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Manuel MozosCharlie KaufmanLee FieldsSizoGolden Silvers CHARLES E. ROTKIN/CORBIS ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7066 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE Sexta-feira 21 Agosto 2009 www.ipsilon.pt Vida e morte da dança

Vida e morte da dançafonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/090821… · Manuel Mozos Charlie Kaufman Lee Fields SizoGolden Silvers CHARLES E. ROTKIN/CORBIS ESTE

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    Sexta-feira 21 Agosto 2009www.ipsilon.pt

    Vida e morte da dança

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    Director José Manuel FernandesEditor Vasco Câmara, Inês Nadais (adjunta)Conselho editorial Isabel Coutinho, Óscar Faria, Cristina Fernandes, Vítor Belanciano Design Mark Porter, Simon Esterson, Kuchar SwaraDirectora de arte Sónia MatosDesigners Ana Carvalho, Carla Noronha, Mariana SoaresEditor de fotografia Miguel MadeiraE-mail: [email protected]

    Ficha Técnica

    SumárioDança 4Questões de herança e transmissão, no “day-after” das mortes de Pina Bausch e Merce Cunningham

    Manuel Mozos 11Filma uma família que o amor liga, mesmo quando separa, em “Quatro Copas”

    Charlie Kaufman 14Dentro da cabeça mais peculiar de Hollywood, a propósito do novo “Sinédoque, Nova Iorque”

    Lee Fields 16Como é que este homem não tem dezenas de discos gravados?

    Sizo 18Ao terceiro EP, já são um caso sério do ano português

    Golden Silvers 20Fizeram o single deste Verão, e mais?

    John Landis vem dormir ao MOTELx

    É a mais recente novidade da programação do MOTELx – a terceira edição do Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa traz a Lisboa John Landis, o autor de “Um Lobisomem Americano em Londres” e “Não Há Pescoço que Aguente” (mas também de “Os Ricos e os Pobres”, “A República dos Cucos” ou “Pela Noite Dentro”). Um dos cineastas-chave do cinema americano da década de 1980, “especialista” na conjugação do humor e do horror, Landis tem passado a última década activo maioritariamente na televisão, para a qual realizou episódios das séries “Masters of Horror” e “Fear Itself” e dois documentários aclamadíssimos (“Slasher”, sobre os vendedores de automóveis, e “Mr. Warmth”, sobre o comediante Don Rickles). Aproveitando a presença do realizador, o MOTELx, que decorre entre 2 e 6 de Setembro no cinema São Jorge, homenageia-o com a projecção do seminal “Um Lobisomem Americano em Londres”. O festival, que traz igualmente a Lisboa outro veterano do cinema de género, Stuart Gordon, fechou entretanto a programação da sua secção principal, com a entrada de um dos mais recentes filmes do imparável nipónico Takashi Miike, “Detective Story”. Mais informações em www.motelx.org.

    Que o cinema de Ingmar Bergman é uma fonte inesgotável de fascínio e admiração não é novidade nenhuma, e que a relação entre a sua arte e a sua conturbada vida privada era bem maior do que pareceria à primeira vista ainda menos. Mas o crítico britânico Geoffrey Macnab, colaborador regular do jornal “The Guardian” e da revista “Sight & Sound”, mergulha até ao fundo dessas “ligações perigosas” no novo estudo biográfico “The Life and Films of the Last Great European Director” (acabado de publicar em Inglaterra pela I. B. Tauris). Nele, Macnab cruza as vidas pessoal e profissional do realizador para desvendar exacta-mente quanto de pessoal era visível nos seus filmes, e dedica especial atenção às suas complexas relações emocionais e profissionais com as actrizes que dirigiu, muitas das quais citadas no livro através de entrevistas inéditas – e com três das quais teve casos mais ou menos longos (Harriet Andersson, Bibi Andersson e Liv Ullmann) O crítico pinta um retrato de Bergman como um cineasta intenso, obcecado, quase tirânico (mais com os técnicos, mas também com os actores), que, nas palavras da sua assistente Katinka Farago, “dava tudo de si em cada cena de cada filme e queria que todos à sua volta fizessem o mes-mo”. Bibi Andersson quei-xou-se, uma vez, que Berg-man não gostava que as suas actrizes entrassem no

    Bergman e as mulheres deram um livro

    “plateau” sem ideias pró-prias sobre as personagens, mas que era capaz de discus-sões terríveis quando essas ideias não coincidiam com as suas. E Harriet Andersson aponta que o realizador parecia atribuir-lhe papéis consoante se estivessem a dar melhor ou pior na altura. Mas, apesar de tudo, todas elas não trocariam por nada a experiência de serem dirigidas por Bergman -

    mesmo a falecida Ingrid Bergman, que o esbofeteou nas rodagens de “Sonata de Outono”, ou Lena Olin, que incorreu no desagrado do realizador por ter engravi-dado durante os ensaios de uma peça de Strindberg. Macnab aponta que nenhum outro realizador europeu seu contemporâneo terá

    Intenso, obcecado, quase tirânico: o novo retrato a corpo inteiro de Bergman

    Com Liv Ullmann, de quem teve uma filha

    Os diários de Byrne em bicicletaO músico e realizador David Byrne, um dos fundadores dos Talking Heads (e também artista plástico: faz fotografia e instalações), acaba de publicar no Reino Unido o seu sexto livro, “Bicycle Diaries”. Desde os anos 80 que o meio de transporte preferido de David Byrne (57 anos) em Nova Iorque é a bicicleta. “Quando fiz a

    John Landis é o coelho na cartola do festival

  • Ípsilon • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • 3

    Primeiro álbum dos Nirvana em reedição de luxoHá mais um álbum mítico a fazer 20 anos em 2009 (há umas semanas estávamos aqui a falar de “Doolittle”, dos Pixies) e a ter direito a uma reedição de luxo. “Bleach”, a primeira coisa que os Nirvana fizeram juntos, vai voltar a sair no Outono (a data certa é 3 de Novem-bro), agora em versão revista e aumentada, com o selo da Sub Pop, a editora original da banda de Kurt Cobain. O novo “Bleach” vai ser um CD duplo que inclui, além das 13 canções do disco, o registo inédito de uma actuação dos Nirvana no Pine Street Theatre de Portland, a 9 de Fevereiro de 1990 (“featuring”, por exemplo, “About a girl” e uma “cover” de “Molly’s Lips”, dos Vaselines) e um livrinho de 16 páginas com fotografias que nunca foram mostradas. Tal como o álbum original, o duplo LP também vai estar disponível em vinil branco. Jack Endino, que em 1989 gravou “Bleach” em apenas 30 horas, foi o produtor chamado para remasteri-zar a reedição. Já não tem grandes memórias das sessões de gravação mas tem memória de ter passado a ser reconhecido por isso, disse à “Rolling Stone”: “Quando conheci o Iggy Pop, ele disse-me: ‘Ah sim, tu fizeste aquele grande álbum dos Nirvana’. Estava efusivo, completa-mente pasmado, e não parava de dizer que adorava aquilo”.

    brasileiro” na Academia Brasileira de Letras, vão ser publicados vários livros. Em Setembro, divulgou o suplemento “Prosa & Verso” do jornal “O Globo” desta semana, vai ser editada na editora Ateliê Editorial a biografia “Euclides da Cunha: Uma Odisseia nos Trópicos”, escrita pelo professor de literatura norte-americano Frederic Amory, que morreu em Fevereiro. Também nos próximos meses vai para as livrarias brasileiras “Euclides da Cunha: Poesia Reunida”, uma antologia organizada pelos professores Francisco Foot Hardman e Leopoldo M. Bernucci e editada pela Unesp. É uma edição comentada que junta num só volume a produção poética de Euclides, que estava dispersa, bem como algum material inédito. São 133 poemas (inéditos, dispersos e variantes de alguns poemas). Estes professores universitários demoraram dez anos a concluir este projecto: ao “Prosa & Verso”, Foot Hardman explicou que “a letra dele é dificílima, o estado do material não é excelente, o trabalho de transcrição dos manuscritos não foi fácil.” Por fim, a editora brasileira Nova Aguilar vai reeditar a “Obra Completa”, com organização do professor Paulo Roberto Pereira.

    Mike Nichols leva mais um romance de Highsmith ao cinema

    “Águas Profundas”, o romance que Patricia Highsmith publicou em 1957, vai ser adaptado ao cinema por Mike Nichols numa produção da Fox 2000. Quem o diz é a revista “Variety”, que sabe ainda que a adaptação do romance caberá ao

    argumentista Joe Penhall, que recentemente também escreveu o argumento que adapta ao cinema “A Estrada”, de Cormac McCarthy. O romance escrito pela autora de “O Talentoso Mr. Ripley” (também já adaptado ao cinema) conta a história de um casal norte-americano, Victor Van Allen e Melinda, que parecia ter um casamento perfeito. Mas Melinda tem amantes e tudo se complica quando estes começam a morrer.

    minha primeira tentativa, senti-me liberto e com imensa energia. Foi estimulante circular pelas ruas sujas. No final dos anos 80 descobri as bicicletas desmontáveis, e quando ou o meu trabalho ou a minha curiosidade me levam para outras partes do mundo costumo levar uma bicicleta comigo”, escreve ele.No novo livro, Byrne conta como foram as suas viagens em bicicleta em oito cidades: Londres, Berlim, Istambul, Buenos Aires, Manila, Sydney, São Francisco e Nova Iorque. E também por outros sítios da América. O jornal britânico “The Guardian”, que já leu o livro, acredita que este tem muito em comum com “What I Talk About When I Talk About Running”, do romancista japonês Haruki Murakami (que vai ser publicado em Portugal pela Casa das Letras). Ambos os livros reflectem o que os autores vão meditando e pensando enquanto atravessam as cidades (um de bicicleta e outro a pé). Escreve também o crítico do “The Guardian” que este não é um livro onde se aprende a mudar um pneu ou a tapar um furo. Não é um guia daqueles em que nos dizem que tipo de bicicleta comprar, apesar de no final do livro existir um capítulo com algumas dicas. A determinada altura David Byrne está a falar dos ciclistas nova-iorquinos e escreve: “Talvez seja irrealista mas acho que se os ciclistas querem ser mais bem tratados pelos motoristas e pelos peões têm que obedecer às regras de trânsito tal como eles esperam que os carros o façam.” Um aviso sensato.

