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O QUE AS PROFESSORAS PENSAM DO ECA: uma investigao acerca de representaes sociais.

Rogrio Pdua Cavalcanti

1 APRESENTAO

Este artigo apresenta os resultados de uma breve pesquisa de cunho qualitativo, baseada na anlise de entrevistas abertas, no estruturadas, realizadas junto a dezessete professoras que atuam em trs escolas da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte , visando captar suas representaes sobre o Estatuto da Criana e do Adolescente o ECA. A questo central foi estruturada da seguinte maneira: o que as professoras entrevistadas pensam a respeito do ECA? Qual a percepo que elas tm do Estatuto e de sua relao com o trabalho docente? As entrevistas aconteceram durante a implementao do projeto ECA vai escola, desenvolvido pelo Instituto da Criana e do Adolescente ICA, numa parceria entre a Pr-Reitoria de Extenso da PUC Minas, a UNESCO e a Prefeitura de Belo Horizonte, no segundo semestre de 2003. O objetivo geral do projeto foi a divulgao e o debate, nas escolas selecionadas, do tema da promoo e da defesa dos direitos das crianas e dos adolescentes no Brasil.

Na primeira parte do trabalho, o ECA abordado numa perspectiva macro-sociolgica, sendo enfatizado como um conjunto de novos valores e atitudes criadas pela sociedade em relao criana e ao adolescente de uma forma geral. Nessa abordagem, o Estatuto visto no apenas como uma ordenao jurdica sobre o assunto, mas tambm como um quadro de idias e representaes a respeito da infncia e da adolescncia e que, historicamente, tem-se confrontado com outras idias e representaes criadas sobre a questo no pas.

Posteriormente apresentado o referencial terico-metodolgico utilizado na anlise das entrevistas. O artigo prossegue com a apresentao dos dados coletados a partir das falas das professoras, tendo como pano de fundo o contexto sociocultural no qual elas esto profissionalmente inseridas. Na concluso, apontada a percepo geral que as professoras tm do Estatuto da Criana e do Adolescente e suas implicaes na prtica escolar.

2 INTRODUO: O ECA, a sociedade e a escola

Tornou-se notrio o fato de que, nas ltimas dcadas do sculo XX, tem-se observado uma mobilizao mundial pela ampliao e aplicao dos direitos civis a crianas e adolescentes (ROSEMBERG, 1993:17). Apesar da evidncia histrica de violncia adulta contra crianas, e de esta no ser uma prerrogativa das sociedades modernas, diversas organizaes sociais, governamentais ou no, nacionais e internacionais, tm-se empenhado em denunciar a crueldade e a extenso de situaes especficas de risco em que tm vivido milhares de crianas e adolescentes em todo o planeta. Os problemas apontados por tais organizaes passaram a ser objetos de investigaes cientficas, metas de polticas pblicas, estmulos solidariedade coletiva e bandeiras de campanhas em determinadas mdias.

No entanto, importante destacar alguns pontos que permanecem como problemas a serem enfrentados. Um desses problemas, e talvez um dos mais contundentes, diz respeito recorrncia da violncia simblica cometida, de maneira especial, contra crianas e adolescentes pobres no Brasil. Esse tipo de violncia permanece em contraposio aos avanos jurdicos do Estatuto da Criana e do Adolescente, de 1990. O Estatuto traz em seu contexto no apenas informaes de ordem jurdica, mas tambm serve como referncia para a construo de um novo tipo de conhecimento a respeito do tema da criana e do adolescente, em substituio s representaes, muitas vezes considerados como estereotipadas e estigmatizantes, que prevaleceram em vrios momentos da histria social da infncia no pas.

O ECA substitui o Cdigo de Menores, de 1979, e se constitui em ampla legislao de defesa, proteo e desenvolvimento da criana e do adolescente no Brasil. No entanto, a lei, por si s, no modifica a realidade. Ela se constitui como referncia normativa, pela qual governantes e sociedade civil devem construir o novo Estado de Direito para as crianas e adolescentes. A operacionalizao do ECA supe que os agentes que lidam direta e indiretamente com a questo reconheam que essa lei representa, de maneira genrica, uma proposta poltica de construo e de afirmao do Estado Social de Direito no pas. Introduz novo conceito de criana e adolescente e legisla, pela primeira vez, para todo o universo da infncia e da juventude, sem discriminar os diferenciados pela situao de risco ou situao de pobreza.

Finda, com o ECA, a era da situao irregular da criana e adolescentes menorizados e funda a era da proteo integral da criana e adolescentes cidados. Em suma, o Estatuto representa a emergncia de uma nova forma de compreenso, no sentido mais amplo do termo, da realidade das crianas e dos adolescentes no pas.

Na histria social da infncia em geral, no Brasil, e da infncia pobre em particular, percebe-se que, repetidas vezes, ela encontra-se permeada por representaes especficas sobre a questo, representaes oriundas de mentalidades culturalmente constitudas no interior de determinados grupos sociais, em determinadas pocas da histria. Tais mentalidades, algumas mais arcaicas como a questo do menor abandonado e do menor carente, alm de outras representaes correlatas, permeiam o imaginrio da populao contribuindo para formatar a sua opinio no apenas a respeito do ECA, mas, de maneira especial, sobre a prpria condio de pobreza em que tm vivido milhares de crianas e adolescentes brasileiros.

