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Centro Universitário da Grande Dourados R e v i s t a J u r í d i c a U N I G R A N Revista Jurídica UNIGRAN Dourados v.11 n.21 p. 1- 258 Jan./Jun. 2009 ISSN 1516-7674

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Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 11 | n. 21| Jan./Jun.2009. 1

Centro Universitário da Grande Dourados

R e v i s t a J u r í d i c a

U N I G R A N

Revista Jurídica UNIGRAN Dourados v.11 n.21 p. 1- 258 Jan./Jun. 2009

ISSN 1516-7674

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Revista Jurídica UNIGRAN / Centro Universitário da Grande Dourados. v.11, n.21 (1999 - ). Dourados: UNIGRAN, 2009.

Publicação SemestralISSN 1516-7674

1. Direito - Periódicos. I. Título.

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2009

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Editorial

A Revista Jurídica UNIGRAN é uma publicação da Faculdade de Direito do Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN e tem por objetivo divulgar conhecimentos, idéias e trabalhos de pesquisa na área do Direito desenvolvidos na UNI-GRAN e em outros centros de produção do saber jurídico.

Público-alvo:A Revista Jurídica UNIGRAN é voltada para professores, pesquisadores, estu-

dantes, advogados, magistrados, promotores, procuradores e defensores públicos. Trata-se de um público abrangente, mas que compartilha a busca constante por aprofunda-mento e atualização.

Meio e periodicidade:A Revista Jurídica UNIGRAN é publicada com periodicidade semestral, na

forma impressa e em meio eletrônico - pelo site www.unigran.br/revistajuridica, com acesso público e gratuito.

Responsabilidade Editorial:A responsabilidade editorial é exercida pela Coordenação de Editoração e pelo

Conselho Editorial.

Responsabilidade Acadêmica e Científi ca:O conteúdo dos artigos publicados na Revista Jurídica Unigran - inclusive

quanto à sua veracidade, exatidão e atualização das informações e métodos de pesquisa - é de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es). As opiniões e conclusões expressas não representam posições da Faculdade de Direito ou da UNIGRAN.

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REVISTA JURÍDICA UNIGRANDourados - Mato Grosso do Sul

Rosa Maria D’Amato De DéaReitora

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Rubens Di Dio

Pró-Reitor de Administração

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Conselho Editorial e Científi co

InstitucionalAdilson Josemar Puhl Carlos Ismar BaraldiFrancisco das C. Lima Filho Gassen Zaki Gebara Joe Graeff FilhoMaria Goretti Dal Bosco Noemi Mendes Ferrigollo Ricardo Saab Palieraqui

ExternoAristides Cimadon - UNOESCHelder Baruffi - UFGDJosé Carlos de Oliveira Robaldo - UFMS - ESUD José Geraldo de Sousa Júnior - UnB José Gomes da Silva - UFGDLoreci Gottschalk Nolasco - UEMSValerio de OliveiraMazzuoli - ESUD

Capa e Diagramação

Departamento de InformáticaUnigran

D.I

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Sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................07

ENSAIOS SOBRE A TEORIA CRÍTICA DO DIREITO NO BRASIL ..............................11

Vinicius Roberto Prioli de SouzaLuciana Laura Tereza Oliveira Catana

A ÉTICA, A PROFISSÃO PROFESSOR E O ENSINO JURÍDICO ..............................31

Lenilson Almeida da SilvaEmerson Almeida RenovatoAlaide Maria Zabloski Baruffi

AÇÃO POPULAR E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: UM DIÁLOGO COM A TEORIA

DEMOCRÁTICA DE ALÉXIS DE TOCQUEVILLE ......................................................45

Juliana Martins Barbacena

A DESNECESSIDADE DE DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO PARA

CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA .....................................61

Tiago Resende Botelho

A GLOBALIZAÇÃO POLÍTICA, A DEMOCRACIA E A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS

HUMANOS ........................................................................................................75

Emerson Almeida RenovatoPaulo César Nunes da Silva

A FOME, A POBREZA E O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA ......91

Eliotério Fachin Dias

DIREITO PENAL DO INIMIGO ...........................................................................101

Lígia Inoue MartinsFernando Bonfi m Duque Estrada

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LEI MARIA DA PENHA: IGUALDADE MATERIAL COMO DIREITOS HUMANOS .....115

Ana Paula Corrêa Guimarães

ANÁLISE JURISPRUDENCIAL. HABEAS CORPUS Nº 46.525, SUPERIOR TRIBUNAL

DE JUSTIÇA......................................................................................................125

Renata Jardim da Cunha RiegerRafael Camparra Pinheiro

LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET: GLOBALIZAÇÃO E O DIREITO

INTERNACIONAL .............................................................................................141

Gelson Amaro de Souza Filho

INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL CONTEMPORÂNEA .........................................157

Fernando Ricardo Portes

AS BENESSES PROCESSUAIS TRAZIDAS PELA LEI 11.441/07 ..............................201

Ewerton Araújo de Brito

PARTICULARIDADES SOBRE O RECURSO DE AGRAVO ......................................213

José Gomes da Silva

TEORIA GERAL DO PROCESSO: AS DIFERENTES VISÕES TEÓRICAS QUE

SURGIRAM NO DECORRER DA HISTÓRIA DO DIREITO SOBRE O PROCESSO ....223

Davi Souza de Paula Pinto

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: SURGIMENTO E TENDÊNCIAS ATUAIS DA

UNIVERSIDADE NO BRASIL ..............................................................................241

Everton de Brito Oliveira CostaPedro Rauber

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO ...........................................................................255

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APRESENTAÇÃO

Conforme destaca François Ost:1 “[...] não nos livramos tão facilmente da di-alética constitucional; através da ordem imperativa não deixam de se fazer valer o pacto e os valores que o cimentam; para além da inversão revolucionária perfi la-se a vontade de estabelecer uma ordem duradoura... de sorte que temos base para pensar que através da Constituição-ato de vontade, nunca se deixou de fazer ouvir a Constituição-produto da história.”

Essa Constituição-produto da história, no caso brasileiro, transformou o dire-ito e impactou a vida e as relações que se produzem no interior da sociedade. Por força da virada metodológica pós-positivista, que reconhece efetiva força jurídica aos princí-pios, os valores e princípios expressos na Constituição de 1988 não se apresentam mais como conselhos morais ou declarações de boas intenções, mas sim como verdadeiras normas jurídicas, ocupando uma posição privilegiada dentro do sistema. E é tendo como paradigma a Constituição de 1988 que o jurista deve olhar os graves problemas que afe-tam o Estado brasileiro. É paradoxal que o Brasil esteja entre os dez países com a maior economia do mundo, possua uma constituição cidadã, mas possua mais de 30 milhões de seus habitantes vivendo em completa indigência.

Este número da Revista Jurídica UNIGRAN refl ete essa preocupação. Os ar-tigos selecionados analisam temas relevantes e emergentes do Estado Democrático de Direito e impõem um compromisso de transformação.

Vinicius Roberto Prioli de Souza e Luciana Laura Tereza Oliveira Catana, no artigo “Ensaios sobre a Teoria Crítica do Direito no Brasil”, analisam os impactos da produção cultural proveniente da participação de novos jusfi lósofos brasileiros que ci-mentaram a construção de um direito comprometido com o homem e capaz de respond-er aos desafi os do Estado moderno.

Num momento em que o país vê, atônito, a crise ética que tem assolado a so-ciedade, Lenilson Almeida da Silva, Emerson Almeida Renovato e Alaide Maria Zabloski Baruffi centram o foco na formação ética do profi ssional do direito, assinalando que, dentre as crises, uma se destaca por ser uma das causas das demais: a crise moral. Para que o respeito, a dignidade, a autonomia, o compromisso, o bom senso, a humildade, a tolerância, se tornem efetivos compreende-se ser necessário que se incuta na prática das pessoas a ética compromissada com a dignidade humana.

A questão política é central na formação do Estado Democrático de Direito. Neste sentido, o texto “Ação popular e participação política: um diálogo com a Teo-ria Democrática de Aléxis de Tocqueville”, de Juliana Martins Barbacena, destaca que

1 OST, François. O tempo no Direito. São Paulo: Edusc, 2005. p. 255.

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os direitos de participação e liberdades básicas previstos na Constituição da República brasileira, além da satisfação de necessidades essenciais, possibilitam aos cidadãos partici-parem com livre arbítrio das decisões coletivas, de modo a satisfazer as demandas sociais de liberdade, bem-estar, desenvolvimento e justiça distributiva - todos esses valores fi ns do Estado e instrumentos para a consolidação da cidadania e a construção da igualdade. Tendo por base teórica a análise do pensamento político de Aléxis de Tocqueville, argu-menta, assim como defende Paulo Bonavides, que a participação popular é instrumento importante na consolidação e desenvolvimento da democracia.

Seguindo o campo de refl exão, Tiago Resende Botelho, no artigo “A desne-cessidade de dano ao patrimônio público para caracterização da improbidade adminis-trativa”, observa a possibilidade de análise da improbidade administrativa sob o enfoque da desnecessidade de dano ao patrimônio público, a partir dos atos que se viciam, não pelo prejuízo material aos bens públicos, mas, pela lesão aos princípios constitucionais que norteiam a administração.

Como destacado, é paradoxal que o Brasil encontre-se entre as principais eco-nomias do mundo, e possua signifi cativa parcela da população vivendo abaixo da linha de pobreza. Essa preocupação é visualizada nos artigos “A globalização política, a de-mocracia e a evolução dos direitos humanos” de Emerson Almeida Renovato e Paulo César Nunes da Silva e “A fome, a pobreza e o direito à alimentação adequada” de Eliotério Fachin Dias, que abordam o problema da globalização e o grave problema da miséria, que assola boa parte da humanidade.

O 11 de setembro continua, ainda, assombrando o mundo. Em nome da segu-rança, restringem-se direitos, e mais, faz-se um divisor entre amigos e inimigos. O artigo “Direito penal do inimigo”, de Lígia Inoue Martins e Fernando Bonfi m Duque Estrada tem por objeto uma análise crítica sobre o Direito Penal do Inimigo, de Günther Jakobs, destacando sua incompatibilidade com os ditames de um Estado Democrático de Dire-ito.

Na esfera penal, destacam-se os artigos. “Análise jurisprudencial: Habeas Corpus nº 46.525, Superior Tribunal de Justiça”, de Renata Jardim da Cunha Rieger e Rafael Camparra Pinheiro, que trata da problemática da acusação genérica, exigindo detalha-mento na inicial acusatória; “Lei Maria da Penha: igualdade material como direitos hu-manos” de Ana Paula Corrêa Guimarães que busca aprofundar as refl exões sobre a igualdade entre homens e mulheres enquanto direito humano incluído na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Atento aos novos direitos, Gelson Amaro de Souza Filho, no artigo “Liber-dade de expressão na internet: globalização e o direito internacional”, discute o rompi-mento dos limites territoriais através da internet (como fenômeno da globalização), que permite à sites destinados ao publico brasileiro serem hospedados no exterior, inclusive com conteúdos criminosos. Aborda também a situação jurídica destes sites, apontando a característica soberana do Estado brasileiro, a importância da liberdade de expressão e as novas problemáticas do Direito que surgiram com rede mundial de computadores.

Fernando Ricardo Portes, no artigo “Interpretação contratual contemporânea”

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destaca que, com a entrada em vigor do Código Civil Brasileiro, em 2003, a teoria dos contratos mereceu uma nova leitura, agora sob à luz do Estado Social de Direito. Seus princípios requerem uma interpretação em acordo com a Constituição Federal, pugnan-do por uma releitura dos princípios contratuais face ao Estado Social de Direito.

O direito processual e as recentes reformas são objeto dos artigos de Ewerton Araújo de Brito intitulado “As benesses processuais trazidas pela lei 11.441/07” de José Gomes da Silva “Particularidades sobre o recurso de agravo” e de Davi Souza de Paula Pinto “Teoria Geral do Processo: as diferentes visões teóricas que surgiram no decorrer da história do direito sobre o processo”.

Por fi m, um olhar sobre o ensino. Everton de Brito Oliveira Costa e Pedro Rauber, no artigo “História da educação: surgimento e tendências atuais da universidade no Brasil”, lançam um olhar histórico sobre a construção da Universidade no Brasil e seu impacto na formação teórico-política.

Ana Cristina Baruffi

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ENSAIOS SOBRE A TEORIA CRÍTICA DODIREITO NO BRASIL

Le nouveau n’est pas dans ce qui est dit, mais dans I’événement de son retour.1 FOUCAULT

Vinicius Roberto Prioli de Souza2 Luciana Laura Tereza Oliveira Catana3

Resumo: A Teoria Crítica do Direito, manifestação do pensamento da Escola de Frank-furt, que rompe com as formas de racionalidade que une a ciência e a tecnologia em novas formas de dominação, ocupa um espaço importante na construção do pensamento jurídico brasileiro sob os impactos da produção cultural proveniente da participação de novos jusfi lósofos brasileiros, tais como: as Contradogmaticas, da ALMED, dirigida pelo Prof. Luis A. Warat; Seqüência, do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC; Direito & Avesso, da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR (Grupo de Brasília); a revista de Direito Alternativo, organizada pelo magistrado Amilton Bueno de Carvalho, bem como dos núcleos de estudos, de atuação teórico-crítica, nas décadas de 80 e 90, tais como: o Grupo de Trabalho Direito e Sociedade, vinculado à Associação Nacional de Pós-Grad-uação e Pesquisa em Ciências Sociais; o Instituto de Direito Alternativo (IDA); o Grupo de Magistrados Gaúchos; a Associação Juízes para a Democracia; entre outros e implementam instrumentos para a efetiva realização da assistência judicial extra-estatal ou produção de serviços legais, centradas ao redor de organizações populares e assessorias universitárias. Foram criadas organizações da sociedade civil, como por exemplo: o Instituto de Apoio Jurídico Popular (AJUP); o Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP); o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP); o Serviço de Assessoria Jurídica Univer-sitária da UFRGS (SAJU); Serviço de Apoio Jurídico da Universidade Federal da Bahia (SAJU); o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP); o Programa Balcões de Direito; etc. Essa con-strução jurídica é o objeto do presente artigo.

Palavras-chave: Teoria Crítica. Jusfi losofi a. Direito.

Abstract: The Critical Theory of Law, expression of Frankfurt School´s thought, which breaks the rationality forms that unites science and technology in new forms of domination, occupies an important space in the building of Brazilian legal thinking under the impact of cultural production from the par-ticipation of new Brazilians jusphilosophers, such as: contradogmatic, of ALMED, leaded by Professor

1“A notícia não está no que está dito, mas naquilo a que ela nos remete.”2 Professor na Faculdade de Direito de Itu – FADITU. Advogado. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente. Possui artigos publicados em periódicos especializados e diversos trabalhos em anais de eventos, bem como, vários itens de produção técnica e livros, participando também de eventos em todo o país. Atualmente é colunista do site [www.correioforense.com.br]. Co-autor do livro “Propriedade Intelectual: Setores Emergentes e Desenvolvimento”, publicado em 2007. Autor do livro “Contratos Eletrônicos & Validade da Assinatura Digital”, publicado pela Juruá Editora, em 2009. E-mail: [[email protected]].3 Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente. Autora de artigos científi cos publicados em Revistas, Livros, Periódicos, Anais de Congressos, entre outros.

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Luis A. Warat; Sequence, of PosGraduation of Law Course at UFSC; Law & Reverse, of New School of Brazilian Law – NAIR (Brasília’s Group); Alternative Law Magazine, leaded by judge Amilton Bueno de Carvalho, as well as the studies groups of critical-theory performance in the 80’s and 90’s such as: Law and Society attached to the National Association of PosGraduation and Research in Social Sciences; Alternative Law Institute (IDA); South of Brazil Magistrate Group; Democracy Judges Association and others that implement tools for the effective achievement of non-state legal aid or production of legal services, centered around popular organizations and academic advisory services. Have been established civil society organizations, such as: Popular Legal Aid Institute (AJUP), Peace Studies and Human Rights Center (NEP), Popular Organizations Legal Offi ce (GAJOP), Offi ce of Legal Education of UFRGS (SAJU); Service Legal Aid of the Federal University of Bahia (SAJU), the Legal Center for People (NAJUP), the Program Branch of law, etc.. This legal construction is the object of this article.

Keywords: Critical Theory of Law. New jusphilosophers. Non-state legal aid.

1. Introdução

Diante da evolução do direito brasileiro, são poucos os estudos elaborados no sentido de melhor analisar a Teoria Crítica do Direito no Brasil. Desta forma, com o presente trabalho, conheceremos os principais pontos desta teoria.

Utilizamos a expressão “Ensaios” no título do referido trabalho, pois ao longo deste transmitiremos uma visão generalizada das conseqüências da Teoria Crítica do Direito em nosso ordenamento jurídico, não querendo, de forma alguma, esgotar tal as-sunto, por tratar-se de um tema muito extenso e complexo.

A expressão Teoria Crítica do Direito surge com a Escola de Frankfurt, rompen-do com as formas de racionalidade que une a ciência e a tecnologia em novas formas de dominação. A crítica para eles signifi ca a aceitação da contradição, a qual está presente em qualquer processo de conhecimento.

Dedicavam-se à pesquisa e à refl exão, preocupando-se com a análise crítica dos problemas do capitalismo moderno.

Ainda neste trabalho falaremos sobre a crítica para Marx e Kant. A teoria da sociedade de Marx trás com grande clareza o conhecimento da sociedade. O Marxismo vem a ser um novo tipo de teoria, devendo-se revisar profundamente as tradicionais opiniões sobre a natureza do conhecimento. Já para Kant nossa época é a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se.

Lembraremos no decorrer deste trabalho a grande produção cultural prove-niente da participação de novos jusfi lósofos brasileiros, tais como: as Contradogmaticas, da ALMED, dirigida pelo Prof. Luis A. Warat; Seqüência, do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC; Direito & Avesso, da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR (Grupo de Brasília); a revista de Direito Alternativo, organizada pelo magistrado Amilton Bueno de Carvalho, expressando a contribuição teórica de alguns dos juristas alternativos, entre outras.

Relacionaremos os núcleos de estudos, de atuação teórico-crítica, nas décadas de 80 e 90, tais como: o Grupo de Trabalho Direito e Sociedade, vinculado à Associação

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Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; o Instituto de Direito Alter-nativo (IDA); o Grupo de Magistrados Gaúchos; a Associação Juízes para a Democracia; entre outros.

A fi m de realizar o desenvolvimento efetivo da assistência judicial extra-estatal ou produção de serviços legais, centradas ao redor de organizações populares e asses-sorias universitárias, foram criadas organizações da sociedade civil, como por exemplo: o Instituto de Apoio Jurídico Popular (AJUP); o Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Huma-nos (NEP); o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP); o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS (SAJU); Serviço de Apoio Jurídico da Universidade Federal da Bahia (SAJU); o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP); o Programa Balcões de Direito; etc.

Estudaremos a crítica acadêmica no Direito Brasileiro iniciando-se pela análise institucional do Direito Público, em seguida, do Direito Constitucional, Direito Tribu-tário, Direito do Trabalho, Direito Internacional, Direito Penal, Direito Processual, So-ciologia, Ensino Jurídico, Direito Político, Direito Civil, História do Direito, Direito Am-biental, Direitos Humanos, Direito do Consumidor, Direito à Velhice e do Biodireito.

E por fi m, faremos alguns breves comentários sobre a Teoria Crítica do Dire-ito e o Direito Alternativo.

Devemos questionar o direito, discutir as normas em nosso ordenamento ju-rídico de forma refl exiva, levando-se em conta determinada formação social, admitindo, sobretudo outras formas práticas jurídicas, diferentes daquelas já existentes. Se fi zermos isto, estaremos pensando no direito de forma crítica, e a isto se dá o nome de Teoria Crítica do Direito.

2. A Teoria Crítica e a Escola de Frankfurt

Segundo Luiz Fernando Coelho, a teoria crítica do direito não tem intenção de ser inovadora.4

Teoria signifi ca dizer o oposto da prática, ou seja, um conhecimento puro. Trata-se ainda, de um conjunto de hipóteses que tem por fi nalidade a elucidação, explica-ção ou interpretação de determinado conhecimento. 5Em outras palavras, teoria é aquilo que explica a prática.

Já a Crítica é o elemento que permeia todo o processo de conhecimento, não somente pondo em questão uma hipótese explicativa de um problema específi co, mas suscitando uma atitude de desconfi ança face ao conhecimento como tal, cujos objetivos e resultados são permanentemente questionados. Sendo assim, a Crítica vem a ser o el-emento constituinte do método e da teoria crítica que se unem com o objetivo político e social a ser alcançado.6

4COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2003. p. 54.5MESQUITA FILHO, Alberto. Teoria sobre o Método Científi co. Disponível em: http://www.ecientifi cocultural.com/ECC2/artigos/metcien2.htm Acesso em: 03 out. 2006.6 FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica: Ontem e Hoje. 3. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. p. 48.

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A institucionalização dos trabalhos de um grupo de intelectuais marxistas, não ortodoxos, os quais permaneceram à margem de um marxismo-leninismo clássico na dé-cada de 20, seja em sua linha militante e partidária, seja em sua versão teórico-ideológica, é o que indica o termo “Escola de Frankfurt”.7

A questão do Estado e suas formas de legitimação na moderna sociedade de consumo; a dialética da razão iluminista e a crítica à ciência; e, a dupla face da cultura e a discussão da indústria cultural, sempre fi zeram parte dos trabalhos elaborados pelos membros da Escola de Frankfurt.8

Para Wolkmer torna-se essencial desenvolver todo um processo educativo (nas escolas, fábricas, sindicatos, universidades, entre outros) que desperte uma mentalidade crítica capaz de desmontar a noção mitifi cada do Estado.9

Um dos valores centrais da Escola de Frankfurt é o compromisso de penetrar no mundo das aparências para expor as relações sociais subjacentes que frequentemente iludem, ou seja, através de uma análise crítica, as relações sociais que tomaram o status de coisas ou objetos. Ao examinar noções como as de dinheiro, consumo e produção, torna-se claro que nenhuma delas representa uma coisa objetiva ou um fato, mas que, ao invés disso, todas são contextos historicamente contingentes, mediados pelas relações de dominação e subordinação.10

Para os Frankfurtianos, crítica quer dizer a aceitação da contradição e o tra-balho permanente da negatividade, presente em qualquer processo de conhecimento.11

A Escola de Frankfurt rompe com as formas de racionalidade que uniam a ciência e a tecnologia em novas formas de dominação, rejeita todas as formas de raciona-lidade que subordinavam a consciência e as ações humanas ao imperativo de leis univer-sais, e ainda, fornece uma série de valiosos insights para o estudo da relação entre teoria e sociedade. No entanto, sua crítica da cultura, da racionalidade instrumental, do autori-tarismo, e da ideologia, feita em um contexto interdisciplinar, gerou categorias, relações e formas de investigação social que constituem um recurso vital para desenvolver uma teoria crítica.12

Em 3 de fevereiro de 1923 foi criado o Instituto de Pesquisa Social (Institut fuer Sozialforschung), vinculado à Universidade de Frankfurt, o qual preservava sua autonomia acadêmica e fi nanceira. Dedicando-se principalmente à pesquisa e à refl exão, passou a assumir as feições de um verdadeiro centro de pesquisa, preocupado com uma análise crítica dos problemas do capitalismo moderno que privilegiava claramente a superestru-tura. Teve sua primeira fase de existência marcada de forma decisiva pela orientação

7 Ibidem, p. 10.8 Ibidem, p. 32.9 WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma Crítica do Estado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1990. p. 52.10 GIROUX, Henry. Teoria Crítica e Resistência em Educação. Obra traduzida por Ângela Maria B. Biaggio. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1986. p. 22.11 FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica: Ontem e Hoje. Op. cit., p. 51.12 GIROUX, Henry. Teoria Crítica e Resistência em Educação. Obra traduzida por Ângela Maria B. Biaggio. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1986. p. 22-24.

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teórica, convicções políticas e pela personalidade de Max Horkheimer, jovem fi lósofo formado em Frankfurt, que substituiu o primeiro diretor do Instituto, Carl Gruenberg, assumindo posteriormente a cátedra de fi losofi a social.13

Ao falarmos sobre teoria devemos nos lembrar de Marx, o qual mudou a opin-ião de muitas pessoas sobre o tema da sociedade humana. A teoria da sociedade de Marx trás com grande clareza o conhecimento da sociedade, o qual nem sempre se encaixa perfeitamente em outras categorias já aceitas de conhecimento.14

Não se trata de ciência formal como a lógica ou a matemática, tampouco como uma habilidade prática. O Marxismo é um novo tipo de teoria, de modo que para se dar ênfase fi losófi ca de seus traços, deve-se revisar profundamente as tradicionais opiniões sobre a natureza do conhecimento.15

Segundo os membros da Escola de Frankfurt, Freud foi um revolucionário tão quanto Marx. Suas teorias apresentam semelhanças em sua estrutura epistêmica essencial, que não representam dois tipos distintos de teoria de um ponto filosófico, mas simplesmente um mesmo novo tipo de teoria. Deste modo, foi dado o nome de “Teoria Crítica” a este novo tipo de teoria, originada do Marxismo e da Psicaná-lise.16

A consideração que faz a Escola de Frankfurt sobre os traços distintivos essenciais de uma “teoria crítica” consiste em três teses:1. Teorias críticas tem posição especial como guias para a ação humana, visto que:a) elas visam produzir esclarecimento entre os agentes que as defendem, isto é, ca-pacitando esses agentes a estipular quais são seus verdadeiros interesses;b) elas são inerentemente emancipatórias, isto é, elas libertam os agentes de um tipo de coerção que é, pelo menos parcialmente, auto-imposta, a auto-frustação da ação humana consciente.2. Teorias críticas tem conteúdo cognitivo, isto é, são formas de conhecimento.3. Teorias críticas diferem epistemologicamente de teorias em ciências naturais, de maneira essencial. As teorias em ciência natural são “objetificantes”; as teorias críti-cas são “reflexivas”.Uma teoria crítica, portanto, é uma teoria reflexiva que dá aos agentes um tipo de conhecimento inerentemente produtor de esclarecimento e emancipação.17

Para os membros da Escola de Frankfurt, é perfeitamente possível as pes-soas com visões epistemológicas lamentosamente erradas produzir, testar e usar teorias de primeira linha nas ciências naturais, o que já não ocorre com as teorias críticas. Uma meta da Escola de Frankfurt é a crítica da reabilitação da reflexão, e do mesmo modo, ao positivismo com uma categoria de conhecimento válido. Há uma pequena ligação entre ter um entendimento assertivo, uma compreensão correta de uma teoria e a habilidade para formulá-la, testá-la e aplicá-la, alcançado com sucesso

13 FREITAG, Bárbara. Op. cit., 1990. p. 10-15.14 GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt. Tradução de Bento Itamar Borges. Campinas: Papirus, 1988. p. 7.15 Ibidem, p. 7-8.16 Ibidem, p. 8.17 Ibidem,. p. 8.

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certo esclarecimento e emancipação. Por dada razão que o positivismo não é um obstáculo ao desenvolvimento da ciência natural.18

Seguindo uma estrutura cognitiva da teoria crítica, os membros da Escola de Frankfurt fazem uma distinção nítida entre teorias científi cas e teorias críticas, sob três argumentos:

a) Elas diferem em seu propósito ou fi m, e ainda, na maneira pela qual os agentes possam utilizar-se delas. Enquanto as teorias críticas visam à emancipação e ao esclarecimento de algo que está sendo averiguado, as teorias científi cas têm por fi nali-dade a manipulação satisfatória do mundo exterior, ou seja, elas possuem uma função instrumental.

b) As teorias críticas e científi cas diferem em sua estrutura lógica e cognitiva. As teorias críticas são refl exivas; são sempre partes elas mesmas do objeto-domínio que elas descrevem; e por fi m, são sempre em parte a respeito de si mesmas. Já a teorias cientifi cas são objetifi cantes, ou seja, em alguns casos pode-se distinguir entre a teoria e os objetos a qual elas se referem; não são elas mesmas partes do objeto-domínio que elas descrevem.

c) Diferem ainda quanto ao tipo de evidência que seria importante para deter-minar se estas teorias são cognitivamente aceitáveis ou não, ou seja, se elas aceitam ti-pos diferentes de confi rmação. As teorias críticas são cognitivamente aceitáveis somente se sobreviverem a um processo de avaliação, cuja parte central deste processo é uma demonstração de que elas são refl exivamente aceitáveis.19

A teoria crítica, enquanto instrumental operante, expressa a idéia de razão vinculada ao processo histórico-social e à superação de uma realidade em constante transformação. De fato, a Teoria Crítica surge como uma teoria dinâmica, superando os limites naturais das teorias tradicionais, pois não se atém apenas a descrever o que está estabelecido ou a contemplar eqüidistantemente os fenômenos sociais e reais. Seus pressupostos de racionalidade são “críticos” na medida em que articulam, dialeticamente, a “teoria” com a “práxis”, o pensamento crítico revolucionário com a ação estratégica.20

A Teoria Crítica deve ser cognitiva, nos proporcionando conhecimento, deve ser algo que possa ser verdadeiro ou falso, de modo que se saiba as condições em que seria inventivo ou confi rmada. Trata-se de uma teoria especifi camente proposta a fi m de ser empregada em uma determinada situação, a qual somente será entendida como cor-reta, se vista em relação a esta situação em especial.21

Segundo Raymond Geuss uma teoria crítica terá aplicação naquele estado de sociedade em que:

18 Ibidem, p. 9.19 Ibidem, p. 91-92.20 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Novo Paradigma de Legitimação. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=646 Acesso em: 03 out. 2006.21 GEUSS, Raymond. Teoria Crítica, op. cit., . p. 124.

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a) haja uma instituição social que fruste os agentes de algum grupo social especifi cado, impedindo-os de realizar seus interesses imediatamente observados;b) a única razão pela qual os membros da sociedade aceitam esta instituição e a frustração que ela acarreta é que eles consideram legítima tal instituição;c) os agentes na sociedade consideram legítima a instituição somente porque eles se agar-ram a um sistema particular de normas (ou a uma visão de mundo particular);d) o sistema de normas em questão (ou a visão de mundo) contém como um componente essencial pelos menos um elemento adquirido pelos membros da sociedade, somente por terem sido obrigados a formar suas convicções em condições de coerção;e) pessoas na sociedade pensam que apenas deveriam ser fontes de legitimação aquelas convicções que eles poderiam ter adquirido em condições de completa liberdade. 22

Os pensadores da Escola de Frankfurt criticam o fato de que as tendências positivistas passam muito superfi cialmente por todo o desenvolvimento da gnoseologia, desde Kant, atribuindo-lhes uma concepção ingênua sobre a teoria do conhecimento. Para eles, tal concepção pertence à história, pois ignora que o sentido dos enunciados sobre a realidade externa ao homem se forma anteriormente, dentro de um limite de relações de ordem transcendente. 23

Para a Escola de Frankfurt é necessário ter em conta o sujeito cognoscente desde a continuidade da práxis social, pois a realidade objetiva a conhecer é face de um mesmo processo histórico, da mesma forma que o sujeito cognoscente.24

A práxis é, segundo Luiz Fernando Coelho, a categoria central do pensamento crítico e uma das mais difíceis noções com que lida a teoria da sociedade. Era denomi-nada pelos gregos como uma atividade voltada a um fi m. Depois de Marx, a práxis é o próprio engajamento consciente do homem na tarefa de reconstruir-se a si próprio como ser livre individual e social, noção que procede de Hegel.25

A práxis como teoria crítica que se realiza na atividade teórica resulta da uni-dade entre teoria e prática. Há diferença entre a simples prática e a práxis. Enquanto a simples prática designa a atividade humana no sentido estritamente utilitário, uma ação que produz um objeto exterior ao sujeito e a seus próprios atos, e que os gregos denomi-navam como poiesis.26 A práxis designa uma ação consciente transformadora que exige um momento teórico que se inicia como uma teoria crítica, sendo uma elucidação do real como ele é e não como nós o imaginamos.27

3. A Crítica para Marx e Kant

Precisamos ainda, necessariamente destacar o sentido da “crítica”, expressão esta que não deixa de ser ambígua, dúplice e elástica, podendo ser interpretada de múlti-plas formas e utilizada de muitas maneiras.

22 Ibidem, p. 124.23 COELHO, Luiz Fernando.Teoria Crítica do Direito. Op. cit., p. 95. 24 Ibidem, p. 96.25 Ibidem, p. 135.26 VÁZQUES, Adolfo Sanches. Filosofi a da Práxis. Tradução de Luiz Fernando Cardoso. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1968. p. 4.27 COELHO, Luiz Fernando.Teoria Crítica do Direito. Op. cit., p. 138.

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Seguindo o pensamento de Antônio Carlos Wolkmer, professor titular nos cursos de graduação e pós-graduação da UFSC, Mestre em Ciência Política e Doutor em Direito, na tradição da fi losofi a ocidental moderna, a palavra “crítica” foi utilizada distintamente por autores como Marx e Kant.

Para Marx, a crítica assumiu um signifi cado muito particular e diferenciado. Para ele, a crítica trata-se de um discurso revelador de ideologias ocultadas que projetam os fenômenos de forma distorcida. Já em Kant, a crítica, por outro lado, signifi cava a idéia de uma operação analítica do pensamento.28

Desse modo, pode-se conceituar teoria crítica como o instrumental pedagógico operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes e mitifi cados uma tomada histórica de consciência, desencadeando processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de uma concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora. Trata-se de proposta que não parte de abstrações, de um a priori dado, da elaboração mental pura e simples, mas da experiência histórico-concreta, da prática cotidiana insurgente, dos confl itos e das interações sociais e das necessidades humanas essenciais.29

Deste modo, a crítica pode compreender determinado conhecimento que não é

defi nitivo, tampouco dogmático, no entanto, que existe num contínuo processo de fazer-se a si próprio.30

Kant declara que nossa época é a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se. A religião, por meio da santidade, e a legislação, por meio de sua majestade, querem a ela se subtrair.31

Na Crítica da Razão Pura, segundo Kant,

a razão em todos os seus empreendimentos deve submeter-se à crítica e não pode, sem se prejudicar e atrair contra si uma suspeição nociva, interromper a liberdade da mesma através de proibição alguma. Nada é tão importante em vista de sua utilidade, nada tão sagrado que deva ser subtraído a esse escrutínio minucioso, que desconhece qualquer autoridade pessoal. Sobre essa liberdade repousa a própria existência da razão, que não possui autoridade ditatorial e cujo veredicto a cada instante nada é além do consenti-mento de cidadãos livres, cada um dos quais deve poder exprimir sem impedimento as suas dúvidas ou mesmo o seu veto.32

Segundo Oscar Correas, a Crítica da Razão Pura não expressa nada de nega-

28 CORREAS, Oscar apud WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 4.29 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 5.30 FREIRE, Paulo apud WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 5.31 CÍCERO, Antônio. apud CÉRON, Ileana Pradilla. e REIS, Paulo (Orgs.). Kant: Crítica e Estética na Modernidade. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1999. p. 177.32 Ibidem, p. 177-178.

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tivo da razão, mas objetiva mostrar sua opinião acerca de como se formulam os juízos científi cos.33

Ainda afi rma Kant, que quem uma vez provou da crítica passa a sentir náu-seas com todo o palavrório dogmático com o qual antes se contentava por necessidade, porque sua razão precisava de algo e não encontrava melhor sustento. Segundo ele, a Crítica se compara com a metafísica comum das escolas precisamente como a química com a alquimia ou a astronomia com a astrologia divinatória; a Crítica realiza em relação à metafísica dogmática, o corte epistemológico que se convencionou chamar de rev-olução científi ca.34

Acerca de uma teoria crítica, a Escola de Frankfut, foi a que melhor desen-volveu uma corrente fi losófi ca contemporânea. Encontrava toda sua inspiração teórica na tradição racionalista que remonta ao criticismo kantiano, passando pela dialética ide-alista hegelinana, pelo subjetivismo psicanalítico freudiano e culminando na reinterpre-tação do materialismo histórico marxista.35

Como afi rma Wolkmer, em sua obra Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, nen-hum saber é totalmente absoluto, uniforme e inesgotável; nenhum modelo de “verdade” expressa, de modo permanente e contínuo, respostas a todas as necessidades, incertezas e aspirações humanas em tempo e espaço distintos. Há de se encarar, como fenômeno natural, na complexidade da vida social e na estrutura do próprio saber humano, a rela-tividade e a ambivalência das formas de “verdades”.36

Quer se alcançar com a crítica jurídica um outro entendimento epistemológico, o qual possa suprir as necessidades atuais, pois o direito é constantemente mutável, de modo que transformações socioeconômicas não são acompanhadas.

Podemos ainda lembrar o pensamento crítico de Miguel Reale, havido nos anos 40 e 50, crítica jurídica esta para a época, aos diversos formalismos e reducionismos naturalistas.

4. A Produção Crítica-Cultural e os Núcleos Teóricos-Críticosno Direito Brasileiro

Devemos ainda, lembrar a grande produção cultural, proveniente da partici-pação de novos jusfi lósofos brasileiros, os quais muito infl uenciaram revistas jurídicas nacionais veiculadas nos meios acadêmicos. Podemos citar como exemplo, as Contra-dogmaticas, da ALMED, dirigida pelo Prof. Luis A. Warat; Seqüência, do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC; Direito & Avesso, da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR (Grupo de Brasília); Revista Trimestral da OAB, a qual teve circulação nacional durante os anos de 1988 e 1989; Direito, Estado e Sociedade, do Departamento de Ciências

33CORREAS, Oscar apud WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 4.34 CÍCERO, Antônio, op. cit., p. 178.35 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit., p. 6.36 Ibidem, p. 85.

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Jurídicas da PUC/RJ; e, por fi m, a revista de Direito Alternativo, organizada pelo mag-istrado Amilton Bueno de Carvalho, expressando a contribuição teórica de alguns dos juristas alternativos.37

Cabe ainda, relacionar os núcleos de estudos, de atuação teórico-crítica, nas décadas de 80 e 90, tais como:38

a) O Grupo de Trabalho Direito e Sociedade, vinculado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, o qual promoveu, anualmente, até 1989, encontros entre professores, pesquisadores e interessados em discutir e intercambiar idéias e projetos acerca da problemática jurídica. Promoveu ainda, análises da inserção do paradigma legal com o poder e com o Estado no espaço de crítica sociológica, política e fi losófi ca.

b) O Instituto de Direito Alternativo (IDA), o qual tinha por objetivo organizar palestras e congressos, e ainda, operacionalizar e divulgar maiores informações sobre práticas jurídicas alternativas tanto no País quanto no exterior, utilizando-se para isto de publicações.

c) O Grupo de Magistrados Gaúchos, realizando refl exões críticas sobre o Direito Alternativo, organizando ainda, palestras e debates sobre este tema.

d) A Associação Juízes para a Democracia, a qual pleiteava dentre seus princípios básicos, a promoção da conscientização crescente da função judicante como proteção efetiva dos direitos do homem, individual e coletivamente considerado, a defesa dos direitos dos menores, dos pobres e das minorias, na perspectiva de emancipação social dos desfavorecidos. A promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista, bem como a difusão da cultura jurídica democrática.

e) Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD), o qual comba-tia as práticas de nepotismo, fi siologismo e autoritarismo, lutando em prol dos direitos humanos e da radicalização da democracia.

f) O Programa Especial de Treinamento (PET), o qual no fi nal dos anos 70, a agên-cia governamental CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior), objetivando algumas estratégias para melhoria do nível de graduação no País, estruturou o chamado PET na esfera do Direito. Este programa objetiva, a longo prazo, preparar seus alunos tanto para os cursos de pós-graduação quanto para o futuro exer-cício do magistério jurídico.

5. As Organizações da Sociedade Civil para o Estudoda Teoria Crítica do Direito no Brasil

Organizações da sociedade civil foram criadas a fi m de realizar o desenvolvi-mento efetivo da assistência judicial extra-estatal ou produção de serviços legais, cen-

37 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit., p. 90.38 Ibidem, p. 90-92.

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tradas ao redor de organizações populares e assessorias universitárias. No decorrer dos anos 80 e 90, algumas organizações populares, ONGs, assessorias universitárias e proje-tos de extensão foram registradas. Tais como:39

a) Instituto de Apoio Jurídico Popular (AJUP), tornou-se referência em todo País, destacando-se a atuação de advogados como Miguel Pressburger e Miguel Baldez, du-rante longos anos editando textos e publicações críticas, promovendo conferências e assessorando sindicatos, comunidades de base e movimentos populares.

b) Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP), criado na UnB, tem por objetivo agir como transmissor de informações em favor de uma ordem normativa mais legítima, desformalizada e descentralizada.

c) Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), o qual desen-volveu trabalho de base, com questionamento e discussões críticas, bem como auxílio jurídico às populações menos favorecidas.

d) Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS (SAJU), objetivando artic-ular a refl exão crítica ao Direito vigente e prestar uma assessoria às demandas populares, promovendo ainda, desde sua criação, encontros, discussões e publicando ainda revistas com temas críticos no Direito.

e) Serviço de Apoio Jurídico da Universidade Federal da Bahia (SAJU).f) Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP), tendo por objetivo operacio-

nalizar projetos acerca da reforma agrária, do direito das trabalhadoras domésticas, do direito à moradia e do direito às rádios comunitárias.

g) Programa Balcões de Direito que objetiva a mediação e resolução de confl itos, viabilizando o acesso à Justiça de populações carentes e desfavorecidas.

h) Acesso à Cidadania e Direitos Humanos.i) Projeto de Acessória Jurídica da Pró-Reitoria Comunitária da Universidade

Católica de Salvador (PAJ).j) Projeto de Extensão da Faculdade de Direito da UFMG: “Pólos Reprodutores

de Cidadania”.k) Núcleo de Direitos Humanos do Curso de Direito da Fundação Educacional Serra

dos Órgãos (FESO).l) Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo, tendo o apoio do Instituto Supe-

rior de Filosofi a Berthier (IFIBE).m) A Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador.n) Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (NEDA).o) Núcleo de Pesquisa Lyriana (NPL).p) Instituto de Hermenêutica Jurídica.40

q) Núcleo Virtual de Direitos Humanos.41

39 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit. p. 92-95. 40 Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre/RS. Disponível em: http://www.ihj.org.br Acesso em: 06 out. 2006.41 Núcleo Virtual de Direitos Humanos. Disponível em: http://www.dhnet.org.br Acesso em: 06 out. 2006.

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Para se criticar o Direito deve-se ter audácia, ousadia, pois a fi m de realizarmos um refl exão crítica do Direito, deveremos começar do nível lógico interno para o pro-cesso de conhecimento externo, de modo que a confi guração deste processo torna-se requisito essencial para redefi nir os padrões normativos instituídos pelo pensamento tradicional.42

6. A Crítica Acadêmica no Direito Brasileiro

Iniciando-se pela análise institucional do Direito Público, podemos assinalar os trabalhos elaborados pelos juristas José Ribas Vieira (professor titular de Teoria do Estado e Direito Constitucional na Universidade Federal Fluminense e docente asso-ciado do curso de mestrado em Direito da PUC/SP), Eros Roberto Grau (Faculdade de Direito da USP) e Fábio Konder Comparato (professor titular Faculdade de Direito da USP). Desde há muitos anos, alguns temas jurídicos têm merecido a refl exão e a pesquisa empírica de José Ribas Vieira, mediante um estudo crítico, interdisciplinar e político, tais como: o autoritarismo e a ordem constitucional, o Estado de Direito, acesso à Justiça e direitos humanos, o Judiciário e sua legitimação democrática, regulação e movimentos sociais, resoluções de confl itos e Direito do Consumidor, etc.43

No Direito Constitucional e Tributário podemos citar, dentre os autores que analisam a crítica intradogmática: Clèmerson Merlin Clève (Doutor em Direito e pro-fessor titular da Faculdade de Direito da UFPR), Willis Santiago Guerra Filho (antigo professor da Faculdade de Direito da UFC, incorporado ao Programa de Pós-Gradu-ação da PUC/SP), Eduardo K. Carrion (aposentado como professor titular de Direito Constitucional da UFRGS), Luís Roberto Barroso (professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UERJ), Menelick de Carvalho Neto, entre outros que in-corporam uma nova geração extraordinária na teoria e na hermenêutica constitucional, tais como: Ingo W. Sarlet, Flávia Piovesan (PUC/SP), Lênio Luiz Streck e outros. Para Willis Santiago Guerra Filho, a Constituição não é “um corpo estático de normas, mas sim um verdadeiro processo, que cotidianamente proporciona a realização dos objetivos por ela fi xados”. Para ele a concepção da ordem constitucional vista como um processo estaria contribuindo para o avanço do Estado Democrático de Direito. Ainda que parte da produção de Guerra Filho esteja no Direito Constitucional, isto não o impede da con-stante e rica presença em estudos de teoria do Direito, processo constitucional, direitos fundamentais e algumas incursões iniciais na psicanálise.44

Merece alusão quanto à releitura crítico-interdisciplinar do Direito Tributário as incursões de: Ubaldo César Balthazar, Valcir Gassen e Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy.45

42 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit., p. 96.43 Ibidem, p. 136-137.44 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit., p. 138-140.45 Ibidem, p. 140.

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Por conseguinte, o processo de pensar criticamente o Direito implica refl etir e questionar a legalidade tradicional mitifi cada, atinente à época ou a determinado momento da cultura de um país. O imaginário jurídico crítico tenta redefi nir os horizontes, constituído da linguagem normativa repressora e ritualizada, objetivando propiciar meios instrumentais para a conscientização e a emancipação dos sujeitos históricos na sua condição de domi-nados e excluídos. Ao confi gurar-se o “pensamento crítico” como repensar, redefi nir e renovar os padrões culturais de uma época ou momento histórico, melhor se com-preende a necessidade de tentar examinar, ainda que pareça demasiado pretensioso, as possibilidades do discurso crítico no âmbito da presente cultura jurídica brasileira.46

No Direito do Trabalho devem ser lembrados: Salete M. P. Maccalóz (profes-sora e juíza do trabalho), Roberto A. Q. Santos (Universidade Federal do Pará, juiz do trabalho aposentado), Magda Barros Biavaschi (juíza em Porto Alegre – RS), Ricardo Carvalho Fraga (juíz em Porto Alegre – RS), Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) e Doro-thee Susanne Rüdiger (UNIMEP). Na medida em que a sociedade capitalista funda-se no valor-trabalho, e a ordem jurídica aparece como uma instância que oferece certa garantia mínima à força do trabalho, o Direito do Trabalho torna-se uma das áreas do Direito em que melhor é desenvolvido o pensamento jurídico crítico.47

No cenário internacional o estudo crítico vem sendo desenvolvido por autores como: Celso Albuquerque de Mello (falecido há pouco tempo, foi professor de Direito Internacional da PUC/RJ), José Monserrat Filho (Instituto Universitário Cândido Men-des – RJ) e Odete Maria de Oliveira (curso de pós-graduação em Direito da UFSC) e outros. Este cenário esta instrumentalizado por profundas contradições, produzidas e articuladas pelos interesses dos centros globais de poder. O processo de mudança e con-strução da nova ordem jurídica internacional passa, necessariamente, pela resolução dos problemas político-ideológicos e socioeconômicos das nações periféricas.48

Procurando um novo perfi l histórico-social, no Direito Penal podemos citar autores como: Juarez Cirino dos Santos (PUC/PR), Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC), Nilo Batista (Universidade Cândido Mendes – RJ), João Ricardo W. Dornelles (PUC/RJ e Faculdades Integradas Bennett), Maria Lucia Karam (Instituto Carioca de Criminologia), Salo de Carvalho (PUC/RS), Afrânio Silva Jardim, Vera Malaguti Batista (Universidade Cândido Mendes) e Geraldo Prado (Instituto Carioca de Criminologia). Criticando e rompendo com a metodologia legalista das criminologias tradicionais, a questão do controle social e do crime está inserida nas esferas burocráticas do Estado e de seus aparatos repressivos, o que, na maioria das vezes, não é viável ou restringe as práticas de política criminal alternativa.49

(...) a verifi cabilidade do saber jurídico crítico no Brasil compreenderá as pesquisas e as publicações elaboradas em duas décadas e meia (anos 70, 80 e principio dos 90) e abrang-erá essencialmente as áreas doutrinárias correspondentes à teoria geral do Direito, ciência da dogmática jurídica, fi losofi a do Direito, sociologia jurídica e fi losofi a político-jurídica,

46 Ibidem, p. 87.47 Ibidem, p. 141.48 Ibidem, p. 141-142.49 Ibidem, p. 142-143.

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deixando à parte as outras tendências críticas, não menos importantes, emergidas no Direito Publico e no Direito Privado (apenas uma breve referência).50

No Direito Processual novos rumos do processo iniciam-se com a Escola Pro-cessualista de São Paulo, tais como, a crise do Direito, a qual atravessa suas instâncias de jurisdição permitindo a criação de uma nova mentalidade, repensando a administração da justiça, tendo em vista uma maior participação da comunidade. O processo jurisdicio-nal era concebido unicamente como um mecanismo estatal técnico, hoje transformou-se num instrumento político que visa a garantia dos direitos e a efetivação da justiça. Desta forma, podemos citar autores como: Ada Pellegrini Grinover (USP), Cândido R. Dina-marco (USP), Kazuo Watanabe (USP), Joaquim J. Calmon de Passos (UFBA), Ovídio A. Baptista da Silva (UFRGS, PUC/RS e UNISINOS), entre outros.51

Nas questões de Sociologia, Ensino Jurídico e Direito Político, muitos são os professores que lecionam e operam nestes ramos, no entanto são poucos os que têm produção científi ca e regularidade, podendo citar pesquisadores como: José Eduardo Faria (USP), Felipe A. de Miranda Rosa (UFRJ), Cláudio Souto (professor emérito de sociologia do Direito da UFPE), Joaquim de A. Falcão (professor da UFRJ), Eliane Botelho Junqueira (professora da PUC e diretora do Instituto “Direito & Sociedade”), Luciano Oliveira (professor de ciência política da UFPE e da Faculdade de Direito do Recife), Sérgio Adorno (professor da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da USP), Roberto Kant de Lima (Universidade Federal Fluminense), entre outros pes-quisadores.52

No Direito Civil as novas formas de confl itos coletivos relacionados às ne-cessidades materiais no campo e nos centros urbanos implicam em uma constante luta de conscientização e mobilização efetiva por direitos à moradia, à posse, ao solo urbano e à propriedade agrícola, principalmente quando incentivada por operadores do direito que procuram desmistifi car determinados institutos sagrados do Direito Privado, poden-do citar como exemplo: Jacques Távora Alfonsin (procurador do Estado e advogado dos movimentos populares no Rio Grande do Sul), Nilson Marques (advogado já falecido que estava ligado ao Sindicato de Trabalhadores Rurais), Luiz Edson Fachin (professor titular de Direito Civil da UFPR e da Escola da Magistratura), Gustavo Tepedino (pro-fessor de Direito Civil no Rio de Janeiro), Paulo Luiz Neto Lobo (Universidade Federal de Alagoas) e outros.53

No campo da História do Direito constata-se o grande impulso adquirido no Brasil, seja nas esfera de micro e de macroanálises. Trata-se do reaparecimento e do desenvolvimento do campo de estudos históricos, de uma historicidade no Direito. Torna-se deste modo essencial revelar a compreensão do que possa signifi car as formas simbólicas e reais da cultura jurídica, dos operadores legais e das instituições jurídicas.

50 Ibidem, p. p. 89.51 Ibidem, p. 143-144.52 Ibidem, p. 144-146.53 Ibidem, p. 146-147.

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Diversos teóricos e investigadores, advindos do Direito, História Social e Ciência Política preocupam-se com este ramo, tais como: José Reinaldo Lima Lopes (USP), Antônio Car-los Wolkmer (UFSC), Arno Wehling (UFRJ, UNIRIO e UGF), Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR), Arno Dal Ri Jr. (UFSC), Airton L. Cerqueira-Leite Seelaender (IBHD), Keila Grinberg (Universidade Cândido Mendes), Gizlene Neder (UFF e PUC/RJ), Andrei Ko-erner (UNIFIEO/SP), entre outros.54

Em outras áreas relativamente novas, tais como no caso do Direito Ambiental, Direitos Humanos, Direito do Consumidor, Direito à Velhice e do Biodireito, deve-se buscar um estudo democrático e pluralista, posto que tais áreas do Direito são suscetíveis das mais profundas transformações de teor transindividual, multicultural, biogenético e de tecnologia de informação. Dentro da área dos Direitos Humanos, podemos citar pes-quisadores como: Jayme Benvenuto Lima Jr. (GAJOP/PE), Paulo César Carbonari (IF-IBE/RS), Flávia Piovesan (PUC/SP), Hélio Bicudo, João Ricardo W. Dornelles (PUC/RJ), João Baptista Herkenhoff, Antônio A. Cançado Trindade (UnB). No campo do Direito Ambiental encontramos: José Rubens Morato Leite (UFSC), Fernando A. de Carvalho Dantas (UEA), Cristiane Derani (PUC/Santos), Rogério Portanova (UFSC). Na área do Biodireito: Volnei Garrafa (UnB) e Reinaldo Pereira e Silva (UFSC). E, por fi m, na questão indígena e terceira idade encontram-se: Carlos Frederico Marés de Souza Filho (PUC/PR) e Paulo R. Barbosa Ramos (UFMA).55

7. Breves Comentários sobre a Teoria Crítica do Direitoe o Direito Alternativo

Para Marcos Nobre, professor de fi losofi a do Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas da Universidade de Campinas e pesquisador do CEBRAP, o padrão de o que é pesquisa em Direito no Brasil passou a ser o parecer, que se tornou o modelo de pes-quisa. Dizer que o parecer desempenha o papel de modelo e que é decisivo na produção desse amalgama de prática, teoria e ensino jurídico, signifi ca dizer que o parecer não é tomado aqui como uma peça jurídica entre outras, mas como um formato padronizado de argumentação, que hoje passa por um quase sinônimo de produção acadêmica na área de Direito, o qual está na base da maioria dos trabalhos universitários, atualmente.56

Devemos questionar o direito, discutir as normas em nosso ordenamento ju-rídico de forma refl exiva, levando-se em conta determinada formação social, admitindo, sobretudo outras formas práticas jurídicas, diferentes daquelas já existentes. Se fi zermos isto, estaremos pensando no direito de forma crítica, e a isto se dá o nome de Teoria Crítica do Direito.

Localiza-se a crítica do direito no espaço da pluralidade heterogênea de mo-vimentos insurgentes com posturas metodológicas e epistemológicas distintas, contudo,

54 Ibidem, p. 147-148.55 Ibidem, p. 148-149.56 NOBRE, Marcos et all. O que é Pesquisa em Direito? São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 30.

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apresentam certo pressupostos comuns que são essenciais enquanto denúncia e descon-strução do discurso e dos procedimentos do Direito em todas as suas formas alienantes. Estas condições constitutivas da teoria crítica do direito referem-se a uma construção de um determinado objeto, ou seja, referem-se a uma determinada conceituação, a uma limitação do conceito operacional, ao método escolhido e ao estabelecimento dos obje-tivos ou metas a serem atingidos, produzindo novas formas de agir no universo jurídico, desmistifi cando a ciência jurídica tradicional.57

(...) descrever o signifi cado e a função que exerce o pensamento crítico no Direito não só no sentido de questionar e desmitifi car o que legalmente está posto (o injusto e inefi caz), mas, sobretudo, como um instrumento pedagógico que possibilite a construção das pre-missas fundantes que conduzem a um Direito “novo”. É natural, em face da crescente problematização, que se faça a aproximação e o paralelo entre a “crítica jurídica” e a pratica do “Direito alternativo”.58

Se a função teórica de denúncia da crítica jurídica tem alcançado os resultados esperados, a função prática, não tem alcançado os mesmos níveis, quanto a efetividade das mudanças e quanto a solução dos problemas. A crítica jurídica tem a propensão de negar o papel da dogmática legal, caindo no discurso abstrato e insufi ciente que não favorece ao jurista-prático buscar, na legislação atual, as possibilidades de soluções para as reivindicações populares.59

Segundo Edmundo L. de Arruda Júnior, em sua obra Introdução à Sociologia Jurídica Alternativa: Ensaios sobre uma Sociedade de Classes, a corrente do Direito Alternativo no Brasil teve sua origem no processo de democratização do país a partir de 1985, mo-mento em que os operadores jurídicos participavam de reuniões que objetivavam, em primeiro lugar, contribuir com propostas legislativas para tornar os órgãos institucionais mais democráticos, quando se completasse o período de transição e de solidifi cação da democracia, pondo fi m a um regime militar autoritário, implantado após o golpe de 1964.60

O Direito Alternativo reproduz o processo de absorção de seus avanços e eliminação, dos seus equívocos e lacunas, na medida em que implica superação da crítica jurídica tradicional. É uma conseqüência de todo o processo de crítica do Direito desen-volvido, principalmente a partir do inicia da década de 70.61

A inovação prática do Direito alternativo o distingue dos demais movimentos

57 RODRIGUES, Horácio W. apud WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 153.58 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit., p. 152-153.59 RODRIGUES, Horácio W. apud WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit., p. 153.60 ARRUDA JR., Edmundo L. de. apud COSTA, Frederico Antônio. A Teoria do Direito Alternativo no Brasil: Um Estudo Crítico sobre o Conceito Teórico do Direito. 2001. 136 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2001. p. 09.61 RODRIGUES, Horácio W. apud WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit., p. 153.

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críticos, pois tradicionalmente a crítica do direito preocupou-se em mostrar os efeitos do Direito enquanto dominação, no entanto, o Direito alternativo busca resgatar a pos-sibilidade transformadora do jurídico, colocando-o a serviço da libertação. Em pouco tempo, a expressão “Direito alternativo” alcançou nível nacional e passou a confi gurar a pluralidade de instâncias profi ssionais habilitadas a articular frentes de lutas dentro da legalidade instituída, ou seja, o uso alternativo do Direito, e da legalidade insurgente a instituir, ou seja, práticas de pluralismo jurídico.62

Segundo o juiz Amilton Bueno de Carvalho, professor da disciplina de Direito alternativo na Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul, em sua obra Direito Alter-nativo na Jurisprudência, propõe que em um sentido abrangente o movimento do Direito alternativo compreende três frentes distintas:

1) Uso Alternativo do Direito: trata-se da utilização, via interpretação diferenciada, “das contradições, ambigüidades e lacunas do Direito legislado numa ótica democratizante”.2) Positivismo de Combate: uso e reconhecimento do Direito positivo como arma de combate, é a luta para a efetivação concreta dos dire-itos que já estão nos textos jurídicos mas não vêm sendo aplicados.3) Direito Alternativo em Sentido Estrito: é o “direito paralelo, emer-gente, insurgente, achado na rua, não ofi cial, que coexiste com aquele emergente do Estado. É um direito vivo, atuante, que está em perma-nente formação/transformação”.63

Depois dos ensinamentos de Amilton B. de Carvalho, Horácio W. Rodrigues e Edmundo L. de Arruda Junior sobre o movimento do Direito alternativo, necessário se faz fi xar determinados critérios, tais como:

a) o Direito é o instrumento de luta a favor da emancipação dos menos favorecidos e injustiçados numa sociedade de classe como a brasileira; consequentemente, descarta-se o caráter de apolicitici-dade, imparcialidade e neutralidade dos operadores e das instâncias de jurisdição;b) dentre os principais objetivos do “movimento” está a construção de uma sociedade caracterizada como socialista e democrática;c) a escolha metodológica de grande parte de seus adeptos é pelo método histórico-social dialético, utilizando-o através de interpre-tação jurídico-progressista, cujo objetivo é explorar as contradições,

62 RODRIGUES, Horácio W. apud WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit. p. 154.63 CARVALHO, Amilton Bueno apud WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Novo Marco Emancipatório na Historicidade Latino-Americana. in Cadernos de Direito, Piracicaba. v. 2, n. 4, p. 11-23, jul. 2003. p. 21.

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omissões e incoerências da legalidade vigente;d) os “alternativos” privilegiam como parâmetro nuclear a efetivação da legitimidade das maiorias e a implementação da justiça social.64

O Direito alternativo em sentido estrito, segundo Amilton Bueno de Carvalho, trata-se daquele que emerge do pluralismo jurídico. Em outras palavras, é a participação da comunidade na busca da solução de seus problemas, mesmo em confl ito com o Dire-ito do Estado. É a sociedade construindo seus próprios direitos, por meio de movimen-tos sociais, sindicatos, partidos políticos vanguardeiros, setores progressistas das igrejas, comunidades de base, entre outras.65

Deste modo, podemos enquadrar o pluralismo jurídico tanto na visão do Dire-ito alternativo em sentido estrito, quanto no Uso Alternativo do Direito, em decorrência de sua pluralidade de visões.66

Quanto à utilização e prática dos Direitos alternativos, segundo Wolkmer a prática efetiva de serviços legais ou assistência judicial extraestatal vêm sendo implemen-tada por organizações da sociedade civil (comissões populares, centros comunitários e organizações não-governamentais – ONGs) e também por assessorias de extensão universitária. Já o uso do Direito alternativo é operacionalizada por magistrados no ex-ercício da função judicial e de inegável expansão no meio da produção, interpretação e aplicação jurisprudencial.67

8. Referências

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COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2003.

COSTA, Frederico Antônio. A Teoria do Direito Alternativo no Brasil: Um Estudo Crítico sobre o Conceito Teórico do Direito. 2001. 136 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2001.

FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica: Ontem e Hoje. 3. ed. São Paulo, 1990.

64 CARVALHO, Amilton Bueno. RODRIGUES, Horácio W. e ARRUDA JUNIOR, Edmundo L. de. apud WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Op. cit., p. 156.65 CARVALHO, Amilton Bueno apud MELO, Raïssa de Lima e. Pluralismo Jurídico: para além da visão monista. Campina Grande: EDUEP, 2001. p. 87.66 MELO, Raïssa de Lima e. Pluralismo Jurídico: para além da visão monista. Campina Grande: EDUEP, 2001. p. 88.67 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico, op. cit., p. 304.

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GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt. Tradução de Bento Itamar Borges. Campinas: Papirus, 1988.

GIROUX, Henry. Teoria Crítica e Resistência em Educação. Obra traduzida por Ângela Maria B. Biaggio. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1986.

Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre/RS. Disponível em: <http://www.ihj.org.br>. Acesso em: 06 out. 2006.

MELO, Raïssa de Lima e. Pluralismo Jurídico: para além da visão monista. Campina Grande: EDUEP, 2001.

MESQUITA FILHO, Alberto. Teoria sobre o Método Científi co. Disponível em: <http://www.ecientifi cocultural.com/ECC2/artigos/metcien2.htm>. Acesso em: 03 out. 2006.

NOBRE, Marcos et all. O que é Pesquisa em Direito? São Paulo: Quartier Latin, 2005.

Núcleo Virtual de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br>. Acesso em: 06 out. 2006.

VÁZQUES, Adolfo Sanches. Filosofi a da Práxis. Tradução de Luiz Fernando Cardoso. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1968.

WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma Crítica do Estado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1990.

_________. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 5 ed. rev. São Paulo: Sarai-va, 2006.

_________. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura no Direito. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Alfa Omega Ltda, 2001.

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A ÉTICA, A PROFISSÃO PROFESSORE O ENSINO JURIDICO

Lenilson Almeida da Silva 1 Emerson Almeida Renovato 2

Alaide Maria Zabloski Baruffi 3

Em um momento em que diversas são as crises que têm assolado a sociedade, uma se destaca por ser uma das causas das demais, é a crise moral. Para que o respeito, a dignidade, a autonomia, o compromisso, o bom senso, a humildade, a tolerância, se tornem efetivos compreende-se ser necessário que se incuta na prática das pessoas a ética compromissada com a dignidade humana. Sem a pretensão de aprofundamento do tema ética, mas reconhecendo que este assunto acompanha a história da humanidade – dos gregos aos dias atuais - este artigo tem por objetivo compreender a articulação ética, profi ssão professor e ensino superior. Com apoio teórico e refl exão faz um percurso pelos conceitos ética, moral e direito, demonstra a necessidade de um mínimo ético para uma educação de qualidade e compreende que para ensinar o comportamento ético não é sufi ciente a leitura e estudo dos códigos e normas deontológicas, pois a ética para ser apreendida necessita do exemplo, do agir ético na profi ssão. As considerações fi nais destaca que é imprescindível educar para a ética na atuação jurídica. Para isso é necessário o compromisso de todos, da instituição, dos professores, dos alunos e daqueles que no dia a dia realizam a justiça. Essa educação ética deve permear toda a formação escolar e os professores devem estar dispostos a contribuir com seus alunos para a aprendizagem que avance além dos conteúdos dogmáticos e que os estudantes estejam dispostos a vivenciar o ensino ético.

Palavras-Chave: Ensino Superior. Prática Pedagógica. Valores.

Abstract: At a time of various crises threatening society, one is remarkable for being one of the causes of the others, it’s the moral crisis. So that respect, dignity, autonomy, compromise, common sense, hu-mility, tolerance, become effective it’s understood to be necessary that it be inserted in people’s practices ethics compromised with human dignity. Without the pretension of going deep in the theme of ethics, but recognizing that this matter follows the history of mankind – from the Greek to the current days, this article has as its objective to understand the articulation ethics, the profession of professor and university teachings. With theoretical support and refl ection it makes a course through the concepts ethics, moral and law, shows the need of an ethical minimum for a quality education and understands that to teach the ethical behavior it’s not enough the reading and study of the deontological codes and norms, because ethics need to be displayed, the ethical action in the profession, in order to be learned. The fi nal considerations put emphasis in the fact that it’s obligatory to teach for the ethics in the juridical actuation. For that it’s needed the compromise of all, the institution, the teachers, the students and those who daily perform justice. This ethical education must permeate the entire school formation and the teachers must be willing to contribute with their students for the learning that advances beyond the dogmatic contents and that the students be willing to live the ethical teachings.

1 Pós Graduado em Direitos Humanos e Cidadania - UFGD.2 Pós-Graduado em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD.3 Profª. Associada da Faculdade de Educação da UFGD. Profª. da disciplina Docência Ensino Superior.

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1. Introdução

Diversas são as crises que têm assolado a sociedade nos dias atuais. Há a crise do sistema fi nanceiro mundial, a crise da violência, a crise do meio ambiente, mas uma se destaca, inclusive, por ser uma das causas das demais, é a crise moral. O ser humano, ape-sar de considerar-se civilizado, continua a praticar atos que atentam contra a sociedade: egoísmo, desrespeito à dignidade do próximo, violência, injustiça social, despreocupação com o meio ambiente, são alguns de tantos que são noticiados diuturnamente.

Além de informações, como violência, acidentes de trânsito, desemprego, crise econômica, hodiernamente temos sido bombardeados com informações sobre corrup-ção, desvios de verbas públicas, nepotismo, desperdício do dinheiro público, desonesti-dade com clientes, vendas de sentenças, prevaricação em favor de privilegiados, descaso com a criminalidade, fatos que refl etem a ausência de atitude ética, nos diversos setores da sociedade brasileira e mundial. Comportamentos humanos que causam perplexidade e espanto.

Esses fatos nos remetem à seguinte questão: que modelo de convivência a es-cola tem/deve apresentado/apresentar à criança e à juventude?

A resposta nos é dada por Paulo Freire. O educador brasileiro que defendeu a educação como prática da liberdade, propõe ao profi ssional da educação o desenvol-vimento de uma pedagogia fundamentada na ética, no respeito a dignidade e à própria autonomia do educando, para todos os níveis de ensino. Da educação Básica a Educação Superior.

Para que o respeito, a dignidade, a autonomia, o compromisso, o bom senso, a humildade, a tolerância, se tornem efetivos é necessário que se incuta na prática das pessoas a ética compromissada com a dignidade humana.

Sem a pretensão de aprofundamento do tema ética, mas reconhecendo que este assunto acompanha a história da humanidade – dos gregos aos dias atuais, este estudo pretende compreender a articulação: ética, profi ssão professor e ensino superior.

2. Ética, moral e direito

Certamente o momento é de crise; mas é nos momentos de crise que surge a oportunidade para refl etirmos criticamente sobre a situação e reorientarmos nossas práticas, como destaca Terezinha Rios:

Devemos, então, considerar que a idéia de crise aponta para duas perspectivas – a de perigo e a de oportunidade. Se considerarmos apenas o perigo, correremos o risco de nos deixarmos envolver por uma atitude negativa, ignorando as alternativas de superação. É

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importante considerar a perspectiva de oportunidade, que nos remete à crítica, como um momento fértil de refl exão e de reorientação da prática. [...].4

Mas o que é ética? Para Terezinha Rios, ética é a refl exão crítica sobre a morali-dade, sobre a dimensão moral do comportamento do homem, e é no plano da ética que se busca a compreensão, o sentido de uma ação. Enquanto a moral indica o comporta-mento que deve ser considerado bom ou mal, a ética procura o fundamento desse valor que norteia o comportamento, partindo da historicidade presente nos valores.5

De outro modo:

Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. [...] O objeto da ética é a moral. A moral é um dos aspectos do comportamento humano. [...] A distinção entre ambas seria que a ética é mais teórica do que a moral. Pretende-se mais direcionada a uma refl exão sobre os fundamentos do que a moral. O que designaria a ética seria não apenas uma moral, conjunto de regras próprias de uma cultura, mas uma verdadeira “metamoral”, uma doutrina situada além da moral. Daí a primazia da ética sobre a moral: a ética é desconstrutora e fundadora, enunciadora de princípios ou de fundamentos úl-timos.6

É comum ao nos deparamos com um fato analisá-lo sob o aspecto de ser ele bom ou mau. O furto, por exemplo, é crime, mas também é considerado, sob o aspecto moral, algo ruim. A atitude ética, porém, vai além dessa consideração. Através dela deve-mos refl etir o porquê o furto é considerado ruim. Por que ele acontece cotidianamente em nossa sociedade? Aquele que o pratica é desprezível, ou é também uma vítima? A sociedade por sua vez, o que deve fazer? Punir o infrator, e esperar que a prisão o res-socialize? Ou também ela (sociedade) precisa mudar, para que esse delito reduza em seu meio?

A refl exão ética sobre casos concretos requer não apenas observar que ele fere a moral, mas refl etir por que os consideramos bons ou maus, e mais, se nossa análise é a mais justa (considerando-se justo o que conduz ao bem comum e ao respeito da digni-dade humana), ou se ela é somente consequencia do senso comum.

A ética vai além da moral, pois ela é o posicionamento crítico sobre o que é considerado moral. A ética é o juízo moral, a “ciência do comportamento moral do homem em sociedade”7 e somente pode tê-lo aquele que se posiciona diante do mundo, não como simples expectador, mas como juiz de seus atos, e das condutas alheias, não somente para julgar, mas para analisar e perceber o que é correto fazer.

Tanto a moral, quanto o direito impõem condutas obrigatórias a seus desti-

4 RIOS, T. A.. Ética e competência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1995, p. 77.5 Ibid., p. 23-24.6 NALINI, J. R. Ética geral e profi ssional. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 36-37.7 NALINI, J. R, op. cit., p. 36-37.

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natários, porém a coação da norma moral é interna, já o descumprimento das normas jurídicas implica em consequências exteriores. No dizer de Nalini:

Importante ressaltar que o direito tem um substrato ético fundamental: é baseado no respeito entre as pessoas e na idéia de limitar atividade própria para tornar possível o exercício da atividade alheia. Este soberano imperativo ético é pressuposto da ordem jurídica e constitui, a um tempo, limite e freio da reciprocidade jurídica.8

A relação entre Ética, Moral e Direito é muito próxima.9 O direito deve ser eminentemente ético, mas para que as leis tenham conteúdo ético, é necessário que elas visem ao bem comum, e não exclusivamente os interesses de um determinado grupo ou pessoa.

3. Mínimo ético: a educação de qualidade.

Para Rios,10 educação é transmissão de cultura, e em sua totalidade o fenômeno educativo possui o componente econômico (produção da vida material, parte do tra-balho humano na sociedade); o componente político (poder que permeia as relações na educação); e o componente ético (valores que subjazem a prática dos educadores).

A educação no Brasil, porém não tem sido das melhores, muito menos no as-pecto ético, nesse sentido escreve Nalini:

[...] Todos os males brasileiros residem na educação. Miséria, exclusão, corrupção, maltra-to da coisa pública, destruição da natureza, violência, nada existe de ruim que não possa ser atribuível à falência do próprio projeto educativo de uma sociedade heterogênea.11

Em que pese a força da afi rmativa apresentada por Nalini, é de se observar que as questões éticas ultrapassam os espaços escolares e situam-se na questão da so-cialização primária vivida na primeira infância, como destacam Bergman & Luckmann12. É importante destacar que a falência do projeto educacional brasileiro é, sem dúvida, o mais signifi cativo indicador da falência ética, uma vez que a corrupção e as mazelas decorrentes desta, passam a ser assimiladas como naturais no seio da família. Frases emblemáticas vinculadas a personalidades políticas do país tornaram-se senso comum e passaram a reproduzir o ideal de vida pública, como “rouba, mas faz”, para identifi car o político brasileiro fazedor de obras, ou “relaxa, e goza” para ilustrar a apatia política frente aos reais problemas de segurança pública.

Some-se a isto, o fato concreto e desumano de que as pessoas que vivem na

8 Ibid., p. 85.9 Nesse sentido: MONTORO, A. F. Ciência do Direito. São Paulo: RT, 2008.10 RIOS, T. A. Ética e competência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1995, p. 26 e 30.11 NALINI, J. R., op. cit., p. 233-234.12 BERGER, P. L. LUCKMANN, T. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes, 1992.

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miséria são aquelas que menos têm acesso à educação de qualidade13. Não se quer aqui afi rmar que a má qualidade na educação seja a causadora da miséria ou da corrupção. O que se observa, todavia, é que aqueles que vivem desprovidos economicamente, são, também, aqueles que menos oportunidades possuem, em termos educacionais, para um processo emancipatório.

Neste mesmo sentido, escreveu Gustavo Ioschpe:

Quando se fala em educação no Brasil, algo não faz sentido. Todos exaltam o benefi cio da educação e apontam-na como a solução de nossos problemas. Todos parecem engaja-dos em sua melhoria. Apesar desse consenso e da boa vontade, nossas escolas patinam, e sua qualidade só tem decaído. Para explicar essa curiosa dissonância, era comum ouvir, dez anos atrás, a idéia de que nosso fracasso na área se devia à falta de ‘vontade política’ de nossos governantes, ou ainda ao complô das elites pela alienação do proletariado, ou, fi nalmente às imposições do Fundo Monetário Internacional (FMI), que supostamente exigia o corte de gastos na educação em seus acordos com o país.14

Aliado a isso há o fato de que nem toda a população tem acesso à escola, e nem toda escola é de boa qualidade, conforme escreve Terezinha Rios:

É necessário haver escola para todos. Entretanto, a maioria da população não tem escola. É necessário haver ensino de boa qualidade; no entanto, as crianças saem da escola sem dominar o saber necessário para o exercício da cidadania. Sem comer o indi-víduo não pode ter vida. Sem escola, sua vida é ‘apenas’ mais pobre.15

Novamente é oportuna a lembrança de Berger & Lukmann de que o processo socializador se dá na infância (socialização primária) e na escola (socialização secundária). Esse processo está intimamente interligado. Valores morais interiorizados nas relações familiares serão confi rmados no processo educativo secundário. A ausência familiar e/ou processos educativos inefi cazes, enfermos, importará, sem dúvida, em graves refl exos na formação ético-moral.

Conforme Nalini:

As crianças precisam receber noções de postura compatíveis com as necessidades da convivência. Não é fácil treinar para a verdade, para a lealdade, para o companheirismo e a solidariedade quem nasce numa era competitiva, onde se deve levar vantagem em tudo. Uma sociedade enferma, a conviver tranquilamente com o marginalizado, a se despreo-cupar com o idoso, a agredir a natureza e o patrimônio alheio, pode ser escola cruel das futuras gerações. [...] Se a humanidade não se converter e não vivenciar a solidariedade, pouca esperança haverá de subsistência de um padrão civilizatório preservador a digni-dade. [...] A melhor lição é o exemplo16. (grifos nossos) .

13 Conforme ressaltam Oliveira e Araújo na sociedade brasileira (co)existem ou (co)existiram três signifi cados ou etapas de uma educação de qualidade: [...] três signifi cados distintos de qualidade foram construídos e circularam simbólica e concretamente na sociedade: um primeiro, condicionado pela oferta limitada de oportunidades de escolarização; um segundo, relacionado à idéia de fl uxo, defi nido como número de alunos que progridem ou não dentro de determinado sistema de ensino; e, fi nalmente, a idéia de qualidade associada à aferição de desempenho mediante testes em larga escala (Oliveira, Araújo, 2005, p. 8).14 IOSCHPE, Gustavo. Revista Veja. 2100 ed., ano 42, n. 7, 18 fev. 2009.15 RIOS, Terezinha Azerêdo, op. cit. p. 65.16 NALINI, José Renato, op. cit., p. 207.

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Educar com qualidade implica em interiorizar valores socialmente bons e úteis, calcados no respeito ao outro. Não por outro motivo, a preocupação do mercado com a ética. Mesmo nas relações de produção e consumo, em que a competitividade é um dos valores básicos do capitalismo, os valores éticos assumem papel essencial nas relações de produção e troca. Lembremos aqui o princípio da boa-fé que rege as relações contratuais nos termos do Código Civil de 2002.

Considerando-se essa situação, a atitude ética diante dos problemas econômi-cos e sociais é a alternativa efi caz para enfrentar as misérias da condição humana, mas para que ela apresente sua contribuição, ressalte-se o papel essencial da socialização se-cundária realizada pela escola.