    Novas edições no centenário da morte de Euclides da CunhaO centenário da morte de Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões” (obra de ciência e literatura), está a ser assinalado no Brasil de várias maneiras. Jornalista, escritor, poeta, historiador, engenheiro, Euclides da Cunha morreu no dia 15 de Agosto de 1909 numa troca de tiros no subúrbio carioca de Piedade. Tinha 43 anos e foi morto por Dilermando de Assis, em quem tinha atirado primeiro, quando confirmou que este era amante da sua mulher, Ana Ribeiro. Além das exposições “Euclides da Cunha, uma poética do espaço brasileiro” na Biblioteca Nacional e “Euclides, um

    estado tão atento e sido tão compre-ensivo com a vida emocio-nal do sexo feminino e, a propósito, Liv Ullmann, mãe de Linn, a mais jovem das nove filhas e filhos de Bergman, fez esta confis-são: “Pela primeira vez en-contrei um realizador que me deixou expressar emo-ções e ideias que mais nin-guém tinha visto em mim.”Jorge Mourinha

    David Byrne não larga a bicicleta

    Depois do labirinto de “Closer”, o labirinto de “Águas Profundas”

    Euclides da Cunha está a ser redescoberto

    “Bleach” inclui um segundo CD com um registo inédito de 1990

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    E para onde vai a dança quando não

    estamos a olhar?É imaginar pinturas a serem retiradas das paredes dos museus ou livros

    a sair das lojas e bibliotecas no dia da morte dos seus autores. É imaginar um poema a não voltar a ser dito. Na dança, é assim – com a morte,

    as luzes de cena começam lentamente a apagar-se. Nos últimos meses perdemos Pina Bausch e Merce Cunningham, dois gigantes. Alguém sabe o que vai acontecer às obras com que mudaram o mundo? Vanessa Rato

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    “É preciso amar a dança para continu-ar a dançar. Não nos devolve nada, nenhuns manuscritos para guardar, nenhumas pinturas para pendurar nos museus, nenhuns poemas para serem impressos e vendidos, nada a não ser aquele momento fugaz em que nos sen-timos vivos. Não é para almas instá-veis.” Merce Cunningham

    Primeiro foi a surpresa, o choque, depois veio o pânico, com a mesma pergunta a passar pela cabeça de to-da a gente: e agora?

    Afinal, a quem pertence e como se preserva um tipo de legado que, por definição, é imaterial, um património como a dança, que existe apenas no momento em que o corpo de alguém a recebe? A dança é uma questão de apropriação e, por isso mesmo, de constante contaminação e transfor-mação. Uma dinâmica de vida. O con-trário de morte. E, contudo...

    26 de Julho de 2009: Merce Cunnin-gham, um dos génios maiores da transformação da dança numa forma de arte moderna, morre em casa, em Nova Iorque, aos 90 anos.

    30 de Junho de 2009: Pina Bausch, a voz mais transformadora e influente da dança europeia das últimas três décadas, morre inesperadamente em Wuppertal, na Alemanha, aos 68 anos, apenas cinco dias depois de se saber doente com um cancro.

    21 de Novembro de 2007: Maurice Béjart, o último grande coreógrafo dos revolucionários Ballets Russes e ele próprio um dos mais influentes autores da Europa das décadas de 1960 e 1970, morre em Lausanne, na Suíça, aos 80 anos, depois de um mês de tratamentos cardíacos e renais in-tensivos.

    Todos eles. E antes deles tantos ou-tros. Martha Graham, José Limón, Al-vin Ailey, Kurt Joos, Dominique Ba-gouet... É a nossa memória a desapa-recer aos poucos, e tentar travar esse processo tem sido como tentar segu-rar um punhado de areia demasiado volumoso para a nossa mão. Tudo a escapar-se-nos por entre os dedos.

    “A tragédia da dança é que 99 por cento das peças produzidas desapa-recem passados cinco anos”, dizia-nos a historiadora de dança norte-ameri-cana Lynn Garafola há apenas três meses, por altura do centenário do nascimento do Ballets Russes, a com-panhia-revolução criada por Sergei Diaghilev na Paris de 1909. “Quantas peças sobrevivem a uma temporada? Como se passam reportórios quando as instituições estão permanentemen-te a colapsar?”, perguntava-se. Foi depois que começaram as mortes.

    Merce foi previdente e taxativo. Com cada vez menos energia, confi-nado a uma cadeira de rodas devido à artrite que tinha há décadas e longe da figura alta e esguia de longo pes-coço cuja invulgar graciosidade foi em tempos comparada à de Nijinsky, sabia que o fim estava próximo. Or-ganizou tudo.

    Dois meses antes da sua morte anunciou uma estratégia de preserva-ção patrimonial sem precedentes. Um Living Legacy Plan segundo o qual deverão ser angariados junto de me-cenas oito milhões de dólares a aplicar em acções metodicamente delinea-das: a elaboração de um centro de documentação do seu percurso dos anos 1940 à actualidade; a remonta-gem de trabalhos seminais; uma últi-ma digressão mundial da Merce Cun-ningham Dance Company ao longo

    dos próximos dois anos; o encerra-mento da companhia no regresso a casa, com um plano de reconversão de carreiras; e, por fim, a transferên-cia de todos os bens para o Merce Cun-ningham Trust, que fica com a gestão do legado do coreógrafo.

    “O Living Legacy Plan é abrangente, multifacetado e – como o próprio Mer-ce – pioneiro. Oferece um novo mo-delo para companhias de dança e ou-tras organizações dirigidas por artistas em trânsito para uma existência pós-fundador”, dizia em Abril Trevor Carl-son, director executivo da Cunnin-gham Dance Foundation.

    Agora, sem Merce, há quem diga que vai ser difícil conseguir fundos para um projecto a três anos. Mas, com 3,5 milhões de dólares reunidos, os directamente envolvidos mostram-se optimistas. “A companhia já tem perspectivas e está confiante de que vai conseguir os fundos necessários”, dizia-nos há três semanas Leah San-dals, assessora de imprensa da fun-dação.

    Segundo Leah, os 14 bailarinos nes-te momento no activo estudaram com Merce e estão preparados para continuar a ensinar a sua técnica, dando continuidade a uma linguagem de excelência extrema, enraizada nu-ma ideia de movimento puro, seco de qualquer teatralidade ou pesquisa psicológica. É a estes bailarinos que caberá também assegurar a digressão já em curso e que em Novembro che-ga à Europa, incluindo a apresenta-ção de peças como “Suite for Five” (1956-1958), a mais antiga do repor-tório da companhia e com figurinos de Robert Rauschenberg (Mónaco, dias 14 e 15 de Abril) e “Squaregame”, (1976), uma obra muito raramente

    vista, estando por remontar quase desde a data da sua criação (Charle-roi, Bélgica, 12 a 14 de Novembro).

    Foi o plano de Merce, o visionário que deixou tudo o que pôde – textos, registos videográficos de espectácu-los, aulas, ensaios e até uma série documental a ser difundida via Inter-net em que as suas motivações e téc-nicas são explicadas quer em teste-munho directo quer pela voz de es-pecialistas.

    Palavras dele: “É de facto um pro-blema preservar os elementos de uma forma de arte que é realmente evanescente, que é realmente como a água.”

    Como a água, pois: perante as su-cessivas mortes, a conhecida crítica de dança Judith Mackrell encontrou palavras particularmente clarividen-tes para expressar essa espécie de evaporação sistemática da dança: “É imaginar a situação em que as pintu-ras de Rauschenberg ou Bacon fossem descidas das paredes no momento

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    Martha Graham, um dos casos mais controversos de transmissão do reportório

    “A tragédia da dança é que 99 por cento das peças produzidas desaparecem passados cinco anos. Quantas peças sobrevivem a uma temporada?”Lynn Garafola

  • 6 • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • Ípsilon

    da morte desses artistas; é imagi-nar a situação em que os romances de Saul Bellow fossem retirados das estantes ou a música de Stravinsky fosse silenciada. Nenhuma outra for-ma de arte aceitaria por um segundo que a morte [de um autor] implicasse a possível morte da sua obra.”

    Da criação ao reportórioPoderá parecer um exagero falar em silêncio perante um plano como o deixado por Merce, mas parece bem menos um exagero perante a incerte-za que paira sobre o Tanztheater Wu-ppertal desde a morte de Pina. “A única coisa que sabemos é que vamos manter as datas agendadas”, dizia-nos há dias Ursula Popp, porta-voz da companhia, explicando que “nada do resto está decidido”.

    Depois de semanas em que a com-panhia teve a sua página na Internet suspensa, nesta vê-se agora um plano de espectáculos até Julho de 2010. Se-gundo Popp, Pina não deixou qual-quer testamento ou vontade escrita no que toca ao seu legado: “É difícil dizer. Ela sempre quis que [a compa-nhia] continuasse, mas não havia qual-quer indicação específica.”

    Entre os bailarinos, o francês Do-minique Mercy e a espanhola Naza-reth Panadero são os mais velhos, estando em Wuppertal praticamente desde a fundação da companhia, em 1973; conhecedores profundos das metodologias e motivações da core-ógrafa, seriam sucessores possíveis. Mas à frente de quê? De uma compa-nhia de autor feita de reportório? Para esse cenário, há o exemplo do Béjart Ballet Lausanne onde nos úl-timos dois anos tem assumido as ré-deas o bailarino francês Gil Roman,

    que esteve ao lado do seu mestre des-de os anos 1960 até ao fim.

    “As novas peças serão assinadas por ele, como já aconteceu em Dezembro de 2008, e o reportório será uma mis-tura entre herança e novas produ-ções”, diz-nos uma porta-voz da com-panhia. No site, contudo, há datas marcadas apenas até Outubro deste ano – o que resta da companhia de um autor que nos últimos tempos era vis-to como pouco mais do que “kitsch” mas que assinou obras de referência como “Sinfonia para um Homem Só” (1955), o primeiro “ballet” de sempre a utilizar música concreta.

    José Sasportes, historiador de dan-ça próximo de Wuppertal, traça um quadro igualmente negro para a com-panhia de Pina: considera “bastante provável” que não resista à falta de novas produções, base primeira da sua subsistência. “Durante um ano, dois, é natural que o interesse do pú-blico se mantenha, até como home-nagem; depois, quando não houver ‘tournées’ [com novas produções], a companhia acaba.”

    Optimismo zero: na opinião de Sas-portes, encerrada a companhia, das cerca de 40 obras assinadas por Baus-ch ao longo dos últimos 36 anos o mais expectável é que apenas três subsistam – “Orfeu e Eurídice” e “A Sagração da Primavera”, ambas de 1975 e ambas oferecidas à Ópera de Paris, cuja companhia Pina instruiu pessoalmente e que em qualquer al-tura as poderá ter em cena, e “Kon-takthof”, uma peça de 1978 que a coreógrafa foi montando com dife-rentes grupos de intérpretes.

    Quase quatro dezenas de peças votadas ao desaparecimento, incluin-do verdadeiros marcos da contem-

    Com uma influência artística comparável à de Picasso, Stravinsky ou James Joyce, Martha Graham foi a grande pioneira da dança moderna nos Estado Unidos, autora da primeira alternativa ao vocabulário clássico a tornar-se numa técnica usada por companhias de todo o mundo. Tinha 96 anos quando morreu em sua casa, em Manhattan, a 1 de Abril de 1991, com uma paragem cardíaca, depois de meses de tratamento hospitalar a uma pneumonia contraída durante uma digressão recente com a sua companhia pela Europa de Leste. Professora de futuros bailarinos de coreógrafos de renome como Alvin Ailey, Twyla Tharp, Paul Taylor, Merce Cunningham e Mark Morris – mas também de actores como Gregory Peck e Bette Davis... –, Graham escolheu em testamento um herdeiro universal: Ron Protas, seu companheiro há 30 anos.

