8/20/2019 1 - Ética e Política
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Síntese NP 29 - pág. 5-10
Editorial
ÉTICA E POLÍTICA
N a su a histór ica co nv ers ação com
Goethe,
ce leb rada e n t re ou t ros po r
Hegel, o im pe rad or N ap oleão I m an i fes ta a con v icção de qu e a polí
tica ocupa, p a r a o homem
moderno,
o luga r que , pa ra o hom em anti
go , fo ra ocupado pe la
tragédia.
O he rdáo po líico da R ev olução
f rancesa , cu ja aven tu ra im pe r ia l m udou a face da Eu ropa , adm ite
ass im um a ana log ia en t re t ragéia an t iga e po líica m oderna que fa la
m a is conv incen tem en te do que longa s teo r ias sob re a essênc ia do
po líico que preva lece nos nos sos tem pos pós-ma qu iavéicos .
C om
efeito,
no co ração da tragéia a ntiga es tá a rev ol ta im po ten te ou
a ac ei tação res ign ad a do he rói trágico dia nte da im pla cáve l tram a d o
destino: o de stin o éfo rça e se us des ígnio s im pe ne tráve is irão es cre ve r
a vã h is tór ia dos hom ens sob re o b ronzeo fundo da necess idade . Ao
apon ta r o po líico com o o luga r do con f ron to en t re o hom em
moder
no e o destino, N ap oleão ex pl ic i ta com clar iv idênc ia ge nia l a idéa
que , como stella rectrix ou como as t r o
fatal,
e s tá su spe ns a so bre o
cam inho h is tór ico do m ode rno Es tado-Le v ia tã a idéa do po líico
com o ténica rac iona lm en te o t im izada do exe rcí io do poder.
A ap rox im ação da po líica m od ern a com a tragéia insp i ra-se , sem
dúv ida , no fa to de que essa ténica obe dec e à rac iona l idad e da cau sa
ef ic ien te e dos seu s ins t rum entos , que esgo ta seu f im na ef i các ia do
seu exe rcí io . E la t raba lha com as h ipóteses que pe rm item dedu z ir
úm p lano m a is r igo roso pa ra o exe rcí io e f icaz do poder, v em a se r .
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para o dom ínio m ais com ple to do esp aço ond e as l iberda des indivi
dua is pod em m ove r -se . O des t ino t rágico insc reve-se num cé míico
on de imp era a le i da ne ces s idad e. O de st ino po líico está pres o à
cad eia hipo téico-de du t iva qu e de f ine as co nd ições ótima s pa ra o
con t ro le da soc iedade pe lo
Poder.
Des ta
sorte,
na su a sig n ificação
m ais ge nuína , e ta l com o a interpreto u o gênio de N ap oleão, a
política
no . m undo m ode rno éum
fazer
na o rdem da causa lidade
e f ic ien te que , como o an t igo De s t ino , age sob re as ibe rdade s do a lto
de um cé m is te r ioso : lá o cap r icho dos D eus es , aqu i as razões do
Poder.
Es sa ana log ia ent re t ragéia ant iga e po líica m ode rna não pod e dei
xar de surpree nde r -nos se re f le t i rm os , à luz da h is tór ia das or igens d o
pensamento po líico ocidental, s ob r e o seu p ro fundo pa radoxo . Com
efeito, a fo rm ação da
polis
na G réia c láss ica éacom pan had a por
um a tendênc ia para exp r im i r s imb o l icam ente a v ida po líica com o
um a v i tó ria da l iberda de sob re o des t ino . N o seu be lo li v ro
La Loi
dans Ia pensée grecque
(Pa r is , 1 971 ) , Jacque l ine de Rom illy nos faz
ass is t ir a o na sc im en to da idéa d e le i nómos) qu e pas sa a ocupa r na
c idade o lugar do t irano e à qua l se con fe rem at r ibu tos rea is
nómos
basileus).