É essencial que essa educação seja de qualidade, qualquer que seja a profi ssão ou a especialidade. O que pensar de um médico, um engenheiro, um arquiteto ou um advogado que passaram pela graduação preocupados tão somente em adquirir conheci-mentos técnicos, descurando-se de valores sociais e éticos? A esse respeito pode-se reg-istrar a advertência de Nalini:

Em todo o planeta, a experiência contemporânea constatou que os estudos universi-tários – sobretudo os do direito – não se mostram adequados às exigências que o mundo moderno põe à profi ssão jurídica. Eles não padecem de falta de extensão ou profundi-dade. Contaminaram-se, substancialmente, de negligência ética. É o banco acadêmico a instância própria à transmissão dessa cultura comportamental cuja carência põe em risco a dignidade, senão a própria subsistência da profi ssão.17

Percebe-se, nesta linha de pensamento, que a formação ética deve constituir-se um espaço privilegiado na formação do bacharel em direito, mas que se aplica a todo profi ssional. O que se apresenta de forma evidente e clara é que a educação ética deve contribuir para a refl exão sobre os problemas sociais e mundiais, dentre eles, a desigual-dade social, a fome, o meio ambiente, sob pena de desumanização do homem e destru-ição do planeta terra.

Para que a escola seja um ambiente onde a ética ensinada possa ser efetiva-mente interiorizada é imprescindível que o ensino oferecido seja de boa qualidade. É evidente que não se terá um ensino de qualidade sem o instrumental próprio e necessário para isto. É necessário que o ambiente educacional seja propício à formação ética: escola, professores, conteúdos, relações de trabalho e relações interpessoais devem refl etir uma formação ética e cidadã.

“[...] a legitimidade da educação pressupõe necessariamente sua eticidade.”18 Essa afi rmação de Severino quer esclarecer que o compromisso ético da educação deve se estender ao exercício profi ssional dos educadores, a prática pedagógica.

Se para a população em geral, a educação ética é necessária, para os profi s-sionais do direito ela é obrigatória, e visando a que eles tenham sua conduta pautada no

17 Ibid., p. 73.18 SEVERINO, A.J. A formação e a prática do professor em face da crise atual dos paradigmas educacionais. CIÊNCIA & OPINIÃO, p. 23. disponível em:

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respeito à ética é importante que eles sejam formados num ambiente onde prevaleça o exemplo ético. Esse é o papel da universidade.

Corroborando, Severino defende que para o ensino superior

o currículo de todas as áreas de formação profi ssional, para além de um eixo disciplinar relacionado a seu campo de especialização científi ca ou técnica, precisa dispor de eixos complementares integrados, do campo antropológico, do campo sócio-histórico e do campo fi losófi co. Ou seja, o profi ssional, qualquer que seja sua área de formação, precisa sair da Universidade com a compreensão lúcida da signifi cação de sua existência, em função de sua pertença à espécie humana e das conseqüências dessa pertença, de sua inserção numa determinada sociedade histórica, com seus vínculos e peculiaridades e dos recursos do conhecimento humano na construção de todas essas referências.19

O estudante do ensino superior, para contrapor sua vivencia em um realidade/sociedade perversa, fundada no consumismo, na violência, no egoísmo necessita, segun-do Severino, de informações e conhecimentos para que possa articular sua sensibilidade ética às exigências políticas próprias de sua sociedade, necessita dos subsídios de uma amadurecida refl exão fi losófi ca sobre o próprio sentido da existência humana, sobre sua historicidade, sobre o valor da pessoa humana. Para tudo isso, fazem-se necessárias mediações curriculares.

Nalini, ressalta que:

O momento de se pensar seriamente em ética era ontem, não amanhã. O futuro cobrará do profi ssional posturas cujo fundamento ele não entenderá perfeitamente e de cuja experiência não dispõe, pois nada se lhe transmitiu ou cobrou. [...] está se a viver um tempo em que as sociedades criminosas destinam parcela considerável de seu dinheiro para formar profi ssionais voltados à sua tutela jurídica e, portanto, operadores destinados a atuar pró-criminalidade. Só o estudo aprofundado e a meditação consequente sobre a ética profi ssional é que poderá fazer frente a essa situação nova.20

Competição, violência, crime organizado são alguns dos temas emergen-tes na sociedade atual. Entretanto, faz-se necessário o enfrentamento desse quadro de desumanização para propor uma nova ética, esta fundada na colaboração. O progresso é desejável, mas este não pode sacrifi car o homem e o planeta. A acumulação econômico-fi nanceira em detrimento do caráter social do trabalho ou o desvio de verbas públicas não constituem valores a serem incorporados no processo socializador. Não há justifi -cativa ética para o enriquecimento sem causa ou para o aumento da miséria de outros seres humanos. A luta por igualdade, por distribuição igualitária de renda, por espaços de trabalho justos, constitui fundamentos da formação ética. É necessário reformar o pensamento. É necessário rever a forma e o conteúdo dos cursos e do ensino jurídico.

Assim escreve Nalini:

A educação ética é a alternativa mais efi caz de tornar cada indivíduo um zeloso contro-lador da vida democrática. O melhor termômetro dos índices democráticos é a vigilância

19 Idem, p. 2520 NALINI, José Renato, op. cit., p. 209.

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ativa por parte de uma cidadania consciente. [...] O desenvolvimento verdadeiramente humano precisa abranger o crescimento em plenitude e o conjunto das autonomias indi-viduais, das participações comunitárias e da consciência de pertença à espécie humana, a mais nobre dentre as criadas.21

Essa educação ética é realizada com a ajuda dos professores. Nas palavras de Dilsa Mondardo:

Uma educação ética se realiza com a ajuda de professores, ou melhor, de ‘mestres’ éticos. Aqueles que ajudam o aluno a ter a cabeça bem feita e se preocupam tanto em enchê-la. [...] Aluno e professor construindo uma relação de afetividade. Um ensinar e aprender voltado para a compreensão da vida em sua totalidade, humanizando as relações de saber. Uma postura capaz de se apropriar do conhecimento, mas que o transforma em experiên-cia de vida, numa teia de valores a serviço de ‘um devir que se constrói a cada instante numa perspectiva de uma ética do amor’.22

Para o profi ssional do direito, a formação ética deve permear todo o processo educativo e acompanhar a sua prática profi ssional: inicia-se na faculdade e perdura no tempo, na atuação profi ssional como advogado, juiz, promotor, procurador, defensor. Na graduação, pode estar em disciplina específi ca ou distribuído nos conteúdos práticos. O que importa é que seja explícita a formação ética. “A inclusão da disciplina Ética Geral e Profi ssional no currículo das Faculdades de Direito surgiu do reconhecimento de que os patamares de legitimidade das carreiras jurídicas, em virtude das denúncias dissemina-das e ampliadas pela mídia, chegaram a níveis insuspeitados”23.

Na contramão da teoria sobre a formação docente, o quadro de professores que atuam nos cursos jurídicos é quase que exclusivamente formado por profi ssionais atuantes na magistratura, ministérios públicos ou da advocacia, e a ênfase recai sobre a reprodução dogmática do conhecimento jurídico. Poucos são os professores que pos-suem algum tipo de formação pedagógica. A própria educação ética é relegada à disci-plina específi ca, não sendo contemplada nem como tema transversal naquelas disciplinas de caráter dogmático.

Libâneo, citado por Terezinha Rios, escreve:

A prática educativa emancipatória requer, efetivamente do educador, uma tomada de posição pela missão histórica consciente e conseqüente da humanidade, de destruir as relações de classe que sustentam a alienação e privam o homem de seu pleno desenvolvi-mento humano. Mas a prática educativa é antes de tudo, profi ssional.24

Para que a educação ética seja realizada e o desenvolvimento humano concret-

21 NALINI, José Renato, op. cit., p. 237.22 MONDARDO, Dilsa. Ética holística aplicada ao ensino de direito. In: MONDARDO, Dilsa; FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila (org.) Uma nova ética para o direito – abordagem holística. 2. ed. Florianópolis: Editora OAB/SC, 2002, p. 84. 23 Ibid, p. 21024 LIBÂNEO, J.C 1985, apud. RIOS, Terezinha Azerêdo, op. cit., p. 56.

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izado, os professores necessitam ter uma maior preocupação ética com o ensino, e que não sejam meros transmissores de informações, e sim colaboradores no processo de ensino/aprendizagem. Essa atitude requer a percepção da atividade docente como ativi-dade relevante, e não como acessória, complementar a outra atividade, ou como bico. É a necessidade de viver a prática docente no seu verdadeiro sentido e com as consequencias disto resultante. Mais do que professor, é preciso ser educador.25

Nalini menciona que:

Formar a consciência é o objetivo mais importante de todo o processo educativo. Ela é que avalia o acerto das ações, ela é que permite reformular o pensamento e as opções. So-mente ela permitirá coerência ao homem, propiciando-lhe comportar-se de acordo com a própria consciência. Por isso é que a formação da consciência, além de ser o objetivo mais importante, resume em si todo o inteiro processo educativo.26

A relação dialógica que se processa na sala de aula requer a aprendizagem dos que ensinam e o ensinamento dos que aprendem.27 Por conseqüência, um dos primeiros passos para um professor do curso de Direito ser considerado competente, é consci-entizar-se que o espaço da sala de aula não é o espaço da audiência, da promotoria ou do escritório de advocacia. Ao contrário, é um espaço de diálogo, de formação técnica e teórica e, principalmente, de formação ética, onde os educandos possam descobrir o valor da família, da solidariedade, do bem comum, da dignidade humana, da lealdade, e o compromisso contínuo com o aperfeiçoamento. Nas palavras de Nalini:

Do autêntico mestre se aguarda transmita lições e prática do respeito, da moral, da am-izade, da tolerância e da compreensão. [...] não basta conhecer ética. [...] é preciso acredi-tar na ética e viver eticamente.28

Entretanto, os equívocos são grandes. Impulsionados por escolhas que bus-cam emprego, boa remuneração, os alunos focam seus objetivos na carreira pública e descuram-se das disciplinas propedêuticas, sem perceber que a opção pelo curso de dire-ito envolve a escolha por conduzir-se corretamente no desempenho profi ssional, e que nesse desempenho os meios e os fi ns devem estar voltados para a realização da justiça.

O ensino jurídico, diferente do que ocorre na maioria das faculdades, deve voltar-se para a formação integral do futuro bacharel, bem como estimular o educando na busca incessante de informações através da pesquisa e do aprendizado que não seja a mera decoreba. O acadêmico precisa estar consciente da importância que é sua atuação junto à sociedade. Ou seja:

25 Para Rubem Alves, há uma signifi cativa diferença entre ser professor e ser educador. Professor é como eucaliptos, que crescem viçosos, idênticos, incapazes de serem identifi cados, enquanto educador é como jequitibás, árvores centenárias, únicas, sob e sobre as quais nascem histórias e vivem pássaros. São referências. 26 NALINI, J. R., op. cit., p. 188.27 Para Paulo Freire: Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1999.28 Ibid., p. 227.

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A participação do aluno na vida concreta do direito é essencial. A escola não pode ser transmissora inerte da verdade codifi cada e de alguma orientação jurisprudencial. Ela tem o dever de formar uma consciência crítica no alunado. O novo bacharel deve ser um agente transformador da realidade, imbuído do compromisso de aperfeiçoar o or-denamento. E, antes de a faculdade lhe oferecer tudo isso, é seu dever ético dela exigir a fi delidade para com esse ideário.29 [...] Um estudante desprovido de ética não será um bom profi ssional. A democracia resultante de sua atuação não será a forma ideal de vida comunitária em que se procura garantir o bem de todos, prevalecendo a orientação da maioria, mas ser um regime hegemônico, baseado na priorização dos interesses sociais. É por esse motivo que a ética reveste uma importância absoluta neste início de milênio. Ouso afi rmar que o estudante de direito deve procurar agir eticamente e ser virtuoso desde os banco escolares. [...].30

Nos termos propostos por Paulo Freire, o processo pedagógico deve fundar-se no diálogo. Professor e estudante são co-responsáveis pelo processo de aprendizagem.

Nas palavras de Nalini:

A juventude é naturalmente inquieta e revoltada contra a injustiça. Fora despertada a descobrir a potencialidade do direito para a solução de todas as grandes indagações do fi nal do milênio e mergulharia num projeto de transformação do mundo com início na conversão pessoal. Conversão a causa da justiça. Justiça que tem início em se autopropi-ciar um curso de direito da melhor qualidade.31 O primeiro dever do estudante de direito é se manter lúcido e consciente. Indagar-se sobre o seu papel no mundo, a missão que lhe foi confi ada e que depende, exclusivamente, de sua vontade. Atingido o discernimento, o estudo contínuo, sério e aprofundado será conseqüência natural. A pessoa lúcida sabe que ela pode, no seu universo, pequeno e insignifi cante lhe pareça, transformar o mun-do.32

A aprendizagem da ética, porém, não tem um termo fi nal, sua vivência é uma tarefa para toda a vida.33 Para ensinar o comportamento ético não é sufi ciente a leitura e estudo dos códigos e normas deontológicas, pois a ética para ser apreendida necessita do exemplo. Neste sentido escreve Nalini:

A educação ética ideal é a do exemplo. Discursos pouco representam diante de uma ação a eles desconforme. O pai que oferece propina ao policial para não ser multado, o que disputa na esperteza a vaga no estacionamento, o que se vangloria de haver enganado o colega ou levado vantagem no negócio, pouco pode reclamar do fi lho em termos éticos.34

4. A ética profi ssional.

Uma certeza: o agir ético pressupõe o compromisso com os valores propostos para uma comunidade, um grupo, uma sociedade. Em razão da íntima relação entre ética

29 NALINI, J. R. op. cit., p. 216.30 Ibid., p. 217.31 Ibid., p. 214.32 Ibid., p. 215.33 Ibid., p. 207.34 NALINI, José Renato, op. cit., p. 87.

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e direito é que são elaborados os códigos de regras denominados deontologia forense. Nas palavras de Nalini:

Deontologia é a teoria dos deveres. Deontologia profi ssional chama o complexo de princípio e regras que disciplinam particulares comportamentos do integrante de uma determinada profi ssão. Deontologia Forense designa o conjunto das normas éticas e comportamentais a serem observadas pelo profi ssional jurídico.35

São diversas as profi ssões jurídicas, mas algumas estão mais próximas e, por isso, merecem destaque: o advogado, o juiz, o promotor, o delegado. No Brasil, cada uma dessas profi ssões tem sua importância para a sociedade e todas estão contempladas como essenciais ao estado democrático de direito. Mesmo que não possuam seu próprio código de ética, esses profi ssionais devem observar os princípios e as normas éticas.

Profi ssão, sob o enfoque moral, é conceituada como sendo uma atividade pes-soal, desenvolvida de modo estável e honrada, em benefício próprio e de outrem, de acor-do com a vocação e em atenção à dignidade da pessoa humana.36 E nas palavras de Nalini: “O espírito de serviço, de doação ao próximo, de solidariedade, é característica essencial à profi ssão. O profi ssional que apenas considere a sua própria realização, o bem-estar pes-soal e a retribuição econômica por seu serviço, não é alguém vocacionado.”37

A sociedade deseja que aqueles que integram quaisquer das profi ssões forenses sejam merecedores de confi ança e possam desempenhar dignamente seu papel de deten-tores da honra, da liberdade, dos bens e demais valores tutelados pelo ordenamento.38

Especifi camente para o advogado, público ou privado, temos o Código de Ética e Disciplina da Advocacia e da OAB, código que preceitua regras e condutas a ser-em respeitados por todos destacando-se como princípios ser probo, diligente, delicado e discreto, relacionar-se adequadamente com clientes e colegas e com os demais persona-gens da atividade judicial, buscar permanentemente o aperfeiçoamento pessoal e profi s-sional. Conforme disciplina Rafael Bielsa, citado por Nalini: “o atributo do advogado é sua moral. É o substratum da profi ssão. A advocacia é um sacerdócio; a reputação do advogado se mede por seu talento e por sua moral”.39

Caso venha a ser promotor de justiça, deverá ser ético em primeiro lugar, e para isso, terá que, dentre outros, ter conduta ilibada, promover a justiça e a efetivação dos direitos fundamentais e humanos, e zelar pelo respeito aos poderes públicos. Nas palavras de Nalini:

[...] O promotor é o mais independente dentre os operadores jurídicos. Ele tem o poder da iniciativa, tem o dever de impulsionar a Justiça, está sob sua responsabilidade aper-feiçoar a prestação jurisdicional, transformar a sociedade e realizar a pacifi cação social. [...].40

35 Ibid., p. 185.36 Ibid., p. 181.37 Ibid., p. 182.38 Ibid., p. 189.39 BIELSA, Rafael, 1934, apud. NALINI, José Renato, op. cit., p. 239.40 NALINI, José Renato, op. cit., p. 271-272.

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Se vir a ser juiz, também deverá comportar-se eticamente, e para isso, dentre outros, deverá estar preocupado com a prestação jurisdicional célere e justa, estudar permanentemente para ter exatidão, ser independente, sereno, ser imparcial, buscando sempre a verdade real, e não somente o que está nos autos, e que muito mais do que ser legalista, deverá buscar decidir com equidade.

O juiz enfrenta desconforto quando se lhe apresenta uma solução juridicamente correta mas eticamente discutível. E se não vier a se sentir atormentado com essa perspectiva, mas resignar-se a aplicar automaticamente a lei, estará despreparado para ser verdadeiro juiz, um realizador do justo, não um efi ciente decorador de códigos. [...] Está longe o tempo em que os juízes eram a boca que pronuncia as palavras da lei. Hoje o juiz foi levado a ser co-criador da norma, colaborador do Parlamento na elaboração da norma-tividade. E a solução jurídica só satisfará a sociedade a que se destina se vir a ser uma solução essencialmente ética.41

Como delegado de polícia, a ética deve mover-lhe as ações, e nesse sentido deverá ser sensível à realidade dos despossuídos, não se deixar corromper, nem praticar violências desnecessárias, ser inimigo do crime e não do criminoso, buscar a educação e a maior aproximação e entrosamento entre as polícias, enfi m estar a serviço do povo, a fi m de manter a ordem e a segurança pública. E nas palavras de Machado e Queiroz, citados por Nalini: “Firmeza de caráter, dedicação ao trabalho, profi ssionalismo, constante atual-ização e senso de justiça em todas as situações são pré-requisitos que a sociedade espera, e exige, do verdadeiro policial.”42 Compromisso do professor na ação docente!

5. Considerações fi nais

Por fi m, destaca-se que é imprescindível educar para a ética na atuação jurídica. Para isso é necessário o compromisso de todos, da instituição, dos professores, dos alu-nos e daqueles que no dia a dia realizam a justiça.

A educação ética deve possibilitar o conhecimento das normas deontológicas e dos princípios éticos que orientam cada profi ssão, mas também deve propiciar a refl exão sobre as grandes questões sociais, econômicas, ambientais e principalmente morais que perpassam sobre a humanidade.

Essa educação ética deve permear toda a formação escolar e os professores devem estar dispostos a contribuir com seus alunos para a aprendizagem que avance além dos conteúdos dogmáticos e que os estudantes estejam dispostos a vivenciar o ensino ético.

E que com a atuação conjunta de instituições, professores e alunos, os grad-uandos desenvolvam o senso crítico a fi m de terem condição de atuar eticamente e de serem capazes de fazer sua análise ética sobre qual a melhor conduta em prol do bem

41 Ibid., p. 99.42 MACHADO, Antonio Carlos de Castro; QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi, apud. NALINI, José Renato, op. cit., p. 331.

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comum deverão tomar diante de cada situação a qual forem submetidos no decorrer de sua vida profi ssional.

Referência

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BERGER, P. L. LUCKMANN T. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Voz-es, 1992.

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MONDARDO, D.. FAGÚNDEZ, P. R. Á. (org.) Uma nova ética para o direito – abor-dagem holística. 2. ed. Florianópolis: Editora OAB/SC, 2002.

MONTORO, A. F. Ciência do Direito. São Paulo: RT, 2008

NALINI, J. R. Ética geral e profi ssional. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

RIOS, T. A.. Ética e competência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1995.

SEVERINO, A.J. A formação e a prática do professor em face da crise atual dos para-digmas educacionais. Ciência & Opinião. Revista do Núcleo de Ciências Humanas e Sociais.Aplicadas. Centro Universitário Positivo.v. 1, n. 2/4, jul. 2003/dez. 2004. In: http://cienciaeopiniao.up.edu.br/arquivos/cienciaeopiniao/File/volume2/CienciaeO-piniao2_apresentacao.pdf Disponível em 12/06/2009.

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AÇÃO POPULAR E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: UM DIÁLOGO COM A TEORIA DEMOCRÁTICA

DE ALÉXIS DE TOCQUEVILLE1

Juliana Martins Barbacena2

Resumo: Os direitos de participação e liberdades básicas previstos na Constituição da República brasileira, além da satisfação de necessidades essenciais, possibilita aos ci-dadãos participarem com livre arbítrio das decisões coletivas, de modo a satisfazer as demandas sociais de liberdade, bem-estar, desenvolvimento e justiça distributiva - todos esses valores fi ns do Estado e instrumentos para a consolidação da cidadania e a con-strução da igualdade. Tendo por base teórica a análise do pensamento político de Aléxis de Tocqueville, argumentaremos que a participação popular é instrumento importante na consolidação e desenvolvimento da democracia, posto que, em um Estado Democrático de Direito, deve ser assegurada condições próprias para a implementação efetiva da par-ticipação, e, o instituto da Ação Popular, no seu mais amplo aspecto de participação política, na democracia brasileira, é um meio viável de atuação política do cidadão e aperfeiçoamento da democracia.

Palavras-chave: Democracia, Participação Política, Cidadania, Ação Popular.

Abstract: The rights of participation and basic freedoms predicted in the Constitution of the Brazilian Republic, besides the satisfaction of essential necessities, it makes possible to the citizens they participate with free will of the collective decisions, of way to satisfy the social demands of freedom, well-being, devel-opment and distributive justice - all these values ends of the State and instruments for the consolidation of the citizenship and the construction of the equality. Taking as a theoretical base the analysis of the political thought of Aléxis de Tocqueville, we will argue that the popular participation is important in the consolidation and development of the democracy, although, in a Democratic State of Right it must be secured own conditions for the effective implementation of the participation, and, o institute of the Popular Action, in his the most spacious aspect of political participation, in the Brazilian democracy, it is a viable way of political acting of the citizen and improvement of the democracy.

Key words: Democracy, Political Participation, Citizenship, Popular Action.

1. Introdução

A teorização acerca da democracia contém alguns elementos chaves: o exer-cício de direitos, a participação política, o compromisso do homem democrático em

1 Este artigo é fruto do trabalho de Iniciação Científi ca referente ao projeto de pesquisa intitulado Por que defender a democracia?, desenvolvido sob orientação da Professora Dra. Helena Esser dos Reis (([email protected]) e fomentado pelo programa PIBIC/CNPq.2 Graduanda do 10º período do curso de Direito da Universidade Católica de Goiás. Estagiária na Procuradoria da República de Goiás; integrante do Grupo de Estudos da Democracia (www.grupodemocracia.com). Endereço: Rua C-91, Qd. 185, Lt. 02, Setor Sudoeste, Goiânia-Go. Telefone: (62) 8172-3402/ 32876255. E-mail: [email protected].

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relação a sua cidadania, a concepção de liberdade política e a forma de entender uma sociedade política ordenada e participativa.

Aléxis de Tocqueville, em A Democracia na América, fundamenta uma concepção de democracia baseada, ao mesmo tempo, em instituições legítimas e na ação política dos cidadãos. Segundo ele, o povo, grande titular da soberania, enfeixa, no exercício direto de sua autoridade, a parcela mais considerável de poder legítimo, como fazer a lei e decidir sobre questões fundamentais de governo. Afi rma ainda que é por meio da participação popular que a coletividade determina suas ações e reivindica modifi cações para que suas demandas sejam satisfeitas.

A partir do momento em que o indivíduo participa de sua comunidade, atu-ando em nome de um interesse (ou motivação) maior, o interesse público, é que ele se tornará efetivamente um cidadão. O princípio da participação popular, fundada na soberania popular, reside justamente na ativa e continuada participação por parte de todos os cidadãos, na direção dos assuntos públicos, seja opinando sobre qual plano de governo deve ser seguido, seja fi scalizando o Estado na gestão da coisa pública. A ati-tude participativa é a forma mais adequada de se aperfeiçoar, e até mesmo, de moralizar a própria democracia representativa. Porém, quando o indivíduo é excluído, ou se exclui dessa participação, temos a negação da dignidade social e política do homem no meio em que vive.

Diante disso, há um interessante ponto de convergência entre o pensamento de Tocqueville e uma das formas de exercício da soberania popular assegurada pela Con-stituição Brasileira de 1988. Justifi co essa relação justamente na idéia de que, o direito de ação e participação popular é central no pensamento tocquevilleano para a formação da vontade do estado democrático, e, por ora, ação e participação popular é assegurada pela Constituição Federal, em seu art. 5°, inciso LXXIII, quando trata da Ação Popular, pois, em uma sociedade democrática deve haver emprego de garantias jurídicas que sustentem as alternativas e mecanismos de satisfação das necessidades participativas dos cidadãos.

2. A importância de Aléxis de Tocqueville paraa discussão acerca da democracia na atualidade

A obra A Democracia na América, do fi lósofo francês Aléxis de Tocqueville, tem sido considerada pelos especialistas como uma fonte de inspiração para a análise da so-ciedade e da política contemporâneas.

Nascido em meio à antiga aristocracia francesa em 1805, Tocqueville quando tinha apenas 21 anos, foi indicado como juiz-adjunto em Versalhes e, a pretexto de estudar o sistema penitenciário norte-americano, tido como o mais avançado da época, foi para América. No entanto, o estudo pretendido não passava de um pretexto que lhe permitiu observar a prática política vivida nos Estados Unidos no século XIX.

Mais do que conhecer as instituições do Estado, Tocqueville interessava-se pela “democracia em ação”, pois era um homem de efetivo interesse na participação política. Fato que o levou a ser deputado da Assembléia Nacional Francesa por diversos

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mandatos, a elaborar uma teoria consagrada na análise dos fatos sociais e políticos, e à construção de uma fi losofi a que descreve a realização de um ideal democrático.

Um de seus comentadores, Marcelo Jasmin, afi rma que:

Homem de ação, Tocqueville interrompeu seus trabalhos literários tão logo assumiu a carreira parlamentar e a eles só retornou quando a saúde o impediu de agir ou as portas da vida pública lhe pareceram fechadas. Mesmo assim, nos períodos mais profícuos de sua produção intelectual, jamais abandonou a perspectiva pragmática do conhecimento. A atividade política permaneceu sempre o ponto de partida de suas indagações e tudo que lia e escrevia o fazia [...] com os olhos de estadista (JASMIM, 1997, p. 28-29).

Em Tocqueville, a refl exão teórica é acompanhada com a correspondente con-textualização histórico-empírica e descrição do que observara na América. Sua obra tem dimensões ético-fi losófi ca, sociológica e política, fundamentais para a compreensão da teoria e prática política contemporâneas, como, por exemplo, seu entendimento sobre a participação política, o compromisso do homem democrático em relação a sua cida-dania, a concepção de liberdade política e a forma de entender uma sociedade política ordenada e participativa, sua interpretação acerca do individualismo como vício público e a sua crítica à burocratização das instituições como forma de afastar o povo da partici-pação política.

O ideal tocquevilleano de realização democrática sustenta-se necessariamente nos alicerces da liberdade e da igualdade, os quais, segundo entendemos, devem ser a base do Estado democrático contemporâneo. Eis porque o pensamento de Tocqueville nos auxiliará a bem fundamentar nossa proposta acerca da participação do cidadão no desenvolvimento da democracia no Brasil.

3 O Estado Democrático em Tocqueville

3.1. Condições sociais de igualdade e situação política de liberdade

A democracia segundo Tocqueville, pode ser entendida sob dois aspectos: como um estado social conseqüente do avanço progressivo da igualdade das condições sociais e um regime político fundado na liberdade política de todos os cidadãos. Desse modo, há a preservação da liberdade do indivíduo e ao mesmo tempo um cidadão com-prometido com a vida pública.

Para Tocqueville, compreender os indivíduos como iguais decorre da possibili-dade de todos alcançarem ou usufruírem de semelhantes circunstâncias da vida social, política e de garantias jurídicas. Embora considere positiva a existência de diferenças so-ciais, econômicas e culturais, não admite, porém, num estado democrático, a imposição ou a obrigação de submissão de uns aos outros, porque todos são cidadãos, em situação de igualdade, e, dada a mobilidade social característica da igualização das condições, a qualquer tempo podem mudar sua posição social, tendo em vista que não há acentuada desigualdade social e material.

Outro princípio da sociedade democrática tocquevilleana é a liberdade, ou seja,

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a indispensabilidade da existência de um conjunto de condições de liberdade política, que deva dar espaços a uma participação dos indivíduos, membros do povo, no transcor-rer da vida do Estado.

A liberdade é o instrumento de defesa e garantia de direitos consagrados. Só haverá liberdade onde houver ação permanente do corpo de cidadãos na esfera pública. Sua condição de sobrevivência se dá pela participação na esfera dos negócios públicos sob pena dos indivíduos se acomodarem no isolamento e alienação cívica. O modelo de liberdade democrática engloba a liberdade participação e a liberdade responsabilidade.

Podemos concluir que Tocqueville pensa a democracia tanto num aspecto mais social - uma sociedade fundada na igualdade de condições -, quanto em uma dimensão mediante a qual favoreça a participação dos indivíduos nos assuntos públicos. Para que haja uma autêntica democracia, deve haver um concurso na relação dialética entre igual-dade e liberdade. A construção de uma ordem política democrática adequada às moder-nas sociedades igualitárias depende de uma orientação política voltada para intervenção no mundo público.

A democracia não pode ser reduzida a procedimentos e formalismos jurídicos, pois, é a participação social e política que caracteriza profundamente a sociedade e o governo democráticos. É neste sentido que o fi lósofo Tocqueville apela para uma cultura política democrática, a partir do compartilhamento das responsabilidades públicas, em cada comunidade, que multiplica e proporciona ocasiões dos indivíduos atuarem conjun-tamente e sentir que dependem uns dos outros, que vivem em sociedade.

Pelo fato da democracia pressupor manifestações participativas do povo so-berano, o que compreende um conteúdo político, este é, ao mesmo tempo, indissociável de aspectos jurídicos. Assim, a ordem jurídica deve dispor o resguardo da manifestação da vontade popular, concedendo pleno respaldo a um regime fundado neste princípio de convivência social e de ação política. Tocqueville vê de algum modo essa harmonia e interdependência do poder judiciário e o mundo político para manutenção da ordem democrática.

3.2 O problema do individualismo no Estado Democrático

O fato do indivíduo se desinteressar pelos problemas políticos e se apegar somente a sua vida privada, é caracterizado por Tocqueville como individualismo, o qual tem origem na separação dos cidadãos uns dos outros e no abandono pelo interesse público decorrente do enaltecimento da vida privada.

Os vínculos que prendiam os homens uns aos outros numa longa cadeia de mando e obediência, característicos das sociedades aristocráticas, pouco a pouco desa-parecem. A liberação desta longa cadeia faz com que cada um perca de vista não apenas seus compromissos servis, mas também seus ancestrais e sua descendência, bem como suas referências presentes – desconhecendo os vínculos que os ligam aos seus conci-dadãos acabam por restringirem suas vidas a um pequeno círculo que acreditam bastar a si mesmo.

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Assim, na sociedade democrática, dada a igualização das condições, os in-divíduos acreditam que “nada devem a ninguém ou nada esperam de pessoa alguma; habituam-se a se considerar sempre isoladamente, e de bom grado imaginam que o seu destino inteiro está entre suas próprias mãos” (TOCQUEVILLE, 1998, p. 387). Ou seja, à medida que as condições se igualam, os indivíduos se tornam independentes, suas realizações e sua posição social são alcançadas - acreditam – exclusivamente pelo esforço próprio. O medo da decadência e a ambição pelo conforto e posição social são sentimentos arraigados.

O sentimento de inveja pela situação econômica do vizinho e o desejo infi nd-ável de no mínimo equiparar-se, segundo Marcelo Jasmim (1997, p. 58): “torna-se na análise de Tocqueville, sentimento generalizado nas condições sociais igualitárias. Assim, individualismo, privatização e indiferença cívica são termos funcionalmente adequados entre si nas condições da democracia”. Tocqueville denuncia que a obsessão pelo bem estar material, pode acarretar males capazes de abalar a democracia. De acordo com Helena Reis:

Embora na democracia, liberdade e igualdade exijam-se mutuamente, o desmedido da paixão pelo bem-estar material age, no indivíduo, fragilizando a clareza de seu julga-mento, de modo que, ofuscado pela mesquinhez renuncia à liberdade. (...) sempre que a paixão dos homens pela igualdade de condições se sobrepuser ao gosto pela liberdade, as conseqüências previstas por Tocqueville são a degradação da condição humana e a servidão política (REIS, 2004, p. 73).

Segundo Tocqueville, as condições sociais modernas, que instigam o indivíduo à paixão pelo bem-estar material, representam o aniquilamento do homem político. Esta paixão pode mesmo coadunar-se com o desenvolvimento de certas virtudes privadas, como o amor à família, a regularidade dos hábitos, as crenças religiosas, a honestidade nos negócios, a astúcia comercial, etc. Marcelo Jasmin (1997, p. 56) explica que “o aban-dono da ‘grande sociedade’ implica o progressivo afastamento dos homens em relação aos negócios comuns, fazendo-os voltar-se exclusivamente para seus interesses priva-dos”. Neste caso, a corrupção das virtudes públicas é, para Tocqueville, evidente e a mediocridade política inevitável.

A crítica tocquevilleana ao individualismo é corrosiva, pois o considera como vício público que corrompe o espírito cívico e a virtude pública, gera o descaso com a coisa pública e a submissão a um governo tutelar.

O individualismo é encarado como um sentimento refl etido e pacífi co, que, en-altece os interesses privados em detrimento dos interesses públicos e da coletividade, e, de acordo com Tocqueville (1998, p. 386), “dispõe cada cidadão a isolar-se da massa de seus semelhantes e a retirar-se para um lado com sua família e seus amigos, de tal sorte que, após ter criado para si, dessa forma, uma pequena sociedade, para seu uso, abandona de bom grado a própria grande sociedade”.

Dessa maneira, à partir de um isolamento da sociedade, os indivíduos se autocon-denam à própria insignifi cância e impotência. O isolamento cada vez maior do indivíduo e sua conseqüente impotência para intervir signifi camente na direção da vida política, tende a degradar o cidadão.

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Tocqueville é bastante crítico a essa postura do homem que se concentra em sua vida privada convencido de que encontrará em si mesmo sua realização e satisfação. Isso não passa de uma a ilusão individualista de auto-sufi ciência. Com muita propriedade Helena Reis afi rma que:

A análise de Tocqueville nos leva a compreender que o individualismo acomoda-se per-feitamente à fraqueza dos sentimentos cívicos: o homem da sociedade democrática é como um estranho aos seus concidadãos; o destino público acredita, não lhe concerne. Deseja a proteção do estado para o gozo tranqüilo de seu bem-estar, mas nega-se a com-partilhar a responsabilidade sobre o que diz respeito à coletividade como um todo. Existe apenas em si mesmo e para si mesmo (REIS, 2004, p. 76).

Quando o indivíduo se desinteressa pelo público, deixando de participar dos assuntos de interesse comum, renega de certa forma o exercício da liberdade. Tocqueville demonstra, então, que um remédio democrático efi caz e legítimo, que temos ao nosso alcance para corrigir essa ilusão individualista e fazer com que se concilie interesses par-ticulares ao interesse público, exige, necessariamente, liberdade política, ou seja, exige participação ativa dos cidadãos na direção de assuntos públicos. Nas palavras do fi lósofo: “eu, por mim, para combater os males que a igualdade pode produzir, só existe um remé-dio efi ciente: é a liberdade política” (TOCQUEVILLE, 1998, p. 391).

Liberdade política pode ser entendida como a participação ativa dos cidadãos na direção dos negócios públicos. Deste modo, devemos entender que só haverá liber-dade democrática onde houver ação permanente do corpo de cidadãos na esfera pública. Contudo, observa Marcelo Jasmim (1997, p. 35), “a consecução da liberdade é um produ-to da arte dos homens, frágil e incerta”. Assim, a liberdade política não existe por si só, mas depende, segundo Tocqueville, da educação cívica mediante a vivência de costumes de liberdade, da criação de hábitos cívicos, da prática cotidiana da cidadania. Eis que:

A experiência, os costumes e a instrução quase sempre acabam por criar na democracia aquela espécie de sabedoria prática de todos os dias e aquela percepção dos pequenos acontecimentos da vida que chamamos de bom senso (...) e num povo cuja educação está completa, a liberdade democrática aplicada aos negócios interiores do Estado, produz mais bens do que os males acarretados pelos erros no governo da democracia (TOC-QUEVILLE, 1998, p. 177).

O fi lósofo desenvolveu a doutrina do ‘interesse bem compreendido’, em que, segundo ele, “a partir do momento em que se tratam em comum os assuntos comuns, cada homem percebe que não é tão independente dos seus semelhantes quanto imaginava a princípio” (TOCQUEVILLE, 1998, p. 389). Ou seja, por meio das ocasiões de se agir em conjunto, faz com que os indivíduos percebam que dependem uns dos outros, afa-stando aquele sentimento de individualidade e independência que os induz a confundir liberdade com auto-sufi ciência privada. Outrossim, ensinam a esses mesmos indivíduos que a participação conjunta na gestão de interesses comuns desenvolve sua capacidade de pensar e agir por si mesmo, ou seja, favorece a liberdade do cidadão.

Contra o individualismo, a educação cívica que se realiza por meio da par-

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ticipação ativa nas questões comuns prepara cada um a se ver como membro do corpo político. As pessoas tornam-se cidadãs na medida em que agem no âmbito político, de modo que o processo de aprendizagem está diretamente vinculado à prática e ao hábito. Aléxis de Tocqueville é enfático no que diz respeito ao amadurecimento da democracia:

Educar a democracia, reanimar, se possível, as suas crenças, purifi car seus costumes, regular os seus movimentos, pouco a pouco substituir a sua inexperiência pelo conheci-mento dos negócios de Estado, os seus instintos cegos pela consciência dos seus verda-deiros interesses; adaptar o seu governo às condições de tempo e de lugar, modifi cá-lo conforme as circunstâncias e os homens - tal é o primeiro dos deveres impostos hoje em dia àqueles que dirigem a sociedade (TOCQUEVILLE, 1998, p. 14).

Tocqueville insiste no valor da educação cívica e política em sua argumenta-ção no âmbito da sociedade civil. Educação difere de instrução. Enquanto instrução é aquisição de conhecimento formal, educação é vivência. Segundo nosso pensador, a na-ção mais democrática é aquela na qual os homens aperfeiçoam os sentimentos, o espírito público e a arte de buscar em comum seus desejos comuns, pois que, os sentimentos e as idéias não se renovam, o coração não cresce e o espírito não se desenvolve a não ser pela ação recíproca dos homens uns sobre os outros.

Assim, a democracia tocquevilleana também deve ser entendida à partir da noção de pluralidade, da articulação entre o consenso e o dissenso, entre a diversidade e o espaço comum, ou seja, “um mundo comum no qual a formação da identidade não admite esmagamento do outro” (FARIAS, 2004, p. 408). Tudo isso, corroborado com o exercício da cidadania, que nada mais é senão o princípio da liberdade participativa por meio da qual o homem exerce o seu “autogoverno”.

A participação popular é essencialmente uma questão política, relacionada ao grau de desenvolvimento e efetivação da democracia. Assim, como deixa claro Helena Reis:

Apenas quando todos os cidadãos participarem das decisões acerca do destino comum e assumirem as responsabilidades decorrentes da sua decisão é que a liberdade política (que se manifesta como soberania do povo) poderá coexistir ao estado social igualitário (REIS, 1999, p. 87).

Isso signifi ca que a soberania do povo é o refl exo da manifestação social e política do povo agindo em vista do interesse público, ou seja, como dito antes, par-ticipando diretamente dos assuntos públicos. Apenas assim cada um se reconhece, ao mesmo tempo, como legislador e destinatário das normas instituídas. Nas palavras de Tocqueville (1998, p. 186), “essa origem popular, que muitas vezes prejudica a excelência e a sabedoria da legislação, contribui singularmente para o seu poder. Existe, na ex-pressão da vontade de todo um povo uma força prodigiosa”.

Segundo o fi lósofo, é imprescindível para consolidação do Estado democrático que se desenvolva uma ação voltada para a educação política dirigida a um universo de pessoas, membros da comunidade política e jurídica, para que possam saber e ter con-sciência do que seja “patrimônio público”, em sentido amplo, como algo que é de todos e de cada um em particular. Pois que, “sem ação comum, ainda existem homens, mas

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não um corpo social” (Ibidem, p. 325). A existência de uma consciência nacional pode reforçar a ação democrática, e sua ausência pode comprometer a independência da so-berania popular:

Se, em todos os tempos, a educação ajuda os homens a defender a sua independência, isso é verdadeiro sobretudo nos séculos democráticos (...) a concentração dos poderes e a servidão individual aumentarão, pois, nas nações democráticas, não somente em proporção à igualdade, mas em razão da ignorância (Ibidem, p. 519).

4. Cidadania e Participação Política

Para melhor deslinde do tema é cabível o delineamento da idéia de cidadania e do que ser cidadão, uma das idéias centrais da fi losofi a política de Tocqueville.

Segundo o fi lósofo, ser cidadão é ser membro de uma comunidade política e reconhecer seus interesses nos atos do governo ou este lhe será estranho e artifi cial. A cidadania demanda iniciativa de participação por parte dos indivíduos em busca de garantias e reconhecimento de si mesmos como parte integrante do sistema político e democrático da sociedade. É através do exercício das prerrogativas inerentes ao status de cidadão, que o indivíduo pode interferir nos destinos do Estado, seja opinando sobre qual plano de governo deve ser seguido, seja fi scalizando o Estado na gestão da coisa pública, dentre outras ingerências.

Para que a democracia se desenvolva, segundo Tocqueville, é necessário que haja ligação entre atores sociais e agentes políticos, que a representatividade social dos governados seja garantida e esteja associada à limitação dos poderes e a consciência da cidadania.

A força principal da democracia reside na vontade dos cidadãos de agirem de maneira responsável na vida pública. Se estes não se sentem responsáveis pelo seu gov-erno, não pode haver representatividade dos dirigentes ou livre escolha pelos dirigidos. O agir responsável, por sua vez, prescinde do conhecimento dos direitos e das leis a que estão submetidos.

Tal concepção exige-nos uma posição de defesa ao exercício dos direitos políti-cos como forma de instigar nos homens a convicção de suas responsabilidades cívicas. Neste sentido, à cidadania, enquanto dimensão pública da participação dos homens na vida social e política do Estado corresponde a um feixe de privilégios, decorrentes da condição de titularidade da coisa pública. Tais privilégios não é outra coisa senão o ex-ercício dos direitos.

Tocqueville compreende que não é fácil ensinar a todos os indivíduos exer-cerem e servirem de seus direitos contidos nas leis: “a grande maioria da nação mal as conhece [as leis]: vê-as em ação apenas em casos particulares, só difi cilmente apreende a sua tendência e se submete a elas sem meditar” (ibidem, p. 43). Mas afi rma que quando isso acontecer, os efeitos resultantes serão grandes, signifi cativos. Afi rma a respeito dos direitos políticos:

É preciso atribuir de repente o exercício dos direitos políticos a todos os homens; afi rmo, porém, que o meio mais efi caz e talvez o único que nos resta de interessar os homens

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pela sorte da sua pátria é fazê-los participar de seu governo. Hoje em dia, o espírito cívico parece-me inseparável do exercício. (Ibidem, p.183).

Um problema crucial, segundo Tocqueville é implantar o espírito público em um grande número de pessoas. Por isso, a virtude pública deve ter características que complementam as da ação nas quais ela deve existir, ou seja, o cidadão deve ter preocu-pação na conciliação consciente de interesses público e privado, deve tomar parte ativa no governo da sociedade visando à construção participativa de um interesse comum e compreender que a prosperidade de seu país infl uencia diretamente sobre seu bem-estar.

Alguns teóricos do direito analisam que é por meio da participação política que se aperfeiçoa e se legitima o Estado Democrático. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992, p. 25-26):

Pela via de participação, os governantes recuperam a legitimidade originária; a partici-pação no exercício do poder garante a legitimidade corrente e a participação no destino e controle dos resultados do poder asseguram a legitimidade fi nalística. (...) Esta é a utilidade da participação política: o aperfeiçoamento da legitimidade e com ela da de-mocracia.

Já Canotilho (1986, p. 151) com muita propriedade, afi rma:

A teoria da democracia participativa considera-se como teoria crítica da teoria pluralista e como alternativa para o impasse do sistema representativo. O seu ponto de partida fun-damental é o interesse básico dos indivíduos na autodeterminação política e na abolição de domínio dos homens sobre os homens.

Participação política indica envolvimento, interferência do indivíduo no ger-enciamento dos assuntos estatais em condições de reforçar, alterar, inibir ou suprimir a ação do poder estatal. Para Helena Reis (1999, p. 90), “a participação política é dignifi -cante por si mesma, pois através dela o homem se eleva para além de suas preocupações cotidianas e reconcilia seu interesse privado ao bem público”.

E como direito fundamental de todo indivíduo (amparada pela soberania pop-ular), que revestido da sua condição de povo - e não tão só da construção do ideal de cidadão – a participação política encontra-se apta a interferir nos processos de força do Estado e na governabilidade dos destinos da sociedade da qual participa.

Como confi guração histórica, consistem tais direitos de participação em dire-itos de quarta geração, ou seja, direitos fundamentais à participação política, em igual-dades de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e mesmo tempo criam o direito legítimo.

A participação dos homens na ação política do Estado, tanto exercendo a fun-ção fi scalizatória do poder público, ou participando de decisões que dizem respeito à coletividade, e a extensão dos direitos públicos a todos membros, levam à possibilidade de participação cada vez maior dos homens no agir do Estado, e é, segundo Tocqueville, imprescindível para a construção do Estado Democrático.

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Entretanto, é freqüente acreditar que o exercício da cidadania se reduz ao cum-primento de certos ritos e obrigações. Consideramos errônea a afi rmação simplória de que cidadão é quem pode votar e ser votado, ou que se adquire a condição de cidadão com o alistamento eleitoral. A cidadania exige uma sociedade, na qual é necessária certa igualdade nas relações sociais e um amplo sentido de responsabilidade pública, onde os cidadãos são reconhecidos como sujeitos de interesses válidos, de aspirações pertinentes e direitos legítimos, em prol do bem comum.

Embora, de acordo com nossa argumentação, a cidadania deve ser concebida como construção de sujeitos políticos inseridos em uma comunidade política, conhec-emos a difi culdade deste processo de construção de autonomia ativa e da capacidade de intervir nos negócios do estado. Sabemos, por outro lado, que a reclusão de cada um à sua vida privada tem como conseqüência não apenas a servidão política, mas a própria degradação do homem.

5. Ação Popular: propulsora de participação política eaperfeiçoamento da democracia

Trazendo a análise o elemento participativo da teoria democrática tocquevil-leana, aspecto fundamental para a construção de uma sociedade democrática, e correl-acionando-o a uma das formas de exercício de participação garantida pela Constituição Brasileira, tomamos como exemplo a Ação Popular3 , um instituto de democracia direta que permite ao cidadão a qualquer momento intervir no processo político, na comuni-dade política e participar de certa forma do exercício do poder, fi scalizando-o e exigindo apuração de responsabilidades por meio do Poder Judiciário e, atuando através deste, na função pública de controle. É direito de participação na vida política do Estado e fi scal-ização na gerência do patrimônio público.

A Ação Popular trata-se de um instituto de natureza política e essencialmente democrático, instrumento de democracia participativa, que instaura uma demanda de natureza civil de caráter corretivo ou preventivo, ou seja, o autor popular age no in-teresse da comunidade a que pertence, em face dos administradores da entidade ou do patrimônio público, para constrangê-los à observância da lei e ressarcimento do dano eventualmente causado.

Tal instrumento participativo é, na Constituição da República brasileira, um direito-dever do seu pleno exercício, e tem ela natureza de um direito público, subjetivo e autônomo, incluído dentre os direitos políticos4 do cidadão brasileiro. Assim, a liber-dade-participação não é apenas um direito para proteger a privacidade individual e sim

3 Art. 5°, LXXIII, da Constituição Federal: qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, fi cando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.4 Há divergências doutrinárias quanto a inclusão da Ação Popular como um direito político tendo em vista o rol do art. 14 da Constituição Federal de 1988.

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5 É regulada pela Lei n° 4.717 de 29 de junho de 1965.

uma obrigação e responsabilidade do cidadão em levar a sério o governo democrático e se atentar para as questões públicas.

A Constituição Federal ao conferir a qualquer cidadão o direito de propor Ação Popular que vise anular atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, conforme assevera o professor José Afonso da Silva (2007, p. 77)

Instituiu, assim, um remédio processual, mediante o qual o cidadão participa da alta missão política de fi scalizar a gestão dos negócios públicos, em sentido mais abrangente dessa expressão. Aparece a ação popular, destarte, como instrumento pelo qual qualquer cidadão fi ca investido de legitimidade para o exercício de um poder de natureza essen-cialmente política, e constitui manifestação direta do poder popular consubstanciado no parágrafo único do art. 1º da Constituição: todo o poder emana do povo.

Essencial é a natureza impessoal da Ação Popular, onde o interesse que é de-fendido é o interesse da coletividade, interesse público. Interessante apontar que tal fi -nalidade da ação popular coincide com a doutrina do ‘interesse bem compreendido’ de Tocqueville, ou seja, um sentimento segundo o qual a promoção do bem estar coletivo refl etirá no bem estar individual. A lógica do interesse bem compreendido é no sentido de que se transmite ao cidadão a responsabilidade pela administração e fi scalização das questões públicas, estimulando a participação política via ação conjunta e reforçando os laços de interdependência entre os indivíduos.

O que se garante com a Ação Popular é justamente o direito de postular a pro-teção dos bens essenciais à comunhão social (bem social), quais sejam: o erário público; a moralidade administrativa; o meio ambiente; o patrimônio histórico e cultural e inter-esses difusos. O bem social não pertence individualmente a ninguém, mas coletivamente a todos. O cidadão não poderá atuar por interesse unicamente pessoal. Pelo contrário, o autor popular age em nome do interesse da sociedade, pois está a pleitear a proteção do patrimônio da coletividade e não um bem individual.

A participação dos indivíduos em todos os níveis de vida nacional fundamen-ta e dá legitimidade a pretensão da satisfação e controle dos fi ns sociais, culturais, de probidade administrativa, moralidade, igualdade e de liberdade, e é uma maneira de se conseguir uma sociedade racional e responsável, que passa a exercer um papel político amplo, acrescentando qualidade e legitimidade ao debate público.

Mas, apesar de toda garantia e regulamentação5 de tal instrumento participa-tivo, acontece exatamente o que Tocqueville (1998, p. 412-413) já observara: “não é necessário tirar de tais cidadãos os direitos que possuem; eles mesmos os deixam volun-tariamente escapar. O exercício de seus deveres políticos parece-lhes um contratempo desagradável que os distrai da sua indústria”.

Tocqueville observa as tendências individualistas nas sociedades democráticas e os perigos que dela derivam, a saber, a degradação do ser humano e o isolamento cada vez maior do individuo e sua conseqüente impotência para intervir signifi camente na

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direção da vida política. Para o fi lósofo, o individualismo corrompe o espírito cívico e a virtude pública, gera o descaso com a coisa pública e a submissão a um governo tutelar e têm origem na separação dos cidadãos uns dos outros e no abandono pelo interesse público decorrente do enaltecimento da vida privada.

Não há, no Brasil atual, uma educação política e cívica amadurecida, que con-tribuiria com o processo democrático. Há uma defi ciência de instrução e conscientização da população brasileira no sentido de desenvolver uma mentalidade crítica e política, e ter consciência de preservação do patrimônio público e da moralidade administrativa.

Muitos cidadãos nunca tomaram nem mesmo conhecimento da existência de uma ação constitucional por meio da qual pudessem pleitear a anulação de atos lesivos a bens que lhe pertencem. Não é dada a devida importância para a defesa de patrimônio e interesse públicos, justamente porque há um desconhecimento grande da população em relação aos modos de participação. A tendente atitude dos governantes que exercem o poder estatal consiste em desfavorecer o interesse do cidadão pela coisa pública e a concentrá-los em seus próprios negócios, salvo nos momentos em que se dá o procedi-mento eleitoral.

Não podemos reduzir a democracia a períodos eleitorais, sob pena de transfor-marmos a efetiva ação democrática em meros votos pios ou ingênuas intenções eleitor-eiras, isso porque,

Em um mundo tão centrado no individualismo, tornam-se imperiosas formulações que empreendam uma “nova teoria da democracia” através da valorização do conceito de ci-dadania e propiciem, de maneira inequívoca, a repolitização das práticas sociais, tornando a participação política bem mais que o ato de votar (SANTOS, 1995, p. 65).

Assim, questionamos com Tocqueville: qual a importância de ser cidadão por um instante e súdito pelo resto do tempo? A prática eleitoreira e o défi cit participativo dos cidadãos no controle, discussão e tomada de decisões acerca dos assuntos públicos, não favorecem a construção democrática, e tal modo de proceder traz graves difi culdades à democracia no Brasil, vez que, os instrumentos de participação jamais ultrapassarão sua mera enunciação formal. O povo-massa que não se inquieta com a democracia - da qual nunca teve uma noção clara – permanecem à margem da participação democrática.

O professor Paulo Modesto (2008) coloca essa problemática nos seguintes termos:

Qual a efetividade de um enorme arsenal de ações constitucionais e instrumentos de participação formal, por exemplo, diante de situações de apatia e abulia política? (...) A apatia política, a falta de estímulo para ação cidadã, relaciona-se mais diretamente à falta de informação sobre os direitos e deveres dos cidadãos; a falta de vias de comunicação direta realmente ágeis do cidadão em face do aparato do Estado; a falta de resposta a solicitações; a falta de tradição participativa e à excessiva demora na resposta de solicita-ções ou críticas (...) A abulia política (não querer participar da ação cidadã), relaciona-se, por sua vez, com o ceticismo quanto a manifestação do cidadão efetivamente ser levada em consideração pela administração pública, bem como pela falta de reconhecimento e estima coletiva para atividades de participação cidadã.

A ordem jurídica brasileira não é carente de instrumentos normativos para

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operacionalização da participação popular na administração pública. Mas a participação permanece escassa.

Esta aparente democracia que encontramos no Brasil encontra paralelo com as análises que Tocqueville fez na primeira metade do século XIX. Ele observou que nos estados em que a democracia transparece antes nas leis do que nos costumes, os homens cedem sua liberdade em troca do bem estar e acabam renunciando, sem saber, a liberdade.

A ilusão democrática faz os indivíduos se acomodarem facilmente ao despo-tismo administrativo em detrimento da soberania do povo. Acreditando ter garantida sua liberdade, se consolam por estarem sob da tutela do Estado. Assim, certos recursos próprios da arte democrática servem para dirigir, de um modo legítimo e efi caz, essa tendência que leva, como se fosse um processo natural, a sociedade democrática a sub-missão ao poder estatal onipotente.

Se os males da democracia lhe são inerentes, os remédios capazes de combatê-los também o são. Se há uma tendência ao isolamento e à apatia política, há também outra tendência, própria aos homens da democracia, ao gosto pela liberdade e pela par-ticipação política. A democracia não está fadada ao individualismo, nem à massifi cação, nem à opressão política; estas são apenas possibilidades, assim como são possíveis o exercício da liberdade, cidadania e participação política.

O desenvolvimento de condições democráticas reais depende fundamental-mente do envolvimento dos cidadãos com as questões públicas e, em verdade, o pro-cesso de fortalecimento da democracia participativa pressupõe a participação efetiva e o controle dos cidadãos dos atos da administração pública.

Desta feita, o caminho de uma ordem democrática, com base nos fundamentos e objetivos republicanos brasileiros, torna-se vigoroso com a presença e o fortalecimento da atuação dos cidadãos. A noção de participação do povo na esfera estatal, no espaço público, coaduna-se com o princípio da co-responsabilidade, e o engajamento do ci-dadão tem valor fundamental para dar sustentação à democracia.

6. Considerações Finais

O ideal democrático é originado pela própria prática e experiência, sendo genu-inamente cultural. Daí a importância da participação política, princípio esse que vai ao en-contro da concepção tocquevilleana de democracia como um processo dinâmico que pres-supõe uma sociedade aberta e ativa, no sentido de que, no decorrer do processo histórico, oferece aos cidadãos possibilidades de desenvolvimento integral, liberdade de participação, crítica no processo político e a consolidação de igualdade econômica, política e social.

É na capacidade de ação e participação que está a possibilidade de os indivíduos e os grupos mudarem a realidade que os cerca. É a força social e política que dão razão á sociedade democrática. As pessoas tornam-se cidadãs na medida em que agem no âmbito político, sendo que o processo de aprendizagem democrático está diretamente vinculado à prática e ao hábito.

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A partir de uma cultura cívica e política leva-se à compreensão do que o in-dividualismo nega em compreender: a auto-sufi ciência do indivíduo na esfera privada é uma ilusão, porque os assuntos individuais dependem estritamente da direção dos negócios públicos. É mister, portanto, que os cidadãos deliberem sobre as questões de interesse comum e compartilhem as responsabilidades.

Eis a fi nalidade das instituições democráticas na percepção de Tocqueville (1998, p. 461): “poder-se-ia supor que a conseqüência última e o efeito necessário das instituições democráticas é confundir os cidadãos na vida privada, tanto quanto na vida pública, e forçá-los todos a levar uma existência comum”.

Nesse contexto, a democracia participativa é um aprofundamento do mod-elo democrático e consiste na possibilidade de participação mais efetiva e direta dos cidadãos nas decisões públicas e governamentais, expressando os interesses coletivos, à medida que controla e fi scaliza o poder público.

7. Referências

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CANOTILHO, José Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Ed. Almedina, 1986.

FARIAS, José Fernando de Castro. Os Desafi os da Democracia. Revista de Direito Constitucional, n° 3, jan/jun, 2004.

JASMIM, Marcelo Gantus. Aléxis de Tocqueville: a historiografi a como ciência da política. Rio de Janeiro: Access, 1997.

LEFORT, Claude. A questão da democracia. In: Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 23 – 36.

MELGARÉ, Plínio. Horizontes da Democracia e do Direito: um compromisso humano. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, nº 78, p. 653-685, 2002.

MODESTO, Paulo. Participação popular na administração pública - mecanismos de operacionalização. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2586. Acesso em 10/04/2008

NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Direito da Participação Política. Rio de Ja-neiro: Ed. Renovar, 1992.

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SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice, o Social e o Político na pós modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.

SILVA, José Afonso da. Ação Popular constitucional: doutrina e processo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

TOCQUEVILLE, Aléxis de. A democracia na América. Tradução, prefácio e notas: Neil Ribeiro da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1998.

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A DESNECESSIDADE DE DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO PARA

CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADEADMINISTRATIVA

Tiago Resende Botelho1

Resumo: O presente trabalho busca analisar a improbidade administrativa sob o enfoque da desnecessidade de dano ao patrimônio público, a partir dos atos que se viciam, não pelo prejuízo material aos bens públicos, mas pela lesão aos princípios constitucionais que norteiam a administração. Assim, o pilar central deste artigo encontra-se alicerçado no art. 21, da Lei n° 8.429/92, Lei de Improbidade Administrativa juntamente com o art. 37 da Constituição Federal, uma vez que para tais dispositivos o dano ao patrimônio público não é requisito necessário para a caracterização da Improbidade Administrativa.

Palavras-chave: improbidade administrativa - desnecessidade de dano - patrimônio público.

Abstract: The work seeks to analyze the administrative improbity by the non-necessity of the damage to the public patrimony, beginning with the acts that prejudice themselves, not by the hurtful result but by damaging the principles of the Brazilian Constitution those which north the administration. So, the nu-clear center of this article is based on the combination of the article 21, I, of the administrative improbity Law number 8.429/92 with the article 37 of the Brazilian Constitution, because by these articles the damage to the public patrimony is not a necessary requirement to typify the administrative improbity.

Keywords: administrative improbity - non-necessity of the damage - public patrimony

1. Introdução

A corrupção da administração pública envolve uma infi nidade de práticas ile-gais, indo desde os grandiosos escândalos fi nanceiros às práticas desonestas e arcaicas como o clientelismo, favoritismo, nepotismo, peculato, dentre outros. Tais irresponsabil-idades são visíveis, pois afetam a soberania, a dignidade do cidadão, a justiça e, acima de tudo, desestabilizam o Estado Democrático de Direito, produzindo mazelas sociais, den-tre as quais vislumbram-se a pobreza, o subdesenvolvimento e a estagnação social. As-sim, pode-se afi rmar que a corrupção no Brasil transformou-se em uma praxe endêmica, haja vista a quantidade indiscriminada de desmandos, ilegalidades e impunidades que acompanham a trajetória histórica do País.

Todavia, a Constituição Federal de 1988, com a tipifi cação do art. 37, § 4º rep-resentou um grande avanço na persecução a estas irresponsabilidades, pois, criaram-se meios de reprimir os atos corruptos do administrador público, pautando-se primordial-mente na legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência.

1 Licenciado em História pela UFGD, Bacharel em Direito pela UEMS, Assessor Jurídico do MPE, Pós-graduando em Direitos Humanos e Cidadania pela UFGD. [email protected]

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Em 1992, frente às necessidades sociais, é aprovado pelo então presidente Fer-nando Collor de Mello a Lei nº 8.429/92, a Lei de Improbidade Administrativa, alargando ainda mais o encalço a qualquer tipo de conduta que afete negativamente a administração pública, inserido-se como ímprobo não mais apenas o ato que gera enriquecimento ilíci-to, mas também aquele que causa lesão ao erário e também os que afetam os princípios basilares da administração pública.

Destarte, o presente artigo tem como desígnio central desvincular o dano ao patrimônio público como único elemento tipifi cador do ato ímprobo, é bem verdade que o patrimônio público na maioria das vezes continua sendo o alvo central da improbidade, todavia não é único, motivo o qual a Lei 8.429/92 não pode deixar de perseguir os atos que ferem o espírito da administração pública pela simples justifi cativa de não danifi car materialmente o patrimônio público.

2. Atos de Improbidade

Os atos de improbidade administrativa são classifi cados de acordo com a Lei 8.429/92 em três categorias: Atos de Improbidade administrativa que importam en-riquecimento ilícito (Art. 9º); Atos de Improbidade administrativa que causam lesão ao erário (Art. 10) e os Atos de Improbidade Administrativa que atenta contra os princípios da administração pública (Art. 11).

Quanto aos atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito Defi ne o Art. 9º da lei em espeque que enriquecer ilicitamente é aferir vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades descritas no art. 1º. Todavia, este conceito carrega um rol mera-mente exemplifi cativo dos atos que freqüentemente importam enriquecimento ilícito, deste modo, o mero enriquecimento, oriundo da utilização do poder público, mesmo que não exemplifi cado na lei, caracteriza-se como tal.

A confi guração do enriquecimento ilícito em geral se dá com o desfalque do patrimônio público, todavia esta não é uma regra, já que a lesividade não é elementar do tipo do art. 9º. Assim, a mera vantagem patrimonial diretamente do interessado como forma de pagamento a algum favorecimento pessoal, mesmo não causando dano ao patrimônio, interfere na estrutura legal da administração. Desta forma, aquele que agir improbamente ressarcirá integralmente o dano e incidirá nas penas previstas no art. 12, I da Lei de Improbidade Administrativa2.

Referente ao ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário o que se persegue é a violação material causada pelo mau administrador. Nada melhor que con-

2 Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específi ca, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações: I - na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fi scais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;

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ceituar o ato que lesa o erário utilizando-se de seu próprio conceito legal. Assim, o art. 10 delineia como sendo qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaramento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º.

Importante destacar que o prejuízo é um dos requisitos deste ato, ainda que as aparências indiquem o contrário. É o que cotidianamente ocorre em obras ou serviços públicos em que agentes burlam a licitação alegando que a condição do negócio pautou-se no preço de mercado, todavia o inciso VIII, do referido artigo, trata a dispensa da licitação como forma de prejuízo presumido ao erário.

Percebe-se então que, somente a conduta que causa lesão ao erário pode ser tanto dolosa quanto culposa, já os atos que importam enriquecimento ilícito ou aqueles que infrinjam algum princípio da administração são restritivamente dolosos.

Também é imprescindível elencar que o art. 21, I, da Lei de Improbidade Ad-ministrativa, considera como desnecessário o dano para a concretização do ato ímprobo, todavia esta é uma realidade abarcada pelos art. 9º e 11, pois os atos que causam lesão ao erário, obrigatoriamente exigem como requisito a dilapidação, tornando assim o dano elemento necessário do art. 10.

Assim, responsabilizar o administrador público pelos atos que causam prejuízo ao erário representa um salto de qualidade do serviço público, ou seja, uma maior re-sponsabilidade na utilização dos bens3.

Por fi m, os atos de improbidade administrativa que atentam contra os princí-pios da administração pública, serão trabalhados de maneira mais enfática, uma vez que é nesta modalidade de improbidade que muitas vezes há violação dos princípios nucleares da administração sem trazer danos materiais ao patrimônio público.

Para Alexandre de Moraes4, a afetação a estes princípios dá-se com: conduta dolosa do agente, conduta comissiva ou omissiva ilícita que, em regra, não gere en-riquecimento ilícito ou não cause lesão ao patrimônio público, violação aos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, atentado aos princípios da administração e existência de nexo causal entre o exercício funcional e o desrespeito aos princípios da administração.

Assim, o legislador retirou a modalidade culposa dos atos ligados ao enriqueci-mento ilícito ou daqueles que lesionem os princípios da administração, pois o objetivo principal é alcançar o administrador desonesto, não o inábil5.

Qualquer sanção estatal que radicalize seu poder coercitivo perde sua função de ser, assim o legislador, ao tratar sobre esta modalidade de ato ímprobo, em nenhum momento quis consumir a reputação, a paz e o patrimônio dos agentes públicos, e muito menos transformar fatos corriqueiros que motivam sanções disciplinares em tortuosos processos administrativos. Caso isso ocorra, defi ne Waldo Fazzio Júnior6, que: “A radi-

3 SARMENTO George. Improbidade Administrativa. Porto Alegre: Síntese, 2002, p. 92.4 Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional administrativo. São Paulo: Atlas, 2002, p. 200.5 REsp n. 213.994-MG, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU 27.9.99.6 FAZZIO, Júnior Waldo. Improbidade Administrativa e Crimes de Prefeito. São Paulo: Atlas 2000, p. 169.

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calização da virtude pode enxergá-los sem a razoabilidade que se reclamam do intérprete da norma, dando azo a exageros pouco condizentes com o jurídico balizado na digni-dade humana”.

Percebe-se assim, que a abstração empregada no art. 11 não ampara abusos de interpretações, mas sim uma proteção permanente, ou seja, uma reserva legal, necessária, pois com esta, nasce a possibilidade de analisar a vontade do agente, não se limitando apenas ao enriquecimento ilícito ou ao patrimônio afetado, mas ao âmago da própria conduta.

As condutas enumeradas nos sete incisos do art. 11 deixam claro que tais ati-tudes necessitam de consciência da ilicitude, e mais, vontade de desempenhar tal ilegali-dade. O art. 11, I, cuida da prática do ato que visa fi m proibido em lei ou regulamento ou daquele previsto na regra de competência. Comete este ato o agente que objetive fi m ilícito ou extrapole sua esfera de competência, assim, o administrador que receba um repasse específi co do Ministério da Educação para a construção de uma escola e, todavia empregue esta verba na construção de casas populares, responde por desvio de fi nalidade, também, aquele policial que se utiliza do abuso de poder para obtenção de qualquer prova, fi cam sujeitos ao enquadramento deste inciso.

O art. 11, II, refere-se ao agente público que, indevidamente, retarda ou deixa de praticar ato de ofício, sem nenhuma justifi cativa plausível. Assim, o descumprimento de ordens judiciais ou policiais, a recusa hospitalar em atender o paciente por falta de leitos, o agente que vislumbrando a possibilidade de uma epidemia de dengue nada faz, se omite, estão sujeitos ao enquadramento deste dispositivo.

O art. 11, III, determina sobre a revelação de fato ou circunstâncias que em razão das atribuições devam permanecer em segredo. Apesar de vigorar na administ-ração pública o princípio da publicidade, há certas situações em que o sigilo é de suma relevância para a realização dos fi ns perseguidos pelo Estado. O agente público que tra-fi ca informações, que necessariamente exigiriam sigilo, responde por violação aos princí-pios constitucionais. Assim, na licitação, necessário se faz que o sigilo das propostas, caso o agente visando obter benefícios divulga a oferta, e deste ato se benefi cie mesmo que, nada afete a administração pública, responde por improbidade administrativa.

Estabelece o art. 11, IV, a respeito da negativa publicidade aos atos ofi ciais. O que se busca com este dispositivo é dar ao ato um caráter exclusivamente educativo, informativo ou de orientação social. Caso o agente público assim não faça ou aja de ma-neira desordenada utilizando-se de propagandas com símbolos, obras, cores partidárias, como forma de promoção pessoal, responderá por afetar os princípios da moralidade e efi ciência, o dever de boa administração, entre outros.

O art. 11, V, constitui a frustração do concurso público. Deste modo, burlar concursos públicos, empregar parentes, correligionários, sem o devido concurso, além de infringirem os princípios constitucionais da isonomia e da impessoalidade caracterizam-se improbidade. Notoriamente se faz perceber que esta é uma modalidade um tanto quanto incidente nas várias esferas da administração brasileira.

Determina o art. 11, VI, sobre deixar de prestar contas quando estiver obriga-

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do a fazê-lo. O art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal defi ne como relevante a prestação de contas quando envolva administração de dinheiro, bens e valores públicos ou ainda em nome da União. Ajusta-se a este dispositivo, não só a omissão do dever de prestar contas, mas também a realização fora do prazo estabelecido por lei.

Por fi m, o art.11, VII, trata sobre revelar ou permitir que chegue ao conheci-mento de terceiro, antes da respectiva divulgação ofi cial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço. Assim como no inciso III, já citado acima, o que se veda é a divulgação de ato que necessariamente se faria secreto, todavia neste, o que se busca é a afetação do preço. Desta forma, o agente público que afetar os princípios da administração, responderá pelas penas elencadas no art. 12, III, da Lei de Improbidade7.

Após toda esta trajetória, percebe-se que os princípios estão intimamente liga-dos assim difi cilmente um ato ímprobo afeta apenas um princípio, motivo qual relevante se faz uma observância sistemática das situações submetidas à apreciação.

3. Os Princípios da Administração Pública e o Art. 21, I, daLei 8.429/92

O ordenamento jurídico de um país é basicamente formado por normas. Estas se dividem em regras e princípios, tendo-se as regras como leis em sentido material e princípios como instrumentos supralegais.

Celso Antônio Bandeira de Mello8 trata o princípio como “mandamento nu-clear de um sistema” que exerce a função de embasar o ordenamento jurídico. Comun-gando desse mesmo entendimento, os princípios constitucionais para Mônia Leal9 são: “[...] a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada.”

O Egrégio Supremo Tribunal Federal, segundo o voto do Ministro Celso de Mello10, defende o respeito incondicional aos princípios constitucionais, evidenciando-se como dever inderrogável do Poder.

Contudo, a principal difi culdade é fazer com que o agente público paute co-tidianamente seus atos nestes “mandamentos nucleares”. È em função deste desrespeito

7 Art. 12, III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fi scais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.8 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 807/808.9 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A constituição como princípio. Barueri: Manole, 2003, p.88.10 DJ 04-03-98, voto do Min Celso de Mello, PET – 1458/CE Julgamento 26/02/1998: “O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria confi guração dos direitos individuais ou coletivos, introduz um perigoso fator de desequilibro sistemático e rompe, por completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente desiguais, entre os indivíduos e o Poder”

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aos princípios que o legislador cria formas de penalizar o agente que se afasta destes instrumentos basilares da administração.

Traçar-se-á, um paralelo entre a lesão aos princípios da administração e a desnecessidade de dano visto ser esta uma realidade que fere os princípios do art. 37 da Constituição Federal, e o erário permanece intacto.

A legalidade é um dos alicerces do Estado de Direito, e a partir deste princípio se determina o limite a ser seguido pelo agente público. Caio Tácito11 ensina que: “[...] na medida em que o poder absoluto sujeita-se ao império da lei, a conseqüente limitação de poderes administrativos permite conceber o controle da legalidade sobre a autoridade do Estado em benefício do administrado.”

A legalidade é o princípio que embasa todos os demais, pois é a partir da codi-fi cação que os mandamentos nucleares deixam de ser meras abstrações da vontade social e passam a codifi car-se como normas. Manoel Gonçalves Ferreira Filho12 defi ne que “o Estado só pode segundo a lei e só pode segundo a forma de lei.”

Desta forma, o agente público que é legalmente compelido a prestar contas e não o faz, e aquele que necessariamente precisa licitar e desobedece tal mandamento, mesmo que cumprindo as atividades da melhor forma e não causando danos algum ao patrimônio público, caracterizam-se como ímprobos, pois estão obrigados a cumprir rigorosamente o que a lei determina. Percebe-se então que não é o fato de acarretar dano ou não que fere a lei, mas sim, o descumprimento desta. A administração pública não pode fi car restrita ao bel prazer do administrador, uma vez que se assim não fosse produzir-se-ia uma grande instabilidade social.

O princípio da impessoalidade representa administrar para todos, sem privilé-gios nem desmerecimentos, tendo como fi nalidade a realização do interesse social.13

Celso Antonio Bandeira de Mello14 embasado no princípio da impessoalidade, entende que a administração deve tratar a todos os administrados sem discriminações, benéfi cas ou detrimentosas. Também segundo Odete Medauar15, a impessoalidade visa obstaculizar atuações geradas por antipatias, simpatias, objetivos de vingança, represálias, ou favorecimentos diversos.

Por esta razão, o agente que, por rixas políticas ou qualquer outro motivo, deixa de convidar tal empresa para participar da licitação ou burla esta objetivando sua derrota, ou ainda o agente que frauda o concurso objetivando privilegiar determinada pessoa, ou o policial que abusa ou deixa de exercer seu poder em face de questões par-ticulares, respondem por tratamento distinto ao administrado, infringindo na probidade administrativa.

11 TÁCITO, Caio. Bases Constitucionais do Direito Administrativo. Revista de Direito Público, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, volume 81, 1987, p. 165-171. 12 FERREIRA, Manoel Gonçalves Filho. “o Princípio da Legalidade”. Revista da Procuradoria Geral do Estado. São Paulo. 20 de junho de 1977.13 JÚNIOR, Waldo Fazzio. Atos de Improbidade Administrativa. São Paulo: Atlas, 2007, p. 11.14 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 14. ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 96.15 ODETE, Medauar. A Processualidade no Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 87-90.

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16 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 654.17 JÚNIOR, Waldo Fazzio. Atos de Improbidade Administrativa. São Paulo: Atlas, 2007, p. 17.

A moralidade, constitui hoje em dia, pressuposto de validade de toda conduta do administrador frente a Administração Pública e desta forma, a não observância deste princípio gera a ilegitimidade do ato.

Assim, infelizmente a administração pública ainda encontra-se presa ao uso in-discriminado de sua estrutura física por seus agentes em favor próprio. Basta citar alguns exemplos que fi cará claro o quanto a moralidade ainda precisa tomar seu espaço como instrumento saneador, ético e justo. A utilização de carros ou aviões ofi ciais para tur-ismo, as diárias e gratifi cações além do necessário, a participação em cursos ou congres-sos com intuito meramente particular, o nepotismo, o excesso de cargos comissionados e a terceirização como forma de contratação indiscriminada, são alguns dos milhares de exemplos que cotidianamente infestam ambas as esferas do setor público.

Em face desta realidade é que o art. 21, I, da Lei de Improbidade, toma força, porquanto é inadmissível que atos como os acima expostos fi quem ilesos, apenas por não gerarem danos ao patrimônio público. Moralmente os danos são nítidos, seja da quebra do decoro, da ética, do senso de justiça, ou da supremacia do interesse público sem contar que os princípios estão intimamente ligados. Logo um ato ímprobo difi cilmente afetará a um só destes mandamentos.

Hely Lopes Meirelles16, aduz que a publicidade da administração pública abrange não só a divulgação de seus atos, mas também da conduta interna de seus agentes. Ou seja17, a publicidade é requisito indispensável, pois o agente que não pub-lica seus atos, estremece o pressuposto democrático de que todo poder emana no povo.

A publicidade da administração deve ser impessoal, de acordo com o art. 37, § 1º da CF a função principal deste princípio é informar, educar ou orientar a popu-lação. Por este motivo não pode conter nomes, símbolos, imagens, cores partidárias, enfi m, meios que caracterizem a promoção pessoal ou partidária.

Entretanto, cotidianamente estes atos desmedidos são realizados, seja através da escusa da publicidade ou da desvirtuação desta com a fi xação de slogan do man-dato, símbolos partidários ou a promoção pessoal. Assim o agente que, obrigado a dar publicidade das suas contas omite-se ou aquele que se aproveitando de inauguração de obras públicas dá notoriedade como forma de se promover, além de desvirtuarem a função do princípio da publicidade, afetam a impessoalidade e a moralidade.