    Graham e Protas conheceram-se em 1967. Ele era um estudante de direito e fotógrafo amador de cerca de 20 anos. Ela tinha 70 e problemas de depressão e alcoolismo ligados à retirada dos palcos.

    Segundo alguns relatos, apesar de não ser uma figura estimada pelos restantes colaboradores de Graham, Protas terá sido o responsável pela recuperação da coreógrafa e, com a sua morte, acabaria por se tornar director-geral do Centro de Dança Contemporânea Martha Graham, lugar que deixaria em ruptura em 2000, quando se lançou numa batalha legal multimilionária pelos direitos das peças assinadas pela sua companheira.

    Um primeiro tribunal, um tribunal de recurso e o Supremo: todos chegaram à conclusão de que Graham não podia deixar a Protas o que não era dela,

    todos chegaram à conclusão de que, como assalariada, Graham trabalhava para a sua companhia, sendo esta a legítima proprietária de quaisquer direitos de autor.

    Para os responsáveis do centro e da companhia foi um alívio: a decisão permitiu-lhes continuar a levar à cena os espectáculos de sempre. Já Protas, que recebeu os direitos de apenas duas das cerca de 180 peças assinadas por Graham e acabou responsabilizado pelos prejuízos causados ao centro pela acção legal, viu o caso como um aviso aos artistas: “Espero que percebam que estão em risco. Ela acreditava que os seus ‘ballets’ lhe pertenciam”, explicou na altura. Sublinhando: “Estou zangado com o que está a ser feito supostamente em nome de Martha e dos seus desejos. Com toda a humildade, eu fui a pessoa mais próxima dela nos últimos 30 anos da sua vida. É absurdo pensar que ela tenha morrido a considerar-se uma assalariada.”

    Janet Eilbert, actual directora artística da companhia, reconhece que, para além do

    testamento, Graham não deixou qualquer declaração expressa sobre o que pretendia que acontecesse ao seu legado, mas fala de “declarações implícitas”: “Martha Graham criou o centro precisamente para que este protegesse o seu legado. Era assalariada do centro e demonstrou ao longo dos anos que queria ver o seu legado vivo, renovado: documentava o seu trabalho em filme, ensinava a sua técnica – as suas acções demonstravam as suas intenções para o futuro.”

    A Protas foram atribuídos direitos sobre “Seraphic Dialogue”, uma obra de 1955 baseada na história de Joana D’Arc, e “Acrobats of God”, datada de 1960 (“acrobatas de Deus” era o que Graham chamava aos bailarinos) – os direitos sobre as coreografias, porque os direitos sobre os cenários e figurinos das mesmas peças ficaram com o centro. Quando perguntamos a Janet se imagina ceder esses materiais a Protas para que pelo menos as peças possam continuar a ser feitas, ainda que por outras companhias, ela responde: “Não imagino deixá-lo ficar com eles. Esperamos que um dia ele nos deixe a nós dançar essas peças.” V.R.

    Martha GrahamUm precedente

    jurídico

    Graham deixou todos os direitos das suas peças a Ron Protas, o seu companheiro; os tribunais anularam a decisão

    Vaslav Nijinsky

  • Ípsilon • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • 7

    poraneidade como “Café Müller”, de 1978 e a única peça em que vimos Pina dançar, ou “Palermo, Palermo”, de 1989, a primeira da longa série de peças sobre cidades que acabaria por incluir Lisboa, com “Mazurca Fogo”, em 1998. Chocante? É o que tem vin-do a acontecer desde sempre. Afinal, quantas peças de Marius Petipa che-garam até nós?

    À frente do Teatro Mariinsky, o “bal-let” imperial de São Petersburgo, entre 1871 e 1903, onde ensinou e dirigiu bai-larinos míticos como Nijinsky e Anna Pavlova, Petipa assinou mais de 50 produções, trabalhos financiados com milhões de rublos pela corte russa, à época a mais rica da Europa. Se o “bal-let” é hoje entendido como uma forma de arte russa é, precisamente, devido a Petipa, que resgatou da decadência a tradição francesa e italiana, elevan-do-a ao nível de excelência e de fausto que hoje identificamos como o apogeu do clássico. E, contudo, para além de versões de “Giselle”, “Coppélia” e “O

    Lago dos Cisnes”, remontagens de obras pré-existentes, dos trabalhos de Petipa o público de hoje identificará pouco mais do que “A Bela Adormeci-da”, de 1890, “O Quebra-Nozes”, de 1892, e “Raimunda”, de 1898.

    Mais: apenas uma excepção entre autores do século XIX – a constituída por August Bournonville, à frente do Royal Danish Ballet entre 1828 e 1879 onde coreografou cerca de 50 peças, das quais à volta de 12 continuam ho-je a ser interpretadas pela companhia, uma das mais antigas do mundo.

    É ainda José Sasportes quem aler-ta: “A história da dança sempre se construiu sobre o efémero, sempre se deitou fora o que se fazia. Até ao fim do século XIX o que interessava era o novo. Mas os coreógrafos ti-nham discípulos, mantinha-se o mo-do de fazer.”

    Começar do zeroDiscípulos, uma tradição passada de geração em geração: era a lógica an-terior à hoje omnipresente estratégia das companhias centradas num autor e seus produtores que, para conter custos, contratam intérpretes apenas no momento das novas criações; é a lógica que começou a morrer com as grandes companhias de reportório, uma figura hoje em extinção perante a carência de apoios. O tipo de carên-cia que levou, entre outras, à dissolu-ção do Frankfurt Ballet, fundado em 1984 por William Forsythe, talvez o mais brilhante dos coreógrafos que continuam a trabalhar e reinventar o vocabulário clássico.

    Depois de 20 anos à frente do Frankfurt Ballet, Forsythe entendeu que os cortes de financiamentos es-tatais com que se confrontava com-

    prometiam irremediavelmente a qua-lidade do seu projecto artístico. Op-tou por abandonar a companhia, criando outra, a Forsythe Company, com apenas 18 bailarinos, contra os 42 com que o Ballet de Frankfurt co-meçou e os 34 a que estava reduzido na altura da dissolução.

    “O que lamento é a falta de conti-nuidade numa estrutura que estava tão bem organizada”, disse à época o coreógrafo. Explicando: “Ao longo dos últimos 20 anos, passaram pela companhia 130 bailarinos. O conhe-cimento foi passado. A quebra disso é devastadora.”

    Vera Mantero, uma das mais con-sideradas autoras da chamada Nova Dança Portuguesa, menciona uma das consequências mais desconcer-tantes da falta de passagem de conhe-cimento na sua área: a permanente sensação de se estar a começar do zero (perspectiva dos criadores); isso ou o sentimento cíclico de estar a vi-ver um “déjà vu” tendencialmente mais pobre do que a experiência ori-ginal, acrescentaríamos nós (pers-pectiva do público).

    Uma simples biblioteca: “Quando fui para Nova Iorque [nos anos 1980], no fim, quando já nem estava a fazer aulas de dança, passava a vida na bi-blioteca de artes performativas do Lincoln Center, a ver todas aquelas peças fantásticas dos arquivos de ví-deo. Não há transmissão de conheci-mento, não há ensino sem este tipo de ferramenta. Desaparece tudo o que foi feito sem que as coisas novas fi-quem também registadas.”

    Em Nova Iorque há o Licoln Center e a Public Library, em Paris o arquivo do Centre National de La Danse, com fundos que vão do espólio de Lisa

    “Durante um ano, dois, é natural que o interesse do público se mantenha, até como homenagem; depois, quando não houver novas produções, a companhia acaba”José Sasportes

    Pina Bausch em “Café Muller” (1978), a única peça em que a vimos dançar e que ainda em 2008 repôs em Lisboa

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  • 8 • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • Ípsilon

    Ullman, colaboradora de Kurt Jooss e Rudolf Laban, a material de coreó-grafos de hoje como Jérôme Bel, o Fundo Rodolf Noureyev e o Arquivo Isabelle Ginot, sobre Dominique Ba-gouet. Em Portugal, o Fórum Dança tem tentado manter um pequeno ar-quivo videográfico de novas produ-ções, mas que nem sempre consegue actualizar, sobretudo em termos in-ternacionais. De resto, o registo de algumas obras importantes da histó-ria da dança contemporânea portu-guesa pode estar definitivamente perdido. Como acontece com “Gust”, de Francisco Camacho.

    Estreada em 1997 e considerada uma das melhores produções de sem-pre da dança portuguesa independen-te, “Gust” acabou por ficar registada apenas num plano geral de qualidade fraca, imagem de “régie” sem porme-nores individuais e a ideia de uma reposição, ainda que apenas para fil-magens, é complexa. Para além dos custos, há que ter em conta os 12 anos entretanto decorridos: com a morte da bailarina Paula Castro, há dois anos e meio, dos restantes 13 intérpretes originais – os que mais facilmente re-tomariam o espírito da produção –, dois, os mais velhos, estão retirados, e, das duas bailarinas mais jovens, uma não deu continuidade à carreira que estava então a começar.

    Um problema de memória“Quando fazemos as coisas nunca pensamos que elas vão se vão tornar história”, diz João Fiadeiro. A Re.Al, produtora deste coreógrafo, revela algumas das marcas da história de precariedade da dança, em geral, e da dança portuguesa, em particular. Em caixas fechadas há anos, Fiadeiro

    tem cerca de duas mil cassetes – so-bretudo VHS e Hi8 – de ensaios, “workshops”, conferências-demons-tração e peças, só que muito desse material, correspondente a cinco ou seis anos de actividade até 1998, pode estar (talvez irremediavelmente) cor-rompido: ficou submerso quando o Tejo inundou o Espaço Ginjal, onde a companhia teve sede, e continua guardado desde então. Da mesma forma, ao longo do tempo “desapa-receu quase tudo” no que toca a figu-rinos e cenários, nomeadamente com o encerramento do Espaço A Capital, no Bairro Alto, onde a 29 de Agosto de 2002 a polícia entrou e deu ordem de encerramento imediato alegando falta de condições de segurança do velho edifício onde uma série de es-truturas tentaram criar um centro

    artístico multidisciplinar. Nesse dia, os responsáveis pelo colectivo teatral Artistas Unidos abriram a bagageira de um Honda Civic e enfiaram lá den-tro o essencial – dossiers, computa-dores e impressoras. No fim entraram eles e arrancaram. A Eira, a Re.Al e os outros fizeram o mesmo.

    “Se não preservarmos as coisas agora, de facto, tudo se perde. É o problema da não inscrição da histó-ria, um problema de memória. Eu acho que as minhas peças têm uma autoria, são do João Fiadeiro, mas pertencem também à comunidade. É um património colectivo. Não pen-sei muito no que acontece ao meu trabalho quando eu morrer; mais do que o que lhe vai acontecer quando morrer, interessa-me o que lhe acon-tece enquanto estou vivo. Porque mesmo que eu não morra, esqueço-me. É um património que acho que compete também às escolas, à uni-versidade, manter, preservar. De pre-ferência enquanto estamos vivos.”

