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80 O Instalador Outubro 2016 www.oinstalador.com Este verão assistimos novamente a cená- rios apocalípticos, com a destruição maciça de vastas áreas florestais pelo fogo. Uma tragédia nacional e um desespero parti- cular para quem esteve ameaçado, ficou ferido, desalojado ou assistiu impotente à morte de animais domésticos pelas cha- mas infernais. Arderam sonhos de vidas, patrimónios ecológicos e humanos. Um problema cíclico que o avanço tecnológico não consegue resolver, nem em ocorrên- cia, nem em dimensão, dando a perceber que este flagelo, além de subsistir, tem aumentado nas últimas décadas. Conclui- -se que o problema não tem sido resolvido ou minorado adequadamente. Muitos são os factores que têm contribuído para este facto. Contudo, na base da questão poderá estar o modelo económico vigente, com a sua ânsia de explorar, dominar e rentabili- zar tudo o máximo possível e a curto prazo, sem olhar às consequências ecológicas ou sociais das suas operações. Tal como o eucalipto, que cresce rapidamente porque absorve mais água e nutrientes, esgotando esses preciosos recursos, que são a riqueza de todos. As florestas deixaram de desempenhar o seu papel multidimensional e passaram a ser monoculturas de eucalip- tos, cujos proprietários ou são as indústrias insustentáveis e poluidoras, como as celuloses, ou são indivíduos que possuem o mesmo paradigma insalubre. É que, ao contrário do que alguns interesses insta- lados querem fazer crer, há uma relação direta entre a produção desta espécie e a dimensão dos incêndios florestais. Não é por acaso que os bombeiros australianos, país da origem desta espécie, apelidaram o eucalipto de árvore gasolina e muitos especialista em fogos florestais na Austrália e na Califórnia, EUA, declararam os euca- liptos o seu inimigo público número um. Afinal as celuloses tinham razão quando se referiam ao eucalipto como o petróleo verde! Paralelamente, assistimos a leis que favorecem a produção desta espécie e a Força Aérea foi afastada do combate para deixar surgir uma indústria privada oportu- nista e dispendiosa ligada ao combate dos fogos florestais, cujo único objetivo é o lu- cro e é paga com os dinheiros públicos. No meio desta loucura, observamos fogos em monoculturas privadas de eucaliptos, que A Árvore Gasolina ou a Floresta Autóctone O avançar de uma floresta idiota de eucaliptos Ribeiro Telles Texto_Jorge Moreira [Ambientalista] Fotos_DR e Jorge Moreira Que diabo têm os seres humanos feito ao espalhar uma planta perigosa por todo o mundo David Bowman, ecologista florestal da University of Tasmania, Austrália, relativamente ao eucalipto Opinião AMBIENTE E ENERGIAS RENOVÁVEIS

A árvore gasolina ou a floresta autóctone de Jorge Moreira

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Este verão assistimos novamente a cená-rios apocalípticos, com a destruição maciça de vastas áreas florestais pelo fogo. Uma tragédia nacional e um desespero parti-cular para quem esteve ameaçado, ficou ferido, desalojado ou assistiu impotente à morte de animais domésticos pelas cha-mas infernais. Arderam sonhos de vidas, patrimónios ecológicos e humanos. Um problema cíclico que o avanço tecnológico não consegue resolver, nem em ocorrên-cia, nem em dimensão, dando a perceber que este flagelo, além de subsistir, tem aumentado nas últimas décadas. Conclui--se que o problema não tem sido resolvido ou minorado adequadamente. Muitos são os factores que têm contribuído para este facto. Contudo, na base da questão poderá

estar o modelo económico vigente, com a sua ânsia de explorar, dominar e rentabili-zar tudo o máximo possível e a curto prazo, sem olhar às consequências ecológicas ou sociais das suas operações. Tal como o eucalipto, que cresce rapidamente porque absorve mais água e nutrientes, esgotando esses preciosos recursos, que são a riqueza de todos. As florestas deixaram de desempenhar o seu papel multidimensional e passaram a ser monoculturas de eucalip-tos, cujos proprietários ou são as indústrias insustentáveis e poluidoras, como as celuloses, ou são indivíduos que possuem o mesmo paradigma insalubre. É que, ao contrário do que alguns interesses insta-lados querem fazer crer, há uma relação direta entre a produção desta espécie e a

dimensão dos incêndios florestais. Não é por acaso que os bombeiros australianos, país da origem desta espécie, apelidaram o eucalipto de árvore gasolina e muitos especialista em fogos florestais na Austrália e na Califórnia, EUA, declararam os euca-liptos o seu inimigo público número um. Afinal as celuloses tinham razão quando se referiam ao eucalipto como o petróleo verde! Paralelamente, assistimos a leis que favorecem a produção desta espécie e a Força Aérea foi afastada do combate para deixar surgir uma indústria privada oportu-nista e dispendiosa ligada ao combate dos fogos florestais, cujo único objetivo é o lu-cro e é paga com os dinheiros públicos. No meio desta loucura, observamos fogos em monoculturas privadas de eucaliptos, que