As seg urand o aos c idadãos a igua ldade
isonomía) e
a
equi
dade
eunomía),
a le i pe rm ite o rdena r a v ida da c idade sob a éide
de um a co n st itu ição
politeia)
que subm ete o ag i r dos inv idíduo s
à no rm a da just iça. O final so len e d a Orestíada de Esq u i lo m os t ra -nos
o dest ino ceg o dan do luga r à razão do q ue ém elho r — m ais jus to —
e as E rínias v inga do ras reco lhen do -se com o plácidas E um ênida s a o
pé da co l ina de A tenas . O poe ta ce leb rava ass im , no o rgu lho patrió
t ic o do t r iun fo da dem oc rac ia em Atenas após a re fo rm a de C l is te -
nes , o idea l po líico de um a c idade jus ta .
A pa r t ir de ssa s or igen s as teor ias po líicas c láss icas , de P latão a Cí
cero, se prop õem com o teor ias da m elho r con st i tu ição: não da qu e
ga ran te m a is e f icazm en te o exe rcí io do pode r m as da que de f ine
as con dições m elho res pa ra a práica da jus t iça. S e, com o en s ina Aris
tóte les , o hom em éviven te po líico
zôon politikón)
po rque év iven -
te rac iona l
zôon logikón),
a c iência políica tem com o o bjeto de f in i r
a form a de rac ion al idad e qu e v incu la o l iv re ag i r do c idadão à ne ces
s idad e, in t ríns eca à própr ia l ibe rdad e e, po r tanto, em inen tem en te
éica, d e con form ar-se com a no rm a un iversa l da jus t iça. A racionali
da de po líica na co n ce ituação cláss ica é pois, essenc ia lmen te teleo-
lóg ica . E la éorden ado ra de um a práica em v is ta de um f im, qu e éa
just iça na c idad e. E fo i pa ra ass eg urar um fun dam en to an to lógico à
ação jus ta qu e P latão e di f icou a an alog ia gran diosa , esta be lec ida
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seg und o o f ina l i smo da idéa do Bem , en t re a us t iça na a lma e a us
t iça na c idade. O longo péip lo da m eta fíica do Bem , na
República,
tem a ss im c om o term o a ação jus ta na c ida de da jus t iça. É ess e o
a l vo da
paideia
p la tônica qu e un e indisso luv elm en te, no s víncu los
de um a m esm a D ialéica, a ciênc ia do B em e a ação po líica. E se é
verdad e que Ar is tóte les in troduz um a d i fe rença de natureza meto
do lógica en tre ciênc ia
teórica e
ciênc ia
prática, a
d e fin ição da ciên
c ia práica for ta lece o f ina l ism o do Be m qu e un i fica Ética e P olíica
seg und o a m esm a razão do
melhor,
ou se ja do que ém ais
justo para
o
ind ivídu o e pa ra a c idad e.
Leg i tima r o pod er pe la jus tiça na persp ec t iva de um a te leo log ia do
Bem e faze r ass im da von tade po líica um a von tade ins tau rado ra de
le is jus tas — um a nomotética reg ida pe la razão do melhor — e não
essa vontade de poder qu e o sof is ta Tra sím aco re iv ind icava no pór
t ico da
República,
fo i po ssí el p ara o pe nsa m en to po líico c láss ico
em v ir tude do p ressupos to an to lóg ico que re fe r ia a o rdem da c idade
à ordem d iv ina da natureza . Q uan do essa ordem com eça a ruir, n a
au ro ra dos tempos mode rnos , a vontade de poder se im põe com o
cons t itu t iva do po líico , sem out ra f ina l idade senão e la m esm a e sem
out ras razões leg it im ado ras senão as que pod em ser ded uz idas da
hip ótese inic ial da su a força so be ran a. O m un do da ação po líica
passa a pesa r sob re o hom em m oderno com o um des t ino t rág ico que
enco nt ra sua pr ime i ra f igura , de incom paráve l
vigor,
n o
Príncipe
d e
Maq u avei.
A pa rt i r de en tão ace ntu a-s e, c om a ide nti f icação en tre po líica e
ténica do poder , a cisão entre Ética e P o líica . N o do m ín io da
ação es sa cisão éap ro fun da da pela lógica im p lacáve l da
Machtpolitik
qu e pres ide à form ação do s E stad os n ac ion ais m od erno s e qu e se
cons t itu i com o essa lóg ica da razão de Es tado que F. M einecke
estu do u num l iv ro céeb re
Die Idee der Staatsráson,
192 4) . Teo r ica
m en te a c isão en tre Ética e Po líica aca ba sen do con sag rad a pe lo re-
f luxo indiv id ua l is ta da Ética m od ern a qu e irá co nd ic ion ar a idéa de
com un idad e éica ao pos tu lado r igoroso da auton om ia do su je i to
m ora l ta l com o o def in iu Kant.