Ao utilizar-se de representaes negativas sobre a infncia e a adolescncia, como por exemplo, o termo menor, pessoas e instituies tendiam (e ainda tendem) a estigmatizar a criana e, com isso, ela passa a ser caracterizada como se ela fosse um tipo especial de criana e no correspondesse grande maioria da populao infantil nacional (p.30). Desse modo, nas palavras de BRANT (1989:6-7) , citado por VARGAS (1990:30), tem-se que:

O termo menor, que a princpio deveria designar todos os brasileiros at 18 anos, acaba sendo usado para designar apenas uma parte desses brasileiros, exatamente aquela menos favorecida da populao que, qualificada enquanto menor, carrega o estigma da excluso e da marginalizao, como se pde constatar em uma notcia de jornal (do Rio de Janeiro) [...] cujo ttulo dizia: Menor assalta criana na porta da escola' .

Associadas ao termo menor, outras representaes permeiam o imaginrio social: infrator, trombadinha, pivete, pixote, dentre outros. Um dos maiores responsveis pela estigmatizao dessas crianas foram os prprios rgos pblicos encarregados de atend-los. Alm disso, GOHN (1997) chama a ateno para a terminologia presente tambm nas leis, decretos e programas de instituies, onde o segmento social das crianas na faixa da pobreza aparece como: carente, abandonado, desassistido, desamparado, infrator, criana de conduta anti-social, menores em situao de risco, etc (p.112).

Em vista dessa luta ideolgica em torno da representao social da infncia e da adolescncia pobre no pas, a concepo e a execuo de programas sociais relacionadas proteo e divulgao dos direitos da infncia e da juventude, no intuito de romper com determinadas atitudes e mentalidades arraigadas, surge como necessrias, sobretudo quando aplicados ao contexto escolar atual.

A escola constitui-se, histrica e ideologicamente, como uma das principais instituies responsveis pela formao do indivduo socialmente integrado, do cidado crtico e participativo, apesar dos inmeros problemas que tem enfrentado. Para que possa cumprir com xito sua misso, a escola precisa estar atenta aos diversos acontecimentos sociais e, de certa forma, acompanhar o movimento poltico da sociedade; a mesma sociedade na qual pretende que seus alunos atuem de forma efetiva.

Para tanto, a qualificao constante do quadro de professores e funcionrios, com a criao de canais internos e externos de debate e de informao que abarquem as inmeras e incessantes transformaes que ocorrem na vida social contempornea, tem contribudo para que a escola no fique num estado de defasagem em relao aos acontecimentos da sociedade em geral e de seus reflexos na comunidade na qual se encontra inserida.

O ECA, fruto de um amplo movimento histrico e social, representa um avano institucional no pas e atua de forma positiva em relao proteo dos direitos da infncia e da adolescncia. Para que ele se efetive como idia-ao, necessria a sua mais ampla divulgao no seio da sociedade, especialmente nas escolas pblicas e privadas, para que os professores e educadores em geral possam saber lidar com a criana e o adolescente contemporneos, num contexto de incluso social.

Portanto, o ECA, que nessa perspectiva pode ser compreendido como um conjunto de novas idias e valores, de novas mentalidades a respeito da infncia e da adolescncia, demanda ser amplamente estudado e comparado com outras leis e polticas para que possa fazer sobressair a sua lgica na prtica, que a da proteo integral dos direitos da criana e do adolescente no Brasil.

3 APORTE TERICO-METODOLGICO: o estudo das representaes sociais

As representaes sociais podem ser entendidas como um conjunto de categorias de pensamento, valores e crenas morais, as quais formam um sistema quando so compartilhadas pela grande maioria dos indivduos que constituem um determinado grupo social; ou seja, quando, dentro do grupo, os indivduos mantm entre si relaes sociais relativamente estveis, formando a base ou a estrutura da sociedade. Dessa forma, as representaes sociais, de acordo com DURKHEIM (1989), exprimem sempre realidades que so coletivas e no meramente individuais. Nas palavras do autor:

As categorias so representaes essencialmente coletivas, elas traduzem antes de tudo estados da coletividade; dependem da maneira pela qual esta constituda e organizada, da sua morfologia, das instituies religiosas, morais, econmicas, etc (P. 44 45).

As categorias formam um sistema que se realiza de modo histrico quando o sentido das relaes sociais de um grupo transmitido de gerao a gerao, de modo a dar continuidade ao processo de socializao do indivduo, atravs da presso que a sociedade exerce sobre ele. O indivduo, quando interage e integra-se ao meio social, compelido a repetir as aes que nele possui os sentidos adequados para a sua conservao e realizao: medida que participa da sociedade o indivduo vai naturalmente alm de si mesmo, seja quando pensa, seja quando age (p.46), complementa o autor.

Essa presso exercida pela sociedade sobre o indivduo no permite que ele se manifeste integralmente como tal; isto , coibi-o de julgar com liberdade as noes que a prpria sociedade criou. Quando a presso se enfraquece, ela permite que o indivduo reflita mais livremente sobre a sociedade, podendo ou no mudar os seus conceitos e, conseqentemente, mudar de atitude em relao a ela. Dessa maneira, o indivduo pode elaborar uma viso particular dos fatos e do meio a que pertence (DURKHEIM & MAUSS, 2003).