A Árvore Gasolina ou a Floresta Autóctone

O avançar de uma floresta idiota de eucaliptos

Ribeiro Telles

Texto_Jorge Moreira [Ambientalista]Fotos_DR e Jorge Moreira

Que diabo têm os seres humanos feito ao

espalhar uma planta perigosa por todo o mundo

David Bowman,

ecologista florestal da University of Tasmania,

Austrália, relativamente ao eucalipto

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estavam a ser combatidos com o nosso dinheiro. Tratam-se de produções geridas tecnicamente por pessoal qualificado, que lançam novas dúvidas ligadas à formação técnica, à gestão e à produção florestal. Perante o agravamento da problemática das alterações climáticas e a propagação das exóticas e infestantes no nosso terri-tório, o cenário parece muito negro, caso se pretenda perpetuar estas políticas e estes modelos (ou a falta deles) de gestão florestal. Mas vamos por partes.

Durante o mês de agosto tive a oportuni-dade de percorrer efetivamente o país de lés a lés, de Vila Real de Santo António a Valença do Minho. Durante o meu percurso assisti a um pouco de tudo. Locais com alguns incêndios ainda activos, outros já só mostravam a destruição, o sofrimento e a morte. Isto porque não são só os seres humanos que sofrem o flagelo do fogo, mas toda a vida se reduz a cinzas. Espécies endémicas e raras desaparecem, os rios e aquíferos ficam contaminados ou secaram, os solos nus potenciam novas desgraças, a beleza cessa. É verdade que dada a heterogeneidade do território português, será difícil tirar conclusões sim-plistas daquilo que observei. Já se sabia que os matos são o que mais ardem e isso ficou bem patente. Contudo, nos locais arborizados, um aspecto destacava-se: onde existiam só espécies autóctones, os fogos tiveram menor dimensão em área e intensidade. Foram extintos com alguma facilidade, mesmo em zonas com

temperaturas elevadas, ventos fortes e hu-midade baixa, como nos casos do Alentejo e Ribatejo. Foram fogos que não abriram noticiários. Nos locais onde existiam vastas áreas de eucalipto (Eucalyptus globulus) e pinheiro-bravo (Pinus pinaster), o cenário era desolador, sinistro, ameaçador, apo-calíptico. Em espaços onde o eucalipto aparecia par a par com alguma vegetação autóctone, ainda se conseguia ver alguma verdura no meio do cinzento. Quando divulguei estas observações no terreno, iguais a tantos outros testemunhos, fotos e vídeos partilhados na Internet, apareceram logo dois ou três experts a comentarem que não existiam dados científicos que pro-vam essas observações ou que há estudos que indicam não existir uma relação entre o eucalipto e o fogo. Na verdade, alguns dos papers que tive acesso aos quais eles se basearam, trataram dados para mim incompletos e já o demonstrei em vários fóruns nas redes sociais. Isto, para além de sabermos que muitos dos estudos estão comprometidos pelas entidades financia-doras ou empreendedoras. Todavia, não faltam dados científicos que explicam bem as minhas observações realizadas no terre-no. Por exemplo: "Os resultados permitidos classificam a propensão de incêndio de acordo com a seguinte ordem decrescen-te: florestas de pinheiros-bravos, florestas de eucaliptos, florestas de folha larga não especificada, florestas de coníferas não especificadas, montado de sobro, florestas de castanheiros, florestas de azinheiras e florestas de pinheiros-mansos" (Silva et

