Tadeu Chiarelli

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  • 8/18/2019 Tadeu Chiarelli

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    Texto disponível em: http://www.projetoleonilson.com.br/textos.php?pid=5 

    COLOCANDO DOBRADIÇAS NA ARTE CONTEMPORÂNEA

    Tadeu Chiarelli

    É possível caracterizar uma parte significativa da produção artística internacional desde

    o final da II Grande Guerra pelo progressivo afastamento da subjetividade e da

    expressão do eu do artista, rumo a uma persistente apropriação de uma lógica produtiva

    artificial e anônima, típica das sociedades industriais e pós-industriais, e a seus signos

    mais evidentes. O uso de elementos modulares, o caráter serial e a impessoalidade das

     peças e imagens transformadas em ícones são a marca registrada dessas produções. Esse

     processo pode ser acompanhado mediante certas tendências surgidas e/ou desenvolvidas

    nos Estados Unidos e depois internacionalizadas. Querendo romper com a noção de arte

    como maneira de recriar o mundo a partir da auto-expressão e das regras tradicionais da

    composição, esses artistas conceberam seus trabalhos a partir da própria estrutura

    sugerida pela gestalt dos módulos que usavam. A abstração pós-pictórica, a pop art, a

    minimal (e seus herdeiros mais recentes) possuem como ponto em comum justamente a

    apropriação de uma lógica serial e modular. Assim, listas de cores justapostas

    equivalem a uma imagem fotográfica de Marilyn Monroe repetida indefinidamente que,

     por sua vez, possui o mesmo raciocínio básico de uma peça que consiste de um tijolo,

    colocado ao lado do outro, ou a um aspirador de pó colocado ao lado do outro.

    Como oposição e, ao mesmo tempo, desinência dessa vertente, desenvolveu-se uma

     produção que buscava enfatizar as propriedades físicas e/ou químicas da matéria natural

    ou semi-industrializada com mínima ou nenhuma intervenção do artista. A corda, a borracha, o chumbo, o vidro foram investigados em suas capacidades de resistência no

    espaço e no tempo. Rasgar, romper, torcer, jogar - ações precisas e determinadas sobre

    ou contra a matéria - era o imperativo dessa tendência.

    Tanto naquelas primeiras vertentes (que, por comodidade, poderiam ser aglutinadas sob

    a denominação "minimalista") como na última ("pós-minimalista"), a autoria da obra é

    subjugada a uma ação que, embora assumida pelo artista, não foi criada por ele. Quem

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    dá a tônica para a estrutura da obra é o módulo ou, no caso do pós-minimalismo, a

     própria matéria.

    II

    Refletindo sobre uma parcela significativa da produção artística brasileira

    contemporânea, percebe-se que a lógica que lhe dá base não é a mesma que estrutura

    essa produção norte-americana e internacional, descrita acima. Se nos Estados Unidos,

    na Europa e no Japão é a sociedade industrial quem dá as bases à ação do artista sobre o

    mundo, nesse segmento da produção brasileira são justamente os elementos de uma

    lógica pré-industrial que assumem uma importância preponderante.

    Se as peças de Carl Andre ou Jeff Koons explicitam uma inteligência exterior a si

    mesmas, da qual elas apenas se apropriam em uma operação que recupera, em última

    análise, o conceito de ready-made de Duchamp - Luiz Hermano, Efrain Almeida,

    Shirley Paes Leme, Edith Derdyk vivenciam aquela inteligência artesanal que está por

    trás de suas produções. Se Andre e Donald Judd posicionam um módulo ao lado do

    outro, se Richard Serra enrola ou vinca, dobra ou acumula, torce ou corta a matéria,

    Maria Clara Fernandes, Jac Leirner, Mônica Nador, Leda Catunda, José Leonilson...vão

    ligando um módulo ao outro, vão tramando, amarrando, costurando...

    Agindo mais no mundo e com o mundo do que propriamente sobre o mundo, esses

    artistas igualmente estão se apropriando de uma inteligência ou de uma racionalidade

    que é anterior a eles, e da qual não apenas se apropriam, mas a ela se integram. Suas

     produções incorporam à arte brasileira contemporânea justamente uma tradição

    artesanal não-erudita existente no país, uma tradição ainda não extinta, apesar (ou porcausa) do processo de industrialização descontínuo e cheio de vácuos pelo qual vem

     passando o Brasil há décadas.

    III

    Apesar de estruturalmente tão distantes da produção internacional citada, é interessante

    como os trabalhos desses artistas possuem uma característica bastante semelhante àsobras internacionais ligadas à minimal e ao pós-minimalismo. Como essas últimas, eles

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    tendem igualmente a obliterar a expressão do eu do artista, chegando em muitos casos

    quase a romper com o próprio conceito de autoria, uma vez que repetem procedimentos

    exteriores aos seus autores. Só que não pela lógica do processo industrial mas

     justamente pelo seu oposto: mediante inteligência artesanal que historicamente antecede

    aquele processo, mas que no Brasil lhe é concomitante. Esse caráter contemporâneo,

    conseguido pela negação de uma das bases principais da arte contemporânea

    internacional, é o que torna tão significativa a produção desses artistas que se inscrevem

    em uma espécie de tradição brasileira que se desenvolve já faz algumas décadas (não se

    deve esquecer que em seus "Bichos", Lygia Clark já usou uma lógica muito próxima a

    desses artistas).