Para o estudo da representao social do ECA, captado atravs das entrevistas concedidas pelas professoras da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, que participaram do projeto ECA vai escola, desenvolvido pela equipe do Instituto da Criana e do Adolescente ICA, da Pr-Reitoria de Extenso da PUC Minas, em parceria com a UNESCO, torna-se necessrio uma investigao que envolva tanto a anlise lingstica em seus variados matizes, assim como a anlise scio-histrica do discurso e de seus processos de produo e de reproduo.

Compreende-se que o ponto de articulao das ideologias e, no caso especfico desta pesquisa, das representaes sociais que emergem da linguagem das professoras entrevistadas o discurso. A linguagem enquanto discurso no representa apenas um instrumento de comunicao. Representa tambm um modo de interao e de produo social, elemento de mediao entre o homem e sua realidade imediata, lugar de conflito, no devendo, por isso, ser analisado fora dos processos sociais e histricos que influenciam e, em muitos casos, determinam sua produo.

Por ser um fenmeno bastante complexo, que pode ser abordado atravs de vrias perspectivas analticas, a linguagem compreende aspectos individual e social, alm de conter aspectos fsicos, fisiolgicos e psquicos, dentre outros. Entretanto, pode-se considerar a linguagem e sua variante discursiva o enunciado em dois nveis fundamentais, quais sejam, sua dimenso autnoma (individual) e sua dimenso estrutural (social), ambas em constante interao. De acordo com BRANDO (1998:10):

Essa viso da linguagem como interao social, em que o outro desempenha papel fundamental na constituio do significado, integra todo ato de enunciao individual num contexto mais amplo, revelando as relaes intrnsecas entre o lingstico e o social. O percurso que o indivduo faz da elaborao mental do contedo, a ser expresso objetivao externa a enunciao desse contedo, orientado socialmente, buscando adaptar-se ao contexto imediato do ato da fala e, sobretudo, a interlocutores concretos.

Portanto, a linguagem humana no deve ser encarada apenas de forma abstrata e sim como o lugar em que as ideologias, as mentalidades, os desejos e os valores de cada agrupamento social especfico se manifestam de forma concreta, tomando corpo, se objetivando, enfim, revelando sua materialidade. Nesse sentido, o discurso de uma professora, por exemplo, pode ser individual, mas tambm social porque o indivduo que fala (profere o discurso) utiliza-se de elementos sintticos abstratos (temas, figuras, imagens) que materializam valores, carncias, desejos, explicaes, justificativas e racionalizaes presentes em seu contexto social. Por isso, a anlise aponta a formao discursiva qual pertence determinado tipo de discurso, isto , os temas, opinies e figuras que compem a viso de mundo que ele engendra. Nas palavras de FIORIN (1998: 149-150):

O que importa para o analista que todo discurso desvela uma ou vrias vises de mundo existentes numa formao social. O homem no escapa de suas coeres nem mesmo quando imagina outros mundos. Na fico cientfica, por exemplo, em que o homem cria outros universos, revela os anseios, os temores, os desejos, as carncias e os valores da sociedade em que vive.

Produzir um discurso e divulg-lo tambm agir em sentido mais amplo. Ao enunciar um discurso, o falante pode contribuir tanto para a manuteno das estruturas sociais vigentes, como para a construo de outras. Isso porque a sociedade se movimenta atravs da produo incessante de discursos que se cruzam, se esbarram, se anulam ou se complementam. Essa dinmica tem seu momento crtico quando o discurso-texto se materializa e captado pelo receptor. Este, por seu turno, l o discurso a partir do seu universo social e dialoga com ele, assimilando-o ou no. Como afirmou BACCEGA (1995: 21-22):

O embate entre os discursos ocorre tanto em nvel sincrnico como diacrnico. As permanncias histricas, muitas vezes sob a forma de mitos, provrbios, esteretipos, valores positivos ou negativos, tambm constituem parte importante desse dilogo.

Desse modo, do ponto de vista da anlise do discurso, deve-se considerar a linguagem no apenas como a manifestao individual dos sentidos, e sim devem-se perceber os deslocamentos destas significaes: a produo de sentido est na sociedade, na histria, adverte a autora acima citada (p.27).

Os discursos trazem inscritas as diferenas de interesses e as propostas de caminhos diversos para os processos social e histrico da humanidade. A anlise do discurso infere sobre a viso de mundo dos sujeitos enunciadores e depois mostra o que determinou ou influenciou essa viso neles revelada.

4 APRESENTAO E ANLISE DOS DADOS: O que as professoras falaram a respeito do ECA

Para melhor organizar a fala das dezessete professoras entrevistadas, foram criadas duas grandes categorias analticas: uma que se refere ao contexto social no qual se encontram inseridos os alunos das escolas visitadas durante a implementao do projeto ECA vai escola; e outra, suas opinies sobre o ECA e sobre a questo da promoo e defesa dos direitos das crianas e dos adolescentes na escola.