    Em Maio, Francisco Camacho deu um passo nesse sentido, quando teve oportunidade de dirigir uma reposi-ção de uma das suas peças iniciais com alunos do Fórum Dança – “O Rei no Exílio”, feito para a Europália, em 1992. Tal como com outras peças, ha-via elementos de cenário e figurinos já perdidos. “Eu próprio tive que a aprender a peça de novo, porque já não me lembrava”, explica o coreó-grafo, dizendo ser um trabalho que-não faz sentido retomar como intér-prete: “Já não tenho idade, não tenho a energia nem o perfil.”

    É outro problema que se levanta: a relação umbilical entre a linguagem dos coreógrafos e bailarinos contem-porâneos e o seu próprio corpo ou a

    fisicalidade e bagagem referencial dos seus cúmplices. Ao contrário do que acontece com o clássico, com vocá-bulos específicos que podem ser trei-nados todos os dias, passados 100 anos sobre o nascimento da dança moderna a maioria dos autores de hoje usa nas suas criações um cruza-mento multifacetado e idiossincrático de linguagens, um universo que aca-ba por ter mais a ver com uma posi-ção na arte e no mundo do que com uma tradição propriamente dita.

    Martha Graham, Cunningham e Limón desenvolveram técnicas de movimento. Já não é o caso de Pina, a quem devemos esse extraordinário facto de os bailarinos terem ganho voz. Não é também o caso da maioria dos autores portugueses. José Sas-portes compara, aliás, Vera Mantero a Isadora Duncan, de tal forma a sua linguagem é pessoal: “A Vera é ela, aqui. É um caso de destruição natu-ral.”

    É também, contudo, um caso raro de preservação de material: “Mante-nho todas as cassetes de ensaios, dos processos de trabalho. É impensável apagar, gravar por cima. Tenho a no-ção de que vai ser preciso perceber como se chegou ali. Cadernos, no-tas... Guardo tu do. Até diários de adolescência: têm coisas que são já a formação de ideias para o que que-ria fazer.”

    Tudo ali. E, contudo, será material morto se ninguém o retomar. Martha Graham costumava dizer: “Nenhum artista está à frente do seu tempo. Ele é o seu tempo; são os outros que estão atrasados.” No caso da dança é fundamental que não nos deixemos atrasar demais. Ela não fica à espera. Foi.

    Anna Halprin ficou surpreendida quando a coreógrafa Anne Collod a contactou recentemente pedindo autorização para remontar “Parades and Changes”, um dos seus trabalhos de 1965 (esteve em Janeiro na Culturgest e na Fundação de Serralves). Parece ridículo à luz do século XXI e da quantidade de corpos nus que vemos desfilar pelos palcos de todo o mundo, mas foi a peça que levou a que, em plena época do amor livre, Halprin, hoje com 89 anos, recebesse voz de prisão. Por isso mesmo: a nudez dos intérpretes. Mais de 40 anos volvidos e diluídas

    as normas contras as quais à época trabalhava, foi um dos vários aspectos que Halprin quis ver revistos na sua peça, interdita durante 20 anos nos Estados Unidos e um marco da contemporaneidade. Assim, em vez de uma reconstituição “arqueológica”, Halprin, Collod e os intérpretes, entre os quais a portuguesa Vera Mantero, dedicaram-se a recuperar os trilhos originais, para os percorrer à luz de hoje. Porventura, precisamente o que fará mais sentido numa peça construída a partir de uma partitura de tarefas (vestir, despir, caminhar até à boca de cena…) ou em qualquer trabalho em que a improvisação tenha cumprido um papel importante. “Não há uma maneira específica de cumprir a partitura”, diz Vera Mantero, “trata-se de experimentar, inventar maneiras. Vimos filmes, lemos livros, textos que se escreveram sobre a peça, mas a ideia não foi imitar. O que ela nos disse foi: ‘É preciso ver o que fazia sentido na altura e já não faz hoje.’” A nova versão acabou por desembocar, contudo, essencialmente no mesmo lugar que a original. “Se calhar não estamos a cumprir os desígnios da peça ao fazê-la tal e qual, mas cumprimos as partituras…”. V.R.

    “Parades and Changes”Como fazer do presente futuro

    Em 1965 , a nudez de “Parades and Changes” resultou na prisão de Anne Halprin; a coreógrafa quis que esse fosse um dos aspectos “revistos” na remontagem actual

    “Mantenho todas as cassetes de ensaios. É impensável apagar, gravar por cima”Vera Mantero

    João Fiadeiro tem cerca de duas mil cassetes de ensaios, “workshops” e peças; muito desse material pode ter-se perdido nas inundações do Espaço Ginjal

    “Comer o Coração”, de

    Vera Mantero e Rui Chafes

    A remontagem de Anne Collod evitou uma reconstituição

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  • Ípsilon • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • 9

    É uma das obras mais importantes do século XX: em 1913, “Sagração da Primavera” foi a segunda coreografia do bailarino russo Vaslav Nijinsky para os Ballets Russes, porventura a mais célebre das peças célebres da primeira grande companhia de bailado independente do mundo. Depois da polémica provocada no ano anterior com “Prelúdio à Tarde de um Fauno”, um trabalho em que

    Nijinsky – o fauno – simulava masturbar-se com um lenço (um choque para o público médio da época, com a peça a acabar acusada de obscenidade), “Sagração da Primavera” redobraria a provocação sexual dos ambientes primitivistas – redobraria também, claro, o escândalo, acabando com um motim em que a polícia teve que intervir.

    Inspirada em antigos rituais de fertilidade e com movimentos tão inesperados e crus quanto a partitura musical de Igor Stravinsky, cheia de dissonâncias e assimetrias, nenhuma da fluidez comum à época, “Sagração da Primavera” acabaria por passar décadas perdida depois do fim dos Ballets Russes em 1929, recuperada apenas em 1987 pela companhia norte-americana de Robert Joffrey em colaboração com a coreógrafa e historiadora Millicent Hodson e o marido desta, o também historiador Kenneth Archer. Juntos, Hodson e Archer têm vindo a investigar o período dos Ballets Russes, reconstruindo o seu reportório para grandes companhias internacionais. Desde os anos 1970 recolheram dezenas de testemunhos directos de forma a conseguir aproximar-se o mais possível do que terão sido as produções iniciais. Numa breve entrevista por telefone, Hodson conta o caso emblemático da entrevista feita a uma antiga bailarina que, enquanto criança, entrara num dos espectáculos da companhia e se lembrava de, antes de entrar em cena, estar apoiada numa trave de madeira, à espera – a trave de madeira era o dado que faltava a Hodson e Archer para perceber como montar o cenário. A maior parte dos figurinos originais, feitos de lã e com pesados apliques de metal e osso, estão hoje no Victoria and Albert Museum, em Londres. V.R.

    Millicent Hodson Como manter o

    passado presente

    Desde os anos 1970,

    Millicent Hodson

    e o marido recolheram dezenas de

    testemunhos directos

    de forma a conseguir

    aproximar-se do que terão sido

    as produções originais dos Ballets Russes

    Hodson e o marido reconstruiram o reportório de Vaslav Nijinsky, incluindo esta “Sagração da Primavera”

    “O Pássaro de Fogo” na

    montagem mítica de

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  • “E de repente, bum!, um filme sobre a II Guerra Mundial transforma-se numa carta de amor ao cinema”Quentin Tarantino

    Sacanas Sem Lei

    www.ipsilon.pt

    Em Londres com Quentin Tarantino e os actores Diane Kruger e Christoph Waltz (prémio de interpretação em Cannes)

    Não perca a edição de 28/08/09

  • Ípsilon • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • 11

    “4 Copas” é a quarta longa-metragem de ficção de Manuel Mozos (n. 1959), história de um trio de personagens que depois passa a quarteto unido e desunido pelas circunstâncias afecti-vas, numa Lisboa sempre reconhecí-vel mesmo quando não é identificável. É um momento feliz na obra de Mo-zos, desde sempre assolada por per-calços variados: “4 Copas” estreia-se comercialmente, “Ruínas” (ainda não estreado) tem ganho alguns prémios importantes. Em conversa com o Íp-silon, Manuel Mozos falou de “4 Co-pas” e dos caminhos difíceis percor-ridos pelos jovens cineastas portugue-ses que se iniciaram nos anos 80. Mozos foi um deles, e aprendeu que “nunca se ganha e nunca se perde”.A sua carreira vive em 2009 um momento particularmente feliz. “Ruínas” tem dado nas vistas [foi premiado no IndieLisboa

    e no FID-Marselha], “4 Copas” estreia-se comercialmente... E apresentou ainda “Aldina Duarte - Princesa Prometida”. Numa obra que tem sofrido com tantas irregularidades, tem alguma explicação para esta conjuntura afortunada?É uma coincidência, que até é devida a essas irregularidades. A rodagem do “4 Copas” foi em 2005, está pron-to praticamente desde há dois anos, e há um ano e meio que estava à es-pera da estreia. O “Ruínas” também foi um processo prolongado, ficou pronto agora. Assim como o da Aldi-na. É uma coincidência, mas acho que há uma coerência [risos] na relação com as irregularidades. O caso extre-mo é o “Xavier”, que ficou muitos anos à espera de ser estreado, mas há uma aura de invisibilidade em torno de tantas coisas que fiz...