Desta forma, o administrador que burla a publicidade, ainda que afetando apenas os princípios, incorre no art. 21, I, porque mesmo se comprovando que as con-tas não publicadas estavam corretas, ou que a propaganda não acarretou despesas para a administração, perde a função de ser, ou seja, desvirtua sua essência. O administrador tem como dever fazer tudo aquilo que a lei determina e, caso não faça, responde por seus atos.

A efi ciência é a função de ser da administração pública, seu fi m justifi cado,

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é a medida de sua atuação. Ou seja, o dever de bem administrar, defl ui do princípio republicano, segundo o qual quem administra gere o que pertence à sociedade.18

Em função desta realidade, é que a imprevisão e o amadorismo não têm lugar na esfera pública. O princípio da efi ciência busca fazer com que o ato administrativo seja correto e ocorra da melhor maneira possível.

Neste sentido, o art. 167 da CF exige como ponto de partida para programas e projetos públicos uma previsão orçamentária, para que não aconteça a falta de verba ou o infortúnio do desvio no andamento da construção de obras públicas. Caso o agente descumpra a exigência do orçamento, e isso não resulte dano, mesmo assim, responderá pela lesão aos princípios da efi ciência, moralidade, legalidade, enfi m, a administração não pode fi car exposta a riscos pela inefi ciência do administrador em cumprir ou não o exigido.

A Lei de improbidade, quando desvincula improbidade do dano, busca pre-cipuamente não permitir com o que agente saia ileso caso não cumpra com as obrigações que urge conhecer. Do exposto resulta que os princípios da Constituição Federal, art. 37 juntamente com o art. 21, I da Lei n.º 8.429/92, representam para a administração pública a possibilidade de se perseguir indistintamente a vontade ímproba do ato agente e não apenas o resultado danoso. É verdade que o dano permanece como elemento tipifi cador da conduta, porém, não mais o único. Os princípios, quanto afetados ainda que sem lesividade, materializam-se como ato improbo, incorrendo nas sanções da Lei de improbidade.

4. Dano ao Patrimônio Público

Ao tratar sobre dano, de imediato vem à idéia de dilapidação, mal ocorrido, que afeta bens ou pessoas. Todavia esta é uma construção tradicional do conceito de dano, possuindo uma característica essencialmente patrimonialista, que volta sua preocupação basicamente ao patrimônio. Revestindo-se da idéia de destruição, deterioração ou inuti-lização.19

Apesar de ser a lesão um dos elementos que compõem o dano, esta não é uma regra, e caso fosse, limitar-se ia o conceito deste a valores materiais. Pois, nem todo dano carrega consigo o desfalque, e em face disto inúmeros atos podem afetar o direito tute-lado, mas não afetar nitidamente o patrimônio.

O civilista Pablo Stolze20 de forma mais ampla, defi ne dano ou prejuízo como a lesão a um interesse jurídico tutelado. Assim, todo o direito resguardado legalmente, gera uma obrigação e quando desvirtuada nasce uma violação, surgindo então o dano.

18 Ibidem, p. 20.19 CASILO, João. Dano à pessoa e sua indenização 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 42.20 GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil. volume III, 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.35.

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21 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 274.22 SARMENTO, George. Improbidade Administrativa. Porto Alegre: Síntese, 2002, p. 42.

Neste entendimento Fernando Noronha21 defi ne dano como: “[...] prejuízo de natureza individual ou coletiva, econômica ou não-econômica, resultante de ato ou fato antijurídico que viole qualquer valor inerente à pessoa humana, ou atinja coisa do mundo externo que seja juridicamente tutelada”.

O legislador, ao tirar da Lei de Improbidade Administrativa a necessidade de dano ao patrimônio público para a materialização da improbidade, teve uma visão alar-gada da expressão dano, pois caso assim não entendesse, haveria o risco de mediante as várias formas de improbidade restringir o conceito de dano e deixar de punir agentes que muitas vezes criam formas para burlar as leis mais fraudulentas e ardilosas que a própria lesão ao patrimônio. Isto dá-se pois, a improbidade danosa, em regra é visível, palpável, diferentemente da não ocorrência desta, que representa, portanto o lado mais obscuro da improbidade.

Ao tratar da desnecessidade de dano, é importante destacar que, quando o leg-islador retira o dano como único elemento tipifi cador da improbidade, busca ainda mais forçar o agente público a trilhar o melhor caminho, a se comportar da melhor forma, pois ainda hoje uma parcela signifi cativa da sociedade tem na administração pública seu único refúgio, seja assistencial, médico, habitacional, educacional, dentre outros.

Nesta realidade, verifi ca-se que o dano passa a ser à coletividade, pois em um País de desempregados, os privilégios familiares, partidários, entre outros, além de afetar os direitos do cidadão em pleitear uma vaga isonomicamente, incham as máquinas admin-istrativas de agentes muitas vezes incompetentes, despreparados e recebendo os maiores salários, ferindo os princípios da legalidade, moralidade, supremacia do interesse público, isonomia, entre outros.

Desta forma, o art. 21 demonstra que, o legislador não está preocupado em re-duzir a lei à mera perseguição do dano patrimonial, uma vez que quando descarta a efetiva ocorrência deste, o que procura é ir além, é criar dispositivos que cerquem os atos que driblam a norma, que se obscurecem não pelo seu resultado danoso, mas pela sua existên-cia imoral e ilegal.

5. Sentido da Existência do art. 21, I, da Lei nº 8.429/92

A improbidade, não é um problema novo, nem tão pouco uma característica estritamente brasileira. Exterminá-la é meta de qualquer sociedade organizada que queira desenvolver-se. Entretanto, eleger meios de perseguição a atos que desvirtuem a função de ser da administração é uma das maiores difi culdades, pois o ato ímprobo nasce com o in-tuito indigesto, fraudulento, ardiloso, ou seja, carrega consigo a obscuridade, a difi culdade de se provar a culpa, a vontade do dano.

De acordo com George Sarmento22 a corrupção destrói todas as esferas do pod-er, desde o funcionário mais simples até a mais os mais altos cargos da nação. É a quebra do sistema jurídico, o império da cleptocracia.

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Em face desta realidade, é que o legislador vem criando mecanismos efi cazes de perseguir o ato ímprobo nas esferas administrativas. O art. 21, I, da Lei n.º 8.429/92 pode ser considerado um destes grandes avanços na administração pública, pois ao combiná-lo com o art. 37, § 4.º da Constituição Federal, o legislador visou reforçar ainda mais o valor principiológico da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência, pois, tipifi ca o seu desrespeito como fato caracterizador da improbidade, in-dependente do dano.

Desta forma, se existe possibilidade de afetar a administração pública sem causar dano, como foi exemplifi cado acima, não teria sentido a escusa do legislador em não prever tipos capazes de alcançar os desmandos. É neste sentido que tal dispositivo toma força e embasamento em nosso ordenamento jurídico, se fi rmando como instru-mento de grande valia na perseguição do ato ímprobo, e de maneira ampla visa perseguir não apenas o resultado da conduta, mas a desvirtuação desta.

Assim o sentido do art. 21, I, é a própria possibilidade de, mesmo não hav-endo dano material, ocorrer desrespeito ao patrimônio público e afronta aos princípios constitucionais através de clientelismo, partidarismo, nepotismo, tráfi co de infl uências, enfi m, atos que não precisam lesionar o erário para existir, sua simples existência do ato é a essência da improbidade

A essência do art. 21, I encontra-se na própria República, no anseio de des-vincular qualquer ato que possa abalar o regime e prejudicar o bom andamento deste, mesmo que não exista dano patrimonial.

Este dispositivo busca então, não apenas proteger o patrimônio ou a admin-istração pública, mas sim resguardar toda uma sociedade dos atos desmedidos que, por não trazerem danos materiais até antes desta lei, fi cavam ilesos. Todavia, com a Lei de Improbidade, art. 21, I, muda este contexto. O legislador dá a este dispositivo uma carga valorativa de extrema importância, alargando assim o campo da improbidade, pois, ím-probo é não só o ato que gera dano, mas também é aquele que de maneira ardilosa e perspicaz aproveita da administração pública em seu favor ou de um terceiro, ainda que não provoque prejuízos ao erário.

Assim, a essência do artigo em tela encontra-se no seio da necessidade social de frear os desmandos, a corrupção, porquanto numa nação onde os problemas sociais fazem parte desde o início de sua formação, buscar mecanismos que diminuam tais agressões sociais faz com que leis como esta em debate alimentem a esperança de um futuro melhor.

Diante de tanta pobreza, é inadmissível que qualquer ato ímprobo fi que ileso por mais ínfi mo que seja, visto que quem sempre sofre mais arduamente as conseqüên-cias são os que mais necessitam do apoio do Estado.

O cerne deste dispositivo está na perseguição de atos ímprobos que, mesmo sem causarem danos ao patrimônio público, prejudicam o regime democrático de direito. Assim, o objetivo deste artigo é a busca da moral, da ética, do justo, porque não é o resul-tado danoso que defi ne o ato como ímprobo, mas a lesão aos princípios basilares, estes são termômetros que permitem medir o ato independentemente do resultado.

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6. Considerações Finais

Diante do que foi tratado no presente trabalho, percebe-se que a improbidade afeta de forma genérica quase todos os Países. Mas os Países em desenvolvimento são as principais vítimas do fl agelo: o sucateamento da educação pública, a desigualdade so-cial, a saúde pública de baixa qualidade, programas sociais eleitoreiros, e a violência são resultados desta prática que fere principalmente os direitos e garantias fundamentais do ser humano. A corrupção é um mal universalizado, que rompe fronteiras, nacionalidades, ideologias. Perseguir tal insanidade é acima de tudo proteger o Estado de Direito, é ga-rantir que sua essência não seja desvirtuada.

Esta realidade atinge maciçamente o Brasil, que sofre as mazelas e conseqüên-cias do desrespeito com as coisas públicas. Embora a impunidade seja ainda constante nos dias atuais, normas que perseguem tais vícios têm tomado assento no ordenamento jurídico pátrio. Entre estas se encontra a Lei nº 8.429/92, principal ferramenta de pes-quisa na elaboração deste trabalho.

A referida Lei embasa-se em alicerces sólidos, em princípios constitucionais éticos, comprometida com a boa gestão da administração pública. Em face disso, rompe com a estreita idéia de que improbidade é resultado apenas do enriquecimento ilíci-to, classifi cando assim os atos ímprobos em: Atos de Improbidade Administrativa que Importam Enriquecimento Ilícito (art. 9º), Atos de Improbidade Administrativa que causam Prejuízo ao Erário (art. 10), e por fi m, Atos de Improbidade que Atentam contra os Princípios da Administração Pública (art. 11).

Assim, a conduta ímproba destes atos passa a ser combatida de forma rigorosa. Com tal propósito, o legislador atribuiu independência para as sanções penais, civis e administrativas, pela prática da mesma conduta. O art. 12 defi ne que o responsável pelo ato de improbidade está sujeito as seguintes sanções: perda de bens e valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, perda integral da função pública e suspensão dos Direitos políticos, ressarcimento integral do dano, pagamento de multa civil, proibição de contra-tar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fi scais ou creditícios.

A corrupção dilapida o erário, rouba a esperança de vidas mais dignas, pois, quando o agente possibilita a irresponsabilidade da aplicação dos recursos públicos neste ato ele também extermina a possibilidade de um País mais igual, mais justo, ou seja, de uma sociedade mais humana, onde a desigualdade social não seja a principal caracterís-tica de seu povo.

Em face desta realidade, é que o legislador, visando afastar qualquer forma de ato ímprobo, rompe com o conceito patrimonialista de dano, e atribui a este o enten-dimento de que dano é a lesão a um interesse jurídico tutelado. Caso assim não fosse, correr-se-ia o risco de, frente as várias formas de improbidade administrativa restringir o conceito desta de tal forma que deixaria de punir agentes que ainda sem dilapidar o patrimônio público, rompem com os valores mais éticos da sociedade e desrespeitam os princípios fundamentais desta.

Assim o art. 21, I, de forma clara, tutela que a aplicação das sanções previstas

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na Lei de Improbidade independe da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público. Assim, pode-se afi rmar que ímprobo não é apenas o ato que gera dano ao patrimônio público, mas também aquele que infringe os princípios basilares da administração. Nesse entendimento, buscou o legislador forçar o agente público a trilhar a melhor escolha o melhor caminho e acima de tudo, embasar-se na legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência.

Desta forma, são atos de improbidade: a não prestação de contas, a recusa da impessoalidade no processo licitatório, a utilização de carros ou aviões ofi ciais para turis-mo, as diárias e gratifi cações além do necessário, a participação em cursos ou congressos com intuito meramente particular, o nepotismo, o excesso de cargos comissionados e a terceirização como forma de contração indiscriminada, ou, ainda, o agente que obrigado a dar publicidade das suas contas omite-se, ou aquele que se aproveitando de inaugura-ção de obras públicas dá notoriedade como forma de se promover. São atos improbos que não dilapidam o patrimônio, mas afetam a função de ser da administração pública. Em face destes atos é que o legislador prevê tipos capazes de alcançar tais ilegalidades.

Ante todo o exposto, percebe-se que o art. 21. I da Lei nº 8.429/92, representa um divisor de águas para a administração pública, pois ao desvincular o dano patrimonial como único elemento tipifi cador da conduta ímproba, o legislador alargou ainda mais o campo de perseguição aos atos desmedidos dos agentes públicos.

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A GLOBALIZAÇÃO POLÍTICA, A DEMOCRACIA E A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS1

Emerson Almeida Renovato 2

Paulo César Nunes da Silva 3

Resumo: a pesquisa visa, através de uma análise multidisciplinar, fazer a alusão da glo-balização, enquanto fenômeno econômico e social, sobretudo político, e seus efeitos no campo das ciências jurídicas. Discorrendo acerca da mundialização de procedimentos e atuações o trabalho buscará interligar a globalização política à globalização jurídica, ou melhor, à universalização dos direitos, tendo em vista a existência de direitos humanos “mínimos” a serem respeitados por todos os Estados do mundo. Traçar um paralelo entre os Blocos econômicos e os Sistemas de proteção aos direitos humanos também será uma forma de concluir que ambos os processos de universalização têm pertinência e correlação, e que a universalização dos direitos humanos possui extrema importância para se atingir os objetivos políticos augurados sem desrespeitar o ser humano.

Palavras-chave: Globalização. Política. Direito. Direitos humanos.

Abstract: The research seeks, through a multidisciplinary analysis, to make allusion of globalization as economic and social phenomenon, especially political, and its effects in the fi eld of legal sciences. Talk-ing about the globalization of work’s procedures and activities seeks to link up policy globalization to legal globalization, or better, to the universalization of rights, in view of the existence of “minimum” human rights to be respected by all States of the world.Draw a parallel between the economic blocks and the human rights protection systems will also be a way to conclude that both processes have universal relevance and correlation, and that the universality of human rights is very important to achieve political objectives without augur disregarding the human being.

Key words: Globalization. Politics. Rights. Human Rights.

1. Introdução

A globalização inicialmente foi tida como um fenômeno comercial caracteri-zando-se pela expansão do mercado entre os países interessados nos produtos uns dos outros. Começou a ser pronunciada no início dos anos 80 nas melhores universidades dos Estados Unidos.

1 Trabalho apresentado ao Curso de Especialização em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD, na disciplina Direitos Humanos na Administração Pública, ministrada pela Profª. Drª. Maria Goretti Dal Bosco. 2 Advogado e Professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – UEMS. Pós-graduando em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD.3 Bacharel em Direito e Administração de Empresas. Técnico administrativo da UFGD. Pós-graduando em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD.

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Ocorre que nos dias contemporâneos não nos é permitido falar de Estado moderno sem antes fazermos exame da conjuntura internacional. Tal conjuntura defi ne-se pelo fenômeno conhecido como Globalização, que conforme comenta André-Jean Arnaud, que a globalização é um amplo fenômeno “que cobre todos os campos das ativi-dades humanas.”4 e que “a autonomia dos Estados-nações viu-se bastante comprometida pela interdependência que se desenvolve no seio de uma economia globalizada.”5

Assim, deixa de ser apenas fenômeno comercial como espécie para ganhar patamar de fenômeno gênero, envolvendo vários outros assuntos, dentre eles direitos humanos.

Portanto, o processo de globalização constitui-se numa gama de seguimentos e assuntos diferenciados dentre os quais social, político, jurídico ou econômico. Es-clarecesse que a pesquisa fi cará adstrita em verifi car quais os efeitos que a globalização trouxe ou ainda traz para a afi rmação dos direitos humanos, desde sua criação até os dias contemporâneos.

Para que a globalização seja considerada como tal é necessário que o país incre-mente sua política interna e, principalmente, externa, para que o processo seja sufi ciente-mente adequado e efi caz. A política adequada para aceitação da globalização caracteriza-se como sendo aberta, disposta a mudanças e adequações que a própria política mundial estabelece.

Por outro lado, esta política mundial deixa o Estado fragmentado, pois, inter-fere diretamente em sua estrutura.

Vários são os acontecimentos que fragmentam a soberania estatal, como bem identifi ca Fábio Corrêa Souza de Oliveira:6

“a integração dos Estados através de blocos regionais, a criação e o reconhecimento de instâncias públicas e privadas supranacionais, o fi m do monopólio dos Estados sobre a produção do direito e sobre a coerção legítima, o controle das relações comerciais inter-nacionais por grandes empresas transnacionais, dentre outras características, revelam o que se convencionou chamar de policentralidade”.

Na mesma linha de raciocínio, André-Jean Arnaud enfatiza que este pluralismo contemporâneo é “oriundo da fragmentação das soberanias”7

Outra linha de estudo fi cará entre a fi rmação da democracia como sendo o melhor e mais favorável instrumento de governo para a aplicabilidade dos ideais dos direitos humanos. Como é notório, o mais adequado seria que todo país defendesse os princípios dos direitos humanos, já que isto nada mais seria do que defendermos a

4 ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de fi losofi a do direito e do Estado. Tradução por Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 28.5 Idem, p. 154.6 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria de princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. Porto Alegre: Lúmen Júris, 2007.7 ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de fi losofi a do direito e do Estado. Tradução por Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 214.7 Idem, p. 154.

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8 DANTAS, Ivo. Direito constitucional econômico. Curitiba: Juruá, 1999. p. 109-111.9 ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. GONÇALVES, Marcus Fabiano. Direito: ordem e desordem, efi cácia dos direitos humanos e globalização. Florianópolis: IDA, 2004. p. 25.

lógica, isto deveria ser feito independentemente do regime de governo, credo religioso ou política de desenvolvimento adotado por aquele Estado.

Contudo, sabemos que nem todo Estado pensa assim, e estes Estados, diga-mos contrários, não usam o sistema democrático de governo, mas uma política fechada e sem precedentes democráticos, como é o caso de países como Paquistão, Afeganistão, Coréia do Norte, dentre outros.

Nestes países os direitos humanos não são tratados como prioridade estatal, como são nos países democráticos, talvez estes fatores sejam os principais infl uencia-dores dos pensamentos ou opiniões de estudiosos sobre o assunto de que o regime democrático de governo ainda continua sendo o principal e mais adequado regime de proteção aos direitos humanos.

Com a globalização à frente de assuntos relacionados à economia, cultura, política e social, tendo o neoliberalismo como principal manifestação, não poderia ser diferente com assuntos relacionados à direitos humanos, pois todos aqueles assuntos estão diretamente ligados a este, de tal forma que a má gestão de qualquer um daqueles segmentos interferem na qualidade ou na dignidade de vida de qualquer cidadão seja de um ou outro país.

Neste sentido, trataremos de identifi car a importância da globalização na def-esa e disseminação dos ideais dos direitos humanos, os quais anteriormente eram tidos ou defendidos em poucos países, e, com o fenômeno da globalização tornaram-se mais conhecidos e buscados pela esmagadora maioria da população mundial numa tentativa de se evitar que os valores naturais a que todo ser humano faz jus, nunca mais venha sofrer atrocidades como outrora.

2 Globalização

2.1 Defi nição

Globalização, Aldeia-Global, “Tecnoglobal”8, e tantas outras expressões no-toriamente conhecidas, dizem respeito a um processo econômico e social que estabelece uma integração econômica, social, cultural e, sobretudo, política entre os países e as pes-soas do mundo todo. Por meio deste processo ou fenômeno, as pessoas, os governos e as empresas trocam idéias, realizam transações fi nanceiras e comerciais e espalham aspectos culturais pelos quatro cantos do mundo.

A Globalização trata da forma como os países interagem e se aproximam das pessoas, ou seja, coliga o mundo, levando em consideração aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos. Com isso, gerando a fase da expansão da chamada era da Lex Mer-catoria9, onde é possível realizar transações fi nanceiras, expandir seu negócio até então restrito ao seu mercado de atuação para mercados distantes e emergentes, sem neces-

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sariamente um investimento alto, pois a comunicação no mundo globalizado permite tal expansão, porém, obtêm-se como conseqüência o aumento acirrado da concorrência.

2.2 Origem e características da globalização

Muitos historiadores afi rmam que o processo de globalização teve início nos séculos XV e XVI com as grandes navegações e descobertas marítimas. Neste contexto histórico, o homem europeu entrou em contato com povos de outros continentes, esta-belecendo relações comerciais e culturais. Porém, a globalização efetivou-se no fi nal do século XX, logo após a queda do socialismo no leste europeu e na União Soviética. O neoliberalismo, que ganhou força na década de 1970, impulsionou o processo de global-ização econômica.

Com a saturação dos mercados locais, muitas empresas multinacionais necessi-tavam conquistar novos mercados, para comercializarem seus produtos, principalmente dos países recém saídos do socialismo.

A livre concorrência fez com que as empresas utilizassem cada vez mais recur-sos tecnológicos para baratear os preços e também para estabelecerem contatos comer-ciais e fi nanceiros de forma rápida e efi ciente. Neste contexto, entra a utilização da Inter-net, das redes de computadores, dos meios de comunicação via satélite, entre outros.

Acerca do princípio acima esposado, segundo ensinamento de Manoel Gon-çalves Ferreira Filho10, pelo princípio da livre iniciativa, ao “Estado cabe na ordem econômica posição secundária, embora importante, já que sua ação deve reger-se pelo chamado ‘princípio da subsidiariedade’ e deve ser tal que não reprima a liberdade da ini-ciativa particular, mas antes a aumente, para a garantia e proteção dos direitos essenciais de cada indivíduo”.

Desta forma, a intervenção do Estado em Empresas privadas, só se justifi cará caso o interesse público esteja sofrendo graves ameaças, uma vez que o ato administra-tivo tem que necessariamente pautar-se pela razoabilidade e proporcionalidade, subsum-indo assim o fato aos princípios constitucionais. Destarte, a regra é pela não intervenção estatal nas atividades econômicas particulares, justifi cando apenas, nos casos em que o interesse púbico estiver sendo ameaçado.

Uma outra característica importante da globalização é a busca pelo baratea-mento do processo produtivo pelas indústrias. Muitas delas, produzem suas mercadorias em vários países com o objetivo de reduzir os custos. Optam por países onde a mão-de-obra, a matéria-prima e a energia são mais baratas. Um tênis, por exemplo, pode ser projetado nos Estados Unidos, produzido na China, com matéria-prima do Brasil, e comercializado em diversos países do mundo.

Para facilitar as relações econômicas, as instituições fi nanceiras (bancos, casas de câmbio, fi nanceiras) criaram um sistema rápido e efi ciente para favorecer a transfer-ência de capital e comercialização de ações em nível mundial.

10 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.327.

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Informação, investimentos, pagamentos e transferências bancárias, podem ser feitos em questões de segundos através da Internet, telefone celular, pagers e palm´s tec-nologias estas que fi zeram o “fenômeno” da globalização se alastrar rapidamente e atin-gir o patamar atual de generalidade mundial.

Os tigres asiáticos (Hong Kong, Taiwan, Cingapura e Coréia do Sul) são países que souberam usufruir dos benefícios da globalização. Investiram muito em tecnologia e educação de base nas décadas de 1980 e 1990, tendo como resultado, o barateamento dos custos de produção e agregação tecnologias aos seus produtos, e atualmente, são grandes exportadores.11

2.3 Blocos Econômicos e globalização

Dentro deste processo econômico, muitos países se juntaram e formaram Blocos Econômicos, cujo objetivo principal é aumentar as relações comerciais entre os membros.12

Neste contexto, surgiram a União Européia (UE), antes chamada de Comuni-dade Econômica Européia (CEE), o Mercado Comum do Sul (Mercosul), a Comecom, o Nafta, o Pacto Andino e a Apec.

Estes blocos se fortalecem cada vez mais e já se relacionam entre si. Desta forma, cada país, ao fazer parte de um bloco econômico, consegue mais força nas rela-ções comerciais internacionais13.

3. A política mundial e a democracia como regime degoverno adequado

Uma nova ordem mundial passou a viger, e não só no campo da política, mas também no campo das ciências jurídicas, e esta ordem é “baseada na cooperação inter-nacional, e deve ter por pressupostos a existência de organismos internacionais capazes de construir a solidariedade entre os povos...”14

E para melhor compreensão dessa sistemática, necessário sabermos que o ter-mo política é derivado do grego antigo e se refere a todos os procedimentos relativos a arte de unifi car e organizar as ações humanas e dirigi-las para um fi m comum (CASSI-ER, Ernst).15 Assim, pode se referir tanto a Estado, quanto sociedade, comunidade e defi nições que se referem à vida humana.

Segundo Hannah Arendt,16 (1906-1975), política “trata-se da convivência entre

11 ALCOFORADO, Fernando. Globalização. São Paulo: Nobel, 1997. p. 33.12 ALCOFORADO, Fernando. Op. Cit. p. 33-34. 13 ALCOFORADO, Fernando. Op. Cit. p. 34.14 ALCOFORADO, Fernando. Op. Cit. p. 31.15 Apud: DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 12916 ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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diferentes”, pois a política “baseia-se na pluralidade dos homens”, assim se a pluralidade implica na coexistência de diferenças, a igualdade a ser alcançada através desse exercício de interesses, quase sempre confl itantes, é a liberdade e não a justiça, pois a liberdade distingue “o convívio dos homens na pólis de todas as outras formas de convívio humano bem conhecidas pelos gregos”.

Para Nicolau Maquiavel, em O Príncipe17, política é a arte de conquistar, man-ter e exercer o poder, o próprio governo.

Ainda existem algumas divergências sobre o tema, para alguns política é a ciên-cia do poder e para outros é a Ciência do Estado, no entanto a nós importa saber que através da política é que se atinge o objetivo de organização da sociedade pelos cidadão, e consequentemente à regulação jurídica hodiernamente visualizada.

Na antiguidade a teoria política distinguia três formas de Estado: a monarquia, aristocracia e democracia18. No entanto, a democracia será nosso objeto de estudo, por ter sido o forma de Estado eleita como mais adequada pelo mundo moderno.

A democracia é um regime de governo onde o poder de tomar importantes decisões políticas está com os cidadãos (povo), direta ou indiretamente, por meio de rep-resentantes eleitos, forma mais usual. Uma democracia pode existir num sistema presi-dencialista ou parlamentarista, republicano ou monárquico.19

Dividimos a democracia em diferentes tipos, baseado em um número de dis-tinções. A distinção mais importante acontece entre democracia direta (algumas vezes chamada “democracia pura”), onde o povo expressa a sua vontade por voto direto em cada assunto particular, e a democracia representativa (algumas vezes chamada “democ-racia indireta”), onde o povo expressa sua vontade através da eleição de representantes que tomam decisões em nome daqueles que os elegeram20.

Não menos importantes, outros fatores na democracia incluem exatamente quem é “o Povo”, isto é, quem terá direito ao voto; como proteger os direitos de mino-rias contra a “o totalitarismo (ARENDT, 2004)” e qual sistema deve ser usado para a eleição de representantes ou outros executivos.

3.1 O Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito é composto pelo Estado de Direito. Este por sua vez possui características das quais as mais relevantes são: a soberania do Estado Nacio-nal, a unidade do ordenamento jurídico, a divisão dos poderes estatais, o primado da lei sobre outras fontes de proteção jurídica, o reconhecimento da certeza do Direito como valor políti-co fundamental, a igualdade formal dos cidadãos perante a lei, o reconhecimento e a proteção de direitos individuais, civis e políticos, a garantia constitucional, a distinção entre público e privado e a afi rmação da propriedade privada e da liberdade de iniciativa econômica.

17 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.18 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 405.19 KELSEN, Hans. Op. Cit. p. 412-428.20 KELSEN, Hans. Op. Cit. p. 412-428.

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21 ABREU, Neide Maria Carvalho. Os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2008. http://conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/Neide%20Maria%20Carvalho%20Abreu_Direitos%20Humanos%20e%20Teoria%20da%20Democracia.pdf. Acesso em: 30 Set 08.

O Estado de Direito constitucional também é o pai da democracia representa-tiva. O voto periódico de todos do povo, a alternância de poder, a representação popular, a separação de poderes, a revisão jurisdicional integram importantes conquistas da de-mocracia representativa e liberal. Como se percebe nela radica-se a gênese de fundamen-tais regras processuais de tomada de decisões políticas.

O Estado de Direito formal e liberal precisou ser revisto, notadamente pela sua insufi ciência em permitir a consecução de fi ns muitas vezes explicitamente assumidos pelo sistema. A desigualdade material, a injustiça nas relações privadas e públicas, as limi-tações da proteção jurídica estritamente individual demonstraram a inépcia do Estado Liberal para atender os reclamos da nova ordem.

As difi culdades de se implementar o socialismo econômico, a falência do so-cialismo de Estado soviético, o processo crescente de globalização da economia e da cultura determinaram uma revisão desse entendimento inicial.

O direito ao mínimo essencial é a faceta econômica do Estado Democrático de Direito, ou seja, deve o Estado garantir as condições materiais que permitam o desen-volvimento da personalidade de cada um, em uma primeira expressão da dignidade da pessoa humana. Nada obsta que a economia de gastos e a possibilidade de um controle mais efetivo sobre a qualidade dos serviços prestados ao cidadão recomendem uma atu-ação mais tímida do Estado como interventor direto na economia. O que não se espera do Estado Democrático de Direito é sua demissão do encargo de promover as medidas necessárias para a inclusão social.

3.2 A democracia e sua proteção como um direito humano21

Os direitos humanos foram se desenvolvendo através dos tempos. Para fi ns acadêmicos, os doutrinadores se utilizam do termo “gerações” ou “dimensões”, para melhor explicar tal evolução, de modo que hoje, observamos três ou quatro etapas difer-enciadas, dependendo o autor que utilizarmos.

Os direitos relativos ao status negativo do Estado, direitos à liberdade, con-hecidos como direitos de 1ª geração, são aos direitos civis e políticos do homem, que se opunham ao direito estatal. Onde a liberdade do indivíduo deveria ser resguardada face ao poder do Estado totalitarista, e ao mesmo tempo em que o cidadão necessitava participar desse poder. Despontaram no fi nal do século XVII, trazendo uma limitação ao poder estatal, onde as prestações negativas impunham ao Estado uma obrigação de não fazer.

Com o advento da revolução industrial, o indivíduo abandonou a terra e pas-sou a viver na cidade, enfrentando toda uma agitação decorrente do desenvolvimento tecnológico. Os seres humanos passaram a participar de novos espaços, como a fábrica e os partidos políticos, ele começa a aspirar a um bem-estar material propiciado pela

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modernidade, desenvolvendo-se então, os direitos econômicos, culturais e sociais, as-sim como os direitos coletivos, já que diferentes formas de Estado social tinham sido introduzidas, são conhecidos como direitos de 2ª geração, surgiram logo após a Primeira Grande Guerra Mundial.

Passou-se então a ser requerida uma maior participação do Estado, face ao reconhecimento de sua função social, através de prestações de cunho positivo, que visas-sem o bem-estar do homem, pois os direitos individuais não eram mais absolutos.

Encerrando o século XX, observou-se uma 3ª geração de direitos fundamen-tais, com a fi nalidade de tutelar o próprio gênero humano, direitos considerados transin-dividuais ou difusos, direitos de pessoas consideradas em sua coletividade.

São os chamados direitos de fraternidade, de solidariedade, traduzindo-se num meio ambiente equilibrado, no avanço tecnológico, numa vida tranqüila, à autodetermi-nação dos povos, à comunicação, à paz.

Tudo isso evoluiu de tal forma, que os direitos fundamentais se vêem nos dias de hoje cada vez mais presentes nos pactos e tratados internacionais, que gradativamente, conseguem se infi ltrar aos direitos internos dos Estados que se prontifi cam perante toda a comunidade internacional a dignifi car as condições de vida do homem, através do res-peito aos seus direitos, independentemente de sua nacionalidade, raça, credo, idade, cor, sujeitando essa tutela unicamente à sua condição de homem.

No fi nal do milênio passado e no início desse novo milênio ora vivenciado, o comportamento dos homens vem sofrendo uma série de alterações, daí que começa a desabrochar a 4ª geração dos direitos fundamentais, com as clonagens, alimentos trans-gênicos, a informática, direito à informação, à democracia, ao pluralismo.

O direito internacional contemporâneo possui a tendência de ter hoje o regime democrático de governo como sendo o de maior aceitabilidade quanto a defesa dos ide-ais dos direitos humanos. No fi nal dos anos oitenta esta tendência era bem mais nítida, como bem acentua José Maria Gomes:22

“Com efeito, as novas circunstâncias mundiais abertas pelo fi m da Guerra Fria e a queda do “socialismo real” provocaram mudanças políticas domésticas imediatas, que se tra-duziram num incremento inédito do número de estados democrático–liberais. Culmi-nava, assim, o que Huntington (1991) denominara de “terceira onda” da democratização, que se iniciou em meados da década dos setenta como o colapso das ditaduras da Es-panha, de Portugal e da Grécia, e prosseguiu nos anos oitenta com as “transições” latino-americanas, até alcançar, no início desta década, o Leste Europeu, o continente africano e a Ásia, algumas vezes como restauração de regime, outras como regime novo [...] ”

A Declaração de Viena de 1993 foi o primeiro documento escrito da Organiza-ção das Nações Unidas (ONU) afi rmando explicitamente que a democracia é a forma de governo que mais favorece o respeito aos direitos humanos.23

22 GÓMEZ, J. M. . Globalização da política. Mitos, realidades e dilemas. Revista Praia Vermelha, Curso de Pós Graduação Em Serviço Social Ess Ufrj, Rio de Janeiro - RJ, v. nº1, p. 07-47, 1997. p. 165.23 Idem. p. 166.

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24 PAINE, Thomas. Direitos do Homem. São Paulo: Edipro, 2005.25 Idem.26 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política – a fi losofi a política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 476.27 Westphalia (em alemão, Westfalen) é uma região (histórica) da Alemanha, à volta das cidades de Dortmund, Munster, Bielefed e Osnabruck, e agora incluída no estado federal alemão (Bundesland) de Nordhein-Westfalen (e uma parte a sudoeste da Baixa Saxônia). Westphalia é aproximadamente a região entre os rios Reno e Weser, a norte da bacia do rio Ruhr. Não é possível defi nir com precisão exata as fronteiras, porque o nome “Westfalen” foi aplicado a diferentes entidades na história. Por esta razão, especifi cações da área e população diferem muito. Variam entre 16000 e 22000 km² respectivamente entre 4,3 milhões e 8 milhões de habitantes.). Westphalia assinala o triunfo dos Modernos Estados soberanos, tanto na ordem interna como na ordem internacional. A paz de Westphalia foi assinada em 24 de Outubro de 1648 após cinco anos de intensas negociações, assinalando importantes transformações no Direito Internacional, nas Relações entre as nações e na Organização Política Européia. FREIRE e ALMEIDA, D. A Guerra dos Trintas anos e a Paz de Westphalia. USA: Lawinter.com, Março, 2005. Disponível em: < www.lawinter.com/42005hridfalawinter.htm >. Acesso em: 3 jun. 08.

4. Globalização dos direitos: a evolução dos direitoshumanos

4.1 Direitos humanos

Thomas Paine, em sua obra Direitos do Homem – 1791/1792 -, é quem primeiro utilizou o conceito “Direitos Humanos”24, isso porque o autor verifi cou na es-pécie humana um único e homogêneo grupo (“Rigts of Man” - Direitos do Homem).25

Etimologicamente Direitos Humanos são os direitos do homem, conforme preceitua Norberto Bobbio em seus prólogos sobre o assunto, parafraseando Imman-uel Kant. Afi rmando essa tese utilizando outro termo fi lósofo Alemão, “os direitos do homem consistem em uma verdadeira e própria revolução copernicana”.26

Portanto, Direitos Humanos são os direitos que visam salvaguardar os valores mais preciosos dos seres humanos, ou seja, direitos que visam resguardar a igualdade, a fraternidade, a liberdade, o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamentos dessa matéria.

Para João Baptista Herkenhoff, os Direitos Humanos são aqueles direitos fun-damentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza huma-na, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir.

Afi rma-se que Direitos Humanos são direitos inerentes à pessoa humana, e visam proteger a integridade física e psicológica daqueles, perante seus semelhantes e perante o Estado, limitando os poderes das autoridades estatais, garantindo, assim, o bem estar da sociedade através da igualdade, fraternidade e da proibição de qualquer espécie de discriminação.

4.2 Direitos Humanos antes de 1948

Em 1648, depois de mais de 30 anos de guerra na Europa, a Paz de Westphalia27

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fundou o moderno direito internacional, através do reconhecimento de Estados sobera-nos, devidamente constituídos.28

Desde o século XVI, valores universais foram se fazendo necessários ao mun-do, cada vez mais, isso porque a cada guerra milhares de pessoas morriam e não havia limites à guerra29. Valores universais que só afl orariam a sociedade com a roupagem glo-balizada atualmente sabida em 1948.

No entanto, a crescente mundialização (e porque não a globalização) da so-ciedade e a interdependência dos seres humanos fez surgir a necessidade de uma forma de proteção aos seres humanos em escala global, proteção aos seres humanos em face daqueles que detinham superioridade em face deles próprios.

Isso só foi possível, pelo fato de que em tempos anteriores à essa época a humanidade possuía códigos de deveres, impondo tão somente aos seres humanos tais obrigações, como por exemplo, os Dez Mandamentos, o Código de Hamurabi, a Lei das XII Tábuas30, O Código de Manu.

Uma inversão e equilíbrio dessa realidade era necessária, sendo necessário ver “o outro lado da moeda”, Bobbio melhor explicita esse quadro:

Na história do pensamento moral e jurídico essa moeda foi observada mais pelo lado dos deveres do que pelo dos direitos. ... Os códigos morais e jurídicos foram estabelecidos originariamente para salvaguardar o grupo social em seu conjunto, e não cada um de seus membros. ... Para que pudesse acontecer a passagem do código dos deveres para o código dos direitos, foi preciso que a moeda se invertesse: que o problema começasse a ser observado não mais pelo ponto de vista da sociedade, mas também do ponto de vista do indivíduo.31

Principal inspirador dos primeiro legisladores dos direitos do homem, no sécu-lo XVII, Jonh Locke (1632-1704), médico, fi lósofo e político Inglês, preconizou uma série de direitos naturais devidos ao homem. Locke propôs valores tais como: Liberdade, Igualdade, Tolerância e Dignidade.

No entanto, em seu “Ensaios sobre o entendimento humano, obra mais im-portante do ponto de vista fi losófi co, Locke combate a doutrina das idéias inatas, sobre-pujando a doutrina clássica do empirismo.32

Alarmado com o clima hostil pelo qual passava a Europa, de guerras con-

28 BRIERLY, James Leslie. Direito internacional. Trad. M. R. Crucho de Almeida. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. Disponível em: http://www.revistaacademia.ccjs.ufcg.edu.br/anais/artigo2.swf. Acesso em: 20 Ago 08.29 Umas das mais importantes contribuições ao pensamento jurídico sobre a guerra está na obra do holandês Ugo Grotius (ou Hugo Grócio) – 1583 a 1645 -, o qual vem a secularizar a doutrina da guerra justa. In: GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945 – 1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional. 2ª ed. Rev. E ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 20.30 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política – a fi losofi a política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 477.31 BOBBIO, Norberto . op. cit. p. 477-478.32 LOCKE. John. 1632-1704. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaios sobre o entendimento humano. Trad. Anaor Aiex e Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. VI-VIII.

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33 KANT, Emmanuel. op. Cit. p. 5-11.34 Idem. Op. Cit. p. 5-11.35 Ibidem. Op. Cit. p. 7.36 Diz-se que a busca pela universalização dos Direitos Humanos ainda é um desafi o da DUDH, pois Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos em 10 dezembro de 2008. E com o fi m de popularizar o conceito dos direitos humanos e cada um dos 30 artigos da Declaração Universal, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República está organizando um grande mutirão. Disponível em: http://www.direitoshumanos.gov.br/60anos. Acesso em: 22 Ago 08.37“Ao longo de toda sua história conhecida, a humanidade tem-se deparado com um fenômeno que se tornou quotidiano em todos os pontos do globo: o fenômeno da guerra. p. 13... Verdadeiramente, durante séculos, parte signifi cativa do Direito Internacional foi, basicamente, o direito relacionado à guerra, aos confl itos. A versão clássica do Direito, vigente, pelo menos, até 1945, dividia o Direito Internacional, pelo seu conjunto de regras, em dois grandes âmbitos, de importância semelhante: O primeiro contém as normas pelas quais eram regidas as relações entre Estados em situações de paz; o segundo, as que regiam as relações em caso de confl ito armado... p. 16-17.” In:GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945 – 1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional. 2ª ed. Rev. E ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

stantes, Imannuel Kant, numa visão fi losófi ca, proclamou a pessoa humana como valor absoluto.33 Desse valor é que se passou a desenvolver todos os valores hoje tidos como universais.

Conhecido como metódico, Kant foi um pacifi sta convicto, inspirado nos ide-ais da independência americana e posteriormente na Revolução Francesa, planejou um projeto humanista de paz, até tempos atuais inspirador da doutrina de direitos huma-nos.34

Em 1791, Immanuel Kant, na Paz Perpétua, fez menção ao imperativo cat-egórico (aprimorado em sua obra “A metafísica dos costumes” - “Doutrina do direito”)35, onde os direitos humanos eram vistos por ele como um direito inato, adstrito aos seres humanos, visão essa que inspirou inclusive a visão atual e contemporânea de direitos humanos, consagrada na Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948.

4.3 Direitos Humanos depois de 1948, perspectiva contemporânea dosdireitos humanos

Muito se fala que a idéia de direitos humanos preconizado na Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos (1948), foi uma concepção ocidental, isso talvez, pelo fato de serem os direitos humanos de inspiração européia e americana (Revolução Francesa e Independência Americana).

Daí, a fi m de clarear tal contradição, vemos que, onde antes só tínhamos o direito humanitário, interestatal e os direitos nacionais, hoje passamos para a construção de uma nova ordem sobre a qual se constrói o direito internacional, os direitos humanos universais, não vinculados tão somente ao ocidente.

De origem laica, e inspiração Kantiana, principalmente, dentre outras, a De-claração Universal dos Direitos Humanos buscou, e busca36, universalizar o direito do homem, tornando-o um direito cosmopolita, ou seja, alguém além das fronteiras nacio-nais.

Tendo como princípios a unidade, integralidade e a indivisibilidade, a Declaração foi o primeiro documento que previu direitos transnacionais aos seres humanos, excetuando as questões ligadas à guerra37, após a Paz de West-

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phalia, depois de cerca de 300 anos, a Declaração Universal dos Direitos Hu-manos.38

Com a assinatura e com reiteradas prática dos países signatários, foram estabe-lecidas duas barreiras, quais foram, a primeira foi a soberania nacional dos Estados, e a segunda o relativismo cultural destes, cada qual em momentos históricos distintos.

Quanto ao primeiro desafi o, que existiu aproximadamente entre 1948 e 1990, superado pela humanidade após o fi m da Guerra Fria, através da pressão política mun-dial. Já no tocante ao relativismo cultural, que até os tempos atuais consiste em entrave para a efetivação dos direitos humanos em sua integralidade, no entanto tal barreira caminha para sua resolução, tendo em vista a aproximação do ocidente com o oriente nas questões humanísticas, sobretudo depois da proclamação de Teerã e da Conferência de Viena (1968 e 1993).

5. Sistemas de proteção dos direitos humanos e aperspectiva globalizada de direito

A criação da Organização das Nações Unidas em 1945, após duas guerras mundiais, além de reger as regras mundiais acerca dos confl itos, foi necessária também para a proteção dos direitos humanos se tornarem efetivamente global, é claro que pau-latinamente, ao passo que a adaptação do mundo a ela não foi abrupta.

A estrutura que subsidia a proteção dos direitos humanos no mundo, perfeita-mente pode ser utilizada também para a proteção dos regimes democráticos, e conse-quentemente o acesso ao poder pelo povo.

5.1. Sistema universal de proteção aos direitos humanos

Kant no século XVIII já nos ensinava sobre a existência de um direito cos-mopolítico ou do cidadão do mundo (jus cosmopoliticum), pelo fato de a terra não ser in-fi nita, mas uma superfície em si mesma limitada.39

Diante desse cidadão universal o mundo, após duas grandes guerras mundiais, fez surgir um organismo multinacional, dotado de competência para dirimir e , principal-mente, pacifi car questões globais.

Então, entende-se por global, o sistema de proteção dos direitos humanos en-campado pelas Nações Unidas - ONU, que tem abrangência mundial, ou pelo menos aos países que a reconhece e são signatários de seus tratados e acordos.

38 Mas mesmo apesar de a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), ter sido precípuo nessa temática, Kant no século XVIII já havia proposto limites à guerra, dentro dos princípios da cidadania: “Toda espécie de meios de defesa é permitida ao Estado atacado, exceto aqueles cujo uso incapacitaria seus indivíduos à cidadania...É lícito na guerra impor ao inimigo vencido provisões e contribuições, porém não o saque do povo, isto é, arrebatar dos particulares seus bens...” KANT, Emmanuel, 1724 – 1864. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993. p. 196.39 KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993. p. 150.

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40 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direitos Constitucional Internacional. 2. ed. São Paulo : Max Limonad, 1997. p. 217.

Desde a Declaração da ONU, em 1948, consagrou-se um conjunto de valores que levou anos para obter consenso global, e continua sendo escrita tal difusão até os dias hodiernos. Sobretudo nesses últimos dois séculos que, nos é demonstrado que os direitos humanos cada vez mais têm se elevado à condição de prioridade mundial.

5.2. Sistema regionais de proteção aos direitos humanos

Ao verifi carmos a existência de um sistema global de proteção dos direitos hu-manos, paralelamente, percebe-se que existem sistemas regionais de proteção dos dire-itos humanos.

Evidencia-se que cinco são os sistemas regionais de proteção: Sistema inter-americano, Sistema europeu, Sistema africano, Sistema árabe/persa e Sistema asiático, agindo independentemente cada qual dentro de sua base territorial, inclusive com inde-pendência em relação ao sistema global, resguardadas as regras internas de prevenção deste Sistema.40

Os Sistemas regionais de proteção dos direitos humanos são importantes in-strumentos de resolução da questão do relativismo cultural, barreira a ser totalmente transposta em tempos atuais e outras questões ligadas aos direitos humanos.

A existência de Sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, além de pôr termo ao relativismo cultural, facilita a fi scalização e proteção do direito humano à democracia, à liberdade, pois afi nal o modelo tido como adequado para todo o mundo é o modelo democrático, tendo em vista serem esses Sistemas já organizados e preparados para tal missão, melhorando a harmonia mundial e o acesso ao poder pelo povo, seu real detentor.

6. Considerações Finais Sem o intuito de pôr termo à questão, e com referência ao que foi exposto, é

perfeitamente plausível que a globalização não foi tão somente um fenômeno causador da miscigenação de mercados globais, ou seja, não foi algo que direcionou ou incremen-tou apenas a economia entre os países.

Hodiernamente não só na economia, mas como em todos os campos refer-entes aos seres humanos as agendas são globalizadas, como por exemplo, a violência mostrada numa favela do Rio de Janeiro pode ser perfeitamente discutida em países da Europa ou da Ásia.

Daí depreendesse que o Estado nacional não pode mais discutir sobre os dire-itos dos seres humanos somente internamente, pois contemporaneamente entende-se que o assunto deve ser discutido e codifi cado através de tratados e leis de proteção a todos os indivíduo mundiais, utilizando o pensamento kantiano de que o direito do ser

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humano ultrapassa a barreira interna do Estado, entendido por Kant como direito dos cidadãos cosmopolitas.

Logo, desta forma se desenvolve o fenômeno da globalização, com refl exos de nossas ações em todo o mundo, e vice e versa, isto graças às tecnologias de informação capazes de transmitirem em tempo real o que acontece em qualquer parte do planeta.

Por isso, assim como na economia, a política de proteção aos direitos humanos também faz parte do fenômeno da globalização, e tal fato explica-se por integrarem-se os países democráticos em políticas públicas para o desenvolvimento e proteção em defesa da dignidade da pessoa humana.

Verifi camos também que o regime de governo democrático é o melhor e a mais favorável forma de governo para a proteção dos direitos humanos, inclusive através da leitura de precedentes das Nações Unidas.

A globalização da política e dos direitos humanos é algo inevitável a todos os países do globo, e por isso mesmo em países mais rígidos ou não democráticos, ou até mesmo aqueles com uma “pseudodemocracia” não conseguirão manterem-se inertes por muito tempo, sob pena de segregação de seus nacionais, afi nal, o que se deve considerar como prioridade é o ser humano, e não a política de um país.

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A FOME, A POBREZA E O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA

Eliotério Fachin Dias1

Resumo: O grave problema da miséria, que assola boa parte da humanidade, traz con-sigo a fome e a desnutrição. Os pobres são as maiores vítimas da sociedade contem-porânea e da exclusão. Evidencia-se a maior vulnerabilidade dos grupos atingidos por discriminação de origem étnica e outros. Milhões de brasileiros passam fome, ou enfren-tam algum tipo de insegurança alimentar e nutricional, em situação de carência alimentar grave, e uma em cada dez crianças de até quatro anos vive em domicílio onde existe fome. O direito à alimentação adequada é um direito humano fundamental. As desigualdades e a sistemática violação do direito humano à alimentação adequada não existem pela falta de leis, pois são direitos garantidos positivados constitucionalmente e em dispositivos internacionais continuamente violados. Palavras-chave: Desnutrição e Fome; Necessidades Humanas Básicas; Direito Humano à Alimentação Adequada.

Abstract: The severe misery problems that depredate a large part of humanity, and bring in itself the hunger and the malnutrition. The poor people are the biggest victims of the atual society and exclusion. There is a greater vulnerability of groups affected by discrimination and other ethnic origin. Million Bra-zilians go hungry or face some kind of food and nutrition insecurity in situations of severe food shortages, and one in ten children from four years to live in homes where there is hunger. The right for an appropriate food is a fundamental human right. The dissimilitude and the systematic violation of human rights to an appropriate food do not exist by law default, because they are positive rights constitutionally guaranteed and at international devices continuously violated.

Key words: Malnutrition and hunger. Basic human needs. Human rights to a decent feeding.

1. A fome e a pobreza no Brasil e no Mundo

Um grave problema de miséria assola boa parte da humanidade, segundo Edu-ardo Luis Leite Ferraz2, das 79% das pessoas que vivem no Sul pobre; 1 bilhão, encontra-se em estado de pobreza absoluta; 3 bilhões, têm alimentação insufi ciente; 60 milhões, morrem de fome; e, 14 milhões de jovens abaixo de 15 anos morrem anualmente em conseqüência das doenças da fome.

Segundo o mesmo autor, 800 milhões de pessoas passam fome todos os dias; 2 bilhões não possuem água potável e cerca de 1,4 bilhão ganham menos de um dólar por dia. E, complementa:

1 Especialista em Direito das Obrigações pela UNIGRAN. Docente Efetivo da UEMS, Unidades Universitárias de Dourados e Navirai. 2 FERRAZ, Eduardo Luis Leite. Ars Boni et Aequi, hoje: O Direito e a Causa dos Pobres. Florianópolis SC: Revista de Direito do Cesusc nº 2 Jan/Jun 2007. p. 74.

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[...] os pobres são os grandes injustiçados da sociedade contemporânea. São as maiores vitimas do processo sistemático de exclusão social. Hoje se fala em pobreza estrutural globalizada, ou seja, sente-se necessidade de dimensionar o pobre e sua causa em termos globais e estruturais, relacionando-o àquilo que gera, de modo permanente e sistemático, a exclusão.

Para a Organização Mundial de Saúde3: “A pobreza é a maior causa mortis do mundo. A pobreza dissemina sua infl uência destrutiva desde os primeiros estágios da vida humana, do momento da concepção ao momento da morte”.

As profundas transformações da economia mundial têm provocado, nas duas últimas décadas, entre outras, um aumento signifi cativo de fome e má nutrição, ressalta Boaventura de Souza Marques4 e que poucos países do Sul, nesta década, conseguiram se benefi ciar das transformações da economia mundial, que têm causado conturbação interna, violência urbana, motins dos esfomeados, e má nutrição.

Segundo Ziegler5, dados da FAO apontavam que a fome atingia 852 milhões de pessoas no mundo em 2004, em comparação com os 842 milhões em 2003. Isto signifi ca que cerca de 6 milhões de crianças são mortas anualmente em decorrência de doenças relacionadas à fome; e, que a fome não é inevitável e não há segredo em como erradicar a fome no mundo, já que o planeta já produz alimentos sufi cientes para prover 2100 kcal diárias por pessoa a 12 bilhões de habitantes (o dobro da população mundial).

A cada dia morrem cem mil pessoas de fome ou de suas conseqüências ime-diatas. Em 2005 morreram mais de 36 milhões. A cada sete segundos morre de fome uma criança menor de dez anos. De quatro em quatro minutos morre uma pessoa por carência de vitamina A. Somam 852 milhões os seres humanos subalimentados, mutila-dos por fome crônica6.

Flávia Piovesan7 assim se manifesta sobre a fome crônica e má nutrição decor-rente da falta de acesso à alimentação adequada:

Mais de 840 milhões de pessoas ao redor do mundo, a maioria delas em países em desen-volvimento sofrem de fome crônica; [...] enquanto problema como fome e má nutrição são freqüentes e particularmente severos em países em desenvolvimento, má nutrição, subnutrição e outros problemas relacionados ao direito à alimentação adequada e de estar livre da fome, também existem em alguns dos paises economicamente mais desenvolvi-dos. Fundamentalmente, as raízes do problema da fome e má nutrição não se referem à falta de alimentação, mas à falta de acesso à alimentação disponível, decorrente da pobr-eza de grande parte da população mundial.

3 .Paul Farmer, Pathologies of Power, Berkeley, University of California Press, 2003, p. 50. In.PIOVESAN, Ibidem, p.244 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortes, 2005, p. 2935 PIOVESAN, Flávia. Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Direito à Alimentação Adequada: Mecanismos Nacionais e Internacionais.PIOVESAN, Flávia & CONTI, Irio Luiz (Coord.) Direito Humano à Alimentação Adequada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris Editora, 2007, p. 48.6 FAO, Situação de Insegurança Alimentar no Mundo, Roma, 2005, Apud ZIEGLER, Jean In PIOVESAN, Ibidem, p. ix7 PIOVESAN, Ibidem,p. 32-33

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8 CONTI, Irio Luiz. In PIOVESAN, Ibidem, p. 59 FLORIANO, Miriam Villamil Balestro. Refl exões em Torno do Direito Humano à Alimentação Adequada: a Experiência da Construção do Marco Legal no Rio Grande do Sul In PIOVESAN, Ibidem, p. 192-193.10 VALENTE, Flávio Luiz Schieck, FRANCESCHINI, Thais, BURITY, Valéria. Instrumentos e Mecanismos Não Judiciais de Exigibilidade do Direito Humano à Alimentação Adequada no Brasil. In PIOVESAN, Ibidem, p. 156. 11 SEN, Amartya. In. RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 143.

A pobreza é contínua no Brasil, e é conseqüência de um passivo histórico do Brasil, resultado da ganância dos colonizadores europeus que movidos por interesses eminentemente mercantilistas, que não respeitaram os povos tradicionais como sujeitos. Esses desajustes econômicos e sociais foram patrocinados ou, pelos menos, contaram com a conivência da ação do Estado, tímido no sentido de regular e estabelecer equilíbri-os entre os interesses privados e os interesses coletivos, mediados por políticas públicas abrangentes e efi cazes8.

Segundo a autora, um recente diagnóstico do IBGE sobre segurança alimentar apontou que, no Brasil, 13,9 milhões de brasileiros passam fome e 72 milhões enfrentam algum tipo de insegurança alimentar e nutricional, e

Dos 13,9 milhões em situação de carência alimentar grave; desses 10,1 milhões são ne-gros ou mulatos e 3,8 milhões, brancos. Evidencia-se a maior vulnerabilidade dos grupos atingidos por discriminação de origem étnica. E, que uma em cada dez crianças de até quatro anos vive em domicílio onde existe fome. Outro dado é a verifi cação de insegu-rança alimentar em lares em que havia pelo menos um benefi ciário de programas sociais, o que denota erros estruturais dessas políticas públicas.9

De acordo com Flávio Luiz Schieck Valente, Thais Franceschini e Valéria Buri-ty10, a maioria dos documentos escritos sobre a prevalência da pobreza, da fome e da má-nutrição no Brasil aponta para o fato do país haver mantido historicamente um alto grau de desigualdade estrutural que se expressa na concentração da riqueza, da terra e da renda, fortemente ligada a seu passado colonial e a uma longa seqüência de governos autoritários durante o século XX.

Segundo os autores, a grande concentração de afrodescendentes entre os po-bres e as taxas de desnutrição mais altas entre os povos indígenas é uma conseqüência do tipo de ocupação e de modelo de “desenvolvimento” que foram impostos ao país, com o uso intensivo de trabalho escravo e o desrespeito dos direitos dos povos indígenas; e, um refl exo da total falta de políticas públicas.

Amartya Sen ressalta que o declínio de alimentos não é a principal causa da fome, mas “o principal problema foi o fracasso dos respectivos governos em distribuir (suplementar) o alimento que existia”. Complementa ainda, que:

Permitir que o povo passe fome quando isso pode ser impedido refl ete falta de interesse pelos direitos humanos, e regimes bem ordenados. Insistir nos direitos humanos irá, espera-se, pressionar na direção de governos efi cientes em uma Sociedade dos Povos bem ordenada.11

2. As necessidades humanas fundamentais, a fome ea pobreza

A tônica das reivindicações e das demandas legitimadas pelos movimentos co-letivos, pelas múltiplas demandas, das classes populares e comunidades intermediárias,

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no cenário periférico brasileiro, no dizer de Ivo Lesbauspin12, incidem em direitos à vida, ou seja, direitos básicos de existência e de vivência com dignidade.

Tais direitos afi rmam-se, sobretudo, como direitos materiais e sociais. Isso se deve à percepção de que os oprimidos, pobres e marginalizados socialmente “... encon-tram-se às voltas com problemas básicos de sobrevivência: desde a difi culdade de encon-trar emprego, a exploração no trabalho, os baixos salários, a carestia, até a conservação da saúde...”.

Tratam-se, portanto, de direitos relacionados às “necessidades sem as quais não é possível ‘viver como gente’: trabalho, remuneração sufi ciente, alimentação, roupa, saúde, condições infra-estruturais (água, luz etc), educação, lazer, repouso, férias, etc”.13

Essa especifi cidade explica a razão de a maioria das ações coletivas se organiza-rem e se mobilizarem para a implementação de “novos” direitos, pois, quase sempre, es-tão em busca de “necessidades não atendidas, com seus direitos desrespeitados, excluída, de fato, a cidadania”.14

A “estrutura das necessidades” refere-se tanto a falta ou privação de obje-tos determinados (bens materiais inerentes à produção humana em sociedade) quanto a ausência subjetiva de algo imaterial relacionado ao desejo, ações, normas, posturas, modo e formas de vida, valores etc. O conjunto das “necessidades humanas”, que varia de uma sociedade ou cultura para outra, envolve um amplo e complexo processo de socialização marcado por escolhas cotidianas sobre “modos de vida” e “valores” (a “liberdade”, a “vida” e a “justiça” enquanto universalidade).15

A expressão “necessidades” apresenta objetivo de “determinismo” (aquilo que tem que ser) ou o sentido subjetivo referente a “alguma privação” que um indivíduo ou grupo sente. Para escapar dessa confusão, os cientistas políticos Carlos Nelson Coutinho e Edison Nunes traduzem e usam a expressão (bisogno, beosin, needs etc) como “carências” ou “carecimentos”.16

Isso pode confundir fenômenos nem sempre similares. “Carência”, no sentido estrito, é designada como a privação ou falta de alguma coisa, enquanto “necessidade”, no sentido genérico, mais abrangente, é todo aquele sentimento, intenção ou desejo con-sciente que envolve exigências valorativas, motivando o comportamento humano para aquisição de bens materiais e imateriais considerados essenciais.17

O conjunto das “necessidades humanas fundamentais” – quer primárias e se-cundárias, quer pessoais e sociais, ou reais e aparentes – implica a falta, ausência ou privação, tanto “objetivamente” de bens materiais e não-materiais inerentes à produção

12 LESBAUPIN, Ivo, p. 164. Apud WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Omega, 1994, p 15013 LESBAUPIN, Ibidem, p 150-15114 LESBAUPIN, Ibidem, p 15115 HELLER, Agnes, Ferenc. Políticas de la postmodernidad. Barcelona: Península, 1989, p. 171-172; NUNES, Edison, 1990, op. cit. p. 5; _____ 1989, op. cit, p. 84 e 90; MARCUSE, Herbert, op. cit, p. 217 e 226. Apud WOLKMER, Ibidem, p 218.16 COUTINHO, Carlos Nelson. Apud WOLKMER, Ibidem, p 216.17 WOLKMER, Ibidem, p 216.

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18 DOYAL, L.; GOUGH, L. A Theory... p. 53. Apud LEIVAS, Paulo Cogo. O Direito Fundamental à Alimentação: Da Teoria das Necessidades ao Direito ao Mínimo Existencial. In PIOVESAN, Ibidem, p. 89.19 NUNES, Edison. Carências urbanas, reivindicações sociais e valores democráticos. Lua Nova, São Paulo, v. 17, p. 74, jun 1989. In WOLKMER, Ibidem, p. 81.20 WOLKMER, Ibidem, pp. 80-81.21 VIGNA, Edélcio. Direito Humano à Alimentação Adequada e o Orçamento Público. In PIOVESAN, Ibidem, p. 143

humana em sociedade, quanto “subjetivamente” de valores, interesses, desejos, senti-mentos e formas de vida.

Segundo Doyal e Dough,18 a saúde e a autonomia são necessidades básicas. E, que o direito ao mínimo existencial é o direito à satisfação das necessidades básicas, ou seja, o direito a objetos, atividades e relações que garantem a saúde e a autonomia humana e, com isso, impedem a ocorrência de dano grave ou sofrimento em razão de defi ciência de saúde ou impossibilidade de exercício da autonomia.

No mesmo sentido, Edison Nunes19 afi rma que a negação ou a não realiza-ção, total ou parcial, dessas necessidades essenciais, principalmente quando geradas pelo moderno “desenvolvimento da produção e da divisão social do trabalho”, acabam geran-do contradições, confl itos e lutas. Neste processo histórico de mudanças nas condições de vida marcado pela insatisfação de necessidades e pela eclosão resultante de confl itos, interpõe-se a reivindicação de “vontades coletivas” em defesa dos direitos adquiridos e pela criação ininterrupta de “novos” direitos.

No dizer de Antonio Carlos Wolkmer,20 há que se compreender que a rein-venção permanente de “novos” direitos, que assumem dimensão individual, política e social, está diretamente relacionada com o grau de efi cácia de uma resposta à situação ou condição de privação, negação ou ausência de “necessidades” fundamentais, “ne-cessidades” confi guradas como bens que servem para a satisfação e realização da vida humana.

3. O Direito à Alimentação Adequada na Carta Magna de1988 e nos mecanismos internacionais de Direitos Humanos

A preocupação com as desigualdades sociais e a pobreza da população mundial teve início após a euforia da reconstrução do pós-guerra e crescimento econômico. Os organismos internacionais, como a ONU e o Banco Mundial, observaram que o desen-volvimento não estava equacionando as questões básicas relativas aos problemas sociais, levando-os a um redirecionamento e a mudanças nas orientações da política econômica, ao repensar o processo de crescimento e à necessidade de redução da desigualdade e da pobreza.

Alimentar-se adequadamente é um direito humano. O direito à alimentação adequada é compreendido como um direito humano fundamental e universal, previsto no regime internacional de direitos humanos, do qual o governo brasileiro é signatário. Este direito supõe o acesso econômico e físico, de forma continuada, com qualidade e quantidade, à uma alimentação adequada21.

A Constituição Federal de 1988 reconhece o direito humano à alimentação adequada como direitos de todos, não apenas por que decorrente das regras e princípios

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nela previstos (em especial os direitos à dignidade da pessoa humana e à saúde), mas pela absoluta prioridade com que assegura tal direito à criança e ao adolescente, conforme o artigo 227. Também o artigo 79 do Ato das Disposições Transitórias, ao criar um Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza, com prazo de extinção previsto para 2010, tem por objetivo assegurar a todos uma vida digna e, para tanto, os seus recursos devem ser aplicados, dentre outros, em ações suplementares de nutrição.22

O direito humano à alimentação adequada (DHAA) se realiza por meio das políticas públicas. O principio do DHAA, que está expresso na Declaração Universal de Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e na Carta das Nações Unidas torna-se um princípio morto se não for devida-mente traduzido em termos operacionais; ou seja, realizado em programas e atividades, devidamente dotados de recursos orçamentários, que possam ser efetivamente imple-mentados pelo Poder Público.23

O marco jurídico para o reconhecimento do direito humano à alimentação foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que, através do artigo XXV, dispõe que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar para si e sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos trouxe uma contribuição histórica para a humanidade ao afi rmar que direitos humanos são os direitos que todos os seres humanos possuem, indistintamente, pelo simples fato de terem nascido e faz-erem parte da espécie humana, na condição de sujeitos de direitos e sujeitos com direito a uma vida digna.24

A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe, ainda, em seu Artigo XXII:

Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade. E o artigo XXV comple-menta afi rmando que todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cui-dados médicos e os serviços sociais indispensáveis e o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstancias fora de seu controle.

Visando explicitar e tornar mais operativa essa Declaração, que é uma verdadeira carta de princípios, em 1966 a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou o Pacto Interna-cional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Ambos os pactos, mas especialmente as lutas em defesa dos direitos humanos.

22 BUERLEN, Alexandra. “O Direito Humano à Alimentação”, Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco. Apud FLORIANO, Ibidem, p. 198-19923 VIGNA, Edélcio. Direito Humano à Alimentação Adequada e o Orçamento Público. In PIOVESAN, Ibidem, p. 141 24 CONTI, Irio Luiz. In PIOVESAN, Ibidem, p. 7.

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25 BURITY, Valéria Torres Amaral. Exigibilidade Administrativa do Direito Humano à Alimentação Adequada: Experiência do Projeto Piloto Realizado pela Abrandh no Piauí. In PIOVESAN, Ibidem, p.21326 FLORIANO, Ibidem, In PIOVESAN, Ibidem, p. 192-193

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que dis-põe em seu artigo 11, “o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si e para a sua família, inclusive alimentação, vestuário, moradia adequados, e uma melhoria contínua das condições de existência”, reconheceu o direito à alimentação como parte do direito de todos a um nível de vida adequado.

Apesar do reconhecimento do direito humano à alimentação adequada ter como marco jurídico a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, foi apenas em 1996, durante a primeira Cúpula Mundial de Alimentação (CMA), realizada em Roma, que se tornou uma medida concreta para sua realização. Naquele encontro com os Chefes de Estado presentes adotaram o “Plano de Ação” para imple-mentação do direito humano à alimentação adequada.25

O Comentário Geral nº 12, do PIDESC, dispõe, em seu parágrafo 6, que: “O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, soz-inho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção”.

Em 18 de setembro de 2000, os Estados componentes da Assembléia Geral das Nações Unidas adotaram as Declarações do Milênio, na qual ratifi caram a vontade dos Estados de participarem das Nações Unidas. A Declaração do Milênio, dentre outros fatores, reitera a necessidade de mais paz, democracia e respeito aos direitos humanos, a diminuição da pobreza e a proteção ambiental.

A primeira das oito metas do Milênio é a Erradicação da Extrema Pobreza e da Fome, com o objetivo de reduzir a proporção das pessoas que padecem de fome até 2015. Verifi ca-se, no entanto, que até agora as políticas públicas de desenvolvimento de erradicação da fome não tem sido exitosas. Vale lembrar que a extrema pobreza segue sendo uma realidade cotidiana para mais de um milhão de seres humanos, os quais so-brevivem com menos de um dólar por dia26.

A realização de uma nova Cúpula Mundial da Alimentação foi prevista para o ano de 2001 (Cúpula Cinco Anos Depois), contudo, a sua realização ocorreu em junho de 2002, em Roma. Através da Cúpula de 2002 foi novamente reafi rmado pelos Chefes de Estado e de Governo “o direito de qualquer pessoa a ter acesso a alimentos saudáveis e nutritivos” e a FAO foi convidada a estabelecer um Grupo de Trabalho Intergover-namental, com o objetivo de elaborar, em um período de dois anos, um conjunto de diretrizes voluntárias para apoiar os esforços dos Estados Membros dirigidos a alcançar a realização progressiva do direito à uma alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional.

Os mecanismos internacionais de direitos humanos referidos evidenciam que o direito humano à alimentação adequada consiste na garantia do direito de todas as pessoas ao acesso físico e econômico, de modo regular, permanente e livre, diretamente ou por meio de compra fi nanciada, à alimentação sufi ciente e adequada, tanto quantita-

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tivamente quanto qualitativamente, correspondendo às tradições culturais e assegurando sua realização física e mental para uma vida digna. De acordo com Irio Conti,27 há pouco tempo alargou-se esse conceito para incorporar o acesso à água como parte integrante do direito humano à alimentação por se compreender que a água é um alimento indis-sociável dos demais alimentos.

4. Considerações Finais

Vê-se que os princípios e regras constitucionais positivaram o direito humano à alimentação adequada no Brasil, tornando forçosa sua realização. Porém, apesar de haver uma série de previsões relativas ao direito à alimentação nos dispositivos consti-tucionais, existem diversos obstáculos para que estas normas alcancem um grau satis-fatório de efetividade.

As desigualdades observadas no Brasil e a resultante grave e sistemática vio-lação do direito humano à alimentação adequada, de aproximadamente 60 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, não existem pela falta de leis, afi rmam Flávio Luiz Schieck Valente, Thais Franceschini e Valéria Burity28:

Nós temos leis sufi cientes, elas simplesmente não são implementadas para servir ao in-teresse da maioria. As graves violações a que nossa população é submetida devem ser tornadas visíveis para a sociedade, em uma perspectiva diferente da qual a realidade é freqüentemente mostrada pelos meios de comunicação e pelas autoridades governamen-tais. Por exemplo, crianças são seres humanos, e como tal, elas têm o direito de não viver no lixo e ter que obter sua comida de lá. O mesmo serve para seus pais. É obrigação do Estado: instituir políticas e programas que garantam imediatamente que crianças não tenham mais que comer lixo e; em médio e longo prazo, criar condições para que suas famílias tenham uma condição digna de vida. Todas as parcerias, instituições e instru-mentos que possam ajudar para que isto acabe são fundamentais.

No mesmo sentido, Josiane Rose Petry Veronese29 escreve:

Não conseguimos garantir o acesso de todas as crianças e adolescentes aos serviços médi-cos e de saúde, reduzir os índices de mortalidade infantil, assegurar às mães a adequada assistência pré-natal e pós-natal, desenvolver a assistência médica preventiva, combater a desnutrição.

Em conclusão, ressaltamos nas palavras de Valéria Burity,30 apesar do arcabouço jurídico, o direito humano à alimentação adequada não atingiu e não há indícios de quem vem venha a atingir em um curto período de tempo, um patamar satisfatório no Brasil.

27 CONTI, Irio Luiz. In PIOVESAN, Ibidem, p. 8.28 VALENTE, Ibidem.In PIOVESAN, Ibidem, p. 159-16029 VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente: Construindo o Conceito de Sujeito-Cidadão. In WOLKMER, Ibidem, p. 40.30 BURITY, Ibidem, In PIOVESAN, Ibidem, p. 214

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5. Referências

ESTIGARA, Adriana. O crédito integra-se ao conjunto de condições necessárias ao patrocínio do mínimo ético existencial. Revista Prática Jurídica. Ano VII, nº 72, de 31 de março de 2008.

FERRAZ, Eduardo Luis Leite. Ars Boni et Aequi, hoje: O Direito e a Causa dos Pobres. Florianópolis SC: Revista de Direito do Cesusc nº 2 Jan/Jun 2007.

PIOVESAN, Flávia; CONTI, Irio Luiz (Coord.) Direito Humano à Alimentação Ad-equada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris Editora, 2007.

RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-mod-ernidade. 10. ed. São Paulo: Cortes, 2005.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Omega,1994.

WOLKMER, Antonio Carlos. LEITE, José Rubens Morato. (Orgs.) Os “Novos” Dire-itos no Brasil: Natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003.

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DIREITO PENAL DO INIMIGO1

Lígia Inoue Martins 2 Fernando Bonfi m Duque Estrada 3

Resumo: O presente trabalho tem por objeto uma análise crítica sobre o Direito Pe-nal do Inimigo, de Günther Jakobs, visando demonstrar, de forma sucinta, quais são as principais idéias defendidas por esse doutrinador alemão, em sua teoria, quais são as principais críticas direcionadas a essa tese e porque ela é incompatível com os ditames de um Estado Democrático de Direito, ressaltando assim, os principais aspectos que nos levam a afi rmar que o Direito Penal do Inimigo não existe no Brasil, apesar de alguns doutrinadores se posicionarem em sentido contrário.

Palavras-chave: Direito penal do Inimigo. Punitivismo penal. Garantismo.

Abstract: This paper is a critical object on the Law of Criminal Enemy of Günther Jakobs, which aims to demonstrate, in summary form, what are the main ideas advocated by the German indoctrinated in his theory, what are the main criticisms directed to this thesis and because it is incompatible with the dictates of a democratic state of law, thus highlighting the main aspects that lead us to say that the criminal law of the enemy does not exist in Brazil, although some indoctrinated position is in the op-posite direction.

Keywords: Criminal law of the enemy. Punitive criminal. Guaranteed.

1. Introdução

Devido aos constantes atentados terroristas contra a humanidade, alguns doutrinadores, como Günther Jakobs, vem defendendo a aplicação de uma legislação pe-nal de emergência, a qual ele denomina de Direito Penal do Inimigo, onde, na busca de se conter esse tipo de criminalidade, ele apresenta uma proposta que permitiria ao Estado criar uma resposta punitiva diferenciada às infrações de elevada gravidade ofensiva.

Esta proposta parte da idéia de que a sociedade, por ter sofrido várias transfor-mações, exige que o Direito Penal esteja atualizado, pois, segundo Jakobs:

1 O presente artigo é resultado da monografi a jurídica defendida no Curso de Direito da Unigran, sob a orientação do Professor Fernando Bonfi m Duque Estrada. 2 Graduanda do 9º Semestre, do Curso de Direito da Unigran. Estagiária credenciada no Ministério Público Estadual de Dourados-MS. 3 Graduado e Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela UNIGRAN. Professor de Direito Processual Penal na UNIGRAN. Procurador de Entidades Públicas do Estado de Mato Grosso do Sul e advogado.

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(...) hoje em dia, uma teoria do delito, com consistência interna, tem que partir do con-ceito de “pessoa” e de “lesão jurídica”. Portanto, aquele “que pretende ser tratado como pessoa deve dar em troca certa garantia cognitiva de que se comportará como pessoa. Se não existe essa garantia, ou ainda, se é negada, expressamente, o Direito Penal deixa de ser uma reação da sociedade ante o fato de um de seus membros, e passa a ser uma reação contra o inimigo.4

Dessa forma, verifi ca-se que os atentados terroristas, a criminalidade orga-nizada, a incerteza dos riscos e a sua imprevisibilidade, fi zeram nascer na sociedade um sentimento de absoluta insegurança, fazendo com que todos clamem por soluções rápidas e efi cazes. Com isso, muitas pessoas acreditam que a solução se encontra num direito penal mais rígido, que seja capaz de conter efetivamente essa criminalidade, e isso, fez com que a doutrina penal revelasse uma política criminal que Jakobs denomina de Direito Penal do Inimigo.

2. Direito Penal do Inimigo segundo Günther Jakobs

Direito Penal do Inimigo é uma teoria desenvolvida por Günther Jakobs, em 1985, onde defende a idéia de que devem existir dois tipos de Direito: um direito penal que esteja voltado para o cidadão e outro para o inimigo, sendo ambos, no entanto, perten-centes ao mesmo contexto jurídico-penal.

Nessa época, ele apenas apresentava essa teoria de forma crítica e descritiva, alegando que o único direito penal legítimo seria o Direito Penal do Cidadão, visto que o mesmo garante ao indivíduo que cometeu uma infração e que oferece garantias de que irá voltar a se conduzir de forma fi el e obediente à norma, o status de pessoa e o direito a ter acesso a todos os seus direitos penais e processuais previstos em lei, o que não ocorreria com o Direito Penal do Inimigo.