A primeira etapa da anlise, no entanto, centrou-se na tentativa de identificar o grau de conhecimento das professoras sobre o Estatuto em relao ao tempo de experincia profissional. O quadro abaixo demonstra essa relao:

QUADRO 1: O conhecimento que as professoras entrevistadas tm do ECA.

Prof

Experincia profissional

Conhecimento sobre o ECA

A

18 anos na mesma escola.

J ouviu falar, mas no sabe falar sobre ele. Leu por curiosidade; dei uma olhada.

B

12 anos na rede estadual; 1 ano na prefeitura.

Tenho o ECA e nunca li.

C

H muito tempo; 4 anos na prefeitura.

Eu sabia que tinha sim.

D

15 anos na escola estadual e 13 anos na prefeitura, na mesma escola.

Eu vejo mais um lado negativo a questo da criana estar envolvida na questo do direito dela.

E

35 anos na prefeitura; 8 anos no estado.

O Estatuto maravilhoso desde que ele seja cumprido conforme est na lei.

F

- -

Veio garantir esses direitos. Tem uma diferena: tem aes que podem ser realizadas at 12 anos e acima de 12.

G

Atualmente na coordenao da escola.

Conheo um pouco do ECA, mais a questo terica mesmo.

H

17 anos de sala de aula.

Eu conheo e vejo que ainda est muito na teoria.

I

Vinte e poucos anos.

Eu s ouvi falar e nunca peguei para ler. S ouvi falar pela televiso.

J

12 anos de magistrio.

Acha importante, mas nota uma m compreenso sobre ele.

L

- -

Deveria ser um Estatuto para a criana e outro para adolescente.

M

Trabalha na escola desde 1996.

Esta questo do Estatuto a gente conhece porque muito falada e muito polmica.

N

16 anos na rede municipal

A questo do Estatuto foi uma boa inteno, baseado nos Direitos Humanos.

O

24 anos na rede municipal

Tem duas coisas que eu queria rasgar e jogar no mar: uma o Estatuto e outra o Bolsa Escola.

P

- -

Destaca mais os direitos e menos os deveres da criana e do adolescente.

Q

D aula h 16 anos

No conheo nada do Estatuto, mas vejo como algo que protege uma criana indefesa; Eu no tenho conhecimento do Estatuto.

R

- -

Eu acho que temos o excesso de direitos e a falta de dever.

FONTE: ICA / PROEX / PUCMINAS.

Nota-se, pelo quadro acima, que as professoras, apesar de terem uma experincia profissional de muitos anos na escola, elas mesmas no detm um conhecimento um pouco mais sistematizado sobre o Estatuto. Esse fato, o no conhecimento prvio do ECA, certamente vai interferir nas suas representaes sobre ele, gerando, inclusive, alguns pr-conceitos.

4.1 Contexto sociocultural das escolas

Num primeiro momento da entrevista, fica patente um certo incmodo provocado nas professoras pela situao de pobreza, violncia e indisciplina que vivencia a maioria dos alunos atendidos nas escolas. As professoras parecem resignar-se com esta situao e procuram quase sempre explicaes nos fatores ambientais externos escola para justificar o insucesso de alguns de seus alunos. A professora A reclama:

O que notamos que a indisciplina est piorando a cada ano. Observamos que o aluno que foi da gente no ano anterior, ele, neste ano, est mais indisciplinado. Est apresentando uma srie de problemas. Quando eu entrei no... [nome da escola], ele no funcionava aqui. Eu acho que o ambiente, o povo daqui piorou demais, porque aqui no... [bairro da escola] de nvel baixo. Isso atrapalhou bastante. Outro fator, a violncia que a criana sofre em casa, [ela] traz para a escola.

Primeiro a situao scio-econmica: na situao de misria que vemos aqui, a famlia no tem como assumir seu dever (Professora G).

s vezes percebo que os pais so muito piores do que os meninos. A viso que eu tenho desse contexto de uma crise social (Professora M).

No entanto, a situao de pobreza da grande maioria dos alunos, apesar de refletir diretamente na organizao do trabalho pedaggico das professoras, parece tomar, em certos casos, uma dimenso estrutural bastante forte, capaz de gerar conflitos de ordem cultural, o que se torna um desafio para algumas professoras. A professora B relata:

Trabalho aqui no... [nome da escola] desde o ano passado e trabalho no Estado h doze anos, na rede estadual. Para mim uma realidade totalmente diferente da que eu era acostumada. Eu trabalho tambm numa escola mais central, meninos de famlias mais centradas. Aqui ns pegamos os meninos meio que largados prpria sorte. Eu estranhei demais no princpio. Hoje no. Hoje tenho mais facilidade de trabalhar com esses meninos do que com os meus l.

Pela fala da professora B, nota-se a dificuldade inicial na adaptao sua nova escola a do municpio e sua estranheza em relao aos alunos que l encontrou. No entanto, percebe-se que, com o tempo, ela encontrou mais facilidade de trabalhar, o que equivale a dizer que, no que tange questo das representaes sociais, ela deve ter conseguido romper, ao menos em parte, com os rtulos ou imagens estereotipadas que comumente so associados s crianas que freqentam as escolas da periferia nas grandes cidades.

