e chegada de pessoas entre os dois

países. Desta forma, quando chegaram os primeiros imigrantes, já haviam espaços

de terra destinados à venda para estes imigrantes, que os pagavam através da cultura

da terra virgem. Tão virgem que até mesmo as estradas tiveram que ser construídas

pelos imigrantes, para que chegassem ao local de destino.

Desde aquele tempo, tradições foram construídas, transformadas e passadas

de geração em geração. A partir da mistura dos costumes que estas pessoas

trouxeram da terra natal, e as adaptações necessárias na nova casa, surge a cidade

de Caxias do Sul-RS, cujo breve histórico é descrito no subtítulo 2.4.

Estes assuntos, aprofundados no capitulo dois, foram pensados a partir de

um dos objetivos específicos, que diz: identificar a história de Forqueta, desde seu

surgimento aos dias atuais, no que se refere a imigração e gastronomia italiana. Por

isso, o texto indica que a unificação italiana mudou as condições de vida de muitas

pessoas, somando com a procura de pessoas brancas, não escravas, por parte do

Brasil, resultando na história da comunidade estudada. Um ponto que

compreendemos, enquanto desenvolvíamos esta etapa, foi que Forqueta é um distrito

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da cidade de Caxias do Sul, mas não abrange todo o território rural da cidade. São

Virgílio da Segunda Légua, fica muito próximo, territorialmente, mas é uma localidade

a parte. Quem não tem o conhecimento correto das restrições geográficas, denomina

todo o território próximo de Forqueta com este nome, como eu fiz por muitos anos,

mas são localidades diferentes. Acredito que seja relevante essa observação, porque

todos os entrevistados deste trabalho, são moradores de São Virgílio da Segunda

Légua, e não de Forqueta. Destaca-se, no entanto, que optamos pela permanência

com o foco em Forqueta, pois toda a região é gerida pela subprefeitura de Forqueta21,

fato que apoia a percepção de todos sobre a localização da “região de Forqueta”.

Após revisitar a história dos antepassados dos nossos entrevistados,

entramos na parte principal, e abordamos a comida como um processo cultural. Neste

terceiro capítulo, ousamos em aprofundar o tema comida em três etapas, e cada uma

das etapas atrelamos um conceito de cultura diferente. Digo que ousamos, porque é

difícil estabelecer um conceito de cultura e sustentá-lo durante todo desenvolvimento

do trabalho, porém, a comida é tão diversa como objeto de estudo, e as três áreas

que optamos por descrevê-la casaram tão bem com estes três diferentes conceitos

de cultura, que foi produtivo para a ciência e muito mais para mim como pesquisador.

Iniciamos esta etapa informando a metodologia do trabalho, a pesquisa

bibliográfica e a história oral. Seria muito difícil alcançar os resultados deste trabalho

sem a história oral, pois foi através das entrevistas que encontramos informações

importantes que documentaram o necessário para a elaboração do texto. Então, o

primeiro aspecto da comida que investigamos foi a produção. E o conceito de cultura

atrelado a esta etapa foi publicado por Bronislaw Malinowski (1975), pois se baseia

no elo entre o homem e a natureza.

Pertinente à comida quando produzida, porque foi neste ponto que

presenciamos o nascimento da agricultura, e as transformações de algumas raças de

animais selvagens em domésticos, onde o homem deixa de ser nômade, abstendo-se

de comer somente o que encontra pelo caminho, e se fixando em determinados locais,

assim aprendendo a lidar com a terra, para que ela provenha o seu alimento. É

também nesta etapa que aparecem as primeiras tentativas de conservação de

comidas e alimentos e como essas primeiras civilizações lidavam com a fome. Todos

21 Disponível em: https://caxias.rs.gov.br/gestao/subprefeituras/forqueta. Acesso em: 14/12/2018.

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esses assuntos trazem contribuições das entrevistas com os moradores da região

estudada.

No subtítulo de preparação, avançamos no tempo e mudamos o olhar através

de um novo conceito de cultura. Neste ponto, evocamos Claude Lévi-Strauss (1982),

que aborda a cultura atrelada à normas e regras, pois discorda de Malinowski (1975)

quando este difere o que pode ser natureza e o que pode ser o homem no processo

cultural. Lévi-Strauss não encontra o início e o fim da natureza ou do homem, ele os

vê como um processo só. Em aspectos da comida como cultura quando produzida, a

descoberta do fogo é primordial para o avanço da relação do homem com o alimento

e a comida, e até mesmo em outros aspectos das sociedades. Neste avanço,

chegamos a escrita, e como ela também modificou o trato com a rotina alimentar dos

indivíduos, e as divisões que começam a se pronunciar, como entre quem sabe

escrever e registrar histórias ou receitas, e quem não sabe, mas transfere o

conhecimento através de formas orais e práticas.

E neste aspecto, a comida é usada para fortificar as diferenças sociais, pois

usando itens alimentares, as elites impunham respeito das camadas mais pobres,

como por exemplo, alimentando-se de comidas assadas, como carnes consideradas

nobres, enquanto os mais pobres se alimentavam de vegetais e ensopados diversos.

Finalizando o capítulo três, abordamos o conceito de cultura de Cliford Geertz

(2008), que diz que o homem é um animal amarrado em teias, que ele mesmo criou.

Essas teias são a cultura, e quando se analisa uma dessas teias, chega-se a mais

uma. Esta abordagem da cultura combina com o consumo da comida, pois aqui o

homem utiliza-se destas camadas (teias) para decidir como se alimentar. Neste ponto

encontramos as diferentes maneiras que comunidades mais antigas lidavam com os

preparos dos alimentos, mais gordurosos, ou menos gordurosos, e como faziam para

conservar essas comidas.

O gosto das comidas, e como ele foi se transformando ao longo do tempo é

um aspecto importante desta etapa, pois é a partir desse quesito que as sociedades

continuam a diferenciar quem pertencia às elites e quem não pertencia. A saúde, e a

falta dela foram atendidas por médicos da época através da comida, havendo

tratamento de doenças com determinadas receitas ou a restrição de certas comidas e

alimentos. Fechando com a exposição de argumentos que evidenciam os tempos

atuais e suas facilidades na área alimentar.

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Identificar e descrever as tradições gastronômicas dos imigrantes que foram

mantidas e modificadas pela comunidade, foi o objetivo específico que serviu de base

para toda a discussão realizada no capitulo três. De forma inovadora, o capítulo foi

construído para que os relatos dos entrevistados pudessem atingir a proposta do

objetivo específico descrito. Ao longo da exposição dos autores a respeito de diversos

pontos pertinentes à alimentação, os entrevistados foram convidados a se juntarem a

discussão com suas memórias e experiências. Por isso, acredito ter identificado e

descrito as tradições alimentares que os imigrantes italianos deixaram, e como elas

se transformaram ao longo do tempo.

Então, seguimos para o último capitulo teórico do trabalho. Nele,

pretendíamos descrever sobre o que é identidade, e como este conceito se relaciona

com a comida. Para isso, buscamos auxílio em teóricos como Manuel Castells (2002),

que explica como entende a identidade e como, através de três processos distintos,

ela se origina. Em seguida, verificamos as ideias de Stuart Hall (2005) sobre a

identidade. Em comparação com as ideias de Castells, houve um direcionamento para

a utilização dos conceitos de Hall sobre o tema. Por isso, descrevemos como Hall

abordou o processo de evolução das identidades e como ela é entendida no

contemporâneo.

Essa evolução também está subdividida em três etapas, o sujeito do

iluminismo, o sociológico e o contemporâneo. Estas diferenças fazem mais sentido

para este trabalho, porque considera o fator temporal, em época que a cultura permite

que haja diversidade de identidades em um mesmo sujeito, este fenômeno ocorre, ou

vice-versa. Castells subdivide as identidades a partir de comportamentos dos sujeitos,

e não considera em que cultura, ou época este sujeito está vivendo.

Entendendo os processos da identidade, o texto aborda situações onde

podemos entrelaçar a identidade com a comida. Então, Massimo Montanari (2013)

volta para a discussão, juntamente com Maria Eunice Maciel (2005). Os dois nos

ajudam a entender como podemos olhar para a identidade através da comida,

justamente o que se propunha o terceiro objetivo especifico, analisar a formação da

identidade da comunidade através da comida. À vista disso, o capítulo finaliza

trazendo partes das entrevistas onde podemos verificar fatos, memórias, tradições,

costumes, que caracterizam a identidade do grupo entrevistado, juntamente com uma

foto de antepassados das famílias moradoras da localidade. Estas etapas foram

planejadas para responder o objetivo específico citado, e assim o fazem.

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Os objetivos específicos descritos, com suas resoluções, foram todos guiados

pelo objetivo geral: analisar a cultura gastronômica da comunidade de Forqueta e

identificar a formação da sua identidade através da comida. Então, a partir de todos

os assuntos tratados nos capítulos deste trabalho, é possível dizer que o objetivo geral

foi atingido pois a partir das entrevistas, guiadas pela história oral, que mostram como

a cultura alimentar da comunidade se dá, e a partir do momento que as teorias sobre

identidade são trabalhadas, foi legível a ligação da comida com a construção da

identidade da comunidade estudada.

O mesmo caminho percorreu a relação entre objetivo geral e o problema de

pesquisa. Como se deu a constituição da cultura culinária (comida) no distrito de

Forqueta? é a pergunta que guia a construção do trabalho. O objetivo geral e os

específicos, servem de filtro para que esta pergunta seja respondida. Em

consequência, verificamos como se deu a constituição da cultura culinária dos

moradores de Forqueta, desde que europeus não satisfeitos com o estilo de vida que

levavam lá, trabalhando muito, não sendo recompensados satisfatoriamente, e com

isso, não podendo sustentar suas famílias dignamente. Então, recebem a notícia que

havia um lugar na América onde não passariam mais fome e seriam donos de suas

terras, sem patrões. Muitos saíram de sua terra natal para tentar viver melhor nesta

nova terra, o Brasil, entre outros países.

Quando aqui chegam, não foi bem o que prometeram, mas era melhor do que

o que enfrentavam na Europa. E assim, começaram a adaptar o modo de preparo de

alimentos que conheciam para o que encontravam aqui. Importante lembrar que os

valores atribuídos aos alimentos não mudaram com a viagem. Por isso, a importância

e o respeito com o que vem da terra e com os animais permanece, e é passado de

geração em geração. Os entrevistados relatam essa importância, e o peso que as

tradições aprendidas com pais e avós têm, porém notamos que eles interpretam a lida

com a terra hoje, aquela que não seja o sustento financeiro, como um trabalho

desnecessário, pois se possuem dinheiro podem ir até o mercado e comprar milho,

sem plantá-lo, ou carne de porco, sem trabalho de criar um porco para o abate. É

neste caso que as influências da globalização e da identidade do sujeito

contemporâneo têm agido na localidade. Nestas breves palavras, nota-se que todo o

referencial teórico e resultado das entrevistas respondem o problema de pesquisa

satisfatoriamente.

Por conseguinte, nos resta comentar sobre as hipóteses levantadas, que

foram duas, (1) a cultura culinária (comida) de Forqueta hoje é igual a comida italiana,

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porém com adaptações de ingredientes; (2) a cultura culinária (comida) de Forqueta

tem raiz italiana, mas sofreu adaptações de outras culturas ao longo do tempo. Não é

possível afirmar que a comida preparada pelos imigrantes ou por seus descendentes

é igual a comida italiana, mesmo com a adaptação de ingredientes. Como vimos, uma

cozinha regional precisa de muito cuidado e estudo para ser exatamente reproduzida

em outro local. E estes detalhes, não eram preocupações que os imigrantes tinham.

Desta forma, a hipótese número um está descartada. A hipótese número dois, por

outro lado, pode ser aceita, porque no decorrer da pesquisa, encontramos fatos que

corroboram com a ideia de que as representações do que é ser italiano através da

comida, nunca se perderam, sempre houve esforço para que fossem mantidas,

através de tradições e costumes que dificilmente mudaram na comunidade. Porém,

com a influência da globalização, a comunidade recebeu outras culturas, que

representavam possibilidades de mudanças, mas sem perder a essência.

Pesquisar esses temas, me possibilitou experiências únicas, conheci novas

pessoas, fui muito bem recebido na casa dos entrevistados, onde surgiram novas

possibilidades de tema para pesquisas futuras, e com certeza, meu conhecimento se

transformou para melhor. Escrever esta dissertação, foi uma destas experiências. Tive

um pouco de dificuldades na busca de autores que explicassem o período que eu

estava querendo descrever da história da Itália, mas quando encontrei, consegui

satisfatoriamente escrever o capítulo e entender esta parte da história da Europa, tão

ligada ao assunto tema deste trabalho.

Escrever sobre comida, pode parecer trivial, pois todo mundo come, todos

temos gostos preferidos, sabemos o que nos mantem saudáveis, ou não. Mas o

assunto é muito mais profundo, por estar presente na vida de todos, e em todos os

tempos, presente, passado e futuro, a comida representa muitos aspectos da vida das

pessoas, e vai continuar sendo no futuro. Escrever este trabalho me fez entender e

mudar o significado do que é comida. Trabalharei com ela, com muito mais

responsabilidade a partir daqui.

A contribuição deste trabalho para a história é sobretudo entender o valor e

as diferenças entre a comida e o alimento e como isso tem forte ligação com as

imigrações. Com foco na comida, também houveram aprofundamentos históricos, pois

para entendermos o nascimento da agricultura, por exemplo, foi necessário estudar o

comportamento de gerações passadas. Muitos de nossos costumes hoje, já

aconteciam na Idade Média, por isso, essa também foi uma época estudada neste

trabalho. O final do século XIX e início do século XX também são importantíssimos

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para olharmos para a cultura através da comida. São estes os momentos do

aceleramento da industrialização, que também gerou abundância de comidas.

Acreditamos que, por esse trabalho abordar tais assuntos, contribui gerando

conhecimento para a sociedade, possibilitando o olhar para fenômenos sociais

através da comida, recurso pouco utilizado academicamente.

A comunidade poderá usufruir destas ideias como base para conhecer

características de seu povo e suas diferentes manifestações culturais, visto que os

fatos conhecidos, trazem a experiência de cada entrevistado e o que estes significam

para cada família, como uma oportunidade de encontrar suas histórias de vida sendo

interpretadas por um viés diferente, não o de miséria e falta de comida que seus

antepassados sofreram, mas sim como esses acontecimentos se transformaram em

motivadores para encontrar uma vida melhor.

Interpretar estes acontecimentos pela ótica da gastronomia é um diferencial,

pois é um assunto trivial, todos comem, todos os dias (infelizmente nem todos), mas

quando o olhamos de perto, vemos a riqueza de conteúdo que ela pode gerar. Minha

grande motivação para desenvolver este trabalho foi encontrar o motivo do porque

essas pessoas se identificam aos outros como italianos, se são brasileiros e muitos

nunca estiveram na Itália. Através deste estudo, conseguimos demostrar que com um

planejamento e método científico aplicados, é possível responder tal pergunta.

Em relação a comunidade estudada, da região de Forqueta, as contribuições

deste trabalho transcendem as supracitadas, pois os dali descendentes percebem sua

identidade moldada pelo viés gastronômico, considerando características,

preferências e histórias citadas, que fazem parte de sua vida.

Amparados nestes conhecimentos, em novas inquietações e ideias,

desenvolvemos um projeto de pesquisa para realizá-lo no nível de doutorado, onde

buscaremos entender a relação das sociedades com o local onde estas comidas são

preparadas, as cozinhas. Este assunto surgiu quando fui recebido nas casas dos

entrevistados para esta dissertação, e o espaço que realizamos a entrevista, em todas

as casas, foram nas cozinhas. Espaços grandes, com mesas grandes, de capacidade

de para receber maior número de pessoas do que as que moram na casa. Em

contrapartida, sabemos que as cozinhas de construções contemporâneas, estão cada

vez menores. Por isso, esperamos encontrar a relação desses espaços com quais

comidas se preparam em cada um deles e como se refletem nas sociedades que estão

inseridas. Acredito que desta forma, o assunto desta dissertação terá ligação e

continuação na tese proposta.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A – Entrevista com Itamyra Tonietto Bampi

Itamyra tem 82 anos, moradora de São Virgílio da Segunda Légua, nascida

em Conceição da Linha Feijó, ambos no interior de Caxias do Sul-RS. Entrevista

realizada no dia 12/05/2018, em sua casa.