    P- “4 Copas” é a sua quarta ficção. Como é que a relaciona com as outras três [“Um Passo, Outro Passo, e Depois”, 1989, “Xavier”, 1992, e “...Quando Troveja”, 1999]?Por um lado, ambientam-se todos em Lisboa, e, por outro, [há] uma proxi-midade nos traços das personagens. Personagens em queda, que acabam por ter uma espécie de redenção, e se movem no quotidiano. No “4 Co-pas” isso sente-se de maneira diferen-te, porque seguimos quatro persona-gens e não uma, mas isso para mim até é um pouco uma súmula, permite-me apanhar quatro personagens de gerações diferentes.A Lisboa de “4 Copas” é um pouco mais tortuosa. Gira entre o corriqueiro do centro comercial e a clandestinidade da casa de jogo. É uma Lisboa dada

    mais por ambientes do que pela rua.Concordo. Não é o aspecto realista da cidade que me interessa. Antes usar a geografia como “décor”, procurar o que nela há de “papelão”, usá-la como uma paleta. Neste filme há mais interiores, de facto. A ideia de ter per-sonagens a moverem-se numa apa-rência de subterrâneo já me tinha interessado no “...Quando Troveja”, mesmo se aí acabei por não a explorar como queria. Em todo o caso não

    Nunca se ganha e nunca se perde

    A quarta longa-metragem de ficção de Manuel Mozos, “4 Copas”, é um momento feliz numa obra assolada por percalços que continua, como diz o próprio, parcialmente “invisível” - mas que corresponde a um dos percursos mais originais do cinema português. Luís Miguel Oliveira

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    Margarida Marinho em “4 Copas”

  • 12 • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • Ípsilon

    é o realismo estrito que me motiva. O casino clandestino, por exemplo, tem um lado postiço, é sobretudo uma ideia, um ambiente...Se há uma coisa que define os seus filmes é a maneira de trabalhar as personagens e de se relacionar com elas. É única e inconfundível no cinema português. Em termos de construção, diria que é a narrativa que as decide, ou que são elas que decidem a narrativa? É que fica a sensação de que, a partir de certa altura, o seu amor pelas personagens, por todas elas, se sobrepõe a tudo.Este filme tem uma nuance. Ao con-trário das minhas outras ficções, que partiam de ideias minhas ainda que depois as desenvolvesse com outras pessoas, o argumento do “4 Copas” nasceu de um trabalho conjunto com a Cláudia Sampaio e o Octávio Rosado. Julgo que para eles o mais interessan-te até era o trabalho sobre a história. Mas eu envolvi-me especialmente no desenvolvimento das personagens, de maneira a que nalgumas partes se po-deria até dizer que a história ficou fra-gilizada. Na montagem ainda reforcei mais isso. Tentei tirar partido do que havia de mais forte no trabalho dos actores. Digo “fragilizada” no sentido em que a certa altura me preocupei menos com a “coerência” da história do que com o que fazia com que se pudesse acreditar nas personagens.

    Uma história alternativa do cinema portuguêsTendo formação e experiência de montador, com inúmeros trabalhos para outros realizadores, consegue criar uma distância face ao material filmado por si?É complicado. Nos meus filmes traba-lho sempre com outros montadores. E gosto de lhes deixar algum espaço para eles fazerem a sua leitura. A sua leitura e a sua escrita. Mas por força das circunstâncias acabei, neste filme assim como no “Xavier”, por estar muito directamente ligado à monta-gem. Houve uma primeira versão, montada pelo Pedro Marques, com a qual estávamos bastante satisfeitos, mas era uma versão decidida na rela-ção com uma série de trechos musi-cais de que não pudemos comprar os direitos, que eram uma exorbitância. Como ele depois não estava disponí-

    “[Há] uma proximidade nas personagens [dos meus filmes]. Personagens em queda, que acabam por ter uma (...) redenção, e se movem no quotidiano”

    “Ruínas” foi premiado na última edição do IndieLisboa e no FID-Marselha

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  • vel, fiquei eu, um bocado a contragos-to, a trabalhar na remontagem.Percalços e interrupções... A sua carreira parece atraí-los: o “Xavier” foi o que foi, o “Passo” é um dos poucos “missing films” dos anos 90...Há mais, há mais... [risos]A pergunta é: num meio já de si tão complicado e frequentemente adverso como é o do cinema português, como é que se lida com toda esta adversidade adicional?Já me angustiei mais com isso. Hoje acho que não vale a pena perder mui-to tempo a pensar nessas contrarie-dades. Prefiro estar contente com a vida do que viver amargurado por causa de alguns azares. Também já não tenho as pretensões e as ambi-ções que tinha há vinte ou mesmo há dez anos. Há uma certa resignação, se calhar um pouco estúpida. O caso do “Passo” ainda me faz sofrer um bocadinho, embora tenha esperança que algum dia venha a ser encontrado [o filme só é visível actualmente em transcrições vídeo]. Mas em Portugal há tanta coisa que se perde, que fica para trás... Também não me angustio com o futuro. Se fizer outro filme, fa-rei. Já não tenho muita paciência pa-ra as minhas próprias angústias. Fiz um número razoável de filmes, mes-mo que não sejam vistos. Mas eu sei que os fiz. Para mim isto já é uma sa-tisfação. É claro que me posso per-guntar se as coisas como me estão a correr hoje......tivessem corrido assim desde o princípio......mas nem vale a pena. Tenho-me divertido...Deve ser das pessoas com um interesse mais intenso, e quase enciclopédico, no cinema português e nos seus recantos mais obscuros. É capaz de falar com profunda estima de um filme falhadíssimo dos anos 50, ou de uma produção amadora feita sabe-se lá onde... Para dizer que são maus, mas sem que isso impeça uma espécie de apreço. De onde é que isto vem? O que é que o interessa tanto nesta história alternativa do cinema português como falhanço?Não é só no cinema...Eu sei, mas circunscrevendo...Por um lado, e genericamente, tenho tendência a comover-me com a “dé-calage” entre uma intenção e o resul-tado dela. Por outro, no cinema por-tuguês há, ou havia, algumas pessoas que mesmo sem talento ou condições se entregavam ao que estavam a fazer com total convicção. O resultado po-dia ser péssimo mas era a vida daque-las pessoas. Para além disso, e por maus que sejam, podem-se sempre encontrar coisas interessantes nesses filmes. Pormenores de arquitectura, a maneira como as pessoas se vestiam. O esforço inglório de alguns actores, a darem o melhor de si e depois o fil-me não presta para nada... Às vezes

    há momentos fantásticos. Claro que é um bocadinho enfadonho estar a ver uma hora e meia para aproveitar trinta segundos. Mas pronto.

    Matar o paiA sua geração, por discutível que seja o conceito de “geração” mas aceitemo-lo para definir o conjunto de pessoas que chegou ao cinema nos anos 80, teve imensas baixas e desaparecidos em combate. Quase se lhe pode chamar, a si, um “sobrevivente”. O que é que esta geração encontrou de tão especialmente difícil? Tem alguma explicação?Havia um problema geral, que sem-pre houve: falta de espaço. As pró-prias condições de produção o ditam. Nunca houve um investimento sério para criar, não uma grande indústria, que seria impossível, mas algum tipo de abertura. Da geração dos anos 80 muitos ficaram pelo caminho, de fac-

    to. Começava logo nos concursos do Instituto [Português de Cinema, en-tão], onde só havia lugar para uma ou duas primeiras-obras. Havia aque-las pessoas ainda muita próximas, etariamente, da geração do Cinema Novo - o João Botelho, o Luis Filipe Rocha, o José Alvaro Morais, o Jorge Silva Melo -, e a vida também não foi fácil para eles. Mas dos que vieram a seguir, durante os anos 80, muitos ficaram bloqueados, praticamente só o Pedro Costa, o Joaquim Leitão e a Teresa Villaverde é que conseguiram singrar. Pessoas como o Vitor Gonçal-ves, ou o Daniel Del Negro, fizeram filmes que como era habitual na épo-ca tiveram dificuldades em estrear mas foram muito projectados num círculo restrito, e isto também pode ser um bocado intimidatório por cau-sa das expectativas que se criam. E muitos tiveram infortúnios de todo o tipo. Se quisesse ir por uma teoria da conspiração diria que esta conjuntu-ra até podia ter sido gerida por pes-soas ligadas às decisões sobre o cine-ma português, que optaram por es-trangular em vez de abrir. E então pronto, tinha que haver vítimas e quem se aguentasse aguentava. Mui-tos dos filmes, mesmo cheios de fra-gilidades, não mereciam ter levado a pancada que levaram. Os primeiros filmes do João Canijo, por exemplo, aquilo foi complicado. Depois há o

    caso do [Edgar] Pêra, que é um caso de resistência. Em resumo, não con-sigo dizer: foi por isto ou foi por aqui-lo. Houve um conjunto de factores que atirou muita gente para fora da pista. E quando finalmente podiam estar em condições de recuperar o tempo perdido aparece uma nova geração. Voltar 15 ou 20 anos depois é sempre muito complicado.Pensando nalguns casos dessa nova geração, o Joaquim Sapinho, o João Pedro Rodrigues, mesmo o Miguel Gomes, dá a impressão de que encontraram uma conjuntura menos agreste. Por outro lado, a vossa geração era uma geração de “filhos”, e estes já não são bem “filhos”. Até que ponto isto pode ser importante?Acho que isso é realmente importan-te. Quer dizer, eu não sei se o Pedro Costa ou a Teresa Villaverde......se consideram “filhos”......pois, mas isto é um facto: nós ainda conhecemos os “pais”. Até pelos fil-mes isso se nota. Havia algumas refe-rências em comum, até numa linha de continuidade com o cinema por-tuguês. Querendo ou não, ainda es-távamos muito ligados ao Paulo Ro-cha, ao António Reis, ao Fernando Lopes, ao João Bénard da Costa, ao Seixas Santos ou ao César Monteiro. Até mesmo, de maneira diferente, ao João Mário Grilo. Havia uma herança que era veiculada pela Escola de Ci-nema. Julgo que nestes, no Sapinho, no João Pedro, no Sandro Aguilar, no Miguel Gomes, há um despojamento maior. Outra abertura ao mundo.Ao mesmo tempo, e não querendo transformar isto em psicanálise barata, nos vossos filmes sente-se a noção, ainda que inconsciente, de estarem a filmar dentro da “família”, sob o olhar do “pai”. Nós apanhámos a geração do Cinema Novo ainda ligada a todos os lugares importantes, no IPC, na RTP... Eu por exemplo devo o meu primeiro filme ao Fernando Lopes, foi ele quem me convidou para os “Corações Periféri-cos” [a série onde se integrava “Um Passo, Outro Passo e Depois”]. E acho que este tipo de relacionamento criou uma espécie de constrangimento nos mais novos, que aliás era incentivado pelos mais velhos. Estou a dizer isto mas não implica que não tenha admi-ração, respeito e amizade por muitos desses cineastas. Mas é um sentimen-to de dívida que os tipos de agora, que já não os apanharam nos lugares de-cisivos, não têm. Não lhes devem na-da.Quando “Xavier” teve uma sessão de antestreia na Cinemateca, incluiu na folha de sala um poema de Jaime Gil de Biedma [“Príncipe da Aquitania, En su Torre Abolida”] que começa assim: “Una clara consciência de lo que ha perdido / es lo que le consuela”. É tão fácil adivinhar que se identifica com este verso...Ah, sim, sim. Isto pode fazer confusão a algumas pessoas, mas serve-me pa-ra avançar. OK, perdi certas coisas mas... é como na canção do [ John] Cale, “never win and never lose” [“nunca se ganha e nunca se per-de”]......ou na do Dylan, “there’s no success like failure but failure’s no success at all” [“não há triunfo como o falhanço, mas o falhanço não é triunfo nenhum”]...As coisas equilibram-se. Mesmo quan-do perdemos muito ganhamos algu-ma coisa. E isto é importante.

    Ver crítica de filmes na pág. 33 e segs.

    “Não me angustio com o futuro. Se fizer outro filme, farei. Já não tenho muita paciência para as minhas angústias. Fiz um número razoável de filmes, mesmo que não sejam vistos. Mas eu sei que os fiz”

    “Nós apanhámos a geração do Cinema Novo ainda ligada a todos os lugares importantes (...) e [isso] criou (...) constrangimento. É um sentimento de dívida que os tipos de agora, que já não os apanharam nos lugares decisivos, não têm. Não lhes devem nada”

    “Xavier” (1992), um filme que ficou anos à espera de ser mostrado

  • 14 • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • Ípsilon

    Há um velho adágio que diz que Hollywood paga bem aos seus argu-mentistas mas depois compensa tra-tando-os abaixo de cão.