Apesar disso, a questo da pobreza continua sendo vista como um fator real que interfere, de forma bastante negativa, na vida escolar das crianas e na organizao da prpria escola, principalmente, na desestruturao da famlia dos alunos: A maioria de pais separados, com uma estrutura de famlia diferente da convencional, argumenta a professora B. Existe, portanto, no imaginrio da professora, uma famlia convencional que segue algumas convenes e uma outra diferente, composta por pais separados e meninos largados prpria sorte. Suas expectativas em relao famlia seguem determinados padres culturais, os quais, certamente, so apresentados a ela como naturais ou normais, capazes de disciplinar os alunos.

A indisciplina, ou a falta de disciplina do aluno na sala de aula e na escola, em geral, uma outra preocupao constante na fala das professoras. H aquelas que clamam abertamente por atitudes firmes por parte das famlias e dos educadores a fim de controlar a rebeldia ou a imprevidncia dos alunos. A professora C argumenta:

Dentro da sala de aula ns enfrentamos um problema serssimo com relao a disciplina do aluno. Alunos indiferentes, por no quererem nada mesmo, ou por terem uma alimentao ruim, no tm disposio para aprender. E, s vezes, os pais no tm aquele pulso firme com eles [...]. Geralmente, a educao vem do bero. O que eles [os alunos] recebem em casa, reflete para ns. E esse reflexo, principalmente, aqui na escola, de alunos que no tem uma educao adequada. Os pais no do apoio. Tem me que fala conosco perto do filho que no d conta mais dele.

Novamente, fazendo uma incurso no imaginrio da professora C, pode-se notar a sua expectativa em relao a uma educao adequada que vem do bero. Reclama, a professora em questo, da falta de rigor dos pais na educao de seus filhos e tambm do reflexo disso no seu ambiente de trabalho. Toda essa situao de indisciplina por parte de alunos, da falta de rigor na educao promovida pelos pais, a violncia no entorno da escola e a prpria situao de pobreza em si, revela uma questo fundamental, mas pouco trabalhada no interior das escolas do municpio: o enorme abismo cultural que separa dois mundos bastante distintos o mundo das professoras, com seus valores solidificados e expectativas determinadas; e o mundo dos alunos, com suas mazelas econmicas e dificuldades peculiares, tais como a falta moral, a alimentao ruim, a perda de alguns valores considerados como fundamentais na estruturao da famlia convencional. A professora C continua:

Eles so extremamente carentes. Que futuro esses alunos vo ter? Eu me sinto pequena diante disso tudo. Geralmente, quando um aluno est problemtico na sala de aula, quando voc chama a me, possvel perceber o porque da situao: a me chega mais desestruturada do que o menino, bbada, desmantelada.

Eu vejo que a maior parte das famlias, de um modo geral, da nossa clientela nos dias de hoje, uma instituio praticamente falida [...]. A escola no tem condies de estar lidando com isso. No estamos preparados. E no a questo de estar preparada; no nossa funo. Ento, hoje, a escola trabalhar com um programa a ser desenvolvido o que menos se tem feito. O que mais temos trabalhado so os valores: respeita o seu colega; respeita o seu corpo, menina. Estamos trabalhando os valores, a socializao o tempo inteiro (Professora D).

A famlia est desestruturada. O povo tambm est desestruturado. Ningum tem autoridade sobre ningum. A famlia no tem autoridade sobre os filhos. Os filhos no respeitam. Se no respeitam os pais, como vo respeitar outras pessoas? (Professora E).

O quadro que se desenha, no embate entre as expectativas e os valores revelados pelo discurso das professoras entrevistadas e a dura realidade de seu trabalho docente, o de um enorme choque cultural. O resultado desse embate reflete-se no desabafo de algumas professoras entrevistadas:

Eu acredito que, como ontem foi aprovado o Estatuto do Idoso, o professor est precisando, urgentemente, de um projeto [de estatuto]. Ele est pedindo socorro, pois no sabe o que fazer [...]. Eu estou dando graas a Deus que j estou aposentando, mas quem fica... (Professora E).

D vontade de fazer um monte de buracos no muro e deixar esses meninos escaparem, porque travamos uma luta com eles (Professora L).

Tinha um menor no regime de liberdade assistida e a escola virou um verdadeiro inferno. Todo mundo conhecia ele. Graas a Deus voltou tudo ao normal depois que ele ficou tetraplgico em um combate no trfico de drogas (Professora G).

O professor uma pessoa sobre-humana; um mdico, uma bab, um psiclogo, inclusive policial. Eu nunca vou poder ser e no quero ser tudo isso. Quero ser simplesmente professor; atender aos alunos (Professora F).

Ontem eu dei uma sacudida num [aluno]. Eu falei com Deus: me d pacincia (Professora Q).

4.2 Representaes do ECA

Diante dessa situao social que as professoras desenharam e na qual encontram-se inseridos seus alunos, o ECA passa a ser visto mais como um elemento complicador e menos como uma soluo para os problemas por elas enfrentados no ambiente escolar. A tendncia detectada na fala da maioria, seno todas as professoras entrevistadas, do ECA assumir um papel de vilo na histria. Ao invs de ajudar, o Estatuto s atrapalharia ainda mais o trabalho das professoras na sala de aula e na escola em geral.