Entretan to, a idéa de v ida po líica no O ciden te não po de renu nc iar
ao pr incípio fund am en ta l da he rança c láss ica: o po de r s ó é po líico
na m ed ida em que for legíimo , is to é c i rcun sc r ito e reg ido por leis.
As o r igens do pensam en to po líico nos m os t ram com o mot ivo teó
r ico fund am en ta l a op os ição en tre po de r po líico e po de r de spót ico.
Po r ou t ro lado, a le i que leg i tima o pod er deve ser um a le i jus ta .
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i s to é ga rant ia ora e regu lado ra
Í O
direito do c ida dão. M as a us tiça é
um a v i r tud e e, com o pred icado da le i , qu e éum a prop os ição ab strata,
dev e enco nt ra r seu conteúdo con c re to na práica v i rtuosa do c idadão.
E is a Ética introd uz ida no co ração da P olíica e eis de finido s os
er
m os, ap aren tem en te incon c i liáveis , cuja síntes e pa ssa a de saf iar o
pensam en to po líico m oderno : com o de fin i r o Es tado do pode r (ou
da
ordem
que resu lta do exe rcí io sobe rano do pode r ) com o Es tado
de d i re i to?
O prob lem a da sobe ran ia passa a cons t it u ir -se em prob lem a funda
m enta l na fo rmação dos Es tados nac iona is m ode rnos e to rna-se o
con ce i to cen t ra l das teor ias po líicas . Po r out ro lado, na ten são en tre
po de r e direi to vem co nfluir a trad ição teo lógica cr is tã qu e c on he ce
um a du p la e ant i téica face do pod er
exousía)
no ens inam en to do
No vo Tes tam en to : a face
demoníaca
do po de r com o dom inação (Lc.
4,5-8) e a face benfazeja do pode r como in s tr umen to de Deus em
v is ta do bem (Rom . 13,1 -7 ) . É perm i tido c rer que a face dem oníaca
do pod er tenha enc ont rado seus t raços def in it ivos qua ndo o Es tado ,
na figuração ho be sian a do Leviatã torna r-se a única fon te do D ire i to .
Co m o exorc izar essa face senão sac ra l izan do a sob eran ia que resu l ta
do pac to de soc iedad e , co roando -a com os p red icados com que
Rousseau ce leb r ou a
volonté générale?
C om efeito, o desapa rec im en
to do ant igo so lo anto lóg ico que fund ava a jus t iça na te leo log ia do
B em e su a su bs t i tu ição, no séulo XVII, pe lo rac iona l i smo mecani-
cista, ob r iga o pensam en to po líico m oderno a busca r na h ipótese
do pac to de soc iedade , ou seja, no víncu lo con tratua l qu e un e os
ind ivídu os na ac ei tação do po de r so be ran o, o fun dam en to da jus t iça
po líica. Não ob stan te o en orm e esfo rço esp ecu lat ivo repre sen tado
pe la ten ta t iva hege liana de repensa r a an t iga un idade do
ethos e
d o
nómos,
esse esque m a pe rs is te e re to rna em novas fo rm as , com o teste
m unha o já cláss ico
A Theory of J ustice
de John Ra w ls , recen te
m en te t raduz ido en t re nós pe la Ed i to ra da UN B.
Vêse as sim qu e, no fun do da intuição na po leônica da res su rreição
m od erna da tragéia an t iga na esfe ra do po líico está a dia léica
indi-
vídu o-p od er qu e rege, com o m ot ivo teórico funda m enta l , as teor ias
con tratua l is tas da jus t iça po líica. N a verd ad e, seja com o Le v iatã sej
como von tade
geral ,
o pode r sobe rano acaba e levando -se ao cé
m is te r ioso das razões de Es tad o don de pes a sobre o c idadão com o
o De s t ino ant igo pes ava sobre o heró i t rágico . A teor ia e a práica da
po líica no m undo m oderno m os t ram que a h ipótese in ic ia l dos indi
vídu os c om o pa r tíu las iso lada s, que só o aten dim en to da s carências
e ne ce ssid ad es irá un ir no vínc ulo jurídico do pa cto de so cied ad e
tem , com o co ntra pa rt ida, a co nc epção e a efe t ivação histór ica do
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Es tad o com o s is tem a ex te r io r de fo rça cu ja h iper t ro fia to rna-se dire
tam en te p ro po rc ion a l à m u ltip licação e à com p lex ificação das rela
ções soc ia is que h ipo te t icam ente tem o con t ra to soc ia l com o funda
m en to e o Es tado como s is tem a
regulador.