Entrevistador: então tá, pra gente começa, dona Itamyra, eu só preciso que a

senhora me confirme então, pra fica gravado, o seu nome, sua idade, onde a

senhora nasceu

Entrevistado: sim

Entrevistador: e onde a senhora mora

Entrevistado: agora?

Entrevistador: sim, pode começar

Entrevistado: mas onde que eu moro agora ou?

Entrevistador: agora, ou onde a senhora morou desde

Entrevistado: morava lá na conceição, sim na linha Feijó, na conceição né

Entrevistador: a sim

Entrevistado: nasci lá

Entrevistador: a é mesmo?

Entrevistado: mas depois vim pra cá né

Entrevistador: lá em cima, lá no centrinho?

Entrevistado: na conceição

Entrevistador: qual é a sua idade, dona Itamyra?

Entrevistado: 82

Entrevistador: 82, e a senhora já viajou para a Itália alguma vez?

Entrevistado: já

Entrevistador: já? E como é que foi? Me conta um pouco da viagem? Faz quanto

tempo?

Entrevistado: meu deus agora, Sérgio? O Sérgio? Quanto tempo será que eu fui na

Itália? Não me lembro. Acho que foi 15 ano faz

Entrevistador: 15 anos?

Entrevistado: mais ou menos. Ah? (Sérgio: quindici), eu acho 15 anos.

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Entrevistador: 15 anos. E como é que foi assim, o que que a senhora encontrou

lá? O que a senhora mais gostou?

Entrevistado: olha gostei, café da manhã muito bom

Entrevistador: é?

Entrevistado: só que de meio dia carne não tinha de vaca só de porco, aí não gostava

Entrevistador: faltava alguma coisa

Entrevistado: faltava, mas se não era muito bom, a gente tudo...

Entrevistador: foi interessante então?

Entrevistado: foi interessante

Entrevistador: tá, e da família da senhora, a senhora conhece, como é que era,

como é que foi a vinda dos seus familiares aqui pro brasil?

Entrevistado: meu pai?

Entrevistador: foi seu pai que veio?

Entrevistado: não, eu nem conheci eles, sim o avô do meu pai era

Entrevistador: o vô do seu pai que veio?

Entrevistado: sim

Entrevistador: então seu bisavô?

Entrevistado: sim, mas ele não falou nada de lá

Entrevistador: não?

Entrevistado: só fala, só diz que vieram pra cá e não tinha nada, fizeram tudo...

Entrevistador: do zero?

Entrevistado: do zero, sabe como é que é?

Entrevistador: entendi, e então, mas a senhora conheceu ele?

Entrevistado: quem o?

Entrevistador: o seu bisavô?

Entrevistado: um sim conheci. Boa tarde nega!

Entrevistador: olá. Oi. Tá então seu bisavô veio, mas ele não contava nada da

história de lá?

Entrevistado: não contava nada, não

Entrevistador: não. Tá. E como é que era nessa época assim, como é que

funcionava a comida, porque se eles chegaram e não tinha nada, tiveram que

construir as coisas, a comida era meio

Entrevistado: era meio ruim

Entrevistador: era trabalhoso né?

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Entrevistado: era trabalhoso, não tinha nada, depois ainda, antes de fazer, se faze

não foi fácil né, só que meu pai dizia se comia só feijão de noite era só sopa e vai

Entrevistador: sopa de que, a senhora sabe?

Entrevistado: sopa de feijão

Entrevistador: sopa de feijão?

Entrevistado: sim

Entrevistador: e o milho, como que era? Como que usava o milho? Polenta,

essas coisas?

Entrevistado: se fazia polenta, a única coisa que se comia era a polenta, porque pão

não tinha

Entrevistador: olá

Entrevistado: era muito difícil pra faze pão, meu pai dizia sempre: tem que plantar

trigo. Mas nem tinha trigo né, que era muita terra.

Entrevistador: então tá. E agora assim, pensando um pouquinho nessa comida

que é feita aqui hoje, o que que a senhora vê de diferença do que era nessa

época, lá do seu pai, seu bisavô

Entrevistado: sim

Entrevistador: pra hoje?

Entrevistado: era tudo bem dize diferente agora né, porque uma vez era, não tinha

muita coisa, a gente comia um ovo em 7 pessoa, na minha família, não aqui, si quando

morava na conceição né, não tinha

Entrevistador: sim, e ai hoje então come tudo que

Entrevistado: hoje (risos)

Entrevistador: tudo que tem vontade

Entrevistado: (risos)

Entrevistador: e quais são as comias que vocês mais gostam de comer? O que

vocês mais preparam aqui?

Entrevistado: aqui? Mais? A massa e que, carne também, todo dia tem que te carne

Entrevistador: tem que ter?

Entrevistado: porque antigamente não tinha carne né

Entrevistador: então hoje aproveita e come todo dia?

Entrevistado: todo dia

Entrevistador: e a massa?

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Entrevistado: a massa, não um dia a massa, um dia o arroz, um dia... né...

Entrevistador: polenta?

Entrevistado: sim polenta

Entrevistador: e voltando lá pra essa questão da Forqueta se formando, lá no

início, então assim, seu bisavô chegou e não tinha nada né!

Entrevistado: não tinha nada

Entrevistador: todo mundo que chegou junto com ele teve que construir isso

Entrevistado: é, construir, fazer as coisa devagarzinho

Entrevistador: a senhora conhece um pouco da história dessa construção?

Entrevistado: olha meu pai contava pouca coisa porque ele passa os dele né, a gente

quando era pequeno a gente passava fome, que nem eu, não tinha, nem conheci

minha mãe, ela tava sempre doente, meu pai cuidava dela e era 8 irmão, dai a gente

passava fome, não foi fácil

Entrevistador: imagino. O que que, assim como comunidade de Forqueta, ou

mais aqui São Virgílio, que é onde a gente tá né? O que que a gente pode dizer

que são as comemorações assim da comunidade, junto? Quais são as datas,

tem festa, como funciona?

Entrevistado: funciona bem, por isso né, como em Forqueta?

Entrevistador: quais são as festas que vocês comemoram aqui?

Entrevistado: a o padroeiro?

Entrevistador: vocês se reúnem assim?

Entrevistado: sim, muito legal

Entrevistador: aí vai ali no salão da comunidade?

Entrevistado: sim todo mundo

Entrevistador: e aí tem comida

Entrevistado: tem comida

Entrevistador: conta um pouquinho pra mim dessa comida que é feita lá

Entrevistado: aqui?

Entrevistador: sim

Entrevistado: de agora?

Entrevistador: isso

Entrevistado: a sopa de agnoline, a lesso, crem, pao, vinho é... massa e risoto, tem

suficiente né

Entrevistador: e quem que prepara a comida?

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Entrevistado: a as mulher né, tem que saber o nome?

Entrevistador: não

Entrevistado: é, é as mulheres né

Entrevistador: e é feito lá na comunidade ou cada um faz um pouco e leva?

Entrevistado: não, comunidade

Entrevistador: tudo lá?

Entrevistado: tudo lá

Entrevistador: e assim o, vamo pensa um pouquinho sobre o que que, as

tradições assim que o pessoal que veio lá da Itália deixou, e foi deixando, então

assim eles chegaram ai eles tinham o padroeiro, manteram o padroeiro e ai tinha

a tradição, ai eles manteram essa tradição, ai seu pai aprendeu ai seu pai passou

para a senhora, que que a senhora sabe dessa...

Entrevistado: o padroeiro é São Virgílio, da reunião era meu sogro que cuidava aqui

em casa né...

Entrevistador: e de tradição assim, por exemplo, a sopa é uma coisa que foi

mantida pelo que eu entendi então né, a sopa é uma coisa que sempre teve

desde sempre

Entrevistado: sim, sempre

Entrevistador: e outras coisas assim que foram desde sempre?

Entrevistado: na comida?

Entrevistador: também, de comida, de reza, de procissão, essas coisas que

sempre foi feito assim

Entrevistado: sim, agora não sempre, conforme a festa que fazia sempre sopa não né,

a cada festa mais, mais não que sempre teve sopa

Entrevistador: e música, tem alguma música?

Entrevistado: uma, antigamente tinha eu me lembro, quando eu casei tinha musica a

gente tava por lá, agora não tem mais

Entrevistador: não?

Entrevistado: musica, não

Entrevistador: porque será?

Entrevistado: faz a festa e tudo mundo se manda

Entrevistador: mas todo mundo come e depois vai embora

Entrevistado: enche a barriga e depois vai

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Entrevistador: que coisa né. A senhora acha que quanto tempo ainda dura essas

coisas?

Entrevistado: não sei, acho que ta mal o negocio

Entrevistador: é difícil né. Porque tem que te pessoas

Entrevistado: sim

Entrevistador: pra manter isso, e os jovens

Entrevistado: agora o povo não vai mais na igreja

Entrevistador: entendi. Então tá, acho que a gente pode já, era mais ou menos

isso

Entrevistado: sim

Entrevistador: né, não sei a senhora quer me contar mais alguma coisa assim

como é que funciona, se a senhora lembra de alguma coisa, uma história que é

antiga assim, alguma foto, se a senhora tem alguma foto

Entrevistado: de?

Entrevistador: dos seus pais, dos seus bisavôs, alguma coisa

Entrevistado: ma nem da minha mãe não tenho foto

Entrevistador: não?

Entrevistado: como que eu queria conhece, mas olha meu pai nem me deixou uma

foto

Entrevistador: que pena. Então ta bom, eu acho que era isso pra hoje.

Entrevistado: (risos)

Entrevistador: Muito obrigado então.

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APÊNDICE B – Entrevista com Helena Maria Lango

Helena tem 75 anos, moradora de São Virgílio da Segunda Légua, no interior

de Caxias do Sul-RS, nascida em Farroupilha-RS. Entrevista realizada no dia

12/05/2018, em sua casa.

Entrevistador: sim, então tá, Helena então, a gente começa a conversa assim,

eu queria saber se você já esteve na Itália?

Entrevistado: já

Entrevistador: me conta como foi a visita?

Entrevistado: foi ótima, com uma viagem ótima

Entrevistador: a senhora conheceu muitos lugares?

Entrevistado: é, fomos em bastante lugares, fiquemo 18 dias

Entrevistador: bastante coisa

Entrevistado: bastante coisa, mas nossa viagem foi mais assim técnica pra ver de

agricultura, coisas da agricultura, parreira, nós visitemo, visitemo cantinas, e como é

que vo te dize, gado, gado de leite umas coisa assim que a gente visito mais

Entrevistador: entendi. E o que que a senhora tinha de expectativa assim, do

que que tinha lá, do que que a senhora achava que ia encontrar, ou do que que

a senhora não achava que ia encontrar mas encontrou, como é que foi assim a

chegada assim?

Entrevistado: olha, foi bom, mas assim, teve umas pergunta que me fizeram, o que

que nós tinha ido faze lá? Eu disse que a gente tinha ido pra ve da onde que saíram

nosso descendentes né, que saíram da Itália, então, as nossas raízes né, mas então

diz ela, numa loja lá foi isso, ela disse, ma vieram faze o que aqui na Itália que o Brasil

é belíssimo

Entrevistador: olha, ela prefere aqui do que lá

Entrevistado: é, ela acho que o Brasil é bem melhor que a Itália

Entrevistador: e o que a senhora acha?

Entrevistado: o Brasil

Entrevistador: prefere?

Entrevistado: sim, toda vida, eu não saberia vive lá, não

Entrevistador: porque?

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Entrevistado: porque uma, a gente já ta acostumado aqui né, do nostro jeito, e eu o

Brasil, o Brasil, sim

Entrevistador: entendi

Entrevistado: gostei muito de vista tudo que a gente visito mas eu

Entrevistador: ainda bem que voltou então?

Entrevistado: sim, sim, sim fico no Brasil

Entrevistador: e em relação a comida, a comida de lá, que que a senhora comeu

lá e gostou, que que, como é que foi essa parte da comida?

Entrevistado: a parte da comida olha, não posso me queixa, a comida tava boa por

tudo onde fomos, fomo bem aceito e a comida, ótima

Entrevistador: a senhora achou parecida com aqui, ou achou diferente?

Entrevistado: não, bem diferente, bem diferente, as massas la, eles fazem bastante

massa né, os tempero deles bem diferentes, eles usam bastante o, como é? O

manjericão né, e que nós por exemplo aqui na minha casa não uso, tem gente que

usa que ocupa né faze os molho e tal né mas não ocupo

Entrevistador: sim

Entrevistado: mas ótima, a comida a gente gosto por tudo

Entrevistador: a senhora conversava em italiano lá? Ou era o, usava o

Entrevistado: nós conver.... sim, em italiano, só que nosso dialeto é bem diferente do

deles né

Entrevistador: sim

Entrevistado: é, mas dava pra se entender bem bem bem, sim bem, bem...

Entrevistador: eu queria que a senhora descrevesse pra mim um pouquinho

sobre a sua família, assim quem da sua família veio da Itália, quem, seus bisavós

seus avós?

Entrevistado: os meus bisavós, por parte de mãe e de pai

Entrevistador: os dois?

Entrevistado: os dois, é, os bisavós vieram da Itália

Entrevistador: sim, e a senhora conviveu com eles?

Entrevistado: não, não cheguei nem a conhecer, só os avos, os bisavós não

Entrevistador: e vocês tinham alguma coisa pra, por exemplo, se contava

história do que eles, o que que eles contavam, assim como que foi a chegada,

como que foi, porque saíram de lá, como é que eles viviam lá?

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Entrevistado: bom, saíram de lá porque faltava até comida né, isso e a chegada não

foi fácil, foi bem difícil, porque chegaram e não tinha nada nada além de uns galhos

de arvore pra eles dormi, corta os galhos das arvores pra dormi, e não sei como é que

eles comiam naquelas horas né

Entrevistador: pois é

Entrevistado: depois no dia seguinte quem sabe lá alguém acho que alguém socorreu

eles, porque se não eles não iam aguentar é não iam pode sobreviver né

Entrevistador: isso a senhora sabe porque os seus pais lhe contaram

Entrevistado: sim

Entrevistador: que os avos contaram

Entrevistado: que os avos contavam pra eles que foi muito difícil o começo né pra eles

aqui

Entrevistador: e eles falavam sobre essa parte da comida, o que que eles, já que

era tão difícil assim, como é que eles faziam?

Entrevistado: o que mais eles comiam então era caça, tinha caça que dava medo,

comiam até carne pura

Entrevistador: sim

Entrevistado: então passarinhos, e sei lá se bichinhos de mato, comiam bastante

carne, até carne pura porque não tinha, eu me lembro que teve um senhor que falô,

esse é daqui mesmo, ele falô que eles iam na mesa e ele dizia pros filho: comem

carne, porque a polenta tá escassa tem pôca, comem carne bastante, porque carne

tinha até

Entrevistador: sim. E a senhora comeu bastante carne lá na Itália?

Entrevistado: não, tudo na medidinha

Entrevistador: mas tinha carne?

Entrevistado: tinha carne, sim, carne tinha, ma tudo vinha um bifinho olha desse

tamainho e deu

Entrevistador: não tinha fartura?

Entrevistado: não não não. Em lugar nenhum, não fartura não chegamo a ve

Entrevistador: a senhora acha que tem alguma coisa assim dessa época dos

avos e bisavós que vocês hoje ainda fazem, em relação a comida tipo, a polenta

é feita do mesmo jeito, essas caças ainda se caça ou não caça mais?

Entrevistado: não se caça mais, nada nada nada. Mas mesmo não tem agora caça

não teria né, só se fosse ir lá pra fora nas perdiz ou qualquer outra coisa, mas aqui

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não teria caça não, nenhuma, não teria. E a polenta eu já não faço mais que nem os

nono né, que nem a minha mãe fazia, não

Entrevistador: o que que mudou?

Entrevistado: mudou que eu faço numa panela e tampo ela e ela se cozinha sem ta

mexendo toda hora, mexo de vez em quando e deixo lá, é

Entrevistador: e a sua mãe fazia mexendo todo tempo?

Entrevistado: minha mãe mexendo todo tempo, e com a panela dentro do fogo sabe

aqueles

Entrevistador: sim, o taxo?