Contudo, a partir de 1999, ele mudou drasticamente de posição, passando as-sim, a defender a aplicação do Direito Penal do Inimigo, alegando que ele não seria ilegítimo, visto que essa distinção entre Direito Penal do Inimigo e Direito Penal do Cidadão seria necessária para se proteger, bem como para se manter a legitimidade do Estado de Direito e da ordem jurídica, sendo que, para ele:

O Direito penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra (...) [Assim] O Direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito penal do inimigo (...) combate perigos (...)5

Dessa forma, na concepção desse doutrinador alemão, o Direito Penal do Ci-dadão seria aquele aplicado contra indivíduos que, a princípio, não delinqüem persis-

4 JAKOBS, Günther apud RAIZMAN, Daniel Andrés; PEDRINHA, Roberta Duboc. Os Fundamentos Epistemológicos da Construção do Direito Penal do Inimigo na Contemporaneidade: Aspectos Nacionais e Transnacionais. Disponível em: www.freixinho.adv.br. Acesso em: 20/08/08.5 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. 2008. p. 30.

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6 JAKOBS, Günther. Op.cit. p. 42.7 Idem. p. 97.8 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2007. p. 18

tentemente, e que oferecem certa garantia cognitiva mínima de que terão um comporta-mento pessoal, demonstrado através da obediência e fi delidade ao ordenamento jurídico. Já o Direito Penal do Inimigo seria aquele aplicado contra indivíduos que se desviam por princípio, e que não demonstram, de forma objetiva, que atuarão como pessoas.

Com isso, percebe-se que essa teoria de Jakobs é estruturada sobre o conceito de pessoa e de não-pessoa, onde o inimigo é uma não-pessoa, pois um sujeito que não apre-senta condições de que possa voltar a ser respeitador da norma, não é digno de possuir status de pessoa, e assim de ter assegurado seus direitos fundamentais, e ainda por que:

Quem não presta uma segurança cognitiva sufi ciente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas que o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.6

Desse modo, verifi ca-se que a distinção entre pessoa e inimigo depende não apenas das características individuais, mas principalmente comportamentais dos indi-víduos, sendo que com base nessa distinção é que surge o Direito Penal do Cidadão, para os indivíduos que se comportam como pessoas, e o Direito Penal do Inimigo, para os que se conduzem de forma desviada, sem dar garantias de um comportamento pessoal adequado.

Assim, com base nessa distinção, Jakobs alega que deve ser aplicada pena ao cidadão, por ser o modo mais apropriado de se proceder contra os transgressores da nor-ma, visto que a pena é a coação portadora da resposta penal adequada ao fato delituoso de uma pessoa racional; e por meio de medida de segurança, contra os criminosos por tendência, por ser esta a coação portadora da resposta penal adequada ao fato delituoso de um indivíduo perigoso, tendo em vista que as “medidas de segurança são penas sem os limites nem as garantias das penas.”7

Dessa forma, percebe-se que:

a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. (...) [Assim] quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas (...).8 (grifos nossos).

Assim, se um indivíduo é considerado pessoa, esse status lhe concede direitos, sendo-lhe negado, ele perde seus direitos, se tornando um sujeito perigoso, que deve ter sua conduta interceptada no estágio prévio, para evitar a concretização de um mal maior e supostamente previsível para a sociedade.

Dessa forma, o Estado, conforme proposta apresentada por Jakobs, poderá proceder de duas formas contra os transgressores da norma: pode vê-los como pes-

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soas que agiram de modo errado, ao delinqüir, e assim, deve ser aplicado a eles uma pena na busca de se restabelecer a vigência da norma; ou como indivíduos que visam destruir o ordenamento jurídico, devendo ser aplicado contra estes um procedimento de guerra, mediante a coação, com aplicação de penas desproporcionais, adiantamento da punibilidade e fl exibilização ou até supressão das garantias penais e processuais previs-tas legalmente, sendo essas, portanto, as características primordiais do Direito Penal do Inimigo.

3. Críticas à Tese do Direito Penal do Inimigo

Um dos argumentos utilizado pelos doutrinadores para criticar o Direito Penal do Inimigo, se refere ao fato de, Jakobs, defender em sua teoria, que o indivíduo deve ser punido pelo o que ele é ou representa ser, ou seja, por ser ele um inimigo, por ele repre-sentar um perigo à sociedade, e não necessariamente pelo fato criminoso que ele tenha cometido, o que implica, portanto, na constatação de que o Direito Penal do Inimigo nada mais é do que um direito penal do autor, em detrimento ao direito penal do fato.

Com isso, tem-se alegado que, o que Jakobs pretende com sua teoria, ao visar a punição de alguém pelo que é ou representa ser, sem precisar mais do que isso para ser punido, muito se assemelha ao projeto desenvolvido por Mezger durante o regime nazista, de Hittler, posto que, naquele período, se punia as pessoas pelo que elas eram (negros, judeus, defi cientes físicos, homossexuais, etc), e não pelo fato criminoso que elas tinham cometido, dando azo, assim, à criação de um direito penal “discriminatório, racista e preconceituoso, uma vez que passa a tratar um cidadão possuidor de direitos como mero objeto e não como pessoa.”9

Além disso, o direito penal do autor atuaria de modo tão repressivo que acabar-ia punindo o agente pela simples cogitação do crime, ou seja, puniria o indivíduo por um mero pensamento, por ele ter tido pensamento contrário à norma. Com isso, “o direito penal passaria a controlar, inclusive, tudo o que se passa na cabeça das pessoas, o que fere vários princípios penais, como o da lesividade, da ofensividade e da materialização do fato”, conforme ressalta Francisco Sannini Neto.10

Ainda, cabe considerar que o Direito Penal do Inimigo visa tão-somente, aplacar o clamor público por soluções rápidas e efi cazes na contenção da criminalidade (direito penal simbólico), por meio da adoção de uma política criminal mais preocupada em punir consideravelmente o acusado (punitivismo), sob a alegação de que, com o endurecimento das legislações penais, com uma maior punição para determinados indi-víduos (aos inimigos), seria possível evitar que os crimes mais infames acontecessem em meio à sociedade, ou então, se já tiverem acontecido, que tais indivíduos sejam punidos como merecem ser punidos: por meio da coação e sem garantias, na busca de eliminá-los, ante sua periculosidade.

9 SANNINI NETO, Francisco. Direito Penal do inimigo e Estado Democrático de Direito: compatibilidade. Disponível em <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 05 janeiro 2009.10 SANNINI NETO, Francisco. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 05 de jan. 2009

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11 ZAFFARONI apud RAIZMAN, Daniel Andrés; PEDRINHA, Roberta Duboc. Disponível em: www.freixinho.adv.br. Acesso em: 20 ago. 2008.12 Cf. GOMES E CERVINI apud MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. A Terceira Velocidade do Direito Penal: o ‘Direito Penal do Inimigo’. Disponível em: <www.dominiopublico.gov.br>. 19 ago. 2008.

Assim, verifi ca-se que essa teoria de Jakobs, ao invés de ser progressiva, é manifestamente regressiva, pois objetiva repetir tudo aquilo que o direito penal já apli-cara antigamente e que não deu certo, servindo tão somente para excluir ainda mais os marginalizados, ou até mesmo exterminá-los, pois conforme alegado outrora, o Direito Penal do Inimigo almeja eliminar perigos.

Destarte, cabe questionar a legitimidade dessa “suposta tendência”, tendo em vista que, além de ser totalmente contrária ao modelo atualmente adotado por nossa leg-islação penal, ao invés de se ter segurança frente aos inimigos do Estado, todos passariam a ser alvo dele, pois, na medida que são relativizadas ou até mesmo suprimidas as garan-tias individuais, mesmo sobre a alegação de que se direcionam apenas aos que possuem personalidade voltada à delinqüência (inimigos), todos acabariam por ser prisioneiros dele também, pois, ao ser confundido com um inimigo passar-se-ia a ser processado sem nenhuma garantia, e sem ter como provar inocência, tendo em vista que tudo poderia ser usado contra tal indivíduo, e assim, todos fi cariam ao pleno jugo do Estado.

Zaffaroni, a propósito, observa que a redução de direitos e garantias proces-suais, não fi caria limitada apenas aos inimigos, mas seria estendida a todos os cidadãos, devido ao fato de não existir conceito defi nido de inimigo. Dessa forma, ele considera que, o que deveria estar efetivamente em discussão:

não é se podemos tratar alguns estranhos de maneira diferenciada, porém se o estado de direito pode limitar as garantias e a liberdade de todos os cidadãos. Pois, ao permitir a intervenção das comunicações privadas se afeta a intimidade de todos; ao limitar ga-rantias processuais se coloca todos em risco, de serem indevidamente processados e até condenados por terrorismo; ao tipifi car atos preparatórios equívocos com pena, se atinge a todos, por condutas que na maioria dos casos são inofensivas.11

Com efeito, percebe-se que, se fosse legitimado o Direito Penal do Inimigo, o Estado deixaria de ser Democrático de Direito para ser um Estado Totalitário, onde as conquistas de direito, as quais levaram séculos, seriam suprimidas em pouco espaço de tempo, e ainda pior, de forma legitimada, o que não se pode aceitar.

Assim, essa tendência deve ser rechaçada por nosso ordenamento jurídico-penal, pois conforme alertam Gomes e Cervini, a reação do Estado contra os crimes de alto grau de ofensividade não pode ter por base medidas ou mecanismos inconciliáveis com o Estado Constitucional de Direito, pois segundo esses autores:

todo ‘direito de exceção’ confi gura sério risco para o cidadão, pois é sempre construído em detrimento dos direitos e garantias individuais. Constitui também sério risco para o Estado Democrático porque, pouco a pouco, vai se incorporando ao direito comum e geral. Nem tudo que a política criminal sugere, em suma, encontra abrigo no ius posi-tum.12

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Portanto, o Direito Penal do Inimigo, da forma como fora proposto por Ja-kobs, é incompatível com o Estado Democrático de Direito, visto que, com sua adoção, não se respeitariam as garantias de direito consagradas constitucionalmente, no combate a criminalidade, o que confi guraria um verdadeiro retrocesso no âmbito penal, com re-fl exos negativos em todo o campo do Direito.

Dessa forma, por não existir essa conciliação, com a adoção do Direito Penal do Inimigo, na forma concebida por Jakobs, tornar-se-ia inviável a manutenção do Es-tado Democrático de Direito uma vez que todos os princípios constitucionais que fazem com que nosso Estado seja Democrático de Direito desapareceria, na busca inefi caz de conter a criminalidade, por meio da violação em massa de seus princípios fundamen-tais.

Por isso, o Direito Penal do Inimigo não se coaduna com o Estado Democráti-co de Direito, não sendo, portanto, admissível sua adoção, uma vez que o nosso sistema penal deve respeitar os princípios constitucionais e se voltar para “os direitos humanos, embasado em um direito penal da culpabilidade, num direito penal mínimo e garantista,”13

como defende Bitencourt, com o qual se concorda de pleno direito, uma vez que sem essas garantias de direito, todos estariam sujeitos ao poder ilimitado do Estado, de modo a não ser possível se defender contra ele, o que não se pode admitir.

Nessa esteira, acredita-se que a melhor solução não é a adoção do Direito Penal do Inimigo, de Jakobs, no combate à criminalidade, mas sim a adoção do Direito Penal do Equilíbrio, de Rogério Greco, com aplicação do Direito Penal como ultima ratio, devendo o Direito Penal ser usado somente quando esgotadas todas as possibilidades de controle extra penal no combate à criminalidade, devendo assim, intervir apenas em ca-sos de extrema necessidade, e com observância e respeito às nossas garantias de direito, sob pena de assim não procedendo, tornar-se um Direito Penal ilegítimo.

4. Bom comportamento como condição do Status de Pessoae a dignidade da pessoa humana

Jakobs alega que quem não se comporta conforme a norma deve perder seu status de pessoa e seus direitos fundamentais, por ter se tornado um inimigo, uma não-pessoa.

Dessa forma, esse doutrinador, com seu Direito Penal do Inimigo, nega ex-pressamente qualquer valor a dignidade da pessoa humana.

Com isso, verifi ca-se que tal teoria – por mais esse motivo -, não se coaduna com Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil, pois tal princípio é um de seus fundamentos, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.

Portanto, num Estado Democrático de Direito, como o Brasil, não existem indivíduos que não tenham assegurados para si, os direitos fundamentais e inerentes a toda e qualquer pessoa humana.

13 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. V.I. 2002. p. 9-10.

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14 SÁNCHEZ, Bernardo Feijjo apud SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Direito penal do inimigo e controle social no Estado Democrático de Direito. Disponível em: <www.clubjus.com.br>. 28 dez. 2008.15 FERRAJOLI, Luigi apud SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Disponível em: <www.clubjus.com.br>. Acesso em: 28 dez. 2008.16 Idem. Disponível em: www.clubjus.com.br. Acesso em: 28 dez. 2008.17 SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Disponível em: <www.clubjus.com.br>. Acesso em; 28 dez. 2008. 18 ULFRID NEUMANN. Direito Penal do Inimigo. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais: IBCCRIM. Nov./dez. 2007.V.15, nº 69. p. 174.19 Idem. p. 176

Assim, percebe-se que, em nosso país, não é possível dizer, como pretende Jakobs, que cidadão ou pessoa é apenas aquele que se mostra fi el e obediente à norma, pois isso equivaleria a dizer que “o inimigo não seria um sujeito de direito, e sim apenas um objeto deste”. Ou seja: a conclusão jakobsiana é incompatível com o Estado democrático de direito atual.”14

Com efeito, não existe a possibilidade de haver uma compatibilização entre o Direito Penal do Inimigo e o Estado Democrático de Direito, conforme já alegado acima, pois excluir o status de cidadão de um indivíduo seria o mesmo que excluir o seu status de pessoa.

Luigi Ferrajoli, a propósito, salienta que:

a razão jurídica do Estado de direito não conhece inimigos e amigos, e sim apenas culpa-dos e inocentes”, de modo que “quando se fala em direito penal do inimigo se está a falar de um oximoro, de uma contradição terminológica, a qual representa, de fato, a negação do direito penal: a dissolução de seu papel e de sua íntima essência.15

Dessa forma, para Ferrajoli é impossível haver um Direito Penal do Inimigo e um Direito Penal do Cidadão, pois para ele, o Direito Penal é e deve ser apenas um só para todo aquele que viola um bem jurídico tutelado.

Como exposto por Luigi Ferrajoli, para o Direito Penal devem existir apenas indi-víduos culpáveis e indivíduos inocentes, de maneira a permitir que a uns e a outros seja apli-cado o mesmo tipo de controle social: mesmas normas jurídico-penais e sanções, e mesmo respeito aos direitos humanos fundamentais.16

Assim, para esse doutrinador, o Direito Penal não possui amigos nem inimigos, mas seres humanos, pessoas inocentes ou culpadas, visto que, por possuir o objetivo pre-cípuo de manter a ordem e a paz sociais, ao dividir o Direito Penal em duas esferas, uma voltada para os inimigos e outra voltada para os amigos do Estado Democrático de Direito, negar-se-ia não apenas o Direito Penal, como também o próprio Estado Democrático de Direito, pois, se o Estado de direito é marcado por ser democrático, não se pode conceber uma diferenciação entre pessoas para poder puni-las.17

Por isso, devido ao princípio da dignidade da pessoa humana, se concedem certos direitos a todo cidadão sem se analisar, sem se levar em conta seu comportamento social, e se “reconhecem determinados princípios categóricos, cuja obrigatoriedade independe de que aquele que é por ele protegido tenha “merecido” que sejam respeitados.”18

Portanto, a nossa Constituição Federal reconhece a todo ser humano, independente de seu comportamento social, um status de pessoa, que proíbe o Estado de tratá-lo segundo critérios meramente de oportunidade19, ou melhor, tratá-lo como um “animal irracional.”

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Ainda, é de se considerar a defi nição do inimigo, como ensina a experiência histórica, não pode ser controlada na praxe da persecução estatal de grupos de pessoas. Assim, no discurso político-jurídico, deve-se renunciar ao conceito.20

Destarte, preservar os direitos humanos signifi ca preservar um mínimo ético de cada pessoa, para que não seja tratado como objeto de coação, mas como um ser humano.

O valor da pessoa humana deve prevalecer sobre qualquer argumento utilitário e deve impor limites à qualidade e a quantidade da pena. Ou seja, jamais poderá ser perversa ou mesmo prevente o réu. A compreensão da dimensão dos direitos humanos consiste em uma importante estratégia de enfrentamento da seletividade e da punição fomentadas pelo discurso do Direito Penal do Inimigo,21 uma vez que, sem se respeitar os direitos humanos, estar-se-ia negando a própria essência do Estado Democrático de Direito.

5. Refl exos do Direito Penal do Inimigo no Brasil

Jakobs alega que dentro de nosso ordenamento jurídico-penal já existe traços do Direito Penal do Inimigo, o que pode ser constatado por meio da análise feita às novas leis elaboradas nos últimos tempos, que trazem em seu bojo, características tais que as denunciam como seguidoras do Direito Penal do Inimigo -, a exemplo da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8072/90); a Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), as Leis de Drogas (Lei nº 11.343/06); dentre outras.22

Isso porque, tais leis se apresentam com parâmetros penais e processuais diver-sos do modelo liberal-clássico, sendo verdadeiros instrumentos de antecipação da tutela punitiva, as quais tipifi caram novos delitos, delinearam novos criminosos, trouxeram um procedimento penal e uma punição muito mais rigorosa para aqueles que cometem es-ses tipos de crime, e ainda porque tais leis preconizam uma crescente relativização das regras e das garantias de direito, no combate a criminalidade, como forma de atender ao anseio social.

Devido a isso, constata-se, ao se analisar a lei dos crimes hediondos, que a mesma trouxe uma série de proibições que acabou por fl exibilizar as garantias de direitos dos infra-tores, fazendo surgir, assim, um regime penal muito mais rigoroso do que o previsto para as demais infrações penais.

Por essa razão, Daniel Andrés Raizman e Roberta Duboc Pedrinha, alegam que:

A Lei de Crimes Hediondos: consiste no diploma penal que de maneira mais rigorosa se enquadra nos moldes do Direito Penal do Inimigo, pois os crimes naquela inscritos possuem uma série de vedações que geram um regime mais rigoroso que o previsto para o restante das infrações.23

20 ULFRID NEUMANN. Op. cit. p. 177. 21 RAIZMAN, Daniel Andrés; PEDRINHA, Roberta Duboc. Disponível em: <www.freixinho.adv.br>. Aceso em: 20 ago. 2008.22 Cf. GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. 2005. p. 23.23 RAIZMAN, Daniel Andrés; PEDRINHA, Roberta Duboc. Disponível em: <www.freixinho.adv.br>. Aceso em: 20 ago. 2008

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24 Quando se fala que “aparentemente as leis no Brasil seguem os ideais preconizados pelo ‘Direito Penal do Inimigo’ de Jakobs,” se deve ao fato de que não se concorda efetivamente que nossas leis sejam seguidoras do ‘Direito Penal do Inimigo’, posto que apesar de serem relativizadas algumas garantias de direito dos presos, em nosso país, não chega a ser tão brusca ao ponto de suprimi-las; desse modo, verifi ca-se que ainda são garantidos alguns direitos; em nosso país certos indivíduos são presos como forma de repreendê-los pelo seu ato delituoso, por terem cometido alguma violação ao bem jurídico tutelado, e não pelo que eles representam ser; e o fi m da pena é a ressocialização e não a eliminação do encarcerado, como defende Jakobs.

Assim, por impor um rigorismo maior, com evidente relativização de garantias de direito, a lei dos crimes hediondos, na concepção de alguns doutrinadores, nada mais é do que uma lei de Terceira Velocidade do Direito Penal, que aparentemente segue os ideais preconizados pelo Direito Penal do Inimigo de Jakobs.24

De igual modo, a Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), a qual pre-screve que aos indivíduos que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa não serão concedidos alguns direitos, tais como, a liberdade provisória e pos-sibilidade de apelar em liberdade, bem como o início do cumprimento da pena seria em regime fechado.

Portanto, numa forma de aplicar uma maior punição aos indivíduos que com-etem esse tipo de delito, se restringem várias garantias de direito para, a princípio, difi -cultar a volta desses transgressores ao seio social.

No mesmo sentido, foi editada a nova Lei de Drogas (lei nº 11.343/06), que aumentou a pena para 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão e o pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, para aqueles que cometessem o trá-fi co de drogas e entorpecentes, por acreditar que, com a adoção de uma maior punição conseguiria conter a prática dessa conduta delituosa.

Ainda cabe destacar outra elaboração legislativa, supostamente tendente ao Direito Penal do Inimigo, no Brasil, a lei n. 10.792 de 1º de dezembro de 2003, que alter-ou a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210 de 11 de junho de 1984), para incluir o Regime Disciplinar Diferenciado, como uma das formas de sanção disciplinar (art. 53, inciso V), aplicado ao preso provisório ou condenado que cometer falta grave, ao praticar fato previsto como crime doloso, e quando este ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas do estabelecimento penal ou da sociedade (art. 52, LEP), onde, de acordo com os §§ 1º e 2º, do art. 52, da LEP, o regime disciplinar diferenciado poderá também abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentarem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade, bem como estarão igualmente sujeitos ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.

Dessa forma, verifi ca-se que a submissão ao regime disciplinar diferenciado deriva apenas da presença de um “alto grau de risco para a ordem e segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”, preceito esse que, aliás, é preconizado na teoria de Jakobs, para poder punir o “inimigo”, onde não precisaria ter necessariamente a realização de um novo delito, ou de uma falta grave que ocasionasse a subversão da ordem ou da disciplina

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interna da penitenciária ou da sociedade, pois a mera suspeita de participação em bandos ou organizações criminosas justifi caria o tratamento penal diferenciado.

Nesse sentido, ressalta José Miguel Zugaldía Espinar que:

todas estas restrições não estão dirigidas a fatos e sim a determinada classe de autores. Busca-se claramente difi cultar a vida destes condenados no interior do cárcere, mas não porque cometeram um delito, e sim porque segundo o julgamento dos responsáveis pelas instâncias de controle penitenciário, representam um risco social e/ou administrativo ou são “suspeitas” de participação em bandos ou organizações criminosas. Esta iniciativa conduz, portanto, a um perigoso Direito penal de autor, onde “não importa o que se faz ou omite (o fato) e sim quem– personalidade, registros e características do autor –faz ou omite (a pessoa do autor).25

Dessa forma, Busato constata que:

a imposição de uma fórmula de execução da pena diferenciada segundo características do autor relacionadas com “suspeitas” de sua participação na criminalidade de massas não é mais do que um “Direito Penal do Inimigo”, quer dizer, trata-se da desconsideração de determinada classe de cidadãos como portadores de direitos iguais aos demais a partir de uma classifi cação que se impõe desde as instâncias de controle. A adoção do Regime Disciplinar Diferenciado representa o tratamento desumano de determinado tipo de au-tor de delito, distinguindo evidentemente entre cidadãos e “inimigos.26

Assim, verifi ca-se que, no regime disciplinar diferenciado, visa-se, a princípio, punir o indivíduo, com base em suspeitas, não precisando mais que isso para que o preso seja levado a esse regime diferenciado, o que muito embora, vem trazendo fortes dis-cussões sobre sua constitucionalidade, uma vez que, esse regime:

[...] mais do que um retrocesso, apresenta-se como autêntica negação dos fi ns obje-tivados na execução penal, constituindo um autêntico bis in idem, uma vez tida a im-posição da pena como ajustada à natureza do crime praticado – considerados todos os seus elementos constitutivos e os respectivos motivos, circunstâncias e conseqüências -, à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social e à personalidade do agente.27 (grifos nossos).

Assim, ao se verifi car a fi nalidade atual do Direito Penal (punitivismo), se che-ga a aparente conclusão de que a nova tendência do Direito Penal no Brasil vem seguindo o ideal preconizado no Direito Penal do Inimigo, de Jakobs, que visa a atender o clamor público por mais segurança, por meio da edição de leis penais mais rígidas, nos levando assim, ao fenômeno de endurecimento da legislação penal.

Essa tendência, aliás, mais punitiva e repressora, que vem sendo adotado no Brasil, já vinha sendo constatada por Luiz Flávio Gomes e por Raúl Cervini, os quais, no

25 ESPINAR, José Miguel Zugaldía apud BUSATO, Paulo César. Regime disciplinar diferenciado como produto de um direito penal de inimigo. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 21 set. 2008.26 BUSATO, Paulo César. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 21 set. 2008.27 TUCCI apud MOREIRA, Rômulo de Andrade. Regime disciplinar diferenciado (RDD): inconstitucionalidade. Jurisprudência comentada. Disponível em: <www.jus2.uol.com.br>. Acesso em 24 nov. 2008.

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28 GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl apud MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Disponível em: <www.dominiopublico.gov.br>. 29 Idem. <www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.

entanto, alegaram que a política criminal repressiva do Brasil, se baseia em duas premis-sas: “(a) incremento de penas (penalização); e (b) restrição e supressão de garantias do acusado.”28

Dessa forma, para eles “a lei dos crimes hediondos e, agora, a lei de ‘combate’ ao crime organizado, dentre outras, são expressões desse modelo exclusivamente ‘dis-suasório’, isto é, modelo que confi a na “força ameaçadora da lei” (na linha da coação psicológica de FEUERBACH).”29

É de se considerar ainda que, esse movimento mais punitivista e repressor que vem sendo adotado no Brasil, para “tentar atender ao anseio social”, que impressionado pela mídia, acredita que a solução para todos os seus problemas se encontra na aplicação de um Direito Penal mais rígido, faz surgir a edição de leis punitivistas e simbólicas, uma vez que servem apenas para aplacar o clamor público por soluções que possam efetiva-mente conter a criminalidade, que em verdade não tem efi cácia alguma, ante a sua falta de incidência no caso concreto.

Se assim não fosse, esse tipo de criminalidade teria diminuído com decorrer do tempo, e não aumentado a sua incidência.

Percebe-se, com isso, que o Direito Penal, muitas vezes, serve apenas para sim-bolizar que alguma atitude esta sendo tomada no combate da criminalidade.

Assim, apesar de ser inegável que tais leis seguem uma tendência antiliberal, punitivista e simbólica, aparentando serem seguidoras do Direito Penal do Inimigo, ain-da assim dá para se constatar que, em nosso país, essa teoria de Jakobs, não é aplicada da forma como prevista por ele, pois houve apenas o rigorismo penal e a relativização de direitos em algumas leis, mas não foram suprimidos.

Ainda cabe considerar que este doutrinador peca em excessos, uma vez que defende a idéia de que se deve retirar o status de pessoa do delinqüente para poder puni-lo de forma mais repressora, o que não se coaduna com a política criminal de nosso país, ante o princípio da dignidade da pessoa humana; não se aplica ao infrator medida de segurança por sua conduta de elevado grau de ofensividade, punindo, nesse caso, o im-putável por sua periculosidade, em detrimento a sua culpabilidade, vez que nosso sistema penal segue o modelo vicariante e não duplo binário; apesar de ser aplicado um procedi-mento mais rigoroso contra tais tipos de criminosos, não chega a ser semelhante a um procedimento de uma guerra; não se pune o indivíduo por ser ele apenas reincidente, por ele aparentemente ter uma certa tendência a delinqüir, o que equivale a dizer, que não se pune o infrator pelo o que ele é ou representa ser em nosso país, mas sim pelo efetivo dano que ele causou a um bem jurídico tutelado.

Portanto, apesar de aparentemente já existir uma certa infl uência do Direito Penal do Inimigo no Brasil, ele não é tão devastador – como pretende Jakobs com sua teoria - ao ponto de ameaçar não só as garantias de direito dos inimigos mas de todos

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os cidadãos, posto que todos fi cariam ao pleno jugo do Estado, na medida que seriam relativizados ou até mesmo suprimidos as garantias de direito, com base em argumentos infundados e vagos, muitas vezes difundido, no calor das emoções.

Destarte, verifi ca-se que, em verdade, no Brasil, vem sendo adotado um mode-lo de política-criminal mais repressora e punitivista no combate à criminalidade, contudo não chega a ser tão devastadora dos direitos humanos e de nossas garantias fundamen-tais, como pretende Jakobs, com seu Direito Penal do Inimigo, posto que, na medida do possível, tais direitos são preservados e resguardados.

Com efeito, percebe-se que no Brasil não é e nem deve ser adotado o Direito Penal do Inimigo, como proposto por Jakobs, uma vez que, se isso ocorresse, todos os princípios constitucionais que fazem com que nosso Estado seja um Estado Democráti-co de Direito desapareceria, na busca inefi caz de conter a criminalidade, por meio da violação em massa de seus princípios fundamentais, o que não pode ser admitido, pois, senão, estar-se-á propenso ao retrocesso, o que equivale dizer que, em vez de se ter se-gurança por parte do Estado, todos passariam a ser objeto de coação por parte dele, sem nenhum direito ou garantias.

6. Considerações Finais

Conforme posto em evidência, a teoria de Jakobs sobre o Direito Penal do Inimigo é incompatível com a política criminal pautada nos Estados Democráticos de Direito, haja vista ser inadmissível que se retire o status de pessoa do indivíduo transgressor da norma, para poder puni-lo sem nenhuma garantia, pois isso representaria um verda-deiro retrocesso no âmbito penal, pois tal procedimento se assemelharia ao processo in-quisitorial, onde se cometiam várias atrocidades contra o indivíduo, por não se respeitar a dignidade da pessoa humana, por não serem considerados como pessoas.

Por isso, acredita-se que a melhor solução para combater a criminalidade seria a aplicação de um Direito Penal do Equilíbrio, devendo assim, o Direito Penal intervir apenas em casos de extrema necessidade, e com observância e respeito às nossas garan-tias de direito, uma vez que a intervenção do Estado através do Direito Penal deve ser limitada pela Constituição Federal, estabelecendo um tratamento penal que preserve as garantias constitucionais, sob pena de assim não procedendo, tornar-se um direito penal ilegítimo.

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LEI MARIA DA PENHA: IGUALDADEMATERIAL COMO DIREITOS HUMANOS

Ana Paula Corrêa Guimarães 1

Resumo: O objetivo deste texto é aprofundar as refl exões sobre a igualdade entre ho-mens e mulheres enquanto direito humano incluído na Declaração Universal dos Dire-itos Humanos, sob a perspectiva da violência doméstica e familiar contra a mulher, relacionando-o, também, com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contras as Mulheres, bem como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A presente análise busca expor a constitucionalidade da Lei 11.340/2006, tendo em vista o sofrimento desproporcional das mulheres em relação aos homens. Não deixando de elevar-se sua total compatibili-dade com os princípios constitucionais brasileiros e as Convenções internacionais de que o Brasil faz parte no que se refere às mulheres.

Palavras-chave: Direitos humanos; Igualdade material; “Lei Maria Da Penha”.

Abstract: The purpose of this text is to get deepen into refl ection about the equality between men and women as while a human right included in the Universal Human Right Declaration, under the perspec-tive of domestic and familiar violence against the woman, linking also, to the Convention about Elimina-tion of All Forms of Discrimination against Women and the Inter-American Convention to Prevent, Punish and Eradicate Violence against Women. This analysis seeks to expose Law 11340/2006’s constitutionality, in view of the disproportionate suffering of women in respect to men, no longer highlight-ing its full compatibility with the Brazilian constitutional principles and the international conventions to which Brazil subscribes in what refers to women.

Key words: Human Rights; material iguallity; “Maria da Penha” Law.

1. Introdução

A discussão sobre a igualdade entre homens e mulheres não é um assunto novo. Ainda que previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 2º, bem como na Constituição Republicana (art. 5°, inciso I) e considerando a desigualdade real que existe entre homens e mulheres, o tema ainda causa dúvidas e desentendimentos naqueles que se deparam com o tema. No Brasil, a lei 11.340/2006, que fi cou conhecida como Lei Maria da Pena, que trata de violência doméstica e familiar contra a mulher, tem sido tema de grandes discussões quanto à sua constitucionalidade, tendo em vista que, para alguns autores, ela fere o princípio da igualdade. Entretanto, contrariando essa tese, a Constituição de 1988, trouxe em seu bojo a dignidade humana como um dos funda-

1 Advogada. Pós-graduanda em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Federal da Grande Dourados e Advogada.

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mentos do Estado Democrático, e a igualdade material, como um dos direitos e garantias fundamentais. Não bastasse, o Brasil adotou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contras as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que tratam de todas as formas de discriminação praticada contras as mulheres, e aduzem que elas merecem e precisam de uma proteção especial, em face da realidade fática de diferenças existentes em relação aos homens. Disso decorre que, a dignidade das mulheres é, e sempre foi, desrespeitada e, portanto, a lei está de total acordo com os preceitos constitucionais brasileiros.

O presente trabalho propõe discutir o direito de igualdade, bem como a Lei 11.340/2006, em três aspectos principais: a) a existência efetiva do direito de igualdade como direto humano, relacionado à Declaração Universal dos Direitos Humanos e Con-venções Internacionais de proteção da mulher; b) a real discriminação e violência que existe contras as mulheres no âmbito familiar, e c) a lei 11.340/2006 como legislação de acordo com a Constituição que visa a prevenir e eliminar a violência doméstica contras as mulheres no Brasil.

1.1 História contemporânea dos Direitos Humanos

A concepção doutrinária moderna dos direitos naturais teve como seu pro-genitor, no século XVII, o fi lósofo John Locke, que afi rmava ser o estado de natureza um estado de perfeita liberdade e igualdade, onde as pessoas deveriam ser tratadas com igualdade entre si, sem subornação ou submissão. Porém, tais direitos, tidos como va-lores universais, não possuíam importância jurídica naquela época, não passando, nas palavras de Norberto Bobbio2, de uma “existência ideal”, eis que esses direitos somente se efetivariam quando alguma constituição os transformasse em “prescrições jurídicas”. Com o iluminismo de Emmanuel Kant veio à tona a noção de ser humano como valor absoluto, onde se critica que a razão do homem negue a condição humana a qualquer pessoa3, expondo o denominado “imperativo categórico”4, ao qual demandava uma uni-versalização e imposição do respeito à dignidade humana.

Como maior precursor desses valores universais, baseados em Kant, destaca-se, principalmente, a Declaração da Independência dos Estados americanos de 1776, que consagrou a legitimidade da soberania popular, com a existência de direitos inseparáveis de todo o ser humano, como a igualdade e a liberdade. Conquista esta que se fi rmou pos-teriormente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, ressaltando novamente os direitos de liberdade e igualdade.

Mesmo com vários documentos existentes no tangente ao respeito à igualdade e liberdade, não foi possível evitar que a Segunda Guerra Mundial, sob o manto da

2 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política –a fi losofi a política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro: Campos, 2000, p. 485.3 BIELEFELD, Heiner. Filosofi a dos direitos humanos. Tradução Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo-RS: Unisinos. 2000, p. 62.4 Ibidem, p. 81.

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6 COMPARATO, Fábio Konder. A afi rmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. Ver e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 229.

discriminação e desumanidade, eliminasse de muitas pessoas a dignidade humana e até mesmo o direito de viver.

Após a guerra, consolidou-se um processo de universalização dos direitos hu-manos, porquanto se percebeu que os Estados, sozinhos, não tinham força para pro-movê-los e até mesmo porque tais Estados, muitas vezes, eram os próprios responsáveis pela violação de tais direitos. Em 1948 surgiu, então, como reconstrutora dos direitos humanos a Declaração Universal de Direitos Humanos, considerada como resposta aos apelos da Humanidade perante os terríveis fatos da Segunda Guerra, e trouxe consigo os preceitos de liberdade, igualdade e fraternidade. Depois dela a proteção dos direitos naturais passou a ter efi cácia jurídica e valor universal, tornando o indivíduo sujeito de uma comunidade estatal e internacional.

Não podemos deixar de destacar a grande evolução que a referida Declaração trouxe para Humanidade, e aos países signatários de tratados internacionais, no que se refere à efetivação da proteção dos direitos humanos, todavia, a realidade ainda está longe de coincidir com as determinações dos textos normativos.

2. Declaração Universal de Direitos Humanos e as Convenções sobre a eliminação da discriminação contra as mulheres

A Declaração Universal de 1948 trouxe como um dos seus direitos universais a igualdade. Para Bobbio5, tal princípio, no que consiste a idéia de justiça formal, afi rma simplesmente que todos devem ser tratados do mesmo modo quando pertencerem à mesma categoria. Entretanto, qual é o critério que se deve adotar para estabelecer como seriam essas categorias?

Esse critério seria estabelecido pelos critérios de justiça e não pelo princípio da igualdade, tendo em vista que se levaria em conta, dependendo do caso concreto, as condições de cada ser humano, a necessidade de cada um, e etc.

Sob o critério de justiça, o artigo II da Declaração trouxe o princípio da igual-dade essencial do ser humano, no que se refere às várias diferenças de ordem biológica e cultural que possam existir entre eles. O pecado contra a dignidade da pessoa humana consiste em considerar as diferenças para inferiorizar o indivíduo, ou até mesmo um grupo de pessoas, por suas peculiaridades6. Porém, algumas distinções existem e mere-cem ser protegida de uma forma especial, como é o caso da discriminação contra as mulheres. Esse grupo, por exemplo, não pode ter sua dignidade humana abalada ou eliminada por, em certas circunstâncias da realidade, não terem um tratamento adequado porque são mulheres, como é o caso da violência doméstica.

Para proteger as mulheres da discriminação foram elaboradas a Convenção so-bre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), em 1979, bem como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violên-

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cia contra a Mulher de 1994 como complemento da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tais Convenções trataram com enfoque específi co os direitos das mulheres.

A Cedaw foi o primeiro documento internacional com caráter vinculante a buscar a proteção específi ca para a mulher, tanto na vida pública como na privada. Veio a contemplar situações em que as mulheres são impedidas de exercerem os direitos das quais são titulares, os direitos humanos. Afi rmou em seu preâmbulo, que apesar de exi-stirem vários instrumentos de proteção aos direitos humanos a mulher ainda continua sendo alvo de grandes discriminações, e tais discriminações violam os princípios da ig-ualdade de direitos e do respeito à dignidade humana, bem como isso interfere no bem estar e desenvolvimento da sociedade e bloqueia o desenvolvimento das potencialidades das mulheres.

Em seu artigo 1º a Cedaw trouxe a seguinte defi nição do que seria a discrimi-nação: “Para fi ns da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher”, signifi cará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independente do seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos políticos, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.”

A referência à expressão “baseada no sexo”, quando produto de uma história cultural de desigualdades de sexo, alcança tanto as ações que atingem unicamente as mulheres como também às ações que as prejudicam de forma desproporcional (Reco-mendação Geral n. 19 da Cedaw), como é o caso das agressões domésticas que afetam na maior parte dos casos as mulheres7. Mas a própria Cedaw ressaltou em seu artigo 4º que para existir igualdade de fato entre homens e mulheres é necessário que os Estados-partes, em certos casos, adotem medidas especiais de caráter temporário, onde a diferen-ciação não se classifi cará como discriminação, mas sim como aceleração para eliminar a desigualdade entre eles.

Da leitura sistemática da Cedaw, percebe-se que ela procura atacar a discrimi-nação em diversas matérias como a educação, trabalho, saúde etc. Porém ela não abarca a violência contra a mulher.

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, entretanto, na tentativa de que os direitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos fossem respeitados, veio, através da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, tratar do tema especifi camente.

Esta Convenção, conhecida também como Convenção de Belém do Pará, trouxe em seu preâmbulo o reconhecimento de que a violência contra a mulher constitui uma violação às suas liberdades fundamentais e aos seus direitos humanos, ressaltando, ainda, que essa violência ofende sua dignidade, limitando total ou parcialmente seus direitos.

Para bem delimitar seu âmbito de aplicação o artigo 1º da Convenção de Belém do Pará trouxe quais seriam os pressupostos da violência contra a mulher: “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.” Nota-se que o uso

7 HIRAO, Denise. In PIOVESAN, Flávia e IKAWA, Daniela. Direitos Humanos: fundamentação, proteção e implementação. Curitiba: Juruá, 2008, vol. 2, p. 758-59.

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da palavra “gênero” quis indicar o fundamento dessa espécie de discriminação, ou seja, ela deriva de uma construção cultural. Nos artigos seguintes ela elenca os direitos iner-entes a qualquer mulher, como por exemplo, o direito ao respeito à vida, direito a não ser submetida a torturas, direito à igualdade de proteção perante a lei e da lei etc. Cabe aqui, destacar que o artigo 5º aduz que os Estados-partes reconhecem que a violência contra a mulher impede e anula o exercício desses direitos. Em face disso os capítulos III e IV da Convenção de Belém do Pará, respectivamente, trouxe as obrigações que tem os Estados-partes em contribuir de modo efetivo para a prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher para que seus direitos possam ser exercidos plenamente, afi rmando, assim como na Cedaw, que os Estados podem e devem adotar mecanismos especiais para que cesse tal violência, podendo estabelecer ações afi rmativas8, mudan-ças legislativas ou implantações de políticas públicas, trouxe ainda algumas funções da Comissão Interamericana de Mulheres e da Corte Interamericana de Direitos Humanos no intuito de proteger os direitos das mulheres.

Essas Convenções não ferem de forma alguma o princípio da igualdade proc-lamado na Declaração Universal de Direitos Humanos, pois suas abordagens consid-eram as desigualdades nas relações de gênero, a desigualdade de fato que existem entre homens e mulheres, e não apenas a igualdade formal, a “letra fria da lei”. Elas vêm sim tentar eliminar as discriminações que afetam as mulheres e, como ressaltam em seus preâmbulos, buscam fazer com que não sejam aniquilados os direitos trazidos pela De-claração Universal.

3. Violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha

O Brasil, até meados do ano de 2006, não possuía uma legislação específi ca que tratasse da violência doméstica e familiar contra a mulher. A esses casos era aplicada a lei 9.099/95, onde os juízes e funcionário adequavam-se apenas a “letra fria da lei”, atentando-se somente para os autos do processo sem analisar o caso de acordo com sua real história.

A legislação relativa aos Juizados Espaciais Criminais não se mostrava sufi -ciente para cessar a violência contra as mulheres, pois as penas aplicadas aos agressores eram brandas demais, ou seja, não intimidava o agressor, pois o jus puniendi do Estado não era efi ciente como deveria e os juízes e funcionários não estavam capacitados para lidarem com situações de violência doméstica9.

8“Ações afi rmativas podem ser defi nidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão-somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afi rmativas têm natureza multifacetária, e visam a evitar que a discriminação se verifi que nas normas de aplicação geral ou específi ca, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito (grifo do autor).” GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afi rmativa e princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001. p. 40-419 ESTIGARA, Adriana. In PIOVESAN, Flávia e IKAWA, Daniela. Op. cit, p. 463.

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Em face dessa inefi ciência, entrou em vigor em 2006 a Lei 11.340, que passou a ser denominada de Lei Maria da Penha em razão da busca incansável por justiça de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica cometida pelo seu então marido, Marco Antonio Hederia Viveros.10

Maria da Penha, após vir sofrendo várias agressões, em maio de 1983 foi al-vejada com um tiro desferido por seu marido, enquanto dormia e teve como seqüela a paraplegia irreversível. Na tentativa de livrar-se de uma possível punição, Marco Antonio afi rmou que ladrões haviam adentrado a residência e dispararam o tiro contra ela. Após retornar do hospital, Maria da Penha continuou sendo vítima de agressões físicas e psi-cológicas, tendo então, em junho do mesmo ano, conseguido com ajuda de familiares e mediante autorização judicial sair da residência do casal levando consigo suas fi lhas11.

Em decorrências de todas essa agressões, o caso resultou em uma ação crimi-nal contra Marco Antonio Hederia Viveros. Porém, o que tornou esse caso exemplo foi seu destino: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Após vários anos de lentidão do Poder Judiciário brasileiro em relação ao seu caso, e vendo a impunidade de seu agressor, Maria da Penha, em 1998, juntamente com o Centro de Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, formulou uma denúncia contra o Brasil à Comissão Interameri-cana de Direitos Humanos da OEA. Nessa petição, denunciou-se a ausência de medidas adequadas por parte do Brasil para processar e punir seu agressor, afi rmando que seus direitos, elencados em várias Convenções, principalmente a Convenção de Belém do Pará, haviam sido violados.12

Em resposta, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborou o Relatório n. 54/01, que responsabilizou o Brasil por omissão nas questões de violência contra a mulher e na falta de adoção de medidas preventivas e repressivas contra o agres-sor de Maria da Penha13. Cabe descrever a seguinte recomendação: “(...) 4. Prosseguir e intensifi car o processo de reforma que evite tolerância estatal e no tratamento dis-cricionário com respeito à violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil (...)”

Após as recomendações do relatório sobre o caso, o processo contra o agres-sor de Maria da Penha foi concluído e ele recolhido à prisão, enquanto o Estado brasil-eiro passou por fi m a estabelecer uma política pública para a proteção da mulher em situações de violência doméstica e familiar.

A Lei 11.340/2006 foi um instrumento de política pública adotada pelo Estado brasileiro para os casos de violência doméstica e familiar. Trouxe em seus artigos que, independentemente de qualquer característica da pessoa do sexo feminino, elas terão seus direitos humanos assegurados e o Estado em parceria com outros entes deverá,

10 SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher. Curitiba: Juruá. 2007, p. 30.11 Ibidem, p. 33.12 ESTIGARA, Adriana. In PIOVESAN, Flávia e IKAWA, Daniela. Op. Cit., p. 464.13 Ibidem, p. 464.

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14 FACHIN, Luiz Edson e FACHIN, Rosana Amara Girardi. <http://www.mndh.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=464&Itemid=56>. Acessado em: 26/04/2008.

quando necessário, adotar medidas para que sejam eles assegurados. Ela criou, além de outras medidas, incorporação da perspectiva de gênero para tratar da desigualdade e da violência contra a mulher; excluiu a aplicação da lei 9.099/95 aos casos de violência doméstica; determinou a criação de juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher com competência cível e criminal, que deverão ser compostos por uma equipe multidisciplinar e capacitada para atender tais casos; promover procedimentos que viabilizem medidas protetivas de urgência.

4. Lei Maria da Penha e a igualdade material

A Lei Maria da Penha, além de ter que transpassar barreiras culturais e institu-cionais estará sujeita, como se percebe das discussões, a análise de constitucionalidade, posto que há uma suposição de que ela fere o princípio da igualdade.

É incontestável que há uma desigualdade de gêneros entre homens e mulheres e que estas sofrem mais discriminações e violências do que aqueles. A própria Consti-tuição Federal de 1988 apresenta em certos artigos uma manifesta diferenciação entre homens e mulheres, tendo em vista suas peculiaridades, como por exemplo, o artigo 7º, XX, que estabelece “a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específi cos”, que contém o claro objetivo de proteger a mulher para que tenham oportu-nidades reais e iguais aos homens.

A Lei 11.340/2006 está totalmente de acordo com os princípios constitucio-nais, pois dentre os objetivos fundamentais está o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimina-ção” (artigo 3º, IV, CF), bem como expõe nos seus direitos e garantias fundamentais que homens e mulheres são iguais perante a lei, entretanto, a Constituição Federal ultrapas-sou a mera igualdade formal para abraçar a igualdade material, onde a igualdade não deve ser somente perante a lei, mas também na lei14. Não bastasse isso, a lei também está de acordo, como bem explanou em seu artigo 1º, com a Convenção de Belém do Pará e a Cedaw, das quais o Brasil faz parte e, em seu Título II, capítulos I e II, trouxe a defi nição do que venha a ser violência doméstica e familiar contra a mulher e suas formas, que são quase cópias das defi nições da Convenção de Belém do Pará.

A Resolução n. 09/2007 proferida pelo Conselho Nacional de Justiça não en-tendeu de outro modo, tendo de igual forma adotado que a referida lei está integralmente de acordo com os princípios constitucionais e internacionais. Salientou que o Estado brasileiro tem o dever imposto pela Constituição Federal de criar mecanismo contra a violência no âmbito familiar (artigo 226, §8º) e recomendou aos Tribunais que adotassem os Juizados de Violência Doméstica e as medidas que entendessem necessárias para que o quadro de violência seja modifi cado.

A lei 11.340/2006 veio na verdade sanar a omissão legislativa que existia sobre

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violência doméstica, pois ambas as Convenções de discriminação contra a mulher de que o Brasil faz parte exaltam a natureza particular delas e, ainda, a Convenção Inter-americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher destaca a forma desproporcional em que as mulheres são atingidas nesses casos.

A Organização das Nações Unidas em seus estudos informou que a violên-cia contra a mulher no âmbito familiar é uma das formas mais freqüentes de violência dirigida à mulher, representando, entre mulheres de 15 a 44 anos, a principal causa de lesões15, bem como uma em cada seis mulheres sofre violência; 80% das vítimas têm fi l-hos em comum; 70% das mulheres que relatam a violência sofrida evidenciam continuar em risco de espancamento ou morte; mais de 50% das mulheres agredidas registram conhecer pelo menos uma mulher já agredida pelo seu companheiro; 30% das mulheres brasileiras sofrem todos os dias algum tipo de violência16.

A preocupação da lei é a proteção da mulher e, ao que muitos possam pensar, não é só o homem que poderá ser sujeito ativo, mas sim qualquer pessoa que conviva no âmbito familiar e doméstico com a mulher, tais como: pai, mãe, irmão, irmã, fi lha, neta, dentre outros, ou com quem tenha mantido relação de intimidade, como namorado, ex-marido/companheiro17. No entanto, é só a mulher que poderá ser vítima.

A igualdade não elimina a diferença e, nesse quadro de real desproporcionali-dade das relações de gênero, fi ca evidente que as mulheres, não só pelas suas diferenças físicas, mas principalmente pela cultura que rodeia o tema, sofrem mais violência domés-tica. Nesse aspecto, a lei quer construir e afi rmar a igualdade com respeito à diversidade e, quando isso ocorrer, será alcançado o direito a ser diferente e, deste modo, será efeti-vado a igualdade essencial.

O objetivo da lei, expresso no seu artigo 1º, é de coibir e prevenir a violência contra a mulher e a adoção de medidas de assistência e proteção às mulheres. Quando tal situação for eliminada e os direitos da mulher e, principalmente, sua dignidade humana, estiverem sendo respeitados, a lei perderá seu propósito e haverá uma real igualdade entre homens e mulheres.

Infelizmente muito ainda falta para que se alcance esse patamar. Falta a muitos Tribunais, como no Tribunal do Mato Grosso do Sul, criarem seus Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar, capacitarem seus funcionário e juízes para lidar com situações dessa delicadeza. Mas, o maior passo já foi dado: uma legislação punitiva real contra violência doméstica que visa à dignidade de todas as mulheres.

Nessa argumentação, “a lei “Maria da Penha”, ao enfrentar a violência que de forma desproporcional acomete tantas mulheres, é instrumento de concretização da igualdade material entre homens e mulheres, conferindo efetividade à vontade consti-

15 PIOVESAN, Flávia e PIMENTEL, Silvia. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/noticias/ultimas_noticias/not_artigo_fl avia_silvia/>. Acessado em 13/05/200816 FACHIN, Luiz Edson e FACHIN, Rosana Amara Girardi. Disponível em: <http://www.mndh.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=464&Itemid=56>. Acessado em: 26/04/2008.17 . SOUZA, Sérgio Ricardo de. Op. Cit., p. 37

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18 PIOVESAN, Flávia e PIMENTEL, Silvia. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/noticias/ultimas_noticias/not_artigo_fl avia_silvia/. Acessado em 13/05/2008.

tucional, inspirada em princípios éticos compensatórios. Atente-se que a Constituição dispõe do dever do Estado de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (artigo 226, §8º). Inconstitucional não é a Lei Maria da Penha, mas sua ausência.”18

5. Considerações Finais

De acordo com os aspectos do tema do presente artigo, têm-se as seguintes conclusões:

1. As idéias do ser humano como valor absoluto e a universalização e imposição da dignidade humana de Kant foram base para os valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, considerada como reconstrutora dos direitos humanos após o fl agelo ocorrido na segunda Guerra Mundial.

2. O princípio da igualdade, mais uma vez, foi proclamado na Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos. O seu descumprimento gera o desrespeito à dignidade da pessoa humana, que ocorre quando indivíduos ou grupos são discriminados.

3. No que tange a situação particular das mulheres, a Convenção sobre a Elimi-nação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Inter-americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher vieram expor que as elas possuem uma diferenciação em relação aos homens e, em face disso, impor aos seus Estados signatários que promovam a proteção das mesmas quando se encontrarem em situações de desvantagens fáticas em relação aos homens.

4. A Lei 11.340/2006 foi medida tomada pelo Brasil após sua condenação pelo Comitê Interamericano de Direitos Humanos por omissão e negligência nos casos de violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, após terem tomado conheci-mento do caso de Maria da Penha Maia Fernandes. Vítima que sofreu por vários anos agressões de seu marido e que via na justiça brasileira a impunidade para seu agressor.

5. A buscar por uma igualdade material nos casos de violência doméstica foi o que impulsionou a lei “Maria da Penha” a adotar medidas que privilegiam as mulheres quando essas são vitimadas, pois é fato que elas são desproporcionalmente atingidas mais que os homens por esse tipo de violência. A lei, ao passo do que muitos afi rmam, não está em desacordo com a Constituição Federal brasileira em razão de seus preceitos estarem totalmente certados com os valores constitucionais de dignidade humana e com as Convenções internacionais que tratam da discriminação contra a mulher.

6. Referências Bibliográfi cas

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GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afi rmativa e princípio constitucional da igual-dade. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001.

PIOVESAN, Flávia e IKAWA, Daniela, coordenadoras. Direitos humanos: funda-mento, proteção e implementação. Curitiba: Juruá. vol. 2. 2008.

SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mul-her. Curitiba: Juruá. 2007.

Sites relacionados:

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http://www.mndh.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=464&Itemid=56. Acesso em 26/04/2008.

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ANÁLISE JURISPRUDENCIAL HABEAS CORPUS Nº 46.525, SUPERIOR

TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

Renata Jardim da Cunha Rieger *Rafael Camparra Pinheiro **

Resumo: O objeto de estudo é o Habeas Corpus nº 46.525, julgado pelo Superior Tribu-nal de Justiça. Em um primeiro momento, o acórdão trata da problemática da acusação genérica, exigindo detalhamento na inicial acusatória. Logo depois, discute a moderna teoria da imputação objetiva, esbarrando na confusão aplicativa dos institutos. Diante disso, analisou-se a melhor forma de sistematizar a referida doutrina na atual sociedade comunicacional. Defendeu-se o exame da imputação objetiva sob o ângulo da imputação do comportamento e do resultado. Aquela se concretiza em três instituições dogmáticas, quais sejam, o risco permitido, a proibição de regresso e a imputação ao âmbito de re-sponsabilidade da vítima. Uma vez verifi cada a tipicidade da conduta, deve-se averiguar se o resultado produzido é normativamente imputável ao sujeito. E, apenas depois disso, devem ser analisados os elementos subjetivos do tipo.

Palavras-Chave: Tipo penal objetivo. Sociedade Comunicacional. Teoria da imputação objetiva. Risco Permitido. Proibição de Regresso.

Abstract: The object of this study is the Habeas Corpus n. 46.525 judged by the Superior Court of Justice. In the fi rst moment, the college judgment addresses the issue of general complaint, demanding details on the original accusatory. After, discusses the modern theory of objective imputation, collided in the confusion of the institutes application. Before this, was considered the best way to systematize that doctrine in today’s society communication. It was defended the examining of objective allocation from the perspective of attribution of conduct and of result. That resumes in three dogmatic institutions, namely, the risk allowed, the prohibition of return and the allocation within the victim’s responsibility. Once checked for the typical behavior should consider whether the result produced is attributable to normative subject. And only after that should be examined the elements of the subjective type.

Keywords: objective criminal Type. Communication society. Objective theory of imputation. Risk Allowed. Return ban.

1. Introdução

No julgamento do Habeas Corpus nº 46.525, o Superior Tribunal de Justiça tran-cou ação penal que tramitava contra integrantes da Comissão de Formatura do Curso de Medicina da Universidade de Cuiabá (UNIC), pela prática, em tese, de homicídio cul-poso. Na exordial acusatória, abordou-se que havia indícios de que a vítima fora jogada

* Advogada, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC e mestranda em Ciências Criminais pela Pontifi ca Universidade Católica do Rio Grande do Sul. ** Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Público e especializando em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC.

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na piscina por seus colegas e que os acusados não foram diligentes e não obedeceram às normas de segurança necessárias para a realização do evento.

O acórdão traz uma vasta fundamentação doutrinária e jurisprudencial. E a sua análise possibilita uma discussão atual e necessária sobre importantes institutos do direito penal e processual penal.

2. Denúncia vaga e imprecisa: agressão ao art. 41 do Código de Processo Penal e aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório

Em um primeiro momento, analisou-se, com acuidade, a problemática da acusação genérica. Nesse contexto, trancou-se a ação penal ao constatar-se que a denún-cia desrespeita o art. 41 do Código de Processo Penal e inviabiliza o exercício da ampla defesa.

O art. 41 da Lei Adjetiva Penal prevê que a inicial acusatória conterá, sem-pre, “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualifi cação do acusado ou esclarecimento pelos quais se possa identifi cá-lo, a classifi cação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.”

A forma verbal utilizada pelo Legislador nesse dispositivo (conterá) indica o caráter cogente da norma processual. É, portanto, vedado o oferecimento de denúncias que não demonstrem a conduta tida como delituosa.

Apenas uma descrição detalhada do fato criminoso na peça vestibular possi-bilita o devido processo legal de garantias e o exercício do contraditório e da ampla def-esa. E isso não ocorreu no caso ora em análise. A denúncia recaiu sobre uma pluralidade de sujeitos (os integrantes da Comissão de Formatura) sem descrever minimamente a participação de cada um. Nessa senda, foi adequado o trancamento da ação penal pelo Superior Tribunal de Justiça, evitando-se o prosseguimento de uma ação temerária que afrontava gravemente os postulados processuais constitucionais no Estado Democrático de Direito.

3. A Atipicidade da Conduta e a Teoria da ImputaçãoObjetiva

Em um segundo momento, analisou-se a atipicidade da conduta narrada na exordial acusatória. Aqui, verifi ca-se a maior vantagem do acórdão, qual seja, trazer a discussão sobre a moderna doutrina da imputação objetiva para os Tribunais Superiores brasileiros.1

1 Importante salientar que a decisão não necessitaria adentrar na discussão acerca dos axiomas que norteiam a teoria da imputação objetiva. Isso porque a atipicidade da conduta é fl agrante pela ausência de culpa por parte dos denunciados, o que é fundamental para a consolidada teoria fi nalista (culpa, tecnicamente, caracteriza-se pela ausência de previsibilidade subjetiva de um resultado objetivamente previsível, situação que, in casu, resta totalmente afastada, haja vista a impossibilidade de previsão do resultado por parte dos denunciados e de qualquer pessoa consciente). Entretanto, é exatamente aí que reside a importância da decisão. Rompendo com paradigmas até então absolutos, o julgamento do presente habeas corpus inaugura, ao menos de forma cristalina, a recepção da moderna teoria da imputação objetiva pelos Tribunais Superiores brasileiros.

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Como é cediço, desde a edição da Lei n° 7209/84, responsável pela reforma na Parte Geral do Código Penal, a doutrina majoritária afi rma que o fi nalismo é a teoria adotada pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro. Esta teoria constitui-se, vale dizer, em verdadeira ferramenta de sistematização do direito penal e representa um progresso com relação ao causalismo.

Diversos juristas entendem que a adoção do fi nalismo inviabiliza a aplicação da teoria da imputação objetiva2. Ocorre que, giza-se, o intérprete não está adstrito ao comprometimento do Legislador com esta ou aquela doutrina, não havendo, portanto, óbice para aplicação da teoria da imputação objetiva no Ordenamento Jurídico Brasil-eiro. Ademais, são as técnicas interpretativas da realidade que conduzem a atividade legiferante (e judicante) e não o contrário, sob pena de se estagnar o desenvolvimento jurídico-acadêmico e, conseqüentemente, sócio-cultural.

Mais, a teoria fi nalista e a da imputação objetiva não são incompatíveis. Esta “corrige” aquela. A teoria da imputação objetiva reformula a tipicidade objetiva consa-grada pelo fi nalismo, ameniza o rigor da teoria da equivalência dos antecedentes causais e exige, para o tipo objetivo, além da conexão naturalística, a necessidade de que essa con-exão, segundo critérios de política criminal, seja imputada ao sujeito como “obra sua”. Nesse contexto, a teoria da imputação objetiva dá inegável seguimento à linha evolutiva garantista que se exterioriza nos degraus galgados desde Beling, com a inserção do tipo penal de garantia (tipo descritivo), passando por Mayer (ratio cognoscendi) e Mezger (ratio essendi), até a inserção do elemento fi nalístico da ação por obra de Welzel (positivismo teleológico).

Com isso, para esta doutrina pós-fi nalista, nem todo o processo causal inter-essa ao Direito Penal e nem todo o nexo causal implica um nexo jurídico. A tradicional análise mecânico-natural passa a constituir apenas o primeiro momento na apuração da imputação objetiva: presente o vínculo causal, parte-se para um segundo momento, em que se verifi ca a existência de critérios eminentemente normativos3. Em outras palavras, a constatação da causalidade é um limite mínimo, mas não sufi ciente, para a análise da tipicidade, o que se mostra extremamente pertinente e necessário na atual sociedade co-municacional, de riscos maximizados e inerentes às atividades humanas cotidianas.

Falta, ainda, é verdade, um lineamento preciso quanto aos elementos funda-mentais da teoria. Verifi cam-se importantes divergências entre os seus principais defen-sores, e isso difi culta a aplicação de seus institutos, gerando instabilidade doutrinária e jurisprudencial. Na decisão ora em análise, confi rmando o diagnóstico, explicitam-se a falta de sistematicidade, a confusão entre os postulados da teoria da imputação objetiva e da teoria fi nalista e, principalmente, a confusão aplicativa dos próprios institutos reitores da teoria da imputação objetiva.

2 Neste sentido: TJRS, Embargos de Declaração nº 70018883355, 2º Câmara Criminal, rel. Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julgado em 09/08/2007 TJRS, Apelação Crime nº 70009953985, 2º Câmara Criminal, rel. Marco Aurélio de Oliveira Canosa, j. em 30/11/06.3 D’ÁVILA, Fábio Roberto. Crime Culposo e a Teoria da Imputação Objetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 41.

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Destaca-se, contudo, que se concorda com a deliberação fi nal, qual seja, a ati-picidade da conduta narrada na exordial acusatória. Apesar disso, discutir-se-á a melhor forma de tratar os institutos dessa teoria que, de certo modo, reestruturou o próprio conceito analítico de crime. Não se pretende (apenas) fomentar discussão de mero aca-demicismo penal; visa-se, especialmente, a possibilitar o infl uxo de idéias que tornem o direito aplicado um instrumento mais ágil e justo em futuras decisões, capaz de fazer de cada causa jurídica uma verdadeira luta política4 de reconhecimento do direito funda-mental ao processo justo e de vedação da responsabilização objetiva – do direito penal do autor, de tristes lembranças.

O ideal é analisar a imputação objetiva sob o ângulo da imputação do com-portamento e do resultado.5 Aquela consiste em comprovar que a conduta responde aos parâmetros normativos gerais do tipo objetivo. Essas características gerais concretizam-se em três instituições dogmáticas, a saber: risco permitido, proibição de regresso e im-putação ao âmbito de responsabilidade da vítima.

Entende-se que elas não podem ser analisadas isoladamente, mas sim em ver-dadeiras escalas sucessivas. A ordem de exame, como alerta Câncio Meliá, responde a uma classifi cação progressiva do mais genérico ao mais específi co; eis que, em cada uma das instituições, vão se inserindo mais dados do contexto do comportamento analisado. A comprovação sucessiva dessas escalas conduz, em caso negativo (não há risco per-mitido, nem proibição de regresso e nem imputação ao âmbito de responsabilidade da vítima), à afi rmação da tipicidade do comportamento6.

Uma vez verifi cada a tipicidade da conduta, deve-se averiguar se o resultado produzido é normativamente imputável ao sujeito como obra sua. Verifi ca-se, aqui, se o resultado está no âmbito de proteção da norma.

Apenas depois disso, devem ser analisados os elementos subjetivos do tipo. A imputação objetiva, ressalta-se, não prescinde da análise desses elementos. Reconhece-se, apenas, que o problema valorativo é anterior à teoria do dolo e da culpa. A “má intenção” do sujeito não é relevante, nesta teoria, enquanto não haja a realização de um tipo penal objetivo, caracterizado, reitera-se, pela produção ou incremento de um risco não permitido – ou não tolerado – pelo ordenamento jurídico e realização desse risco no resultado efetivamente causado.

Na decisão, essa sistemática não foi observada, o que difi culta, em parte, o

4 BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 73 e ss.5 Conforme referido, a teoria da imputação objetiva não apresenta linearidade entre seus principais autores. Claus Roxin entende que tudo converge à imputação do resultado. Günther Jakobs e Câncio Meliá, por sua vez, conferem maior importância à imputação do comportamento. Nesse sentido, conferir: ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no Direito Penal. Trad: André Luis Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. MELIÁ, Manuel Câncio e CALLEGARI, André Luis. Aproximação à Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal. Revista da AJURIS. Porto Alegre, ano XXXI, nº 95, setembro de 2004, p. 341 – 364, p. 3476 MELIÁ, Manuel Câncio e CALLEGARI, André Luis. Aproximação à Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal. Revista da AJURIS. Porto Alegre, ano XXXI, nº 95, setembro de 2004, p. 341 – 364, p. 347

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entendimento dos argumentos trazidos e pode ter gerado alguma confusão entre os in-stitutos. Após citar-se que não foi demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta narrada e o resultado produzido, referiu-se que a vítima pode ter se autocolocado em risco, pois possivelmente ingerira substâncias psicotrópicas. Abordou-se que “o fato de ter vindo a óbito em razão da ingestão das substâncias psicotrópicas não tem relação direta com a conduta dos acusados”.

A fundamentação é válida, mas, ressalta-se, apenas porque os jovens não foram acusados de ter jogado a vítima na piscina. A acusação limitou-se à falta de diligência e de obediência às normas de segurança necessárias para a realização do evento.

O instituto de autocolocação em perigo (ou atribuição ao âmbito de respon-sabilidade da vítima) opera nos casos em que o titular de um bem jurídico (“vítima”) empreende conjuntamente com outro (“autor”) uma atividade que pode gerar a lesão deste bem. A relevância do comportamento da “vítima” decorre do direito à liberdade, constitucionalmente consagrado no art. 5º, II.

A doutrina refere que essa autonomia acarreta uma preferente atribuição de responsabilidade em relação aos possíveis danos causados a seus bens e interesses7. Em outras palavras, quando as conseqüências são assumidas volitiva e integralmente pelo próprio agente que as padece, mediante sua própria conduta, não se deve imputar essas conseqüências àquele que tenha participado na criação ou incremento do risco8.

Nesse contexto, mesmo que restassem provados o nexo causal e a criação de um risco pelos acusados, a vítima teria atribuição preferente de responsabilidade, pois provavelmente utilizara substâncias entorpecentes. Reitera-se que, se os jovens fossem acusados do constrangimento de atirar a vítima na piscina, tornar-se-iam garantes e as-sumiriam um dever de proteção. Nesta hipótese, a imputação ao âmbito de responsabili-dade da vítima não seria legítima.9

Posteriormente, referiu-se, no acórdão, que os acusados não criaram um risco não permitido, “uma vez que é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fi scalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.” Ade-mais, “é fato corriqueiro, de todos sabido, que há uso e abuso de substâncias entorpe-centes promovidas por jovens, inclusive e principalmente no âmbito universitário em todo o país”.

De forma aparentemente contraditória com a afi rmação acima transcrita, apli-cou-se, na decisão, o princípio da confi ança. Aduziu-se que, “no caso concreto, não poderia a Comissão de Formatura prever o comportamento da vítima, que, conforme consta da própria denúncia, somente veio a afogar-se acidentalmente em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se de forma contrária ao direito, inex-istindo indicação na denúncia de que aparentemente isso pudesse ser antevisto.”.

7 KREBS, Pedro. Teoria jurídica do delito: noções introdutórias: tipicidade objetiva e subjetiva. Barueri, SP: Manole, 2006, p. 140/143. 8 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 232/233. 9 MELIÁ, Manuel Câncio e CALLEGARI, André Luis. Aproximação à Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal. Revista da AJURIS. Porto Alegre, ano XXXI, nº 95, setembro de 2004, p. 341 – 364, 353/354

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O princípio da confi ança signifi ca que, apesar da experiência de que outras pessoas cometem erros, se autoriza a confi ar em seu comportamento correto, desde que não existam indícios de que assim não irá ocorrer. E, de acordo com a premissa do acórdão (de que é normal a utilização de substâncias entorpecentes), havia indícios de que a vítima (e todos os demais participantes da festa) poderiam usar drogas.

Ora, ou é corriqueira a utilização de substâncias entorpecentes e era provável que a vítima utilizasse, ou não é corriqueira e não era provável a utilização pela vítima. Neste ponto, o acórdão parece ter pecado pela falta de coerência. Reforça-se, contudo, que isso não ocorreu pelo fato de não haver, na denúncia, descrição da participação dos membros da comissão no fato que ocasionou a morte da vítima.

A decisão trata, ainda, da previsibilidade da conduta, que é atinente aos el-ementos subjetivos do tipo. Em sendo verifi cadas excludentes da tipicidade objetiva, a teoria da imputação objetiva prescinde dessas discussões.

Em suma, pareceu acertada a conclusão acerca da ausência de nexo causal entre a conduta e o resultado. Em havendo esse nexo, a melhor solução é a imputação ao âmbito de responsabilidade da vítima, sendo inadequadas as discussões acerca do princípio da confi ança e dos elementos subjetivos do tipo.

Por fi m, importa ressaltar que somente o debate jurídico, político e acadêmico será capaz de minimizar as objeções à teoria pós-fi nalista da imputação objetiva, de inegável contribuição à teoria do delito. Por certo, a jurisprudência pátria sobre o tema ainda está em fase embrionária, tecendo considerações iniciais sobre o assunto. En-tretanto, é imperioso evoluir, fazendo-se abordagens mais amplas capazes de encampar o verdadeiro ideal de desvalor do resultado, tão caro aos imperativos de liberdade na sociedade de riscos (pós)moderna.

ACÓRDÃO

Processual penal. Habeas corpus. Homicídio culposo. Morte por afogamento na piscina. Comissão de formatura. Inépcia da denúncia. Acusação genérica. Ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e da criação de um risco não permitido. Princípio da confi ança. Trancamento da ação penal. Atipicidade da conduta. Ordem concedida.

1. Afi rmar na denúncia que “a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito” não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualifi cação do acusado ou esclareci-mentos pelos quais se possa identifi cá-lo, a classifi cação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individu-alização das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo

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jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.

3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.

4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fi scalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.

5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da confi ança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da in-existência de previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta.

6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal. (STJ, HC nº 46.525 – MT, rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, j. em 21/3/2006)

Relatório Ministro Arnaldo Esteves Lima: Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedido de limi-

nar, impetrado em favor de Marcelo André de Matos – denunciado, juntamente com outras pessoas integrantes da Comissão de Formatura do Curso de Medicina da Univer-sidade de Cuiabá (UNIC), pela suposta prática do delito tipifi cado no art. 121, § 3º, c⁄c o art. 29, ambos do Código Penal –, impugnando acórdão da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, que denegou a ordem ali impetrada (HC 11.662⁄2005), nos termos da seguinte ementa (fl s. 427⁄428):

Habeas corpus. Homicídio culposo em concurso de pessoas. Afogamento. Pre-tendido trancamento da ação penal por ausência de justa causa. Pretextado exame apro-fundado de provas. Inviabilidade na via eleita. Denúncia que preenche os requisitos legais. Ausência de justa causa indemonstrada. Indícios de culpa in omittendo que autor-izam o prosseguimento da ação penal e exigem farta instrução criminal, respeitados o contraditório e a ampla defesa.

Impossível a análise aprofundada de provas, no augusto âmbito do habeas cor-

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pus, visando o trancamento de ação penal que apura a morte de jovem, por afogamento, em circunstâncias não esclarecidas, em confraternização realizada para número expres-sivo de pessoas, em que se atribui conduta culposa dos pacientes, membros da comis-são organizadora, pela falta dos cuidados e medidas necessárias para festa de tamanha magnitude.

Se a denúncia preenche os requisitos legais, descrevendo os indícios da existên-cia de fato típico e antijurídico que possa ter decorrido de conduta culposa dos pacientes, na forma omissiva, não há que se falar em falta de justa causa para o prosseguimento da ação penal, indemonstrada, desde logo, havendo necessidade de apuração dos fatos em instrução criminal segura, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Writ indeferido. Sustenta a impetrante, inicialmente, falta de justa causa para a instauração da

ação penal, em face da ausência do nexo de causalidade entre a morte da vítima e alguma omissão penalmente relevante que possa ser atribuída ao paciente, sendo os fatos nar-rados na denúncia caluniosos e tendenciosos, pois alguns jamais ocorreram e outros não condizem com a verdade.

Afi rma, também, que “não houve quebra do dever de cuidado por parte do paciente e de seus colegas, notadamente porque, diante das circunstâncias, o evento era imprevisível” (fl . 12), sendo que a profundidade da piscina não apresentava risco para qualquer pessoa adulta, a vítima recebeu os primeiros socorros imediatamente, a dosa-gem alcoólica em seu sangue não a impediria de ter reação para evitar o afogamento e ela entrou na piscina por livre e espontânea vontade.

Assevera, ainda, que “a condição de simples membro da Comissão de For-matura é insufi ciente para impingir ao paciente a condição de acusado, pois seria o es-tabelecimento de uma culpa em abstrato” (fl . 16), aduzindo que “não há ação im-putável objetivamente ao paciente (teoria da imputação objetiva), pois a festa realizada constitui um ‘risco juridicamente irrelevante’ e, mais que isso, um ‘risco permitido’, que não tem qualquer nexo com o curso causal que levou ao resultado” (fl . 22).

Alega, por outro lado, que a denúncia é inepta, pois não houve a individual-ização da participação de cada denunciado, não atendendo, portanto, às exigências do art. 41 do Código de Processo Penal.

Ao fi nal, requer, em sede de liminar, a suspensão da Ação Penal nº 118⁄2004, com as audiências para interrogatório marcadas para os dias 26 e 27 de setembro de 2005 e, no mérito, o seu trancamento defi nitivo.

O pedido formulado em sede de cognição sumária foi por mim deferido para suspender o andamento da ação penal em relação a todos os denunciados, membros da referida comissão de formatura, até o julgamento do mérito da presente impetração, dispensadas as informações (fl s. 460⁄461).

O Ministério Público Federal, por meio de parecer exarado pelo Subprocura-

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dor-Geral da República Durval Tadeu Guimarães, opinou pela denegação da ordem (fl s. 467⁄470).

É o relatório.

HABEAS CORPUS Nº 46.525 - MT (2005⁄0127885-1) Ementa Processual penal. Habeas corpus. Homicídio culposo. Morte por afogamento na

piscina. Comissão de formatura. Inépcia da denúncia. Acusação genérica. Ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e da criação de um risco não permitido. Princípio da confi ança. Trancamento da ação penal. Atipicidade da conduta. Ordem concedida.

1. Afi rmar na denúncia que “a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito” não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualifi cação do acusado ou esclareci-mentos pelos quais se possa identifi cá-lo, a classifi cação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

2. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualiza-ção das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo jurispru-dencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demon-strar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.

3. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da in-gestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, exclu-dente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal.

4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstra-ção da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipó-tese, porquanto é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fi scalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.

5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princí-pio da confi ança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões espera-dos, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibili-dade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta.

6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal.

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VOTO Ministro Arnaldo Esteves Lima(Relator): Busca o Ministério Público a responsabilização criminal dos membros da

Comissão de Formatura mencionada no relatório, da qual faz parte o paciente, sob a ale-gação de que não foram diligentes e não obedeceram às normas de segurança necessárias para a realização da festa de confraternização do Curso de Medicina da Universidade de Cuiabá, onde havia cerca de setecentas pessoas, concorrendo, assim, para o resultado morte da vítima.

Narra a denúncia que: Há indícios nos autos que revelam que a vítima foi jogada dentro da piscina

por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito.

Sabe-se também que os acusados disponibilizaram para os participantes da festa grande quantidade de bebidas alcoólicas, sem o menor controle, assim como sub-stâncias ilícitas, entorpecentes e psicotrópicas, agindo com imprudência e negligência.

Outrossim, também não se preocuparam em obter alvará de autorização, necessário nos casos de realização de eventos de grande magnitude, visto que estavam presentes na festa cerca de 700 pessoas.

O crime em comento deve ser enquadrado como crime de homicídio na mo-dalidade culposa, onde todos os representantes da comissão de realização de eventos deram causa ao resultado por imprudência e negligência (art. 18, II, CP).

Inicialmente, penso que a afi rmação contida na denúncia de que “a vítima

foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito”, não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circun-stâncias, a qualifi cação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identifi cá-lo, a classifi cação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

Ainda que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individual-ização das condutas, quando se trata de delitos de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina.

Nesse sentido são os seguintes precedentes deste Superior Tribunal: Habeas corpus. Direito processual penal. Crimes contra o meio ambiente. Tran-

camento da ação penal. Inépcia da denúncia e falta de justa causa parciais. Ocorrência.1. A denúncia que, em parte, sobre desatender o artigo 41 do Código de Pro-

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cesso Penal, não descrevendo a conduta de cada qual dos denunciados, vem desacom-panhada de um mínimo de prova que lhe assegure a viabilidade, autoriza e mesmo deter-mina o julgamento de falta de justa causa para a ação penal.