Pa rece , ass im , razoável sup or que a c r ise da s soc ieda des po líicas
con tem porânea s , sacu d idas pe lo e m bate ent re a s asp i rações à partici
pação d em oc ráica e a just iça so cial de um lad o e, de outro, a hiper
t ro fia d as es t ru tu ras do pod er do Es tado ( fenôme no que , sob t raços
dive rso s, po de se r ide nti f icad o aq uém e além das fron teiras ideoló
g ic as que d iv idem o m undo con tem po râneo ) t enha um a das suas aí
ze s nu m pro jeto de ex istênc ia po líica qu e ac ei ta a op os ição
indiví
duo -pode r com o a opo s ição pr ime i ra e con s t itu t iva do ser -em -com um
políico. Como, por ou t ro
lado,
o ind ivídu o épe ns ad o aq ui pr im aria
m en te com o um se r de carênc ia e ne ces s idad e, a al ienação ou a res
t r ição da l ibe rda de no pa cto de so cied ad e en co ntra su a sign i f icação
com o co nd ição inic ial da qua l se de du z o sistem a d a sa tis fação da s
necess idades que , com o s is tema po líico , passa a se r reg ido pe la ra
c iona l idad e ins t rum enta l do
fazer
ou da pr od ução do s bens. O fa
ze r e o
produzir
(con t rad is t in tos do
agir
no sent ido ar is to té
lico ) se to rnam f ins em s i, subm e tendo todos os m e ios e re je i tando os
f ins prop r iam en te éicos na esfe ra da s con v icções sub jet ivas do
ind ivíduo .
A c r ise das soc iedades po líicas nasc idas da m odern idade im põe , po r
cons egu in te , a buca de um a ou t ra con cepção do pon to de par t ida da
f iloso f ia po líica . Es se pon to de par t ida dev e pressupor, em qua l que r
hip ótes e , a idéa d e
comunidade ética
c omo
anterior,
de direito, aos
prob lem as de re lação com o po de r d o ind ivídu o iso lado e sub m et ido
ao im pe rat ivo da sat is fação da s sua s ne ces s idad es e carênc ias . Ê no
terre no da idéa de comunidade ética qu e se traça a l inh a de fronte i ra
e ntre Ética e P o líica . A pa rtir da í épos sí e l form ula r a qu es tão fun
dam en ta l que se desdo b ra en t re os do i s cam pos e es tabe lece en t re
e les um a ne ce ssáia com un icação: com o recompor, na s co nd ições do
mun d o atual, a com un idade hum ana com o com un idade éica e com o
fund ar so bre a dim en são ess en c ia lm en te éica do ser soc ia l a
comuni
da de po líica? C on vém lem brar m ais um a v ez qu e a idéa d e v ida
po líica nas ceu no con tex to h is tór ico da c r ise do
ethos
das ar is toc ra
c ias gue r re ir as na G réia an t iga e do adven to de um a no va fo rm a de
com un ida de éica qu e irá en co ntra r su a ex pre ssão na s co ns t i tu ições
democ ráicas da polis Q ue remos c re r que um a nova fo rma de comu
nid ad e éica na civ i l ização co ntem po râne a, cu jos es boços de exp res
são s im ból ica tem com o fund o a em ergência his tór icad a co nsc iênc ia
g
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dos d i re i tos f ium ano s com o consc iênc ia da t ium an idade , es te ja pre
sen te e a tuan te em n osso mu ndo , as s ina lando a cr ise e o dec lín io
(no própr io parox ism o da sua apa ren te on ipo tênc ia ) do Es tado do
poder
e imp on do a exigência , a um tem po éica e po líica, da
edifi
ca ção de um au têntic o E sta do de
direito.
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