No entanto, nota-se uma contradio nos discursos das professoras entrevistadas: a maioria concorda que o ECA representa um grande avano institucional e histrico a respeito da questo dos cuidados com a criana e o adolescente brasileiros; mas, por outro lado, h uma indignao compulsiva contra as novas orientaes trazidas pelo Estatuto, as quais seriam, segundo as professoras, irrealizveis em seu contexto profissional. As diretrizes do ECA s valeriam no papel e, na prtica social da escola, apesar da boa inteno da lei, elas no se aplicariam de maneira efetiva, ou seja, no sentido de solucionar problemas vivenciados no cotidiano escolar das professoras:

Em certos pontos eu acho que [o ECA] foi bom, mas tem tambm o caso da criana ficar muito sem limite porque ela ameaa o pai. Principalmente aqui, nesta redondeza: se encostar em mim, eu denuncio. Quer dizer: a criana tem direito de fazer o que quiser, agora, a famlia no tem como corrigir [...]. s vezes ns falamos em mandar chamar a famlia e eles falam: minha me no me bate; se bater eu denuncio (Professora A).

Olhando ele [o ECA] como lei, ele tem que ter vindo para melhorar a vida da gente. Eu acho que nenhuma lei vai ter esse trabalho todo para piorar a nossa vida. Acho que, por outro lado tambm, olhando o ECA como essa manuteno desses direitos que esses meninos tm, eles perderam o limite, pois acham que esto totalmente cobertos por essa lei e que eles esto acima do bem e do mal. Eles s tem direitos e no tem deveres (Professora B).

O Estatuto maravilhoso desde que ele seja cumprido conforme est na lei. Agora, a pessoa escolhe. Por exemplo: a parte que fala sobre a preservao dos direitos da criana. Por que a criana no pode apanhar? O problema a interpretao. A Bblia fala: castiga seu filho quando criana para que mais tarde ele no venha a te envergonhar. No quer dizer que para espancar o filho. s vezes castigamos at mesmo numa conversa. Tanto os pais, quanto os filhos, esto enxergando [no ECA] o que interessa a eles [...]. Na escola, o professor est sem autoridade com o aluno por essas e outras coisas (Professora E).

Em termos de lei, para mim um avano da sociedade, mas, da prtica, ainda est muito longe. Para a escola, o ECA um complicador. Ele [sic] s como questo do direito. muito complicado para ns lidarmos com o menino, com a famlia, porque eles s vem a questo do direito [...]. Na questo da prtica, o ECA est longe de ser implantado ainda (Professora G).

Em algumas coisas eu concordo com minhas colegas, mas por outro lado, vejo que o momento em que ele [o ECA] veio foi extremamente importante. Acho que tinha que dar um basta a determinados casos de violncia que extrapolavam. Crianas queimadas com cigarro, me que bateu na moleira da menina, caso de estupro. Ele veio, de uma certa forma, dar um temor s pessoas que praticavam esses tipos de crimes [...] Por outro lado, tem a m compreenso do Estatuto [...]. As pessoas que trabalham com o Estatuto, na grande maioria das vezes, elas tm uma compreenso equivocada e, ao invs de tomarem atitudes que sejam educativas, passam a mo por cima e, quem educa, fica a Deus dar (Professora J).

Eu acho que a questo do Estatuto foi uma boa inteno, baseada nos Direitos Humanos. O que eu observo que, no nosso pas, somos de falar muito e fazer pouco. Ento s vezes, aqui na escola, as pessoas tm um discurso bonito nas reunies e no so pessoas da prtica mais efetiva. Isso muito da nossa cultura. Ns temos leis maravilhosas, mas que no funcionam. No temos cultura de seguir lei (Professora N).

Portanto, a percepo inicial que as professoras tm do ECA que ele, enquanto lei que protege direitos da criana e do adolescente e aponta deveres da famlia, da sociedade e do Estado na conservao desses direitos, torna-se algo bastante necessrio. No entanto, um certo mau uso generalizado da lei provoca revolta e indignao nas professoras, principalmente por sentirem-se sem autoridade moral para assumirem, de fato, o papel que, no conjunto de suas representaes, atribuem aos educadores no contexto social em que atuam.

Como conseqncia, algumas professoras entrevistadas, a menor parcela, apenas conseguem enxergar o lado negativo do Estatuto, em detrimento de seu lado positivo:

Eu vejo mais um lado negativo a questo da criana estar envolvida na questo do direito dela. Ela tudo pode. Esse direito to extrapolado que o adulto, tanto o professor como o pai, fica sem poder estar agindo com a criana [...]. s vezes assistimos e ouvimos muitas coisas e, quando nos deparamos com a nossa realidade, na sala de aula, totalmente diferente. A nossa realidade a seguinte: algum deu um pum e eu no estou agentando (Professora D).

Tem duas coisas que eu gostaria de rasgar e jogar no mar: uma o Estatuto, a outra o Bolsa Escola [...]. Eu vejo o Brasil, na questo de lei, de Estatuto, com uma hipocrisia to grande que, s vezes, no gosto de comentar (Professora O).