al, 2009); "O nosso estudo confirmou que as folhosas, tanto em povoamentos puros ou mistos, diminuem o risco de fogo em áreas florestais, quando comparadas com o pinheiro-bravo e o eucalipto" (Marques et al, 2011); "Dentro do contexto florestal, estudos em Portugal sugerem que as flo-restas maduras de folha caduca e florestas mistas têm geralmente um risco de incên-dio baixo em comparação com florestas de pinheiros, plantações de eucalipto ou mista de pinheiro e eucalipto" (Fernandes, 2009; Moreira et al., 2009) in: Moreira et al (2011). O Investigador do Centro de Investigação e de Tecnologias Agroambientais e Bioló-gicas da Universidade de Trás-os Montes e Alto Douro, o Professor Paulo Fernandes, um especialista muito requisitado nesta discussão por parte de alguns defensores da monocultura de eucalipto, acaba por responde-me numa rede social: "É pacífico que as matas caducifólias (e outras) difi-cultam a progressão do fogo...". Também numa publicação sua acompanhada por fotografias intitulada "Bidoeiro, a árvore bombeiro!" Fernandes diz: "O fogo entra no bidoal e normalmente arde assim, por manchas e com chama muito curta, extinguindo-se. É um efeito combinado da quebra de vento e aumento da humidade mas principalmente da folhada, com carga muito baixa e razoavelmente compacta (para uma folhosa) e nesta época já algo decomposta...". Recentemente, Fernandes disse a vários órgãos da comunicação social que para além dos vidoeiros (bidoeiros ou bétulas), os carvalhos e os

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castanheiros estão entre as principais "árvores bombeiras" pelas mesmas razões já mencionadas, acrecentando que "não há ali muito alimento para o fogo e, frequen-temente, os incêndios ou param por si só, extinguindo-se ao entrar nas manchas, ou ardem com pouquíssima intensidade sem causar danos às árvores (...) para zonas com "piores" condições de solo há "sempre" espécies que embora ardam com maior facilidade conseguem recuperar, sendo o caso do sobreiro". Ainda num outro comentário numa rede social, que re-lacionava as áreas ardidas entre espécies, Fernandes diz: "Acredito que a área ardida de carvalhal diminuísse substancialmente com uma ocupação maior. A fragmentação e pouca extensão das manchas actuais propicia que ardam, até porque estão usualmente rodeadas pelo que mais arde (matos) e localizadas nas regiões do país que mais ardem. (...) nota por exemplo que a maior mancha de carvalho, na serra da Nogueira, tem-se mantido incólume e nun-ca ardeu desde que foi plantada a não ser nas orlas". Num estudo publicado em 2010, Fernandes et al conclui que os bosques de folhosas e de resinosas de montanha mo-dificam as características e a severidade do fogo, contribuindo para a redução da área ardida e a resiliência ao fogo. Ao contrário, num artigo de 2010, intitulado "Florestas diferentes, fogos diferentes", O investigador da UTAD diz a respeito do eucalipto: "A enorme representatividade territorial de

tipos de vegetação muito vulneráveis ao fogo — pinhal bravo, eucaliptal e matos — potencia incêndios de grande dimensão cujos impactes ambientais e socioeconó-micos são bem conhecidos. (...) Plantações de pinho e eucalipto têm folhagem rica em compostos facilmente inflamáveis e produzem manta morta e detritos lenhosos de decomposição lenta, o que leva à sua acumulação. Os povoamentos jovens são particularmente vulneráveis, mesmo quando a vegetação arbustiva é pouco expressiva, uma vez que a continuidade vertical existente permite que o fogo se transmita facilmente à copa das árvores. A casca dos eucaliptos, acumulada na base das árvores ou ainda presa ao tronco, é frequentemente projectada em combustão dando origem a focos secundários de incêndio que comprometem a eficácia de qualquer corta-fogo".Assim, a substituição de espécies autóc-tones por monoculturas de eucalipto e pinheiro-bravo, que se tem verificado nas últimas décadas, com especial incidência para o Eucalyptus globulus, têm poten-ciado o problema dos fogos florestais. Tanto a ciência, como a sabedoria popular dizem que os bosques constituídos por carvalhos adultos têm um comportamento bastante diferente perante o fogo do que um eucaliptal. Não se pode negar este facto. Em complemento, a biodiversidade de um bosque autóctone e os serviços ecossistémicos que proporciona são bens