    Charlie Kaufman é a excepção que confirma a regra. Sobretudo porque o guião que fez o seu nome andou anos aos tombos por Hollywood, com toda a gente a dizer-lhe que era espan-toso mas infilmável. Um Oscar (e du-as nomeações) depois, Kaufman é um dos guionistas mais intocáveis, mais influentes e mais raros do cinema americano. Intocável porque nin-guém consegue escrever como ele, influente porque ninguém desiste de o tentar, raro porque em dez anos apenas produziu seis guiões.

    Seis guiões que cristalizaram uma voz autoral com uma identidade nar-rativa tão forte que nem mesmo uma mudança de realizador (quatro, até agora) a consegue apagar ou diluir. Seis pontos de vista diferentes que concentram em si a essência do seu tema central: a identidade. Ou a vida. Ou a morte. Ou a perda. Ou, apenas, a mente de Charlie Kaufman.

    Num filme-Kaufman, o verdadeiro autor (coisa rara no cinema contem-porâneo, venha ela dos EUA ou de outros sítios) é o argumentista, e o que varia de filme para filme é o mo-do como cada realizador se entrosa, ou não, com o seu peculiar modo de olhar o mundo, com uma das escritas mais originais que o cinema america-no revelou em muito tempo.

    Tão original que não percebemos exactamente de onde ela vem, como é que chegou aqui e como é que a for-matação de Hollywood ainda não deu cabo dela.

    Questões de identidadeEm “Confissões de uma Mente Peri-gosa” (2002), George Clooney, no pa-pel de um agente da CIA, diz à vedeta televisiva interpretada por Sam Ro-ckwell: “Jesus Cristo morreu e ressus-citou aos 33 anos. Você tem 32 e ainda não fez nada que se visse. É melhor despachar-se”.

    Charlie Kaufman estudou cinema em Nova Iorque, mas chegou aos trin-tas a trabalhar no departamento de

    assinaturas de um jornal de Minnea-polis com a sensação de que a vida lhe estava a passar ao lado. Foi para Los Angeles trabalhar como argumen-tista, passou anos em séries televisi-vas que nunca foram a lado nenhum, e expressou a sua frustração no tal guião espantoso mas infilmável, “Que-res Ser John Malkovich?”, história de um marionetista frustrado que, for-çado a trabalhar para ganhar a vida, descobre um portal que permite pas-sar quinze minutos dentro da cabeça do actor John Malkovich — e o preço de se querer ser quem não se é.

    Filmado em 1999 por Spike Jonze, “Queres Ser John Malkovich?” trans-formou-se num fenómeno, integran-do Kaufman numa nova geração de criativos capitaneada por Jonze e pe-la (sua então esposa) Sofia Coppola que parecia prestes a redefinir o ci-nema americano.

    No espaço de dois anos, depois de ter passado anos a batalhar em vão, Kaufman viu três guiões colocados em produção — o melhor dos três, ironi-camente, a “encomenda” feita por um estúdio (a Columbia). “Inadaptado” (2002), de novo dirigido por Jonze, distorcia o caderno de encargos (a adaptação do “best-seller” não-ficcio-nal de Susan Orlean) para se tornar num fervilhante laboratório formal meta-narrativo, encenando, em vez da narrativa do livro, o processo da sua própria adaptação ao cinema: um filme sobre a criação do próprio filme, com Nicolas Cage a dar corpo a uma personagem chamada “Charlie Kauf-

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    “Confi

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    Dez anos depois de Spike Jonze ter rodado “Queres Ser John Malkovich?”, Charlie Kaufman estreia-se na realização com “Sinédo

    que, Nova Iorque”, filme que é síntese e desconstrução da voz autoral de um dos mais peculiares argumentistas dos

    últimos anos. Jorge Mourinha

    Queres ser Charlie Kaufman?

    Charlie Kaufman é uma voz autoral com uma identidade tão forte que nem mesmo uma mudança de realizador (quatro, até agora) a consegue apagar ou diluir

    “Inadaptado” 2002

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    Ser John Malkovich?”1999

  • Ípsilon • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • 15

    man” e ao seu irmão gémeo “Donald”, aliás creditado como co-autor do ar-gumento. E se a tentação de ver au-tobiografia nisto é grande (como é, aliás, em todos os seus filmes, tal é a componente emocional que Kaufman consegue injectar no que à partida são conceitos demasiado secos e teó-ricos), considerem o seguinte: Donald Kaufman não existe.

    “Inadaptado”, filme sobre um ar-tista que procura compreender o seu lugar no mundo, ressoa directamente em “Sinédoque, Nova Iorque” (2008), a sua estreia na realização, ontem che-gada às salas portuguesas depois de ter estado a concurso em Cannes 2008, também sobre um artista à pro-cura do seu lugar (embora de modo muito mais elíptico). Mas encontra-mos também ecos seus em “Human Nature” (2001), espécie de “negativo”

    do “Menino Selvagem” de Truffaut, e no vaivém entre a verdade e a

    mentira de “Confissões de uma Mente Perigosa” (2002), adap-tação da “autobiografia” do apresentador televisivo Chu-ck Barris, que se apregoava uma suposta vida secreta como assassino contratado da CIA.

    Com a questão da iden-tidade — quem somos; co-mo chegámos a sê-lo; pode alguem ser quem não é? — como chave de leitura co-

    mum, “Inadaptado” desta-cava-se pela sintonia entre

    realizador e argumentista: nem Michel Gondry nem Geor-

    ge Clooney, ambos em tempo de estreia na realização, souberam fa-

    zer inteira justiça às explosões criati-vas de Kaufman, tombando em arma-dilhas clássicas de primeiro filme.

    A lição de “Human Nature” foi aprendida por Gondry, que partilha-va com Jonze um passado de inovador no campo do teledisco e que deu car-ta branca a Kaufman para trabalhar uma ideia que desenvolvera com um amigo. A colaboração entre ambos, cristalizando a meditação do argu-mentista sobre a identidade através de um artesanal desvio Gondryano pelos mecanismos da memória, deu origem a um dos mais notáveis filmes da década, o sublime “O Despertar da Mente” (2004), valendo a Kaufman o Oscar do argumento (depois de du-as nomeações não concretizadas por “Malkovich” e “Inadaptado”).

    Esta história de amor que literal-mente se recusa a ser esquecida (por-que esquecer implicaria apagar a ver-dade das emoções e da identidade, perder a humanidade de quem so-mos) é ao mesmo tempo a sequela perfeita aos filmes anteriores e a in-trodução ideal a “Sinédoque, Nova Iorque”, desenvolvido inicialmente como (pasme-se) um filme de terror para Spike Jonze dirigir.

    Universos paralelosConcebido como um filme de género, “Sinédoque, Nova Iorque” transfor-mou-se numa meditação claustrofó-bica sobre a identidade, a arte e a vida que a Columbia não quis financiar, que Jonze (retido na produção con-turbada de “O Sítio das Coisas Selva-gens”) não pôde realizar, e que Kauf-man acabou por dirigir sozinho na sua

    estreia atrás da câmara. Confirmando ao mesmo tempo duas coisas.

    Primeira: Kaufman é mais argu-mentista (teórico de ideias) do que realizador (praticante de imagens), e a sua inexperiência confirma que é preciso uma invulgar conjugação de talentos para levar a bom porto um filme seu — “Sinédoque” é muito mais filme de argumentista do que primei-ra obra de realizador estreante.

    Segunda: não há ninguém que con-siga sequer aproximar-se de Kaufman no que diz respeito à construção de universos paralelos. “Sinédoque” é um labirinto em constante mutação, onde é tão fácil perder o pé entre os vários níveis de referencialidade que, alegadamente, o próprio autor se te-rá perdido pelo meio.

    A história de um encenador de te-atro preso numa espiral obsessiva afina, refina e pormenoriza a inven-ção de uma realidade paralela que reencontramos em todos os filmes escritos por Kaufman, a meta-narra-tiva que navega entre a arte a vida, a incapacidade de esquecer o passado que fez de nós quem somos, a neces-sidade de tentar fazer sentido do mundo que nos rodeia (mesmo que esse mundo seja um casulo puramen-te interno...). É uma espécie de “Kau-fman redux”, só que sem a escapató-ria de um final mais ou menos feliz ou de um regresso à realidade: “Siné-doque” é uma toca de coelho que se esboroa atrás de nós em direcção a um final abrupto mas inescapável.

    “Só existe um único final para qual-quer história. A vida humana acaba com a morte. Até lá chegarmos, a vida vai andando, vai ficando mais com-plicada. Tudo implica perda.”

    As palavras são do próprio Kauf-man, à revista “Wired”, aquando da estreia americana de “Sinédoque”. E se elas sugerem que a estreia na rea-lização do argumentista é um filme deprimido/depressivo, pensemos apenas no seguinte: para quem ima-ginou a reencarnação no corpo de John Malkovich, o sacrifício de um irmão gémeo que nunca existiu ou uma memória que se recusa a ser apa-gada, admitir que daqui ninguém sai vivo é um triunfo de pragmatismo.

    A não ser, claro, que tudo isto ape-nas exista na cabeça de Charlie Kau-fman.

    Ver crítica de filmes na pág. 33 e segs.

    Não há ninguém que consiga aproximar-se de Kaufman na construção de universos paralelos. “Sinédoque” é um labirinto em constante mutação, onde é tão fácil perder o pé que o próprio autor se terá perdido pelo meio

    “O Despertar da Mente” 2004

    “Sinédoque, NovaIorque”

    2009

    A escrita de Kaufman é tão original que não percebemos de onde ela vem, como é que chegou aqui e como é que a formatação de Hollywood ainda não deu cabo dela

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  • 16 • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • Ípsilon

    Lee Fields pode não ser uma estrela e pode nunca vir a ser uma estrela, mas está há tempo de mais no circui-to para não se divertir com o que lhe está a acontecer.

    Ao fim e ao cabo, este é o tipo que esteve mais de dez anos à espera até gravar o primeiro disco e 13 até ao segundo, que se deu com as gentes da Stax mas nunca capitalizou no su-cesso da editora, que foi considerado um émulo de James Brown, que deu dicas em discos de hip-hop, que so-breviveu fazendo segundas vozes, sem que por um segundo o nome de-le fosse conhecido para lá de um cir-cuito mínimo de entendidos.

    Não é a primeira vez que isto acon-tece: Bettye LaVette e Sharon Jones são exemplos de divas que andaram séculos perdidas antes de serem re-descobertas por miúdos com idade para serem filhos delas, e que as fize-ram gravar discos com as canções e condições necessárias.