    Hermano, Paes Leme, Derdyk, Fernandes Maiolino, Nador, Leirner e os outros, quando

    constroem seus objetos, pinturas ou esculturas, obedecem a padrões e à inteligência

    interna de certas técnicas preexistentes como a tecelagem, a cestaria, a pintura

    ornamental e outros procedimentos imemoriais. Apenas em um país como o Brasil,

    onde a industrialização não rompeu com o modo de produção que em outras nações a

    antecedeu, seria pertinente encontrar artistas que, ao operar com materiais

    industrializados e/ou naturais (não importa), resgatam com tanta intensidade e com

    tamanha propriedade práticas artesanais antiquíssimas.

    IV

    Dentro deste quadro de manutenção/ampliação das possibilidades de apropriação da

    lógica artesanal em trabalhos de arte contemporânea, existe um outro grupo de artistas

    que, apesar das conexões irremovíveis com os trabalhos daqueles citados acima,

    conseguem um outro tipo de singularidade. Fernando Lucchesi e Emmanuel Nassar, porexemplo, além da recuperação dos procedimentos pré-industriais de fatura, repropõem

    igualmente a própria gestalt de certos objetos e/ou imagens oriundas da cultura popular

    de suas regiões de origem. Nassar refaz as engenhocas tão visíveis na paisagem urbana

     paraense, ligando seus elementos constitutivos por meio de gambiarras e improvisações

    muito próximas da criatividade popular brasileira. Lucchesi, por sua vez, reconduz à

    cena artística atual a volúpia do barroco mineiro revitalizado por uma angústia

    contemporânea, na qual a matéria agressiva do metal não se conforma submissa à

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    imposição do espírito ornamental de suas peças, releituras de antigos oratórios e outros

    objetos do cotidiano mineiro.

    O gosto pelo ornamental, pelo arranjo e pela beleza boa de se ver é outra característica

    do trabalho desses artistas, ligando produções aparentemente tão distintas como as de

    Regina Johas e Luiz Hermano. Se a primeira contesta a racionalidade masculina que

    estrutura sua produção - operando com brocados e dourados tão femininos, sensuais e

    opulentos - , o segundo, na sua humildade estrutural de artesão, leva às últimas

    consequências o gosto de um ourives enlouquecido que amplia a beleza de seus adornos

     para serem melhor vivenciados pelo público.

    V

    Ainda cumpre ressaltar que, no interior dessa produção que repete procedimentos

    anônimos, ligados a tradições revelhas porém ativas em diversas regiões do país, muitas

    vezes a ânsia autoral sobrepõe-se a esses procedimentos, ora pela escolha dos materiais

    e processos escolhidos pelos artistas, ora pelo conteúdo explicitamente autobiográfico

     presentes em seus trabalhos. Nas tramas dos bordados e costuras de José Leonilson, nas

     pinturas de Montez Magno (cujos campos de cor remetem à arquitetura popular do

     Nordeste), nas montagens de Jac Leirner explicitam-se os desejos de auto-expressão

    desses artistas, em uma síntese perfeita - e aparentemente paradoxal - entre anônimo e

    autoral. Nas esculturas de Shirley Paes Leme, respira a natureza do Brasil Central, assim

    como nas peças de Maria Clara Fernandes, a vegetação do interior da Ilha de

    Florianópolis e o lixo urbano são transformados pela artista. Nos trabalhos de Edith

    Derdyk, nos de Jac Leirner e naqueles de Lia Menna Barreto, a cultura material de São

    Paulo e de outras grandes cidades é reproposta como processo de gestação que se dá notempo e no espaço. Nas peças de Ana Maria Maiolino, a paisagem da memória milenar

    do trabalho da mulher é revista via uma apropriação afetiva do gesto de modelar o pão

    e/ou a argila...

    À racionalidade puritana, afirmativa e quase sempre autoritária da arte internacional,

    esses 15 artistas brasileiros opõem uma lógica construtiva pautada no automatismo da

    fazer, no gosto pelo ornamental, na memória "imemorial", no interesse pela possibilidade de manipulação. Suas obras quase sempre não aspiram a dimensões

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    ingentes, não se impõem ao observador mas, pelo contrário, querem agradar e participar

    da transformação da vida de quem as vê, ou melhor, as vivencia.

    Em vez de enrolar, vincar, torcer, cortar, esses artistas vêm costurando, bordando,

    ligando, colocando dobradiças entre a visualidade não-erudita brasileira e algumas das

    grandes questões da arte internacional das últimas décadas.