2. Ordem parcialmente concedida. (HC 37.695⁄SP, Rel. Min. Hamilton Carval-hido, Sexta Turma, DJ de 26⁄9⁄2005, p. 464)

Habeas corpus. Direito processual penal. Nulidade. Inépcia da denúncia. Caracter-

ização.1. A denúncia, na letra do artigo 41 do Código de Processo Penal, deve conter

“a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualifi cação do acusa-do ou esclarecimentos pelos quais se possa identifi cá-lo, a classifi cação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”

2. Violado o estatuto legal de sua validade, pela imputação de participação iso-lada, vaga e indefi nida, incluidamente estranha às demais acusações deduzidas, que impede o exercício do direito de defesa constitucionalmente assegurado (Constituição da República, artigo 5º, inciso LV), é de se ter como manifesto o vício que grava a denúncia, compromete o processo e obsta o prosseguimento da ação penal.

3. Ordem concedida. (HC 17.877⁄PB, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Sexta Tur-ma, DJ de 10⁄2⁄2003, p. 235)

Criminal. HC. Peculato e corrupção passiva. Inépcia da denúncia. Defi ciência evi-

denciada. Liame entre o paciente e as condutas apontadas como ilícitas não apontado. Or-dem concedida.

Não obstante o entendimento de que, na hipótese de concurso de agentes, é pre-scindível a exata individualização das condutas dos envolvidos, não se pode aceitar acusação fundada, basicamente, na condição de delegado do paciente, à época dos fatos apurados, sem a indicação de consistente liame entre o paciente e as condutas apontadas como ilícitas.

Evidenciando-se o apontado prejuízo à defesa, que se sujeitava a vagas acusações, deve ser reconhecida a inépcia da denúncia no que concerne ao paciente.

Ordem concedida para trancar a ação penal em relação ao paciente, por inépcia da denúncia. (HC 16.924⁄SP, Rel. Min. GILSON DIPP, Quinta Turma, DJ de 22⁄10⁄2001, p. 340)

Penal. Processual. Ação penal. Falta de justa causa. Inépcia da denúncia. Habeas

corpus concedido pela origem. Exame de fatos e provas. Recurso especial.1. É inepta a denúncia que, deixando de descrever a conduta do acusado, bem

como os fatos supostamente típicos a ele imputados, inviabiliza o pleno exercício do direito constitucional da ampla defesa.

2. Pretensão de exame de provas estranha ao âmbito do Recurso Especial. Incidên-cia da Súmula 07⁄STJ.

3. Recurso Especial não conhecido. (REsp 201.259⁄SP, Rel. Min. EDSON VIDI-GAL, Quinta Turma, DJ de 27⁄8⁄2001, p. 367)

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Por outro lado, nos termos do art. 13 do Código Penal, “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa”, entendendo-se esta como a “ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.

Desse modo, uma vez identifi cado o resultado, no caso, a morte da vítima, que constitui elemento indispensável à formulação típica do homicídio culposo, é impre-scindível relacioná-lo com a ação realizada pelo agente, mediante um vínculo causal, cuja ausência acarreta a impossibilidade de imputação.

Na hipótese dos autos, não restou demonstrada a presença do nexo de cau-salidade na acusação feita pelo Ministério Público, no sentido de que os denunciados são responsáveis pelo homicídio culposo ocorrido, por não terem sido diligentes, deix-ando supostamente de obedecer às normas de segurança necessárias para a realização da festa.

A ausência do nexo causal se confi rma na assertiva constante da própria denún-cia, ao dizer que, “considerando-se a profundidade, altura e o biotipo da vítima, a perícia concluiu também que a piscina não apresentava riscos para uma pessoa em condições normais independentemente de saber ou não nadar, assim como as condições apresen-tadas pela vítima baseadas na dosagem alcoólica não impediriam a mesma de reagir para evitar o afogamento, concluindo que a mesma afogou-se em virtude de ter ingerido sub-stâncias psicotrópicas” (fl s. 65⁄66).

Portanto, infere-se da narração da peça inicial acusatória que houve con-sentimento do ofendido na ingestão de substâncias psicotrópicas. Em casos tais, ocorre a exclusão da responsabilidade, pois se trata de autocolocação em risco, consoante afi rma abalizada doutrina (D’ÁVILA, Fábio Roberto. Crime Culposo e a Teoria da Imputação Objetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 71).

Desse modo, o fato de a vítima ter vindo a óbito em razão da ingestão de sub-stâncias psicotrópicas não tem relação direta com a conduta dos acusados, o que afasta a possibilidade de aplicação da teoria da imputação objetiva.

É oportuno ressaltar as palavras do 2º voto vogal integrante do acórdão (fl . 440):

Portanto, nesse aspecto há que se dizer que se a vítima sofreu o acidente

porque estava drogada, infelizmente o fez spont própria, não havendo qualquer elemento nos autos que pudesse incriminar ao menos um dos membros daquela infeliz Comissão de Formatura! De se ressaltar ainda que nem mesmo que a vítima estava drogada se pode afi rmar, porque a perícia não realizou o exame de urina necessário para se verifi car se ela se utilizara ou não de drogas. Eis o laudo pericial: “Em função da falta de um histórico clínico e da coleta de urina (exame de uso de substância psicotrópica) da vítima, não foi possível identifi car a causa do afogamento nas condições existentes” (fl s. 102). E a culpa de tal exame não ser realizado não é dos pacientes. Nesse aspecto também a conclusão é: se frasco de lança perfume foi encontrado no local, que culpa teria a comissão? Será que se esperaria que os pacientes fi cassem na portaria fazendo revista nos convidados para apreender possíveis drogas? É isso que se espera de uma Comissão de Formatura?

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Com todo o respeito a resposta é não! Então, quem trouxe a droga? Se ao menos uma das testemunhas ouvidas houvesse apontado um membro, pelo menos, da comissão, ainda poderíamos falar de indícios. Mas isso não ocorreu. Então, se a droga foi motivo da morte da vítima, e também isso não se sabe, que nexo de causalidade haveria entre a conduta dos estudantes e o fato em si? Nenhum...

Segundo leciona Damásio de Jesus, “A imputação objetiva requer uma relação

direta entre a conduta e o resultado, e que a afetação jurídica se encontre em posição de homogeneidade com o comportamento primitivo, inexistindo quando aquele (evento) vem a ser causado, em fase posterior, pelo próprio sujeito passivo, terceiro ou força da natureza (resultado tardio)” (O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Pe-nal e Processual Penal, nº 16, out-nov⁄2002, p. 11).

No mesmo sentido: ...é necessário precisar se há uma relação de risco entre a conduta e o resultado

produzido, i. e., há que se determinar, sob o aspecto normativo, se o risco criado pelo sujeito é o mesmo que se realizou na produção do resultado, ou, em outros termos, se o evento pode ser explicado pela violação da norma de cuidado, uma vez que, se a norma infringida não guarda relação com o resultado, este não é imputável. Se não existe a relação risco-resultado, a questão se resolve em termos de tentativa ou atipicidade. Com outras palavras, é indeclinável a verifi cação ex post facto se o fi m de proteção da norma incriminadora violada tinha realmente a destinação de impedir a produção de um resul-tado normativo como o provocado pelo agente. O evento jurídico deve ser plasmado pelo risco causado pelo autor. Se produzido por outros riscos, como pela conduta de um terceiro, pela própria vítima ou por força da natureza, há exclusão da imputação objetiva” (Díaz, Claudia López. Introducion a la imputación objetiva. Bogotá: Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofi a del Derecho, Universidad Externado de Colombia, 1996, p. 49 e 174. Apud JESUS, Damásio de. O risco de tomar uma sopa. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, nº 16, out-nov⁄2002, p. 11)

Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta

dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, uma vez que é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fi scalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa.

Ademais, uma eventual falta de atendimento aos pressupostos necessários para a organização da festa por parte da Comissão de Formatura está fora dos limites do que a doutrina denomina de risco juridicamente relevante, caracterizando um risco permitido, isto é, um risco geral da vida, pois, conforme registrado no primeiro voto vogal, “é fato corriqueiro, de todos sabido, que há uso e abuso de substâncias entorpecentes nas festas promovidas por jovens, inclusive e principalmente no âmbito universitário, em todo o país” (fl . 447).

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Portanto, de acordo com Selma Pereira de Santana: ... a tradicional observação da relação causal naturalística passa a constituir o

primeiro momento na apuração da imputação objetiva. Uma vez constatado o vínculo causal, o passo seguinte será a verifi cação da existência de critérios de natureza norma-tiva, consistentes eles na criação ou incremento de um perigo não permitido, que se ma-terializa na lesão a um bem juridicamente tutelado, dentro do alcance do tipo, uma vez que as normas só podem coibir condutas que gerem ou aumentem riscos não permitidos a bens juridicamente tutelados (Atualidades do delito culposo. Boletim IBCCrim, São Paulo, vol. 10, n. 114, p. 6, maio 2002. Apud JESUS, Damásio de. Momento de verifi -cação da presença da imputação objetiva. In Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nº 02, ano 16, fev.⁄2004, p. 37).

Ainda como ensina Claus Roxin: ...a imputação ao tipo objetivo pressupõe que no resultado se tenha realizado

precisamente o risco proibido criado pelo autor. Por isso, está excluída a imputação objetiva, em primeiro lugar, se, ainda que o autor tenha criado um perigo para o bem jurídico protegido, o resultado normativo produziu-se, não como efeito desse perigo, mas sim em conexão casual com o mesmo. (Derecho Penal: Parte Geral, v. I, p. 373. Apud JESUS, Damásio de. O risco de tomar uma sopa. Revista Sín-tese de Direito Penal e Processual Penal, nº 16, out-nov⁄2002, p. 11)

Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta também a doutrina que

vigora o princípio da confi ança, segundo o qual as pessoas se comportarão em confor-midade com o direito, enquanto não existirem pontos de apoio concretos em sentido contrário, os quais não seriam de afi rmar-se diante de uma aparência suspeita (pois se trata de um critério vago, passível de aleatórias interpretações), mas só diante de uma reconhecível inclinação para o fato. (ROXIN, Claus. Teoria da Imputação Objetiva. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano nº 9, abril-junho de 2002, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 11-31, p. 14)

Desse modo, no caso concreto, não poderia a Comissão de Formatura pre-ver o comportamento da vítima, que, conforme consta da própria denúncia, somente veio a afogar-se acidentalmente em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se de forma contrária ao direito, inexistindo indicação na denúncia de que aparentemente isso pudesse ser antevisto.

De outro ângulo, vale destacar a doutrina do já citado professor Claus Roxin, o qual sustenta que só é imputável aquele resultado que pode ser fi nalmente previsto e dirigido pela vontade. Logo, os resultados que não forem previsíveis ou dirigíveis pela vontade não são típicos. “Equipara-se a possibilidade de domínio através da vontade humana (fi nalidade objetiva) à criação de um risco juridicamente relevante de lesão típica de um bem jurídico. Esse aspecto é independente e anterior à aferição do dolo ou da

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culpa”. (Apud PRADO, Luiz Regis. Teoria da Imputação Objetiva do Resultado: Uma Abordagem Crítica. Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 798, abril de 2002, pp. 447⁄448).

Assim, à luz da citada doutrina, antes e independentemente de se aferir a culpa dos denunciados, constata-se a inexistência de previsibilidade do resul-tado, o que acarreta a atipicidade da conduta e o conseqüente trancamento da ação penal.

A matéria já foi tratada por esta Corte em caso semelhante, assim ementado: Recurso em habeas corpus. Homicídio culposo. Afogamento. Culpa presumida

e responsabilidade penal objetiva. Inexistência. Trancamento da ação penal. Recurso provido.

A responsabilidade penal é de caráter subjetivo, impedindo o brocardo nullun crimen sine culpa que se atribua prática de crime a presidente de clube social e esportivo pela morte, por afogamento, de menor que participava de festa privada de associada e mergulhou em piscina funda com outros colegas e com pessoas adultas por perto. Inob-servância de eventual disposição regulamentar que não se traduz em causa, mas ocasião do evento lesivo.

Recurso provido. (RHC 11.397⁄SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, DJ de 29⁄10⁄2001, p. 219)

Pelo exposto, concedo a ordem impetrada para trancar a ação penal em relação

a todos os denunciados, com base no art. 580 do Código de Processo Penal, em razão da inépcia da denúncia, por fazer acusação sem um mínimo de individualização das condu-tas dos acusados, bem como em razão da atipicidade da conduta narrada, pela ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação pelos pacientes de um risco não permitido.

É como voto.

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LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET: GLOBALIZAÇÃO E O DIREITO INTERNACIONAL

Gelson Amaro De Souza Filho *

Resumo: Este trabalho discute o rompimento dos limites territoriais através da internet (como fenômeno da globalização), que permite à sites destinados ao publico brasileiro serem hospedados no exterior, inclusive com conteúdos criminosos. Aborda também a situação jurídica destes sites, apontando a característica soberana do Estado brasileiro, a importância da liberdade de expressão e as novas problemáticas do Direito que surgiram com rede mundial de computadores.

Palavras-chave: Liberdade de Expressão. Comunicação Social. Crimes de Internet. Direito Internacional.

Abstract: This article discuss the absence of territorial limits on the internet (as a phenomenon of globalization), which allows some sites focused to Brazilian users to be hosted in foreigner countries, also with criminal contents. It also argues the legal situation of these sites, pointing the sovereign characteristic of the Brazilian State; the importance of the free speech and the new legal problems that have appeared with the internet.

Key words: Free Speech Rights. Communication Technology. Internet Crimes. International Law.

1. Introdução

A liberdade é um elemento fundamental do Estado Democrático de Direito, incluindo a liberdade de expressão, de pensamento, de manifestação, assim como a liber-dade de convicção política, ideológica e religiosa. Desta forma, não há como cogitar uma sociedade democrática sem a possibilidade dos indivíduos manifestarem suas opiniões e pensamentos livremente.

Contudo, a inviolabilidade prevista no art. 5º, X, da CF/88, traça os limites tanto para a liberdade de expressão quanto para o direito à informação, vedando os atos que ofendam a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (direitos de personalidade). Assim, o direito à liberdade de expressão está sujeito a limites traçados pela Constituição Federal e também por outros dispositivos legais, podendo resultar em responsabilização civil e penal para aquele que deturpar e abusar deste direito, utilizan-do-o para fi ns ilícitos.

Portanto, antes de mais nada, é preciso diferenciar direitos de garantias funda-

* Jornalista graduado pela Unoeste-SP (MTB 52.286) e discente da graduação em Direito das Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente-SP, na qual é pesquisador do grupo de Iniciação Científi ca coordenado pelo Professor Ms. Sérgio Tibiriçá do Amaral. E-mail: [email protected].

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mentais. Os direitos, para Ruy Barbosa (BARBOSA, 1993), são disposições meramente declaratórias, que apenas estabelecem sua existência legal. Já as garantias são as dis-posições assecuratórias que defendem esses direitos.

Há doutrinadores que tratam o assunto de forma diferente, como José Joaquim Gomes Canotilho (2002), que considera as clássicas garantias como direitos. Entretanto, o mais importante para o estudo em questão é saber que há direitos constitucionalmente assegurados, mas garanti-los nem sempre é tarefa fácil, principalmente quando se trata da internet, que não possuí fronteiras nem está limitada a uma única jurisdição. É pos-sível limitar o acesso ao exemplo de Cuba (o que seria antidemocrático), mas uma vez conectado um país passa a fazer parte inevitavelmente da globalização, seja em sentido econômico, através da publicidade ou do comércio eletrônico, seja em sentido cultural, político e ideológico.

Diante deste panorama, há uma infi nidade de confl itos envolvendo a liberdade de expressão na internet, tecnologia comunicacional que permite a qualquer pessoa pub-licar textos e imagens em espaços virtuais, seja em servidores nacionais ou estrangeiros. Como não há fronteiras que limitem o acesso a informação, não importa em que país o conteúdo está hospedado, pois, em geral, qualquer usuário pode acessá-lo. Desta forma, seria possível driblar a lei de um país que proíbe determinado conteúdo hospedando-o no exterior? Ou o crime é caracterizado pelo local onde o conteúdo foi produzido e não necessariamente onde está hospedado? Em outra situação, seria lícito divulgar a intimi-dade de uma pessoa pública para todo o mundo, mesmo em países em que tal pessoa não seja de fato pública, pois nem é conhecida?

Todas essas questões são contemporâneas e entrelaçadas tanto com a globaliza-ção como com o Direito Internacional. Abragem casos recentes e rotineiros de difama-ção através da internet, assim como casos de sites de cunho ideológico que disseminam preconceitos raciais e sexuais, contrariando a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Por fi m, este trabalho não pretende se concentrar apenas em casos particulares, mas sim consolidar a idéia de que a internet, além de inovador meio de comunicação, é também um importante fenômeno jurídico a ser estudado.

2. Internet como fenômeno da globalização

A internet é uma imensa rede de computadores interconectados através de linhas telefônicas, satélites e outros sistemas de telecomunicações. Esta imensa rede abrange diversas sub-redes que, em primeiro nível, são institucionais, administrando os acessos nacionais e regionais, e em segundo nível, são públicas, provendo acesso direto aos usuários, seja pago ou gratuito.

Seu surgimento data de 1969, quando os Estados Unidos lançou um programa chamado “Grande Sociedade”, tendo como parte de suas propostas o projeto de inter-conectar os municípios através da linha telefônica.

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O termo internet foi criado a partir da expressão inglesa INTERaction or IN-TERconnection between computer NETworks1. Assim, conforme José Benedito Pinho (2003), a internet é a rede das redes, ou melhor, o conjunto de redes de computadores conecta-dos em diversos países para compartilhar informações e recursos computacionais.

Em 1991 houve a suspensão pela NSF (National Science Fondation) da proibição ao uso comercial da rede, abrindo caminho para o comércio eletrônico. Desta forma, os empreendimentos “on-line” atraíram muitos investidores rapidamente, dando início ao vasto império dos sites “.com”.

No Brasil, a rede foi estabelecida em 1989 para uso científi co, sob iniciativa do MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia) que desenvolveu a RNP (Rede Nacional de Pesquisa). Mas somente em 1995 a internet foi aberta ao setor privado, visando a exploração com-ercial por parte dos primeiros provedores de acesso discado. A RNP deixou então de ser um backbone2 restrito ao meio acadêmico para permitir o acesso público à rede.

Neste ponto é preciso ressaltar o seu caráter democrático que a diferencia dos outros meios de comunicação. Por exemplo, para que as emissoras de rádio e tele-visão possam transmitir, é preciso uma concessão do governo (através de concorrência pública) que estabelece o alcance e a freqüência, seja em âmbito municipal, estadual ou nacional. Além da concessão, são requeridos equipamentos adequados para garantir a boa qualidade das transmissões, como torres e satélites.

Com isso, fi ca evidente que é preciso poder político e econômico – propor-cional ao alcance das transmissões – para criar uma emissora, seja de rádio ou TV. Na internet, pelo contrário, qualquer pessoa pode montar sua emissora. Não é preciso obter uma concessão e o alcance é mundial.

Desta forma, além do âmbito comercial, a rede tornou-se um importante meio com capacidade para difusão instantânea de informação, estabelecendo um novo con-ceito de mídia, de característica “desmassifi cada”. Isto quer dizer que a internet não é um meio controlado por poucas fontes, mas sim um sistema de informação que permite a contribuição de todos: cada usuário é livre para desenvolver seu próprio conteúdo.

É exatamente neste aspecto que se encontram as problemáticas jurídicas a serem abordadas neste artigo. A internet, como já foi discutido, é um democrático meio de comunicação que permite a livre expressão de idéias, opiniões e ideologias, pois os usuários podem produzir e divulgar conteúdos de forma independente. Mas, conside-rando a enorme quantidade de informações que circulam incessantemente, seria ilusório afi rmar que existe um controle efetivo do que está disponível pela rede.

O fato se agrava quando nos defrontamos com sua característica internacional, pois o que é crime em um país pode não o ser em outro, ou, o que é considerado grave em uma jurisdição pode ser banal ou socialmente aceitável em outra.

Conforme Alexandre Daoun (2007) os benefícios da modernidade e celeridade alcançados com a rede mundial trazem, na mesma proporção, a prática de ilícitos penais

1 Interação ou interconexão entre redes de computadores.2 Infra-estrutura que conecta todos os pontos de uma rede.

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que vêm confundindo não só as vítimas como também os responsáveis pela persecução penal.

A internet gera, portanto, uma dicotomia: por um lado, rompe as fronteiras nacionais em sintonia com a globalização, permitindo a plena convivência de um mosa-ico cultural, no qual os pontos positivos de cada cultura são valorizados e ajudam a en-riquecer o todo. Porém, em contrapartida, permite que estratégias sejam utilizadas para tentar driblar a lei hospedando conteúdo proibido em servidores no exterior, mesmo que apenas para difi cultar a identifi cação dos autores.

Isto signifi ca que, além de um desafi o jurídico, a internet também traz questões diplomáticas a serem estudadas pelo Direito Internacional. Não obstante, há o confl ito entre liberdade de expressão e a soberania do Estado na manutenção da ordem social, que será abordado a seguir.

3. Da comunicação social e os direitos fundamentaisassociados

3.1 Proteção constitucional da comunicação social

A Constituição Federal dedica capítulo exclusivo à proteção da Comunicação Social, abrangendo os artigos 220 a 224, assim como o art. 5º, IX, que consagra a liber-dade de expressão da atividade intelectual, artística, científi ca e de comunicação, inde-pendente de censura ou licença.

Conforme o doutrinador constitucionalista Alexandre de Moraes (2007, p. 792), o que se pretende com esse capítulo especial é proteger “o meio pelo qual o direito individual constitucionalmente garantido será difundido, por intermédio dos meios de comunicação de massa”.

Complementando, o autor afi rma que “pode-se entender meio de comunica-ção como toda e qualquer forma de desenvolvimento de uma informação, seja através de sons, imagens, impressos, gestos, etc.” (Ibidem, p. 792).

Esta defi nição, naturalmente, inclui a internet. Entretanto, a rede não é con-siderada por nossa legislação como Meio de Comunicação Social. Houve uma Proposta de Emenda Constitucional neste sentido, a PEC nº. 254/2004. Porém, a proposta foi arquivada em 2006 supostamente em virtude de uma dissidência dentro da indústria, como enfatiza Renato Bigliazzi (2007):

Um resultado prático importante do texto seria submeter toda e qualquer tecnologia às condições do artigo 222 da Constituição. Meios de comunicação como a Internet, a TV a cabo ou a televisão por assinatura via satélite, cujas empresas hoje não precisam atender ao artigo 222, passariam a ter as mesmas limitações das empresas de radiodifusão. Eventualmente, o jogo político e a fragmentação de visões dentro da própria indústria de radiodifusão levaram ao abandono da proposta de emenda à constituição, que não passou pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal.

Não cabe a este trabalho debater minuciosamente a necessidade de se incluir

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a internet como Meio de Comunicação Social, mas é preciso deixar claro que a rede mundial de computadores tem o mesmo potencial informativo e formador de opinião da televisão e do rádio, assim como das revistas e jornais impressos, sendo improvável, após tamanha popularização, negar sua importância para a sociedade contemporânea. Além disso, identifi cá-la desta forma ajudaria, provavelmente, em sua regulamentação dentro do território nacional.

3.2 Liberdade de pensamento e manifestação

O art. 5º, IV, do texto constitucional reconhece a todos os cidadãos o direito de livre pensamento (liberdade de opinião) e manifestação (liberdade de expressão). Con-forme Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2002, p. 103):

[...] enquanto opinião diz respeito a um juízo conceitual, uma afi rmação do pensamento, a expressão consiste na sublimação da forma das sensações humanas, ou seja, na situação em que o indivíduo manifesta seu sentimento ou sua criatividade, independente da for-mulação de convicções, juízos de valor e conceitos.

Já o direito de informação envolve o direito de transmitir, receber e procurar informações. [...] trata-se de um direito fundamental de primeira geração, cuja preocupa-ção consiste em impedir que o Poder Público crie embaraços ao livre fl uxo das informa-ções. Assim, o indivíduo possui liberdade para informar (Ibidem, p. 104).

Desta forma, é garantida a todas as pessoas a liberdade de informar, opinar e se expressar. O Art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos também protege estes direitos:

Art. XIX – Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independente de fronteiras.

O art. 220 da Constituição Federal estabelece que:

Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o dis-posto nesta Constituição.§ 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o dis-posto no Art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.§ 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.[...]

O art. 5º, IV, da Constituição Federal, também estabelece que “é livre a mani-festação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Isto signifi ca que o autor deve ser identifi cado, mesmo que através de pseudônimo (como ocorre, eventualmente, na imprensa). Para José Afonso da Silva (1995, p. 223):

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A liberdade de manifestação do pensamento tem seus ônus, tal como o de o manifes-tante identifi car-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifes-tado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí por que a Constituição veda o anonimato.

Contudo, na internet é possível publicar informações sem qualquer identifi ca-ção. Há casos de sites racistas produzidos por brasileiros e hospedados no portal argen-tino www.libreopinion.com, que foram retirados por pedido da Justiça brasileira, mas seus autores nunca foram identifi cados. O caso será estudado mais adiante.

3.3 Liberdade de convicções políticas, ideológicas e religiosas

A Constituição Federal assegura o livre exercício dos cultos religiosos. De acordo com o art. 5º, VI, “é inviolável a liberdade de consciência de crença, sendo as-segurado o livre exercício dos cultos religiosos”. Entretanto, segundo Alexandre de Mo-raes, isto ocorre somente:

[...] enquanto [os cultos religiosos] não forem contrários à ordem, tranqüilidade e sossego público, bem como compatíveis com os bons costumes. Dessa forma, a questão das pregações e curas religiosas devem ser analisadas de forma a não obstaculizar a liberdade religiosa garantida constitucionalmente, nem tampouco acobertar práticas ilícitas (MO-RAES, 2006, p. 217, original não grifado).

Complementando, afi rma que: “[...] obviamente, assim como as demais liber-dades públicas, também a liberdade religiosa não atinge grau absoluto, não sendo, pois, permitido a qualquer religião ou culto, atos atentatórios à lei, sob pena de responsabili-zação civil e criminal (Ibidem, p. 217).

O mesmo ocorre com as liberdades políticas e ideológicas. Não se pode conce-ber, desta forma, ideologias racistas (como o nazismo e a xenofobia) e partidos políticos que adotem tais ideologias. Além disso, o extremismo religioso não justifi ca apologias ao terrorismo.

3.4 Liberdade de expressão e as possibilidades da internet

A liberdade de expressão consiste na faculdade de manifestar opiniões, idéias e pensamentos por qualquer meio escolhido. É importante ressaltar que a comunicação social, concretizada pela exteriorização da liberdade de expressão através dos veículos de comunicação, trata-se de uma das principais características da sociedade contemporânea. Desta forma, os órgãos de comunicação de massa são características intrínsecas à global-ização, exercendo enorme infl uência na sociedade:

A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também as que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe baseada na consagração do plural-

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ismo de idéias e pensamentos, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo (MORAES, 2006, p. 207, original não grifado).

Sendo a liberdade de expressão e manifestação do pensamento um direito fun-damental de liberdade, portanto, um direito inalienável do indivíduo, é necessário levar em consideração que muitos foram os movimentos que lutaram para obtê-lo e conquis-tá-lo. A História abrange diversos episódios em que o homem lutou pela liberdade de im-prensa, e isto prova sua importância para a sociedade. Desde a Grécia Antiga o homem já pretendia poder se expressar sem sofrer restrições, observando que a fi losofi a grega questionava a relação entre Estado, religião e o individuo.

Como foi dito, a internet facilita, através de sua estrutura e tecnologia, infor-mações anônimas. Mas este é apenas um dos muitos embaraços ao ordenamento jurídico propiciados pela rede. A Constituição Federal, no art. 5º, V, assegura o direito de resposta “proporcional ao agravo, além da indenização pelo dano material, moral ou à imagem” (CF, art. 5º, V).

Conforme Clóvis de Barros Filho (2006, p. 62-63), docente da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM):

A prerrogativa de oferecer resposta a uma agressão veiculada pelos meios de comunica-ção tem, para os doutrinadores, a mesma natureza jurídica da legítima defesa. Assim, face a uma agressão injusta, pode o agredido reagir. Imediatamente e com meios proporcio-nais à agressão, garantidos pela legislação de imprensa.

No entanto é presumível que, nestes casos, o desmentido publicado seja relati-vamente inefi caz face aos efeitos já produzidos pela agressão, por várias causas:

Em primeiro lugar, nada garante que leitores, ouvintes e telespectadores da agressão tenham algum contato com o desmentido. Ou ainda, uma audiência rotativa e infi el pode fi car perplexa ante uma resposta indignada a uma agressão cujo teor ignoram. Em ambos os casos remanesce a suspeita (Ibidem, p. 63).

Além disso, “[...] nada impede que agentes sociais não expostos à mídia veicu-ladora da informação discutam, até freneticamente, sobre ela. Para que o desmentido fosse efi caz, seria necessário que percorresse o mesmo circuito de relações inter-pessoais de que foi objeto a agressão. Hipótese absurda” (Ibidem, p. 63).

Sobre o assunto, Vital Moreira conclui que:

“[...] bem vistas as coisas, o direito de resposta não constitui um limite da liberdade de opinião e de crítica, antes estabelece um direito ao contraditório por parte da pessoa visada, permitindo desse modo o contraste de opiniões” (MOREIRA apud ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006, p. 107).

Contudo, é muito difícil obter o direito de resposta no ambiente virtual, no qual inúmeros servidores estão espalhados pelo mundo. Ademais, como medir os resul-tados do agravo em uma tecnologia que permite a rápida disseminação de informações

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sem qualquer limite territorial?3. Deve-se levar em conta, ainda, que há uma série de fer-ramentas como e-mails, fóruns e comunidades virtuais, que permitem a qualquer usuário retransmitir informações rapidamente.

Desta forma, a jurisprudência evidencia que os tribunais têm negado pedidos de direito de resposta pela internet:

RECURSO. DIREITO DE RESPOSTA. MENSAGENS CONSTANTES DE PÁGI-NA DA INTERNET NÃO SE ENQUADRAM NO REGRAMENTO DO ART. 58 DA LEI N° 9.504/97. PROVIMENTO NEGADO”. (Tribunal Regional Eleitoral/RS, RDR N° 17002700, Rel. Juiz Isaac Alster, dj 11/09/2000).

Hugo Cesar Hoeschl (2007) afi rma que:

No caso dos veículos de comunicação de massa, há cautelas e restrições estabelecidas nas esferas constitucional, legal e regulamentar, principalmente no tocante à proteção da infância e da juventude. Porém elas - as restrições e cautelas - não incidem sobre a internet, o que vale dizer que nela pode ser veiculada qualquer coisa, independente de seu conteúdo [...].

Embora a rede mundial ainda permaneça sem regulamentação adequada, é certo que tal autor se excede ao afi rmar que todo e qualquer conteúdo pode ser publi-cado através da internet. Um Estado Soberano, como é a República Federativa do Brasil, tem como prerrogativa a imposição de limites para garantir a ordem social, como será abordado a seguir.

3.5 Soberania do Estado na imposição de limites

A liberdade de expressão é válida naquilo que não contrariar a Carta Magna, a Constituição Federal de 1988, assim como os demais dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro.

Para o já citado docente da ESPM, Clóvis de Barros Filho (2006, p. 61), “nossa Carta Magna contempla um único limite à informação: o direito à privacidade.” Mas esta não é a visão de Alexandre de Moraes, que identifi ca, na Constituição Federal, uma série de limites à liberdade de expressão:

A proibição ao anonimato é ampla, abrangendo todos os meios de comunicação (cartas, matérias jornalísticas, informes publicitários, mensagens na internet, notícias radiofôni-cas ou televisivas, por exemplo). Vedam-se, portanto, mensagens apócrifas, injuriosas, difamatórias ou caluniosas. A fi nalidade constitucional é destinada a evitar manifestação de opiniões fúteis, infundadas, somente com o intuito de desrespeito à vida privada, à intimidade, à honra de outrem; ou ainda, com a intenção de subverter a ordem jurídica, o regime democrático e o bem-estar social (MORAES, 2006, p. 207, original não grifado).

3 Grosseiramente, poderia se dizer que os limites territoriais da informação se dão pelo idioma, mas este conceito se mostra errôneo quando confrontado pelo fato de que as imagens (sejam fotos ou vídeos) são, em geral, compreensíveis em qualquer língua. Além disso, a globalização obriga a cada dia que as pessoas saibam mais de um idioma.

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Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro contempla também os delitos con-tra a honra, intimidade, privacidade e imagem – também chamados de delitos de imp-rensa, o direito de resposta e o pedido de explicação. Contudo, Barros Filho acredita que tais normas não garantem a real proteção do bem jurídico tutelado, pois são, “em grande medida, inefi cazes” (Ibidem, p. 62). Este posicionamento se deve a teoria de que:

No que diz respeito aos delitos de calúnia, difamação e injúria, processualmente inscritos entre os de ação penal privada, dependem de uma improvável iniciativa do agredido para movimentar a máquina jurisdicional do Estado. O processo penal, nestes casos, ainda que alcance resultado punitivo, não restituirá o status quo anterior. Pelo contrário. Serve como uma concha acústica para as acusações. Confere-lhes maior publicidade, acentuando o ônus social e psicológico do agredido (BARROS FILHO, 2006, p. 62, grifo do autor).

Entretanto, não cabe a este trabalho discutir a efi cácia dos limites à liberdade de expressão, mas sim sua existência no ordenamento jurídico brasileiro. Desta forma, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão, a informação e a livre divulgação dos fatos, consagrados constitucionalmente no inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal, devem ser interpretados em conjunto com a inviolabilidade à honra e à vida privada (CF, art. 5º, X), bem como com a proteção à imagem (CF, art. 5º, XXVII, a), sob pena de responsabilização do agente divulgador por danos materiais e morais (CF, art. 5º, V e X).

Alexandre de Moraes (2006, p. 224) afi rma que, apesar da vedação constitucio-nal da censura prévia, há a necessidade de compatibilizar a comunicação social com os demais preceitos constitucionais, pois:

A censura prévia signifi ca o controle, o exame, a necessidade de permissão a que se sub-mete, previamente e com caráter vinculativo, qualquer texto ou programa que pretende ser exibido ao público em geral. O caráter preventivo e vinculante é o traço marcante da censura prévia, sendo a restrição à livre manifestação de pensamento sua fi nalidade antidemocrática.

Explicando de uma outra forma, os doutrinadores David Araújo e Vidal Ser-rano concluem que a existência de limites à liberdade de expressão não signifi ca neces-sariamente que, “em homenagem a outros bens constitucionais, seja proibida a mani-festação de pensamento, [mas sim] disciplinada dentro de um contexto constitucional” (Ibidem, p. 425).

Em raciocínio semelhante, Freitas Nobre (1985, p. 85) afi rma que:

A liberdade ilimitada, distanciada do interesse social e do bem comum não é conciliável no mundo contemporâneo, porque se o pensamento é inviolável e livre, a sua exterior-ização deve ser limitada pelo interesse coletivo, condicionando seu exercício ao destino de patrimônio moral da sociedade, do Estado e dos próprios indivíduos.

Por fi m, a liberdade de expressão possui limitações, pois pode causar prejuízos a um bem jurídico de outrem, como os direitos de personalidade (honra, intimidade,

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imagem, etc.). O direito de liberdade de expressão deve então conviver harmonicamente com tais direitos, ou seja, os direitos devem se auto limitar.

Desse modo, observa-se que para o exercício adequado do direito à liberdade de expressão, o emissor do pensamento não pode ultrapassar os limites fi xados em lei, mas isto não torna a censura admissível. O que deve ocorrer é a utilização do bom senso, sendo que a manifestação deve ser socialmente aceitável e adequada ao ordenamento jurídico nacional. Não há, portanto, direito fundamental absoluto.

4. Situação jurídica de sites criminosos hospedados noexterior

Em 2003 ocorreu no Supremo Tribunal Federal o julgamento de Siegfried Ellwanger, acusado de escrever e comercializar obras de caráter racista e anti-semita4. A pena foi de dois anos de prisão, convertidos em prestação de serviços comunitários:

Foram nove meses de debate e polêmicas que dividiram os maiores especialistas em dire-ito civil do país. A discussão fi cou centrada em três pontos: o que é racismo, liberdade de expressão e manifestação do pensamento individual (MEDEIROS, 2007).

Apesar de toda a repercussão do caso, este é apenas um exemplo das questões contemporâneas que envolvem a liberdade de expressão e sua proteção pelo ordenamen-to jurídico brasileiro. Neste caso específi co, os livros foram impressos e comercializados pela internet, o que facilitou a localização do autor através da conta a que eram destina-dos os pagamentos e o remetente do envio dos materiais pelo correio:

Em 2005, a Conib (Confederação Israelita Brasileira) depositou o valor correspondente a um livro e o recebeu pelo correio, para comprovar a ligação do site com Ellwanger. A entrega do livro foi usada como prova em um pedido feito pela entidade para a instaura-ção de um novo inquérito criminal contra o editor. Ele é apontado como um dos prin-cipais divulgadores brasileiros do discurso anti-semita (GERCHMANN; FUHRMANN; MARCOLIN, 2007).

Contudo, o mesmo não ocorre em conteúdos veiculados pela internet gratuita-mente. Como já foi dito neste trabalho, a tecnologia e as características da internet per-mitem, em muitos casos, o completo anonimato dos autores, que inclusive se aproveitam do caráter global da rede para hospedar conteúdos em sites estrangeiros, o que difi culta não somente a identifi cação, mas também a aplicação da lei brasileira para seus conteú-dos.

Thiago Tavares Nunes de Oliveira, advogado e presidente da Safernet – ONG

4 As sessões do STF foram gravadas pela TV Justiça e são comercializadas em DVD. Siegfried Ellwanger foi condenado pela publicação dos livros O judeu internacional, Holocausto judeu ou alemão?, Nos bastidores da mentira do século, A História Secreta do Brasil, Os Conquistadores do Mundo - os verdadeiros criminosos de guerra e Hitler, culpado ou inocente?

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especializada em identifi car e denunciar crimes de internet, em entrevista a Revista Ciên-cia Criminal, reconhece que:

Mesmo com as leis brasileiras proibindo a divulgação dos ideais neonazistas e outros grupos que pregam a violência e a discriminação, a internet se tornou um meio de propa-gação dessa ideologia dentro de nosso país. Em sites de relacionamento, há desde perfi s e comunidades de grupos desorganizados até a atuação de redes de neonazistas, algumas ligadas a grupos internacionais [que contam] com sites dentro de portais norte-ameri-canos, usando a proteção daquele país para burlar as leis brasileiras (OLIVEIRA apud GERCHMANN; FUHRMANN; MARCOLIN, 2007).

Os sites que propagam ideologias racistas e xenófobas, segundo Oliveira, se benefi ciam das leis mais brandas dos Estados Unidos para delitos de opinião, pois:

A primeira emenda da Constituição [norte-americana] garante a liberdade de expressão até nesse tipo de situação, desde que não haja prejuízos materiais ou violência física. Prejuízos psicológicos e danos morais são resolvidos na esfera cível (OLIVEIRA apud GERCHMANN; FUHRMANN; MARCOLIN, 2007).

Complementando, Oliveira afi rma que a demora e a burocracia nos procedi-mentos de cooperação internacional também benefi ciam os criminosos, já que, após a denúncia de dois sites do gênero hospedados no exterior, “um deles chegou a ser reti-rado do ar quando estava em um provedor argentino, graças a um acordo de cooperação internacional. No entanto, voltou em um portal dos Estados Unidos” (Ibidem, 2007).

No dia 16 de março de 2005, o servidor argentino Prima, responsável pelo portal www.libreopinion.com – que hospeda sites preconceituosos de diversas partes do mundo, tirou do ar seis sites neonazistas criados por brasileiros:

No parecer do Ministério, esses grupos criaram os sites na Argentina com a intenção de escapar de eventuais processos criminais na Justiça brasileira. [...] Após o fechamento dos endereços virtuais, o MP pretende identifi car os autores das páginas para responsabilizá-los pelo crime de racismo, com pena de um a três anos de prisão (INFO ONLINE, 2005).

O Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, Sérgio Gar-denghi Suiama, declarou que “desrespeitar leis brasileiras em sites no exterior não ga-rante imunidade aos infratores” (SUIAMA apud MESQUITA, 2005). Seu argumento é de que o artigo 6º do Código Penal prevê que também é considerado local do crime “o lugar onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado do delito” (Art. 6º, CP).

O Art. 70 do Código de Processo Penal reforça que “a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução” (Art. 70, CPP). O advogado Márcio Benjamin Costa Ribeiro, em artigo publicado no site Jus Navigandi, afi rma que “ainda que levássemos em consideração a frágil desculpa de que o servidor [...] jaz fora dos limites da legislação nacional, restaria, com toda fi rmeza a questão de onde se produz ou deve se produzir o resultado” (RIBEIRO, 2007).

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Há também a questão da extraterritorialidade condicionada, pois, de acordo com o Art. 7º do Código Penal, há crimes cometidos no exterior que podem ser atribuí-dos a brasileiros:

Art. 7º – Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:[...]II – os crimes:a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;b) praticados por brasileiros; [...]

Entretanto, todos estes posicionamentos geram controvérsias entre os juristas. Desta forma, mesmo que identifi cados, punir os autores deste tipo de site ainda será um desafi o a parte para os profi ssionais do Direito.

Em recente matéria do Portal Terra, de 24 de abril de 2007, foi constatado que muitos sites que fazem apologia ao racismo continuam ativos na internet:

Um dos portais é o Valhalla88. O nome faz referência a um castelo da mitologia nórdica [...]. O site White Power São Paulo oferece material semelhante [...]. Além disso, tem uma loja virtual para vender camisetas, fi lmes, livros e outros itens com temática nazista (BARRETO, 2007).

O art. 3º da Constituição Federal, IV, ao estabelecer como objetivo fundamen-tal da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, evidencia que nossa Carta Magna adota o principio da não-discriminação, sendo que isto é reforçado pela legislação infraconstitucional.

Ao exemplo da Lei nº. 7.716/89, que defi ne os crimes resultantes de precon-ceitos de raça ou de cor, enquadrando perfeitamente esses sites. O § 1º do art. 20 deixa claro que o racismo não se limita a praticar, induzir ou incitar a discriminação ou precon-ceito de raça, como é estabelecido no caput, mas também:

Art. 20 – [...]§ 1º – Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fi ns de divulgação do nazismo.Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

Em seguida, o § 2º do mesmo artigo estabelece que:

§ 2º – Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza.Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

Portanto, não restam dúvidas de que estes sites são ilícitos e contrariam a leg-islação brasileira. Além disso, contrariam também a Declaração Universal dos Direitos Huma-nos, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas:

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Art. 1º – Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraterni-dade.[...]Art. 7º – Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual pro-teção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.[...]Art. 28 – Todo o homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente real-izados.

O Procurador da República Sérgio Suiama ressalta que a principal razão pela qual os sites criminosos hospedados nos Estados Unidos não estão sendo barrados pelas leis americanas é porque englobam conteúdos feitos a partir do Brasil e direcionados ao público brasileiro.

Complementando, afi rma que legislação brasileira sobre o assunto é parecida com a da Europa, não admitindo em hipótese alguma este tipo de conduta. Desta forma, “a legislação que está na contramão é a dos Estados Unidos e não a nossa” (SUIAMA apud GERCHMANN; FUHRMANN; MARCOLIN, 2007).

5. Considerações fi nais

A internet representa um grande avanço para a sociedade contemporânea, di-sponibilizando informações de forma rápida e acessível em qualquer localidade. Além disso, contribui para a democratização da comunicação social, pois permite que qualquer pessoa produza e distribua conteúdos diversos, ao contrário do que ocorre nos meios tradicionais, como rádio, televisão, jornais e revistas.

Desta forma, a livre manifestação de idéias quebra mais dois importantes obs-táculos5: a territorialidade e o controle de informações por parte dos veículos de comu-nicação de massa.

Contudo, a rede mundial de computadores também possibilita a prática de ilícitos penais que, devido à transição para o ambiente virtual, torna difi cultosa não só a punição dos infratores, mas também a própria defi nição do crime por parte de nosso ordenamento jurídico. Adiciona-se a isso o fato de que a rede não possui limites terri-toriais, o que leva alguns autores de sites criminosos a hospedá-los no exterior visando driblar as leis brasileiras.

Diante então destas novas problemáticas do Direito, que surgiram com a rede mundial de computadores, seria necessário regulamentar a internet para coibir e contro-lar os sites criminosos?

Em caso afi rmativo, esta regulamentação deveria ser feita internamente por

5 No passado foi preciso conquistar tanto o direito de informar quanto o de ser informado. Temos como exemplo a censura imposta durante o período do regime militar.

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cada país, permanecendo assim a burocrática morosidade da cooperação internacional, ou seria mais interessante elaborar um tratado internacional para regulamentar a rede e defi nir os crimes de internet?

Esta é uma questão para ser pensada e discutida, abrindo novos tópicos para o estudo do Direito.

6. Referências

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INTERPRETAÇÃO CONTRATUALCONTEMPORÂNEA

Fernando Ricardo Portes 1

Resumo: A busca pela efetivação dos valores sempre foi perseguida pela sociedade como um todo. Sempre houve a necessidade de valoração dos atos praticados, sempre houve a necessidade de que essa valoração fosse realizada tendo por medida o consenti-mento comum. Com a entrada em vigor do Código Civil Brasileiro, em 2003, a teoria dos contratos mereceu uma nova leitura, agora sob à luz do Estado Social de Direito. Seus princípios requerem uma interpretação em acordo com a Constituição Federal, pugnando por uma releitura dos princípios contratuais face ao Estado Social de Direito.

Palavras-chave: Teoria constitucional. Direito Civil. Contratos.

Abstract: The quest for realization of values has always been persecuted by society as a whole. When-ever there was a need for valuation of the acts charged, if there was a need for this valuation was performed by taking the measure common consent. With the entry into force of the Civil Code in 2003, the theory of contracts has a new reading, now in the light of the social state of law. Its principles require interpreta-tion in accordance with the Constitution, call for a reassessment of contractual principles in relation to the Social Law.

Keywords: Constitutional theory. Civil Law. Contracts.

1 Introdução

Para manter a sociedade ordenada, o homem sempre buscou a exaltação de va-lores para serem aplicados. Valores estes que desenvolvem-se diferentemente de acordo com a época em que os fatos ocorrem.

A busca pela efetivação dos valores sempre foi perseguida pela sociedade como um todo. Sempre houve a necessidade de valoração dos atos praticados, sempre houve a necessi-dade de que essa valoração fosse realizada tendo por medida o consentimento comum.

Assim queremos expor que a busca do jurista, do sociólogo, do doutrinador, do historiador, bem como dos demais segmentos da sociedade sempre foi a interpretação e apli-cação dos valores que mantenham não só o indivíduo como centro dos interesses, mas sim a sociedade como tópico central da valoração.

Visto por este prisma, resta-nos desvendar quais valores se aplicam a cada passa-gem temporal da humanidade.

Devemos compreender que a busca pela efetivação dos valores transforma-se e evolui com o passar do tempo.

1 Advogado. Pós-graduado em Direito pela UNIGRAN.

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Transforma-se no sentido de que depende dos atos praticados pela sociedade para que os valores sejam criados e aplicados, ou seja, cada situação criadora pela qual a sociedade passa, reverter-se-á em atos praticados, que naturalmente interessará a uma determinada classe, e assim, criará valores a serem aplicados por uma ou outra classe.

Evolui no sentido de que sempre que uma classe visa a aplicação de valores que lhes interessam, surgindo assim um confl ito com a outra classe não benefi ciada, e pela discussão que surge dos interesses antagônicos, fatalmente surgirá uma valoração que benefi ciará ambas, gerando uma evolução , ou ao menos uma junção de vontades que benefi ciará o bem comum.

Isto é notado através da história.E esta é a função do legislador, fazer com que os valores aplicados atinjam o

bem comum.Assim, desde os primórdios das codifi cações sempre se buscou o bem estar

social de acordo com o pensamento e necessidades da época.Pela aplicação do Estado Liberal, que será estudado a seguir, buscou-se a valo-

ração do indivíduo, da liberdade pactual para que o cidadão fi zesse valer seu direito de negociar o que fosse seu sem necessidade de acolher princípios ou valores que não lhe interessavam, visto que antes de tal valoração ( Estado Liberal) tal direito lhes era tolhido pelos interesses ( valores) da classe dominante.

Contudo, conforme já denotado acima, os valores encontrados e aplicados no Estado Liberal de Direito sofreram uma evolução ou ao menos uma relativização com a vigência da valoração surgida com o Estado Social de Direito.

Tal evolução nos trás novas perspectivas para a sociedade, e em particular, como não poderia de ser no caso do presente estudo, trás perspectivas novas para serem aplicadas nas relações obrigacionais e interpretadas nos contratos.

A evolução dos valores até o presente momento e sua aplicação às relações contratuais são mérito do presente estudo.

2. Contrato : origem, conceito e evolução histórica

2.1. Origem

O homem primitivo em sua busca por melhores condições de sobrevivência sempre procurou a vida em sociedade.

Como sabemos, mesmo vivendo em uma sociedade, embora precária, mas que não deixava de ser uma sociedade, ele desconhecia o direito de propriedade, razão que fez com que cada indivíduo ou cada grupo, para que conseguissem ocupar a quilo que pretendiam, se valessem do único direito que conheciam : o direito da força. Assim, originalmente o homem fez-se destoar dos outros de sua espécie pela força, astúcia e destreza, para se isolar ou se agrupar e assim manter o poder sobre os demais, sem se importar e sem atender à consciência e ao mínimo que se entendesse de justiça2.

2 DAIBERT, Jéferson. Dos contratos em geral. p . 2.

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3 Nas palavras de Adaucto Fenandes : “ As primeiras permutas , de objetos por objetos, frutas, animais utensílios e tudo o mais que o homem conseguiu realizar, remontam na história do direito, à épocas muito distantes . Na idade quaternária , quando começaram a ser ensaiadas a divisão do trabalho e a troca de serviços na vida das grutas, dos clãs ou das tribos, , o homem passou a modifi car o poder de sua ação individual, que só se conformava naquilo que estivesse de acordo com as necessidades do grupo humano que surgia”. RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3 ed . p 7.Forense . 20044 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil. Contratos. Tomo 1. v IV. P. 3.Saraiva. 2005.5 Relata Arnaldo Rizzardo citando Jefferson Daibert : “Os Hebreus conheciam o instituto do contrato antes da fundação de Roma. Na época do cativeiro de Níneve , Tobias deu emprestado a Gabelo, que residia na cidade de Roges, na Média, dez talentos de prata, e um quirógrafo foi redigido fi cando em poder do credor.Quando Sólon pretendeu dar leis escritas aos atenienses, Anacharsis, da Scyntia, disse-lhe que era impossível reprimir, por leis escritas, a injustiça e cupidez dos homens, pois as leis serão para eles como teias de aranha: deterão os fracos e os pequenos ; os poderosos e os ricos romperão e passarão por meio delas. A isto respondeu Sólon que os homens guardam as convenções que fazem entre si – o que queria dizer que, já a esse tempo, os homens haviam verifi cado a conveniência de não deixar de cumprir a palavra empenhada, mesmo antes das lei escrita impor sanções para os transgressores das convenções. No antigo Egito, conheciam-s formas rudimentares de contratos, uns disciplinando o casamento, exigindo a sua inscrição no registro público, para estabelecer a fi liação;outros, relativos a translação da propriedade e que se complementavam em três atos equivalentes à venda, ao juramento e a tradição.Através do primeiro, denominado ato para o dinheiro, realizava-se acordo entre vendedor e comprador, sobre o objeto a ser vendido, com a sua designação; sobre o preço ou pagamento e a forma de completá-lo em determinado tempo; e sobre a declaração do vendedor de entregar em tempo prefi xado o título de propriedade.Esta era a etapa mais importante. Quanto a juramento, tinha caráter essencialmente religioso, fi rmando-o a parte, perante o sacerdote e o comprador. O último consistia simplesmente na entrega da coisa, ou seja, na passagem da posse do objeto vendido ao domínio do comprador. Na Grécia, onde predominavam as artes e as letras, o direito não teve grande resplendor.Mas conheciam-se, desde os primórdios das cidades-estados Esparta e Atenas, formas rudes de relações jurídicas, especialmente ligadas ao casamento e aos bens materiais, não raramente inspiradas em práticas rituais. O casamento se estabelecia em um contrato , proibindo-se a poligamia, mas em restrições legais ao concubinato.Quanto ao patrimônio, aplicavam-se penas pecuniárias e o confi sco de bens, além de castigos físicos e decapitação, especialmente nas rescisões e inexecuções.”( Contratos. p . 8. 3 ed. Forense. 2004.)

Um pouco mais adiante em sua evolução natural, quando o homem percebeu que o uso da força nem sempre era a melhor solução para se adquirir o que se pretendia, começou a fazer uso da troca de produtos3.

Assim sendo, natural que da troca de produtos se tenha uma espécie ou princí-pio de contrato para a época.

Mas, impossível determinar-se precisamente a origem do contrato, como bem relatam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, ao escreverem sobre essa ori-gem, pois que, na medida em que a ocorrência do mesmo confunde-se com a própria evolução moral da humanidade, a determinação de uma data ou de um período pre-defi nido seria pura formulação de alquimia jurídica, sem validade científi ca4.

Sabe-se, porém, que não foi em Roma, que embora seja a principal fonte histórica do direito ocidental, que se forjaram primeiramente os contratos5, entretanto, foi em Roma que sua sistematização jurídica tornou-se mais nítida, pois foi lá que resp-landeceu o direito, verifi cando-se que nem mesmo a doutrina consiga explicar qual o fato

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ou lei romana tornou o contrato um verdadeiro instituto,6 entende-se que foi lá que se desenvolveu.

Assim sendo, esta é uma breve síntese do que fala a doutrina sobre a origem do instituto dos contratos, sendo que dá para se ter uma idéia de seu início, mas, face a fi nalidade e interesses desta monografi a, não iremos nos aprofundar neste ponto.

2.2. Conceito : negócio jurídico e contrato

Conforme explicita Maria Helena Diniz, contrato resume-se a um negócio jurídico de natureza bilateral ou plurilateral, que depende para sua formação do encontro de vontade das partes.7

Óbvio se demonstra que o conceito de contrato não se resume apenas a um encontro de vontade das partes, mas o conceito acima relatado serve para introdução ao tópico, sendo que antes de entramos nele, necessária se faz uma breve conceituação de negócio jurídico, fato jurídico e ato jurídico e sua correlação com o contrato.

Conforme ensina Darcy Bessone, fato jurídico é todo acontecimento, emana-do do homem ou das coisas , que produza conseqüências de direito e compreende duas espécies: o fato jurídico ( strictu sensu) e o ato jurídico, sendo que o fato jurídico, em sentido estrito é que produz efeitos jurídicos sem a intervenção de uma vontade in-tencional, e o ato jurídico é aquele que o homem realiza voluntariamente com o fi m de produzir certos efeitos de direito, e o que separa os dois institutos é a vontade8.

6 Arnaldo Rizzardo relata: “ Foi em Roma que mais resplandeceu o direito. A partir do século V antes de Cristo, iniciaram a fl uir importantes leis, Como a Lex plaetoria , de 490 a.c, formando o jus civile e o opmumt jus civile romanorum, culminado com Lex duodecim Tabulorum, de 303 a.c, a qual representou a vitória dos tribunos da plebe contra os representantes do patriarcado.Foi justamente na Tábua VI que apareceu a origem da obrigação e do contrato, ao consignar a norma cum nexum facietmancipiunque uti língua nuncupassit ita jus esto.O vocábulo nexum esprime um elo, uma cadeia, signifi cando também, contrato. O conceito de obrigação emana desta regra, induzindo a concluir que o credor podia dispor do corpo de seu devedor no caso de impontualidade ou de inadimplemento da obrigação.

Até chegar ao Corpus Júris Justiniano, que representa o momento supremo do direito romano, fi cou bem consolidado o conceito de contrato, que o gênio jurídico dos romanos distinguiu em três formas: a convenção, o pacto e o contrato propriamente dito. Segundo ensinava Ulpiano, a convenção era um termo geral que abrangia o pacto e o contrato.( Contratos. p . 8. 3 ed. Forense. 2004.) Por outro lado, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho escrevem: “Deve-se ao jurisconsulto GAIO o trabalho de sistematização das fontes das obrigações, desenvolvidas posteriormente nas Institutas de Justiniano, que seriam distribuídas em quatro categorias de causas efi cientes: a) o contrato – compreendendo as convenções, as avenças fi rmadas entra duas partes; b) o quase-contrato – tratava-se de situações jurídicas assemelhadas aos contratos, atos humanos lícitos equiparáveis aos contratos, como a gestão de negócios; c)o delito – consiste no ilícito dolosamente cometido, causador de prejuízo para outrem; d) o quase-delito- consistente nos ilícitos em que a gente atuou culposamente, por meio de comportamento carregado de negligência, imprudência ou imperícia.” GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Obrigações. v II. p 25. saraiva. 2002.7 DINIZ, Maria Helena.Curso de direito civil brasileiro.Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. V 3. p 23.Saraiva.2002.8 BESSONE, Darcy.Do contrato. Teoria Geral. p 3. Forense: 1987.

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9 Ob. Cit. p. 810 Relata o citado autor: “Em suma: na concepção clássica, vinda dos pandectistas por negócio jurídico entende-se a declaração de vontade, enquanto na teoria preceptiva pretende-se que a fi gura se caracteriza através da auto regulamentação dos próprios interesses. Percebe-se que o conceito moderno restringe mais o campo do negócio jurídico, convertendo-se em uma espécie de declaração de vontade”. Ob cit p 5 11 A doutrinadora relata: “Ato jurídico em sentido estrito é o que gera conseqüências jurídicas previstas em lei e não pelas partes interessadas, não havendo regulamentação da autonomia privada. Segundo Orlando Gomes, classifi ca-se em: a) ato material , se consistir numa atuação de vontade, que lhe da a existência imediata, porque não se destina ao conhecimento de determinada pessoa, não tendo, portanto, dstinatário, Trata-se de ato a que a ordem jurídica confere efeitos inevitáveis,de maneira que tais conseqüências jurídicas estão adstritas tão somente ao resultado da atuação, produzindo-se independentemente da consciência que o agente tenha de que seu comportamento o suscita , por exemplo, ocupação, derrelição, fi xação, fi xação de domicílio, comistão, confusão, adjunção, especifi cação, acessão, etc; b) participação, se consistir em declaração para a ciência ou comunicação de intenção ou de fato, tendo por escopo produzir in mente alterus um evento psíquico.Tem, necessariamente, destinatário, pois o sujeito pratica o ato para dar conhecimento a outrem de que tem certo propósito ou que ocorreu determinado fato, por exemplo, intimação, notifi cação, oposição, aviso, confi ssão, denúncia, convite, etc.” DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. v1.p 321. Saraiva, 1998 12 A autora escreve : ato jurídico estrictu sensu acontecimento que não depende da vontade humana para produzir efeitos jurídicos, criando, modifi cando ou extinguindo direitos.”. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. V2.p 521. Saraiva, 1998.13 Entendimento da autora: “ negócio jurídico é o poder de auto-regulação dos interesses que contém a enunciação de um preceito, independentemente do querer interno. Ë uma norma concreta estabelecida pelas partes. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. V3.p 339. Saraiva, 1998 BESSONE, Darcy.Do contrato. Teoria Geral. p 6. Forense: 1987. 15 Comenta o autor : “Dir-se-á que o negócio jurídico é um ato jurídico, mas dirigido a um fi m determinado, previamente, pela vontade dos contratantes. O ato jurídico em si não visa uma declaração de vontade programada, com efeito jurídicos determinados, mas efeitos jurídicos de mofo geral, e restrito na órbita pessoal do indivíduo.Evidentemente, o contrato é enquadrado na categoria de negócios jurídicos.

Ainda, continua o mesmo autor, afi rmando que o ato jurídico9 que depende de uma declaração de vontade denomina-se negócio jurídico , mas que não é somente esse o entendimento10.

Mesmo entendimento tem Maria Helena Diniz, que se refere a ato jurídico em sen-tido estrito11, fato jurídico strictu sensu12, totalmente em conformidade com o já exposto, mas que em relação ao negócio jurídico13 se apega à teoria perceptiva.

Mas, irrelevante se torna para este estudo a qual das teorias se apegam os doutrina-dores; importante sim, é deixar claro que o contrato se inclui na categoria dos negócios jurídi-cos14, como bem relata Arnaldo Rizzardo15.

Assim sendo, já sabendo que o contrato trata-se de um negócio jurídico, passaremos ao estudo de seu atual conceito.

Conceituar um instituto de direito não é das mais fáceis tarefas para o jurista, pois basta que o mesmo esqueça de por uma simples variável para que o conceito corra o risco de se tornar incompleto, ou, basta que não acompanhe a evolução jurídica ou social do instituto para que o conceito corra o risco de tornar-se defasado ou até mesmo corra o risco de o jurista ao se contentar com o seu ideal, cair em desgraça de achar que sua percepção está completa e assim tornar-se um mártir de si mesmo por achar que criou algo que não precisa de complementos.

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Por isso, discorreremos sobre os vários conceitos que a doutrina ao longo do tem-po reservou para os contratos.

Segundo Arnaldo Rizardo, citando Manuel Inácio de Carvalho Mendonça, no con-trato depreende-se a necessidade da convergência de duas ou mais vontades para conseguir um mesmo fi m ou resultado determinado, ou seja, há um acordo de vontades para produzir efeitos jurídicos, não se tratando necessariamente de coincidências de vontades, mas de re-união delas.16

Entendimento parecido tem Álvaro Villaça Azevedo quando se refere que o con-ceito de contrato é a manifestação de duas ou mais vontades, objetivando criar, regulamentar, alterar e extinguir uma relação jurídica ( direitos e obrigações ) de caráter patrimonial.17

Paulo Nader em seu conceito escreve que na acepção atual de contrato o mesmo signifi ca acordo de vontades que visa a produção de efeitos jurídicos de conteúdo patrimo-nial, por ele cria-se, modifi ca-se,ou extingue-se a relação de fundo econômico.18

Enzo Roppo escreve que para se conhecer o verdadeiro conceito de contrato é necessário que se atenha a atenção para a realidade econômico-social que ele representa. As-sim, falar em contrato signifi ca sempre remir para a idéia de operação econômica19.

Uma característica primordial no conceito de contrato, bem frisado por Álvaro Villaça de Azevedo, Paulo Nader e Enzo Ropoo, o qual muitos doutrinadores deixam de dar importância, é quanto ao caráter econômico do contrato.

Entende-se que os conceitos desenvolvidos pelos três doutrinadores acima citados são mais completos que os citados anteriormente, pois frisam a “qualidade econômica” que gira em torno da realização dos contratos, sendo que só a vontade das partes, o acordo bilat-eral e plurilateral, não servem para conceituar contrato, mas somente quando a convergência de idéias resultar em uma obrigação que direta ou indiretamente remeta para o plano de aquisição ou que tenha algum sentido econômico é que se poderá falar efetivamente de con-trato20.

O atual código adotou a expressão “negócio jurídico”, substituindo, praticamente, o nomen ato jurídico que vinha n regime do código de 1916, mais, no entanto, no campo das obrigações, que envolve os contrato.” (Contratos. p . 4. 3 ed. Forense. 2004.)

16 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3 ed . p 6.Forense . 200417 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos.Curso de Direito Civil. p 20.SP: Atlas, 200218 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Contratos. p 11.19 ROPPO, Enzo. O Contrato. P 9. Coimbra: Livraria Almedina, 1988.20 Enzo Roppo defi ne: “ As situações, as relações, os interesses que constituem a substância real de qualquer contrato podem ser resumidos na idéia de operação econômica.De facto, falar de contrato signifi ca sempre remeter - explícita ou implicitamente , directa ou indirectamente- para a idéia de operação econômica. Como demonstração, basta refl etir sobre um certo uso da linguagem comum. No âmbito desta, a palavra contrato é, as mais das vezes, empregue para designar a operação econômica tout court, a aquisição ou a troca de bens e de serviços, o negócio em suma, entendido, por assim dizer, na sua materialidade, fora de toda a formalização legal, de toda mediação formada pelo direito ou pela ciência jurídica. É o que acontece, por exemplo, quando se usam expressões correntes do gênero: concluí um contrato muito vantajoso, que me permitirá ganhar alguns milhões, ou então, com o contrato Fiat-Citroen esperava-se acelerar o processo de integração e concentração monopolista a nível europeu. No sector de produção de automóvel. O contexto em que proposições similares são formuladas é, evidentemente, de molde a atribuir a palavra contrato um signifi cado que prescinde de qualquer qualifi cação jurídica pontual, colocando-se, ao invéws, no plano da fenomenologia econômico-social- como sinônimo, justamente, de operação econômica.” (ROPPO, Enzo. O Contrato. P 9. Coimbra: Livraria Almedina, 1988).

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21 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Obrigações. v IV. p 12. saraiva. 2005.22 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro.Contratos e atos unilaterais. V III.Saraiva.2004

No entanto, estes conceitos já descritos não se coadunam com a contempora-neidade do instituto contratual, tanto por não explicitarem os princípios aplicados aos contratos, tanto por não se referirem a sua função social e à boa-fé, que antes de princí-pios são regras explicitadas no novo código civil.

Por isso, o conceito mais detalhado, por não dizer adequado, de contrato nos é dado por Pablo Stolza Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, quando dizem que contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, auto-disciplinam os efeitos patrimoniais que pre-tendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades21.

Com isto, vemos que o conceito de um instituto jurídico, antes de tudo, deve sempre acompanhar as mudanças sociais, fi losófi cas e legais. Diferente não poderia ser o conceito de contrato, que deve sempre conter seus elementos ( manifestação de vontade, objeto lícito, agente capaz e forma prescrita ou não defesa em lei), sua qualidade econômica ( como já abordado, não se pode falar em contrato sem haver uma peculiaridade econômica), e isto tudo aplicado aos princípio e regras contrat-uais, incluindo principalmente a função social e a boa-fé, que serão relatados posterior-mente neste estudo.

2.3. Evolução histórica dos contratos: do Estado Liberal para o Estado Socialde Direito

Como já relatado anteriormente, não se pode explicitar ao certo o surgimento do contrato, somente sabe-se que foi no direito romano que o instituto melhor se desen-volveu através da promulgação de regras.

O direito romano distinguia contrato de convenção, onde esta representava o gênero, do qual o contrato e o pacto eram espécies22.

Porém, atualmente as expressões podem ser entendidas como sinônimos.O que se tem que levar em consideração é que desde as obrigações do direito Ro-

mano até pouco tempo atrás, o que prevalecia era o princípio da autonomia da vontade, onde dentro dos aspectos legais se reservava ao pactuado o valor de norma indepen-dente de seu conteúdo e impossibilitada sua revisão pela liberdade de pactuar realizada entre as partes.

Tal autonomia de vontade e valor legal do pactuado se fortaleceram na Rev-olução Francesa. Por sua vez a Revolução Industrial Inglesa iniciou a massifi cação con-tratual, que para poder ser compreendida nos remete a um singelo estudo do período citado.

A Europa no Século XVII passava por transformações tanto políticas quanto econômicas, que tiveram início ou ao menos um maior reconhecimento na Inglaterra,

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com a Revolução Industrial, que para alguns doutrinadores foi o início ou fortalecimento do capitalismo

A revolução Industrial começou por assim dizer com a proto-industrialização23.A agricultura na Europa no século XVI teve uma expansão tanto econômi-

ca como demográfi ca, havendo assim uma procura por produtos, que primeiramente foi suprida pela proto-industrialização, mas que, consequentemente, deixou de ser uma produção caseira e se transformou em uma produção industrial com sede nas cidades.Assim, houve um conseqüente abandono do setor agrícola e conseqüente aumento da população urbana.24

Este, no entender do autor acima citado foi o início do êxodo rural.Com a circulação de riquezas ocorrendo de forma conjunta com o progresso

industrial, deu-se o início do capitalismo.25

Assim, relata Fernando Noronha que das profundas transformações ligadas a Revolução Industrial merecem destaques as seguintes repercussões jurídicas ligadas à ur-banização e à concentração capitalista: a urbanização é conseqüência do crescimento ex-ponencial da população, da migração do campo para as cidades, das melhores condições de vida que o desenvolvimento econômico propicia; a progressiva concentração capital-ista é essencialmente conseqüência da concorrência econômica.26

Porém, com o aumento da população urbana, deu-se início a chamada mas-sifi cação da sociedade27, que tem seu resultado explícito nos dias atuais. Assim sendo, com a massifi cação da sociedade, lógico seria a massifi cação das obriga-ções e conseqüente massifi cação dos contratos, que é uma conseqüência do próprio capitalismo, pela sua progressiva concentração industrial e comercial.

Este é o desenvolvimento que a Revolução Industrial trouxe para nós, onde com a evolução da massifi cação da sociedade, resultou na massifi cação contratual que se desenvolveu na era pós-Segunda Guerra Mundial28, quando ainda prevalecia como norte da obrigação contratual o princípio da autonomia de vontade, que tinha o valor de regra imutável entre as partes.

23 Segundo Angel Garcia Sanz, a proto-indutrialização foi a fase em que os artesãos que futuramente iriam trabalhar nas fábricas começaram seu aperfeiçoamento em ofi cinas artesanais para depois partirem para as cidades já como mão de obra especializada.24 SANZ, Angel Garcia p137-200025 Ob.cit.p26 Noronha,p 70.27 Fernando Noronha relata: “A grande resultante de tais fenômenos foi a massifi cação da sociedade. Realmente se existe uma palavra que possa sintetizar tudo o que aconteceu, e ainda esclarecer o sentido das tão profundas transformações havidas, tanto políticas como jurídicas, inclusive no âmbito que aqui interessa, que são os contratos, tal palavra é massifi cação : massifi cação nas cidades, transformadas em gigantescas colméias; nas fábricas com a produção em série; nas comunicações, com os jornais, o rádio e a televisão; nas relações de trabalho, com as convenções coletivas; na responsabilidade civil, com a obrigação de indenizar imposta a pessoas componentes de grupos , por atos de membro não identifi cado ( o que é verdadeiro caso de responsabilidade coletiva); no processo civil, com as ações coletivas, visando tutela de interesses difusos e coletivos ( cf, Lei n 7,347/85, art. 1 , e CDC arts. 81,91 e 103); nas relações de consumo, fi nalmente, com os contratos padronizados e de adesão e até com as convenções coletivas de consumo, previstas no CDC, art.107.” ( NORONHA, Fernando.O direito do contrato e seus princípios fundamentais. P. 71. Saraiva: 1994.28 Ob. Cit. p 73.

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29 Para se ter uma síntese do pensamento fi losófi co sobre a discussão que ocorria na época da Revolução Francesa, ler Rogério Zuel Gomes – Teoria Contratual Contemporânea: Função Social do Contrato e boa fé.Forense. 2004.30 CASTRO, Flávia Lages. História do Direito: Geral e Brasil.p 245-260. LimenJuris :2003.31 Ob. Cit. p. 245-246

Com relação à Revolução Francesa, houve também uma evolução social que resultaria em um desenvolvimento aplicado aos contratos, que somente em nossa época contemporânea seria mudado.

Para isso teremos que explicar em breve síntese o ocorrido, mas não tratare-mos das bases fi losófi cas que prevaleciam na época, mas somente a questão econômica social que alicerçou a revolução.29

Relata Flávia Lages de Castro30 que na véspera da Revolução Francesa, ( séc. XVIII), o país ainda era agrário, com 85% da população rural, mas que mesmo assim o capitalismo já estava presente.

Ainda descreve a mesma autora:

“A sociedade era dividida em três estados. No primeiro estava o alto clero ( alto clero – como bispos e abade – e baixo clero – padres e vigários), o segundo estado era composto pela nobreza que, por sua vez, se subdividia em três subgrupos : a nobreza palaciana que vivia das pensões do rei e usufruía de cargos públicos, a nobreza provincial, que vivia no campo e a nobreza de toga, que era composta por pessoas oriundas da burguesia, que por muito dinheiro, haviam comprado cargos e títulos de nobreza.O terceiro estado, que alcançava 98% da população era formado por inúmeros sub-grupos, mais ou menos divididos como classes sociais ( baseados no poder econômi-co). Havia a alta burguesia, composta por banqueiros, empresários e fi nancistas; havia a média burguesia, formada por profi ssionais liberais como professores, médicos, etc; havia a pequena burguesia, onde se encontravam os pequenos lojistas etc.Sob todos eles havia um enorme grupo heterogêneo formado por artesãos, aprendizes, empregados e a enorme massa rural.Nem o primeiro, nem o segundo pagavam impostos ou contribuições, somente o ter-ceiro, mas somente o clero e a nobreza viviam as custas do dinheiro público advindo destes impostos.Portanto, não é de estranhar que a principal reivindicação do terceiro es-tado fosse a igualdade civil e, por conseqüência, igualdade política.Entretanto, a monar-quia absolutista repousava-se sobre os estamentos, os privilégios e a não participação da maioria das decisões políticas”31

Conforme demonstra a autora citada, a alta nobreza e o clero faziam com que a grande maioria do restante da população pagasse por seu bem estar e seu luxo, por assim entender seus caríssimos privilégios, motivo que tornou a economia francesa um caos, que piorou com a entrada de produtos ingleses de baixo custo ocasionado pela Revolução Industrial, o que fez com que a indústria francesa tivesse uma estagnação ou até mesmo um retrocesso.

Pode-se entender, também, que o primeiro e segundo estados representavam o governo da nação francesa na época, mas que apenas exploravam a população sem corresponder com uma co-obrigação ao menos equivalente, ou seja, apenas criavam obrigações para a população sem uma resposta às obrigações criadas.

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Isso tudo, como não podia deixar de ser, corroborou com uma revolução popular, liderada pelos burgueses para que tivessem o direito de efetivarem sua vontade baseada na igualdade do individuo sem a oposição ou limitação do Estado. Direito estes conseguidos através de constituições32 e, mais tarde, através de codifi cações.

Assim, para um fortalecimento dos princípios que regiam a sociedade do séc. XVIII e também para fortalecer as normas que imperavam, surgiu o fenômeno da codi-fi cação, como bem explica Rogério Zuel Gomes:

“O movimento de codifi cação do direito foi resultado de longos debates políticos-culturais ocorridos no decorrer do século XVIII, objetivando a positivação do Direito Natural.Os seus defensores criticavam fortemente o direito consuetudinário, o qual era denominado herança da Idade Média e ia de encontro à tendência racional das teses apresentadas pelos positivistas.O sentimento de segurança jurídica, inspirado pelo jusracionalismo, associado ao período seguido à Revolução Francesa, fez com que a burguesia, portadora de sua própria base de valores, infundisse em toda a sociedade tal base, reconhecendo-a como sua também. Entretanto, não é somente o escopo formal de obtenção de clareza e certeza jurídica que orientou esse movimento, mas também o escopo político de instaurar a igualdade civil entre cidadãos e as classes, provindos do espírito da revolução.”33

Porém, foi em 1804, com Napoleão Bonaparte, que a codifi cação francesa atinge seu ápice para a época.

Foi no período em que Napoleão chegou ao poder que os ideais burgueses estavam mais exaltados.

Juntamente com a necessidade de regularizar os direitos que surgiam com a liberdade das classes oprimidas pode-se ainda levar em consideração que algumas situa-ções que levaram à codifi cação de normas foram a concepção individualista da vida sócio-jurídica fundada em relações interindividuais e a secularização dos princípios da igualdade e da liberdade como base de organização das relações jurídicas e das institu-ições civis e, por fi m, um novo perfi l ao papel do contrato, como expressão de vontade individual núcleo basilar dos mecanismos da vida jurídica e econômica34.

32 Para tentar achar um caminho para vencer a crise o governo convocou representantes do clero,da nobreza e da alta burguesia, era a Assembléia dos Notáveis de 1787. A proposta era o aumento dos impostos territoriais, o que foi recusado com veemência pelos nobres.O rei Luis XVI nomeou então um novo ministro e convocou a Assembléia dos Estados Gerais que não era convocada desde 1614. O terceiro estado contava com 578 deputados contra 270 da nobreza e 291 do clero e, embora maioria nominal, o terceiro estado perderia todas as votações que eram feitas por estado e não por deputado.Com a recusa do terceiro estado em aceitar este sistema de votação os representantes deste estamento auto proclamaram-se “Assembléia Nacional”e sob a oposição acirrada do rei, receberam adeptos do Iluminismo que eram também representantes dos outros dois estados. Em 9 de julho de 1789 a Assembléia Nacional tornou-se Assembléia Constituinte, sob o juramento dos deputados de somente se dispersarem após dar a França uma Constituição A pujança da mudança também já alcançava o povo, que tomava a bastilha tempos depois A revolução inicia seu caráter popular, não é possível mais inventar uma saída sem contar com o povo que está nas ruas. No dia 26 de agosto é aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que Luis XVI recusa-se a aprovar, gerando uma maior reação popular. Cai na mão do povo o maior símbolo da monarquia absoluta francesa, o palácio de Versalhes”. Ob. Cit. p.24733 GOMES, Rogério Zuel. Teoria Contratual Contemporânea: Função Social do Contrato e boa fé p 30.Forense. 2004.34 Ob. Cit. P 31.