Entrevistado: o taxinho de polenta que a gente abria os arco e colocava, e ela ia

mexendo todo tempo

Entrevistador: o que que vocês aqui na família assim mais fazem, qual é a

comida que tem sempre, quase sempre?

Entrevistado: que tenho sempre, bom feijão e arroz sempre né, feijão e arroz depois

um dia faço uma polenta, um frango com molho, uma massa, um aipim, umas coisa

assim

Entrevistador: então, o arroz e feijão sempre?

Entrevistado: sempre

Entrevistador: mas dai sempre tem uma outra coisinha?

Entrevistado: sempre tem outro prato, sim um legume cozido, sempre a gente faz um

outro prato junto, sempre

Entrevistador: então a gente pode dizer que essa é a comida que vocês mais

gostam de comer?

Entrevistado: sim, mais

Entrevistador: eu posso dizer que é o arroz e o feijão ou posso dizer que é o

acompanhamento?

Entrevistado: o acompanhamento, (Marido da entrevistada: não é só, sim depois um

dia é uma carne de molho outro dia) sim, um dia, claro um dia é carne de molho, um

dia é bife um dia bife à milanesa

Entrevistador: a carne sempre tem?

Entrevistado: uma carne nunca falta (Marido da entrevistada: sim, nunca falta, graças

a deus) nunca, é

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Entrevistador: mudando um pouquinho de assunto, mas não saindo do mesmo

assunto, vocês conhecem como que aconteceu a formação da região aqui de

Forqueta?

Entrevistado: muito pouco (Marido da entrevistada: os antepassado foram e nos

não...)

Entrevistador: não chegaram a ter a curiosidade de perguntar?

Entrevistado: (Marido da entrevistada: no nosso caso não)

Entrevistador: sim

Entrevistado: (Marido da entrevistada: que os antigo se foram e nós não...)

Entrevistador: não ficaram com a informação?

Entrevistado: (Marido da entrevistada: mas deve te alguém por ai que devem, deve

sabe alguma coisa isso ai) essa última senhora que tu, que você se encontrou com

ela, ela soube te dize alguma coisa sobre isso?

Entrevistador: então, a gente conversou muito pouco, ela tava com um pouco

de dor e tal, então eu não quis, eu não cheguei a fazer a entrevista com ela assim

Entrevistado: (Marido da entrevistada: essa senhoria é uma boa, sabe de muita coisa)

Entrevistador: sim

Entrevistado: (Marido da entrevistada: a idade dela não..) é ma ela já esqueceu muita

coisa, ela ta com 90 e, ela vai completa 92 anos, é então, 91 acho é agora então acho

que ela esqueceu já bastante coisa também

Entrevistador: sim. Não mas essa questão da história assim, é só pra gente,

porque assim, porque que eu estou fazendo as entrevistas né, porque a gente

tem o que os livros trazem pra gente de informação, mas algumas coisas não

estão ali né, e por exemplo essa área da comida assim pra gente olha pra história

de uma forma através da comida, a gente não tem muita coisa

Entrevistado: não tem muita coisa

Entrevistador: escrita, então a gente precisa dessa conversa pra pode levanta

essas informações, mas não tem problema, não saber não faz diferença

Entrevistado: aqui a gente faz também bastante é tortei, os agnoline, tudo esse tipo

de massa

Entrevistador: sim. E ai faz no dia pra bastante e dai guarda depois ou faz

fresco?

Entrevistado: faz fresquinho, no primeiro dia a gente come eles fresquinho né

Entrevistador: sim

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Entrevistado: e faz bastante e o resto a gente guarda no freezer pra fazer em outas

ocasiões né

Entrevistador: sim. E a sua mãe fazia assim também ou?

Entrevistado: não, ela nem tinha freezer coitadinha, eu fiz ora casá e depois ela

comprou uma geladeira

Entrevistador: e como é que fazia assim?

Entrevistado: a gente fazia então tudo na hora, fazia e comia

Entrevistador: tinha que fazer na hora

Entrevistado: sim, era o jeito né, fazer na hora

Entrevistador: mas ela já fazia a massa ou?

Entrevistado: nossa se ela fazia, aprendi com ela

Entrevistador: sim, e ela aprendeu com quem?

Entrevistado: com a mãe dela

Entrevistador: e ela contava?

Entrevistado: contava, ma eu convivi com a vó, com a mãe dela, vivi bastante, convivi

bastante

Entrevistador: e vocês falavam o dialeto sempre?

Entrevistado: sim, sempre o dialeto

Entrevistador: o português?

Entrevistado: muito pouco

Entrevistador: e foi aprendendo depois assim?

Entrevistado: é isso depois de grandinhos na escola, na escola comecemo a aprende,

porque o pai e a mãe não falava, na família ninguém falava, então ali nos aprendemo,

na escola mesmo

Entrevistador: sim. E o Irineu chama a senhora de cozinheira, eu queria que a

senhora me explicasse um pouco porque

Entrevistado: olha, faz 30 anos que eu sou chefe de cozinha aqui na nossa

comunidade

Entrevistador: ai que bom

Entrevistado: então ali, mas é aquela tradicional, eu faço a sopa de agnoline, a gente

faz os agnoline nos dias antes e depois no dia a gente faz a sopa tem o galeto no

espeto tem o churrasco, mas isso com os homem né, a minha parte é faze a sopa, o

risoto, a maionese, cuida de todas essas coisas, saladas, é cuida disso

Entrevistador: mas então a senhora coordena todo o pessoal que ajuda a faze

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Entrevistado: sim, eu tenho uma equipe que me ajuda, bem todas queridas que

colaboram

Entrevistador: e esses preparos que vocês fazem nessas festas é o que já faz

em casa né, não tem nada que?

Entrevistado: sim, nada de especial, não, não, o que a gente sabe faze é que saiu de

casa né

Entrevistador: que foi o que aprendeu com a vó com a mãe

Entrevistado: foi com a vó, com a mãe é

Entrevistador: e ai essas festas elas acontecem no dia do, eu queria saber um

pouco assim de como é que são essas festas e quando

Entrevistado: nós temo nosso padroeiro né que agora nós vamo te a festa dia 8 de

julho, então é sempre assim, o padroeiro, depois tem outras coisa, depois nos temo

uma tortelada, numa outra ocasião em setembro e é isso aqui na nossa comunidade,

mas em geral, no geral aqui, é isso que acontece então

Entrevistador: e a senhora vai pra outras festas de outras comunidades ou?

Entrevistado: eu ia pra mais duas, mas agora eu to parando

Entrevistador: é?

Entrevistado: to parando de ir nas outras duas

Entrevistador: mas daí esse ia, era ir pra trabalhar?

Entrevistado: o sempre pra trabalha eu ajudava em São Martinho aqui na primeira

capela vizinha e depois eu ia pra Santo Antônio do Serro da Gloria que é bem lá em

baixo no é

Entrevistador: mas é Forqueta isso ainda?

Entrevistado: não, lá deve se Vila Cristina

Entrevistador: a tá, mais lá pra baixo

Entrevistado: é lá pra baixo deve se Vila Cristina, lá eu ajudei também por 31, 32 anos

Entrevistador: nossa

Entrevistado: é faz anos que eu, por isso que eu disse bah esse ano acho que é meu

encerramento

Entrevistador: a despedida

Entrevistado: é, mas pode se que eu ajude né, mas gostaria de para de se a chefe né,

porque é uma responsabilidade

Entrevistador: sim

Entrevistado: porque as vezes da 700 pessoas

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Entrevistador: bah, é uma experiencia né

Entrevistado: é uma, tu tem que

Entrevistador: é eu faço ideia

Entrevistado: não dá pra depende, não dá pra escuta o que que as mulherada fala, tu

tem que esquece, e tem que ta com a cabeça no lugar mesmo porque se não uma

coisa que sai errada, ma graças a deus eu disse um dia pro Irineu, ma graças a deus

olha aos 32 anos que eu faço aqui, nunca me deu uma zebra

Entrevistador: que bom

Entrevistado: mas olha, e a primeira festa que nós fizemo que assumimo, meu jesus

acho que almoço uns 750 pessoas

Entrevistador: que bom. E assim o, por exemplo nessas festas, se deixa, o que

que, qual é a comida que se falta o pessoal vai reclamar?

Entrevistado: bom, a sopa, seria em primeiro lugar, a nossa sopa de agnoline, depois

que comeram a sopa se falta alguma outra coisinha não é problema

Entrevistador: não tem problema?

Entrevistado: não, não tem problema porque a sopa ela é em especial

Entrevistador: e esse, e essa sopa, dessa forma como ela é feita aqui, a senhora

encontrou lá na Itália?

Entrevistado: não, não, não nada, nada, nada, não

Entrevistador: é interessante isso né, porque a gente não tem registro disso,

sopa de agnoline desse jeito lá

Entrevistado: é interessante porque, não tem, não ouvimo nem fala, é realmente não

Entrevistador: é então a gente, partindo dessas, dessa informação a gente vê

que isso é uma coisa que foi desenvolvida já depois da vinda deles pra cá né,

não foi uma coisa que eles trouxeram de lá

Entrevistado: é, ou que alguém tivesse, como é que vo dize, ou que alguém tivesse

falado ou uma pessoa que outra tivesse feito aquilo né, mas só que a gente não

cheguemo a vê isso, não

Entrevistador: é, eu também fui já pra Itália e não encontrei também

Entrevistado: não encontro a sopa de agnoline, não de cappelletti como eles dizem

né, não

Entrevistador: inclusive eu fiz um outro trabalho e ai o meu entrevistado foi o

Irineu, e eu perguntei pra ele assim, o que que, e ele me respondeu a mesma

coisa, as outras pessoas que eu falei hoje também me responderam a mesma

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coisa da sopa, mas no trabalho do Irineu era diferente porque, eu perguntei pra

ele o que que a gente, o que que daria pra muda, então por exemplo, eu não sei

se vocês já viram mas o agnoline sem a sopa, sem o caldo, sem o brodo ele é

uma massa como tortei

Entrevistado: como tortei, como ravióli, como isso

Entrevistador: isso, então se agente mistura num outro molho é quase a mesma

coisa, mas dai, mexe nessa sopa, é um problema né?

Entrevistado: a era complicado, depois peneira tudo aquilo porque a sopa quando tu

joga o agnoline ela fica pronta, é só ajunta e servi né

Entrevistador: sim

Entrevistado: mas aquilo lá, tempera tudo aquilo

Entrevistador: é mais o Irineu disse assim: não serve, jamais serve um agnoline

com um molho diferente que não seja na sopa, porque não vai da certo

Entrevistado: não vai da certo, eles

Entrevistador: tu vai arruma briga com um monte de gente

Entrevistado: exatamente, não vai da certo

Entrevistador: bom. Eu acho que a gente conversou sobre tudo assim, eu queria,

de repente a gente, pra fecha a conversa assim, a gente fala um pouco de

tradição. Que é justamente essa coisa assim do que o seu avó, a sua bisavó

passou pra sua avó passou pra sua mãe e hoje a senhora faz igual. Sabe me

dize o que que seria assim, o que que? E não precisa ser só comida assim,

qualquer outra coisa assim, por exemplo, cuidar de uma horta...

Entrevistado: tudo eu te diria, tudo o que a minha vó passou pra minha mãe e ela

passou pra mim, tudo aprendi com a minha mãe, cuida da horta, cuida dos bichinho,

das vaca, tira o leite, tudo com a mãe, tudo foi herdado da mãe, é, do pai também,

mas digamos sempre a mãe mais que, que faz essa parte né

Entrevistador: sim

Entrevistado: é mas, tudo, tudo eu te diria, cuida das roupa, sabê arruma, remenda,

porque uma vez se remendava de monte

Entrevistador: sim

Entrevistado: agora

Entrevistador: compra outra né

Entrevistado: caiu da moda, mas uma vez se arrumava as roupa, costura, com 8 anos

eu costurava, costurei um macacãozinho pra minha irmãzinha, que ela não tinha

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roupa, a mãe corto e deixou ali, com 8 anos eu costurei e vesti nela e levei ela pra

mama na roça

Entrevistador: olha só

Entrevistado: é, e isso sim me marco que eu nunca mais esqueci essa parte é, eu

costurava, costurava tudo, fazia toda a roupa, todo meu enxoval, tudo, fiz tudo

Entrevistador: e como é essa parte, essa situação pros seus filhos agora?

Entrevistado: pros meus filhos

Entrevistador: pros seus netos?

Entrevistado: totalmente diferente pros meus filhos e pros netos então mudou mais

um pouco, pro diferente é, agora ma mudo totalmente, totalmente, totalmente, a

menina por exemplo ela ta com 20 anos ela trabalha estuda mas ela, faze comida até

ela sabe, mas não sabe nem, se fosse dize, lava as roupas e passa ferro e faze tudo

como nós fizemo, não

Entrevistador: diferente?

Entrevistado: diferente, diferente, a minha filha já bastante diferente e a neta então

que eu tenho só uma neta também bem diferente, eles, é, é outro, outra vida agora

(Marido da entrevistada: os netinho...), a os neto eles é diferente, eles não tem que

aprende na horta, eles é tudo diferente os guri né, em vez as menina seria, teria essa

parte, mas nada disso é, fazia crochê, qualquer coisa, de tudo que vinha pela frente

né mas agora não querem nada com nada

Entrevistador: que pena né?

Entrevistado: é, que pena

Entrevistador: porque a gente perde um pouco

Entrevistado: mas, se vão perdendo, agora é o celular e o computador tem gente

brigando com o colega do outro lado

Entrevistador: é, mas a gente perde um pouco justamente por causa, assim eu

vejo que por exemplo na imigração alemã, por exemplo porque eu moro em

Novo Hamburgo né, e ai Novo Hamburgo do lado de São Leopoldo é alemão

Entrevistado: (Marido da entrevistada: tu é origem alemã?)

Entrevistador: eu sim, mas eu nasci aqui, então fiquei meio deslocado ali, mas

prefiro, por isso estou estudando a imigração italiana, mas hoje por exemplo,

tem uma colega minha que estudou mais ou menos o que eu estudo mas

estudou na parte da imigração alemã, e pra ela acha essas coisas de comida e

ve por exemplo, aqui em caxias a gente tem um restaurante que serve uma

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massa, serve as coisas e assim ta escrito lá que é um restaurante de comida

italiana, e realmente serve uma coisa que da pra dizer que é italiana né, e isso lá

em São Leopoldo ou em Novo Hamburgo não tem mais, assim o restaurante diz

que é alemão ai ele tem lá no cardápio um prato, tipo um joelho de porco, mas

tem pizza, tem batata frita, sabe

Entrevistado: misturo tudo então

Entrevistador: tem umas coisas que as pessoas querem come, não é assim: a

tu vem aqui então tu vai come uma comida alemã

Entrevistado: (Marido da entrevistada: não tem mais né, é uma pena isso ai)

Entrevistador: não, é uma pena. Por isso que eu digo essa questão dos mais

jovens assim perder essas tradições é...

Entrevistado: e eles vão perdendo sabe sim, vão perdendo

Entrevistador: é bem complicado, assim eu fico triste pela comida que é a parte

que eu to

Entrevistado: (Marido da entrevistada: o dialeto nosso aqui ta quase terminando, o

dos alemão também ta terminando, é uma pena, ta loko...)

Entrevistador: sim, ninguém mais sabe fala

Entrevistado: (Filha da entrevistada: mas ainda tem bastante alemão que fala, a gente

faz seasa aí tem uns alemão ai que vem ai eles conversam entre eles só em alemão...)

Entrevistador: é então, eu moro especificamente em Dois Irmãos e o pessoal

mais velho conversa, conversa bastaste assim, mas não ensinam, e os mais

jovens não querem aprender

Entrevistado: (Marido da entrevistada: a gurizada nada, mas sai de casa, isso tinha

que ensina em casa)

Entrevistador: sim

Entrevistado: (Marido da entrevistada: conserva um dialeto, ta loko, tem os italiano, os

alemão, os polaco, isso vai acaba...)