    E agora é a vez de Fields ser entro-nado neste revivalismo da soul. Fiel-ds há-de ter tremendas histórias para contar. Mas há coisas que ele não con-ta – e diverte-se com isso.

    A dada altura, em conversa telefó-nica para sua casa, fazemos-lhe uma pergunta, uma simples pergunta. A resposta, que não estávamos de todo à espera, vem num tom roufenho, entre o divertido e o muito sério.

    “Má pergunta”, diz, e não sabemos se o homem está zangado ou não.

    “Essa é uma má pergunta”, repete e aqui começa a rir-se, indicando que não há zanga da sua parte.

    Que assunto será esse que o senhor Fields quer guardar a sete chaves?

    Um passado de arrombador de co-fres?

    Os anos passados como “drag que-en” num botequim no Harlem?

    Um fetiche zoófilo?Não, nada disso. A resposta é: a

    idade. No que toca à idade Lee Fields é

    pior do que algumas senhoras e al-guns futebolistas que retiram anos ao BI. Ele nem sequer diz em que ano nasceu.

    Mas porquê? Porque raio há-de um homem que passou quase toda a sua vida na semi-obscuridade esconder

    a sua data de nascimento logo agora que começam a olhar para ele?

    Muito simples: “Neste momento há muita curiosidade a meu respeito e não me apetece que a curiosidade acabe. Deixa-os continuar a pergun-tar.” E depois, para que não restem dúvidas de que há humor da sua par-te, acrescenta a rir: “Desculpe, mas é assim que as coisas são”.

    É assim que as coisas são, mas não foi sempre assim que as coisas foram. O sucesso, por exemplo, é uma coisa que (parece que) Fields nunca teve. E agora (parece que) está a ter. Tudo por causa de um disco acabado de editar, feito de linhas de baixo dirigidas à es-pinha, guitarras que fazem cócegas nos pés, órgãos saídos de uma igreja sulista, cordas com arrependimento e metais cheios de pecado.

    Chama-se “My Life”, é soul à antiga e parece que é apenas o sétimo disco em nome próprio que Fields gravou. Dizemos “parece” porque o próprio Fields não está muito certo da sua discografia.

    “Sabe quantas canções gravei em meu nome? Umas sessenta, não mais que isso”.

    “My Life” é um disco de outro mun-do, refinadamente arranjado, sober-bamente interpretado. Fields espalha classe em cada canção. Tem o seu número James Brown, o seu número Marvin Gaye, o seu número Smokey Robinson, o seu número Eddie Floyd.

    Ouve-se o disco e pensa-se: como é que este homem não tem dezenas de discos gravados?

    “Deixei-me explicar-lhe uma coisa, jovem: não gravei mais porque eu não queria gravar o que a indústria me mandava gravar. Eu queria gravar o que eu quisesse gravar. Não estou a dizer que o que fiz era o que tinha mesmo de ser feito, eu só fiz o que eu queria fazer. E foi por isso que gravei poucos discos”.

    A soul nunca foi negraFields fala como se estivesse cheio de vida na boca: começa por responder a uma pergunta e depois, à maneira dos pregadores de igreja, não para. Um assunto leva a outro, por tudo e por nada diz que está cheio de amor

    por toda a gente, ri-se, volta atrás, faz confissões, jura amor pela mulher, oferece definições para a soul, diz que a “black music” há-de ser “everybody’s music”, diz que a soul acabou com a segregação porque “é música soul, não é música da soul dos pretos”. É tão conversador que a da-da altura resolve explicar a génese da música soul. “Primeiro chamaram-lhe blues. E o blues era sobre os altos e baixos da vida das pessoas normais. Quando chegou a soul o canto apro-ximou-se do gospel. Cantava-se como se se estivesse na igreja. É r’n’b na forma de igreja. E o r’n’b de hoje re-flecte o mesmo, é uma canção sobre os altos e baixos do homem comum”, diz, embora seja uma tese difícil de aceitar.

    Fields não é bem um teórico, é an-tes um génio do improviso, sacando teorias do bolso à medida que lhe aparecem. Uma das suas melhores teorias é que a soul nunca foi negra.

    “Havia brancos na Stax. Havia brancos na audiência. Havia brancos entre os músicos. Eu sei o que estou a dizer: eu estava lá”.

    E porque é que a soul nunca foi tão “mainstream” quanto poderia ter si-do, se havia tantos brancos a apreciá-la? Simples: “O ‘mainstream’ é o que a grande indústria quiser que seja. É o que está na agenda deles. Pode-se pôr um porco na TV e se o deixarmos tempo suficiente as pessoas acham que é bom.”

    Com toda a sua proficuidade verbal, com todo o seu humor, Fields está, nitidamente, a divertir-se com o seu “suposto” sucesso. E diz suposto por-que, apesar de “My World” andar a ser citado por todo o lado, ele não faz ideia “do que os mais novos acham deste disco” mas sabe que “fazia mais dinheiro a ser músico de sessão”.

    Para Lee Fields, haja ou não suces-so, seja ou não “My World” um disco de retro-soul, as coisas são simples: “Isto é apenas soul, isto é a mesma coisa que sempre fiz”.

    Então raios partam a indústria que deixa passar incógnito um talento destes.

    “Little James Brown”O que é que sabemos ao certo de Lee

    Fields? Nasceu em Wilson, uma pe-quena terra da Carolina do Norte, informação que ele confirma, bem como a de que tem mais três irmãos. Não conta como aconteceu, mas “já fazia discos em 1969”.

    Tendo em conta que a sua alcunha era “Little JB”, por causa das seme-lhanças faciais com James Brown, é possível que tenha começado cedo. Ele define essa época como “a altura em que a soul tal como a conhecía-mos estava a morrer”. O rock e o funk psicadélico, “como o Sly Stone”, diz, “estavam a pegar”. “Mas eu nunca fui cool”, acrescenta, e o seu amor era só um: a soul.

    Fields, apesar de imensamente con-versador (note-se: nunca ouvimos ninguém falar tanto) não é muito pro-lixo em relação às suas actividades no circuito. Diz que gravou umas can-ções, o que quer dizer, em termos an-tigos, singles. É curioso que ele ainda fala nesses termos, como se nunca tivesse havido LP, CD, EP, mp3.

    Era, admitidamente, um James Brown em ponto pequeno. “Eu ado-ro o James Brown, meu. Ele era um Deus no meu coração e continuo a respeitá-lo. Um dos grandes ‘enter-tainers’ que viveram até hoje, ele e o Michael Jackson”.

    As comparações com o homem mais trabalhador do negócio manti-veram-se o tempo suficiente para a dada altura ele ter sentido que estava na hora “de deixar de ser o pequeno JB”. “Lá pelos meus vintes comecei a achar que não era apreciado pelo que era. E ainda por cima era pareci-do com ele. Sempre desviei a conver-sa quando se falava disso. Dizia ‘Ouve

    “Não gravei mais porque não queria gravar o que a indústria me mandava gravar. Queria gravar o que eu quisesse gravar”Lee Fields

    Lee Fields

    finalmenteé a hora dele

    Não se sabe que idade tem Lee Fields mas anda nisto há muito. Com “My World” já ganhou o ano. Como é que este homem

    não tem dezenas de discos gravados? João Bonifácio

    sica

    Lee Fields pôs “tudo o que

    tinha” em “My World”

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  • Ípsilon • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • 17

    o meu disco’. Mas não me importava porque estava a divertir-me”.

    É difícil dizer o que Fields andou a fazer desde então. “Estive sempre a trabalhar”, diz, de forma incisiva. Fez “muitos coros, muitas segundas vo-zes”, incluindo para os Kool and The Gang; cantou “linhas em discos do Jay-Z”. Resumindo: “Sempre estive no circuito”.

    Há um momento muito engraçado, em que, referindo-se a questões mo-netárias, Fields diz: “Não preciso de champanhe caro, não é o meu chá”. Tendo em conta o peso que o cham-panhe tem no imaginário e na vida de Jay-Z, parece haver aqui um certo gozo ao rei do hip-hop.

    Um disco imprevistoO dinheiro, note-se, é uma questão importante para Fields. Ele faz questão que fique bem claro que apesar de “nunca ter tido um êxito” também nunca teve problemas. “Nunca fui rico, mas sempre tive dinheiro para viver bem”, afirma enfaticamente. “Se vier a minha casa verá que não vivo como um rei mas vivo muito bem. Sempre vivi. Sempre viajei para onde quis e os carros que quis ter pude tê-los”.

    Claro que um discurso destes tem sempre pequenas falhas e contradi-ções. A certo momento Fields afirma: “Já não tenho um período em baixo desde os anos 80”. Nessa altura fazia faixas disco para sobreviver. “Não estou a lutar contra nada, também tenho de pôr pão na mesa”, faz ques-tão de dizer.

    Mas a sorte do pequeno JB deu-se quando Jeff Silverman and Leon Mi-chels montaram a Truth & Soul re-cords em 2004 e definiram como prioridade fazer um grande disco pa-ra Lee. Montaram um banda, os Ex-pressions, com malta dos Dap Kings, dos Antibalas, mas esqueceram-se de lhe dizer que estavam a fazer um dis-co para ele.

    Para nossa surpresa, Lee diz a dada altura: “Não sabia que estava a gravar ‘My World’. Não sabia”. Compreende-se: o disco foi gravado ao longo de quatro anos. “Chamavam-me para gravar uma canção e eu ia, mas entre cada telefonema passava tanto tempo que nunca me ocorreu que estivés-semos a fazer um disco. Pensei que estivéssemos a gravar uma canção ou outra para um disco dos Expressions, não o meu disco. Talvez eles me te-nham dito, mas eu falo com dez pes-soas por dia e estou sempre a viajar de um lado para o outro, por isso não decoro tudo o que dizem”.

    Apesar de estar a gravar sem saber o quê, Fields pôs “tudo o que tinha naquele disco”. Que, para ele, “é um regresso à ‘sweet soul music’ e é lin-do”.

    Penúltimas famosas palavras de Lee Fields, homem de idade incerta e que tornou a soul doce outra vez: “Não tenho arrependimentos. O que me interessava era divertir-me – e di-verti-me o mais que pude. Não mu-daria a minha vida.”

    E como bom homem soul acaba a dizer “Diga aí em Portugal que o Lee Fields ama toda a gente”.

    Ver crítica de discos na pág. 22 e segs.

  • 18 • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • Ípsilon

    Poucas coisas nos Sizo são como cos-tumam ser as coisas no rock’n’roll. Afirmam-se como um “power trio” com quatro membros, dislate que tem a sua correspondência na prática; fa-zem “singles” memoráveis que man-dam para as urtigas as sacrossantas regras da canção pop; não têm o ob-jectivo supremo de lançar um álbum. Editaram recentemente “Got To Love People Who Set Themselves Up for Disaster”, o seu terceiro registo (os 20 minutos que tem encaixam-no ofi-cialmente na categoria EP, mas a ban-da prefere não pensar nisso) e um dos mais promissores discos do ano por-tuguês.