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Observa-se, então, que a codifi cação da época manteve o ideal burguês de liberalismo perante o estado, onde este não deveria interferir na vontade do indivíduo, para que este pudesse desenvolver suas atividades de acordo com sua vontade, que é um dos baluartes do regime capitalista, criando assim o próprio regime, como bem relata Georges Ripert:

“Uma ordem social, forte em seu longo passado, estava destruída pela onipotência da lei. Nada fora criado para substituir tal ordem, mas de propósito. Fiava-se no benefício da liberdade. A propriedade individual, livre e sagrada, a convenção livremente formada e tendo foros de lei, são as duas bases que ao permitir a criação da nova ordem. Daí em diante, o homem tem a disposição dos capitais que acumulou ou obteve emprestado; exerce comércio ou a industria que lhe apraz , vende livremente os produtos, obtém pelo contrato o trabalho de outrem. O regime que foi, senão criado, a menos tornado possível, será chamado mais tarde, o regime capitalista. A revolução permitiu se aparecimento dando-lhe um lugar defi nido. Ela foi útil, não pelo que deu, mas pelo que destruiu.”35

Assim, pode-se observar que tanto a Revolução Industrial, com a produção

em larga escala, onde o progresso se instalou com a liberdade de comercialização e consequente avanço social e tecnológico, quanto a Revolução Francesa onde se estabele-ceu a liberdade de contratar, a autonomia do indivíduo de realizar contratos e adquirir obrigações sem a intervenção estatal, culminaram para o aparecimento do capitalismo e consequente surgimento do estado liberal, que será exposto a seguir.

O liberalismo do Estado Liberal aplicado à teoria contratual pode ser enten-dido como a concretização do individualismo e da autonomia da vontade, como bem relata Antonio Carlos Efi ng :

“Com o período das revoluções ( Industrial e Francesa), alterou-se a estrutura social, bem como se deu o surgimento de idéias trazidas por fi lósofos a respeito, especialmente, das relações entre classes.Elemento marcante do liberalismo foi a não intervenção estatal, o que possibilitou a livre regulação das relações pelos particulares, possibilitando a implementação do modelo capitalista.Nesta conjuntura social o contrato se consolidou numa estrutura de supremacia da auto-nomia da vontade ( do interesse individual) fi xada sobre os ideais de liberdade de contra-tar e igualdade das partes contratantes, além de princípios como pacta sunt servanda.36

Vê-se que o estado liberal era a corporifi cação do individualismo, como defi ne Paulo Luiz Neto Lobo ao relatar que o paradigma em que se fundavam os princípios individuais do contrato era a primazia do interesse individual, corporifi cado no constitu-cionalismo liberal, que reduzia a intervenção estatal ao mínimo, e na codifi cação civil que tutelava essencialmente o patrimônio do indivíduo.37

Entende-se assim que a liberdade de negociação do Estado Liberal confunde-

35 RIPERT, Georges. Aspectos Jurídicos do capitalismo moderno. P 26 RedLivros: Campinas, 200236 EFING, Antonio Carlos.Repensando o Direito do Consumidor.p 6. Curitiba : 2005.37 LOBO, Paulo Luiz Neto. A teoria do contrato e o novo código civil. P 13 recife : Nossa Livraria, 2003.

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se com justiça contratual38, visto que o entendimento da doutrina clássica era de que o contrato é sempre justo, porque se foi querido pelas partes resultou da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes, presumindo-se assim o equilibro das prestações.39

Porém, tal entendimento não correspondia com a verdade, pois a igualdade formal no Estado Liberal e capitalista somada às diferenças entre as classes, propiciou a ocorrência de inúmeras desigualdades e, além disso, observa-se que valores, como auto-nomia da vontade, foram sucedidos pela autonomia privada e o contrato passa de apenas instrumento de troca que atendia exclusivamente os interesses das partes, para atender uma fi nalidade social40.

Assim começa a passagem do Estado Liberal para o Estado Social de Direito, levando-se em conta a evolução contratual.

A autonomia da vontade não é mais a única peça, ou melhor dizendo, não é mais a base imutável do contrato. Com a massifi cação do contrato, viu-se abalada a negociação que distinguia a liberdade contratual, onde as partes tinham o poder de dis-cutir as base negociais. Não que entre duas partes em pé de igualdade não pudesse haver desigualdade, mas com a massifi cação contratual isto fi cou mais nítido.

Por esse e por outros motivos, de cunho político e fi losófi co41, foi-se modifi -cando a estrutura negocial, tornando assim o contrato não mais unicamente como repre-sentativo de pactuação imutável entre indivíduos, mas como pactuação entre indivíduos com uma fi nalidade social.

Para melhor entendermos o que representa, cita-se Paulo Luis Lobo Neto:

“O estado social, sob ponto de vista do direito, deve ser entendido como aquele que acrescentou`a dimensão política do estado liberal ( limitação e controle dos poderes políticos e garantias aos direitos individuais, que atingiu seu apogeu no séc XIX) a di-mensão econômica e social, mediante limitação e controle dos poderes econômicos e sociais privados e a tutela dos mais fracos. O estado social se revela pela intervenção legislativas administrativa e judicial nas atividades privadas. As constituições sociais são assim compreendidas quando regulam a ordem econômica e social, para além do que pretendia o estado liberal.”42

Com tal evolução sócio-contratual, passou a haver uma intervenção estatal nas relações obrigacionais, onde o Estado através de diretrizes programáticas passou regular as relações obrigacionais a fi m de equalizar as obrigações em que a parte mais vulnerável esteja menos favorecida.

38 Teresa Negreiros relata : “O ideal de justiça é substituído , com advento do individualismo racionalista triunfante no século XVIII, pelo ideal de liberdade conforme qual a justiça da equivalência e do equilíbrio é substituída pela justiça formal associada ao procedimento contratual.”( NEGREIROS, Tereza. Teoria do contrato.Novos Paradigmas.p . Renovar. 2005 39 BESSONE, Darcy. Do contrato. Teoria Geral. p 31.Forense. 1987.40 EFING, Antonio Carlos.Repensando o Direito do Consumidor.p 6. Curitiba : 200541 Para uma melhor compreensão do tema ler BONAVIDES,Paulo, Do estado liberal ao estado social.Malheiros.42 LOBO, Paulo Luiz Neto. A teoria do contrato e o novo código civil. P 12 recife : Nossa Livraria, 2003.

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43 Rogério Zuel Gomes relata : “A partir do século XX, verifi ca-se a imperiosa necessidade de revisão dos principais fundamentos da Teoria Contratual Clássica em função da diversidade de relações jurídicas surgida da concentração de pessoas nas cidades e, especialmente, pela impossibilidade de contratação, quanto ao conteúdo, na sua forma individualizada. Diante desse fenômeno, o contrato passa a perder uma de suas principais características, a que consistia numa relação entre dois indivíduos que entabulavam as condições do seu cumprimento para, ao fi nal, consolida-las num documento cujo teor resultava daquela convenção.”( GOMES, Rogério Zuel. Teoria Contratual Contemporânea: Função Social do Contrato e boa fé p 31.Forense. 2004)44 Relata o autor que se nós entendermos que autonomia da vontade e autonomia privada são expressões relativas a uma e única realidade, refl etindo a diferença de palavras apenas a ,evolução havida, deve-se dizer haver quem entenda que elas traduzem realidades diferentes.Assim, por exemplo, afi rma o professor F.S. Amaral Neto, do Rio de Janeiro (A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica.Perspectivas estrutural e funcional,Revista e direito civil, 46:10, 1998, e Revista de informação legislativa, 102:212, 1989): “Autonomia de vontade é, portanto, o princípio do direito privado pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos. Seu campo de aplicação é, por excelência o Direito Obrigacional, aquele em que o agente pode dispor como lhe aprouver salvo disposição cogente em contrário.E quando nos referimos especifi camente ao poder que o particular tem de estabelecer as regras jurídicas de seu próprio comportamento, dizemos, em vez de autonomia da vontade, autonomia privada.Autonomia da vontade como manifestação de vontade individual no campo do Direito, psicológica, autonomia privada, poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas. Se quisermos tornar mais específi co o tema, podemos dizer que subjetivamente, autonomia privada é o poder de alguém de dar a si próprio u ordenamento jurídico e, objetivamente, o caráter próprio desse ordenamento constituído pelo agente em oposição ao caráter dos ordenamentos constituídos por outros.” (NORONHA, Fernando.O direito do contrato e seus princípios fundamentais. P. 113. Saraiva: 1994.)

Tal situação foi denominada dirigismo contratual do Estado.O dirigismo contratual dá-se através de normas gerais de conduta contratual

explicitadas pelo estado e que deverão ser aplicadas aos contratos.Com esse entendimento, que teve seu início, ou melhor, que teve seu reconhec-

imento legal na Constituição de 1988 e por conseguinte, com a promulgação do Novo Código Civil com a regra geral da função social do contrato, surgiu um novo modo de interpretação contratual, agora não mais tendo como baluarte imutável a autonomia de vontade e o não intervencionismo estatal, mas sim, através de princípios e normas que serão a seguir estudadas, o Estado passa a agir como regulador da atividade econômica a fi m de fazer com que a vulnerabilidade de uma parte na relação contratual seja equal-izada com a da outra, através da aplicação da função social do contrato, dos princípios contratuais e da visão constitucional do código civil.43

3. Releitura baseada no Estado Social de Direito

3.1 -Princípio da autonomia da vontade

O contrato, como já visto anteriormente, nasce de uma liberdade de contratar, liberdade esta que é denominada autonomia de vontade, ou como prefere Fernando Noronha, autonomia privada44.

Porém, a maioria dos doutrinadores opta pelo uso da expressão autonomia da vontade.

Conforme Maria Helena Diniz, é no princípio da autonomia da vontade que

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se funda o princípio da liberdade contratual, e este consiste no poder de estipular livre-mente mediante acordo de vontades, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.45

Segundo Silvio Rodrigues, o princípio da autonomia da vontade consiste na prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem relações na órbita do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que seus fi ns coincidam com o interesse geral ou não o contradigam.46

Tal sentimento ou princípio, como já relatado nesta monografi a, teve início ou fortaleceu-se na Revolução Francesa, onde a vontade das partes era sagrada em relação às obrigações patrimoniais representadas pelos respectivos contratos.

Pela teoria clássica, sempre haveria justiça quando fosse observado e aplicado o princípio da autonomia da vontade, como bem observa Darcy Bessone :

“Segundo a doutrina clássica, o contrato é sempre justo, porque se foi querido pelas partes, resultou da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes. Teoricamente, o equilíbrio das prestações é de presumir-se.Sendo justo o contrato segue-se que aos contratantes deve ser reconhecida ampla liberdade de contratar, só limitada por considerações de ordem pública e pelos bons costumes. Assim, enquanto forem observados esses limites, podem as partes convencionar aquilo que lhes aprouver, o que de resto constitui um aspecto da liberdade individual, consubstanciada no princípio de que é permitido tudo que não é proibido.Podem, portanto, discutir livremente todas as condições contratuais, celebrar contratos regulados por lei ou quaisquer outros inéditos que imaginem, escolher a melhor forma de declaração de vontade, fi xar os seus efeitos, etc.Nos dissídios que acaso se formem, a missão do juiz terá de circunscrever a apuração da vontade dos contratantes, em um processo de pura reconstituição.”47

Como se observa, o princípio da autonomia da vontade, pela teoria clássica, desde que não extravasasse o legalmente estabelecido, era um dogma a ser seguido pelas partes contratantes.

Assim, a única interpretação aceita na época da teoria clássica para a revisão dos contratos, ou mesmo o único motivo para interferência pública na esfera da liberdade privada das partes em negociação, era aquela que pudesse corrigir os vícios decorrentes dos equívo-cos e defeitos da manifestação subjetiva.48

A autonomia de vontade e conseqüente liberdade contratual devem ser vistas sob dois aspectos, o da liberdade de contratar propriamente dita, onde as partes de comum acordo estabelecem o conteúdo do contrato e a liberdade de contratar, que é a faculdade de realizar ou não determinado contrato, esta, mais utilizada ao se referir aos contratos de adesão.

Ocorre que, com a visão social que é reservada atualmente ao direito, e particular-mente às obrigações contratuais, esta autonomia da vontade deve ser revista para se adequar à contemporânea situação.

45 DINIZ, Maria Helena.Curso de direito civil brasileiro.Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. V 3. p 32.Saraiva.2002.46 RODRIGUES, Silvio. Direito civil.Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. V 3. p 15. Saraiva.2002. 47 BESSONE, Darcy. Do contrato. Teoria Geral. p 34.Forense. 198748 Tepedino, problemas de direito civil constitucional.p251.

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49 Luiz Díes Picasso e Antonio Gullón, citados por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, afi rmam que a autonomia privada deve sofrer os seguintes condicionamentos : a) da lei – a lei, manifestação maior do poder estatal, interfere no âmbito da autonomia privada, posto sem aniquilá-la,para salvaguardar o bem geral ; b) da moral – trata-se de uma limitação de ordem subjetiva, com forte carga ético-valorativa; c) da ordem pública – também este conceito, que mais se relaciona com a estabilidade ou segurança jurídica, atua na ausência de normas imperativas, impondo a observância de princípios superiores, ligados ao direito, ã política e a economia.”( GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 43. saraiva. 200550 Ob. Cit. p. 43.51 DINIZ, Maria Helena.Curso de direito civil brasileiro.Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. V 3. p 36.Saraiva.2002.

Assim, a solidifi cação da função social do contrato fortalecida ou até mesmo desenvolvida através do estado social de direito, fez com que a autonomia de vonta-de sofresse alguns condicionamentos, para não ser mais absoluta e assim causar dese-quilíbrio econômico entre as partes.49

Por tal entendimento, atualmente ligado ao Estado Social de Direito e não mais ao Estado Liberal, a liberdade contratual sofre limitações por preceitos de ordem pública, que conforme Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, constituem três modalidades distintas que podem ser compreendidas da seguinte forma:

“ a) a própria liberdade de contratar: em regra ninguém pode ser forçado a celebrar um negócio jurídico, pois isso importaria em um vício de consentimento a macular a validade da avença. Numa evidente fl exibilização de tal regra ( o que já mostra que nenhum princí-pio poder ser encarado seriamente como uma verdade absoluta para toda e qualquer situação, mas sim somente como uma verdade socialmente aceita, enquanto socialmente aceita), o direito positivo consagrou algumas situações de contratação obrigatória, como por exemplo, em determinadas modalidades securitárias; b) a mencionada liberdade de com quem contratar: aqui, também, se visualiza uma ressalva, quando se verifi ca , por exemplo, a ocorrência de um monopólio na prestação de serviços, o que, por outro lado, também é hodiernamente combatido por normas de direito econômico, na busca da realização da livre concorrência, princípio constitucional esculpido no art. 170, IV, da Carta de 1988; c) a liberdade de estabelecimento do conteúdo do contrato, ou seja, a liberdade para escolher o que vai contratar. Da mesma forma, constata-se facilmente uma limitação de tal modalidade do fenômeno do dirigismo contratual, sendo o contrato individual de emprego o exemplo mais evidente disso, uma vez que seu conteúdo mínimo é todo estabelecido no sistema brasileiro, por normas constitucionais ( art. 7 da CF) e infraconstitucionais ( CLT e legislação complementar.)”50

Pode-se observar, então, que o dirigismo contratual afetou a autonomia de vontade, em seu plano contratual, sendo que a mesma não é mais absoluta, mas sim rela-tiva, pois deve ser aplicada conjuntamente com os demais princípios a seguir estudados e, ainda, conjuntamente com a função social do contrato.

3.2. Princípio do consensualismo

Segundo Maria Helena Diniz o princípio do consensualismo prega que o sim-ples acordo de duas ou mais vontades basta para gerar um contrato válida.51

Mas nem sempre foi assim.

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Nas civilizações anteriores, como Roma por exemplo, dominavam o formal-ismo e o simbolismo.52

No direito hodierno, o acordo de vontades é sufi ciente para a perfeição do con-trato, desde que se trate de contratos consensuais que não tenham sua validade condicio-nada à realização de solenidades estabelecidas por lei ou só se perfazendo se determinada exigência for cumprida, que são no caso os contratos solenes e os contratos reais.53

Autores há que entendem que o princípio do consensualismo pode ser enten-dido como uma interpretação da bilateralidade ao princípio da autonomia da vontade, opinião esta que discordamos, visto que a autonomia da vontade é questão de liberdade de escolha e o consensualismo trata-se de pré-requisito para validade do contrato.54

3.3. Princípio da obrigatoriedade das convenções

Dentro da concepção clássica, baseada no liberalismo, que por sua vez é fun-dado nos princípios do Estado Liberal de Direito, o princípio da obrigatoriedade da convenção ou do contrato consagra a idéia de que o contrato, uma vez obedecidos os requisitos legais, torna-se obrigatório entre as partes, que dele não se podem desligar senão por outra avença. Assim, o contrato constitui uma espécies de lei entre as partes, representado pela pacta sunt servanda.55

Percebe-se que tal entendimento acerca do princípio da obrigatoriedade dos contratos nos foi legado pelo liberalismo e, como não podia deixar de ocorrer, houve também uma evolução em tal entendimento.

Mas, primeiramente, antes de fazermos esta distinção, transcorreremos sobre o princípio.

Segundo Maria Helena Diniz, pelo princípio da obrigatoriedade dos contratos, as estipulações feita pelas partes devem ser fi elmente cumpridas, sob pena de execução patrimonial do inadimplente. Por ser o ato negocial uma norma jurídica que constitui lei entre as parte, é intangível, a menos que haja descumprimento por caso fortuito ou força maior ou rescisão voluntária por ambas as partes. Ensina a professora que se não houver essas prerrogativas, o contrato não poderá ser revisto ou rescindido nem mesmo pelo judiciário, mas, tem-se admitido conter a força vinculante ou obrigatoriedade dos

52 Orlando Gomes relata: “A evolução do Direito contratual em Roma prova que o ritual tinha importância decisiva. Os contratos reais realizavam-se per aes et libram , solenidade executada pelos libriprens, que consistia no ato simbólico de pesar numa balança. Os contratos verbais, pela stipulatio. Os contratos literais só se perfaziam com relação a um escrito – litteris-, o quão não existia apenas para a prova, mas para lhe dar existência. Formavam-se pelas nomina transcripta e pelos chirographa e syngraphae. Somente nos contratos consensuais chegaram a admitir formação pelo simples consentimento.Eram, porém, de úmero escasso.”( GOMES, Orlando. Contratos. 10 ed. P 37.Forense: 1984). 53 GOMES, Orlando. Contratos. 10 ed. P 37.Forense: 1984.54 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 43. saraiva. 200555 RODRIGUES, Silvio. Direito civil.Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. V 3. p 15. Saraiva.2002.

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56 DINIZ, Maria Helena.Curso de direito civil brasileiro.Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. V 3. p 41.Saraiva.200257 GOMES, Orlando. Contratos. 10 ed. P 38.Forense: 1984.

contratos através do poder judiciário quando fi carem caracterizadas certas circunstâncias excepcionais ou extraordinárias que impossibilitem a previsão de excessiva onerosidade no cumprimento da prestação.56

Tal entendimento é correto para se manter a ordem jurídica, visto que se for desrespeitado sem nenhuma prerrogativa afetaria profundamente a segurança social.

Ainda, para relatar um conceito baseado mais em no Estado Liberal e não no Estado Social, citamos Orlando Gomes:

“O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários a sua validade devem ser executados pelas partes como se suas cláusulas fos-sem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente seu conteúdo, vale dizer defi nidos os direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas tem, para os contratantes, força obrigatória.Diz-se que é intangível, para signifi car-se a ir-retratabilidade do acordo de vontades. Nenhuma consideração de equidade justifi caria a revogação unilateral do contrato ou alteração de suas cláusulas, que somente se permitem mediante novo concurso de vontades.O contrato importa restrição voluntária da liber-dade; cria vínculo do qual nenhuma das partes pode desligar-se sob o fundamento de que a execução a arruinará ou de que não o teria estabelecido se houvesse previsto a alteração radical das circunstâncias.As cláusulas contratuais não podem ser alteradas judicialmente, seja qual for a razão in-vocada por uma das partes Se ocorre motivos que justifi cam a intervenção judicial em lei permitida, há de realizar-se para decretação da nulidade ou resolução do contrato nunca para modifi cação de seu conteúdo.”57

Nota-se que tal entendimento demonstra-se baseado no Estado Liberal e no individualismo, onde o as partes levavam a ferro e fogo o pactuado não aceitando nem exceções que porventura possam ocorrer.

Deve-se levar em conta que nenhum princípio é indiscutivelmente comple-to a ponto de não sofrer exceções.

Claro que o pactuado deve ser respeitado para manter a ordem social e a segurança jurídica, mas levar tal princípio ao entendimento de que o mesmo é irre-versível seria o mesmo que desacreditar na justiça e voltar no tempo, pois não estaria aplicando no caso, o novo entendimento contratual.

Com o fortalecimento da visão social do direito, cumulada com a função social, óbvio torna-se a possibilidade da revisão do conteúdo do contrato, principal-mente quando se torna impossível o cumprimento do contrato por caso fortuito ou força maior que venha a causar onerosidade excessiva a uma das partes.

Por tal entendimento não se pode mais falar em absoluta obrigatoriedade se não há, em contrapartida, idêntica liberdade contratual entre as partes; por isso o

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estado atenuou o extremismo do princípio da obrigatoriedade, exatamente para fazer valer a igualdade substancial das partes.58

Assim, vemos que o princípio também teve uma evolução, sendo que o mesmo continua sendo imprescindível para a realização contratual, mas não mais é irreversível, como bem demonstra Mônica Yoshizato Bierwagen :

“A suavização do princípio da obrigatoriedade, no entanto, não signifi ca o seu desapare-cimento Continua sendo imprescindível que haja segurança nas relações jurídicas criadas pelo contrato, tanto que o Código civil de 2002, ao afi rmar que o seu descumprimento acarretará a inadimplente a responsabilidade não só por perdas e danos, mas também por juros, atualização monetária e honorários advocatícios ( art. 389), consagra tal princípio, anda que implicitamente.O que não se tolera mais é a obrigatoriedade quando as partes se encontram em patamares diversos e dessa disparidade ocorra proveito injustifi cado.59

Por fi m, pode-se notar que o princípio da obrigatoriedade do pactuado, as-sim como qualquer princípio contratual, teve sua base modifi cada pela visão social do direito.

3.4. Princípio da relatividade dos efeitos do contrato

Pela teoria clássica, princípio da relatividade dos efeitos dos contratos, o pac-tuado não poderá afetar a terceiros.

De regra, não poderá nem prejudicar e nem interferir nas relações entre ter-ceiros.

Para Silvio Rodrigues, o princípio da relatividade das convenções contém a idéia de que os efeitos do contrato só se manifestam entre as partes, não aproveitando e nem prejudicando terceiros, o que é perfeitamente lógico, visto que o vínculo contratual emana da vontade das partes , tornando-se natural que terceiros não possam fi car atados a uma relação jurídica que lhes não foi imposta pela lei e nem derivou de sua vontade.60

Para Maria Helena Diniz, pelo princípio da relatividade dos efeitos do negócio jurídico, o contrato não prejudica e nem aproveita a terceiros, vinculando exclusiva-mente as partes que nele intervieram, pois o ato negocial deriva do acordo de vontade das partes, sendo lógico que apenas as vincule, não tendo efi cácia em relação a terceiros, sofrendo, porém, algumas exceções.61

Óbvio que o contrato ao ser interpretado quanto à sua existência, é um fato que não pode ser indiferente a outras pessoas, às quais se torna oponível. O que se con-sidera limitado no contrato com relação a terceiros são seus efeitos internos, que nada mais são do que os direitos e obrigações dos contratantes.62

58 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil. P 28. Saraiva: 2002.59 Ob. Cit. p 30.60 RODRIGUES, Silvio. Direito civil.Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. V 3. p 17. Saraiva.2002.61 DINIZ, Maria Helena.Curso de direito civil brasileiro.Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. V 3. p 39.Saraiva.200262 GOMES, Orlando. Contratos. 10 ed. P 43.Forense: 1984

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63 Mônica Yoshizaco Bierwagem relata: “Essa conclusão, de fato, é coerente com o modelo clássico de contrato, cujo escopo era a satisfação de necessidade exclusivamente individuais das partes; daí tanto ser inadmissível que o contrato venha a operar efeitos sobre terceiros, como também que terceiros possam intervir nessa relação. Esta, aliás, é a posição do Código Civil de 1916, que assim dispõe em seu artigo 928 : “A obrigação, não sendo personalíssima, opera assim entre as partes, como entre seus herdeiros”, embora preveja a título de exceção, as estipulações em favor de terceiro ( arts. 1.098 a 1100)”. ( BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil. P 32. Saraiva: 2002)64 Ob. Cit. p.33.65 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho ensinam : “Todavia existem fi guras jurídicas que podem excepcionar esta regra. É o caso , por exemplo, da estipulação em favor de terceiro e do contrato com pessoa a declarar. Por meio da primeira previsão, uma parte convenciona com o devedor que este deverá realizar determinada prestação em benefício de outrem, alheio à relação jurídica obrigacional original. Na mesma linha, o contrato com pessoa a declarar é uma fi gura contratual consagrada expressamente pelo novo Código Civil, consistindo, em verdade, em uma promessa de prestação de fato de terceiro, que também titularizará os direitos e obrigações decorrentes do negócio, caso aceite a indicação realizada.” (GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 46. saraiva. 2005) 66 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil.

Percebe-se que tal entendimento ainda está arraigado ao pensamento que prev-aleceu no Estado Liberal de Direito.63

Ocorre que, como todo princípio contratual, este também deve ser revisto, tendo como base uma visão de acordo com o Estado Social de Direito. É o que nos ensina Mônica Yoshizato Bierwagem:

“Essa concepção no entanto foi relativizada no novo Código Civil, que, inspirado no princípio da socialidade, não concebe mais o contrato apenas como um instrumento de satisfação de fi nalidades egoísticas dos contratantes, mas reconhece-lhe um valor social, alinhado ao movimento da funcionalização dos direitos subjetivos ao qual se refere Judith Martins Costa. E nessa trilha,ao fi xar a função social como limite de liberdade contratual, não poderia deixar de admitir, por conseguinte, a operatividade dos efeitos dos contratos sobre terceiros, no caso, a coletividade.” 64

No entanto, mesmo entendendo o princípio sob o prisma do liberalismo, abrem-se duas exceções à regra: quando se tratar de estipulação em favor de terceiros e do contrato com pessoa a declarar, que constará nesta monografi a apenas como parâmetro de situação, pois não é sobre os contratos em espécie que recai o presente estudo.65

3.5. Princípio do não enriquecimento sem causa

Enriquecimento sem causa corresponde na obtenção de uma vantagem sem a respectiva causa ou, em outras palavras, é o acréscimo patrimonial sem motivo juridica-mente reconhecido.66

Óbvio é que no direito das obrigações, e isto inclui as obrigações contratuais, deve haver um motivo para a circulação de riquezas.

Motivo este que deve ser entendido como causa, e circulação de riquezas está ligada a enriquecimento.

Assim, para que haja um enriquecimento de uma parte, necessário se faz que

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exista um motivo legal ou ao menos pactuado que o motive, para que assim seja garan-tida a justiça contratual.

Como ensina Mônica Yoshizato Bierwagen, no sistema do novo Código Civil a disciplina da proibição ao enriquecimento sem causa exige o cumprimento de cinco requisitos :a) ocorrência do enriquecimento de uma parte ;b) o correspondente empo-brecimento da outra; c) nexo causal entre esses dois eventos; d)que o acréscimo seja sem justa causa; e) que não haja outro meio para a restituição do indevido.67

Pela interpretação de tais requisitos, pode-se observar através da aplicação da função social, e mais, quando houver onerosidade excessiva a uma das partes, o contrato poderá ser revisto, até em seu conteúdo, assim, provando mais uma vez a relativização dos princípios contratuais, mais particularmente o princípio da obrigatoriedade dos con-tratos.

Mas a esse entendimento de que o enriquecimento deve ser correspondente às partes não é deveras lógico, pois se uma parte sofrer uma alteração a mais em seu patrimônio decorrente do cumprimento do pactuado e a outra atingir seus objetivos esperados sem ocorrer uma despatrimonialização correspondente ao plus atingido pela outra, não haverá que se falar em enriquecimento ilícito ou sem causa, pois neste caso, embora haja o nexo causal entre a prestação e a contra prestação, o plus da parte benefi -ciada não prejudicou a outra parte contratante, não ocorrendo neste caso um empobre-cimento injustifi cado correlato a um empobrecimento também injustifi cado.

3.6. Princípio da equivalência das prestações

O contrato, como já foi estudado, em síntese corresponde a uma relação obrigacional onde as partes se comprometem a uma obrigação e uma correspondente co-obrigação como forma de equalizar a situação.

Assim, com relação à comutatividade do contrato, deve haver uma relação de equivalência entre as obrigações pactuadas, como relata Mônica Yoshizato Bergwagem:

“Com relação à comutatividade dos contratos, muitos autores chamam a atenção para a desnecessidade de haver uma relação de equivalência objetiva, vale dizer, as prestações não precisam ser rigorosamente de mesmo valor, mas devem corresponder simplesmente as expectativas que as partes tinham a seu respeito ( equivalência subjetiva ). Assim , se alguém troca automóvel novo por um velho , ou se vende uma valiosa jóia a preço de bijuteria tais opções interessam somente aos contratantes, não só porque no mais das vezes seja impossível estabelecer uma rigorosa igualdade entre prestação e contrapresta-ção, mas principalmente por que cada uma sabe de suas necessidades e por isso deve ter a liberdade de gerir seu bens como melhor lhe convir.68”

O acima descrito é basicamente o princípio da equivalência das prestações, onde as obrigações pactuadas devem ter uma relação de equivalência.

Mas nem sempre foi assim.

67 Ob. Cit. p 5768 Ob. Cit. p 64.

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69 Ob. Cit. p. 6470 GOMES, Rogério Zuel. Teoria Contratual contemporânea : função social do contrato e boa fé. P 117. Forense : 2004.

Pela concepção clássica, infl uenciada pelo Estado Liberal, o estabelecimento do contrato com obrigações exageradamente desproporcionais era plenamente válido, pois os contratantes, em seus próprios interesses, não poderiam ser obstados a exercer essa liberdade.69

No entanto, com a evolução do Estado Liberal para o Estado Social, e com a conseqüente releitura dos princípios basilares de direito, especialmente pelo recon-hecimento de que a igualdade meramente formal não tinha condições de manter essa “desigualdade” na liberdade de contratar, o princípio da equivalência das prestações to-mou força, através de um intervencionismo do estado e através da razoabilidade das prestações, da teoria da imprevisão e principalmente da função social do contrato, man-tendo-se uma real equivalência entre as prestações.

Pode-se assim alegar que até os contratos aleatórios podem ser revistos pelos mesmos fundamentos aqui apresentados, mas tal matéria será objeto de estudo no último capítulo desta monografi a.

3.7. Princípio da boa-fé

Conceituar boa-fé torna-se difícil pelo modo como ela é entendida : uma nor-ma geral de conduta.

Para entendermos o que a boa-fé signifi ca e como deve ser aplicada, devemos antes fazer um resumo de sua evolução histórica, mas somente do conceito dos tempos de Roma, passando rapidamente pelos códigos antecedentes ao novo Código Civil até chegarmos ao presente entendimento.

A noção de boa-fé encontra sua base no direito romano e constitui-se pela base lingüística e conceitual da fi des romana.70

A expressão boa-fé ( bonas fi des) encontra sua origem no direito romano e se constituía como requisito para a realização de vários negócios jurídicos, a aquisição da propriedade por usucapião, ou, posteriormente como cláusula inserida na fórmula do pretor.

Como não existiam leis para suportar a demanda dos negócios que aumen-tavam com a expansão do império romano, para os negócios realizados eram feitos documento- formulários- entre as partes, com o auxílio do juiz que posteriormente seria julgado pelo iudex.

Conforme relata Rogério Zuel Gomes:

“ E função da especial preocupação dos romanos mais com a pratica do que com a teoria, não há no direito romano a formulação expressa de um princípio da boa-fé.Entretanto, consistia os bonae fi dei iudicia num alargamento do espectro de avaliação do iudex, du-rante o período formulário, que extrapolava a avaliação unicamente com base no período

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escrito.Com a expansão do império Romano, aumentou-se signifi cativamente o volume de negócios , não só entre romanos, como entre eles e estrangeiros, justifi cando a ne-cessidade de correção de excessos formais do antigo sistema.”71

Assim, como se pode observar, a boa-fé no direito romano tinha valor eqüita-tivo de interpretação, levando em conta a ausência de dolo entre as partes.

Com o passar do tempo a boa-fé foi evoluindo até que sua forma objetiva estabeleceu-se no Código Civil Alemão, onde sua fórmula baseia-se na trued und glauben que signifi ca lealdade e crença.72

A boa-fé germânica não levava em consideração o estado de ciência sobre de-terminada relação jurídica, mas sim era muito mais afeita aos rituais sociais e a sua exteri-oridade, por isso passou-se a denomina-la boa-fé objetiva, ao contrário da subjetiva.Para essa espécie de boa-fé, o que passa a ser fundamental é o julgamento de opinião pública, disso resulta sua objetividade, de modo que se poderá aferir se determinada conduta se deu de boa ou ma fé, com base no comportamento de pessoas externamente aferível.73

Mas, pode-se observar que, como qualquer outro princípio, existe a leitura do mesmo sob o prisma do Estado Liberal e outra sob infl uência do Estado Social.

Tal entendimento de acordo com o Estado Social começou a se desenvolver no primeiro pós- guerra, na Alemanha, com o esmaecimento do liberalismo e o surgimento de novas demandas sociais, conferindo assim uma nova concepção do princípio da boa fé e uma maior fl exibilização ao sistema fechado ao qual se inseria, resultando em sua tríplice função : via para uma adequada realização pelo juiz segundo seu plano de valo-ração do caso concreto; como máxima de conduta ético jurídica e como meio de ruptura ético jurídica do direito privado.

Pela breve síntese apresentada acima, pode-se ter uma idéia de onde se origi-nou a boa-fé utilizada pelo novo Código Civil.

Com relação aos contratos, deve-se destacar que o dever de guardar conduta proba e de boa-fé nas diversas fases de formação e execução do contrato não representa inovação no direito dos contratos, mas sim a novidade se encontra na inclusão da boa fé no texto legal, pois antes era tido como princípio implícito no ordenamento jurídico.74

Assim, no âmbito do contrato, o princípio da boa-fé sustenta o dever das partes agirem conforme a economia e a fi nalidade do contrato, de modo a conservar o equilíbrio substancial e funcional entre as obrigações correspectivas que formaram o si-nalagma contratual. Por outro lado, é também a boa-fé que impede o exercício arbitrário do direito de estipular livremente as cláusulas e condições do contrato, ou seja, o princí-pio geral da boa-fé, de forma ampla e genérica, impõe ao indivíduo o dever de conduta honesta reta, leal, com consideração para com os interesses do outro, visto como um

71 Ob.cit. p119. 72 Ob. Cit. p 131.73 Ob. Cit. p 13374 MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. Revista Forense : A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo Código Civil Brasileiro.p 11.v 364. dez/ 2002. Forense.

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75 Ob. Cit. p 11-12.76 DINIZ, Maria Helena.Curso de direito civil brasileiro.Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. V 3. p 39.Saraiva.200277 Ob. Cit. p 4078 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. v II.p 217. 3 ed. Atlas:2003 79 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato.p 48. Renovar : 2002

membro do conjunto social que é juridicamente tutelado, aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação obrigacional.75

Como visto, o princípio da boa-fé esta intimamente ligado não só a interpreta-ção do contrato- pois, segundo ele, o sentido literal da linguagem não deverá prevalecer sobre a intenção inferida na declaração de vontade das partes- mas também ao interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes deverão agir com leal-dade e confi ança recíprocas, isto é, proceder com boa-fé.76

Segundo o princípio da boa-fé, para Maria Helena Diniz, na interpretação do contrato é preciso ater-se mais à intenção do que ao sentido literal da linguagem, e, em prol do interesse social de segurança das relações jurídicas, as partes deverão agir com lealdade e confi ança recíprocas, auxiliando-se mutuamente na formação e execução do contrato.77

Para Silvio de Salvo Venosa, o princípio da boa-fé se estampa pelo dever das partes de agirem de forma correta antes, durante e depois do contrato, isso porque, mes-mo após o cumprimento de um contrato, podem sobrar-lhes efeitos colaterais. Importa assim examinar o elemento subjetivo em cada contrato, ao lado da conduta objetiva das partes. A parte contratante pode estar já, de início, sem a intenção de cumprir o contrato, antes mesmo de sua elaboração. A vontade de descumprir pode ter surgido após o con-trato, pode ocorrer que a parte, posteriormente, veja-se em situação de impossibilidade do cumprimento, cabendo assim ao juiz examinar cada caso se o descumprimento deco-rre de boa ou má-fé.78

Tem-se ainda que levar em consideração o sentimento de confi ança que é gera-do entre as partes na relação obrigacional.

Pela confi ança gerada pelas partes na relação contratual, os sujeitos têm condições de projetar suas atuações conforme um conjunto relativamente pequeno de possibilidades, excluindo do seu planejamento aquilo que confi a- mais do que espera – que não acontecerá.79

Assim relata Jorge Cesa Ferreira da Silva:

“ A boa-fé foi então conduzida e reconduzida a uma série de efi cácias, prévias à consti-tuição do vínculo, contemporâneas da execução e até posteriores à realização da presta-ção, que, na idéia de confi ança, encontraram um de seus mais importantes fundamentos materiais. Foi entendida contra a boa-fé a conduta do sujeito que, antes do nascimento do vínculo ( com as expressas declarações de vontade ) rompe injustifi cadamente as ne-gociações tão fortemente entabuladas com a outra parte ao ponto de gerar nesta, fundada expectativa na conclusão das negociações.Também foi compreendida contra a boa-fé

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a conduta do sujeito que contraria a continuidade de sua própria e corriqueira atuação, fazendo uso de algum direito subjetivo a que, presumivelmente, havia renunciado. No mesmo sentido foi entendida a atuação daquele que revela, para o novo contratante, segredos ou processos de antigo. Como se percebe, todas essas condutas, contrárias à boa-fé, são diretamente contrárias à noção de confi ança.”80

Entende-se assim que a confi ança é um dos alicerces da boa-fé, e que contrari-ando diretamente a confi ança gerada, estará agindo de má-fé a parte que assim se dispôs.

Ainda em relação à boa-fé, necessário se faz explicar a distinção entre a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva .

A boa-fé subjetiva, presente no Código de 1916 e também do novo Código Civil, refere-se a aspectos internos do sujeito, ao estado de desconhecimento ou com-preensão equivocada a respeito de determinado fato.81

Consiste em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivencia dada situação sem ter ciência do vício que a inquina.82

Em geral, esse estado subjetivo deriva do reconhecimento da ignorância do agente a respeito de determinada circunstância, como ocorre na hipótese do possuidor de boa-fé que desconhece o vício que macula a sua posse.

Como nos ensina Fernando Noronha:

“ A boa-fé subjetiva, ou boa-fé crença, é um estado – um estado de ignorância sobre características da situação jurídica que se apresenta, suscetíveis de conduzir à lesão de direitos de outrem. Na situação de boa-fé subjetiva, uma pessoa acredita ser titular de um direito, que na realidade não tem, por que só existe na aparência. A situação de aparência gera um estado de confi ança subjetiva, relativa à estabilidade da situação jurídica que permite ao titular alimentar expectativas, que crê legítimas.”83

Nota-se portanto, que a boa-fé subjetiva é aquela que esta arraigada intrín-

sicamente ao indivíduo, onde, psicologicamente, o mesmo o acredita estar agindo de maneira correta e da mesma forma acredita que o praticante da contraprestação assim agirá também.

A boa-fé objetiva, como relata Monica Yoshyzato Bierwagem, é a grande novi-dade do novo código civil, que subverte e transforma o direito obrigacional clássico, pois diferentemente da boa-fé subjetiva, que se refere a aspectos internos do sujeito, estabelece um padrão de comportamento externo, vale dizer, impõe um modo de agir consentâneo ao homem probo, leal, honesto, correto.84

80 Ob cit. p 48-49.81 B. iegwgaem. P 4982 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 73. saraiva. 200583 NORONHA, Fernando.O direito do contrato e seus princípios fundamentais. P. 132. Saraiva: 1994.84 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil. P 50. Saraiva: 2002

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A boa-fé objetiva – a qual tendo natureza de princípio jurídico –delineado em um conceito jurídico indeterminado, consiste em uma verdadeira regra de comporta-mento, de fundo ético e exigibilidade jurídica.85

Segundo Fernando Noronha:

“Se a boa-fé subjetiva é um estado, a objetiva, ou boa-fé como regra de conduta, é um dever – dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade, para, como veremos na exposição subsequente, não frustrar a confi ança legítima da outra parte.Esta boa fé objetiva também é designada de boa-fé lealdade, expressão que enfatiza o dever de agir que impende sobre cada uma das partes. Outra designação, que também lhe é dada, é a da confi ança, que realça a fi nalidade do princípio da boa-fé: a tutela das legíti-mas expectativas da contra parte,para garantia da estabilidade e segurança das transações. Trata-se, porém, de expressão a evitar por que também a boa-fé subjetiva tutela uma situação de confi ança.Realmente, de forma similar à subjetiva tem na sua base uma idéia de confi ança, a necessi-dade de tutelar esta. Só que, enquanto na boa-fé subjetiva se tutela a confi ança de quem acredita numa situação aparente, na objetiva tutela-se de quem acreditou que a outra parte procederia de acordo com os padrões de conduta exigíveis. Como se vê, em ambas existe um elemento subjetivo, representado pela confi ança de alguém que acreditou em algo, mas só na boa fé objetiva existe um segundo elemento, que é o dever de conduta de outrem.”86

Assim, percebe-se que a boa-fé objetiva necessita primeiramente de uma presta-ção e de uma contraprestação, ou seja, para se valer do princípio da boa-fé é necessária a existência de duas partes agindo de acordo com o que lhes impõe os deveres de con-duta.

Entendendo-se que a boa-fé objetiva é a normativação dos deveres de conduta – deveres estes já mencionados durante a explanação – pensa-se no comportamento exigível do bom cidadão, do profi ssional competente, de um modelo abstrato de pessoa, razoavelmente diligente, que costuma ser traduzido pela noção de bônus pater famílias ( bom cidadão, em Roma).

Portanto, se a boa-fé objetiva é dever de agir de acordo com determinados padrões, nela é preciso verifi car também a situação das contrapartes, pois em cada caso é necessário ver se estavam reunidas as condições sufi cientes para criar na contraparte um estado de confi ança no negócio celebrado, para poder a expectativa ser tutelada.87

Sendo, portanto, através da boa-fé objetiva que se extrai suas funções.A primeira função da boa fé é a sua função interpretativa e de colmatação.88

Conforme expressa o artigo 113 do Novo Código Civil: os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

85 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 73. saraiva. 200586 NORONHA, Fernando.O direito do contrato e seus princípios fundamentais. P. 136. Saraiva: 1994. 87 Ob. Cit. p 138.88 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 73. saraiva. 2005

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Pelo que se pode observar, o jurista tem na aplicação do princípio da boa-fé objetiva, um referencial hermenêutico seguro, para que se possa extrair da norma, objeto de sua investigação, o sentido moralmente mais recomendável e socialmente mais útil.89

Com isso, percebe-se que a regra de interpretação dos contratos desdobra-se em duas perspectivas: quando os contratos devem ser interpretados de acordo com seu sentido objetivo, salvo quando o destinatário saiba a vontade real do declarante, ou quando devesse conhece-la se agisse com razoável diligência e, quando o próprio sentido objetivo suscite duvidas, onde se deverá preferir o signifi cado que a boa fé aponte como mais razoável.90

Exposto desta forma, a função de interpretação da boa fé é também denomi-nada como função hermenêutico-integrativa do princípio da boa-fé, onde na interpreta-ção da extensão da relação, a boa-fé será instrumento destinado a suprir lacunas e fl exi-bilizar a vontade declarada (limita a autonomia da vontade), servindo de regra objetiva que concorre para determinar o comportamento devido.91

Para explicar melhor tal entendimento, descreve-se o entendimento de Adriana Mandim Theodoro de Mello:

“A interpretação integrativa, segundo a boa-fé, tem lugar quando o aplicador do direito não encontra nem no contrato, nem na lei, previsão da situação concreta que venha, eventualmente, a se verifi car no decurso da relação obrigacional.Ou ainda quando se imponha restrição às prerrogativas de uma das partes que, analisadas de forma isolada e desvinculada da economia do contrato, poderiam autorizar conduta contrária aos lícitos interesses econômico-sociais que se perseguem com o negócio.” 92

Finalizando o raciocínio, a mesma autora cita que na interpretação dos con-tratos deixa-se de buscar a verdadeira vontade das partes declaradas, para se tornar uma interpretação da regulação objetiva criada com o contrato, ou seja, a descoberta do sentido total da regulação, respeitando-se tanto a sua fi nalidade econômica quanto sua função social.93

Raciocínio que discordamos de certa forma, pois a interpretação pelo princípio da boa-fé deve sim buscar a verdadeira vontade das partes e se esta não for conseguida, aí sim deve-se interpretar o sentido total da regulação, mesmo em se tratando de boa-fé objetiva.

A próxima função da boa-fé objetiva a ser estudada é a boa-fé como fonte de deveres de conduta94, ou, função criadora de deveres jurídicos anexos ou de proteção95.

89 Ob. Cit. p 7890 NORONHA, Fernando.O direito do contrato e seus princípios fundamentais. P. 153. Saraiva: 1994. 91 MELLO, Adriana Mandim Theodoro de.Revista Forense : A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo Código Civil Brasileiro.p 12.v 364. dez/ 2002. Forense 92 Ob. Cit. p 12.93 Ob. Cit. p 1294 Ob. Cit. p1395 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 73. saraiva. 2005

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96 Fernando Noronha nos ensina: “É partindo da análise do conteúdo da relação obrigacional complexa ou sistêmica, que se encontram inúmeros deveres de conduta, que tem todos como pressupostos a necessidade de agir de acordo com a boa fé. Se tais deveres de conduta que se designam de deveres acessórios, laterais ou correlatos- segundo uma classifi cação de origem germânica, que se vai expandindo, mas experimentando ainda difi culdades na fi xação não só de seus limites, como de uma terminologia única.De acordo com a classifi cação que parece mais difundida há que distinguir na obrigação em geral, e na relação contratual em especial,deveres de prestação e meros deveres de conduta. Os primeiros traduzem-se em prestações exigíveis e subdividem-se em deveres primários e secundários.Os outros , também chamados de deveres acessórios ou laterais, não dizem respeito a prestações específi cas, revelando-se apenas na medida em que sejam necessários para a realização das fi nalidades da própria relação obrigacional.”(NORONHA, Fernando.O direito do contrato e seus princípios fundamentais. P. 160. Saraiva: 1994)97 MELLO, Adriana Mandim Theodoro de.Revista Forense : A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo Código Civil Brasileiro.p 13.v 364. dez/ 2002. Forense 98 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 73. saraiva. 2005

O artigo 422 do Código Civil dispõe: os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa fé.

Pela leitura do artigo, percebe-se que a lei, através da aplicação da probidade e da boa-fé, cria deveres para as partes.

Tais deveres são denominados secundários da prestação ou deveres laterais.96

Ou seja, conforme defi ne Adriana Mandim Theodoro de Mello:

“Em outras palavras, estes deveres já não interessa diretamente ao cumprimento da prestação ou dos deveres principais, antes ao exato processamento da relação obrigacio-nal, ou, dizendo de outra maneira, à exata satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional complexa.Mota Pinto defi ne os deveres laterais como deveres de adoção de determinados com-portamentos, impostos pela boa fé em vista do fi m do contrato (... ) dada a relação de confi ança que o contrato fundamenta, comportamento variáveis com as circunstâncias concretas da situação.”97

Entende-se assim, que tais deveres servem para embasar a interpretação do contrato, sem entrar no mérito da obrigação, mas são deveres de conduta que os contra-tantes devem ter antes, durante e depois da conclusão do contrato.

O rol de deveres não é taxativo, mas como exemplos podemos determinar o dever de lealdade e confi ança recíprocas, que já foram estudados anteriormente; dever de assistência ou de cooperação, que determina que os contratantes devem colaborar para o correto adimplemento do contrato; dever de informação, que trata de uma imposição moral e jurídica aos obrigados de comunicar à outra parte todas as características e cir-cunstâncias do negócio, e bem assim, do bem jurídico que é seu objeto, por ser impera-tivo de lealdade entre os contraentes; dever de sigilo ou confi dencialidade, que embora possa não estar pactuado, exige-se tal comportamento das partes98; deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado aconselhar o seu cliente acerca das melhores pos-

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sibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu interesse, ou, a do consultor fi nanceiro de avisar a contraparte sobre os riscos que corre,etc; dever de prestar contas; deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contra-parte; etc...99

Pelo exposto acima, consegue-se ter uma idéia do que são os deveres laterais e os secundários de prestação que são abrangidos pela boa fé.

A terceira função da boa-fé objetiva está descrita no artigo 187 do Código Civil: também comete ato ilícito o titular de direito que, ao exercê-lo excede manifesta-mente os limites impostos pelo seu fi m econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.100

Devem as partes agir de forma moderada a fi m de exercitarem seus direitos101, conforme ensina Adriana Mandim Theodoro de Mello, ao relatar que tal dever tem pre-ceito constitucional:

“A Constituição Federal brasileira consagra, em se artigo 170, dentre os princípios in-spiradores da ordem econômica, a função social da propriedade. E o contrato enquanto veículo de circulação de riquezas, logicamente, há de seguir tal imperativo. A boa-fé será, nossa ordem de idéias, o limite objetivo imposto ao exercício dos direitos subjetivos, inclusive a liberdade de contratar, instrumento de realização da sua função social.”102

Tal função da boa-fé objetiva visa evitar abuso de direito oriundo do dese-quilíbrio de forças sócio-econômicas das partes contratantes, que resulte em poder de exercício unilateral e abusivo da autonomia da vontade.Assim, como já estudado ante-riormente, há a necessidade da intervenção estatal através do legislador ou através do judiciário para se evitar injustiças.

O exposto até aqui nada mais é do que uma brevíssima síntese do que se en-tende por boa-fé nos dias atuais.

E para fi nalizarmos tal entendimento, transcreve-se entendimento de Larissa Maria de Moraes Leal onde a autora delimita muito bem a contribuição e a função da boa-fé em relação às obrigações contratuais:

“A contribuição da boa-fé na seara contratual divide-se em três momentos: inicialmente, pode ser verifi cada quando, ao imputar normas de conduta aos contratantes, coíbe pre-tensões abusivas das partes transformando-se em hábil mecanismo de proteção preven-

99 MELLO, Adriana Mandim Theodoro de.Revista Forense : A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo Código Civil Brasileiro.p 14.v 364. dez/ 2002. Forense100 A disposição do artigo 187 embora não esteja localizada no Título destinado aos contratos, tem inequívoca relevância na esfera negocial, impondo limites ao exercício abusivo de poder contratual. Fernando Noronha : “ Realmente, importante é saber que o verdadeiro critério do abuso de direito parece estar no princípio da boa-fé: o que importa assinalar é, primeiro, que a boa-fé exige de cada parte que, ao exercer os seus direitos haja com moderação e, segundo, que se a discricionariedade concedida aos particulares constitui a sua esfera de autonomia privada, a boa-fé, agora, terá uma função de limite a tal autonomia.”( NORONHA, Fernando.O direito do contrato e seus princípios fundamentais. P. 173. Saraiva: 1994)102 MELLO, Adriana Mandim Theodoro de.Revista Forense : A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo Código Civil Brasileiro.p 14.v 364. dez/ 2002. Forense

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103 LOBO, Paulo Luiz Netto, coord A teoria do contrato e o novo Código Civil. LEAL, Larissa Maria de Moraes.Boa-fé contratual. P40.recife: 2003104 FIDA, J. B. Torres de Albuquerque Orlando. Dos contratos no direito brasileiro. P 46. Editora Jurídica Mizuno, 2004. 105 Ob. Cit. p 17

tiva dos interesses sociais insculpidos nos negócios jurídicos. E segundo plano, a boa-fé transmutar-se-á em verdadeira matriz dos direitos e deveres das partes, mais uma vês coi-bindo abusos e servindo para a realização dos fi ns econômicos-sociais dos contratos.Por fi m, a condição de cânone interpretativo, a boa-fé norteará o trabalho do intérprete com grande honestidade, lealdade e correição que a sociedade anseia das relações contratuais.Grande, pois, o avanço – ainda que tardio- da legislação civil brasileira, dando tratamento a instituto da boa-fé.”103

3.8. Princípio da supremacia da ordem pública

Visto durante toda a explanação aqui apresentada, a autonomia de vontade sof-re limitações sempre que os interesses sociais e morais sejam postos em segundo plano para prevalecer a vontade dos contraentes. Toda vez que o negócio jurídico particular contrariar os bons costumes bem como a ordem pública, o interesse das partes contra-tantes é preterido para dar guarida ao bem estar social. As determinações da lei de ordem pública se somam aos preceitos da moral, dos bons costumes, que impões aos indivíduos barreira natural ao princípio da autonomia da vontade. A idéia de ordem pública é con-stituída por aquele conjunto de interesses jurídicos e morais que incumbe à sociedade preservar, os quais não podem ser alterados por convenção entre particulares.104

Como forma de apresentação de algumas normas-principiológicas da suprem-acia da ordem pública sobre o interesse particular, segue a seguinte classifi cação, que é somente exemplifi cativa e não taxativa: a) as leis que consagram ou salvaguardam o princípio da liberdade e da igualdade dos cidadãos, e, particularmente, as que estabelecem o princípio da liberdade de trabalho, de comércio e de indústria; b) as leis relativas a certos princípios de responsabilidade civil ou a certas responsabilidades determinadas ; c) as leis que asseguram ao operário proteção especial; d ) as leis sobre o estados e ca-pacidade das pessoas; e) as leis sobre o estado civil; f) certos princípios básicos do direito hereditário como os relativos à legítima e o que proíbe os pactos sobre sucessão futura ; g) as leis relativas à composição do domínio público; h) os princípios fundamentais do direito de propriedade ; i) as leis monetárias) a proibição do anatocismo; etc...105

3.9 .Princípio da justiça contratual

Embora para se chegar à denominação de justiça nos dias atuais deve-se ver sua evolução ao longo da história, não é de interesse do presente estudo fazer tal avaliação.

Pode-se ao menos dizer que o signifi cado de justiça teve seu início, ou ao menos sua maior formalização em Roma, entendendo-se como materialização de valoração.

Porém, com o passar do tempo, passou-se da visão valorativa para uma visão

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apenas positivista do senso de justiça que, durante a século XIX e primeira metade do século XX fortaleceu-se.

Mas desde o início do século XX ocorre uma retomada da tradição milenar, onde entende-se que justiça não pode se desligar da valoração humana fundada num direito natural assente na natureza das coisas.106

Para se ter uma idéia de como é impossível a defi nição de justiça, ou até mesmo uma interpretação de justiça sem a conjuntura com valores humanos. Citamos o maior expoente do positivismo jurídico, Hans Kelsen:

“Verdadeiramente, não sei nem posso afi rma que é Justiça, a justiça absoluta que a hu-manidade almeja alcançar. Só posso estar de acordo em que existe um justiça relativa e posso afi rmar o que é justiça para mim.Dado que a Ciência é minha profi ssão e, portanto, o mais importante da minha vida, a Justiça, para mim, dá-se naquela ordem social sob cuja proteção pode progredir a busca da verdade. Minha justiça, em defi nitivo, é a da verdade, da paz; a justiça da democracia, da tolerância.”107

Percebe-se pelo conceito acima transcrito que o próprio defensor mor do posi-tivismo não consegue desprender justiça do sentimento de valoração, visto que democ-racia, liberdade, tolerância e paz nada mais são do que sentimentos ligados a valores e necessidades humanas.

Atualmente, existem muitas defi nições de justiça, sendo que nenhuma é per-feitamente completa, pois dependem de valores empregados a determinadas situações.

Mas como já dito, não é a justiça em si matéria deste estudo, mas sim a justiça aplicada no campo contratual.

Justiça contratual então nos passa a idéia de equilíbrio entre as obrigações pac-tuadas, isto que é a aplicação da justiça na formulação, execução e extinção do contrato, como bem formula Fernando Noronha:

“A justiça contratual é a relação de paridade, ou equivalência, que se estabelece na relação de troca, de forma que nenhuma das partes de mais nem menos do valor que recebeu; a responsabilidade civil é a relação de equivalência que se estabelece entre prejuízo sof-rido por uma pessoa e a reparação devida por quem causou.A justiça contratual, será, portanto,uma modalidade de justiça comutativa. Se a justiça costuma ser representada pela balança de braços equilibrados, a justiça contratual traduz precisamente a idéia de equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações das partes contrapostas numa rela-ção contratual. E, dentro dos contratos, o seu campo de eleição é, naturalmente, o con-trato comutativo, que é aquele que pressupõe uma relação de equivalência entre presta-ção e contra-prestação – e que, de resto, constitui a mais importante categoria contratual da vida real e a mais comum.”108

Como se pode observar, justiça está intimamente ligada ao princípio da equivalên-cia das prestações, o que de certa forma também faz com que o princípio da justiça contratual também mantenham uma estreita ligação com os demais princípios até aqui estudados.

106 NORONHA, Fernando.O direito do contrato e seus princípios fundamentais. P. 208. Saraiva: 1994107 Ob.cit. p. 208108 Ob. cit. p. 215

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109 Ob. Cit. p 227.

Assim sendo, torna-se difícil buscar um ponto de equilíbrio, principalmente entre a justiça contratual, a boa-fé e a autonomia privada, ou seja, um ponto em que a justiça contratual e a boa-fé não descaracterizem a autonomia privada.

Deve-se então partir da premissa de que todo contrato é justo, devendo apenas ter-se cuidado em relação às obrigações contratuais, se estas estão baseadas em vícios de consentimento ou incapacidades, que podem, de certa forma anular o contrato, de-pendendo apenas de se originar das mesmas a injustiça da relação contratual, bem como deve-se fazer valer a teoria da imprevisão quando o equilíbrio econômico contratual estiver abalado por forças extrínsecas aos contratantes, conforme ensina Fernando No-ronha:

“ ... nos vícios de consentimento e nas incapacidades a consideração da justiça contratual ainda poder ser tida por despicienda, por que neles nunca haverá a possibilidade de impedir a invalidação do negócio, com a demonstração entre o efetivo equilíbrio entre prestação e contraprestação, ela já passará a ser muito importante nos demais casos, que podem ser agrupados em três categorias: uma primeira relativa a situações em que a relação de equivalência falta logo no momento da celebração do contrato ( lesão e estado de perigo);outra em que ela é rompida posteriormente (onerosidade excessiva e correção monetária, que são hipóteses de superveniente destruição da relação de equivalência); a terceira, abrangendo os casos em que a situação de desequilíbrio entre as partes pode gerar mas não produz necessariamente um contrato substancialmente injusto (contratos padronizados e de adesão).”109

3.10. Princípio da função social do contrato Conforme o estudado até aqui, com a evolução do Estado Liberal, onde primei-

ramente existia o ideal de liberdade, e, com relação à propriedade, fundada no absoluto uso, gozo, e disposições dos bens consagrados no Código Napoleônico e em outros sistemas jurídicos formados ao longo do século XIX e início do século XX, se por um lado representava um defi nitivo rompimento com o decadente regime feudal, por out-ro lado a representação máxima da liberdade individual, com a crescente industrialização que se seguiu de forma desordenada pela não-interveniência do estado, logo mostrou seus defeito, os quais podem ser demonstrados pela exploração da propriedade de forma irrestrita e incondicional com o desmedido intuito de lucro que permitiu a concentração de capital nas mãos de poucos, que, através do poder econômico e do monopólio dos meios produtivos, estabeleciam unilateralmente as condições do contrato, tornando a tão desejada liberdade de contratar em uma espécie de cárcere aos menos favorecidos, que cada vez mais viam esvaziadas as opções para satisfação de suas necessidades, seja de trabalho, seja de consumo, senão através das grande indústrias que se formavam.

Resultou que essa desigualdade e exploração abriram espaço para um novo pensar sobre a atividade estatal, exigindo uma atuação do Estado de forma interventiva, através da imposição de deveres que pudessem garantir ao indivíduo condições mínimas

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para uma vida digna, o que na doutrina constitucional recebe a denominação de direitos fundamentais de segunda geração, renascendo assim a doutrina da função social, propondo a alteração do conceito de propriedade, de mero objeto de apropriação humana, para ser compreendido como bem de produção a serviço do bem-estar e da justiça social.110

Assim, pelo renascimento111 da base da doutrina da função social, a proprie-dade comportaria, portanto, não só o direito individual de possuir tudo o que o homem necessita para sua satisfação pessoal, mas também direito social, pelo qual o excesso deve reverter-se em favor da sociedade. Por tal entendimento, logo se percebeu que o alcance da função social teria um alcance não só sobre a propriedade, mas sim um alcance muito maior que englobaria também as relações obrigacionais.112

Percebe-se então, que para aplicar a função social aos contratos e exercer um poder de equilíbrio econômico, visto que é um instrumento de circulação de riquezas, um regulador, pois enfeixa direitos e obrigações voluntariamente assumidos pelas partes e por fi m um social, considerando-se que seu exercício interessa a satisfação de interess-es sociais o legislador promulgou o artigo 421 do Código Civil, que dispõe: “A liberdade de contratar será exercida e razão e nos limites da função social do contrato.”

Conforme o já exposto anteriormente, o contrato através da aplicação da fun-ção social, sofre uma releitura, tanto de seus princípios como até mesmo em seu sen-tido substancial, através da visão do Estado Social de direito e não mais unicamente da doutrina do Estado Liberal.

Tal releitura nos é muito bem repassada pelo raciocínio de Antônio Jeová Santos:

“A transformação que sofre o contrato é a que se concretiza com a realidade da tendência de socialização, vale dizer, a ter um aspecto social, no sentido de que os direitos e deveres devem ser exercidos funcionalmente, sem desviarem-se dos fi ns econômicos, dos fi ns éticos e dos fi ns sociais que o ordenamento legal tem em conta . O direito contratual sofre uma modifi cação que tende a fustigar os atos de exploração e de iniqüidade; os atos que sejam abusivos e antifuncionais,...”113

Fácil torna-se então entendermos que a transformação por que passa o contrato faz parte de transformação pela qual passa a sociedade, visto que os próprios preceitos con-stitucionais promulgados em 1988 conjugam isso,conforme pode-se observar da leitura do artigo 5, inciso XXIII – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a propriedade atenderá sua função social.

110 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil. P 36. Saraiva: 2002111 Fala-se em renascimento, pois conforme a doutrina afi rma, a função social não representou ma novidade, mas apenas uma retomada das antigas idéias na Bíblia ( velho e novo Testamento) e na obras de grandes Filósofos como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e no próprio direito romano. 112 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil. P 38. Saraiva: 2002113 SANTOS, Jeová Antonio.Função social, lesão e onerosidade excessiva nos contratos.p 117.Editora Método, SP, 2002.

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Também relata o artigo 170, inciso III: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fi m assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III – função social da propriedade.

Por último, podemos citar o artigo 182, parágrafo segundo da Carta Magna: A política de desenvolvimento urbano, executado pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fi xadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades e garantir o bem-estar de seus habitantes. Par 2 : A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Podemos então observar expressamente que a função social do contrato de-rivou-se da função social da propriedade e, nos mesmos moldes que aquela sofreu re-strições de cunho social pelo estado, esta também a sofre.

Claro está que o direito civil atual sofreu forte infl uência do direito constitucio-nal, conforme se pode observar nos artigos transcritos acima, mas tal assunto é matéria do próximo capítulo a ser estudado.

O que queremos esclarecer é que a função social do contrato solidifi cou-se com a evolução social da propriedade; esta porém tornou-se fortemente arraigada em nosso sistema jurídico com a promulgação dos artigos já citados na Constituição Federal de 1988, o que nos leva diretamente a crer que a função social do contrato já estava em plena efi cácia desde 1988, dependendo apenas ser recepcionada pelo novo Código Civil para ter efi cácia de lei, como bem demonstra Antônio Junqueira de Azevedo, sendo citado por Leonardo Mattietto:

“Está claramente determinada pela Constituição, ao fi xar, como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art.1,IV); essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais.O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção por força da Constituição, faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro.”114

Como se pode observar, fi ca difícil fazer uma delimitação conceitual de função social do contrato, mas, sabemos que é antes de tudo um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe reconhecemos o precípuo efeito de impor limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum115.

Tereza Negreiros afi rma que em se partindo da premissa de que quando a fun-ção social do contrato é concebida como um princípio, antes de qualquer outro sentido e alcance que lhe possa atribuir, signifi ca simplesmente que o contrato não deve ser con-cebido como uma relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetadas116. Nessa mesa

114 MATTIETTO, Leonardo. Função social e relatividade do contrato: um contraste entre princípios. Revista Jurídica n 342.Abril/2006. Editora Notadez115 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 55. saraiva. 2005116 NEGREIROS, Tereza. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. p 206.Renovar: 2002.

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linha é o pensamento de Eduardo Sens Santos,citado por Pablo Stolze Gagliano e Rod-olfo Pamplona Filho:

“... contrato não pode ser mais entendido como mera relação individual. É preciso aten-tar para seus efeitos sociais, econômicos, ambientais e até mesmo culturais. Em outras palavras, tutelar o contrato unicamente para garantir a equidade das relações negociais em nada se aproxima, da idéia de função social. O contrato somente terá uma função social – uma função pela sociedade- quando for dever dos contratantes atentar para as exigências do bem comum, para bem geral. Acima do interesse em que o contrato seja respeitado, acima do interesse em que a declaração seja cumprida fi elmente e acima da noção de equilíbrio meramente contratual, há interesse de que o contrato seja social-mente benéfi co, ou, pelo menos, que não traga prejuízo à sociedade – em suma, que o contrato seja socialmente justo.”117

Pode-se perceber que são amplas e imprecisas as bases negociais da função social do contrato, ora amarradas à cláusula geral de solidariedade, ora a quebra do indi-vidualismo, tendo em vista a igualdade substancial, ora à tutela da confi ança dos inter-esses envolvidos e do equilíbrio das parcelas do contrato. Natural é a falta de unidade científi ca para a defi nição e caracterização da função social do contrato, no atual estágio de desenvolvimento em que se encontra, visto que foi recentemente integrado no mundo jurídico, impulsionado através da funcionalização da propriedade, expressada na Consti-tuição Federal de 1988, onde os valores constitucionais e princípios infra-constituconais privados, dos quais destaca-se a solidariedade ( valor) e a boa-fé ( princípio), sendo o se-gundo fundado no primeiro, mostram-se como melhor âncora teórica para se descrever a função social do contrato.118

4. Interpretação dos contratos: a aplicação da perspectivacivil-constitucional e a visão social contemporânea

4.1. O contrato e a perspectiva civil-constitucional

Como já estudado anteriormente, a origem do Estado Liberal, com suas codi-fi cações que ressaltavam o direito de liberdade individual, à passagem ao Estado Social, onde prevalece o valor à pessoa, deve-se compreender que o ocorrido fez e faz parte de uma nova visão sociológica.

No início do presente estudo, demonstramos quais as premissas que origina-ram o Estado Liberal, tendo como sua, senão primeira mas mais importante, no contexto histórico, a codifi cação no Código de Napoleão.

Com o passar dos tempos, com a industrialização, com a massifi cação das rela-

117 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo.Novo curso de direito civil.Contratos. v IV. p 55. saraiva. 2005118 NALIN, Paulo.Do contrato : conceito pós-moderno ( Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional). Pensamento jurídico. V II. P 223.Editora Juruá: Curitiba, 2004.

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119 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil: Premissas metodologias para a constitucionalização do direito civil. P 6-7. 2 ed Reovar: 2001.120 Ob. Cit. P 7.121 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: Novos paradigmas.p 56. Renovar:2002122 Ob. Cit. P 62.

ções pessoais e obrigacionais, passou a sociedade a ter uma visão mais social dela mesma, surgindo assim o Estado Social de direito.

Assim, com tal entendimento ocorrendo após a era da industrialização, as doutrinas reivindicacionistas e os movimentos sociais alimentados pelas difi culdades econômicas, que realimentavam a intervenção do legislador, verifi ca-se a introdução nas cartas políticas e nas grandes constituições do pós-guerra, de princípios e normas que estabelecem deveres sociais no desenvolvimento da atividade econômica privada; assim, as constituições assumem compromissos a serem levados a cabo pelo legislador ordinário, demarcando os limites da autonomia privada da propriedade e do controle de bens.119

Tal entendimento resultou em sua aplicação em nosso ordenamento civil con-stitucional, onde, com a promulgação da Carta Magna em 1988, retiraram-se do âmbito civil os direitos fundamentais do indivíduo, visto que antes esses direitos se baseavam na liberdade individual de contratar e na propriedade, e assim passou-se a aplicar os direitos fundamentais dos indivíduos no próprio corpo constitucional, que como já informado valorizou a pessoa e não somente a questão patrimonial, como bem relata Gustavo Te-pedino:

“ O Código Civil perde, assim, defi nitivamente, o seu papel de constituição do direito privado. Os textos constitucionais, paulatinamente, defi nem princípios relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao código civil e ao império da vontade: a função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família maté-rias típicas do direito privado, passam a integrar uma nova ordem pública constitucional. Por outro lado, o próprio direito civil, através da legislação extracodifi cada, desloca sua preocupação central, que já não se volta tanto para o indivíduo, senão para as atividades por ele desenvolvidas e os riscos delas decorrentes.”120

A mudança ocorrida atribuiu aos princípios constitucionais verdadeira força normativa, onde a adoção da perspectiva civil-constitucional impõe ao intérprete a tarefa de reordenar valorativamente o direito civil, preenchendo as formas conceituais e as categorias lógicas desta área do Direito com o conteúdo axiológico estampado na consti-tuição. Por isso, o direito civil sendo interpretado pelo modo de ver constitucional, con-cebe o intérprete e aplicador do direito como protagonista da reconstrução do sistema jurídico, não mais centrado no código, mas sim na Constituição.121

Vê-se, portanto, que atualmente se prima o ser sobre o ter, tentado pela leitura do direito civil à luz da constituição,traduzindo-se na transformação da ética da liberdade por uma ética solidária, de co-responsabilidade, cooperação e lealdade, sendo que estas são, em linha gerais os ideais e a propostas da perspectiva civil-constitucional.122

O entendimento acima descrito relata o que se passa também com relação às

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obrigações contratuais onde houve uma estrondosa infl uência na socialização do con-trato, conforme explicado no capítulo anterior, onde discorremos sobre a função social do contrato.

O que se deve buscar atualmente é uma nova visão do direito civil, no caso nos interessa a parte que trata dos contratos, devendo aplicar-se não somente os direitos ditos privados, mas sim aplicá-los conforme dita a Constituição, que no caso, visa muito mais a proteção da pessoa do que do patrimônio. E isto é o que busca o Código Civil de 2002, com a função social da propriedade, da empresa e do contrato, conforme ensina Paulo Nalin:

“Há de se perseguir um mais amplo favorecimento da pessoa humana nas relações ju-rídicas e, especialmente, nas contratuais; conforme reafi rmado nesta tese, a vontade con-tratual deixou de ser o núcleo do contrato, cedendo espaço a outros valores jurídicos, institutos, fundados na Carta. O paradigma da autonomia da vontade, em detrimento da tutela da pessoa na sua dimensão contratante, talvez até possa encontrar legitimidade no espaço do código civil, pois do homem em si não se ocupa, mas sempre estará em descompasso com a Constituição. Isto é observado com grande destaque nas relações jurídicas contratuais, em que a vontade surge como mero papel de impulso, quando não, completamente inexistente, no âmbito das relações de adesão e do contrato obrigatório, ambas conseqüência da massifi cação negocial.”123

4.2.Teoria objetiva, teoria subjetiva e teoria integrativa da interpretaçãocontratual.

Pudemos observar pela presente explanação a mudança ocorrida no universo jurídico em relação a contemporânea visão embasada no Estado Social de direito.

Visto por esse ângulo, o desenvolvimento das relações civis embasadas nas transformações sociais e econômicas, conduz o intérprete a uma nova interpretação dos contratos, onde se eleva ao mais alto grau seus efeitos na sociedade e as condições sociais e econômicas das pessoas neles envolvidas.

Assim, perante a contemporânea concepção social do contrato, deve ser posi-cionado o problema da interpretação contratual, ou seja, deve-se determinar o sentido com que o contrato há de valer, bem como o efeito que ele tende a produzir, se o mesmo é válido e qual o alcance das declarações de vontade.124

Mas, primeiramente devemos entender as divergências que poderão surgir en-tre a vontade e a declaração, ou seja, a divergências entre a verdadeira intenção que buscaram as partes ou ao menos uma das partes e a vontade declarada através do instru-mento contratual.

Para tanto, deve-se entender o que signifi cam as teorias de interpretação subje-tiva e a objetiva, esta ligada à declaração e aquela ligada à vontade.

Melhor nos ensina Silvio Betrão :

123 NALIN, Paulo.Do contrato : conceito pós-moderno ( Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional). Pensamento jurídico. V II. P 90.Editora Juruá: Curitiba, 2004124 LOBO, Paulo Luiz Netto, coord A teoria do contrato e o novo Código Civil. BELTRÃ, Silvio Romero. Interpretação dos contratos.p 102 .recife: 2003

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“A teoria da vontade, posição subjetivista, é aquela que dá ênfase ao sentido subjetivo do contrato, priorizando a vontade real do declarante.Assim, tanto para a validade do contrato quanto para a interpretação do mesmo o que interessa é a vontade efetiva do declarante.Por sua vez, a teoria da declaração , posição objetivista, consagra não a vontade real do declarante, mas o sentido que esta vontade manifestada tomou na declaração negocial. Assim, a teoria objetivista procura dar prevalência à manifestação de vontade tal qual ela foi declarada ao seu destinatário.”125

Percebe-se um grande contra-senso com tal situação, visto que se a vontade

que reside no estado mental de uma das partes não foi exteriorizada, não pode ter efi cá-cia jurídica para determinar o que se pretendeu, pois o propósito sem a exteriorização não é reconhecido objetivamente, por isso, a reserva mental como declaração de von-tade contrária à intenção, faz com que a declaração exteriorizada subsista desde que o destinatário não tenha conhecimento da vontade real do declarante, vez que a vontade interior não produz efeitos jurídicos se não declarada.126

Por isso, se não se conhecer vontade real do declarante, da declaração deve se tirar o sentido que o cidadão normal deduziria.

Assim está explicitado no artigo 112 do Código Civil: “Nas declarações de vontade, se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem.”

Pode-se observar que não se deve impor a vontade que fi cou retida na con-sciência da pessoa, mas sua intenção na medida em que se tornou reconhecível pela declaração ou em sua conduta, assim, a declaração perante a interpretação deverá ser medida ou equalizada juntamente com o comportamento e as circunstâncias que envolv-eram a manifestação da vontade.

Torna-se assim a interpretação contratual, mais do que nunca, um conjunto de valores somados à objetividade da relação negocial, devendo atender ao comportamento recíproco adotado pelas partes, diante da situação do fato concreto, não acolhendo inte-gralmente o sentido literal da linguagem, mas atendendo ao espírito da intenção formada na declaração ou na conduta das partes, conforme nos ensina Maria Helena Diniz :

“ A interpretação do ato negocial situa-se na seara do conteúdo da declaração volitiva, pois o intérprete do sentido negocial não deve ater-se, unicamente, à exegese do negócio jurídico, ou seja, ao exame gramatical de seus termos, mas sim em fi xar a vontade, pro-curando suas conseqüências jurídicas, indagando sua intenção, sem se vincular, estrita-mente, ao teor linguistico do ato negocial. Caberá, então, ao intérprete investigar qual a real intenção dos contratantes, pois sua declaração apenas terá signifi cação quando lhes traduzir a vontade realmente existente. O que importa é a vontade real e não a declarada; daí a importância de se desvendar a intenção consubstanciada na declaração.”127

Percebe-se então que a valoração ligada a interpretação dos contratos, quando

125 Ob. Cit. P 103.126 Ob. Cit. P 105.127 Ccc, p. 124

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existe divergência entre a vontade declarada e a vontade real, deve-se aplicar a teoria da confi ança, que já foi explanada nos comentários ao princípio da boa-fé.

Assim, somente para se tornar mais didático, a teoria da confi ança foi desen-volvida no âmbito da teoria da declaração da vontade (objetiva) e determina a manuten-ção das vantagens que caberiam ao confi ante, caso a posição do declarante fosse real. Ainda, segundo a teoria da confi ança, ela seria a base da sustentação do negócio jurídico, em relação à conduta das partes que imprime a certeza do cumprimento da relação as-sumida, tendo-se na confi ança a fi nalidade de proteger todo aquele que agiu de boa-fé, na certeza de que a declaração negocial se apresenta com crédito.128

Mesmo entendimento deve-se ter quando surgirem cláusulas contraditórias, devendo o intérprete adequar as cláusulas enquadradas no negócio na totalidade do am-biente social, apreciando o comportamento das partes e suas manifestações de vontade.

Como visto até agora, tratou-se das teorias da interpretação objetiva e subje-tiva.

Deve-se, portanto, explicar como as divergências entre as duas correntes acima são resolvidas.