Entrevistador: então tá dona Helena eu acho que a gente, eu não sei se a

senhora que me conta mais alguma coisa, lembra de alguma coisa

Entrevistado: olha, não só se é acrescenta que a gente junto com a sopa a gente faz

também um bom risoto né, e daí acho que isso você conhece já como é né, que a

gente faz um bom molho, depois jogo, coloca o arroz e, bah dá um risoto que tem

gente que chega a dize que dá pra come risoto com pão

Entrevistador: sim, de tão bom

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Entrevistado: é, tão bom que ele fica né

Entrevistador: agradeço muito pela, pela, por abri a porta pra mim

Entrevistado: magina, com muito prazer, só que dentro do que eu consigo

Entrevistador: sim, não ta ótimo é isso aí que eu precisava mesmo

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APÊNDICE C – Entrevista com Wilma Maria Argenta Bertotti

Helena tem 86 anos, moradora de São Virgílio da Segunda Légua, nascida

em Loreto, ambos no interior de Caxias do Sul-RS. Entrevista realizada no dia

12/05/2018, em sua casa.

Entrevistador: então eu queria que a senhora se apresentasse, falasse seu

nome, sua idade, e onde a senhora nasceu!

Entrevistado: o meu nome é Wilma Maria Argenta Bertotti, eu nasci em Loreto

Segunda Légua, casei com Luis Bertotti no ano de 55, 1955, e a minha idade, é que

eu tenho 2, na cartera, pode se a idade certa? Eu faço dia 22 do 4 do 32, minha idade

Entrevistador: isso dá 80 e?

Entrevistado: e 6, feito em abril, 86 ano, e o mais não sei o que tu desejaria sabe

Entrevistador: sim, vamo lá. A senhora já viajou pra Itália?

Entrevistado: não

Entrevistador: nunca quis?

Entrevistado: não, quere eu gostaria de ter ido, agora nessa época não, mas

antigamente eu gostaria de ter ido pra Itália, que a minha vó veio da Itália, ela me

contava muita coisa de lá da Itália né

Entrevistador: o que?

Entrevistado: por exemplo, o que eles comia lá, como é que eles vivia, no inverno,

onde eles dormia junto de, aonde dormia as vaca os bichos e eles dormia lá dentro

que não tinha casa pra dormi, que era inverno então era tudo aquele quente que era

dos próprios animais que davam pra eles né, e comia comida, era tudo coisa mais

simples, feijão, arroz, polenta fazia bastante, carne de porco, radicci, verdura assim

bastante também, lá na Itália e é isso né

Entrevistador: e isso sua vó que lhe contou?

Entrevistado: sim, esse é minha vó que me contava né, depois que ela veio pra cá,

ela viveu junto com ela muitos anos, cuidei dela muitos anos de noite e isso que eu

sei dela né, a vida que ela me contava deles lá, que era meio dura a vida deles, não

era que nem a vida que a gente depois começo uns anos pra cá né, até que ela tava

viva nós vivemo muito pobre, minha família era muito pobre, eu perdi minha mãe com

7 ano e o meu pai cheio de dívida, não tinha aquela casa pronta a gente luto no

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trabalho, a gente fazia comida, levava a comida na colônia, a gente sentava ali em

roda daquela, botava uma toalha no chão e se comia ali, polenta, radicci, queijo,

salame, as vez fazia uma massa, ma dificilmente, mais era sopa de feijão de noite

nossas janta era sopa de feijão e até de manhã a gente tomava sopa antes de ir pro

trabalho, depois do trabalho a gente ia, levava, eles trabalhavam diziam que era

colônia né, a colacion, ele chama em italiano, eles levavam a comida, dizia que era

colacion, então a turma tirava leite das vaca, tratava os bicho e a gente ia, e uma

ficava pra faze essa, essa comida pra leva pra come as 7, 8 hora da manhã né na

roça, era polenta e queijo, coisas assim que a gente comia, pão muito pouco também,

mais era polenta essas coisa, de meio dia também a gente levava essas comida, a

gente fazia salada, até as vez eu falo pro filho, botava dentro daquelas latinha de

azeite quadrada que antigamente vinha de coisa, ai a gente levava pra roça e a gente

lá com prato repartia a comida assim na colônia e de noite a gente vinha pra casa, era

noite tinha que tirar leite, tratar os bicho, porco e que que tinha porque o pai, a mãe

não tinha, tive madrasta e ela não ia assim, muito trata então era nós que que tinha

que faze isso ali de noite, e depois era uma sopa que a gente comia a maioria era

sopa de noite

Entrevistador: de feijão?

Entrevistado: de feijão,

Entrevistador: e esse feijão vinha da onde?

Entrevistado: nós que plantava, feijão a gente plantava

Entrevistador: e tinha sempre?

Entrevistado: ein?

Entrevistador: ele não era da, ele vinha sempre?

Entrevistado: sim

Entrevistador: sempre tinha?

Entrevistado: sim, sim, sim, nós sempre tinha feijão

Entrevistador: mesmo inverno, mesmo verão?

Entrevistado: sempre, sempre, sempre, aquilo era comida preferida dos italiano, mais

a gente fazia umas comida um pouco diferente mas não era tão diferente aquela

comida que a gente fazia né, as vezes a gente fazia um arroz, mas sempre a maioria,

quase sempre tinha um feijão junto, que eu me lembro né

Entrevistador: sim, então a sua vó que veio da Itália? Ai ela teve sua mãe aqui?

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Entrevistado: as duas avós me parece que veio da Itália, a outra também, ela tive a

minha mãe aqui

Entrevistador: nasceu aqui?

Entrevistado: sim nasceu em Antônio Prado, “caravalo” lá de Antônio Prado a minha

mãe, e a minha vó veio da Itália e fico aqui em Loreto, a vó Terezinha, mãe do meu

pai, e a mãe da minha mãe é lá de Flores da Cunha, Antônio Prado, aquelas lados lá

Entrevistador: e então só pra gente fecha aqui a questão, era isso, era polenta,

o que ela comia nessa época aqui, quando ela chegou?

Entrevistado: sim

Entrevistador: polenta, feijão

Entrevistado: é, fazia verdura e salame, queijo, começaram a criar porco, galinha,

começaram a vida aqui né, e quando eu nasci, quando que eu já tinha mais outros,

todos os meus irmãos mais velho, no começo eu não posso dize o que eles fazia

quando chegaram né, mas que eles passaram meio feio, diz que passaram né, que

não tinha nada, chegaram sem nada né aqui, então eles tiveram que luta, corta mato

e planta e faze essas coisa, agora não sei bem com é que eles pegava a semente

essas coisa, não sei te explica, é o que eu penso que eu sei

Entrevistador: tá, então se a gente ve assim hoje o que a senhora cozinha hoje,

a senhora acha que é igual, que é diferente, que tem alguma coisa parecida?

Entrevistado: olha, tem coisa parecida que agora a gente tem muita outras coisas, a

gente faz curso, tem outras comida muito diferente, só que é comida mais que faz mal

do que bem, e naquela época era uma coisa mais boa, mais, como é que eu digo,

verdadeira, não tinha tratamento, não tinha nada dessas coisas né, e agora tudo vem

do mercado, tudo vem com porcaria junto não é mais aquela comida que tu faz, por

quanto que tu cuida mas não é, o que tu compra tu não sabe o que vem na tua mão,

porque naquela época não tinha né

Entrevistador: sim, comia o que tinha ao redor né

Entrevistado: sim, mas tava bom naquela época, naquela época a gente tinha fome,

porque tu ia trabalhar na colônia era pesado, a gente na minha época antes de casá

ainda, a gente trabalhava com alfafa, então as vezes de noite chovia, o tempo chovia

a gente tinha que sai as 1, 2 horas da madrugada ajunta aquela coisa pra guarda que

a gente achava que hoje não vai chove, fico ali fora, tinha que levanta e ir pra colônia

faze isso ai, não era fácil, agora é tudo mais fácil, tudo já tá mais na mão as coisa, não

é que nem na nossa época

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Entrevistador: e o que que a senhora cozinha no dia-a-dia assim?

Entrevistado: agora?

Entrevistador: é, hoje

Entrevistado: hoje eu fiz, esqueci tudo

Entrevistador: eu digo hoje de uma maneira geral assim

Entrevistado: eu tinha galeto, fiz uma sopa de feijão também hoje, pão, fritei uma

polenta, tinha polenta, fritei a polenta, queijo, essas coisa ali, umas verdura e um

bicceroto de vinho (risos), isso ai né

Entrevistador: e como é que era, como a sua mãe fazia polenta? Sua vó?

Entrevistado: a minha mãe, eu não me lembro bem, mas a polenta que nem eu faço

agora

Entrevistador: mas é diferente?

Entrevistado: sim, diferente a farinha, antigamente era a farinha de moinho verdadeiro,

o nosso milho, que a gente ia, só que agora tu compra a farinha e tu faz aquela polenta

com farinha mais grossa, por isso que eu digo de repente nem é uma farinha como

era antigamente, e aquela farinha fina eu fazia bastante aquela, antigamente era

aquela farinha de moinho verdadeiro de pedra, e agora em vez é quase farinha

comprada, aquela farinha de pedra, apesar de que ninguém, assim mesmo não

gostam muito dessa polenta de farinha fina, a minha família, tem gente que nem meu

genro, minha filha ela faz com aquela farinha fina, aquela polenta eu até gosto

daquela, é boa, só que é mais difícil pra começa ela, que ela “embalota” muito assim

Entrevistador: no início tu tem que

Entrevistado: isso, no início assim, se não é boa

Entrevistador: sim, tá a senhora conhece alguma coisa da história da formação

de Forqueta? Da região aqui?

Entrevistado: uma história?

Entrevistador: é, assim, como que aconteceu, com é que aconteceu inicio

Entrevistado: acho que foi, começo com os padre que primeiro nós era da Conceição,

Desvio Rizzo, então nossa sociedade daqui era pro Desvio Rizzo, depois cos padre

não sei se não se deram bem, botaram pro Forqueta, então nós entremo na sociedade

aqui com a capela de Forqueta, nossa, precisemo de um padre alguma coisa é

Forqueta, não é mais outros lugares né, eu conheço o pessoal sim porque vo lá faze

ginastica, vo, conheço as mulher de lá, uma coisa outra, até a cozinheira de lá conheço

ela bem, até se tu quisesse faze uma entrevista come ela garanto que ela faria

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Entrevistador: mas então quando vocês aqui, pra cá já tinha Forqueta com esse

nome?

Entrevistado: tinha, Forqueta tinha sim, quando, não meu marido era daqui mesmo,

tinha Forqueta mas não era nós que fazia parte de Forqueta, nós fazia parte de Desvio

Rizzo, naquela época

Entrevistador: mas era esse mesmo lugar aqui?

Entrevistado: sim sempre fico

Entrevistador: e quando que, a senhora lembra quando que passou a se parte

de Forqueta?

Entrevistado: não me lembro querido

Entrevistador: tá, não tem problema

Entrevistado: não me lembro

Entrevistador: e naquela época assim, que era, a comida era igual?

Entrevistado: era mais simples, agora tem mais coisa era quase igual, bem dize não

tinha aquela diferença, tu diria na sociedade ou em família?

Entrevistador: nos dois

Entrevistado: nos dois? Na sociedade era igual, bem dize, tinha menos coisa também,

era mais churrasco mais coisa, agora eles fazem é tortei, é risoto, é galeto, essas

coisa toda né, antigamente não tinha aqueles tortei, aquele galeto, faz uns ano pra cá

tem tudo isso ai né, a gente mudo tudo, começo

Entrevistador: então antes era mais reduzido, não tinha tanta opção?

Entrevistado: é, que eu penso é isso ali que tinha menos, não fazia risoto, não fazia

umas coisa assim, fazia menos né

Entrevistador: e na comunidade quando junta o pessoal assim então faz essas

comidas todas ai, e faz lá na comunidade? Como é que é?

Entrevistado: na comunidade

Entrevistador: as festas

Entrevistado: antigamente não era na comunidade, quando casei, uns ano, era cada

um, fazia festa cada um era em casa, convidava seus amigo na família, não era na

sociedade, era em família, então, por exemplo, eu tinha os meu parente, parente do

marido e então era lá em casa, então a gente fazia uma sopa, um churrasco e pão e

salada era isso, e depois começo a faze mais salões de festa ai começaro faze no

salão, que dava muito transtorno assim pra faze cada um na família, era muito trabalho

né, então fizero isso ali né

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Entrevistador: e assim, se a gente for pra essa festa assim, qual comida que tem

e se não tivesse não era a mesma coisa? Não pode falta

Entrevistado: em festa, quando fazia?

Entrevistador: é

Entrevistado: acho que comida era essa ai mais

Entrevistador: o que que não pode falta na festa, de comida?

Entrevistado: churrasco com certeza, uma sopa também eles fazia, antigamente no

começo acho que nem sopa ia faze, me parece, era mais churrasco, até a gente

compra o churrasco e botava um espeto fora, em baixo de uma árvore, comprava um

pão, uma salada e ai fora em baixo duma árvore, também isso a gente fez ainda, não

sei se alguém comentou isso

Entrevistador: sim. Então o que não pode falta seria carne e sopa?

Entrevistado: acho que, sopa, salada e pão, isso deveria te né

Entrevistador: sim, e na casa, e na família?

Entrevistado: na família, de festa? Quando tinha festa?

Entrevistador: é

Entrevistado: ou sempre assim?

Entrevistador: nos dias especiais assim

Entrevistado: nos dias especial também, a maioria era churrasco, um churrasquinho,

uma sopa, salada, umas batata, uma maionese essas coisa, pão, a gente fazia uns

doce, fazia uns bolo, umas torta, biscoito pra depois toma o café, isso também tinha

sempre, isso ali, em festa

Entrevistador: e massa?

Entrevistado: massa acho que

Entrevistador: quando servia?

Entrevistado: acho que não era massa mais que servia, não sei se alguém fazia, ma

acho que na minha casa era mais churrasco, que ai era mais fácil, e uma salada, pão

e verdura a gente, depois era um café, depois do almoço, então era bolo biscoito uma

sobremesa a gente deixava preparado, depois do almoço, acho que é isso ali né que

mais eu me lembro

Entrevistador: pra gente ve assim, por exemplo, o que que a senhora entende

sobre tradição assim, que é aquela coisa que a sua vó fazia porque veio da Itália

e fazia lá já, ai veio pra cá continuo fazendo do mesmo jeito dai a senhora

aprendeu porque, e ainda hoje faz

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Entrevistado: é, acho que é massa, mais biguli, tagliatele (risos), eu não sei como se

explica tudo essas coisa em português, brasileiro né, eu acho que é isso ai, o pão que

não pode falta

Entrevistador: o pão a senhora aprendeu a fazer com ela?

Entrevistado: sim, aprendi

Entrevistador: e ela fazia na Itália?

Entrevistado: não, aprendi com a madrasta, eu tinha 7 ano quando perdi a mãe e a vó

já tava meia velinha, e era mais com a madrasta que a nossa família era um pouco

grande né, nos era em 12 e pobre, então era aquela comida, a gente sentava na mesa

não tinha aquela discussão assim, só um grito do pai era o suficiente, e de repente tu

tinha um irmão do lado que te incomodava era em baixo da mesa beliscões (risos),

ninguém podia abri a boca, que ai só o grito do pai era o que, a liberdade era sempre

o chefe da casa que fazia né, mais

Entrevistador: e assim, vocês falavam o dialeto?

Entrevistado: sim italiano? Sim, é “parlevi in italian” (risos)

Entrevistador: sempre né?

Entrevistado: sempre, eu comecei a fala em português só depois que eu casei que

tinha os filho, ai começo o colégio, a gente tinha que explica pros filho que ai, eu acho

que até o mais velho se lembra muito bem as palavra, e depois vão esquecendo, mas

italiano era, “veni qua”, “va farquel”, “va tome lenha”, é uma coisa que tu nem intende

eu acho o que eu falei, mas é uma coisa isso ali, busca lenha, vez que dize vai filho

me busca uma lenha, “vai tossa”, vai busca uma lenha, era tudo aquela coisa em

italiano que a gente falava, não era, depois que comecei te os filho, começo cresce

coisa, a gente começo mais com troca, mas a gente não tem aquela língua de da a

volta como, que nem vocês que se criaram de pequeno nisso, os meus já não tem

aquela, aquele jeito de fala mesmo em português, que tu sente que eles não tem

aquela volta bem, como deveria se né, mas era nossa época né

Entrevistador: e assim, musica, como que era?

Entrevistado: era bailezinho

Entrevistador: a religião?

Entrevistado: a religião? Não a religião era boa, a gente quando era missa a gente

todos ia

Entrevistador: isso era uma que quem veio da Itália dizia muito?