Antes do Estatuto, a autoridade do professor era maior: eu peo, voc faz (Professora P).

A sociedade vai criando um tanto de estatutos e um monte de baboseiras que esto por a, como que, simplesmente, atestando a incapacidade de assegurar sobrevivncia ao ser humano (Professora R).

Nota-se uma forte resistncia ao ECA por parte das professoras em geral, mas no por desconhecerem a importncia de uma lei na organizao da vida social. Essa resistncia deriva da prpria dinmica cultural, onde, por um lado, a escola foi obrigada a atender um pblico que, at dez ou quinze anos atrs, no teria a menor chance de se matricular e que ficaria excluda do sistema de ensino pblico do pas. Essa nova clientela da escola, crianas e adolescentes oriundos de comunidades carentes, com um precrio padro de vida scio-econmico, representam para o universo cultural das professoras entrevistadas, a quase totalidade delas com muitos anos de magistrio, uma outra realidade e que, para tal, elas no se encontram preparadas para lidar.

As professoras entrevistadas vem-se presas a experincias educacionais e prticas pedaggicas adotadas em pocas passadas e definidas por determinados padres culturais ou estilos de vida que hoje se encontram em fase de transformao ou transio. Elas referem-se a exemplos de sua histria pessoal para reafirmar a importncia e a crena coletiva em modelos de instituies sociais considerados como os pilares de sua boa socializao, em contraposio a uma m socializao de certos alunos: a famlia estruturada, a religio sria e a prpria escola ou a educao que tiveram. Algumas professoras recorrem at mesmo a exemplos de sua prpria vida familiar, assim como valores e expectativas inerentes a ela, como argumentos contrrios ao ECA:

Eu nunca tive problema na escola com filho. Nunca fui chamada na escola. At hoje, meu filho mais velho tem trinta e seis anos e no me desafia. Acho que o que est faltando o amor. O amor que existe hipocrisia pura [...]. A criana j vem de uma criao errada. No obedeceram a pai, me, porque no aprenderam. E a gerao que vir vai ser pior porque no tero valores para passar para os filhos que viro (Professora E).

Na minha famlia, ns podamos no concordar com o nosso pai, mas ele era o nosso pai. Meu pai nunca batia, mas meu pai estava em casa (Professora Q).

Eu no acho que humilhao uma criana ajudar a me em casa porque eu tinha deveres dentro de casa, eu tinha uma tarefa, um dever de ajudar a minha me e isso no me fez mal algum (Professora R).

Uma professora chega a ponto de criticar a prpria escola na qual trabalha, buscando argumentos para relacionar o suposto fracasso escolar de alunos com o ECA. Na sua viso, ao garantir o acesso de todas as crianas e adolescentes a uma vaga na escola pblica, o Estatuto seria um dos responsveis pela m qualidade do ensino escolar da rede municipal, por esta ter que aceitar, sem discriminao, crianas e adolescentes pobres, tidos como sem cultura, de famlias desestruturadas, sem condies morais e materiais, sem necessidade de freqentarem a escola ou, at mesmo, de estarem freqentando a escola errada, que no foi feita para eles:

Quando o Estatuto coloca que a criana tem direito educao, ser que a criana quer estar na escola? Ela tem direito de escolher que escola quer? Ser que tal escola a necessria a ela? Eu vejo que a que comea esse angu de caroo todo. Temos um tanto de crianas que tomamos conta delas para no estarem na rua [...]. Mas dentro da escola tem um outro tipo de criana e adolescente que, devido a essa meia dzia que no querem estar nessa escola, esto sendo prejudicados. Essa minoria no deixa os colegas avanarem, atrapalham os professores. Eu estudei em escola pblica e, se hoje estudasse em escola pblica igual a essa, eu tenho certeza que no seria o que sou hoje. Por que a escola pblica de hoje no oferece qualidade de ensino. Para que quer avanar ela no [sic] condies (Professora L).

A Professora L continua seu discurso buscando questionar o direito educao previsto no ECA, o qual, segundo ela, resulta em problemas genricos no ambiente da escola:

Para mim, a escola no para todos. A lei fala que todos tm direito a escola, mas a escola no um lugar para todos, porque o ser humano no igual. Ento, voc v, tem meninos que adoram estar na escola, mas no estudando. Ele gosta da escola se tivesse uma piscina, qualquer tipo de lazer [...]. Ento, essa escola que est aqui, no para todos [...]. Ns, professores, nos desgastamos com aqueles meninos que no querem essa escola. Acho que o Estatuto e a sociedade tem que discutir sobre isso. A famlia deixa o menino aqui e diz: toma conta dele pra mim. a creche. No vem aqui em hora alguma, no te d uma ateno. Os filhos chegam com a pasta vazia, sem nenhum material, nenhum lpis. No que ele no tem, a escola deu a ele no incio do ano, mas ele no quer saber disso. Ele vem para c para merendar, pra se divertir ou porque a me ganhou a bolsa-escola e ele tem que vir. Ou a famlia o obriga, ou o Estado o obriga.