que a economia tradicional não inclui. De igual modo, as externalidades ambientais negativas da monocultura do eucalipto também não estão sendo contabilizadas. São conhecidos os problemas ecológicos, a fraca biodiversidade, o esgotamento dos solos e o impacto nos recursos hídricos que a cultura intensiva acarreta. Por exemplo: "(O eucalipto) tem importantes consequências ecológicas, uma vez que a regeneração cresce rapidamente e pode dominar facilmente as comunidades de plantas nativas em fases iniciais da sucessão ecológica após o abandono das terras. O abandono das plantações ocorre principalmente após o último corte ou após incêndio" (Coord. Joaquim Silva [CEABN InBIO] in: WILDGUM - Uma abordagem multi-escala para estudar a naturalização do eucalipto comum (Eucalyptus globulus Labill) em Portugal); "O Eucalyptus segrega certas substâncias que afetam e impedem o crescimento das plantas que estão ao redor" (Valverde Valdes, Teresa Cano San-tana, Zeno, 2005), com impactes significa-tivos na biodiversidade. “A modificação da floresta autóctone, nomeadamente através da plantação de monoculturas de eucalipto em áreas extensas, tem-se reflectido num empobrecimento dos solos, provocando o confinamento das salamandras às mar-gens dos ribeiros. Foi já demonstrado que as salamandras evitam a manta morta de folhas de eucalipto devido à diminuição de presas e ao efeito tóxico das substâncias

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das suas folhas (Vences, 1993). Este tipo de alteração causa, também, modificações do microhabitat, que se traduzem numa acentuada diminuição da diversidade de macroinvertebrados aquáticos e, conco-mitantemente, num empobrecimento dos recursos alimentares disponíveis" (Lima, 1995). O Conselho de Plantas Invasoras da Califórnia (Cal-IPC) considera o eucalipto um problema de gravidade média, devido à sua rápida disseminação e sua capacidade em fazer deslocar as comunidades vegetais e animais nativas. Em contrapartida, são muitos os estudos realizados na Península Ibérica que mostram a existência de maior biodiversidade das florestas nativas com-parativamente às explorações de eucalipto (e.g., Proença et al, 2010; Calviño-Cancela et al, 2012; Calviño-Cancela et al, 2013; Cruz, 2014; Cruz et al, 2015).

Com a expansão da árvore gasolina nas nossas áreas florestais, os fogos não irão abrandar, especialmente quando se observa a sua presença em espaços onde existiam anteriormente povoamentos de autóctones e, pior do que isso, em terrenos destinados à agricultura. As

consequências serão cada vez maiores, tal como prevê um estudo da NASA. É urgente alterar o rumo. Há que parar de alimentar as monoculturas desta espécie. É preciso ir mais longe e tentar resolver os problemas de forma holística. Valorizar, incentivar, investir, investigar, reinventar atividades económicas ligadas às florestas que sejam verdadeiramente sustentáveis e ricas em biodiversidade. Potenciar economias que já conhecemos, tais como a produção do mel, a pastorícia, a resina, a cortiça, os cogumelos, as espécies aromáticas, as flores, chás e frutos silvestres. Promover o turismo e o desporto sustentável na nature-za, com percursos pedestres de fruição da paisagem e das espécies emblemáticas. Uma economia que sustente uma prática preventiva, especialmente direcionada para a floresta autóctone, rica em biodiversida-de, que proporciona excelentes serviços de ecossistema. É necessário valorizar esses serviços prestados pela natureza. É preciso taxar as externalidades ambientais negativas de certas monoculturas, como a do eucalipto. Há que integrar, que melhorar a nossa relação com as outras formas de vida e com a floresta. Há que olhar para

os bosques não na forma exploratória, dominadora, mas com cuidado e coopera-ção. Afinal, as árvores são seres vivos tão especiais, capazes de comunicarem entre si, ajudam-se mutuamente e passam infor-mação às suas descendentes. Partilham tanto de nós e dão-nos tanto. Uma floresta não é uma monocultura de eucaliptos. É a vida pujante em toda a sua plenitude.Há uma economia mais bela e segura para além da pasta de papel, Saibamos aproveitá-la e potenciá-la. É disto que Portugal precisa. Solidariedade para com a nossa natureza, e uma Fénix, que faça renascer das cinzas uma floresta autóctone, resistente, resiliente e bela. Uma floresta viva, cuidada, rica em diversidade. Que seja ecologicamente redesenhada, para dificultar as ignições, a severidade e a propagação do fogo. Uma floresta que potencie uma economia verdadeiramente verde, capaz de minorar a problemática das alterações climáticas e que seja mais uma das maravilhas de Portugal. Resumi-damente, é preciso apostar mais na pre-venção holística e inteligente. Já agora, que tal criar/requalificar empresas públicas no combate aos fogos, em vez das privadas?