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Entrevistado: falava muito, muito católicos, eles procuram puxa sempre a gente na

missa, a gente saia cedo as vezes ia pra igreja de pequeno, eu me lembro que a gente

saia lá onde que morava, era 1km longe da igreja, e a gente ia até descalço até perto

da igreja, porque não tinha sapato e perto da igreja a gente botava o sapato pra entra

na igreja

Entrevistador: pra não usa muito

Entrevistado: sim (risos), até nem é bom conta

Entrevistador: a mas são coisas da época

Entrevistado: sim, mas era normal tinha muita gente assim, que fazia isso ali, não era

só a minha família, tinha muitos outros também que vinha, nós tinha uma pocinha de

água uns 100m longe da igreja, e nós levava o sapato até ali e depois a gente se

trocava, se lavava os pé ali e se botava os sapato, uma vez eu ganhei um sapato

duma vizinha e botei aquele sapato, quando cheguei na igreja o sapato se abriu (risos)

Entrevistador: ai, não acredito

Entrevistado: ai eu sempre, nunca esqueci mais aquilo, mas era o que nós tinha,

porque não tinha dinheiro, não tinha nada né, e a gente vendia umas coisa, bom eles

me botaram empregada com 7 ano, logo que faleceu a mãe, foi numa família ali perto

pra cuida outras criança, que quantas vez que eu falo com eles esse filho que eu

cuidava, agora morreu dois daqueles que eu cuidava também, que eles tinham uma

escada a subi e magina com 7 ano, não sô nem agora que sô firme, magina com 7

ano (risos), sei que depois me mandaram pra casa, mas com 7 ano é tu que, eles que

deviam cuida de mim, eles deveria cuida, bota uma criança agora cuida, não tem como

não, mas a vida era essa, a minha irmã mais nova, que faleceu aquela mais nova ela

nasceu, com um dia de vida e foi criada num outro vizinho porque minha mãe faleceu,

e depois ela foi criada na outra família e depois o meu pai quis leva ela pra casa, ela

choro muito pra leva ela, ele não queria deixa nenhuma filha fora de casa, o pai, o pai

era muito de gente e as família, nós tivemo madrasta a gente passo fome também, as

vezes a gente até robava a comida pra cria a madrasta ela escondia a comida pra

nós, eu cuidava minha vó de noite, eu tinha que vim pra casa cansada com 16 ano 17

e cuidava a minha nona, eu tinha que levanta pra leva ela no banheiro antigamente

era uma cadeira, botava as coisa e eu sei que de noite os pessoal levava chocolate

pra ela come e eu ia, e uma ficava pra mim, e uma ficava pra ela, só que minha

madrasta noto ai ela começo a esconde aquelas também (risos)

Entrevistador: e essa sua madrasta era daqui?

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Entrevistado: sim, era vizinha, eles eram vizinho do meu pai

Entrevistador: como que foi seu pai, como é que foi o

Entrevistado: a vida dele?

Entrevistador: o teu casamento? Quando tu casou assim

Entrevistado: ele ficou um poquinho por causa que tinha que compra isso e faze

aquilo, a gente fazia alguma coisa, eu tinha o meu irmão que me escondia, que ele

escondia muito, ele protegia muito eu e outra minha irmã, muito mais o casamento foi

bom, não foi de muita gente, a gente caso lá em Loreto, e vim mora ali em baixo, pra

la da casa do Luis ele tinha uma casinha lá nos, nós fomo mora lá e depois foi a festa

na casa do meu sogro, a noite teve baile lá até tarde, e a gente veio mora nós dois,

cheio de dívida, não tinha nem, o meu não tinha nem sapato quase pra bota, e eu a

mesma coisa, só o enxoval com uma mula ele vinha pega o enxoval com dois cesto

tu carregava todo o enxoval e era na bem dize nada, quando tu boto na casa as coisa

já não tinha mais quase roupa né, e esse ali foi a nossa vida que nós vivemo com

muito trabalho, muito mão fechada, e cheguemo onde que tamo agora, sem nada se

começemo com nada a nossa vida foi começa lá, ele tinha comprado metade do

terreno e paguemo aquele depois tinha mais a metade que era irmão ele não queria

vende pra ninguém, pros parente dele que era encostado, ma ele confio em nós, ele

vendeu pra nós ai compremo aquele outro pedaço, e fizemo a nossa vida pagando

dívida, fazendo parreiral, ele trabalhava na prefeitura, era funcionário lá então aquilo

ajudo bastante pra nós, deu pra dá a via, e ele sempre foi um homem que procuro

sempre te as coisa né, então deu, até ele queria te comprado o do pai, eu disse mas

chega de dívida, ele queria compra os terreno do pai mais nós sempre na dívida,

depois que compremo os terrenos dos filho, o terreno onde que ele mora o Ivo, o coisa

que era do Irineu, que ele passo pro Ivo também, fomo eu e o Luis que demo o terreno,

lá aquele otros 6 terreno fomo eu e o Luis também, não foi os filho que pagaram, fomo

nós, bom ele sabe também, então foi uma vida assim, que nós sempre trabalham pra

te alguma coisa, cosntruimo a casa aqui que foi tudo nós dois, e luz foi um ano de

safra de uva, mas também eu fazia, eu fiz ainda 22 saco de trigo, fiz feijão, fazia 60

mil quilo de uva, eu ia pra roça com aquela máquina nas costa faze, depois o meu

irmão vinha as fezes ajuda, ma não foi fácil a nossa vida, ma tu sabe que eu me sentia

bem, me parece de volta de novo, no sábado a gente até tinha bailezinho, fazia baile

lá na nossa casa, foi feito bailezinho aqui, os amigo vinha nós ia nos amigo era uma

coisa linda bonita, que a gente se gostava entre todos né, a vida foi, nossa vida não

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foi aquela vida de escravidão, graças a deus comida eu sempre tive pros filho também,

não tinha coisa de riqueza mais deu pra nós dá a volta naquilo como nós tava e como

estão agora no dia de hoje também os meus filho, não tem pra se queixa, a vida foi

nossa foi dura, mas deles também não é vida boa, é vida boa, porque eles ganham

pouco, e o Luis queria sempre que eles estudasse só que nenhum quis se forma nem

a Ilka, último ano que foi o Irineu, levei ele pra Porto Alegre, um passei pra ele ir pro

colégio eu queria marca ele, ele não ia que não ia, depois de grande eles se

arrependeram, pode se que nós fiquemo muito mole não demo aquele duro neles,

vocês tem que ir, a gente não tinha aquela prática, a gente não tinha, mas graças a

deus

Entrevistador: todo mundo bem

Entrevistado: todo mundo não ta passando fome e eles tem a vida deles, tudo bem

né, graças a deus

Entrevistador: e como é que a senhora vê essa questão aí das tradições a partir

dos seus filhos pra frente assim, pros netos, por bisnetos, o que que a senhora

acha que vai ficar? Que que a senhora acha que eles não vão mais da bola?

Entrevistado: na vida? Na?

Entrevistador: é, tudo assim...

Entrevistado: que que eu poderia te responde nisso ali, a minha intensão seria que

eles tivessem amor e ir pra frente né, minha intensão seria aquela, sempre, mas eu te

dize, não poderia dizer isso ai, eu sei que a vontade ele tem, que nem o Irineu ele tem

vontade ir pra frente, eu se eu posso ajuda eu ajudo, eu quero que ele vai pra frente,

eu digo, as vezes ele diz ‘mãe não quero que a mãe me dá isso, mãe não quero’ mas

se eu tenho digo ma Irineu eu quero vê ele bem, eu quero vê os dois bem, não é que

não quero, tanto ele que ela que seja bem, eu disse uma vez que ele ta me cuidando

bem, eu sempre digo pra deus e todo mundo , digo na cara dele que ele me cuida

bem demais esse filho, demais eu se eu digo não to bem, ele já me marca médico,

que as vezes eu nem quero ir pro médico ele me marca, então eu quero o bem deles,

tanto de um que do outro, pra mim eu tenho 6 não sei qual que é o pior, nenhum deles

que eu posso me queixar porque se eu preciso alguma coisa qualquer um me dá uma

mão, então eu só quereria vê eles que isse bem, só isso, só, minha vida, eu penso

assim, até naquela semana que o meu tava doente eu disse ‘fica tranquilo que nós

vamo cuida os filho’, e ele tava preocupado que els não vão bem, porque não sei o

que, eu disse ‘não, fica tranquilo’, mas não ia espera que ele ia, tá, eu dizia pra ele

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‘fica tranquilo que’, sim mas eu vo morre, eu cuido deles, mas nuca ia espera essa ali

dele né, então eu o que eu quero é vê eles bem, só isso, não quero outra coisa, tanto

que nem, tanto a tua mãe que ele eu nunca digo ‘Irineu olha que a tua mãe é isso ou

a tua esposa ta’, eles são de idade, eles tem que sabe o que eles querem, eu nunca

quis que ninguém se metesse no meu casamento e também não, as vezes eu digo

alguma coisa assim mas não que eu chego dize ‘não filho tu tem que faze’, não eles

que fazem o que eles acharam melhor, a gente deu o que era pra dá, que foi dado o

terreno dele aqui com as coisa, eu gostaria que eles fosse feliz, só isso eu gostaria,

que o Ivo ta muito bem, o Ivanor também, o Itacir também, todo tem a sua casa o seu

telhado, então já ele tem uma coisa que ele só pode subi na vida, só isso que eu digo,

nada de coisa, a

Entrevistador: e assim, se por exemplo, que que a senhora acha que continua

ainda nessa situação de tradição assim, pros seus netos, que que a senhora

acha que eles vão mante ou não vão mais? a senhora acha que eles vão da

valor?

Entrevistado: não sei, to em dúvida (risos)

Entrevistador: mas porquê?

Entrevistado: é verdade que eles são novos, são novos tem uns que eu acho assim,

mas tem uns que ta meio fraquinho, e pra eles faze um futuro bem assim pelo que

eles ganham é pouco, entende? Porque pro, uns dois salario que fosse também, que

fosse nem sei o que eles ganham, que fosse até três salario, não é dinheiro pra eles

pode ir pra frente, eu pensaria isso, porque eu vejo eu o que eu gasto, que eu to aqui,

que ajudo que, não é que ajudo porque o Irineu sempre diz ‘eu não quero dinheiro da

mãe’, ele é sincero demais, não é que eu te dizendo que ele ta com tua mae, não é

isso ali, mais o problema é muito gasto, por exemplo aqui também, que nem o Irineu,

é máquina que quebra, é parreira que nem agora morreu um monte de parreira, tem

que te um gasto em cima daquelas parreira lá que não é fácil, então ora que eles

botam aquelas parreira que começam é uma coisa muito feia, se ele tivesse que nem

o meu marido deu pra nós faze porque eu plantava arroz, feijão, milho, de tudo e ele

já tinha o dinheiro dele então esse já era um dinheiro que sobrava pra nós paga as

dívida, ma que nem o Irineu ele não ta aposentado, não ta nada, e não é fácil quanto

eles gastam eu sempre pego os dois, não é que eu digo que eu quero que eles

guardem dinheiro, não eu não preciso, eu ainda vo deixa pra eles o dia que me parti,

mas eu só digo assim ‘ma vocês tem que cuida pra vocês não irem se afunda, vocês

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vê como vocês faz, pega uma caneta, marca tudo o que vocês tem, bota ali porque’,

eu vendo uma garrafão de vinho coisa, mas o dinheiro deles ta lá, eu não, então isso

ali eu sempre digo pra eles marca tudo, porque um mexe, não é por que eles levam

embora, não, ma o Ivo pega leva lá, o Irineu pega vai e leva, aqui não tem nota

nenhuma onde que vai, isso ali é um erro, não sei tu que tem mais estudo, não sei se

to errada ou se eu to certa, eu digo a tua mãe também me disse ainda isso, peguem

um caderno, eu levei um garrafão de vinho deu tanto aqui, eu levei 10l de vinho, tanto,

levei um suco, tanto, ai é uma coisa que vai pra frente, até hoje disse ‘olha se é pra

você faze futuro vocês nunca vão faze futuro do jeito que tão indo’, isso eu to dizendo

francamente na cara deles porque não é fácil

Entrevistador: mas então acho que era isso dona Wilma

Entrevistado: eu não sei se eu respondi coisa boa

Entrevistador: mas isso não se preocupa, então tá, muito obrigado

Entrevistado: de nada, que deus te abençoe

Entrevistador: obrigado

Entrevistado: que tu pudesse subi, que deus te de força e tudo de bom, pra ti e o pro

Luis também, os dois

Entrevistador: muito obrigado

Entrevistado: vocês são muito legal

Entrevistador: a senhora também, muito obrigado pela, pelo depoimento

Entrevistado: eu não sei as outras lá fizeram o que? Melhor que eu?

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APÊNDICE D – Entrevista com Renata Terezinha Onzi

Renata tem 75 anos, nasceu e reside em São Virgílio da Segunda Légua, no

interior de Caxias do Sul-RS. Entrevista realizada no dia 13/05/2018, em sua casa.

Entrevistador: começando a conversa então, é Renata né?

Entrevistado: sim

Entrevistador: quantos anos tu tem Renata?

Entrevistado: eu tenho 75 e um pedaço

Entrevistador: e um poquinho, e tu nasceu aqui?

Entrevistado: sim

Entrevistador: aqui em Caxias? Aqui em Forqueta?

Entrevistado: aqui eu to residindo, nasci e sempre morei aqui

Entrevistador: e, tu já foi pra Itália alguma vez Renata?

Entrevistado: nunca, também não me atrai

Entrevistador: é mesmo?

Entrevistado: é

Entrevistador: porque?

Entrevistado: porque como nosso avós contava, isso ai me marco sabe, que eles

foram chutados de lá, os italiano né, porque prometeram que aqui

Entrevistador: tu quer atender o telefone? Tranquilo, pode ir

Entrevistado: não, não, não é meu telefone

Entrevistador: não?

Entrevistado: não é esse aqui ó, aqui assim, é dos guri então

Entrevistador: a tá, então tá

Entrevistado: então assim eles contaram que foram chutados de lá porque

prometeram que aqui no Brasil tinha a tal da cucanha, tinha até salame pendurado em

árvores, e os pobrezinhos vieram, confiando né, vieram e aqui encontraram o que?

Mato, né, sem casa sem moradia, sem condições de construí, e aí sabe isso aí me

marco, eu disse po, com tanta coisa bonita aqui no Brasil pra vê porque que a gente

vai pra Itália, que terá coisa mais interessante lá vê onde nosso antepassados saíram

né, mas não me atrai

Entrevistador: não?

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Entrevistado: não

Entrevistador: ta, e fora essa história aí de vim e chega aqui e não ter nada, tu

sabe de alguma história que eles te contavam de como era a vida deles lá?

Entrevistado: lá não tenho recordação do que eles contaram lá, eu sei que os nossos

antepassados eles moravam na região onde que a Itália era dividida na época né,

então eles tavam morando na região de Tirol, então não pertencia realmente lá, dentro

da cúpula da Itália né era uma região afastada e depois de lá eu só sei quando

chegaram aqui no Brasil que não acharam nada e pra vive eles viviam de caça, porque

eles trouxeram na bagagem um pouquinho de comida, né mas não durava muito

tempo que trouxeram, por que não tinha geladeira não tinha essas coisa pra mante

né, então diz que eles viviam de caça, de caça e fizeram um rancho de quatro colunas

com uma cobertura qualquer ali que tinha que eles conseguiram né

Entrevistador: pra se protege

Entrevistado: é pra se protege, assim começaram a vida e pra lava a roupa eles se

agrupava em famílias e ia trilha a dentro até que encontrava água, no mato né e

também pra assim pra faze pão essas coisa tinha que se ajeita como dava, porque

até que eles tinham farinha e depois ‘se fenit’, que até aqui planta e produzi levo tempo

Entrevistador: e quem foi da sua família que veio pra cá? Seu bisavó, seu avó?

Entrevistado: veio o meu bisavó, com os 4 filhos

Entrevistador: dentro deles o seu vô já?

Entrevistado: sim, então eles vieram, se instalaram em Nova Milano, de Nova Milano

eles vieram mora ali onde que é o Mario Bampi, aí do lado do salão, ali que é a morada

dos meus antepassados até existe ainda a casinha onde eles tavam morando né

Entrevistador: e eles te contavam ou tu teve a curiosidade de pergunta pra eles,

ou de repente a comida que vocês tinham quando jovens assim junto come eles,

tu consegue me conta um pouco como era assim?