    Em 2005, André Cruz e João Gue-des andavam na Escola Superior de Arte e Design, em Matosinhos. “Tí-nhamos interesses musicais em co-mum - ainda temos - e outros. Come-çámos a falar. Eu já tinha tido bandas, se é que lhes posso chamar bandas. Fizemos umas experiências em salas de ensaios com uns amigos”, recorda André, em conversa com o Ípsilon numa confeitaria no centro do Porto, num calmo final de tarde de Agosto.

    Nessa altura, a banda do Porto era “uma formação clássica de rock’n’roll”: baixo, guitarra, bateria e voz, a que se juntou, mais tarde, Eurico Amorim no sintetizador e nos teclados. Até que o baixista rumou a Barcelona e, em vez de procurarem um substituto, deram a Eurico um papel de maior destaque. “Com uma restrição acabámos por encontrar um som. Quando tens um problema aca-bas por encontrar uma solução. Re-solver um problema através de outro problema tem bastante a ver connos-co”, diz João Guedes.

    O que resultou da estratégia foi uma banda que suga a energia de várias formas de rock (desde o garage ao pós-punk) e a aplica em canções sim-ples, concisas, sem ornamentos. E com espaço para surpresas. “She no-ds”, por exemplo, sintomaticamente o “single”, tem algo que se parece com um refrão mas… não o repete.

    Uma banda de pop-rock (sim, os Sizo cabem nessa imensa gaveta) descons-trutivista? Eles dizem que não. “A ‘She nods’ apareceu estava eu sentado na bateria – e não sei tocar bateria -, o baterista no teclado - o Eurico tinha talvez ido à casa de banho Foi assim que apareceu a base. É a isso que acho piada: de repente temos um ‘single’, mas só porque apareceu”, revela An-dré. E, apesar de tudo, “a estrutura pop está lá”.

    Trata-se, afinal, de reduzir tudo “ao essencial”, prossegue Eurico. “Nunca fazemos coisas arriscadas a nível de produção. Procuramos não disfarçar nada, queremos que o disco soe como um ensaio ou um concerto. As músi-cas são reduzidas às partes mais sim-ples, são quase todas muito pequeni-nas, com poucas partes. Nasceram assim”. Agora percebe-se o que que-riam dizer com a misteriosa afirma-

    Na cabeça hiper A banda do Porto tem um novo EP, formato que assenta b “Got To Love People Who Set Themselves Up for Disaster” mostra como r

    sica

    O abismo é um lugar bonitoHá uma famosa “gaffe” atribuída a um jogador de futebol que reza assim: “Estivemos à beira do abismo,

    mas soubemos dar um passo em frente”. Os Sizo gostam de pessoas que a levam à letra. Enquantopreparavam “Got To Love People Who Set Themselves Up for Disaster”, fizeram uma extensa lista com

    esses nomes. Eis algumas dessas pessoas que “têm uma atitude rock’n’roll para com a vida”.

    “Nos anos 70 houve um revisitar do rock pelos Suicide, que têm muito de garage rock, apesar de não terem guitarras. Isso reflecte um pouco o que são os Sizo: tens a história do rock, com um lado electrónico mais contemporâneo e a guitarra e bateria clássicas do rock’n’roll...” André Cruz

    Charles Bukowski Escritor (1920-1994)Atrai-lhes a “desmistificação dos ídolos”. “A maior parte das pessoas tem esse lado dos mitos, de olhar para

    uma estrela de rock ou um

    jogador de futebol como um mito e, se calhar, são uns idiotas de todo o tamanho”, diz André. Bukowski “era genuíno, um gajo puro que curtia beber uns copos e escrever umas histórias. Era criativo muito por isso, por ser

    genuíno. Sentia aquela urgência de escrever e também escrevia sobre pessoas como ele”.

    Hunter S. ThompsonJornalista e escritor (1937-2005)Há um lado melómano na

  • Ípsilon • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • 19

    admiração por Thompson, o pai do “Gonzo Journalism”, que punha o repórter como

    parte integrante da história, rejeitando o mito da objectividade.

    “Escreveu para a ‘Rolling Stone’ artigos importantes da história da música”,

    diz João. Mas há mais em Thompson de

    que os Sizo gostam: “refugiou-se num

    rancho” e tem um “lado de perigo, rock, drogas, de

    ‘faço aquilo que quero e quem quiser gosta, quem não quiser não gosta’”.

    ção que puseram num comunicado de imprensa: “’power trio’ mas com quatro elementos”.

    O espírito do rock’n’rollA haver canção que define o que os Sizo querem ela é “Strychnine”, a ver-são dos Sonics, um dos nomes funda-mentais do garage rock dos anos 60. Como num “mashup”, os Sizo colo-caram a linha de sintetizador de “Ghost rider”, dos Suicide (duo que no seu disco de 1977 foi pioneiro de mil aventuras electrónicas que se se-guiriam). “Foi um bocado premedi-tado. É uma reflexão sobre a história do rock desde 1965, que é a data da ‘Strychnine’. Depois, nos anos 70, houve um revisitar do rock pelos Sui-cide, que têm muito de garage rock, apesar de não terem guitarras. Isso reflecte um pouco o que são os Sizo: tens a história do rock, com um lado electrónico mais contemporâneo e a guitarra e bateria clássicas do rock’n’roll... Daí uma vontade quase intuitiva de misturar os Suicide e os Sonics como um elogio ao rock’n’roll”.

    A conversa adquire contornos de melomania exacerbada. André elogia os Sonics e outras “bandas de garage dos Estados Unidos”, “os primeiros punks”, que “furavam os amplifica-dores com picadores de gelo para te-rem distorção, porque não havia pe-dais, e com um microfone gravavam um disco inteiro com a banda toda a tocar”. “É isso que nos interessa”, ex-plica.

    A atitude punk “está presente nos Sizo de uma forma bastante eviden-te”, continua o guitarrista, que aos nove anos ficou “fascinado” com os Toy Dolls, banda punk inglesa: “No lado imediato de fazer as músicas, de não pensar muito como é que vai so-ar, o que é que as pessoas vão achar. A forma como gravamos também tem um lado punk”. As canções de “Got To Love People Who Set Themselves Up for Disaster” não foram gravadas com a banda toda a tocar ao mesmo

    tempo (o anterior, “Nice To Miss You”, disco bónus do novo trabalho, foi re-sultado de uma sessão ininterrupta de dez horas de gravação), mas a ime-diatez mantém-se.

    Não estranha, por isso, que a banda tenha, até ao momento, três EP e nem acalente o tradicional sonho do ál-bum. “Não passam de três registos

    que fizemos em condições técnicas e logísticas distintas, em alturas distin-tas e com músicas distintas”, resume André. Eurico acrescenta: “Estamos sempre em produção. Por nós, até fazíamos um EP de meio em meio ano”.

    Apontamos o exemplo dos Radio-head, que recentemente anunciaram que vão apostar em edições mais cur-tas em vez de álbuns, e eles riem-se. “Eles seguem-nos muito”, diz André, com ironia e ares de quem conta uma piada privada da banda – uma supos-ta conspiração em que os Radiohead espiam os Sizo. “Lançámos o primei-ro EP na Net antes dos Radiohead e passado uns meses também fizeram isso [com o álbum ‘In Rainbows’]. Agora temos esta lógica e os Radiohe-ad também têm. Não vou dizer mais nada [risos]”.

    Ver crítica de discos na pág. 22 e segs.

    ractiva dos Sizoa bem à imediatez que se transformou na sua imagem de marca.o reduzir as coisas ao essencial é, muitas vezes, o melhor remédio. Pedro Rios

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    “A ‘She nods’ apareceu estava eu sentado na bateria – e não sei tocar bateria -, o baterista no teclado. É a isso que acho piada: de repente temos um ‘single’, mas só porque apareceu”André Cruz

    André Cruz, André Holanda, João Guedes (atrás) e Eurico Amorim (à frente): os Sizo vão no terceiro EP e não pensam no álbum. Por eles faziam um EP de meio em meio ano e deixavam as coisas assim, à Radiohead

    MaradonaFutebolista (1960- )“Para nós não foi só um jogador de futebol”, diz André. “Na altura em que jogou, o que representava para os adeptos do Nápoles ou da Argentina não era apenas o melhor jogador do mundo: era

    o símbolo de uma libertação política, pessoal e social que nos interessa e que nos cativa”. “Era um rock’n’roller, um Jimi Hendrix do futebol: saía à noite,

    não dormia e ia jogar futebol como ninguém. A droga na altura devia ser melhor”. P.R.

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    Bill HicksComediante (1961-1994)“Ele fala bastante do Jimi Hendrix. Dizia que a música da altura dele – isto no fim dos anos 80 – não o entusiasmava, que faltava

    rock cá de dentro, atitude [os alvos eram, por exemplo, os New Kids On The Block].

    O gajo, querendo ser um músico, coisa que nunca foi, dizia as coisas com humor. Há uma frase dele que é ‘Play from your fucking heart”. Ele sempre batalhou por ser genuíno, por fazer o que queria”, refere João.

  • 20 • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • Ípsilon

    Um sonho popchamado Golden Silvers

    “True Romance” é a canção-fetiche deste Verão. Definiram-na como “Prince liderando os Spandau Ballet” (nós preferimos o Prince da equação).

    Os Golden Silvers não são tão bons quanto o tema título do álbum de estreia, mas podem vir a sê-lo. Mário Lopes

    Neste preciso momento, os Golden Silvers, trio com inegável apreço por metais preciosos e o exuberante púr-pura psicadélico, são inescapáveis. A culpa, como quase sempre nestas coi-sas da pop, é de um single. Já o viram certamente – se não o viram, corram ao MySpace ou ao You Tube e procu-rem por “True Romance”. Um cenário de programa alemão dos anos 1980, (mal) armado em Top Of The Pops, e muitas raparigas dançando pelo ce-nário, com um feiticeiro de barrete bizarro e um B-boy pouco gracioso a destoarem e uma “go-go dancer” dou-rada a compor o enquadramento. E depois eles os três, o baterista de afro imponente, Alexis Martinez, o baixis-ta de bigode e patilha bem definidos, Ben Moorhouse, homem do groove funk e das segundas vozes, e Gwilym Gold, o vocalista e teclista com pose de aristocrata pop que considera ves-

  • Ípsilon • Sexta-feira 21 Agosto 2009 • 21

    tir-se de forma elegante uma demons-tração de respeito – camisa púrpura, claro, fio de prata a cair sobre ela e os braços movendo-se descoordenados quando não se atiram ao pequeno te-clado que têm à frente.

    “True Romance” é a canção-fetiche deste Verão. Já a definiram como “Prince, produzido por Niles Rogers, liderando os Spandau Ballet”, e não está nada mal – mas nós preferimos trocar os Spandau Ballet pelos Duran Duran; ou melhor, o que preferimos mesmo é o Prince da equação, aquele quase rap de Gwilym nos versos e o ataque das teclas num refrão que de-monstra a superioridade de uma ver-dadeira pose cool neste mundo da pop.

    Os Golde