Desse modo, tem-se que, no imaginrio das professoras entrevistadas, o ECA, em suma, resulta num elemento complicador do processo de ensino-aprendizagem, nas palavras da Professora G, coordenadora de uma das escolas participantes do projeto Eca vai escola. Elemento complicador devido compreenso que, certa maneira, as prprias professoras fizeram dele ao utilizarem como critrio de verdade seus prprios valores e crenas morais: a famlia convencional ou estruturada em contraposio a famlia desestruturada de alunos os quais elas so, por lei, obrigadas a atender; o respeito pelo prximo versus a violncia praticada por alunos no interior e fora da escola, alunos que, segundo as professoras, o ECA protegeria; dentre outros.

No entanto, cabe frisar que as professoras, de maneira ambgua, consideram que o Estatuto necessrio, sendo caracterizado por elas como um avano histrico-institucional do pas, mas que, devido situao de pobreza e violncia na qual se vem envolvidas nas escolas, o ECA de pouco adiantaria na soluo dos problemas enfrentados na prtica. Na viso das professoras entrevistadas, o ECA uma lei distante de suas realidades. Acreditam que muitos alunos de origem pobre, que moram nos morros e favelas da cidade, precisam, devido a sua condio de risco pessoal e social, de uma educao mais rspida no intuito de garantir a eles um futuro mais promissor. Mas o Estatuto os superprotegeria e, por isso, para as professoras, os alunos mais indisciplinados, mais carentes, mais violentos, mais cruis estariam fadados sua prpria sorte.

5 RESULTADOS DA PESQUISA: O que as professoras pensam do ECA

A anlise das entrevistas realizadas com as dezessete professoras da rede municipal de ensino de Belo Horizonte, lotadas em trs escolas de regies diferentes da capital, revelou que as mesmas tm uma compreenso difusa do ECA, que pode ser sintetizada como: uma representao positiva do Estatuto, e uma outra representao negativa dele. Ao mesmo tempo em que percebem sua importncia histrica, seu avano enquanto um conjunto de leis que vem promover a defesa dos direitos das crianas e dos adolescentes, as professoras tambm tm uma percepo do ECA como um complicador para a escola, por alguns motivos, mas principalmente por sua pretensa falta de rigor que limitaria as aes mais assertivas dos educadores em relao aos alunos.

Existe a crena generalizada na fala das professoras de que o Estatuto protege demais a criana e o adolescente, fazendo com que eles se tornem pessoas sem limites, ficando mais indisciplinados e violentos. Da o sentimento de impunidade por parte de crianas e adolescentes, assim como de suas famlias, que as professoras tanto reclamam do ECA. Essa falta de responsabilidade da famlia em relao a seus filhos acaba estourando na escola, onde as professoras so obrigadas a lidar com as mais constrangedoras situaes envolvendo seus alunos.

Apesar de reconhecerem que importante preservar os direitos da criana e do adolescente, as professoras entrevistadas, de certa maneira, acusam o ECA de s listar direitos e no deveres. Acreditam que as crianas e os adolescentes precisam ter seus deveres listados tambm, assim como seus direitos encontram-se publicados no Estatuto. Abaixo, algumas representaes do ECA captadas na fala das professoras entrevistadas:

QUDRO 2: Representaes sociais do ECA segundo a fala das professoras entrevistadas.

Representaes positivas

Representaes negativas

Garantia de direitos;

Melhoria de vida;

Punio para quem maltrata ou comete erros em relao as crianas e adolescentes;

Evoluo da sociedade;

Deveria ser mais divulgado na ntegra;

Maravilhoso no papel;

Extremamente importante;

Boa inteno;

Baseado nos Direitos Humanos;

Discurso bonito.

Torna a criana sem limite;

Promove a impunidade;

No aponta deveres da criana e do adolescente;

Atende a interesses especficos;

Angu com caroo;

Provoca inrcia das famlias;

Fora da realidade;

Longe da prtica;

Longe de ser implantado;

Permite m compreenso da questo dos direitos;

No funciona;

Baboseira;

Hipocrisia.

FONTE: ICA / PROEX / PUCMINAS

Em vista dessas representaes ambguas, pode-se notar uma confuso generalizada entre as opinies das professoras entrevistadas. A confuso que, num movimento dialtico, reconhece, mas no compreende ou no aceita as determinaes do ECA.

Dentro do contexto que ora se apresenta, torna-se premente a concepo e realizao de projetos como o ECA vai escola, no sentido de no apenas divulgar as diretrizes do Estatuto, mas tambm de debat-las com as professoras, coordenao e funcionrios para evitar construes de sentidos que sejam historicamente equivocadas e que, por isso, atrapalhe, de fato, a implementao efetiva do ECA nas escolas e na sociedade brasileira em geral.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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VARGAS, E. V. Breve anlise do trabalho desenvolvido junto s crianas pobres no Brasil. Rio de Janeiro, 1990. (relatrio da pesquisa Quanto vale uma criana negra? para o projeto Direitos humanos entre urubus e papagaios)

Professor do Departamento de Cincias Sociais da PUC Minas.

A lista das escolas participantes da pesquisa encontra-se nos arquivos do ICA / PROEX / PUCMINAS.

BRANT, L. M. Notas sobre o menor e a criana na recente legislao brasileira. Rio de Janeiro, [s.ed.], 1989. (Mimeo).