Entrevistado: não, com os meus bisa, meus avós eu não conheci, mas aí meus pais

contavam né, que eles viviam assim, por exemplo, do que eles colhiam, criavam

porcos né então depois quando fazia banha eles pegava e cozinhava a carne junto e

guardava junto com a banha, pra conserva

Entrevistador: sim pra conservar

Entrevistado: é ou de repente as miudezas assim, os ossinho, os pezinho do porco

salgavam e guardavam na salmoura, pra vive era assim, e olha pra nós graças a deus

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como meus pais contavam, nunca falto comida, então assim, graças a deus nunca

falto comida, nunca, pobrezinho sim com condições financeiras poucas que não tinha

como produzi né, então era polenta, queijo salame que eles faziam com o que

produziam né, era assim que vivia, carne de mercado não, eles não tinha, porque não

tinha dinheiro pra compra, só quando, vinha carne de gado quando eles conseguia

confina um boi uma vaca né

Entrevistador: tu sabe como era feito o queijo naquela época?

Entrevistado: era a minha mãe eu lembro da minha mãe quando fazia, quando nós

era criança que ficava tudo na volta pra pode come, ela botava esquenta quando tava

morno eles botava aquele coalho né, coalho não sei como é que era feito o coalho, e

depois quando tava coalhado ela batia ai o soro ia separando né do queijo, então nós

queria sempre uma bolinha daquelas de queijo que era bom né, que era que nem uma

ricota né, era assim que a mãe fazia, que eu lembro né

Entrevistador: entendi, e agora pensando um pouquinho na comida da senhora

aqui de vocês, aqui da casa assim, do dia-a-dia, o que que mudo daquela época

pra cá, o que que vocês mais gostam de come?

Entrevistado: olha agora tu aperto brasileiro aqui porque assim, em fim de semana

que vem toda turma então muda, então é churrasco com massa ou com maionese ou

com batata doce caramelada, essas coisa né, e durante a semana que agora se

reduziu em dois

Entrevistador: só vocês dois?

Entrevistado: a esposa do Hilário faleceu, então quando tem o genro dele aqui

trabalhando, então muda um poquinho, então é bife com uma salada de batata ou

com massa ou um arroz, o risoto ou carretero, mas se é eu e o Hilário um bife e uma

salada de meio dia e deu de noite então é um café com misturas, geleia, pão, queijo

Entrevistador: e o pão é a senhora que faz?

Entrevistado: sim, pão eu faço

Entrevistador: e faz da mesma forma que a sua mãe fazia?

Entrevistado: sim, não mudo um pouco porque quando a minha mãe fazia o fermento

era diferente, o fermento ela fazia com batata, ela ralava a batata e botava açúcar e

sal e deixava fermenta, quando fazia o pão então ela reservava uma parte daquele

fermento pra próxima vez então ela reforçava então ela botava mais uma batata mais

um poquinho de açúcar um poquinho de sal então ela levava um dia inteiro pra fazer

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o pão, porque tinha que deixar crescer né, e agora não, agora é feito com a máquina

e as formas são iguais só o fermento é de mercado né

Entrevistador: pra facilitar um pouco

Entrevistado: então é meio dia eu coloco meio dia, mas em quatro horas três e meia

fica pronto

Entrevistador: sim, pensando um pouquinho assim dona Renata na formação

de Forqueta assim, como um lugar como a gente conhece ele hoje assim, a

senhora conhece um pouco da história de como que foi, porque que surgiu com

esse nome, como que era a história do lugar?

Entrevistado: não

Entrevistador: não conhece?

Entrevistado: não conheço, eu só sei da história do meu avó que ele tinha comprado

o terreno em Forqueta né, e ele veio pra casa faceiro porque só tinha um pinheiro

naquele terreno porque o trabalho maior era prepara a terra pra produzi né, então era

tudo manual, então que dava trabalho era com a serra né, pra corta as madera maior,

eu lembro disso ai, ma como foi formada a Forqueta não sei

Entrevistador: tudo bem. E assim, nos dias de festa, por exemplo, nos dia que

vocês, que a comunidade se reúne assim, que que tu pode me conta sobre as

comidas dessas festas?

Entrevistado: olha, as comida dessas festa geralmente o prato, o cardápio é sempre

o mesmo, a gente se reúne uma semana duas pra prepara os agnoline pra sopa né,

depois então aquele dia é sopa de agnoline, lesso, maionese, risoto e churrasco,

galeto, as vezes carne de porco é sempre o mesmo cardápio porque ele fez sucesso

então não pode muda né, é isso que faz, e parta da turma depois se divide né, quem

trabalha na cozinha faz uma coisa, quem cuida do churrasco é outra, quem cuida das

panela é outra turma, quem ornamenta o salão é outra turma é assim que funciona as

festas

Entrevistador: e quando a festa é aqui na casa da senhora?

Entrevistado: aqui, é barulho aqui (risos), o ultimo até nós se reunimo pra, era pra se

ainda em Fevereiro pra faze assim um almoço pra encerramento da safra, ma como

não tinha data e não tinha data foi justamente na véspera da festa dos Bertotti, então

nós fizemo lá em cima no campinho, fizemo costelasso, então a partir das 6 hora da

manha já tinha o fogo e a carne assando né, e levo até a uma hora pra fica pronto, e

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a festa foi lá em cima então foi o churrasco e a maionese e a salada, tudo numa mesa

só, cada um se servia, só o churrasco era servido no prato

Entrevistador: entendi, e o que que acompanhava esse churrasco?

Entrevistado: olha, toda a turma que veio ajuda a colhe a uva, os familiares e mais os

sobrinhos do meu irmão, mais os meus cunhados, a era uma turma, tinha amigos,

uma turma mais ou menos nós era em 36, 38 pessoas, ainda falto alguém porque eles

tinha outros compromisso

Entrevistador: que pena, e junto com a carne vocês serviram o que mais ou

menos?

Entrevistado: maionese, salada e pão

Entrevistador: ta, entendi, e assim dona Renata, o que que por exemplo a

senhora ve que se a gente tira desses cardápios dessas reuniões assim que

vocês fazem, tanto na família como na comunidade, o que que a senhora ve que

se falta no cardápio o pessoal reclama?

Entrevistado: sopa, sopa

Entrevistador: de agnoline?

Entrevistado: de agnoline, agora aqui em casa nem tanto, nem tanto porque somos

em poucos então até preparar os agnoline essas coisa, as vezes a gente compra os

agnoline conforme se é frio então sai a sopa, se não não, mas na comunidade se

reclama se falta a sopa

Entrevistador: se falta a sopa, e ai pensando um pouquinho assim dona Renata

sobre tradição, aquela coisa assim que seus bisavos faziam ai os teus avos

faziam porque faziam teus bisavos dai os teus pais também faziam e hoje a

senhora também faz, em relação as coisas diárias assim, tanto por exemplo o

pão, ou alguma na lida da terra, essas coisas assim, que que a senhora lebra

que pode da de exemplo nesse acaso?

Entrevistado: olha, o exemplo, acho que isso ai foi se perdendo sabe, os filós, que se

reuniam as famílias ai jogava baralho, ai era servido um brodo, era servido os grostolis

minha mãe fazia, conforme o grupo então, numa casa era uma coisa na outra era

outra, mas aqui eu lembro que a minha mãe falava que os homem jogavam baralho e

as mulher conversando ou alguma fazia trabalho manual enquanto minha mãe

preparava os grostoli e o café, ou o brodo com eles achavam melhor né, isso ai, que

eu lembro disso ai, depois o que mudou um pouco foi no decorrer do tempo foi se

perdendo muita coisa, por exemplo, a minha mãe ela fazia um prato que é quando

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tinha sobras de pão ela de manhã cedo a primeira coisa que ela fazia ela botava, ai

ela fazia o seguinte não botava fora nunca pão, porque diz que passaram necessidade

quando jovem né, então ela botava leite, açúcar, um pouquinho de sal, ovos e fazia

ela fazia, misturava bem, desmanchava bem aquela pão sabe? Bem desmanchado,

botava um pouquinho de canela em pó, e bem pouco cravo, porque cravo é forte né,

e cozinhava botava no forno, enquanto ela fazia o almoço, outras coisa ela preparava

e ia assando essa torna amilanesa que eles falavam

Entrevistador: é? Tinha esse nome?

Entrevistado: é tinha esse nome, tinha muita gente, a minha mãe fazia assim, por

exemplo eu conhecia pessoas que faziam diferente, faziam ela só salgada, botava

queijo no lugar do açúcar, e botava manteiga então minha mãe não botava manteiga

porque ficava muito gordurosa, então faziam diferente pra servi assim de prato pro

almoço, mas minha mãe mesmo que era doce ela servia junto com outras coisas

assim isso ela fazia, depois o que mais que ela fazia? Que eu lembro que ela fazia?

Porque não era que se tinha em abundancia sabe, tinha que faze conforme tinha as

coisa, eu lembro muito da galinha ao molho com polenta mole ou carne no forno com

batata junto, isso eu lembro bastante que a gente largo de mão, faz bem pocas vez

Entrevistador: a senhora acha que já foram se perdendo e como a senhora ve

isso daqui pra frente assim, pelos teus sobrinhos ou?

Entrevistado: olha, ninguém quer mais nada com nada, a preferencia é acha pronto,

eu vejo pelo meus sobrinhos, não os mais velhos, por exemplo que nem o Gilmar a

Jacira, Janice, essas ai não, essas ai ainda toma a iniciativa fazem, mas meus netos

sobrinhos então isso não querem nada

Entrevistador: não tem interesse

Entrevistado: não tem interesse em faze alguma coisa

Entrevistador: e o dialeto vocês usam, conversam ainda? Seus pais falavam?

Entrevistado: sim, meus pais e nós irmãos a gente fala ainda, mas com a subrinhada

toda mudo, é tudo que nem nós

Entrevistador: não aprenderam?

Entrevistado: eles entendem, tem uns que falam alguma coisa, que nem o Bruno por

exemplo que ele vive visitando as cantina que ele é enólogo né então ele fala bastante

italiano, se tu puxa o dialeto ele vai, mas os outros não, os outros entende ma não

falam

Entrevistador: que é uma pena né?

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Entrevistado: sim

Entrevistador: porque é esses detalhezinhos que vão mantendo as coisas né

Entrevistado: sim, sim, então eu vejo assim na comunidade também, olha tem muitas

e muitas famílias que é só o português

Entrevistador: então ta dona Renata, acho que era isso assim o que eu tinha pra

conversa

Entrevistado: não sei se te ajudo

Entrevistador: claro, claro que sim, não sei se de repente tu tem mais alguma

coisa que tu lembre que?

Entrevistado: não, eu lembro que não sei se faz parte, mas é uma história que o meu

bisavô, ele criava porcos né, e depois ele tinha roças de milho e ele percebeu que o

milho ia desaparecendo conforme ia crescendo tinha bichos que comia né, ele

percebeu que era javalis

Entrevistador: nossa

Entrevistado: então ele fez um serralho, ele fez que nem uma arapuca né, ele fez e

coloco comida lá dentro e até ensinava pro meu pai depois que ele era o filho mais

novo do meu avô, diz que era ali em cima no canto do parreiral esse serralho que ele

fez boto comida e na manhã seguinte pela surpresa dele encontrou 12 porcos lá dentro

Entrevistador: nossa 12?

Entrevistado: 12 (risos), então nós dizia, mas pai não é muito não? Tinha, tinha,

antigamente tinha bastante bicho selvagem

Entrevistador: selvagem, sim

Entrevistado: bichos do mato

Entrevistador: e o que ele fez será?

Entrevistado: magina, cárneo tudo né

Entrevistador: nossa

Entrevistado: eles eram 14 irmãos do meu pai né, então se dividia, depois com os

vizinhos também quando carneava algum porco era sempre um pedaço pra cada

vizinho, era sempre assim e se trocava, por exemplo meu pai eu lembro do meu pai

faze isso, era um pedaço pros Marchesini, pedaço pros Caberlon, pedaço pros

Postalli, e assim quando eles carneava então também voltava o pedacinho

Entrevistador: claro, cada um se ajuda como pode né

Entrevistado: e era uma tradição assim porque não tinha o que tem hoje, geladeira,

freezer pra conservar essas coisa então quando vinha um pedaço assim era uma

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festa, magina, era uma coisa nova né, outras coisas assim vai se perdendo porque a

gente fala, aqui em casa ainda quando vem meus sobrinhos a gente fala muito desses

antepassados, o que fizeram pra construção da igreja a construção da comunidade, a

gente fala muito dessas coisa, ma te garanto que tu vai pergunta pra um rapaz ali de

14 15 anos uma moça, não sabe nada, porque quando conversa também, agora tem

aqueles celulares ali, ninguém escuta ninguém (risos)

Entrevistador: sim

Entrevistado: então eles não ficam sabendo né das coisa

Entrevistador: é uma pena mesmo

Entrevistado: é uma pena, ta se perdendo muita coisa

Entrevistador: sim, então ta dona Renata, eu acho que então a gente converso

tudo que tinha pra conversa, muito obrigado pelo seu tempo

Entrevistado: denada, magina

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APÊNDICE E – Entrevista com Hilário Basílio Onzi

Hilário tem 83 anos, nasceu e reside em São Virgílio da Segunda Légua, no

interior de Caxias do Sul-RS. Entrevista realizada no dia 13/05/2018, em sua casa.

Entrevistador: Então seu Hilário seguinte, o senhor já foi pra Itália alguma vez?

Entrevistado: não

Entrevistador: tem vontade?

Entrevistado: pouca, tem muita coisa boa aqui pra olhar, não se vai nem aqui

Entrevistador: o que que o senhor acha assim que vai encontrar lá se fosse

assim, porque que?

Entrevistado: eu gostaria de ir até, até essa semana aqui tivemo uma janta ali com

meu amigo, ele tinha recém chegado da Itália, eles gostaram muito, sabe que me deu

vontade de ir, senti o que que eles viram lá, coisa séria, não é nem de acredita

Entrevistador: é, da história que eles contaram?

Entrevistado: do que que eles contaram lá, muito bonito, seria bom ir, ma já to com

uma idade meia avançada

Entrevistador: a mais isso não é o problema

Entrevistado: é ma, não tem mais aquele, aquela vontade né, pra ir né

Entrevistador: quem da sua família veio da Itália?

Entrevistado: veio meu nono Basílio, e minha vó, Rosina Onzi, Rosina Onzi e Basílio

Onzi, vieram lá da Itália

Entrevistador: entendi, e eles, o senhor lembra de alguma história que eles

contavam de como era a vida deles lá?

Entrevistado: não, não, muito pouco, olha que não, eu sei que lá passaram errado né,

porque fugiram de lá, vieram pra cá, não sei quantos anos ele tinha, tinha 13, 14 ano

quando vieram pra cá e aqui não tinha nada, se botaram aqui ganharam essa terra

aqui, pagaram 33 réis, pagaram essa terra aqui, e sempre ficou nossa, dos Onzi,

sempre fico

Entrevistador: entendi

Entrevistado: até hoje, ma como eles passaram lá, não te respondo porque não sei

nada

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Entrevistador: ta, e então por exemplo, o que o senhor consegue me dizer assim

da comida que vocês comiam quando eram mais jovens assim, junto com os

avós?

Entrevistado: era coisa boa (risos), eu me recordo não só do nono Basílio, do meu pai,

posso conta do pai?

Entrevistador: pode, claro

Entrevistado: do meu tio Rico que ficaram anos aqui junto com o tio Rico e meu pai,

quando eles matavam um porco, ali que é coisa boa (risos)

Entrevistador: porque, o que que acontecia?

Entrevistado: porque se tinha aquele fogo, aquela brasa pra esquenta a água pra mata

o porco, daí abria o porco, tirava toda aquelas miudeza dentro e botava no espeto,

salgava, botava em cima da brasa e comia na hora

Entrevistador: na hora?

Entrevistado: que coisa boa, dá saudades hoje de come isso ali, botava bastante

pimenta em cima

Entrevistador: a é mesmo? Pimenta?

Entrevistado: pimenta e sal e dava uma sapecada nas brasa e a gente comia, ma que

coisa boa

Entrevistador: que legal, e hoje, como é hoje, a diferença?