Resolve-se através da interpretação integrativa do contrato.Quando as partes descuidam, deixando de regulamentar as cláusulas contrat-

uais de forma adequada não prevendo todas as situações que possam interessar à com-pleta regulamentação da relação contratual, deixando lacunas a serem resolvidas e que resultam em litígios, devem lançar seus olhares para a interpretação integrativa, que tem como objeto incidir sobre pontos de regulamento de interesse que, embora não tenham sido abrangidos pela fórmula, que se tornou inadequada, estão, todavia, compreendidos na idéia que ela exprime, portanto estão assim enquadradas no conteúdo do negócio.129

Assim, o critério que se busca para fazer valer tal interpretação é a partir da vontade presumida ou tendencial das partes, pois se presume impossível obter a vontade real das partes mediante seus interesses contrapostos.

A vontade tendencial seria aquilo que é razoável presumir das partes, supondo o que elas teriam aceitado caso não houvesse omissão, onde o intérprete deverá buscar elementos exteriores que presumam a vontade das partes litigantes.

Entende-se, portanto, que a interpretação integrativa não deixa de ser a recon-stituição da idéia do contrato, deduzida dos requisitos objetivos, no seu todo e na sua concludência, em conexão com o ambiente social.130

Porém para fi nalizarmos este raciocínio, deve-se explicitar o parâmetros da interpretação contratual, que muito bem é explicada por POTHIER em suas regras de interpretação das convenções referentes ao Código Civil Francês, que muito bem encaix-am-se no direito pátrio, e através da aplicação delas pode-se perfeitamente completar as lacunas que porventura vierem a aparecer nos contratos:

128 LOBO, Paulo Luiz Netto, coord A teoria do contrato e o novo Código Civil. BELTRÃ, Silvio Romero. Interpretação dos contratos.p 108 .recife: 2003129 Ob. Cit. P 128130 Ob. Cit. P 122

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“1. Nas convenções mais se deve indagar qual foi a intenção comum das partes contraentes do que qual é o sentido comum das palavras. 2. Quando uma cláusula é suscetível de dois sentidos, deve entender-se naquele em que ela pode ter efeito; e não naquele em que não teria efeito algum.3. Quando em um contrato os termos são suscetíveis de dois sentidos, deve entender-se no sentido que mais convém à natureza do contrato.4. Aquilo em que o contrato é ambíguo interpreta-se conforme o uso do país.5.O uso é de tamanha autoridade na interpretação dos contratos que se subentendem as cláusulas do uso ainda que não exprimissem.6. Uma clausula deve interpretar-se pelas outras do mesmo instrumento, ou elas precedam, ou elas sigam aquela.7.Na dúvida, uma cláusula deve interpretar-se contra aquele que tem estipulado uma coisa em descargo daquele que tem contraído a obrigação.8. Por muito genéricos que sejam os termos em que foi concebida uma convenção, ela só compreende as coisas sobre as quais parece que os contraentes se propusera a tratar, e não as coisas em que eles não pensaram.9. Quando o objeto da convenção é uma universalidade de coisas, compreende todas as coisas particulares que compõe aquela universalidade, ainda aquelas de que as partes não tivessem conhecimento.10. Quando em um contrato se exprimiu um caso, por causo da dúvida que poderia haver, se a obrigação resultante do contrato se estenderia àquele caso, não se julga por isso ter querido restringir a extensão da obrigação, nos outros casos que por direito se compreendem nela, como se fossem expressos.11. Nos contratos, bem como nos testamentos, uma cláusula concebida no plural se distribui muitas vezes em muitas cláusulas singulares.12. O que está no fi m de uma frase ordinariamente se refere a toda a frase, e não àquilo só que a precede imediatamente, contanto que este fi nal da frase concorde em gênero e número com a frase toda.”131

4.3. A interpretação contratual embasada na releitura dos princípioscontratuais face ao Estado Social de direito

Como demonstrado até agora no presente estudo, os princípios contratuais sofreram um releitura e por assim dizer aplica-se a eles uma nova visão de interpreta-ção.

Os princípios contratuais discorridos anteriormente sofreram uma relativiza-ção pela evolução do estado liberal de direito para o estado social de direito, devendo esses princípios serem aplicados de forma a preservarem principalmente a função social do contrato.

Não que sejam inaplicáveis perante sua relativização, mas devem sofrer uma valoração diferente, tendo outros sentidos de direcionamento, visando agora o bem social e não simplesmente a vontade das partes ou simplesmente a vontade de uma das parte em detrimento da outra, principalmente quando houver desnível cultural e econômico entre elas, onde tal diferença seja aplicada à relação contratual causando uma lesão desproporcional.

Tal relativização atingiu também o instituto do contrato, como bem relata Ar-noldo Wald :

“Num mundo em que nada mais é absoluto, o contrato, para subsistir, aderiu ao relativ-ismo, que se tornou condição sine qua non da sua sobrevivência no tempo, em virtude da incerteza generalizada, da globalização da economia e da imprevisão institucionalizada.

131 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. v II.p 457. 3 ed. Atlas:2003

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A indeterminação das prestações contratuais, que era inconcebível no passado, também está vinculada à infl ação , à oscilação do câmbio e às rápidas mudanças tecnológicas, fazendo com que as partes adotem determinados critérios para defi nir os seus direitos, aceitando prestações indeterminadas no momento da celebração do contrato, mas deter-mináveis no momento de sua execução.O contrato, realidade viva, forma de parceria, com diretos e obrigações relativas, con-stitui uma verdadeira novidade para os juristas clássicos, mas decorre de um imperativo categórico do mundo de hoje, que é, como vimos, caracterizado como sendo o da des-continuidade, da incerteza e da mudança.Assim autores recentes puderam afi rmar que as regras do direito dos contratos se tornaram relativas, pois o contrato é mais ou menos obrigatório, mais ou menos oponível, mais ou menos sinalagmático ou mais ou menos aleatório e uma nulidade ou resolução é mais ou menos extensa”132

Vemos que com a relativização dos princípios de direito, o instituto do con-trato também sofreu uma revisão em seus parâmetros.

Assim, vemos o surgimento de uma importantíssima divergência: quando irá prevalecer autonomia da vontade –autonomia privada- sobre a realização do pactuado e assim a mantença da segurança jurídica e quando a autonomia da vontade será limitada pelos princípios de direto para relativizar o contrato a fi m de buscar o bem estar social através da função social do contrato.

Como já dito anteriormente, todos os contratos sofreram uma relativização pela mudança do Estado Liberal para o Estado Social de direito, e o principal norte con-tratual através dos tempos, o princípio da autonomia da vontade, foi o que, talvez, mais sofreu restrição.

O Estado Liberal surgiu da necessidade de melhorias de cunho social, ou seja, surgiu através de uma releitura de princípios que visam proteger a pessoa, o social, ao in-vés de simplesmente proteger a vontade pactuada, que muitas vezes foge de escrúpulos, visando somente o lucro acentuado a uma das partes ao invés de proteger a parte que por muitas vezes sofre um estrondoso prejuízo por motivos alheios a sua vontade e assim causa um desequilíbrio social, visto que o contrato tem como fundamento a circulação de riquezas, mas de forma proporcional e não abusiva para somente uma das partes. Assim, entende-se que a autonomia da vontade é ainda o principal alicerce do instituto do contrato, sofrendo por sua vez limitações, que serão vistas caso a caso.

Tal limitação é feita através da aplicação dos princípios contratuais aqui já estudados, onde a aplicação destes irá delimitar até onde vai a efi cácia da autonomia da vontade, como bem nos ensina Antonio Jeová Santos:

“ Resumindo, a autonomia da vontade está condicionada por diversos fatores que a limi-tam. Restringe essa autonomia a norma imperativa que tem como fi nalidade a proteção de interesses superiores e não, simplesmente, o interesse individual das partes contratantes.Como todo contrato deve respeito ao nosso estilo de vida, aos bons costumes e à moral, não pode se afastar da ordem pública. As normas de ordem pública tem como escopo abrandar o desequilíbrio entre o contratante economicamente saudável , forte e robusto,

132 DINIZ, Maria Helena. LISBOA, Roberto Senise. Cord. O direito civil no século XXI WALD, Arnoldo. Um novo direito para a nova economia: a evolução dos contratos e o código civil. P 88.Saraiva: 2003

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perante o consumidor débil.Além disso, todo contrato deve guardar um fi m social. É a re-gra moral das obrigações civis, tão cara a Ripert, que teve de escrever um livro para concluir que a regra moral deve informar o sistema jurídico.O ato de contratar não deve se converter em abuso de direito, nem em aproveitamento de um estado inferior da outra parte.”133

Por todo o exposto até aqui, podemos notar que a função social do contrato deve ser buscada aplicando à autonomia da vontade todos o princípios contratuais, que sofreram uma releitura com o surgimento do Estado Social de direito.

Assim, com a relativização da autonomia de vontade, mantêm-se a segurança jurídica através do bem estar social, pois aquela nada mais é do que a aplicação da justiça social aos casos em que uma das partes do negócio jurídico se sobressai à outra, de maneira não pretendida, e assim, causando um enriquecimento exagerado, tendo como nexo causal a prestação desproporcional e o empobrecimento não pretendido ou de-sproporcional da outra parte.

5. Conclusão

Durante o presente estudo, buscou-se relatar um pouco a evolução que o raciocínio jurídico e a valoração de ideais sociais tiveram com o passar do tempo.

Buscou-se demonstrar que cada período vivido pela humanidade é suscetível de valoração principiológica que decorre de acordo com o momento pelo qual passa a sociedade.

Primeiramente, a partir do século XVII e XVIII, com a dominância da econo-mia por poucos afortunados que apenas exploravam a classe produtora, houve a necessi-dade de livrar esta classe das mazelas dos exploradores.

É o que ocorreu na França, que resultou na Revolução Francesa. Em tal perío-do histórico, houve a busca por valores que representassem os interesses dos oprimidos injustamente, fato que resultou no surgimento do Estado Liberal de direito, onde o indi-víduo passou a ter liberdade para escolhas que não seriam tolhidas pelo Estado.

Nesse sentido, relacionado com a teoria contratual, o pactuado seria imutável, pois a autonomia da vontade era o maior grau de valoração já conseguido, levando em consideração o período pelo qual passavam.

A autonomia da vontade, por ser tão desejada naquele exato momento da história, tornou-se o maior dogma para as relações negociais, visto que nada podia ser mais importante para a sociedade em dado período do que se respeitar a vontade do cidadão, dando a este a escolha de fazer o que melhor lhe conviesse.

Assim, passou-se a entender que, desde que no contrato não houvesse vícios em sua formação, ou desde que o contrato não estipulasse objeto contra a lei, prevalece-ria o pactuado pelo entendimento de que autonomia de vontade era irrevogável.

Com o passar dos tempos, houve uma mudança ocorrida nos valores sociais. Vários fatores infl uenciaram tal mudança, como a massifi cação da sociedade, a explora-ção da propriedade e a massifi cação das relações obrigacionais e contratuais.

Assim, levando-se em conta esta mudança social, buscou-se novamente uma nova valoração para aplicar sobre a sociedade.

133 SANTOS, Antonio Jeová.Função social, lesão e onerosidade excessiva nos contratos. P23.Método: SP, 2003.

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Vejamos da seguinte forma: com as novas perspectivas sociais, não interessava mais para a sociedade que as relações obrigacionais fossem mantidas sob prisma da im-utabilidade perante a autonomia da vontade, pois estava surgindo uma nova exploração, que é vinculada justamente à citada autonomia. Não se poderia mais falar em igualdade das partes e liberdade do indivíduo, visto que poucos detêm o capital e a maioria não.

Deve-se então buscar uma valoração que equalize de maneira homogênea as partes nas relações obrigacionais, e para isso deve-se relativizar os conceitos dogmáticos que até então prevaleciam, que tinha como seu expoente maior a autonomia da vontade.

Surge então o Estado Social de direito, que prega uma visão igualitária nas relações contratuais.

Busca tal valoração a igualdade entre as partes nas relações obrigacionais, igual-dade esta que só poderá ser atingida pela relativização dos antigos conceitos existentes, juntamente com o surgimento de novos conceitos valorativos.

Buscando uma nova identidade para o social, a Constituição Federal de 1988 promulgou princípios que buscam privilegiar a sociedade ao invés do indivíduo. Tais princípios infl uenciaram também o direito civil privado, com a incorporação pelo Có-digo Civil da função social do contrato.

O interesse social, ressaltados pelos atos praticados em cada período, sempre foi fundamental para o surgimento de novos valores.

Assim, verifi ca-se que a sociedade sofre uma constante mutação através do tempo, e que esta mutação é sentida pelo jurista com o surgimento de novos princípios, valores e regras, e, como não podia deixar de ser, o jurista que quiser ter um diferencial a oferecer, deve estar atento para as mudanças sociais ocorridas, para poder compreender não somente a lei, mas também seu sentido e sua valoração, estando assim, apto para interpreta-la.

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AS BENESSES PROCESSUAIS TRAZIDASPELA LEI 11.441/07

Ewerton Araújo de Brito 1

Resumo: A fi nalidade deste artigo é tratar das alterações que foram realizadas no CPC por meio da Lei n. 11.441/07. Analisa, primeiramente, a obrigatoriedade de realização do inventário e da partilha, da separação e do divórcio consensuais pela via judicial. Destaca que as recentes reformas processuais têm por escopo imprimir celeridade ao instrumento judicial, de sorte a efetivar o princípio da razoável duração dos processos e da celeridade, que foi inserido na Constituição Federal pela Emenda Constitucional de n. 45. Analisa, se os prazos alterados por esta lei são inconstitucionais ou não. Aborda, outrossim, os re-fl exos processuais do inventário, da separação e do divórcio administrativos, concedendo especial destaque para os seguintes aspectos: a) a declaração de nulidade ou anulação da partilha realizada no inventário administrativo; b) a revisão e exoneração dos alimentos; c) a conversão da separação consensual em divórcio; d) o restabelecimento da sociedade conjugal nos casos de separação administrativa; e) a verifi cação do prazo para o divórcio consensual administrativo; f) a dissolução da união estável pela via administrativa. Ao fi nal, conclui de maneira circunstanciada, realizando uma análise da reforma do CPC oriunda da Lei n. 11.441/07.

Palavras-Chave. Divórcio. Benesses. Inventário.

Abstract: The purpouse of this article is to address the changes that were made in the CPC through the Law 11441/07. At fi rst, analyses the obligation of completion of inventory sharing goods, separa-tion and divorce agreed through the judicial courts. Stresses that recent procedural reforms have the scope to print speed to the judicial instrument, and luckly accomplish the principle of reasonable duration of proceedings and the speed, which was inserted into the Constitution by Constitutional Amendment No. 45. Examines whether the periods changed by this law are unconstitutional or not. Addresses yet, the procedural consequences of the administrative inventory, separation and divorce, with special emphasis on the following aspects: a) the nullity or cancelation of sharing goods declaration done at the administrative inventory; b) the review and dismissal of food obligation; c) conversion of separation agreed into divorce; d) restoring of marital society in administrative separation cases; e) checking the time for administrative consensual divorce; f) the dissolution of the stable unit by administrative means. In the end, concludes on a detailed matter, performing an analysis of reform from the CPC caused by Law 11.441/07.

Key words: Divorce. Benefi ts. Inventory.

1. Introdução

Este artigo tem por fi nalidade o estudo dos das modifi cações que o legislador infraconstitucional tem realizado na legislação processual, em especial no tocante ao Divórcio e ao Inventário. De fato, o Código de Processo Civil tem sido alvo de tantas

1 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN. Ofi cial-do-Exército Brasileiro. Professor de Direito Penal e Processo Penal no Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN.

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alterações que é difícil de se acompanhar, mesmo para aqueles que são operadores do direito.

Uma das últimas alterações no CPC foi realizada por meio da Lei n. 11.441, publicada em cinco de janeiro de 2007. O citado diploma normativo, que nem período de vacatio legis teve, modifi cou o Código para possibilitar a realização do inventário, da separação e do divórcio consensuais pela via administrativa.

Por outras palavras: o inventário, a separação e o divórcio, que durante tantos anos demandaram para sua realização a manifestação de um Magistrado, podem, agora, nos casos previstos em Lei, ser realizados por meio de uma mera escritura pública, a ser lavrada pelo Tabelião. Afastou-se, portanto, a necessidade de, nos casos previstos em Lei, haver pronunciamento jurisdicional para que seja realizado o inventário ou mesmo a dissolução da sociedade conjugal ou do vínculo matrimonial.

Pretende-se, neste ensejo, analisar as modifi cações que foram realizadas por meio da Lei n. 11.441/07, esclarecendo, outrossim, alguns consectários processuais re-sultantes da aplicação desse novel diploma normativo, verifi cando a constitucionalidade dos prazos estabelecidos sob a luz do princípio insculpido no Art. 5º, LXXVIII da CF.

2. Processo e procedimento do divórcio, do inventárioe da partilha.

Antes do advento da Lei 11.441/07 o inventário, a separação e o divórcio, mesmo havendo consenso entre os interessados, eram necessariamente realizados pela via judicial. Por outras palavras, inexistia no CPC a possibilidade de realização de inventário, de divórcio ou de separação pela via administrativa. A presença do magistrado, nesses casos, era obrigatória2.

De fato, em relação ao inventário dispunha o art. 982 do CPC, na redação anterior à reforma, que “proceder-se-á ao inventário judicial, ainda que todas as partes sejam capazes”. Na doutrina e na jurisprudência, outra não era a orientação.3 Da mesma forma, o CPC estabelecia, nos arts. 1120 usque 1124, um procedimento destinado à formalização da dissolução da socie-dade (separação) ou do vínculo conjugal (divórcio), neste último caso por expressa remissão do art. 40, § 2º da Lei 6.515/76.

2 Registra Marcato, contudo, que o CPC “em sua versão original previa a modalidade de inventário extrajudicial, que foi suprimida, no entanto, ainda no período de vacatio legis, pela Lei n. 5.925/73” (MARCATO, Antônio Carlos. Procedimentos especiais. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2006. p. 206.). Da mesma forma, o art. 2016 do Código Civil permitia entrever a possibilidade de realização de partilha pela via extrajudicial, posto não a regulasse. O citado preceito reza o seguinte: “Será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum deles for incapaz”.3 Nesse sentido: “Ainda que todos os sucessores tenham plena capacidade civil e estejam de acordo quanto à forma de partilhar os bens deixados pelo autor da herança, o processo de inventário e partilha deve ser instaurado” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 11. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006. p. 461. v. No mesmo sentido, cf. SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de direito processual civil. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 3. p. 105. Na jurisprudência, pode-se colacionar o seguinte julgado: “É insufi ciente a disposição contratual ou legal para suprimir o inventário ou arrolamento, como também a partilha. Essencial a instauração do processo adequado para que a passagem por sucessão se formalize” (JTJ 141/121).

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4 BARROS, Hamilton de Moraes. Comentários ao código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, s/d. v. 9. p. 149 e 150.5 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 11. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006. p. 461 e 462. v. 3.

Note-se que, a despeito de não haver lide, ou seja, confl ito de interesses in-tersubjetivo, ex vi legis, o inventário, a separação e o divórcio deveriam necessariamente ser realizados pela via judicial. É bem verdade que esses casos eram considerados como sendo de jurisdição voluntária, até mesmo por inexistir lide, mas o que se quer realmente destacar é que a participação do magistrado era inarredável.

A doutrina manifestava-se ora em favoravelmente a essa orientação, ora de modo contrário. Sobre a necessidade de realização de inventário judicial nos casos em que as partes estivessem concordes quanto à partilha, por exemplo, Hamilton Barros assim se pronunciou:

A experiência, a autoridade moral e intelectual do juiz, a sua isenção, bem como a atuação no feito do advogado, do Ministério Público e de todos os interessados e fi scais, cujo zelo tem oportunidade de exercício, tudo isso recomenda o inventário judi-cial como sendo o meio mais hábil e idôneo de conseguir-se o fi m visado pelo Direito.4

De outro vértice, parcela da doutrina criticava a necessidade de realização do inventário pela via judicial quando as partes estivessem de acordo quanto à partilha. Sugeriu-se, então, nesse caso, que, de lege ferenda, fosse implementado o inventário pela via administrativa. Nesse sentido, pode-se colacionar o seguinte escólio:

No Direito Brasileiro, porém, o processo de inventário e partilha é sempre realizado, ainda que todos os sucessores sejam civilmente capazes e estejam de acordo quanto à forma de efetivar a divisão. (...) Muito mais prático seria permitir-se a celebra-ção de contrato de partilha, por instrumento público, dispensando-se a instauração de processo judicial.5

A obrigatoriedade de se utilizar a via judicial nos processos de separação con-sensual e inventário, como foi visto acima antes da Lei 11.441/07, era fruto de que o legislador tentou proteger a entidade familiar, buscando todos os meios cabíveis para que ela não se dissolvesse, por isto burocratizava ao máximo o processo e os magistrados sempre que possível tentavam fazer a reconciliação.

Entretanto, a história mostrou que esta foi uma tentativa frustrada, pois além de não trazer os efeitos desejados, fez com que a justiça fi casse sufocada com os inúme-ros processos, pois a sociedade evoluiu, aumentou, e com ela o número de processos cresceu de forma progressiva.

Desta forma, há muito tempo existe a necessidade de se buscar um novo mod-elo mais dinâmico. Apesar da lei aumentar alguns prazos, como por exemplo o do inven-tário, não há aqui em que se falar que isto feriu o Princípio insculpido no artigo 5º, inciso LXXVIII da CF que traz como objetivo o processo célere, pois, os antigos prazos nunca eram cumpridos, pois tinham que ser somente pela via judicial, agora, que é permitido que se faça isto pela via administrativa, os prazos poderão ser cumpridos e a sociedade terá satisfeito suas necessidades.

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O CPC vem sendo reformado, nos últimos anos, com alguma freqüência. Bus-ca-se, com isso, adequar o instrumento judicial aos anseios da sociedade, em especial, o de realização de um processo justo, célere e efi caz.6 De fato, a insatisfação do jurisdi-cionado quanto à prestação jurisdicional é notória,7 chegando-se mesmo a recentemente reformar a própria estrutura do Judiciário.8

Na reforma do Judiciário, inseriu-se no art. 5º, da Constituição Federal, o in-ciso LXXVIII, positivando, entre nós, o princípio da razoável duração dos processos e da celeridade processual. É relevante consignar, nesse contexto, que as alterações que estão sendo realizadas no CPC têm por escopo exatamente dar efi cácia ao princípio con-stitucional da celeridade, tornando o instrumento judicial um mecanismo rápido para a solução dos confl itos.

Para tornar o instrumento judicial célere, é necessário concentrar a atividade do Magistrado, afastando do Judiciário questões de somenos importância, nas quais in-existam confl itos entre os interessados. Desse modo, evitar-se-á a intervenção judicial em situações nas quais ela, a rigor, não é necessária. A legislação processual precisa ser adequada a essa realidade.

Dentre as alterações realizadas no CPC insere-se a que foi propiciada pela Lei n. 11.441/07. Esse diploma normativo afastou do Judiciário a realização do inventário e partilha, quando os interessados forem maiores e capazes e houver acordo quanto à divisão, assim como a separação e o divórcio consensuais. Pretende-se, com isso, reduzir a intervenção judicial em situações secundárias, liberando-se, desse modo, o Magistrado para atuar em questões que, efetivamente, demandam a sua intervenção.

Como é sabido por todos, o direito foi criado através da necessidade da criação de normas que pudessem regular as relações humanas, com o intuito de harmonizar o convívio dos seres inserido em uma sociedade. É evidente que as relações entre os indi-víduos passaram por mudanças, necessitando que as normas reguladoras destas relações também se alterassem para suprir as necessidades de resolução dos confl itos sociais que surgissem. Desta forma, o direito não pode ser estático, devendo buscar acompanhar as mudanças sociais, pois afi nal, ele foi criado com intuito principal de atender os interesses da sociedade, sobrepondo os interesses coletivos sobre os interesses individuais.

O inventário sempre foi judicial, posto que todos os interessados fossem ca-pazes e houvesse acordo quanto à divisão dos bens. Da mesma forma, a separação e o divórcio, ainda que existisse consenso entre os interessados, deveria ser realizado por

6 MANUEL IBAÑEZ FROCHAM esclarece que o Estado, ao interditar a defesa pelas próprias mãos, assume um compromisso ético de resguardar a paz social e os demais valores fundamentais da sociedade, como a justiça, segurança e ordem (apud PRATA, Edson. Jurisdição voluntária. São Paulo: Livraria e editora universitária de direito, 1979. p. 53).7 Não restam dúvidas de que o Judiciário moderno está em crise. Nesse sentido encontra-se na doutrina a seguinte afi rmação: “Mesmo o Poder Judiciário, sempre intocável, já não merece a confi ança popular” (BEMFICA, Francisco Vani. O juiz, o promotor, o advogado: seus poderes e deveres. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 206.).8 A reforma do Judiciário foi realizada por meio da emenda constitucional de n. 45, que foi promulgada em 8.12.2004. Sobre os aspectos processuais dessa emenda, cf. HERTEL, Daniel Roberto. Aspectos processuais da emenda constitucional 45. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 385, mai/jun, 2006.

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meio da via judicial. Mas esse quadro foi recentemente modifi cado pela Lei n. 11.441/07, já em vigor. A citada Lei modifi cou os arts. 982, 983 e 1031 do CPC, assim como acres-centou ao Diploma processual o de n. 1124-A.

O art. 982 do CPC, com a sua nova redação, dispõe que: “Art. 982. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário.”

O dispositivo deixa claro que o inventário poderá ser judicial ou administrativo. O inventário judicial queda reservado para aqueles casos em que houver testamento ou incapaz. Assim, havendo testamento, mesmo que todos os herdeiros sejam capazes, ou havendo incapaz, o inventário deverá necessariamente ser realizado pela via judicial.

Mas, se todos os herdeiros forem capazes e estiverem de acordo quanto à partilha, ou seja, quanto à divisão, prescindir-se-á de utilização da via judicial para realiza-ção do inventário. Nesse caso, o inventário poderá ser realizado pela via administrativa, por meio de escritura pública.

Indaga-se, inicialmente, sobre a obrigatoriedade de realização do inventário administrativo se todos os herdeiros forem capazes e estiverem concordes em relação à divisão. Como no art. 982 do CPC foi utilizada a expressão “poderá”, o inventário administrativo não pode ser reputado obrigatório. Trata-se de uma faculdade dos inter-essados.

Se todos os herdeiros forem capazes e estiverem de acordo quanto à partilha, mas optarem por realizar o inventário na via judicial, o procedimento a ser adotado é o do arrolamento sumário, delineado nos arts. 1031 usque 1035 do CPC. Poderão, con-tudo, os interessados optar pelo inventário administrativo.

O inventário administrativo será realizado por meio de escritura pública, lavra-da pelo Tabelião. Nesse caso, os interessados deverão comparecer ao cartório e solicitar a confecção do instrumento público, contemplando a divisão do acervo. Essa escritura, por força do art. 982, parágrafo único do CPC, somente será lavrada se os interessados estiverem assistidos por advogado, que poderá ser comum a todos os interessados. Con-stará do ato notarial a assinatura do causídico, assim como a sua qualifi cação. Dispõe, com efeito, o art. 982, parágrafo único do Código: “O tabelião somente lavrará a escrit-ura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualifi cação e assinatura constarão do ato notarial”.

A presença do advogado atende ao disposto no art. 133 da Constituição Fed-eral, que esclarece ser o advogado indispensável à administração da justiça. Note-se que a presença do advogado nesse caso visa a resguardar os interesses dos envolvidos na partilha. Presume-se, na verdade, que as partes consultaram um profi ssional e que estão cientes da quota que lhes cabe do acervo.

A escritura pública lavrada constituirá título hábil ao registro imobiliário. Por outras palavras: lavrada a escritura pública, com a respectiva presença dos advogados ou de apenas um – se comum a todos os interessados -, deverá ela ser registrada no Cartório de Registro Geral de Imóveis, para os fi ns de ser formalizada a transferência da propriedade.

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A despeito de a Lei não fazer menção a outros órgão de registro, mencionando apenas o R.G.I, tudo indica que, havendo inclusão na escritura pública de acordo quan-to a um determinado automóvel, o registro no órgão competente deverá ser realizado. Nesse caso, deverá ser feita uma interpretação extensiva do art. 982 do CPC.

Dúvidas surgirão, no inventário administrativo, em relação ao imposto de transmissão causa mortis, da competência dos Estados-membros da Federação. Como o Legislador da reforma nada dispôs a respeito, deverá ser aplicada analogicamente a primeira parte do art. 1035, § 2º do CPC, de modo que o imposto deverá ser objeto de lançamento administrativo, conforme dispuser a legislação tributária.

A separação e o divórcio consensuais, desde que não haja fi lhos menores ou incapazes, podem, com a entrada em vigor da Lei n. 11.441/07, ser realizados pela via administrativa. Com efeito, o art. 1124-A do CPC, inserido pela reforma, dispõe que:

Art. 1124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo fi lhos meno-res ou incapazes do casal, e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à ret-omada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando de seu casamento.

O dispositivo inova no Direito Brasileiro ao permitir a dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal por meio de escritura pública, prescindindo-se de pronuncia-mento jurisdicional. Por outras palavras: o preceito autorizou a realização do divórcio e da separação consensuais pela via administrativa.

A primeira observação a ser registrada é que o art. 1124-A do CPC contempla uma faculdade para os interessados, até mesmo em virtude de o Legislador ter utilizado o verbo “poder”, que denota a idéia de faculdade. Em síntese: a separação e o divórcio consensuais poderão ser realizados por meio da via administrativa ou da via judicial.

Para realização da separação ou do divórcio pela via administrativa, o Legisla-dor exigiu o preenchimento de alguns requisitos. O primeiro deles é que os interessados estejam de comum acordo quanto às condições da dissolução, ou seja, somente admite-se a utilização da via administrativa quando a dissolução for consensual. Qualquer di-vergência entre os cônjuges obstará a utilização da via administrativa.

Outro requisito é que os cônjuges não tenham fi lhos menores ou incapazes. Havendo fi lhos, salvo se todos capazes, a dissolução por meio da via administrativa é ve-dada. Note-se que, mesmo que um fi lho seja maior, mas sendo ele incapaz, por qualquer outro motivo, não haverá possibilidade de ser realizada a dissolução administrativa do enlace matrimonial.

Da mesma forma, os prazos estabelecidos em Lei para dissolução tanto da so-ciedade como do vínculo conjugal deverão ser observados. Essa conclusão é facilmente extraída da própria redação do novel art. 1124-A do CPC.

Para a separação consensual, por exemplo, exige-se que o conúbio tenha sido

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realizado há pelo menos um ano, conforme previsto no art. 1574 do Código Civil9. Já para o divórcio direto consensual, haverá necessidade de o casal estar separado de fato por pelo menos dois anos, ex vi do disposto no art. 1580, § 2º do Código Civil10. A conversão da separação em divórcio, a seu turno, demandará, para sua realização, o tran-scurso do prazo de um ano, conforme art. 1580, caput da Lei civil11.

Feitas essas considerações, cumpre destacar que na escritura pública de separa-ção ou de divórcio consensuais deverão constar algumas disposições. A primeira delas é a relativa à descrição e à partilha dos bens comuns. Por outras palavras: os interessados deverão anuir quanto à partilha dos bens.

Da mesma forma, na escritura de dissolução deverá constar disposição sobre a pensão alimentícia. Essa cláusula deverá ser bem detalhada para evitar estorvos no fu-turo. O valor da pensão alimentícia, a forma de atualização, a data de seu vencimento, o termo ad quem deverão constar no instrumento público.

Destaque-se, ainda, que, na escritura de dissolução, não poderá constar dis-posição no sentido da renúncia aos alimentos. Se os interessados entenderem que os ali-mentos são prescindíveis, deverá ser inserida disposição no sentido de seu não exercício. Tal conclusão decorre do art. 1707 do Código Civil12.

Por fi m, deverá constar na escritura pública disposição referente à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou mesmo pela manutenção do nome adotado quando do enlace matrimonial. Nesse particular, os interessados têm plena autonomia para defi nir pela manutenção ou não do nome adotado quando do casamento.

A escritura pública somente poderá ser lavrada pelo Tabelião se os advogados dos interessados estiverem presentes, conforme o art. 1124-A, § 2º do CPC. É possível que apenas um único advogado assista ambos os consortes. De qualquer modo, deverá constar do instrumento público a qualifi cação do causídico, assim como a sua respectiva assinatura.

Uma vez lavrada a escritura pública, não haverá necessidade de homologação judicial. Ademais, a escritura pública constituirá título hábil para o registro civil e para o imobiliário, conforme previsto no art. 1124-A, § 1º do CPC.

Iremos aqui analisar alguns refl exos processuais oriundos da realização do in-ventário, da separação e do divórcio administrativos. Inicia-se essa análise pelo estudo da nulidade ou anulação da partilha realizada no inventário administrativo. Imaginemos que o inventário e a partilha tenham sido realizados pela via administrativa. Mas que,

9 O art. 1574 do CC reza o seguinte: “Dar-se-á a separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges se forem casados por mais de um ano e o manifestarem perante o juiz, sendo por ele devidamente homologada a convenção”.10 O art. 1580, § 2º do CC dispõe: “O divórcio poderá ser requerido, por um ou ambos os cônjuges, no caso de comprovada separação de fato por mais de dois anos”. 11 A redação do citado preceito é a seguinte: “Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer a sua conversão em divórcio”.12 O art. 1707 do CC reza: “Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”.

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por um lapso do Tabelião, a escritura pública tenha sido lavrada na presença das partes, sem, contudo, haver, no ato, advogado assistindo-as. Trata-se de situação em que houve violação ostensiva da regra prevista no art. 982, parágrafo único do CPC, que determina ser necessária a presença de advogado quando da lavratura da escritura de partilha.

No presente caso, haverá nulidade do ato for ofensa ao disposto no art. 982 do CPC, esclarecendo, outrossim, o art. 166, inc. V do Código Civil que “é nulo o negócio jurídico quando: for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade”. Ao eventual prejudicado, então, caberá propor a ação declaratória de nulidade da partilha, realizada na via administrativa.

Haveria possibilidade de convalidação da escritura pública de partilha no ex-emplo citado, caso o advogado subscrevesse o instrumento posteriormente? Não, pois o art. 169 do Código Civil determina que “o negócio jurídico nulo não é suscetível de confi rmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”.

Outra situação que poderá ocorrer é aquela em que eventual herdeiro já recon-hecido não tenha participado do inventário realizado na via administrativa. Nesse caso, o herdeiro preterido deverá manejar a ação declaratória de nulidade cumulada com a de petição de herança, na forma do art. 1824 do Código Civil.

Suponha-se que tenha sido realizada uma separação consensual pela via admin-istrativa, inserindo-se, no instrumento, cláusula sobre os alimentos. Suponha-se, ainda, que um dos interessados pretenda exoneração ou mesmo revisão dos alimentos que foram pactuados. Reza o art. 1699 do Código Civil o seguinte: “Art. 1699. Se, fi xados os alimentos, sobrevier mudança na situação fi nanceira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo.”

Havendo consenso entre os interessados quanto ao valor dos alimentos, não vejo óbice em relação à realização de uma nova escritura pública, modifi cando a cláusula anteriormente estabelecida. Por outras palavras: se, em sede de separação administrativa, for estabelecido o quantumdos alimentos e, posteriormente, os interessados entenderem conveniente modifi cá-lo, poderão fazê-lo por meio de outra escritura pública.

Mas, havendo confl ito quanto ao novo quantum, a única solução será a utiliza-ção da via judicial. O interessado na modifi cação do valor dos alimentos deverá aforar a respectiva ação revisional, com vistas a obter a sua alteração. Da mesma forma, poderá ser proposta a ação de exoneração, se o prejudicado pretender exonerar-se da obrigação alimentar; ou mesmo a de modifi cação de cláusula, caso a parte pretenda, por exemplo, converter o valor dos alimentos para importe em salários mínimos13.

13 A jurisprudência é tranqüila quanto à admissibilidade de fi xação de alimentos em salários mínimos. Sobre o exposto, pode-se colacionar o seguinte julgado: “in casu – no qual o salário mínimo foi utilizado como parâmetro para o fi m de fi xação do valor de alimentos – a inexistência da relação de trabalho não retira, do salário mínimo, a patente prestabilidade para estipulação do valor dos alimentos, a cuja prestação foi condenado o recorrido; ao reverso, dada sua presumida capacidade de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador, e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajuste periódicos que lhe preservem poder aquisitivo (art. 7º, IV, da CF), nenhum outro padrão seria mais adequado à estipulação de alimentos, porque estes devem atender a idênticas necessidades” (STF, Primeira Turma, 19.11.1991. RTJ 139/971. JSTF 159.227). Cf. CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 3. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 1999. p. 938 e 939.

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Realizada a separação consensual por meio de escritura pública e decorrido o prazo para ser requerido o divórcio, poderão os interessados, por meio de outra escritura pública, comparecer perante o Tabelião para realização do divórcio administrativo. Em-bora a lei não discipline expressamente essa situação – isto é, de conversão da separação em divórcio por meio de escritura pública– nada obsta a sua realização. Se a fi nalidade da Lei n. 11.441/07 é reduzir a atividade jurisdicional de somenos importância, outra interpretação não deve preponderar.

Assim, decorrido o prazo de um ano da realização da separação administrativa, poderão os interessados comparecer em Cartório e solicitar a realização da conversão da separação em divórcio, pela via administrativa.

E se a separação for realizada na via judicial, os interessados poderão, uma vez decorrido o prazo de um ano e desde que estejam de comum acordo, solicitar a realização da conversão da separação em divórcio? Nenhum óbice há na lei. Ao revés, essa exegese coaduna-se in totum com a própria mens legisoriunda da Lei n. 11.441/07, que é afastar do Judiciário questões de exígua relevância.

Por esse motivo, deve ser autorizada a realização da conversão da separação em divórcio na via administrativa, ainda que aquela tenha sido realizada pela judicial. Havendo consenso entre os interessados, nada obsta a realização da conversão por in-termédio do Tabelião.

Realizada a dissolução da sociedade conjugal, seja pela via judicial seja pela via administrativa, há, ainda, a possibilidade de ser restabelecido o vínculo. Na verdade, apenas com o divórcio é que o vínculo conjugal é rompido. Dispõe, com efeito, o art. 1577 do Código Civil: “Art. 1577. Seja qual for a causa da separação judicial e o modo como este se faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo.”

Indaga-se, então, sobre a possibilidade de ser restabelecida a sociedade conju-gal nos casos de separação administrativa. Não vislumbro qualquer óbice nisso. De fato, o art. 1577 do CC dispõe que “seja qual for a causa da separação judicial e o modo como este se faça” é possível restabelecer-se a sociedade conjugal.

Ora, se até mesmo nos casos de separação judicial, em que há manifestação de um Magistrado, por força do preceito colacionado admite-se o restabelecimento da so-ciedade conjugal, não se pode vislumbrar qualquer óbice quando a separação é realizada pela via administrativa. E o restabelecimento da sociedade conjugal nesse caso também poderá ser feito pela via administrativa. Outro entendimento não se coadunaria com o espírito da reforma.

Assim, realizada a separação dos cônjuges, seja pela via judicial ou administra-tiva, poderão eles restabelecer a sociedade conjugal por meio de nova escritura pública. Exigir-se, nesse caso, a manifestação do Magistrado seria trilhar senda contrária às modi-fi cações do CPC, que buscam a simplifi cação dos procedimentos e a desburocratização do Judiciário.

Para a dissolução do vínculo matrimonial exige-se a separação de fato por, pelo menos, dois anos ou mesmo o lapso temporal de um ano entre a separação e o divórcio.

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No primeiro caso, tem-se o divórcio direto e, no segundo, o divórcio por conversão. Am-bos, como visto, poderão ser realizados pela via administrativa, desde que preenchidos os requisitos legais.

Questão de relevo diz respeito à verifi cação dos prazos, até mesmo porque o art. 1124-A do CPC refere-se a “observados os requisitos legais quanto aos prazos”. Os prazos legais para decretação do divórcio, na esfera judicial, são verifi cados pelo Magis-trado. No caso de divórcio consensual administrativo, esses prazos deverão ser verifi ca-dos pelo Tabelião. Eis aqui situação que demandará muita cautela na prática, até mesmo para que não se realizarem divórcios sem observância dos prazos previstos em lei.

Recomenda-se, então, que o Tabelião deixe expresso na escritura pública a qualifi cação completa das testemunhas que atestem o decurso do prazo, no caso de di-vórcio direto consensual administrativo, de sorte a evitar impugnações posteriormente. Mas, no caso de divórcio por conversão, a verifi cação é bem mais simples, pois a prova documental corroborará o decurso do prazo, bastando que a ela seja feita remissão na escritura de conversão.

De qualquer modo, o importante é que, quando da lavratura da escritura públi-ca de divórcio, seja direto ou por conversão, os prazos sejam estritamente observados e devidamente corroborados.

O Legislador da reforma processual oriunda da Lei n. 11.441/07 não se repor-tou à união estável. Por outras palavras: o Legislador reformista reportou-se apenas à separação e ao divórcio, que são, respectivamente, meios de dissolução da sociedade e do vínculo conjugal. Ambos estão relacionados ao enlace matrimonial.

Indaga-se sobre a possibilidade de reconhecimento e respectiva dissolução de união estável, havendo consenso entre os interessados, na via administrativa, ou seja, por intermédio de escritura pública. O art. 1124-A do CPC, inserido pela Lei n. 11.441/07, como dito, não se reporta a essa situação.

Penso, contudo, que, atento ao espírito da reforma do CPC, não se pode deixar de admitir a dissolução da união estável de forma consensual pela via administrativa. Ob-viamente, essa dissolução somente poderá ser admitida nos casos em que os interessados estejam concordes quanto à partilha dos bens e em relação ao quantum dos alimentos, além de não haver fi lhos menores ou incapazes.

Quanto ao argumento de que a lei a ela não se reportou, trata-se de hipótese em que lex minus dixit quam voluit, ou seja, trata-se de situação em que o Legislador disse menos do que pretendia. A solução, então, é o emprego da analogia, para aplicar-se o art. 1124-A do CPC também aos casos de reconhecimento e dissolução de união estável.

Ademais, se o próprio enlace matrimonial pode ser dissolvido por meio de escritura pública, não se pode admitir que união estável não o seja, nos mesmos casos. São situações próximas e que merecem o mesmo tratamento legal, até em observância ao princípio da isonomia. Destaque-se, outrossim, que a união estável, salvo disposição contratual em sentido diverso, por força do art. 1725 do Código Civil, regula-se pelo regime da comunhão parcial de bens.

Pelos supramencionados motivos não vejo qualquer óbice na realização da dis-

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solução da união estável pela via administrativa, ou seja, por meio de escritura pública, lavrada pelo Tabelião. Obviamente que, nesse caso, os requisitos previstos no art. 1124-A e parágrafos do CPC deverão ser observados.

3. Considerações fi nais

O direito e as normas, não só no Brasil mais no mundo todo, foram criados como mecanismos de satisfazer os anseios da sociedade, e harmonizar o convívio dos seres humanos resolvendo os confl itos que por ventura ocorrerem.

Por este motivo, o processo civil brasileiro tem sido objeto de reformas com muita freqüência. Pretende-se, com a realização dessas modifi cações, modernizar o in-strumento judicial, adequando-o aos anseios da sociedade. O cidadão brasileiro, não tenho dúvida em afi rmar isso, almeja um processo judicial efetivo, justo, célere e que produza, de fato, resultados.

A Lei n. 11.441/07 procura modernizar o processo civil brasileiro, autorizando a realização do inventário, da separação e do divórcio, desde que haja consenso entre os interessados e não haja incapazes, pela via administrativa. Pretende-se, com isso, reduzir parcela do volume de atividade do Judiciário, liberando-se os Magistrados para que dire-cionem as suas atividades às demandas que realmente precisam de intervenção judicial.

Logo no início se falou sobre alguns aumentos de prazos que a lei trouxe, ques-tionando se eles não feriam o Princípio da razoável duração do processo e da celeridade, previsto no artigo 5º, inciso LXXVIII da CF, entretanto, apesar do aumento do prazo o processo fi cou mais célere e não fere de nenhuma forma este princípio, pois desafogou o judiciário ao permitir que os procedimentos de inventário, separação e partilha pudesse ser feito de forma administrativa, não mais dependendo do judiciário como no passado.

Pretendeu o legislador suprir a necessidade que a muito tempo se criou com o aumento das demandas judiciais desta natureza. Conseguiu-se com a Lei propiciar na operacionalização da separação, do divórcio e do inventário consensuais; a redução dos custos com a separação e o divórcio, uma vez que não haverá incidência de custas processuais, mas tão somente de emolumentos. Registre-se, outrossim, a quantidade de audiências que deixarão de ser realizadas com as medidas implementadas.

Diante de tudo, fi ca claro que a lei é constitucional a muito benéfi ca para a sociedade.

4. Referências Bibliográfi cas

BENFICA, Francisco Vani. O juiz, o promotor, o advogado: seus poderes e deveres. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983

CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 3. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 1999.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006.

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HERTEL, Daniel Roberto. Aspectos processuais da emenda constitucional 45. Rio de Janeiro: Revista Forense, 2006.

MAGALHAES, Rui Ribeiro. Instituições de Direito de Família. São Paulo: Direito, 2000.

VENOSA, Silvio Salvo de. Direito Civil: Direito de Família. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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PARTICULARIDADES SOBRE O RECURSODE AGRAVO.

José Gomes da Silva 1

Resumo: A apelação é o recurso cabível contra sentença modernamente defi nida por seu conteúdo, e não mais pelo seu efeito. Por exclusão, o pronunciamento judicial que resolve questão incidente não compreendida nas hipóteses dos arts. 267 e 269 do CPC é decisão interlocutória e desafi a o recurso de agravo. Embora o legislador tenha pro-curado uma subdivisão em agravo retido e agravo de instrumento, sendo aquele a regra e este a exceção, só cabível nas hipóteses de urgência quando a decisão for suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, a prática vem demonstrando situações que independem dessa urgência para sua interposição.

Palavras-chave: Sentença – conceito – agravo – cabimento recursal.

Abstract: The appeal is the fi tting resource against a modernly sentence defi nined by its content, and not by its effect. By exclusion, the judicial pronouncement that solves incident matters not comprised in the hypothesis of the 267 and 269 articles of the CPC is an interlocutory decision and defi es the resource of offence. Even though the legislature has tried to make a subdivision of the offence retained and of instru-ment, being the former the rule and the latter the exception, only fi tting in the hypothesis of urgency when the decision is susceptible to cause to the party hard lesion and diffi cult restoration, practice has shown sinations that independ on this urgency for its interposition.

1. Introdução

Segundo a norma insculpida no § 2º do art. 162 do Código de Processo Civil, “de-cisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente”.

O conceito é cristalino ao estabelecer que o pronunciamento2 judicial praticado no curso do processo resolvendo questão incidente que cause gravame a uma das partes, pode ser combatido por meio do recurso denominado de agravo.

Sabe-se que o juiz pratica atos no processo impulsionando-o até a sentença: termina-tiva, quando não aprecia o mérito; defi nitiva quando disser respeito ao mérito.

Da sentença, terminativa ou defi nitiva, implicando alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 do CPC cabe apelação, pois assim diz o art. 513; das decisões interlocutórias, a teor do art. 522, cabe agravo.

1 Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados. Coordenador do Grupo de Pesquisa: Direito e Sociedade.2 Para a Prof. Teresa Arruda Alvim Wambier a palavra “atos” por ser genérica demais vai além das três categorias constantes do art. 162, abrangendo também, por exemplo, a inquirição de testemunha, a inspeção judicial, o interrogatório informal, o depoimento pessoal das partes. Por isso, a expressão deve ser substituída por “pronunciamentos”. (Os agravos no CPC brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora RT, 2000).

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O despacho, aquele que se qualifi ca como o pronunciamento judicial garantindo a marcha processual sem causar lesividade a parte, não cabe recurso (art. 504). Semelhante-mente, os atos meramente ordinatórios, despidos de conhecimento técnico-jurídico pratica-dos por serventuário, tais como a abertura de dilação temporal para que a parte providencie as cópias das peças necessárias para a cientifi cação dos entes públicos na ação de usucapião (art. 943). Mas tanto um como o outro é impugnável por meio de agravo quando, ultrapas-sando os seus limites, ocasionem ônus ou afetem direitos das partes, máxime se irreparáveis, deixando de ser de mero expediente.3

Tratando-se de ato realizado por servidor, ainda que possa causar gravame às partes, a lei determina que seja revisto pelo juiz (§ 4º, do art. 162), a pedido ou ex offi cio. Somente depois dessa revisão é que enseja uma decisão interlocutória, desafi ando recurso de agravo.

Entendimento moderno, em face do novo conceito trazido pela Lei n. 11.232, de 22.12.2005, retirando da sentença o efeito de por fi m ao processo, a identifi cação de um pronunciamento judicial passou a ser pelo seu conteúdo. Resolvendo o processo em qualquer das hipóteses dos arts. 267 e 269, é sentença; por exclusão, o pronunciamento que resolve questão incidente não compreendida nas hipóteses mencionadas, é decisão interlocutória.

Da decisão interlocutória, se atém este trabalho. Antes da entrada em vigor da Lei n. 11.187, de 19.10.2005, o agravante poderia

optar ou pelo agravo retido ou pelo agravo de instrumento, exceto nas hipóteses previstas no § 4º do art. 523, revogado, em que o regime da retenção se impunha contra decisões proferi-das por ocasião da audiência de instrução e julgamento e posteriores à sentença, exceto nos casos de dano de difícil e incerta reparação, de inadmissão da apelação, e nos casos relativos aos efeitos do seu recebimento.

Com o advento da citada lei, a opção pelo regime do agravo praticamente não mais existe; a regra impõe o agravo retido, salvo as hipóteses preestabelecidas, tais como de de-cisões que não admitem apelação ou que defi nem os efeitos em que esta deverá ser recebida, quando o agravo é de instrumento.

2. O agravo retido

Nessa modalidade de agravo não há formação de instrumento, independe de prep-aro4 e como pressupõe a possibilidade de apelação da sentença, só pode ser interposto contra decisões interlocutórias proferidas em primeiro grau de jurisdição5.

3“Embora os despachos, como regra (CPC, art. 504), sejam irrecorríveis, contra os mesmos também cabe agravo, nos casos de despachos errados que causem prejuízo às partes.” (José Miguel Garcia Medina e Teresa Arruda Alvim Wambier. Processo civil moderno. Recursos e ações autônomas de impugnação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 156, n. 6.2.3).4 Logo, não há deserção.5 Há um projeto de lei de autoria do Deputado Paes Landim, tramitando na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, com objetivo de difi cultar ainda mais a subida de recursos especial e extraordinário. A idéia é transformar o agravo de instrumento apresentado aos tribunais superiores quando o tribunal local nega a subida desses recursos, em agravo nos próprios autos, parecido com o agravo retido. O agravo, se aprovado o projeto, será analisado pelo próprio desembargador que negou seguimento ao recurso. Só depois de nova negativa pelo tribunal a quo é que a parte poderá bater às portas do tribunal superior pedindo a subida do seu recurso. O objetivo é desafogar os tribunais superiores, mas, em consequência, afoga os tribunais de segunda instância.

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6 Diz-se temporal a preclusão quando a parte não age dentro do prazo peremptório estipulado em lei.

O objetivo da retenção é simplesmente evitar a preclusão sobre a matéria ver-sada na decisão atacada. Logo, não há, nessa decisão, interesse da parte na sua revisão imediata por não lhe trazer prejuízo iminente ou lesão grave e de difícil reparação, ou porque é mais célere a retenção do recurso nos autos, poupando despesas desnecessárias, como o preparo e até mesmo aquelas para formação do instrumento. A questão pode ser apreciada futuramente, quando de eventual recurso de apelo.

Assim, uma vez interposto, o recurso deverá ser simplesmente encartado nos autos do processo, aguardando o seu desfecho fi nal com a prolação de sentença, recaindo à parte agravante o ônus de requerer expressamente nas razões do apelo ou na resposta, acaso seja o vencedor, que o tribunal julgue preliminarmente à apelação.

Caso o agravante não requeira expressamente sua apreciação nas razões ou na resposta da apelação, o tribunal não o conhecerá por ocasião do julgamento, suben-tendendo-se ter havido desinteresse, desistência tácita do recurso de agravo ou por ter encontrado satisfação para sua pretensão independentemente da solução do agravo.

O agravo oportuniza ao juiz retratar-se; basta convencer-se do equívoco. O juízo de retratação é inerente ao agravo retido ou de instrumento, inspirado que foi no princípio da economia processual, impedindo o alongamento desnecessário da de-manda.

Encartado o agravo nos autos do processo, cabe ao juiz analisá-lo, pois o ex-ercício da judicatura não é uma faculdade, mas um dever. Nele há, ainda que implícito, pedido de retratação. Encontrando-se o juiz seguro da sua decisão não lhe resta outro caminho a fazer senão dar prosseguimento, sem mais delongas, ao feito; inclinando-se pelo retrato, deve, antes de fazê-lo, provocar o contraditório.

O juiz só deve ensejar oportunidade ao agravado para manifestar-se sobre o agravo retido quando, em virtude das razões recursais apresentadas, surgir para ele dúvi-da objetiva quanto ao acerto da sua decisão.

As decisões interlocutórias proferidas na audiência de instrução e julgamento, desafi am agravo retido interposto oralmente, como estabelece o § 3º, do art. 523 do CPC. E segundo a lei, o ataque é imediato, o que pressupõe logo após a prolação de cada decisão. Se a decisão não implica algumas das situações previstas nos arts. 267 e 269 do CPC, ditada e transcrita ela na ata da audiência surge o momento adequado, devendo a parte irresignada solicitar ao juiz que lhe dê oportunidade para interposição do seu recurso.

A interposição do recurso oral vem de encontro com os princípios do Código e é uma faculdade atribuída às partes.

O que não pode é a parte que se sentir prejudicada guardar sua irresignação para o desfecho da audiência, porque, nesse caso, há preclusão processual (temporal)6 pela fl uência do prazo sem a reação adequada e oportuna.

O agravante não precisa impressionar sua erudição, até porque o momento não é adequado e nem sempre se comparece a uma audiência portando armas com munições ap-

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ropriadas para todas as hipóteses possíveis; basta que de forma sucinta demonstre os errores in procedendo ou in judicando e formule pedido de reforma da decisão, tudo a constar do termo.

De igual modo, como dito acima, inclinando-se o juiz pelo retrato, após ouvir as razões do recurso ditadas oralmente, deve, também de imediato, provocar o contra-ditório, facultando a parte ex adversa ao agravante, responder ao recurso de forma oral, concedendo-lhe prazo razoável para tanto, decidindo, fundamentadamente, em seguida.

Evidente que da sua retratação abre oportunidade para que a parte agravada interponha o seu agravo, sempre oralmente.

Questão não prevista na lei e que pode surgir no dia-a-dia forense é se o juiz indeferir o pedido da parte que pretende agravar, não lhe concedendo espaço para ditar suas razões de recurso.

Parece-me que se trata de arbitrariedade, mas, no calor da audiência, nada há a fazer, exceto requerer ao juiz que conste da ata o indeferimento. Nesse caso, a parte não pode ser prejudicada, só lhe restando agravar posteriormente. Para evitar surpresas, con-vém que o apresente por escrito, protocolizando-o logo após o desfecho da audiência.

Não há previsão legal quanto ao cabimento do agravo na modalidade retida, quando a decisão interlocutória for proferida em audiência que não seja a de instrução e julgamento. Evidente que a parte não fi ca privada do recurso. De bom alvitre que nas demais audiências, diante da ausência de norma expressa, prevaleça a garantia constitu-cional da ampla defesa: a opção é da parte – agrava-se retido oralmente, ou na forma prevista no art. 522.

Outra questão que me parece oportuna abordar é a decisão interlocutória pro-ferida na audiência, passível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação. O agravo retido, cujo interesse primeiro não é a revisão imediata, não satisfaz. A solução é o agravo de instrumento, devido à urgência da situação de fato que se apresenta.

Nesse sentido, leciona Humberto Theodoro Júnior7:

“Quid iuris se a questão decidida em audiência envolver lesão grave e de difícil repara-ção para a parte? Penso que em situação como aquela em que o juiz decreta a prisão na audiência ou determina o levantamento incontinenti do dinheiro em depósito, sem caução, e outras equivalentes, não fi cará a parte jungida à via do agravo retido oral. A situação sairá da área de incidência do § 3º do art. 523 e passará para a tutela especial da ressalva contida no art. 522. Vale dizer: confi gurada a “decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação”, é direito seu a impugnação fora do regime comum do agravo retido e com a celeridade própria do agravo de instrumento. Para se precaver do risco de se supor atingido por preclusão, pode a parte requerer que conste do termo de audiência seu propósito de atacar o decisório por agravo de instrumento nos termos e no prazo do art. 522. Advirta-se, porém, que a medida é de simples cautela, porque, de fato, a natureza da decisão, por si só, a afasta da regra do § 3º do art. 523 (agravo retido oral), tornando-a agravável por instrumento (art. 522).”

Situações outras podem surgir nas quais o regime de retenção não pode ser ob-

7 Curso de direito processual civil. Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 50. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 602.

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servado. Um dos casos, por exemplo, quando a decisão tiver sido proferida em processo de execução, que de regra não tem sentença, inviabilizando posterior reiteração.

3. O agravo de instrumento

Diferente do agravo retido, que é interposto perante o mesmo juiz que profe-riu a decisão objurgada, o agravo de instrumento é apresentado diretamente no tribunal ad quem para, posterior aviso ao juízo a quo.

Diz-se instrumento para designar a forma do recurso. É ele processado fora dos autos principais, que permanecem junto ao juízo a quo. Para que esses autos princi-pais não subam ao tribunal, forma-se um instrumento paralelo, com as peças exigidas pelo art. 525, tais como, cópia da decisão agravada, certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado. As cópias deverão ser declaradas autênticas pelo próprio advogado sob sua responsabilidade pessoal (§ 1º do art. 544).

Essa modalidade de agravo que anteriormente à Lei n. 11.187/2005 era a regra, passou a ter uma posição de exceção, somente cabível quando se voltar contra: a) decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação; b) decisão que inadmite a apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida (art. 522).

Não há na doutrina e na jurisprudência defi nição a respeito da expressão “lesão grave e de difícil reparação”. Deixou-a o legislador em aberto. No entanto, é possível fazer uma analogia aos casos elencados no art. 558, caput, obviamente sem exaustão de tais hipóteses ali citadas. Tem-se também analisado a expressão sob a ótica das tutelas de urgência, pois não é diferente do periculum in mora; o propósito não foi outro senão afastar o perigo de dano grave, de forma que a parte prejudicada pela decisão interlocutória não pode aguardar a oportunidade da futura apelação para buscar a tutela sem sofrer perda ou redução signifi cativa em sua esfera jurídica.

Desafi a também o agravo de instrumento, como acima já dito, decisões in-terlocutórias proferidas em processo de execução, diante da inexistência de sentença e também contra decisões que não admitem recurso especial ou extraordinário (art. 544), quando o recurso é endereçado à presidência do tribunal, que o remeterá ao tribunal competente.

Porque o interesse maior é na continuidade do procedimento, se a cada decisão interlocutória paralisar a sua tramitação, certamente que haverá alongamento excessivo de seu tempo, então o recurso na modalidade instrumental é normalmente recebido no efeito devolutivo, mas o relator poderá, liminarmente, atribuir-lhe efeito suspensivo, ou deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal (art. 527, III). A decisão do relator é irrecorrível, somente sendo “passível de reforma no mo-mento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar” (parágrafo único do art. 527).

Embora irrecorrível, parece-me possível provocar o relator a rever sua decisão através de simples petição a ele dirigida, já que, segundo o dispositivo, ele próprio tem

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a faculdade de reconsiderar. Basta, é claro, que se fundamente adequadamente, procu-rando convencê-lo à revisão8, até porque, é controvertido o entendimento para utilização do mandado de segurança diante da irrecorribilidade expressa na lei9. O STF baixou Súmula no sentido de que “não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição” (Súmula 267), inaplicável à hipótese, pois, não há recurso por expressa disposição da lei, entendendo parte da doutrina que pode a parte utilizar do mandado de segurança10.

Faculta a lei ao relator a conversão do agravo de instrumento em retido (art. 527, II) e dessa decisão também não cabe recurso. O que foi dito com relação a denega-ção do efeito suspensivo, serve para essa hipótese de conversão, recaindo à parte, através de simples pedido de reconsideração ou através de mandado de segurança, demonstrar que de nada adiantará o tribunal julgar o agravo preliminarmente à apelação, pois a tutela buscada não pode esperar até aquela oportunidade diante da situação jurídica de urgên-cia.

4. Agravo interno

Agravo interno é o recurso específi co, cabível contra decisão monocrática in-terlocutória, proferida por relator no tribunal. Objetiva tal recurso levar a decisão singu-lar ao conhecimento do colegiado, para que seja reformada mediante apreciação coletiva, a que se refere o § 1º do art. 557 do CPC.

O art. 557 deixa claro que em casos de manifesta inadmissibilidade, impro-cedência, divergência com súmula ou com jurisprudência fi rme do tribunal local, do Su-premo Tribunal Federal, ou do Superior Tribunal de Justiça, deve o relator negar segui-

8 Para agravar, na modalidade de instrumento, a parte tem de comprovar o risco de lesão grave e de difícil reparação que a decisão agravada lhe acarreta. O relator deverá reconhecer a existência desse risco, o que torna ilógico denegar o efeito suspensivo, quando requerido. Porém, sendo irrecorrível sua decisão denegatória, cabe à parte apenas aceitá-la. Por isso, a provocação, por simples petição, para que o indeferimento seja revisto, parece-me oportuno.9 “Por ser garantia constitucional, não é possível restringir o cabimento de mandado de segurança. Sendo irrecorrível, por disposição expressa de lei, a decisão que determina a conversão de agravo de instrumento em agravo retido, ela somente é impugnável pela via do remédio heróico. O pedido de reconsideração tem, na hipótese do art. 527, parágrafo único, CPC, natureza recursal. A possibilidade de haver retratação pelo relator indica apenas que a legislação afastou a ‘preclusão pro judicato’. Assim, o pedido de reconsideração é simples decorrência lógica do sistema de preclusões processuais. Agravo previsto em Regimento Interno do Tribunal local não é meio idôneo para a reforma da decisão unipessoal que retém o Agravo de Instrumento. Com efeito, o legislador ordinário, detentor do legítimo poder de representação democrática, determinou, no art. 527, parágrafo único, CPC, que a retenção do agravo de instrumento ‘somente é passível de reforma no momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar’. Não pode se admitir, portanto, que a norma regimental se sobreponha à lei federal, criando recurso onde ela expressamente o afastou. Já com a retenção do agravo pode haver violação a direito líquido e certo do impetrante. Com a violação, nasce para o impetrante a pretensão de obter segurança para afastar o ato coator.”STJ, 3ª T., RMS 25.143/RJ, rel. Min.Nancy Andrighi, j. 04.12.2007, DJ 19.12.2007, p. 1221). Cf. também STJ, 3ª T., RMS 22.847/MT, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 01.03.2007, DJ 26.03.2007, p. 230; STJ, 1ª T., RMS 23.536/BA, rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 18.03.2008, DJ 16.04.2008, p. 1, in José Miguel Garcia Medina e Teresa Arruda Alvim Wambier. Processo civil moderno. Recursos e ações autônomas de impugnação. Ob cit., p. 173-174. 10 Nesse sentido: José Miguel Garcia Medina e Teresa Arruda Alvim Wambier. Processo civil moderno. Recursos. Op. cit., p. 172-173.

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11 Revista de Processo n. 148, junho de 2007, p. 111-118.12 Súmula 255: “Cabem embargos infringentes contra acórdão, proferido por maioria, em agravo retido, quando se tratar de matéria de mérito.” 13 Art. 403 e inciso I, do art. 404, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.

mento ao agravo. Dessa decisão, negando seguimento liminar ao agravo, é que cabe o agravo interno.

Essa modalidade de agravo interno também é cabível nos casos de decisão que não admitir embargos infringentes.

5. Princípio da correspondência

Em excelente artigo publicado na Revista de Processo11, o Prof. Jorge de Ol-iveira Vargas demonstra agressão a esse princípio ao admitir-se agravo contra sentença que não põe fi m ao procedimento.

Para ele, o recurso, nessas hipóteses, tem de ser o de apelação para não ferir os princípios da correspondência recursal, da isonomia e do devido processo legal.

Exemplifi cando, lembra o caso de exclusão de um litisconsorte na fase do saneamento e de outro na sentença fi nal. Nessa hipótese, há tratamentos desiguais para situações iguais, pois na primeira, a parte deverá utilizar-se do agravo, enquanto que na segunda, da apelação.

Outras hipóteses podem ser acrescidas, como a decisão que indefere liminar-mente a inicial da reconvenção, da declaratória incidental, que reconhece a prescrição em favor de um dos réus.

E o mencionado professor destaca as muitas diferenças entre os recursos de apelação e agravo: “a) a apelação deve ser interposta no prazo de quinze dias (art. 508), enquanto que o agravo no de dez dias (522); b) a apelação é interposta perante o juiz de primeiro grau e pelo mesmo não será recebida quando a sentença estiver em conformi-dade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal; já o agravo tem o seu juízo de admissibilidade analisado em segundo grau e será convertido em retido “salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, (...)” (art. 522); c) em relação a apelação, regra geral, não se admite juízo de retratação (art. 463), já em relação ao agravo admite-se (arts. 523, § 2º, e 529); d) do acórdão não unânime que reformar a sentença de mérito em grau de apelação, cabe embargos infringentes (art. 530); em se tratando de agravo, em princípio, pelo texto legal, não cabe embargos infringentes, apesar do contido na Súmula 255 do Superior Tribunal de Justiça;12 e) tratando-se de apelação, com as exceções previstas no § 3º do art. 551, haverá revisor, já no recurso de agravo, não; f) no julgamento do recurso de apelação, poderá haver sustentação oral (art. 167 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná), no julgamento do agravo, não (§ 1º do citado artigo)13.”

Nesse diapasão, anota o mencionado articulista, que o argumento daqueles que defen-dem o agravo ao invés da apelação é por questões de ordem prática, para que o processo não suba ao tribunal, impedindo o andamento em relação às demais questões ainda não solucionadas.

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Para solução do problema, traz por analogia, a aplicação do disposto no art. 583, parágrafo único do Código de Processo Penal, subindo o recurso em traslado.

Não resta dúvida que a questão trazida à baila pelo Professor é interessante e apropriada. Assim, com as inovações contempladas pela Lei n. 11.232, de 22.12.2005, defi nindo as sentenças pelo seu conteúdo14, o sólido sistema da correspondência recursal sofreu abalos, mas deve-se cuidar para que as trevas do Código de 1939 que abrigavam um sistema recursal confuso, não retornem.

A experiência nos reserva a inviabilidade da apelação em tais situações. Ainda que tais pronunciamentos constituam uma zona cinzenta entre o que é sentença e o que é decisão interlocutória, melhor que continuemos como estamos: “O procedimento da apelação, recurso cabível contra sentença, foi estruturado a partir da premissa de que a instância se encerrou. O do agravo, recurso contra decisão interlocutória, pressupõe que o procedimento continua em primeira instância.”

6. Notas conclusivas

Dentro da nova sistemática do Código de Processo Civil, o agravo de instru-mento recebeu nova disciplina, a começar pela denominação. Agora é simplesmente agravo.

Embora o legislador tenha procurado uma subdivisão em agravo retido nos autos e agravo de instrumento, sendo aquele a regra e este a exceção, só cabível nas hipóteses de urgência quando a decisão for suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, a prática vem demonstrando situações outras que desafi am o recurso e independente da urgência, não tem como fi car retido nos autos, como é o caso da inter-locutória proferida no processo de execução; em outras, quando deveria fi car retido por expressa disposição legal, a decisão trás em si confi gurado o risco de lesão hábil a ensejar a via instrumental.

7. Bibliografi a.

Fredie Didier, Abelha, Marcelo e Jorge, Flávio Cheim. A terceira etapa da reforma processual civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.

Medina, José Miguel Garcia e Wambier, Teresa Arruda Alvim. Processo civil moderno. Recursos e ações autônomas de impugnação. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-nais, 2008.

Theodoro Júnior, Humberto. Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 50. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

14 Fredie Didier, Marcelo Abelha e Flávio Cheim Jorge. A terceira etapa da reforma processual civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 70-71.

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Vargas, Jorge de Oliveira.

Wambier, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 3. ed. São Paulo: Edi-tora Revista dos Tribunais, 2000.

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TEORIA GERAL DO PROCESSO: As Diferentes Visões Teóricas que Surgiram no Decorrer da História do Direito Sobre o Processo.

Davi Souza de Paula Pinto 1

Resumo: Visando abordar sobre as diferentes Teorias do Processo encontradas no curso histórico-jurídico, o artigo centra-se no estudo da Teoria do Processo com Contrato, de Pothier, a Teoria do Processo com Quase-Contrato, de Savigny e Guényva, a Teoria do Processo como Relação Jurídica, de Oskar von Bülow, a Teoria do Processo como Situação Jurídica, de Goldschimidt, a Teoria Constitucionalista do Processo, a Teoria do Processo como Instituição Jurídica, formulada por Guasp, a Teoria do Processo como Procedimento realizado em Contraditório, de Elio Fazzalari e a Teoria Neo-instituciona-lista do Processo, de Rosemiro Pereira Leal, visando mapear os principais pontos dessas teorias, bem como apontando a evolução que a Teoria do Processo teve no decorrer da história.

Palavras-chaves: procedimento, processo, teorias.

Abstract: Aiming to address the different Judicial Processes theories found in the current historical-legal, the article focuses on the study of Procedure theory with Contract of Pothier, the Theory of Quasi-Contract of Savigny and Guényva, and the Theory of Process as legal relation, Oskar von Bülow, the Theory of Process as Legal Status of Goldschimidt, the Constitucionalist Process Theory, the Theory of Procedure as Law Institution, made by Guasp, the Theory of Process as Procedure held in Contraditory of Elio Fazzalari and Neo-institutionalist theory of Procedure, of Rosemiro Pereira Leal, mapping the main points of these theories, as well as pointing the evolution of procedure theory took place in the story.

Keywords: Procedure, Processes, Theories.

1. Introdução Esta pesquisa pressupõe abordar sobre as diferentes Teorias do Processo en-

contradas no curso histórico-jurídico, no qual pretendemos aprofundar ao máximo.

Dividimos a presente pesquisa em vários tópicos, cada um, destinado a uma teoria.

Veremos que na Teoria do Processo com Contrato Pothier o processo se apresentava como um pacto. A segunda teoria apresentada será a Teoria do Processo com Quase-Contrato, observaremos os principais pensamentos de Savigny e Guényva.

Na Teoria do Processo como Relação Jurídica, veremos que a teoria tratará sobre a

1 Estudante de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Betim.

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relação jurídico-processual existente entre os sujeitos do processo (juiz, autor, e réu), dentre outras peculiaridades. Esta teoria será tratada conforme os pensamentos de Oskar von Bülow. Posteriormente abordaremos a Teoria do Processo como Situação Jurídica, de Goldschimidt, formulada em 1925.

Pressupõe também a pesquisa explicações sobre a Teoria Constitucionalista, do processo, abordando acerca da importância dos princípios constitucionais: ampla defesa, isonomia e contraditório, reserva legal, dentre outros.

A Teoria do Processo como Instituição Jurídica, formulada por Guasp, será estu-dada através do conceito de instituição. Por ultimo, abordaremos a Teoria do Processo como Procedimento realizado em Contraditório, de Elio Fazzalari e a Teoria Neo-institucionalista do Processo, do brilhante prof. Rosemiro Pereira Leal.

2. Teoria do processo como contrato

O criador e sustentador desta teoria é Pothier, que buscou inspiração em Ul-piano e Rosseau. Confi rma-nos, Alvim prolatando que a fonte de inspiração foi um texto de Ulpiano, que, traduzido, resulta “em juízo se contrai obrigações, da mesma forma que nas estipulações” (ALVIM, p.150, 2003).

Sustentam alguns doutrinadores, que Pothier retirou seus fundamentos no Direito Romano.

Afi rmam Maria da Glória Colucci e José Maurício Pinto de Almeida, na obra, Lições de Teoria Geral do Processo, que a teoria do processo como contrato “desenvolveu-se ligada às raízes romanas do processo, em que este se apresentava como um pacto (liti-contestatio) em que os litigantes voluntariamente se submetiam à autoridade do árbitro, por eles escolhido” (COLUCCI; ALMEIDA, p.123, 1999). Nota-se que não eram as partes obrigadas a comparecer em juízo, se fossem, porém, estariam elas subordinadas a qualquer decisão tomada pelo árbitro. Desta maneira, Pothier sustenta sua teoria.

Alvim, apesar de demonstrar a convicção de que Pothier sustentou sua teoria através das idéias de Ulpiano e Rosseau, admite também a possibilidade de ligação e in-fl uência do direito romano da seguinte maneira:

“Na fase remota do direito processual romano, O Estado não havia alcançado ainda um estágio de evolução, capaz de permitir-lhe impor a sua vontade sobre a das partes litigante. Procurava-se, por isto, uma justifi cação, pela qual a sentença pudesse ser coer-citivamente imposta aos contendores. Isto era possível em virtude da litiscontestatio, em virtude da qual as partes convencionavam aceitar a decisão que viesse a ser proferida pelo index ou arbiter” (ALVIM, p.150, 2003)

Vê-se que um dos principais fundamentos no direito romano para que uma sentença tivesse efi cácia era a litiscontestatio, sendo necessário, portanto, um acordo prévio das partes de comparecer em juízo e aceitar a decisão, desfavorável ou favorável.

Podemos observar que Pothier assim como os Romanos faziam, também “ins-taurava-se o processo pela litiscontestatio (convenção das partes perante o juiz para acatar a decisão proferida), e o juiz será o árbitro judicial e facultativo e não órgão jurisdicional

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monopolizador da jurisdição” (LEAL, p.77, 78, 2008). Tal facultatividade do exercício da jurisdição e esta ausência do monopólio do Estado nos soam estranho. Assunto que reservaremos para o momento oportuno.

Diante do exposto não nos resta dúvida que o processo para Pothier é um contrato realizado entre os litigantes que se fi rmava somente “com o comparecimento espontâneo das partes em juízo para a solução do confl ito” (LEAL, p.77, 2008).

As críticas que se fazem atualmente da teoria do processo como contrato con-cerne principalmente a litiscontestatio, que “desapareceu por completo: o juiz não é mais um mero árbitro, mas representante do Estado (é órgão do Estado); a jurisdição é verda-deira função estatal” (ALVIM, p.151, 2003).

O Processo não pode ser encarado como “um verdadeiro negócio jurídico de direito privado” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, p.281, 1996), muito pelo contrário, devemos observar que o Estado é o detentor da jurisdição e o Juiz é um órgão competente que a executa em seu nome.

Surgiram no decorrer histórico, doutrinadores, que tentaram tornar relativo o processo como contrato, denominando a teoria do processo como quase-contrato. Tema reservado no seguinte tópico.

3. Teoria do Processo como Quase-Contrato

Em se tratando de termos históricos esta teoria surgiu por volta de 1850 de-fendida pelo Savigny e Guényva. Os teóricos, ao tentarem contornar as críticas da teo-ria supramencionada insistiram em “enquadrar o Processo na esfera do direito privado, afi rmou que, em não sendo o Processo tipicamente um contato deveria ser um quase-contrato” (LEAL, p.78, 2008).

Segundo o magistral entendimento do professor Rosemiro Pereira Leal o pro-cesso era considerado um quase contrato pelos teóricos, por que,

“a parte que ingressava em juízo já consentia que a decisão lhe fosse favorável ou desfa-vorável, ocorrendo um nexo entre o autor e o juiz, ainda que o réu não aderisse esponta-neamente ao debate da lide” (LEAL, p.78, 2008)

Nota-se que quando o juízo é provocado por uma das partes, presume-se que esta já concorda com os termos que serão proferidos em decisão, não importando o interesse da outra parte. A relação em questão se dá entre autor e juiz.

Nesta teoria houve uma singela modifi cação do entendimento de litiscontesta-tio, que antes era uma convenção das partes perante o juiz que proferiria uma decisão que seria acatada. Para Savigny e Guényva o consentimento não era inteiramente livre, motivo este que levou os autores a acreditar que o processo “não era um contrato, que pressupõe vontade livre, sendo algo semelhante a um contrato, algo como se fosse um contrato, embora contrato não fosse” (ALVIM, p.152, 2003)

Importante notar que esta teoria não se afastou do âmbito privado, os teóricos “foram buscar nas fontes romanas os fundamentos para a sua teoria. O texto de inspira-

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ção foi um fragmento romano “De Pecúlio”” (ALVIM, p.151, 2003). Este foi o fato que culminou a maior parte das críticas desta teoria.

Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini, Candido R. Dinamarco, de-claram que Savigny e Guényva partiu de um erro metodológico que “consiste na crença da necessidade de enquadrar o processo, a todo custo, nas categorias do direito privado” (CINTRA; GRINOVER, DINAMARCO, p.282, 1996)

Visto todas as criticas das teorias, até então existentes, tornou-se claro a ne-cessidade de novas teorias. Oskar Von Bülow sistematizou uma teoria, conhecida como Teoria do Processo como Relação Jurídica, que muito contribui para o sistema proces-sual que hoje conhecemos.

4. Teoria do Processo como Relação Jurídica

A Teoria do Processo como contrato e do Processo como quase-contrato, em pouco favoreceu o sistema processual, ambas, voltadas para o âmbito privado foi forte-mente criticadas.