Entrevistado: muito diferente, isso aí não existe não, isso ai não tem mais

Entrevistador: não conhecia essa do

Entrevistado: a, tu não sabia?

Entrevistador: não

Entrevistado: mas essa ali é verdadeira, porque quantas vezes que eu ajudei a come

isso ali, mas agora isso não existe não, não tem

Entrevistador: mas porque, que que aconteceu? Porque?

Entrevistado: a, falta mão de obra, que cria porco por exemplo tem que trabalha, e

não tem ninguém, não tem ninguém que trabalha, que pra te criação tem que planta

também que se não tu vai compra, não adianta compra

Entrevistador: muito caro?

Entrevistado: claro, ma daí não resolve nada né

Entrevistador: e o que que o senhor diria então assim da comida de hoje, o que

vocês normalmente comem em casa hoje?

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Entrevistado: aqui em casa eu te digo a verdade, é todo... 3, 4 vezes por semana é

um espeto de carne na churrasqueira, porque é menos mão de obra, moro aqui eu e

a Renata só, então bota só um espeto de carne na churrasqueira ali e se come com

massa ou pão, salada, isso ali, sem vinho, porque vinho não se toma (risos)

Entrevistador: porque?

Entrevistado: não vai (risos), água, água, o vinho não, porque uma vez eu tinha

problema de ácido úrico e o médico me tiro, tu não toma mais vinho por um mês, tu

não me come nada de carne, isso ali, e eu fiquei um mês sem come isso ali, ma carne

continuo, mas pouco, não so muito de come carme, no no, e nunca mais tomei vinho

e não me vai mais, não me vai mais, não tem jeito

Entrevistador: bom, se não tem mais então

Entrevistado: é claro, agora me curei do ácido úrico com isso aí

Entrevistador: que bom

Entrevistado: não tenho mais ácido úrico

Entrevistador: sim, o senhor lembra de alguma história ou conhece alguma

coisa a respeito da história da formação de Forqueta assim, como ela surgiu?

Entrevistado: Forqueta?

Entrevistador: é, Forqueta numa geral assim eu digo, toda essa região aqui

Entrevistado: ma que que eu vou te conta, eu sei que antigamente era só estrada aqui

que vai aqui passa na frente da capela São Martinho, desce e tem que dá toda a volta

lá, porque não tinha essa estrada, não tinha, tinha que desce aqui, São João e sobe

na Forqueta, ma lá não me recordo

Entrevistador: o senhor sabe porque que o nome é Forqueta?

Entrevistado: não

Entrevistador: não?

Entrevistado: não, não sei

Entrevistador: ta, não tem problema, e assim o por exemplo, nas festas, quando

tem festa na comunidade lá, que que o senhor conhece?

Entrevistado: na Forqueta?

Entrevistador: no lugar que vocês frequentam aqui, não sei se é São Virgílio?

Entrevistado: é aqui em São Virgílio, não eu gosto da festa aqui em São Virgílio, todo

mundo de acordo, se faz uma festa muito bonita, bom tu foi ainda em festa aqui né?

Entrevistador: já, já fui

Entrevistado: é boa a festa né?

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Entrevistador: claro

Entrevistado: e a gente tem que se ajuda né, participa, se não não sai nada né, e tu

fica sempre em casa como é que não pode sabe alguma coisa né

Entrevistador: sim, e a comida dessa festa, o que que o senhor acha?

Entrevistado: muito boa

Entrevistador: que que tem?

Entrevistado: primeiro lugar sopa de agnoline (risos), leso, churrasco de gado, de

porco, de galeto, salada vinho, refrigerante, pão

Entrevistador: e o que que o senhor acha assim que não pode, se falta ta errado?

Entrevistado: a não, tem que te a vontade, porque tu paga e vai na mesa que não vem

nada

Entrevistador: mas eu digo assim, por exemplo, dessas coisas que o senhor me

conto agora, se faltar alguma delas?

Entrevistado: só fala que o garçom vem

Entrevistador: por exemplo se não tem na festa, se não tiver?

Entrevistado: a se não tive, vão faze o que

Entrevistador: qual dessas comidas o senhor acha que se não tive na festa dai

vai, vão reclamar?

Entrevistado: a, eu se não tivesse galeto pra mim é a mesma, é porque eu não como

carne de galeto, não gosto não vai

Entrevistador: entendi

Entrevistado: e a gente come o leso, pedacinho de churrasco, carne de porco, ma

muito poco, salada

Entrevistador: assim, em relação por exemplo a tradição, por exemplo, uma

coisa que seu bisavô fazia aí o seu avó fazia igual ele fazia, por que foi

aprendendo um com o outro, daí agora o seu pai também fez porque aprendeu

e hoje o senhor também faz

Entrevistado: sim

Entrevistador: porque é uma coisa que vocês foram aprendendo assim um do

outro?

Entrevistado: por exemplo, parreira né, parreira eu aprendi do meu pai, porque o

Basílio eu não conheci ele, porque morrero muitos anos atrás, ma eu fui aprendendo

com meu pai o negócio de planta parreira né, tem que, dá mão de obra isso, construí

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um parreiral não é fácil, porque tem que planta as muda, poste, o arame, e aprendi

tudo do meu pai isso ali

Entrevistador: e ele já fazia com o avó?

Entrevistado: sim, com o nono Basílio né, o pai do meu pai

Entrevistador: sim, e o que que o senhor acha assim por exemplo dessas coisas

assim que vocês aprendiam um com o outro e agora seus filhos e os seus

netos?

Entrevistado: e agora

Entrevistador: que que eles aprenderam assim e vão leva, ou o que eles não

querem faze?

Entrevistado: agora, meus netos por exemplo não aprendeu nada da colônia porque

nasceram na cidade, então na cidade, agora meu filho que trabalha mesma coisa que

o pai, só que mora na cidade né, ma ele sabe faze tudo o negócio da colônia

Entrevistador: e o dialeto? Vocês falam?

Entrevistado: ele entende tudo mas não fala (risos), meus filho tem quatro guri, o

Gilmar meu rapaz, pode fala tudo em italiano, entende tudo ma não fala, não fala, são

criados na cidade né

Entrevistador: daí perde né?

Entrevistado: sim, sim

Entrevistador: então era isso seu Hilário, acho que o que eu tinha pra perguntar

pro senhor era isso, não sei se o senhor lembro de mais alguma coisa assim pra

me conta?

Entrevistado: ma que que eu vo te conta (risos)

Entrevistador: a dona Renata me conto uma história do seu bisavô eu acho, que

ele plantava milho, e o milho tava sumindo, e eles foram ver o que que tava

acontecendo com o milho, o senhor não lembra?

Entrevistado: o negócio dos bicho que comia?

Entrevistador: é

Entrevistado: sim, sim, tinha um paiol ali em baixo, acho que ela contou a mesma

história

Entrevistador: vamos ver

Entrevistado: (risos), ele fez uma, como que é que diria, uma repuca, tu sabe que que

é? E botaram uma porta e encheram o paiol de milho e os porco javali entraram numa

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noite lá, e no dia seguinte o meu nono foi lá ve tinha 14 porco do mato dentro, fecharam

no paiol

Entrevistador: imagina a festa

Entrevistado: sim, daí mataram não sei como, a paulada eu acho (risos), era isso que

ela conto?

Entrevistador: sim

Entrevistado: (risos)

Entrevistador: então é isso seu Hilário

Entrevistado: tu que pede mais alguma coisa, que eu possa ajuda

Entrevistador: não, é que meu trabalho ele envolve essa questão da comida

assim através dessas coisas que acontecia, porque a gente, porque por exemplo

eu queria ve assim o quanto de Itália pura a gente teria hoje aqui

Entrevistado: sim, sim

Entrevistador: mas como a gente tem essa quebra ali né, porque o pessoal que

veio de lá veio, passo necessidade então não era fácil né, então não tinham as

mesmas coisas né, pra trabalha, por exemplo não tinha a disposição o que

tinham lá né, e por mais que tinha não era igual então tinha que refaze algumas

coisas né

Entrevistado: sim, sim por que também não existe, existem moinho aqui em roda, tinha

um moinho lá em Menino Deus, lá no outro lado lá, o que que fazia, nem a estrada

não existia, cortava o mato com o saco de milho nas costa e ia no moinho lá em baixo

Entrevistador: pra te farinha de milho?

Entrevistado: faze farinha de milho pra polenta, e que negócio né?

Entrevistador: e esse milho era plantado aqui?

Entrevistado: plantado aqui, colhia o milho, plantava no saco botava nas costa, cortava

o mato e ia embora, de a pé, olha que passaram errado né?

Entrevistador: pois é, e quando que paro de faze isso?

Entrevistado: daí começaram a construir em roda aqui né

Entrevistador: a dai tinha moinho mais perto?

Entrevistado: sim, mais perto

Entrevistador: mas e quando que será que, o senhor lembra quando paro de usa

esses moinhos?

Entrevistado: não, não, não

Entrevistador: porque hoje a gente compra farinha no mercado né?

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Entrevistado: a bom, hoje tu vai lá com dinheiro, tu compra o que tu qué, sem trabalha

(risos)

Entrevistador: mas é interessante isso né, porque dai a farinha ela tinha outra

qualidade né?

Entrevistado: a ela é mais boa, o moinho porque hoje por exemplo tem um moinho

aqui Nossa Senhora Salete, que trabalha que nem antigamente

Entrevistador: a é?

Entrevistado: sim, sim, faz farinha de milho com, com aquele moinho com mola de

pedra

Entrevistador: bah, que legal

Entrevistado: não é que nem aquelas indústria de hoje, é só mola de pedra né, ma o

milho com farinha muito boa, o meu cunhado Ernesto vai sempre lá no moinho, Nossa

Senhora Salete ali, tu conhece?

Entrevistador: não

Entrevistado: é ali, seria interessante pra ti ir lá

Entrevistador: é verdade, seria mesmo

Entrevistado: tu vai lá, até meu parente lá, a gente se dava barbaridade

Entrevistador: e o trigo, vocês tinham, plantavam trigo aqui?

Entrevistado: sim, sim

Entrevistador: e ai fazia essa mesma moagem lá?

Entrevistado: sim, a gente plantava milho, sim, trigo e vinha a máquina bate né, e

pegava primeiro ano que a gente não tinha condição montava numa mula com o saco

em cima, sacos comprido, dois metro (risos), montava em cima da mula e ia no

moinho, daí nesse moinho próprio, o próprio trigo eles te moinha, tu esperava tu vinha

pra casa com a farinha do teu trigo, hoje não existe mais isso ali né

Entrevistador: e daí a qualidade do que faz depois é muito diferente

Entrevistado: mas era uma farinha muito boa, com o teu trigo né

Entrevistador: sim, que pena né que isso foi se perdendo né

Entrevistado: claro, não tem mais, depois não me recordo mais qual é o governo que

foi que tiraram os moinho, não podia mais moe, tu não sabia isso ali?

Entrevistador: não

Entrevistado: o, isso aqui é verdade

Entrevistador: que coisa

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Entrevistado: é, a gente não podia mais ir no moinho, tu tinha que compra a farinha

então, o teu próprio trigo não podia mais, porque tiraram o moinho tu vai moe aonde?

Nós tinha um moinho aqui longe 1km ali, na descida na ponte tu sabe? Que vai a

Caxias ali, ali era o nosso moinho, agora tiraram tudo

Entrevistador: então tá seu Hilário, acho que era isso então

Entrevistado: ta bom

Entrevistador: pra mim ta suficiente

Entrevistado: tu que sabe (risos)

Entrevistador: muito obrigado

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APÊNDICE F – Entrevista com Élide Marchesini

Elide tem 75 anos, nasceu e reside em São Virgílio da Segunda Légua, no

interior de Caxias do Sul-RS. Entrevista realizada no dia 13/05/2018, em sua casa.

Entrevistador: então a primeira coisa assim que eu queria sabe é se tu já foi pra

Itália?

Entrevistado: não

Entrevistador: porque?

Entrevistado: meu filho foi esses dias, ele queria que eu fosse, só que meu esposo

não me acompanha ele não gosta de viaja

Entrevistador: a que pena

Entrevistado: se não eu teria ido, então meus avós são de lá né, veio da Itália meu

avô mesmo, então sou de origem italiana

Entrevistador: sim, então qual foi, o seu avó foi, ele é de lá?

Entrevistado: é de lá, veio com 5 anos de idade

Entrevistador: sim, e aí?

Entrevistado: veio junto com a família né, eles vieram em 10 irmãos

Entrevistador: e aí ele veio com 5?

Entrevistado: 5 aninhos ele veio meu avô, depois aqui então se dividiram assim, eles

vieram de, a maioria vinha de Tirol, de Padua, Vicenza também, vinham de navio, até

aqui São Sebastiao do Cai que na época demorava muito a viagem deles né, inclusive

faleceu um irmão dele na viagem, que nasceu né, jogaram no mar, porque não tem

como né

Entrevistador: não pode ficar junto né

Entrevistado: isso, não podia fica junto, e daí eles de São Sebastião do Cai eles vieram

até Nova Milano, que Nova Milano tinha um barracão que recebia os imigrantes que

vinham de lá, só que daí eles permaneciam um tempo lá até que eles ganhavam o

lote deles, pra poder ir morar e começa a construir a casinha deles e tudo, então o

governo deu umas sementes pra eles e umas ferrameta né, não muitas, mas o

necessário e ai eles entraram pelo mato, que só tinha mato naquela época né, floresta,

floresta fechada, e eles começaram a derrubada de árvores, e cortaram, fizeram as

tabuas, as coisas pra construir as casinha deles, que era coberta com tabuas, ainda

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lembro do meu pai que ele tinha uma casinha na lavoura assim tudo coberta com

tabuinhas pequenas assim, e era as telha dessas propriedades, e meu pai sempre

contava que meu bisavô eles tinham bastante criança né porque naquela época era

tudo famílias grande, então diz que um sempre ficava de plantão de noite em redor da

casa fazendo fogo para afasta os animais ferozes que eles comiam as crianças

Entrevistador: nossa, sério?

Entrevistado: então eles tinham que fica cuidando e sempre com fogo que aí o bicho

tinha medo de fogo porque diz que vinha onça, vinha leão, vinha esses bicho, então

eles ficavam um de plantão pra pode cuida das crianças

Entrevistador: e isso já aqui?

Entrevistado: aqui, ali no meu irmão que tem ainda o escavo assim onde foi construído

a casinha deles, e eles se alimentavam então, naquela época eles se alimentavam

mais de caça, porque não tinha outra coisa pra come, e como tinha pinheiros e o

pinhão, na época do pinhão, então eles comiam mais carne, do que outras coisas,

depois foram derrubando o mato e aí então eles começaram a planta, plantavam a

coisa principal que começaram a planta porque o italiano gosta muito de polenta,

então eles plantaram milho né, só que só tinha um moinho que era lá em Nova Milano

e como aqui é longe até lá né e não tinha transporte não tinha nada, então eles tinham

que carrega nas costas, então eles pegavam aquele saco de milho e iam, porque

demorava horas pra chega lá né, pra ir no moinho, então lá faziam a farinha, pra

depois faze a polenta pra come junto com a carne né e ai então os pais sempre diziam

pros filho: comam carne poupem a farinha. Porque era muito sacrifício ir até lá, muito

trabalho

Entrevistador: e a carne tinha mais

Entrevistado: e a carne eles caçavam, eles adoravam a caça, os italiano “bah”, pra

caça é, então tudo que era bicho eles matavam e comiam né, então era mais fácil pra

eles do que a polenta, isso eles foram derrubando mato, fazendo as moradia deles, e

assim foi né, até hoje agora estão progredindo, e o italiano gosta, gostava muito de

regiões assim onde tinha mato porque tinha caça e os alemães em vez eles gostavam

de planície, no plano, por isso que é aqui que os italiano são tudo em cima desses

morro (risos), eles sempre procuravam construir a moradia deles perto de uma

vertente, pra te água

Entrevistador: pra ter água

Entrevistado: água boa

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Entrevistador: a senhora conhece alguma história de antes da vinda, como era

a vida deles lá?