No exato ano de 1868, Oskar von Bülow, “pública na Alemanha uma obra in-titulada. A Teoria das Exceções Processuais e os Pressupostos Processuais” (ALVIM, p.161, 2003). A teoria basicamente trata sobre a relação jurídica processual ocorrente entre as partes e o juiz. Esta idéia já foi discutida por vários outros autores, porém afi rma Alvim que mérito à Bülow se dá pela “sistematização da relação processual” (ALVIM, p.162, 2003) e não propriamente da existência da relação processual.

Importante fazer nota, que esta teoria “predomina, até hoje, na confecção dos códigos e leis processuais, foi aprimorada por Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei e Lie-bmam” (LEAL, p. 78, 2008), outros doutrinadores de extrema importância.

Para compreendermos a teoria em questão, devemos partir de um momento histórico de extrema importância para o Direito. Vejamos o que nos descreve Alvim:

“Desde o momento em que o Estado vedou ao particular a autotutela ou autodefesa dos próprios interesses, permitindo-a apenas em algumas hipóteses restritas, assumiu para si a obrigação de solucionar o confl ito de interesses” (ALVIM, p.163,2003)

O Estado, antes delimitado pelos particulares, era tido apenas, como espe-ctador de tantas relações realizadas entre os particulares. Não podendo intervir. Muitas denominações lhe foram atribuído, a título de exemplo: Estado Polícia, onde poderia agir somente dentro dos limites estabelecidos e das liberdades individuais.

Com o passar do tempo o Estado foi sendo requerido pelos indivíduos para solucionar os problemas concernentes às relações. Passaria assim, o Estado, a ser o único detentor da jurisdição, tendo, portanto, a obrigação de resolver os confl itos de inter-esses.

Importante dar ênfase de que apesar de ser o detentor da jurisdição, o “Esta-do-juiz não age de ofi cio; aguarda sempre a provocação de quem se julga com direito a uma prestação por parte de outrem” (ALVIM, p.163, 2003). Outras limitações ou

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atribuições também foram previamente estabelecidas em lei, devendo o Estado através de seus órgãos respeitarem.

Bülow trabalha em sua teoria afi rmando também que no processo existem duas relações jurídicas, que são completamente diferentes. Mostra-nos Colucci e Almei-da que existem as de “direito material, que no processo se discute, e a de direito formal, que se estabelece entre os sujeitos do processo” (COLUCCI, ALMEIDA, p. 124, 1999). Para melhor compreendermos como se dá as duas relações jurídicas, vejamos o excelente exemplo destacado pelos próprios autores.

“no processo, o autor pleiteia o pagamento de uma quantia que lhe é devida; antes de peticionar em juízo, já existia entre este mesmo autor e o mesmo réu um vínculo, ou seja uma relação jurídica de direito material, fundada num contrato, no qual o autor fi gura como credor e o réu como devedor; somente depois de vencido o prazo, e não paga a dívida, é que o titular do direito de crédito veio a juízo reclamar o inadimplemento do contrato, iniciando-se a relação jurídica processual, que só se completou com o chama-mento do réu a juízo através da citação” (COLUCCI, ALMEIDA, p. 124;125; 1999)

Em termos técnicos a relação material se dá entre as partes, pode ser pública ou privada, mas será sempre questão de direito público.

O caso acima, nos mostra que no direito material há uma relação entre particu-lares que quando postulada em juízo devido o inadimplemento de uma obrigação, inicia-se outra relação. A segunda relação é destacada por Bülow de relação jurídica processual, ou direito formal. Importante lembrar, que não haverá tal relação se o réu não for sequer chamado a juízo.

O autor quando possui um direito de ação poderá exercê-lo ou não. Caso este “se dirige ao juiz, exercendo o direito de ação, nasce aí uma relação jurídica entre autor e o juiz” (ALVIM, p.164, 2003). Este vínculo, porém, para considerarmos, relação jurídica processual deve completar-se, pois falta a presença do réu, que deverá ser demandado.

O réu pelo menos, deverá ter ciência de que há postulado em juízo uma ação em seu nome. Caso não tenha conhecimento o juiz não poderá atribui nenhuma decisão “sem ouvir o réu. (...) Dando-se conhecimento ao réu de que foi ajuizada uma ação contra ele, também o réu passa a ser interligado aos demais sujeitos processuais (...) pela mesma relação jurídica” (ALVIM, p. 164, 2003)

A título de curiosidade sabemos que os sujeitos principais da relação proces-sual, conforme vislumbrado são: demandante (autor), demandado (réu), Estado (juiz), porém demonstra a doutrina que no processo “não há apenas juiz e partes, pois dele par-ticipam vários outros sujeitos, secundários, tais como auxiliares do juízo” (COLUCCI; ALMEIDA, p.125,1999) dentre outros.

Outra curiosidade interessante é que o autor e réu poderão ser sempre “su-jeitos parciais, pois o que pretendem em juízo é que prevaleçam seus interesses, ao passo que o juiz (...) é sujeito principal e imparcial” (COLUCCI, ALMEIDA, p.125, 1999). Nota-se que, conforme já observamos o Estado ao exercer a jurisdição têm limitações e atribuições estabelecidas em lei: A imparcialidade do juiz é uma delas.

O que não pode restar dúvida é que entre os sujeitos do processo se esta-

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belecem vínculos, justifi cando mais uma vez, a denominação da Teoria de Bülow: Teoria da Relação Jurídica.

Em resumo, as relações jurídico-processual, apresentam-se da seguinte forma:

“1. os sujeitos principais do processo: o autor, o réu e o juiz; 2. o objeto, ou seja, a prestação jurisdicional, pela qual autor e réu aguardam a solução do litígio e a declaração de direito aplicável ao caso; 3. os pressupostos ou requisitos para exigência do processo: um pedido, já que a jurisdição é inerte e só age quando provocada; a capacidade de quem formula o pedido; e a investidura do destinatário do pedido, o juiz, que deve ser o legitimo representante do Poder Público, como tal investido” (COLUCCI; ALMEIDA, p.125, 1999)

Vê-se, portanto, que para relação jurídico-processual, é necessário que todos os requisitos estejam presentes e sendo observados: capacidade de quem formula o pe-dido; legitimidade do juiz, provocação da jurisdição, objeto do litígio. Etc.

Bülow em sua teoria faz a distinção de processo e procedimento. Processo é um instrumento da jurisdição, motivo este que levou alguns doutrinadores considerar a teoria de Bülow como instrumentalista do processo.

Procedimento é considerado como meio que inicia, desenvolve e termina o processo, ou seja, compõe-se de “tantos atos processuais quantos necessários ao atingi-mento do seu escopo” (ALVIM, p.163, 2003). Quanto à distinção iremos compreender melhor quando trabalharmos a teoria do processo como procedimento em contra-ditório.

A presente teoria, apesar de brilhante, sofreu críticas, por parte de alguns doutrinadores: Goldschimidt e Fazallari. Sintetizando-as, vejamos:

“a) baseia-se na divisão do processo em duas fases (...), com a crença de que na primeira delas apenas se comprovam os pressupostos processuais e na segunda apenas se examina o mérito, o que nem para o direito romano é verdadeiro; b) o juiz tem obrigações no pro-cesso, mas inexistem sanções processuais ao seu descumprimento; c) as partes não tem obrigações no processo, mas estão simplesmente num estado de sujeição à autoridade do órgão jurisdicional” (CINTRA; GRINOVER, DINAMARCO, p.283, 1996)

5. Teoria do Processo como Situação Jurídica

Um dos principais críticos da teoria do processo como relação jurídica, Gold-schimidt, funda sua própria teoria, na Alemanha em 1925. O teórico não “admitia que o processo fosse uma relação jurídica, porque não concebia a existência de relação (nexo) entre as partes e o juiz e nem entre as próprias partes” (ALVIM, p;158, 2003). Portanto, sua teoria, vem intitular um processo como situação jurídica, reconhecida e estabelecida por lei.

Goldschimidt, não admite tal relação entre os sujeitos (juiz, autor, réu) porque para ele “o juiz atua por dever funcional, de caráter administrativo, e as partes simples-mente estão sujeitas à autoridade do órgão jurisdicional” (ALVIM, p.158, 2003). Por-tanto, as partes no processo, atuam como sujeitas ao órgão da jurisdição, enquanto que

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o juiz atua no processo por dever de sua função. Vê-se que não se relacionam. Sob este ponto de vista, observa-se que nem mesmo as partes se relacionam.

O importante para Goldschimidt são as situações jurídicas regradas por nor-mas, que manterá as partes e o juiz no processo. As normas possuem dupla natureza, sendo assim, “representam imperativos (jurídicos) dirigidos aos particulares e são medi-das (regras) para o julgamento do juiz, ou seja, critérios de acordo com os quais o juiz julga a conduta dos particulares” (ALVIM, p.158, 2003). Vê-se que em momento algum a teoria refere-se à vinculação, e sim, trata a doutrina de regras e da imperatividade da norma jurídica sobre o juiz e os particulares.

Além de negar uma relação jurídica entre os sujeitos principais do processo, outro ponto destacável da teoria de Goldschimidt, refere-se aos direitos subjetivos que são convertidos no processo em meras expectativas. Vejamos:

“aquilo que, numa visão estática, era um direito subjetivo, agora se degrada de meras pos-sibilidades (de praticar atos para que o direito seja reconhecido), expectativas (de obter esse reconhecimento), perspectivas (de uma sentença desfavorável), e ônus (encargo de praticar certos atos, cedendo a imperativos ou impulsos do próprio interesse, para evitar a sentença desfavorável)” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, p.283; 284, 1996)

Vê-se que para o teórico o processo no seu estado dinâmico constitui uma situação jurídica que para as partes os direitos tornaram-se expectativas, possibilidades, perspectivas, encargos (ônus) ou até mesmo dispensa do mesmo.

As criticas não deixaram de alvejar a presente teoria. Todos os pontos abor-dados pelo teórico foram perseguidos. O primeiro e o mais criticado refere-se à relação jurídica processual. Alvim, doutrina que é um equivoco Goldscimidt sustentar que o “juiz exerce suas funções por delegação do Estado, não havendo relações jurídicas entre o julgador e as partes” (ALVIM, p. 160, 2003). Mais uma vez o processo como relação jurídica, demonstra ser mais considerável pelos doutrinadores.

Cintra, Dinamarco e Ada Pellegrini atacam a teoria do processo como situação jurídica no ponto em que os direitos subjetivos são transformado em “meras chances (expressão utilizada por Goldschmidt para englobar todas as possibilidades, expectativas, perspectivas e ônus)” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, p.284, 1996).

6. Teoria Constitucionalista do Processo

O processo passa a ser visualizado como uma instituição constitucionalizada, sendo, portanto, uma garantia, munido de princípios constitucionais. Segundo Rosemiro Pereira Leal, estas idéias moderníssimas preconizadas, devem-se ao “prof. José Alfredo de Oliveira Baracho” (LEAL, 84, 2008). Não podemos negar sua importância para tal teoria, assim como não podemos que esta corrente de estudos deve-se também ao Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera.

Citado por Leal, Ítalo Andolina em seus estudos, mostra-nos que:

“processo, em seus novos contornos teóricos na pós-modernidade, apresenta-se como necessária instituição constitucionalizada que, pela principiologia constitucional do devi-

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do processo que compreende os princípios de reserva legal, da ampla defesa, isonomia e contraditório, converte-se em direito-garantia” (LEAL, p. 84;85, 2008)

Vê-se, portanto, a importância dos princípios elencados acima para o pro-cesso. Logo, podemos perceber também a importância do Sistema Constitucional, que ao nosso sentir, é uma garantia do próprio processo, inclusive da efetivação dos direitos ali tratados.

Para compreendermos melhor a teoria estudada neste tópico, devemos obser-var que possuímos direitos e garantias de três espécies: direitos materiais, garantias for-mais e por ultimo, garantias instrumentais. Situamos nossa explicação na brilhante sín-tese disposta na obra de Vicente Greco Filho, o autor explica-nos da seguinte maneira:

“Consideram-se direitos materiais aqueles diretamente outorgados pelo texto constitu-cional, o qual defi ne, também, o seu conteúdo. (...) Consideram-se garantias formais aquelas que, sem defi nir o conteúdo do direito, asseguram a ordem jurídica, os princípios da juridicidade, evitando o arbítrio, banalizando a distribuição dos direitos em geral (...) Consideram-se garantias instrumentais ou processuais as disposições que visam assegurar a efetividade dos direitos materiais e das garantias formais, cercando por sua vez, sua aplicação de garantias” (GRECO, p.28;29, 2008)

As garantias instrumentais denominada também de garantias processuais, ex-istem em função dos direitos matérias e das garantias formais. O processo Constitucio-nalizado deve obedecer princípios assegurando, a ordem jurídica, os direitos elencados na constituição, dentre outros.

A guise de conclusão, o processo visto como instituição constitucionalizada é nada mais, do que um direito-garantia, que se efetiva através “dos princípios que in-spiram sua perfeita realização” (COLUCCI, ALMEIDA, p.44, 1999).

7. Teoria do Processo como Instituição

O principal doutrinador desta teoria é Guasp, que ganha alguns adeptos, tais como o espanhol Menendez-Pidal, e Coutore, que posteriormente abandona esta cor-rente teórica.

Resalta Alvim, que Coutore antes de abandonar a teoria do processo como in-stituição, “escreveu uma monografi a sobre o tema “O processo com instituição jurídica” e, na primeira edição dos Fundamentos del derecho procesal civil, expôs a tese” (ALVIM, p.153, 2003). Prova que mostra-nos que apesar de Coutore em novas edições considerar tal teoria insustentável, um dia se aderiu a ela.

O idealizador Guasp, para explicar a natureza jurídica do processo, procurou sua fonte fora do direito. “Adotou o conceito de instituição, criado e consolidado no âmbito das ciências sociais” (ALVIM, p.153, 2003).

Sem nos precipitamos em dizer como visualizamos o processo nesta teoria, devemos saber o que é uma instituição. Vejamos o magistral entendimento de José Edu-ardo Carreiro Alvim:

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“A instituições são formas padronizadas de comportamento relativamente a determina-das necessidades. São modos de agir, sentir e pensar do homem em sociedade e que se reputa tão importantes que qualquer procedimento contrário a eles resulta numa sanção especifi ca” (ALVIM, p.155, 2003)

Deste modo de agir, ou seja, desta padronização voltada para as necessidades de uma determinada sociedade, surge quase que intrinsecamente o processo como in-stituição. Sendo o Estado detentor da jurisdição, qualquer comportamento contrário à instituição, poderá este atribuir sanções previstas em lei.

Na sociedade quando os interesses se cruzam, o modo de agir mais sensato é dirigir-se ao juiz. Portanto, para a teoria do processo como instituição o modo de agir mediante um confl ito de interesses se dá “através do processo” (ALVIM, p.156, 2003).

Não há duvidas que a sociedade considere o processo importante, pois ele é a “garantia da estabilidade da paz jurídica, e do próprio ordenamento jurídico” (ALVIM, p. 156, 2003). Portanto, seguindo o raciocínio da teoria não podemos negar que o processo é uma instituição, porque o papel de uma instituição não seria garantir a estabilidade de uma comunidade social?

Não deixou de ser diferente com a teoria do processo como instituição, ela também foi cercada pelas críticas. A principal delas foi realizada por Frederico Marques, citado por Alvim, a seguir:

“O defeito desta teoria, (...) está no impreciso conceito de instituição, pois tudo pode ser reduzido ao esquema institucional, uma vez que tão elástico e impreciso é o signifi cado de instituição (...) razão não há para substituir-se a noção de relação processual por aquela de instituição” (ALVIM, p.157, 2003).

Veja que para Frederico Marques, instituição é um conceito muito abrangente, e que a noção que presenciamos em tópico anterior, não deve ser mudada pela teoria de Guasp. Portanto, prevalece a critica de que não pode ser considerável uma teoria se não houver conceitos precisos.

8. Teoria do Processo como Procedimento em Contraditório

Para dissertamos sobre a teoria do processo como procedimento em con-traditório, baseamos nossas provas em dois grandes doutrinadores: Rosemiro Pereira Leal e o Aroldo Plínio Gonçalves. Escolhemos estes autores por uma única razão, possuem grande entendimento e explicam a fundo a teoria.

A Teoria foi desenvolvida por um processualista italiano, Elio Fazzalari, o principal estudo da teoria é aprofundar sobre “o instituto do processo em conceitos que distinguissem do procedimento que é a sua estrutura técnico-jurídica” (LEAL, p.83, 2008).

Tomou cuidado Fazzalari quando distinguiu o processo de procedimento e integralizando em sua teoria, o contraditório. Vejamos detalhadamente cada el-emento trabalhado pelo autor.

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Descreve Leal, seguindo a linha de pensamento de Fazzalari que o pro-cesso, um dos elementos em questão, não pode ser definido:

“pela mera seqüências, direção ou fi nalidade dos atos praticados pelas partes ou pelo juiz, mas pela presença do atendimento do direito ao contraditório entre as partes, em simétrica paridade” (LEAL, p.83, 2008)

Portanto, o processo não pode ser compreendido se não houver o contra-ditório, que só ocorre quando as partes em litígio possuem simétrica paridade, ou seja, mesmo espaço-temporal no processo.

O procedimento para Fazzalari, não signifi ca “conceito particular de uma dis-ciplina, mas um conceito geral do Direito, e dever ser colhido, extraído, de um complexo de normas” (GONÇALVES, p. 109, 1992). Simplifi cando, o procedimento não pode ser compreendido somente como atos ou série de atos realizados no processo, se não for à luz de normas processuais.

O procedimento conforme anota Rosemiro Pereira Leal corresponde “a uma estrutura técnica construída pelas partes” (LEAL, p.83, 2008), que sem a observância as normas processuais, ou sem sua presença, o procedimento pode ser considerado como “um amontoado de atos não-jurídicos sem qualquer legitimidade, validade e efi cácia” (LEAL, p.83,2008). Portanto, não há procedimento sem norma jurídica.

Outro elemento importante observado na obra de Gonçalves, é que o pro-cedimento pode ser também visualizado como “atividade preparatória do provimento” (GONÇALVES, p.112, 1992), que nada mais é do que a conclusão/decisão, ou ultimo ato do procedimento que se esgotou.

O contraditório, já mencionado neste tópico, deve ser visto com mais afi nco. Segundo Gonçalves, não deve ser entendido somente como a participação dos sujeitos do processo (juiz, auxiliares, autor, réu, intervenientes). Contraditório é mais do que isto, afi nal é um elemento de extrema importância para a teoria em estudo, portanto, este deve representar também uma forma de garantia “participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os “interes-sados”” (GONÇALVES, p.120, 1992)

Fazzalari trabalha com a fi gura do juiz em sua teoria. Vejamos. Quando o Es-tado assume para si o exercício da jurisdição o juiz natural (previamente escolhido para exercer determinados atos estabelecidos em lei) é investido também desta função juris-dicional, portanto ele fala pelo Estado.

O juiz como sujeito no processo e funcionário do Estado deve sempre ser terceiro no confl ito de interesse das partes, simplesmente porque ele será o autor do provimento, e, inclusive, pratica atos (provimentos) “no curso do procedimento (...) e de outros atos processuais que a lhe lei reserva” (GONÇALVES, p. 120, 1992).

A principal crítica encontrada em face desta teoria, é que Fazzalari quando distinguiu o processo de procedimento, integralizando em sua teoria o contraditório, conforme vimos, não “fê-lo originariamente pela refl exão constitucional” (LEAL, p.83, 2008).

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9. Teoria Neo-Institucionalista do Processo

A pesquisa não fi caria completa se não dispusermos em tópico a teoria do Pro-fessor Rosemiro Pereira Leal, denominada de neo-institucionalista do processo.

Para explicarmos algo e não cairmos em idéias errôneas: pré-conceitos. De-vemos buscar a fundo sobre o que pensou Rosemiro e no que se fundamentou para instaurar esta nova teoria visualizada em sua obrar, discutida por tantos outros autores e bastante comentada pelos Estudiosos do Direito.

Primeiramente devemos observar a modéstia do autor ao inserir em sua obra TGP, Teoria Geral do Processo, 6º edição, anteriormente ao tópico sete (O Processo na pós-modernidade e a jurisdição constitucional – Uma visão neo-institucionalista do pro-cesso), outras teorias e não expor primeiramente a sua. Não podemos contestar a idéia de que por esperteza o autor tenha inserido em sua obra a teoria em tal lugar justamente para atrair o respeito e a atenção dos leitores.

Podemos observar que várias são as fontes doutrinárias pesquisadas pelo autor que se utiliza delas para estruturar ou sustentar sua teoria, mesmo que divergindo dos doutrinadores em questão, são eles: Joaquim Carlos Salgado, Noberto Bobbio, Steven Connor, Aroldo Plínio Gonçalves, Eduardo J. Couture, J. Alfredo de Oliveira Baracho, Ítalo Andolina, Elio Fazzalari, C.R. Dinamarco, dentre outros.

Leal, já havia em mente criar uma teoria que diferenciasse das existentes, pois ao inserir sua teoria no mundo jurídico doutrinário, Leal, faz a seguinte afi rmativa: “A Teoria neo-institucionalista do processo nenhuma relação tem com as demais teorias” (LEAL, 102, 2005).

Para entendermos a teoria criada pelo professor Rosemiro Pereira Leal, o nos-so ponto de partida é o pressuposto de que vivemos uma pós-modernidade onde o processo se adapta a este fato. Sabe-se que somos fi lhos de nosso tempo, atualmente em muito se fala do “pós-modernismo” que segundo a visão de Rosemiro é “um pós-mundo posto pelo homem sem pressupostos históricos condicionadores” (LEAL, p. 51,2005).

Nesta pós-modernidade o Processo como instituição se infere “pelo grau da autonomia jurídica constitucionalizada a exemplo do que desponta no discurso do nosso texto constitucional” (LEAL,p 51, 2005). Portanto é considerável a conquista da funda-mentação do processo em princípios e institutos que repudiam a repressão e concentra-ção política.

Hoje a Jurisdição Constitucional realizada pelo processo, representa uma condição de igualdade institucional entre o Estado e os cidadãos. Diante deste pen-samento, Rosemiro afi rma que no pós-modernismo não pode haver também “hierarquia de instituições jurídicas ou a prevalência de uma sobre as outra no bojo constitucional” (LEAL, p 52, 2005), pois a constituição sem sombra de dúvida, uma fonte jurídico-institucional, não representa um Estado instrumental.

Segundo o autor, nesta teoria o conceito de Instituição deve ser tido como o conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional com a denominação jurídica de Processo, cuja característica é assegurar o exercício dos direitos

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criados e expressos no texto constitucional e infra-constitucional por via de procedimen-tos estabelecidos em modelos legais (LOPES. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4519)

Sustenta Rosemiro um importante elemento para a formulação de sua teo-ria: a cidadania. Em síntese, a Cidadania se apresenta como uma garantia e um direito fundamental intitulado na Constituição. Portanto, pode se afi rmar que a cidadania é constitucionalizada, que se dá também pelo Processo, lembrando que sem distinção ou dicotomia de Processo infraconstitucional ou Processo constitucional. Rosemiro afi rma a importância da cidadania (soberania popular) em sua teoria da seguinte maneira.

O Processo (...) não se estabelece pelas forças imaginosamente naturais de uma socie-dade ou pelo poder de uma elite dirigente ou genialmente judicante, ou pelo diálogo de especialistas, mas se impõem por conexão teórica com a cidadania (soberania popular) constitucionalmente assegurada, que torna o princípio da reserva legal do processo, nas democracias ativas, o êxito fundamental da previsibilidade das decisões (LEAL, p.102, 2005)

Sabe-se que o processo é uma instituição que legitima a jurisdição “e a tutela judicial, que é o provimento (decisão do Estado-juiz)” (LEAL, p 52, 2005) sobre uma determinada questão. Este fato só pode ocorrer se houver total submissão aos princípios constitucionais e jurisdicionais. Rosemiro também trabalha em sua teoria com os mesmo elementos, Estado, Processo e Tutela Jurisdicional. Na visão Neo-institucionalista o pro-cesso,

é tido como uma instituição constitucionalizada, pode-se defi nir o processo como sendo uma conjunção de princípios (contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e à gratuidade judicial) que é referente lógico-jurídico da procedimentalidade ainda que esta, em seus modelos legais específi cos, não se realize expressa e necessariamente em contraditório.O Processo é concebido como instituição regente e pressuposto de legit-imidade de toda a criação, transformação, postulação e reconhecimento de direitos pelos provimentos legiferantes, judiciais e administrativos.(LOPES.Disponível.em.http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4519)

Para o autor o Processo de um ordenamento jurídico na pós-modernidade, em muito favorece o exercício da Jurisdição buscando, assim, a “solução dos confl itos e da validade da tutela jurisdicional” (LEAL, p.53, 2005), construindo assim um provi-mento baseado em normas institucionais constitucionalizadas do Processo. Idéia esta que se aproxima muito com os pensamentos de Fazzalari, porém, é bastante visível que Rosemiro aperfeiçoa e corrige alguns erros visualizados na obra daquele. Outros equívo-cos de outros autores pesquisados por Rosemiro foram destacados, tais como o erro dos seguidores da Teoria Instrumentalista do Processo.

Podemos, então, verifi car que Rosemiro cria e sustenta a sua teoria, também, através de equívocos de outros autores. Felizmente, Leal os corrige com sua inovada teoria. Importante lembrar, desde já, que se não fosse por sua analise crítica aguçada tais erros não transpareceriam.

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Conforme já mencionado a teoria em questão, tem como ponto chave solucio-nar o problema de concentração e repressão por Parte do Estado, portanto só podemos compreendê-la através de uma teoria constitucional de direito democrático, o mesmo que dizer, direito estruturado e legitimado pela cidadania.

Segundo o autor não haverá processo, nos procedimentos quando o mesmo “não estiver antes institucionalmente defi nido e constitucionalizado pelos fundamentos normativos do contraditório, da ampla defesa do direito ao advogado e da isonomia” (LEAL, p54, 2005), inclusive da gratuidade judiciária. Direitos estes que devem ser fun-dada no texto maior.

Nota-se, portanto que outro elemento utilizado por Rosemiro para a formula-ção de sua teoria, sem sombra de dúvida, é o nosso texto de maior importância: A Con-stituição de 1988. Vê-se então a afi nidade com o Estado Democrático de Direito, sendo o processo neste contexto o principal assegurador do exercício dos direitos e garantias constitucionais, desde que observe todos os princípios já mencionados. Nestes termos, relata Rosemiro:

“A partir do momento histórico que a Constituição se proclama condutora de uma So-ciedade Jurídico-Política sob denominação de Estado Democrático de Direito, como se lê no art.1º da CR/88 do Brasil, é inarredável que pouco importanto o que seja o existir do Brasileiro, o mundo jurídico institucionalizado do Brasil é o contido no ordenamento constitucional e não mais das estruturas morais, éticas e econômicas do quotidiano na-cional” (LEAL, p.101, 2005)

Podemos observar nestes dois últimos parágrafos, uma aproximação que Rosemiro tem com os pensamentos do autor Frederich Muller, mais especifi camente, de sua obra, “Quem é o povo?” publicada em 2000.

Conforme já dito Rosemiro utilizou-se de muitos autores para criar sua teoria. A pergunta que tantos estudiosos tentam desvendar é: O que levou Leal a criar uma teo-ria e quais são os fundamentos (raízes, fontes) utilizados para sua instauração? Nota-se que é extremamente complicado trabalhar em torno de uma pergunta subjetiva, por-tanto, para não tomarmos posições diversas da pretendida pelo autor, é mais apropriado demonstrar sua resposta.

“Prezado Davi : É difícil formular uma resposta sobre a sua indagação em poucas linhas, mas lhe adianto que, em meus estudos fi losófi co-epistemológicos, desde o meu curso clássico que fi z em colégio italiano, passando pelo seminário franciscano que cursei tam-bém na minha juventude, além de um percurso enorme em universidades estrangeiras, concluí que as “teorias” processuais praticadas e ensinadas eram inadequadas à com-preensão das conquistas democráticas que fi zemos com a Constituição de 1988” (LEAL, resposta de e-mail, 2008)

Vê-se, portanto, seu principal referencial: Constituição de 1988, considerado pelo autor uma conquista democrática. A democracia, conforme já trabalhado é outro elemento, importante para Rosemiro. Em resposta, o autor crítica e, considera insufi ciente para a sua teoria todos os pensamentos presentes no decurso da história do homem, que não seja capaz de tirar o mesmo da repressão autoritária do Estado. Vejamos o que Profere Leal:

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“A minha teoria tem raízes nos postulados conjecturas de Popper que se colocou contra as teses do essencialismo, do idealismo e do historicismo, que marcaram a produção do conhecimento humano de Parmênides a Platão, de Aristoteles a Tomás de Aquino, de Kant a Hegel e deste a Husserl, Vico, Marx, desembocando nas Escolas de Viena e Frankfurt. Popper, com suas obras, enfrentou gigantes cerebrais de Platão a Habermas. Entendeu que as idéias sustentadas por esses pensadores eram precárias para re-tirar o homem das tiranias dos saberes solitários e “iluminados” dos que se acha-vam portadores de qualidades inatas para conduzirem a humanidade” (LEAL, resposta e-mail, 2008) (grifo nosso)

Fica claro, portanto que outra fonte utilizada por Rosemiro é Popper, um fi ló-sofo da ciência e também um fi lósofo político e social, e o mais importante, aqui para nós Estudiosos do Direito, Popper erradica o totalitarismo sendo, assim veemente defensor da democracia.

Por ultimo argumenta o autor que o principal conteúdo da sua teoria é fazer permitir nas estruturas “instituinte, constituinte e constituída do direito, “argumentos compartilhados” de tal sorte a construir decisões cuja autoria não se faça pelo imperativo das “vontades” autoritárias de poucos” (LEAL, resposta e-mail, 2008). Portanto, está nesta frase implícito aquele conceito já trabalhado: cidadania.

Para fecharmos este titulo, em seqüência aos pensamentos retratados, devemos notar uma peculiaridade sobre a teoria neo-institucionalista presentes na obra de Leal:

“A Teoria Neo-Institucionalista preconiza fi scalidade (controle de consti-tucionalidade aberto a qualquer povo) do processo legiferante nas bases insitu-intes e constituintes da legalidade, vem como na atuação e modifi cação, aplicação ou extinção do direito constituído e trabalha a socialização do conhecimento crítico-democrático em pressupostos (direito fundamental) de auto-ilustração (digni-dade) pelo exercício da cidadania como legitimação ao direito-de-ação coextenso ao procedimento processualizado” (LEAL, p.105, 2005) (grifo nosso)

Vê-se, que todos os elementos acima, sustentam a teoria de Rosemiro, que sem dúvida contribui para a matéria TGP e os Estudiosos do Direito. Importante ainda lem-brar, que esta teoria não é um pensamento acabado, tal como nos relata Rosemiro.

10. Considerações Finais

Na observamos que Pothier inquestionavelmente buscou inspiração em Ulpiano e Rosseau, inclusive no direito romano. O processo se apresentava como um pacto (liticontestatio), pois, se entendia que as partes ao compare-cerem espontaneamente em juízo, voluntariamente também se submetiam à autoridade de árbitro que proferiria uma decisão. Concluímos que é infi ndável tal teoria porque o processo não é um negócio jurídico de direito privado. Daqui alguns anos, há a possibili-dades de que esta teoria seja pouco conhecida e tratada profundamente nas doutrinas de Teoria Geral do Processo, pois, possui apenas valor histórico.

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Na Teoria do Processo com Quase-Contrato observamos que Savigny e Guényva inserem também em sua teoria o processo na esfera do direito privado, que deveria ser entendido como um quase-contrato. Uma das partes provocando o juízo, este pode atribuir uma decisão, não sendo importante o interesse da outra parte. A mudança da litiscontestatio (convenção das partes perante o juiz), para esta teoria o consentimento não é inteiramente livre, motivo pelo qual levou os teóricos acreditarem que o processo deve ser visto como um quase-contrato. Esta teoria também é infundada, pois partiu do mesmo pressuposto da teoria do processo como contrato, de que o processo deve ser visto no âmbito do direito privado.

Na Teoria do Processo como Relação Jurídica, vimos que Oskar von Bülow, a funda na Alemanha. Teoria esta que basicamente trata sobre a relação jurídico-processual que ocorre entre as partes e o juiz. Não podemos negar que esta teoria possui grande im-portância, pois, até hoje está presente nos códigos e nas leis processuais.

A teoria parte do pressuposto de que o Estado deve ser o único detentor da jurisdição, tendo, portanto, a obrigação de resolver os confl itos de interesses, quando provocado, pois não age de ofi cio. Conclui-se, que o Estado-juiz apesar de ter a juris-dição ele possui obrigações e é limitado por lei.

Conclui-se com a pesquisa, que a relação jurídico-processual nasce primeira-mente entre autor e juiz, quando aquele exerce um direito de ação. O réu, tendo con-hecimento da ação passará também a fazer parte desta relação jurídica. O Juiz deverá ser sempre imparcial, enquanto que as partes devem ser sempre parciais, pois o interesse em jogo são deles.

Na Teoria do Processo como Situação Jurídica, observamos que Goldschimidt, em 1925, critica a idéia de que o processo seja uma relação jurídica, afi rmando, que este é uma situação jurídica. Para esta teoria as partes do processo são sujeitas a jurisdição. O juiz se apresenta no processo por dever funcional. Portanto, sob este ponto de vista, estes não se relacionam. – Ao nosso sentir, não nos parece apropriado.

Conclui-se que as normas possuem um caráter importante para Goldschimidt são as situações jurídicas regradas por normas, pois para as partes estas representam imperativos e para o juiz, regras para julgar os particulares.

A referir os direitos subjetivos em sua teoria Goldschimidt, transforma os em meras chances. Ponto que foi corretamente criticado.

Na Teoria Constitucionalista, o processo passa a ser visualizado como um direito-garantia através de princípios constitucionais. São idéias que devem-se ao prof. José Al-fredo de Oliveira Baracho dentre outros tais como: Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera.

O Processo é uma instituição constitucionalizada que compreende alguns princípios de extrema importância: reserva legal, ampla defesa, isonomia e contra-ditório.

Na Teoria do Processo como Instituição Jurídica podemos concluir que Guasp ganha bastantes adeptos, convencendo Menendez-Pidal e Coutore da certeza de uma teoria aparentemente correta, porém Coutore a abandona por considerá-la insustentável.

Observamos que Guasp aborda sua teoria através do conceito de instituição,

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que nada mais é do que formas padronizadas de comportamentos. O processo surge ligado a este conceito de instituição. O comportamento correto (com exceção em casos permitidos por lei) em face de um confl ito de interesses se dará através do processo, que como instituição deverá garantir a paz e estabilidade jurídica.

Porém, conclui-se que, está teoria não foi bem sucedida devido a falta de pre-cisão do conceito de instituição que é abrangente.

Na Teoria do processo como procedimento em contraditório foi uma teoria foi desen-volvida pelo italiano, Elio Fazzalari, que trabalha profundamente na distinção do pro-cesso e procedimento, integrando em sua teoria, o contraditório.

Observamos também que o processo, não pode ser compreendido sem a pre-sença do contraditório.

O Contraditório, além de representar a participação dos sujeitos do processo (juiz, autor, réu, etc.), pode ser também compreendido como uma garantia desta partici-pação, em simétrica paridade.

O procedimento, atos realizados no processo, deve ser compreendido por um complexo de normas para ter legitimidade, validade e efi cácia. Concluímos também que este é uma atividade que prepara o provimento, ou seja, decisão.

Concluímos que o juiz é investido da função jurisdicional, e deve se apresentar no processo como terceiro justamente porque ele será autor do provimento.

Quanto a Teoria Neo-institucionalista do Processo, concluímos, que não se pode compreende-la se não for sob a noção de que vivemos uma pós-modernidade em que o processo se adapta a isto. Observarmos que o processo na pós-modernidade representa uma condição de igualdade institucional entre o Estado e os cidadãos não havendo as-sim, a questão de hierarquia, nem sequer mesmo de instituições jurídicas. O processo se apresenta constitucionalizado, contendo princípios e institutos que repudiam o autori-tarismo, e repressão contra os cidadãos.

Concluímos que o processo é importante no que tange o exercício da Juris-dição, devendo buscar a solução dos confl itos dando efi cácia à tutela jurisdicional.

No processo, o exercício da cidadania é um direito constitucionalizado, e os princí-pios da constituição, que porta-nos ao Estado Democrático de Direito. A teoria neo-institu-cionalista funda-se nestes pilares, sem qualquer um destes elementos não há que se falar na teoria formulada por Rosemiro, nem mesmo em processo, pois ele é o principal assegurador do exercício dos direitos e das garantias constitucionais.

Rosemiro Pereira Leal não teria criado tal teoria se não fosse pela aproximação com os pensamentos de Frederich Muller e principalmente de Popper, um fi lósofo que se postula contra o totalitarismo, e defende a democracia.

Busca a Teoria Neo-institucionalista do Processo através das estruturas instituinte, con-stituinte e democrática fazer com que a cidadania se exerça em seu maior grau. Ora, pois, a teoria neo-institucionalista deve ter um controle de constitucionalidade aberto a qualquer povo, o processo baseado em institutos e na Constituição representando assim, a legalidade, exercendo a democracia e legitimando a dignidade da pessoa humana através da cidadania.

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11. Referências

ALVIM, José Eduardo Carreira, Teoria Geral do Processo, 8º edição, Forense, Rio de Janeiro, 2003.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. 12. edição, Malheiros Editores, São Paulo, 1996.

COLUCCI Maria da Glória Lins da Silva; ALMEIDA, José Maurício Pinto, Lições de Teoria Geral do Processo, 4º edição – 3º tiragem, Juruá Editora, Curitiba/PR, 1999

GONÇALVES, Aroldo Plínio, Técnica Processual e Teoria do Processo, ISBN: 85-321-0071-6, Editora AIDE, Rio de Janeiro 1992.

GRECO, VICENTE, Direito Processual Civil Brasileiro, Teoria geral do Processo a Auxiliares da Justiça, Volume I, 20º edição, Saraiva, São Paulo, 2008.

LEAL, Rosemiro Pereira, TGP, Teoria Geral do Processo, 6º edição, Thomson Iob, São Paulo, 2005.

_____, Rosemiro Pereira, TGP, Teoria Geral do Processo, Primeiros Estudos, 7º Edição Revista e Atualizada, Editora Forense, Rio de Janeiro. 2008 _____, Rosemiro Pereira, em resposta por e-mail no dia 27 de Maio, 2008. [email protected]

LOPES, Bráulio Lisboa, http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4519

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: SURGIMENTOE TENDÊNCIAS ATUAIS DA UNIVERSIDADE

NO BRASIL

Everton de Brito Oliveira Costa 1 Pedro Rauber 2

Resumo: O processo histórico de educação do homem foi de fundamental importân-cia para a sua evolução, e vice-versa, podendo até mesmo se sugerir um mecanismo de “simbiose” entre ambos os aspectos. No Brasil, os primeiros ensaios de educação formal iniciaram-se com a chegada dos jesuítas em 1549 ao território nacional. A educação supe-rior, por sua vez, veio contribuir para um nível de formação adicional, baseado principal-mente no conhecimento específi co sobre determinado tema/área. Entretanto, começou a ser praticada no Brasil somente a partir do ano de 1808, em decorrência à vinda da Família Real para a Colônia, com a criação de institutos de ensino superior, por D. João VI. Todavia, de institutos isolados, nos quais se transmitiam o conhecimento específi co necessário à formação superior, esse nível de ensino passou a ser transmitido em uni-dades que integravam uma gama de áreas do conhecimento, as universidades. A história da criação da universidade e da prática do ensino superior muito fortemente sofreu in-fl uência do contexto histórico no qual esteve inserido desde os seus primórdios. Salvo que muitas das características observadas ainda no início da instalação e funcionamento das universidades e do ensino superior no Brasil perduram e podem ser vistas até os dias atuais. Muito se discute ainda sobre a origem da universidade no Brasil, neste sentido, este trabalho objetiva contextualizar os processos políticos, sócio-culturais e fi losófi cos do seu surgimento e institucionalização no território nacional, bem como as tendências que ela e o ensino superior vêm assumindo na atualidade.

Palavras-chave: educação; universidade no Brasil; ensino superior.

Abstract: The historical process of human education was crucial to your development, and vice versa, even if it may to suggest a mechanism of “symbiosis” between both aspects. In Brazil, the fi rst tests of formal education began with the arrival of the Jesuits in 1549 to the national territory. Higher education further has come to contribute to a level of additional formation, based primarily on specifi c knowledge about a particular topic/area. However, it began to be practiced only in Brazil from the year 1808, due to the arrival of the Royal Family to the Colony, with the creation of higher education institutes, by D. João VI. However, from the individual foundations which transmitted the specifi c knowledge, this level of instruction began to be transmitted in units that integrate a range of areas of knowledge, the universi-ties. The story of the university creation and the practice of higher education were strongly affected for the historical context in which they were inserted at the beginning. Seeing that many of the features observed at the beginning of the installation and operation of universities and higher education in Brazil can be seen until the present day. Many things has been discussed yet about the origin of the university in Brazil, in this sense, this study aims to contextualize the political, sociocultural and philosophical processes in its emergence and institutionalization in this country, as well as the trends that it and the higher education has become nowadays.

Key words: education; university in Brazil; higher education.

1 Graduado em Biomedicina e Especialista em Metodologia do Ensino Superior pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN).2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), professor titular da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e professor do Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN).

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1. Introdução

Apesar de já existirem muitos estudos publicados sobre o surgimento da uni-versidade no Brasil, muitas interpretações têm sido encontradas sobre esse assunto, o que instiga a abordagem desse tema. Por isso, torna-se de fundamental importância traçar um panorama do processo político-histórico-cultural que levou à instalação das instituições universitárias no país, por meio dos dados obtidos através da literatura. Não obstante, este trabalho inicia retratando aspectos relevantes da história da educação, uma vez que é essencial compreender e contextualizar o processo histórico-fi losófi co-cultural da educa-ção para então fazer uma abordagem do ensino superior e a instalação das universidades no Brasil, bem como as características que esses vêm assumindo nos dias atuais.

2. História da Educação

O processo educativo ainda nas sociedades primitivas constituía-se basica-mente por métodos informais, por um mecanismo denominado endoculturação, no qual os valores, princípios e costumes eram transmitidos às gerações futuras por meio da convivência em sociedade. Desse modo, os novos indivíduos eram integrados à ordem social. Todavia, a transmissão desses valores, limitava-se somente à memória, ou seja, não havia nenhum outro mecanismo além da convivência que registrasse esses valores culturais nas sociedades antigas.

A partir de 13.000 anos a.C., registram-se os primeiros ensaios da escrita, através de gravuras em pedras e cavernas, sendo a Mesopotâmia, considerada a primeira civilização a produzir a escrita propriamente dita, o que tornou o processo educativo mais formal (GILES, p. 6, 1987). No entanto, por ser considerada uma capacidade divina, o poder da escrita e a sua transmissão estava sob a responsabilidade dos sacerdotes, os quais passaram a se envolver diretamente com as atividades econômicas da sociedade.

É quase impossível exagerar a importância utilitária da invenção da escrita, pois esta, através de símbolos, permite aumentar extraordinariamente a carga de informações di-sponíveis ao indivíduo e à sociedade. Porém, mais importante ainda, permite à sociedade conservar o passado coletivo de forma estável. Até esse momento, transmitiam-se as tradições e os costumes da sociedade oralmente. A preservação de todo o patrimônio cultural dependia tão-somente da memória. A palavra escrita veio fi xar o acontecimento, tornando-o menos vulnerável à perda acidental, aumentando as possibilidades de ser transmitido às gerações futuras, minimizando também a possibilidade de deturpações.3

Desse modo, a escrita surge como uma ferramenta capaz de demarcar os even-tos ocorridos ao longo do tempo, tornando os fatos menos susceptíveis ao esquecimento e/ou a deturpações dos mesmos, devido ao fato de não estarem registrados, e também como uma forma mais efi caz de transmissão de conhecimento aos descendentes. Du-rante os primeiros tempos, a transmissão da escrita (e também da leitura) se dava através

3 GILES, T.R. História da Educação. São Paulo: EPU, 1987.

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4 RAUBER, P. Por que a História da Educação em um curso de pós-graduação?. In: Metodologia do Ensino Superior. Dourados: Unigran, 2008e, p. 17-28.5 RAUBER, P. A educação jesuítica e as reformas pombalianas. In: Metodologia do Ensino Superior. Dourados: Unigran, 2008a, p. 29-50.

de escolas, entretanto, nem todos tinham acesso, somente membros do clero e pessoas da nobreza, ou ligadas a ela.

Com a crescente escrituração e estratifi cação da sociedade, à casta sacerdotal, devem-se o primeiro sistema de ensino formal, motivado pela necessidade da formação do sacerdote escriba – guardião da ordem religiosa – o qual passa a ser o encarregado da administração da sociedade. [...] O novo sistema escolar será reservado aos fi lhos das classes que detêm o poder, portanto, não sendo nem universal nem tampouco compulsório. O processo educativo dedica-se à conservação e continuidade do sistema sócio-político e dos valores vigentes nas classes que detêm o poder. O conteúdo do ensino será diretamente vocacio-nal, moral e didático. A capacidade de ler e escrever confere àquele que a possui certo ar de mistério, pois, apoiadas em sansões religiosas, a autoridade da palavra escrita a torna invulnerável.4

No Brasil, no contexto econômico-cultural durante o período colonial, ob-serva-se uma economia baseada principalmente no sistema agroexportador, sendo o escravo a principal peça para a atividade econômica da época, a produção do açúcar. Inicialmente, o que havia nesse período era uma mistura de raças, costumes e valores, pela miscigenação de índios, negros e o homem branco, o qual era fi gura “superior” aos outros.

Os escravos participavam não somente das atividades econômicas, mas tam-bém da vida particular do senhor de engenho, servindo-lhe de servo e satisfazendo os seus desejos sexuais. E, segundo Veiga (2008), constata-se através dos dados historiográ-fi cos dos períodos monárquico e republicano, que muito poucas eram as crianças negras que tinham acesso a algum nível de instrução escolar, além desse evento não ser bem visto pela sociedade. Os negros traziam consigo o fardo histórico da escravidão e a sub-missão aos padrões culturais da sociedade vigente.

Tanto a Igreja quanto o senhor de engenho fracassavam nos esforços de enquadrar o índio no sistema de colonização que iria criar a economia brasileira. Fora de seu hábitat natural, o índio não se adapta como escravo: morria de infecções, fome e tristeza. Para suprir a defi ciência da mão-de-obra escrava, os senhores de engenho de Pernambuco e do Recôncavo baiano começavam e importar negros caçados na África. Agora, as escra-vas negras substituíam as cunhas tanto na cozinha como na cama do senhor. Na agricul-tura, a presença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no mercado internacional. O Brasil, esquecido por quase duzentos anos, despertava fi nalmente o in-teresse do Reino de Portugal.5

A “importação” de negros africanos se deu em conseqüência às difi culdades na exploração dos indígenas. Estes adoeciam ou morriam muito facilmente. O processo de “educação” e evangelização dos índios pelos jesuítas mostrava-se muito difícil, pois eles aprendiam e desaprendiam os ensinamentos com muita facilidade. De certa forma,

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complicando o desenvolver da colonização e a exploração das novas terras e da mão-de-obra dos nativos.

No decorrer de todo o período de colonização, principalmente após a vinda da família Real para o Brasil, o que se pode observar é uma grande preocupação em se desenvolver um modelo de ensino superior no Brasil, caracterizado pelo favorecimento a uma pequena parcela da população, atendendo apenas a elite (“os fi lhos da aristocracia”) e visando basicamente à formação do “Doutor”, como era chamado quem se formava em Direito ou Medicina. Isso muito nos lembra a sociedade moderna, onde ainda se pode observar resquícios do clientelismo e do favorecimento de uma pequena porção da população com relação ao direito de acesso à educação superior bem como fora prati-cado outrora.

Salvo que nas sociedades modernas, a função de educar os indivíduos e formar cidadãos passa a ser prioridade das escolas, as quais se encarregam da transmissão do conhecimento, e, nesse contexto passa a ser considerada mais uma mercadoria do que um direito de todos, concentrando-se muitas vezes nas mãos das classes dominantes e servindo como meio de exploração e dominação ao invés de promover a equidade so-cial.

3. A Origem da Universidade no Brasil

A Europa mostra-se como o berço do surgimento das primeiras universidades, inicialmente em países como Itália, França e Inglaterra no início do século XII, e dissem-inando-se posteriormente por todo o território europeu, e marcantemente a partir dos séculos XIX e XX, por todos os continentes, passando as universidades a integrarem o elemento central da prática do ensino superior. (MENDONÇA, 2000)

Os primeiros ensaios da educação no Brasil se iniciaram com a vinda dos je-suítas às terras brasileiras, em 1549, onde tentaram instituir um processo de “civiliza-ção” dos nativos, pois buscavam integrá-los ao padrão de educação europeu (JUNIOR e BITTAR, 1999). No entanto, apesar desse interesse em “civilizar” os nativos que aqui se encontravam as prioridades da metrópole lusitana sempre foram fi scalizar e defender a colônia, arrancando dela todas as riquezas possíveis. E, desse modo, se não fosse por interesse das ordens religiosas em “educar” os aborígines que aqui se encontravam, nada em matéria de ensino teria sido realizada no Brasil Colônia.

Não podemos deixar de reconhecer que os portugueses trouxeram um padrão de edu-cação próprio da Europa, o que não quer dizer que as populações que por aqui viviam já não possuíam características próprias de se fazer educação [...]. Quando os jesuítas chegaram por aqui eles não trouxeram somente a moral, os costumes e a religiosidade européia; trouxeram também o método pedagógico.6

Não obstante, durante todo o Período Colonial, o Brasil dispôs de pessoas

6 RAUBER, P. (2008a). op. cit. p.52-53.

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7 MOACYR, P. (1937) apud FÁVERO, M.L.A. A Universidade no Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968. Educar, Curitiba, n.28, p. 17-36, Maio/Jun. 2006.

educadas como doutores de várias formações (bacharéis, físicos e sacerdotes). Contudo a diplomação só era conseguida nas universidades européias, especialmente, em Coimbra. E, somente altos funcionários da Igreja ou da Coroa, ou fi lhos de burocratas, de grandes latifundiários ou de comerciantes estudavam nas escolas do Velho Mundo (SOUZA, p. 10, 1991; OLIVEN, 2005).

Entretanto, pode-se observar um marcante atraso nos sistemas de ensino im-plantados e uma defasagem nas produções intelectuais herdado pelo Brasil Colônia a partir da Metrópole, cujo processo de ensino superior era praticamente todo voltado para a área literária, mesmo apesar da produção de importantes obras literárias e da descoberta de grandes poetas. Assim, o que se verifi ca é uma defi ciência intelectual de Portugal nas demais áreas das ciências, como a astronomia, a botânica, a zoologia, a geologia, diferentemente de outros países da Europa, que já se destacavam nessas áreas científi cas, a exemplo de países como França, Alemanha e Inglaterra, como observado por Vergara (2004). Desse modo, os primeiros ensaios do ensino superior no Brasil constituir-se-iam sobre os moldes de Portugal, e passaria a herdar a mesma defi ciência e atraso da Metrópole.

No período do Brasil Colônia houve várias tentativas de instituir uma univer-sidade no território nacional, no entanto, todas fracassaram. Nos conventos jesuítas, franciscanos e carmelitas, os padres e seminaristas tinham acesso ao conhecimento de nível superior nas áreas de Filosofi a, Teologia, Gramáticas Grega, Latina e Portuguesa, entretanto, ninguém externo aos conventos tinha acesso a esse nível de conhecimento. (OLIVEN, 2005; FÁVERO, 2006)

A história da criação de universidade no Brasil revela, inicialmente, considerável re-sistência, seja de Portugal, como refl exo de sua política de colonização, seja da parte de brasileiros, que não viam justifi cativa para a criação de uma instituição desse gênero na Colônia, considerando mais adequado que as elites da época procurassem a Europa para realizar seus estudos superiores.7

A implantação do ensino superior no Brasil iniciou-se apenas em 1808, com a

chegada da Família Real, expulsos de Portugal pela invasão francesa, e cujo rei D. João VI, criou institutos de ensino superior a exemplo dos de Medicina, Engenharia e Econo-mia. Desse modo, esse nível de instrução nasce no Brasil como um modelo de instituto isolado e de natureza profi ssionalizante, destinado essencialmente a atender os fi lhos da aristocracia, que não podiam ir estudar no Velho Mundo devido ao bloqueio pela esquadra napoleônica. (SOUZA, p. 11, 1991)

Merece ênfase a observação que todos os esforços realizados em prol da cri-ação de universidades no período colonial e monárquico, sofreram uma interferência negativa por parte de Portugal, demonstrando uma política de controle por parte da metrópole, destruindo qualquer perspectiva que vislumbrasse sinais de independência cultural e política da colônia.

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Por muitos anos, a teoria da universidade brasileira foi, basicamente, a pombaliana – uma universidade técnica, prática, formando profi ssionais competentes para administração do Estado. Na prática, o que prevaleceu foi a formação de elites. [...] Os primeiros cursos superiores criados foram os de Medicina, Direito e Engenharia. As primeiras iniciativas nesse sentido começaram a acontecer a partir da transmigração da Família Real portu-guesa, em 1808, os cursos funcionavam em instituições isoladas mantidas pelo Estado, destinadas a formarem profi ssionais para atender às necessidades do próprio Estado e da sociedade.8

De acordo com Giles (p. 287, 1987) a introdução de algumas modifi cações no processo educativo deve-se principalmente ao regente D. João VI. Segundo Luckesi et al. (p. 34, 1991) com a vinda de D. João VI para a colônia e a instalação do ensino superior nascem as aulas régias, os cursos e as Academias em resposta às necessidades militares da colônia e em conseqüência da instalação da Corte no Rio de Janeiro. Desse modo, pode se observar que as instituições criadas por D. João VI que exerciam a prática do ensino superior, estavam diretamente relacionadas e essencialmente preocupadas com a defesa militar da colônia, como observado por Mendonça (2000).

Datam dos anos de 1808 a criação da Academia de Marinha e de 1810, a cria-ção da Academia Real Militar, no Rio de Janeiro, voltadas para a formação de ofi ciais e engenheiros civis e militares; de 1827, a criação dos primeiros cursos jurídicos em Olinda (transferido depois para Recife) e em São Paulo, com posterior expansão pelo território nacional. (PELETTI e PELETTI, p. 153, 1990; SOUZA, p. 13, 1991)

Essas instituições e cursos criados por D. João VI, seriam os responsáveis pelo surgimento de escolas e faculdades profi ssionalizantes que iriam constituir o conjunto de instituições de ensino superior até o período da República, a partir de sucessivos proces-sos de reorganização, fragmentação e aglutinação dos mesmos.

Cabe ressaltar que todas as tentativas de implantação de entidades universi-tárias durante o período de 1843 a 1920 fracassaram, e somente nesse último ano é que se consolidou a criação de uma universidade, a Universidade do Rio de Janeiro, que se converteria, posteriormente, em Universidade do Brasil, e depois, em Universidade Federal do Rio de Janeiro. De acordo com Mendonça (2000), somente em 1920 surgiria Universidade do Rio de Janeiro, formada pela união dos cursos superiores existentes na Escola Politécnica, na Faculdade de Medicina e na Faculdade de Direito. É a primeira in-stituição universitária criada legalmente pelo governo federal. (FÁVERO, 2006). “É nas décadas de 20 e 30 que a questão universitária adquire intensidade no Brasil.” (RAUBER, p. 60, 2008c)

Todavia, o período que se estende de 1920 e 1968 compreende os anos mais críticos para a história da universidade no território nacional, período ao longo do qual houve a efetiva implantação das instituições no Brasil e durante o qual assumiram a con-fi guração que permanece até os dias atuais. (MENDONÇA, 2000)

Em 1924, criou-se a Associação Brasileira de Educação (ABE) e da Associação

8 RAUBER, P. A universidade no Brasil: origem e trajetória. In: Metodologia do Ensino Superior. Dourados: Unigran, 2008c, p. 51-74.

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9 LUCKESI, C. et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1991.10 GILES, T.R. op. Cit. P. 292.

Brasileira de Ciências (ABC), que tinha por objetivo conscientizar educadores, público e autoridades quanto aos problemas inerentes à educação nesse período, tentando buscar soluções mais adequadas e discutindo questões como concepções de universidade, fun-ções das instituições universitárias e autonomia e modelo de universidade ideal. (FÁVE-RO, 2006)

A partir de 1930 inicia-se o esforço de arrumação e transformação do ensino superior no Brasil. O ajuntamento de três ou mais faculdades podia legalmente chamar-se universi-dade. É nesses termos que se fundam as Universidades de Minas Gerais – reorganizada em 1933 – e a Universidade de São Paulo, que em 1934, já expressa uma preocupação de superar o simples agrupamento de faculdades.9

Com a crescente e acentuada centralização política nos mais diferentes setores da sociedade, constata-se no ano de 1930 a criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública, durante o período do Governo Provisório, tendo Francisco Campos como seu primeiro titular. Entre os anos de 1931 e 1932, o então ministro da Educação, Francisco Campos, decreta uma série de reformas na educação brasileira, criando o Conselho Na-cional de Educação, regulamentando e organizando o ensino superior e o 2° grau, e, particularmente, decretando o modo de organização da Universidade do Rio de Janeiro. Essas reformas promovidas por Campos se consolidaram com a criação do Estatuto das Universidades, cujo artigo 1° dizia:

O ensino universitário tem como fi nalidade: elevar o nível da cultura geral; estimular a investigação científi ca em quaisquer domínios de conhecimentos humanos; habilitar ao exercício de atividades que requerem preparo técnico e científi co superior; concorre enfi m, para a educação do indivíduo e da coletividade, para harmonia de objetivos entre professores e estudantes e para o aproveitamento de todas as atividades universitárias, a grandeza da Nação e o aperfeiçoamento da humanidade.10

Em 1932, lança-se o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nacional (SAN-FELICE, 2007), levantando questões como ensino gratuito a todos, igualdade de acesso ao ensino, independente do sexo, e buscando elaborar um planejamento do processo educativo para todo o país.

Segundo Cunha (p. 123, 1989), os responsáveis pela criação do manifesto de-fendiam a expansão do ensino como fator essencial à democracia, à igualdade social e ao desenvolvimento econômico. De acordo com Aranha (p. 245, 1989), o Manifesto dos Pioneiros da Educação considerava e incumbia o dever da educação obrigatória e gratu-ita ao Estado, sendo que essa ação deveria ser de forma tão ampla que abrangesse o país inteiro. Cunha (p. 124, 1989) ainda afi rma que talvez esse manifesto tenha sido funda-mental no início da Campanha de Defesa da Escola Pública, que foi um movimento de grande mobilização apoiado pelo jornal O Estado de São Paulo. “Esse manifesto é muito importante na história da pedagogia brasileira porque representa a tomada de consciên-

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cia da defasagem entre a educação e as exigências de desenvolvimento.” (ARANHA, p. 246, 1989)

Todavia, a primeira instituição fundada e regida de acordo com as novas re-gras do Estado foi a Universidade de São Paulo (EVANGELISTA, 2001). Fundada em 1934, a USP promoveu uma inovação na concepção estrutural e funcional das faculdades preexistentes e passou a ser um divisor de águas (PELETTI e PELETTI, p. 180, 1990). Contudo, a criação da USP deu-se do mesmo modo das demais universidades existentes no país, ou seja, a partir da incorporação de um conjunto de escolas profi ssionalizantes pré-existentes. (MENDONÇA, 2000; EVANGELISTA, 2001)

Em 1935, cria-se a Universidade do Distrito Federal (UDF) a partir da in-tegração de das Escolas de Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofi a e o Instituto de Artes. A UDF trazia consigo a proposta de desenvolvimento integrado de pesquisa, ensino e extensão, de acordo com as novas diretrizes propostas pelas novas leis vigentes. A UDF era até então a mais inovadora e desafi adora universidade criada, pois estava pautada sobre princípios norteadores que se mostravam como modelos para o funcionamento de uma universidade ideal. Não obstante, a criação da UDF per-duraria até o ano de 1939 quando foi institucionalizada a Universidade do Brasil (UB), mantida e dirigida pela União, e criada através da incorporação dos cursos da UDF, o que culminou na sua desativação e conseqüente extinção. (FÁVERO, 2006)

Entre os anos 40 e 70 pôde se verifi car a criação das universidades federais em quase todos os Estados brasileiros, merecendo destaque os Estados do Rio Grande do Sul e Minas Gerais, com mais de uma universidade criada. Esse período marcou a descentralização do ensino superior e a regionalização do mesmo. “O período ante-rior, de 1946 ao princípio do ano de 1964, talvez tenha sido o mais fértil da história da educação brasileira. Nesse período atuaram educadores que deixaram seus nomes na história da educação por suas realizações.” (RAUBER, p. 65, 2008c)

Durante o período da Era Vargas, mais precisamente, no período pós 1945, o que se observa nos processos de institucionalização universitária e do ensino su-perior no país, são importantes tentativas de luta pela autonomia universitária, tanto interna como externa, acompanhada pela expansão das universidades pelo território nacional, que multiplicavam-se em uma velocidade extraordinário, seguindo o ritmo do desenvolvimento do país provocado pelo processo de industrialização, preocupado, entretanto, prioritariamente com a formação profi ssional com ênfase para a pesquisa e a produção de conhecimentos. Nesse período que começam a surgir grandes pesqui-sadores. (FÁVERO, 2006)

Segundo Mendonça (2000), ao longo dos anos 50 e 60 o Ensino Superior no país passa a sofrer forte e profunda infl uência política, passando a adotar novas ideologias como base de sustentação dos governos que se sucederam até o ano de 1964. Marcadamente, observam-se novos ensaios de mudanças na estrutura pedagógi-co-administrativa do ensino superior, e debates promovidos principalmente por movi-mentos estudantis que lutavam, por entre outras coisas, pela abertura da universidade à população através da extensão e dos serviços comunitários, articulação das universi-

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dades com órgãos governamentais principalmente no interior do país, e pela liberdade de expressão.

Contudo, o cenário cultural nas universidades passa a sofrer drásticas mudan-ças a partir do ano de 1964, por causa do impacto surtido pelo golpe militar (EVANGE-LISTA, 2001; MENDONÇA, 2000; FÁVERO, 2006), o qual procurava conter a todo custo os debates travados pelos movimentos estudantis dentro e fora das universidades, por meio da repressão e da desarticulação dos movimentos através de intervenções vio-lentas por parte dos militares dentro dos campi universitários, tentando silenciar alunos e professores.

Entretanto, os movimentos estudantis mostravam-se fortes e destemidos da repressão militar. De acordo com Sanfelice (2007), no início do ano de 1968 a mobili-zação estudantil era generalizada, caracterizada por intensos debates dentro e fora das universidades, e exigia do governo a adoção de novas medidas que buscassem sanar os problemas educacionais mais sobressalentes. Manifestações essas que ganharam força e respaldo após a implementação da Reforma Universitária de 1968, que propôs a univer-sidade na sua forma mais ideal de organização do ensino superior, alicerçado no tripé ensino, pesquisa e extensão, e enfatizando a indissolubilidade entre os três pilares.

Não obstante, o movimento de modernização do ensino superior no Brasil havia atingido seu ápice no ano de 1961, com a criação da Universidade de Brasília (UnB), a mais moderna universidade do país. E, partir dos anos 70, por causa das políti-cas educacionais implantadas no Brasil, o que se verifi ca é um alastramento do ensino superior pelo país, visto a grande concentração populacional urbana, o avanço do capi-talismo e a exigência de melhor qualifi cação profi ssional. No entanto, a perda da quali-dade do ensino foi notável. A grande busca por cursos superiores permitiu a expansão da iniciativa privada no ensino superior, o que se tornou uma característica marcante do período, como verifi cado por Souza (p. 19, 1991).

As conseqüências práticas a curto prazo dessa política foram a expansão do sistema de ensino superior, o aumento do peso relativo do ensino privado em relação ao público e a perda progressiva da qualidade média do aprendizado.11

4. Tendências Atuais da Educação Superior

A educação é, com certeza, um dos principais pilares que sustentam uma so-ciedade democrática. Durante os últimos 200 anos da instalação das primeiras escolas de ensino superior no Brasil, muitas políticas pedagógicas e de inclusão social foram criadas. E, de sua antiga concepção, voltada para a formação religiosa, a educação su-perior está voltada agora para a formação de profi ssionais nas mais diversas áreas do conhecimento.

O processo de globalização colocou o país e a universidade diante de uma encruzilhada. De um lado, o caminho da desregulamentação e da mercantilização do ensino, que retira do Estado o protagonismo na defi nição das políticas educacionais. De outro, um projeto

11 RAUBER. P. (2008c). op. Cit. P. 66.

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que percebe a educação superior como um direito público a ser ofertado pelo Estado gratuitamente, com qualidade, com democracia e comprometido com a dignidade do povo brasileiro, com as expressões multiculturais que emergem do interior da sociedade, com a sustentabilidade ambiental e com o desenvolvimento tecnológico de sua estrutura produtiva.12

A educação, entretanto, deve ser compreendida como um mecanismo para a diminuição das desigualdades, oferecendo equidade e igualdade social e étnico-cultural perante a sociedade. Na atualidade, mais que uma fonte de conhecimento, as universi-dades tomaram caráter comercial, vendo-se na necessidade de atender a um mercado capitalista cada vez mais exigente, sendo esse, um dos principais fatores da busca pela formação superior. Talvez o principal objetivo das universidades, que é produzir e trans-mitir conhecimento para promover o desenvolvimento do “homem” e conseqüente-mente da sociedade, esteja fi cando em segundo plano, passando o conhecimento a in-tegrar um processo propenso à desregulamentação e mercantilização nesses tempos de globalização.

A sociedade industrial passou a tratar as Universidades como um braço de sustentação da produção econômica. Assim, os novos conhecimentos seriam úteis, se estivessem na per-spectiva de aumentar a produção. Da mesma forma, as próprias universidades passaram a ser tratadas como instituições lucrativas, ou seja, com o desenvolvimento industrial, um setor de classe burguesa viu a possibilidade de criar universidades/empresas para produzir conhecimentos para serem comercializados.13

Desse modo, como ponderado por Fávero (2006), “pode-se inferir que alguns desses impasses vividos pela universidade no Brasil poderiam estar ligados à própria história dessa instituição na sociedade brasileira. Basta lembrar que ela foi criada não para atender às necessidades fundamentais da realidade da qual era e é parte, mas pen-sada e aceita como um bem cultural oferecido a minorias, sem a defi nição clara no sen-tido de que, por suas próprias funções deveria se constituir em espaço de investigação científi ca e de produção de conhecimento”.

Assim, com o grande avanço das entidades privadas investindo na educação, principalmente no ensino superior, contribuindo fi nanceiramente para o desenvolvimen-to de pesquisas, o conhecimento passa a parecer cada vez mais uma mercadoria do que um instrumento de desenvolvimento social, econômico e cultural comum e de direito de todos. Muito difi cilmente, o aparente desinteresse dos institutos fi nanciadores represente uma perspectiva comprometida apenas com o desenvolvimento tecnológico e científi co da humanidade, não visando a nenhum ganho fi nanceiro, ou qualquer outra lucrativi-dade, principalmente no mundo globalizado, cada vez mais competitivo e mais capital-ista. E as universidades, passam a atender cada vez mais às necessidades desse mercado,

12 RAUBER, P. Educação Superior: desafi os e limites postos pelo processo de internacionalização. In: Metodologia do Ensino Superior. Dourados: Unigran, 2008d, p. 87-101.13 RAUBER, P. A educação superior no Brasil: tendências atuais. In: Metodologia do Ensino Superior. Dourados: Unigran, 2008b, p. 75-86.

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instigadas pela acirrada concorrência com outras instituições e pelo aliciamento de mais e mais pessoas.

5. Considerações fi nais

O acesso ao ensino superior ainda é uma realidade muito distante de grande parte da população, seja por oportunidade de acesso e/ou por oportunidades socio-econômicas e culturais. Mas em contrapartida, muitas políticas vêm sendo adotadas e implantadas nos últimos anos visando, essencialmente à diminuição dessa característica do sistema educacional superior no Brasil, que por sua vez, é uma expressão marcante herdada ao longo de séculos de história. Assim, a contextualização histórica da universi-dade brasileira nos mostra que algumas características observadas desde os primórdios de instrumentalização do ensino no território nacional, da criação das universidades e institucionalização do ensino superior, bem como direito de acesso, lutas ideológicas e intervenções político-educacionais, ainda perduram na sociedade moderna até os dias atuais.

A análise dessas características e a intensifi cação dos debates sobre os desafi os e tendências atuais da Universidade brasileira podem constituir-se, sem dúvida, num grande desafi o a ser desenvolvido hoje em torno das perspectivas atuais da educação e por consequência da Universidade. Não se pretende aqui dar respostas defi nitivas. Com esse pequeno texto, procurou-se apenas iniciar um debate sobre as perspectivas atuais da universidade, sem a intenção de, com isso, encerrá-lo. Existem muitos outros desafi os, a refl exão crítica não basta, como também não basta a prática sem a refl exão sobre ela.

Este trabalho nos possibilitou identifi car e apontar algumas vertentes, dentro de uma visão otimista e crítica - não pessimista e ingênua - para uma análise em profun-didade daqueles que se interessam por uma universidade voltada para os seus tempos, como também para o futuro. Neste sentido, a nova concepção de Estado, foi decisiva na forma de organização das Universidades. E se as universidades brasileiras estão vivendo as crises, como refl exos das crises cíclicas da organização da produção econômica do modelo capitalista, cabe alertar para a necessidade cada vez maior da formação superior voltar-se para a perspectiva que, além aumentar a produtividade e a lucratividade na atual sociedade globalizada, visivelmente estimulada pela crescente participação do setor privado no ensino superior, também cabe um alerta para a necessidade de separar as universidades da forma de organização política e econômica do Estado.

Aos interessados, e principais protagonistas do atual cenário sócio-político-cultural que incluem discentes, docentes, universidades, Estado e entidades privadas fi -nanciadoras do ensino superior, vale alertar sobre a necessidade de a atual concepção do ensino universitário pautado no tripé ensino, pesquisa e extensão, voltar-se essen-cialmente, embora não exclusivamente, para o desenvolvimento social a continuar tril-hando de mãos dadas com o capitalismo rumo à desregulamentação e mercantilização do ensino superior.

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6. Referências

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EVANGELISTA, O. Formar o mestre na universidade: a experiência paulista nos anos de 1930. Educação e Pesquisa, São Paulo, vol. 27, n. 2, p. 247-259, Jul./Dez. 2001.

FÁVERO, M.L.A. A Universidade no Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968. Educar, Curitiba, n.28, p. 17-36, Maio/Jun. 2006.

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PILETTI, N.; PILETTI, C. História da Educação. São Paulo: Ática: 1990.

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Normas Gerais Para A Publicação De Trabalhos

A Revista Jurídica Unigran é uma publicação de divulgação científi ca da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Dourados. Esta publicação incentiva a investigação e procura o envolvimento de seus professores e alunos em pesquisas e cogitações de interesse social, educacional, científi co e tecnológico. A Revista Jurídica aceita artigos de seus docentes, discentes, bem como de autores da comunidade científi ca nacional e internacional, mesmo que já tenham sido publicados em outro periódico científi co. Publica artigos, notas científi cas, relatos de pesquisa, estudos teóricos, relatos de experiência profi ssional, revisões de literatura, resenhas, nas diversas áreas do conhecimento científi co, sempre a critério de sua Comissão Editorial. Solicita-se observar as instruções a seguir para o preparo dos trabalhos, os quais devem seguir o formato dos artigos aqui publicados.

1. Os originais devem ser apresentados em papel branco de boa qualidade, no formato A-4 (21,0cm x 29,7cm) e encaminhados completos, defi nitivamente revistos, com o máximo 15 páginas, digitadas em espaço 1,5 entre as linhas. Recomenda-se o uso de car-acteres Times New Roman, tamanho 12, em uma via, acompanhada de disquete (de 3,5”), de computador padrão IBM PC, com gravação do texto no Programa Word for Windows e, se possível, enviar o Artigo pelo e-mail [email protected]. Somente em casos muito especiais serão aceitos trabalhos com mais de 15 páginas. Os títulos das seções devem ser em maiúsculas, numerados seqüencialmente, destacados com negrito. Não se recomenda subdi-visões excessivas dos títulos das Seções.

2. Língua. Os artigos deverão ser escritos preferencialmente em Português, aceit-ando-se textos em Inglês e Espanhol.

3. Os trabalhos devem obedecer à seguinte ordem:- Título (e subtítulo, se houver). Deve estar de acordo com o conteúdo do trabalho, conforme os artigos aqui apresentados.- Autor(es). Logo abaixo do título, apresentar nome(s) do(s) autor(es) por extenso, sem abreviaturas. Com numeração, colocado logo após o nome completo do autor ou autores, remeter a uma nota de rodapé, relativa às informações referentes às instituições a que pertence(m) e às qualifi cações, títulos, cargos ou outros atributos do(s) autor(es). O Ori-entador, co-orientador de Trabalhos de Graduação, Dissertações e Teses passam a ser co-autores em textos originados destes trabalhos.

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- Resumo. Com o máximo de 250 palavras, o resumo deve apresentar o objeto estudado, seu objetivo, como foi feito (metodologia), apresentan-do os resultados, conclusões ou refl exões sobre o tema, de modo que o leitor possa avaliar o conteúdo do texto.- Abstract. Versão do resumo para a língua Inglesa. Caso o trabalho seja escrito em Inglês, o Abstract deverá ser traduzido para o Português (Resumo).- Palavras-chave (Key words). Apresentar duas a cinco palavras-chave sobre o tema.- Texto. Deve ser distribuído de acordo com as características próprias de cada trabalho. De um modo geral, contém: 1- Introdução; 2- Desen-volvimento; 3- Considerações fi nais; 4- Referências Bibliográfi cas.- Citações dentro do texto. As citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir um parágrafo independente, apresentadas em bloco. As menções a autores no decorrer do texto devem subordinar-se ao esquema numérico (referência de rodapé), com a primeira referência completa e as demais podem vir abreviadas (op. cit. p. ou Ibidem, p. ). - Referências Bibliográfi cas. Elas devem ser apresentadas ao fi nal do tra-balho, em ordem alfabética de sobrenome do(s) autor(es), como nos seguintes exemplos:a)Livro: SOBRENOME, Nome. Título da Obra. Local de publicação: Editora, data. Exemplo: PÉCORA, Alcir. Problemas de Redação. 4 ed. São Paulo: Martins Fon-tes, 1992.b) Capítulo de Livro : SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org.). Título do Livro, Local de publicação: Editora, data. Página inicial-fi nal.c) Artigo de periódico: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico, local de publicação, volume do periódico, número do fas-cículo, página inicial-página fi nal, mês(es).ano. Exemplo: ALMEIDA JÚNIOR, Mário. A economia brasileira. Revista Brasileira de Economia, São Paulo, v. 11, n.1, p.26-28, jan./fev.1995.d) Teses e Dissertações: Sobrenome, nome. Título da Dissertação (ou tese). Local. Número de páginas (Categoria, grau e área de concentra-ção). Instituição em que foi defendida. Data. Exemplo: BARCELOS, M.F.P. Ensaio tecnológico, bioquímico e sensorial de soja e guandu enlatados no estádio verde e maturação de colheita. 1998. 160 f. Tese (Doutorado em Nutrição) – Faculdade de Engenharia de Ali-mentso, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

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e) Outros: Consultar as Normas da ABNT para Referências Bibliográ-fi cas.

4. As Figuras (desenhos, gráfi cos, ilustrações, fotos) e tabelas devem apresentar boa qualidade e serem acompanhados de legendas breves e claras. Indicar no verso das ilustra-ções, escritos a lápis, o sentido da fi gura, o nome do autor e o título abreviado do trabalho. As fi guras devem ser numeradas seqüencialmente com números arábicos e iniciadas pelo termo Figura, devendo fi car na parte inferior da fi gura. Exemplo: Figura 4 - Gráfi co de controle de custo. No caso das tabelas, elas também devem ser numeradas seqüencialmente, com números arábicos, e colocadas na parte superior da tabela. Exemplo: Tabela 5 – Cronograma da Pesquisa. As fi guras e tabelas devem ser impressas juntamente com o original e quando geradas no computador deverão estar gravadas no mesmo arquivo do texto original. No caso de fotografi as, desenho artístico, mapas, etc., estes devem ser de boa qualidade e em preto e branco.

5. O encaminhamento do original para publicação deve ser feito acompanhado do disquete e com a indicação do software e versão usada.

6. O Conselho Editorial avaliará sobre a conveniência ou não da publicação do tra-balho enviado, bem como poderá indicar correções ou sugerir modifi cações. A cada edição, o Conselho Editorial selecionará, dentre os trabalhos considerados favoráveis para publicação, aqueles que serão publicados imediatamente. Os não selecionados serão novamente aprecia-dos na ocasião das edições seguintes.

7. Os conteúdos e os pontos de vista expressos nos textos são de responsabilidade de seus autores e não apresentam necessariamente as posições do Corpo Editorial da Revista de Direito do Curso de Direito do Centro Universitário de Dourados- UNIGRAN.

8. Originais. A Revista não devolverá os originais dos trabalhos e remeterá, gra-tuitamente, a seus autores, dez exemplares do número em que forem publicados.

9. O Conselho Editorial se reserva o direito de introduzir alterações originais, com o objetivo de manter a homogeneidade e a qualidade da publicação, respeitando, porém, o estilo e a opinião dos autores.

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