Entrevistado: lá era de muito sacrifício, diz que passavam, eram muito podres, o

governo diz que não ajudava em nada, por isso que eles se afastavam de lá e vinham

pra cá, por causa que lá não tinha, não tinha futuro, tinha muita população, e aqui não

tinha então eles vieram pra cá

Entrevistador: entendi, e assim em relação ao que vocês comem hoje assim, no

dia-a-dia

Entrevistado: hoje? Ish, hoje a gente passa bem (risos), hoje a gente passa bem

porque a gente tem tudo que qué né, naquela época por exemplo tu comia tomate só

na época né, quando tu plantava que vinha porque não era sempre que dava, agora

com as estufa, com todos essas coisas novas que tem ali, tem toda hora, todo dia, vai

no mercado se não tem aqui eles vem de fora né, então agora é super bom

Entrevistador: e tu acha que mudo muito, que que era antes e hoje, por mais que

tenha essas facilidades assim, tu acha que é muito diferente?

Entrevistado: mudo muito, muito, principalmente depois que começo essa informática,

essas coisas ali então bah, a juventude é bem diferente agora, eles não conhecem

nada dos sacrifícios dos antigos (risos)

Entrevistador: e se a senhora tiver que me dizer assim a comida que vocês mais

gostam de comer?

Entrevistado: Agora? hoje?

Entrevistador: agora, é, é

Entrevistado: ó, aqui em casa se come de tudo né, mas o macarrão é

Entrevistador: a é?

Entrevistado: as minhas neta quando vem na casa da vó é ‘vó faz os macarrão’, o que

elas adoram é o macarrão e o sagu com creme, que ainda são comidas antigas né,

embora que os primeiros não tinham maquina pra faze os macarrão né, então eles

amassavam a massa com o rolo em cima da mesa né e cortava assim, mas

Entrevistador: mas isso era regular assim, como é que era, porque a farinha

branca também era difícil né?

Entrevistado: era difícil, porque só tinha aquele moinho lá, eles tinham que ir com o

trigo, tinha que planta o trigo

Entrevistador: então o mesmo movimento do milho fazia com o trigo

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Entrevistado: isso, era com o trigo também, só que não tinha aqueles fermento de hoje

rápido e tudo, tinha que faze dois ou três dias antes com batatas sal e água não sei o

que que botava lá, e depois fazia o pão, mas aquele pão, aquela farinha, não era que

nem agora branquinha tudo assim, era bem

Entrevistador: a senhora acha que agora é melhor ou antes era melhor?

Entrevistado: bom, pela comida, mas claro que agora é muito melhor

Entrevistador: é mesmo?

Entrevistado: sim, porque tu tem de tudo agora, e naquela época só tinha, é tudo

limitado né porque a família era grande, tudo famílias de 10 12, tive uma tia que ela

tinha 21 filhos

Entrevistador: nossa, é muita gente

Entrevistado: muita gente, então pensa bem a mesa, quando tu vai a mesa tinha que

se polenta, batata, e coisa assim bem rápida que dá pra faze né

Entrevistador: agora pensando um pouquinho na parte assim da história de

Forqueta assim, da formação, dos primeiros, dos lotes, dos primeiros lotes que

foi distribuído, a senhora conhece alguma coisa dessa época? Tem alguma

história da formação da região aqui?

Entrevistado: daqui da, do distrito de Forqueta?

Entrevistador: isso

Entrevistado: Forqueta foi fundado com a cooperativa né, a cooperativa de Forqueta

foi uma das primeiras que o meu vô por parte da minha mãe ele foi um dos fundadores,

eles eram parece que 13 sócios que fundaram a cantina

Entrevistador: cantina pro vinho?

Entrevistado: sim, então é uma cooperativa, e ai então esses fundadores eles, tu sabe

os italianos gostavam muito de vinho também, então trouxeram umas muda de

parreira da Itália, porque quando eles vinham eles não podiam trazer muita bagagem

então alguma coisa um ou outro traziam depois eles se passavam né, e plantaram,

então ai começaram com o cultivo da parreira né, então eles tiveram que arruma uma

cooperativa, pra pode fabrica o vinho porque nem todos tinham maquina essas coisas

né, e a cooperativa de Forqueta foi uma das primeiras do município

Entrevistador: e o nome Forqueta a senhora sabe a origem

Entrevistado: origem, a origem de Forqueta não, só sei que foi pela cantina ali que eu

tinha conhecimento

Entrevistador: aí a partir da cantina foi se desenvolvendo

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Entrevistado: isto, isto, ainda continua só que ta tudo caindo aos pedaços lá

Entrevistador: é uma pena né

Entrevistado: agora se tornou museu né, então aí

Entrevistador: eu já visitei ali

Entrevistado: a tu já visitou

Entrevistador: é bem legal, e acho que já me contou um pouco dessa comida

primeira aí que o pessoal preparava então, preparava o que tinha por perto

Entrevistado: o que tinha por perto

Entrevistador: o que conseguia planta

Entrevistado: os primeiros né, depois então veio, que eu me lembro da minha mãe

também que ela fazia muito quando eles faziam uma festa, bolinhos de batata, fortaia

que era comida mais assim né, e a bastante coisinhas assim diferente, minha mãe era

muito caprichosa, ela gostava de faze os pratinho dela bem enfeitadinho, ela botava

uns bife à milanesa nos bolinho de batata assim sabe

Entrevistador: tudo ajeitadinho

Entrevistado: é, bem ajeitadinho, uma gostosura que eles vão, e depois o mais rápido

que eles faziam assim em dia de semana era o nhoque, o nhoque

Entrevistador: por causa da batata

Entrevistado: não mas fazia, minha mãe fazia sem batata

Entrevistador: a é?

Entrevistado: sim, tem um tipo que, eu faço sem e também meu esposo gosta, aí é

bem fácil aquele de faze

Entrevistador: é farinha só?

Entrevistado: não, ele bota dois ovos, sal a gosto, um pouquinho de sal né e três

xícaras de água, e a farinha o necessário, vai amassando assim, mexendo bem não

que fica muito duro nem muito mole né, pra depois bota numa panela com água

fervendo né, com sal ai joga as colherada assim dentro, e deixa cozinha lá uns 40

minutos, depois coa põe o molho que quisé por cima, um queijinho ralado, fica uma

delicia

Entrevistador: uma delícia, fiquei com fome agora (risos)

Entrevistado: (risos) esse é um prato assim rápido e que o pessoal fazia muito

Entrevistador: sim, e as comidas, a senhora até comentou um pouquinho das

festas assim o que que a senhora lembra?

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Entrevistado: as festas antigamente era uma festa por ano que eles faziam na

comunidade, não tinha salão, tinha assim, só tinha a igreja e um pequeno boteco,

bodega eles chamavam né, e nesses festas então o pessoal ia pra festa, então vinha

de todas as comunidades da redondeza né, e nessas festa então a família fazia em

casa a festa, então me lembro que lá em casa tinha uma sala grande então a gente

estendia aquela mesa que cabia lá umas 20, 25 pessoas, e ai a gente na festa

convidava, então a fulano tu vem na minha casa hoje almoça, convidava o outro e

convidava, e todos os convidado tu formava esse grupo, e quando a gente ia pra festa

da comunidade deles eles faziam a mesma coisa, então a gente ia almoça numa casa

numa festa na outra ia almoça numa outra e era tão bom, tão bom porque o pessoal

conversava e, ai era uma maravilha, eu achava muito melhor que agora as festa

Entrevistador: que que é agora?

Entrevistado: agora é assim sabe, tu chega no salão, todo mundo senta, todo mundo

come, vem o rifão e depois todo mundo vai embora, pronto quando é três hora já

acabo a festa, em vez ali na antigamente continuava até noite, pessoal conversava os

rapazes as moças, ai era muito melhor

Entrevistador: saia uns casamento

Entrevistado: casamento muitos, muitos porque o pessoal ia passear pra cá pra lá na

estrada enquanto os outros paqueravam (risos), era assim

Entrevistador: e a senhora lembra, sabe me dize assim quais eram as comidas

que mais serviam nessas festas das casas?

Entrevistado: das casas não tinha nada de churrasco, naquela época nem

churrasqueira tinha, quando eles faziam, faziam numa cova, buraco na terra né e

cozinhava lá, ma lá na minha, no meu pai lá então a mãe fazia os frango temperado

no dia seguinte e botava no forno, forno a lenha e deixava lá toda a manhã, cozinhava,

quando chegava o meio dia tava bem vermelhinho assim, ai ela cortava em pedaço e

colocava nos prato e fazia um brodo, um caldo assim de galinha que deixo dias na,

fechada né que daí então elas ficavam gorda, bonita, ai matavam e faziam a sopa, e

fazia agnoline, aqueles agnoline

Entrevistador: já naquela época?

Entrevistado: sim, sim, os agnoline trouxeram da Itália aqueles agnoline, então a

receita né, então eles iam fazendo os agnoline, então só no dia de festa que tu comia

os agnoline, os galeto assim

Entrevistador: e hoje?

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Entrevistado: a hoje é diferente, hoje o churrasco é o prato principal porque uma que

é mais fácil de faze, mais rápido, o pessoal não que trabalha muito, e é diferente hoje,

hoje tem maionese essas coisas toda, ao invés daquela época lá a gente fazia uma

salada de batata com ovo ma tudo picadinho dentro assim no, nada de maionese,

bem diferente

Entrevistador: entendi

Entrevistado: e a minha mãe fazia aqueles prato com, eu adorava quando chegava a

festa, que ela botava aqueles bife à milanesa com aqueles bolinho de batata, bolinho

de batata, ela fazia que nem um croquete assim sabe, cozinhava as batata, ela

cozinhava as batata, um quilo de batata, dois ovos, duas colheres de sopa de farinha

de trigo, sal ela botava um pouquinho de salsa, um pouquinho de pimenta a gosto e

depois esmagava tudo e modelava, fazia uns croquete, passava na farinha de rosca

ou farinha de trigo e fritava, ficava uma delícia

Entrevistador: uma delícia

Entrevistado: bem cozido assim, ela botava nas, a eu adorava aquele prato (risos)

Entrevistador: parece muito bom, e assim o, pra gente coloca na conversa agora

aqui essas questões de tradição assim, o que que a senhora entende que o seu

vô fazia e a sua mãe e seu pai faziam aí hoje a senhora faz também, ai tento

passa pros filhos, essa coisa né que a gente vai passando de geração em

geração

Entrevistado: embora que hoje, hoje não tem mais aquela, antigamente o pessoal

assim de lazer essa coisa, eles iam muito no filó, de noite, então eles iam nas famílias,

porque não tinha rádio, não tinha nada pra se comunica, não tinha, então eles

tratavam, bom tal noite nós vamo na família tal, vamo faze uma surpresa, alguém

estava de aniversario, bom na minha família por parte do meu pai, todo mundo tocava,

então lá era bandeon, era acordeon, era, então era aquela festa, então cada um levava

alguma coisa pra comemora lá, um bolo, uns grostoli, alguma coisa eles faziam né,

então lá dançavam pulavam dentro de casa assim, era uma beleza, dia de hoje não

tem mais isso, porque hoje é só internet, é tudo, tv, e fica na tv olhando, só essas

coisa agora, mas aquela época era muito bom essas surpresa, esses filó, ai faziam

pipoca, cozinhava amendoim e ia de tudo, pinhão

Entrevistador: e a comida tava sempre presente né

Entrevistado: sempre

Entrevistador: tinha música, tinha festa, tinha dança, mas a comida tinha que te

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Entrevistado: sempre, sempre, a comida sempre, sempre, sempre, italiano não gosta

muito de come (risos)

Entrevistador: e gosta muito também de dar valor assim ao ingrediente né,

Entrevistado: sim, isso

Entrevistador: assim antes de virá uma comida né

Entrevistado: sim, sim, são bem gostosos a comida que eles faziam e que a gente

continua fazendo também

Entrevistador: e a senhora acha que seus filhos, seus netos vão da essa mesma

importância assim?

Entrevistado: olha meus filho continuam, porque tenho um filho, tenho uma filha e o

filho bah, tudo que é coisa de antigamente ele adora

Entrevistador: a é, que coisa boa

Entrevistado: ele gosta de tudo, de foto, de, tudo que é coisa assim, bom todos os fim

de semana ele ta aqui em casa, ele tem que vim, hoje ele vem também daqui a

pouquinho ele deve ta ai

Entrevistador: hoje ele tem que vir né

Entrevistado: sim, as minha neta, tenho duas neta só então elas, uma ta se formando

agora arquiteta e a outra ta tirando administração de empresa, então já elas não vão

mais naquele que nem nós assim né, de trabalha faze comida essas coisa toda,

porque o dia de hoje tem empregada né então eles, facilita, é que elas trabalham fora

né então se obrigam, se obrigam a pega empregada né, faxineira essas coisa toda,

mas nós continuamo na tradição

Entrevistador: aí perde um pouquinho dessa mão ali né

Entrevistado: perde, perde, perde porque não é mais que nem uma vez né, que hoje

tem mais facilidade também né, então é diferente

Entrevistador: o Irineu me conto que a senhora foi professora dele

Entrevistado: fui (risos), trabalhei 43 anos, sempre uni docência, com todas as séries,

primeira à quarta séries

Entrevistador: e o que que a senhora leciona?

Entrevistado: lecionava tudo

Entrevistador: tudo?

Entrevistado: tinha que ensinar todo, da primeira à quarta série todas as matérias,

todas, todas, todas, e ainda fazia a merenda, preparava as merenda pras criança

Entrevistador: então a escola era sua?

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Entrevistado: sim, ela tava aqui inclusive, eu tenho uma foto depois eu te mostro, tava

ali em baixo perto do Irineu ali onde tem aquele quiosque, ali na frente ali, trabalhei ali

acho que uns, antes mesmo foi lá em São Virgílio, lá na igreja, tinha uma escolinha lá,

depois eu, não sei quantos anos fiquei lá acho que uns 20, nem lembro mais, depois

eu vim pra cá, então perto aqui eu trabalhei mais acho uns 19, 18 19 anos, depois

ultimamente quando eu me aposentei eu trabalhei aqui em Conceição da Linha Feijó,

ali eu trabalhei mais 4 5 anos com pessoal de bairro assim, ai aquela pobreza, criança

deficiente, ai eu tinha um pouco de tudo, mais ai então tinha mais professoras então

ali eu trabalhei assim mais com as crianças que tinham problemas de primeira série

porque as outras profe. não queriam, não gostavam, e eu sempre gostei de criança,

então adora isso aí, mas se não aqui pra baixo sempre com uni docência, todas as

turma

Entrevistador: trabalhão né

Entrevistado: é, era matemática, era português, era história, era geografia, era

religião, era tudo, tinha que dá tudo, e com quatro séries, então tu tinha que alfabetiza,

tu tinha a primeira, segunda, terceira e quart, então tu dava aqui ali e vai, era uma

ginastica (risos)

Entrevistador: e era em português?

Entrevistado: toda sim, mas eu no começo era assim em italiano né, depois veio um

tempo que o governo proibiu fala em italiano

Entrevistador: é

Entrevistado: então foi tudo

Entrevistador: mas aí a senhora teve que ensina as criança também a volta a

fala português ou começa a fala português

Entrevistado: sim, tudo português, depois foi tudo português comigo né, mas quando

eu ia pra aula né, quando eu era criança tinha esse problema do italiano

Entrevistador: sim, em casa só falava

Entrevistado: sim, sim, mas eu falo tudo em italiano, meus filho entende tudo, só não

fala em italiano, mas eles entende tudo, então fala tudo em italiano aqui em casa

sempre, sempre, sempre, continua (risos), não sei parece que é mais fácil né, não sei

se é porque a gente foi criado com os pais a família sempre falando italiano então

parece que, mais rápido

Entrevistador: sim, é a primeira coisa que vem (risos)

Entrevistado: (risos) é bem assim

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Entrevistador: então tá, eu acho que é mais ou menos ai assim o que eu preciso

assim, acho que nossa conversa é essa

Entrevistado: não sei se pra ti deu

Entrevistador: é assim, em relação as minhas etapas ali eu cumpri elas todas

aqui então não sei se a senhora lembra de mais alguma coisa que acha que é

relevante pra essa história aí

Entrevistado: olha eu, a gente tem muita coisa pra conta de história né, só que no

momento a gente não lembra tudo né, então é mais

Entrevistador: então tá, acho que então finalizamos

Entrevistado: certo

Entrevistador: muito obrigado

Entrevistado: a magina