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ANÁLISE / ANALYSIS Controle Social e Políticas de Saúde 1 Social Control over Health Policies Aldaíza Sposati 2 Elza Lobo 3 SPOSATI, A. & LOBO, E. Social Control over Health Policies. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 8 (4): 366-378, oct/dec, 1992. As the democratization of health policies develops, social control over public interests has been of help in providing health movements with prominence, not only by denouncing cases of "negligence and omission" by established services, but also by struggling to create regular, favourable conditions by which to exercise control over services and governmental management of public health policies. In the early 1980s, a remarkable experience occurred in the "Zona Leste" or eastern burrough of the city of São Paulo, consisting of the emergence of Health Councils as a means of popular representation in the control over the state. Through their analysis of these issues, the authors' intent is to proceed to new problems rather than discussing the make-up of that representation. Within the political context in the aftermath of the 1988 Constitution, as we are experiencing a new democratic moment and legislation which (in principle) supports people's participation in health policies and defends social rights, then how is the field of social control to be understood? Is it limited to health services or extended to health policy? How do laws move from elaboration to practice ? The text aims to follow issues which arise as social control pushes current conditions towards change. Keywords: Social Control; Health Rights; Popular Representation; Legal Rights; No Alter 1 O presente trabalho "Controle Social e Políticas de Saúde" —foi apresentado em uma primeira versão reduzida como subsídio à Conferência Estadual de Saúde do Estado de São Paulo. 2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, 05014-001, São Paulo, SP, Brasil. 3 Núcleo de Investigação dos Sistemas Locais de Saúde do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Rua São Antônio, 590/4 o andar, 01314- 000, São Paulo, SP, Brasil. O controle social é, na história de democrati- zação das políticas de saúde, um dos campos que construiu visibilidade aos movimentos de saúde, quer pela denúncia das "ausências e omissões" dos serviços instalados, quer pela luta em construir um espaço regular para o exercício do controle nos serviços e nas buro- cracias da gestão da saúde. Foi uma experiência marcante, no início da década de 80, a de criar os conselhos de saúde enquanto representação popular no controle do Estado. Sem dúvida, pode-se afirmar que esta expe- riência contrapôs democracia participativa e democracia direta, na região leste da cidade de São Paulo, quando o povo ia às urnas votar em seus representantes no conselho. É interessante notar que até hoje é prática do movimento saber, a cada eleição, quantos votos mobilizou para formar os conselhos. A partir da Constituição de 1988 e da consti- tuição do Sistema Único de Saúde, a presença da população deveria ser uma situação posta de saída. Todavia, o processo de democrati- zação não se apresenta do mesmo modo em cada um dos municípios. Permanece a luta pela constituição dos conselhos, pela legitimidade, como da representação popular, pela discussão de sua formação paritária entre população, trabalhadores de saúde e dirigentes.

Controle social e problemas de saude

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ANÁLISE / ANALYSIS

Controle Social e Políticas de Saúde1

Social Control over Health Policies

Aldaíza Sposati2

Elza Lobo 3

SPOSATI, A. & LOBO, E. Social Control over Health Policies. Cad. Saúde Públ., Rio deJaneiro, 8 (4): 366-378, oct/dec, 1992.

As the democratization of health policies develops, social control over public interests has beenof help in providing health movements with prominence, not only by denouncing cases of"negligence and omission" by established services, but also by struggling to create regular,

favourable conditions by which to exercise control over services and governmental managementof public health policies.In the early 1980s, a remarkable experience occurred in the "Zona Leste" or eastern burroughof the city of São Paulo, consisting of the emergence of Health Councils as a means of popularrepresentation in the control over the state.Through their analysis of these issues, the authors' intent is to proceed to new problems ratherthan discussing the make-up of that representation.Within the political context in the aftermath of the 1988 Constitution, as we are experiencing anew democratic moment and legislation which (in principle) supports people's participation inhealth policies and defends social rights, then how is the field of social control to beunderstood? Is it limited to health services or extended to health policy? How do laws movefrom elaboration to practice ?The text aims to follow issues which arise as social control pushes current conditions towardschange.

Keywords: Social Control; Health Rights; Popular Representation; Legal Rights; No Alter

1 O presente trabalho — "Controle Social e Políticas deSaúde" —foi apresentado em uma primeira versãoreduzida como subsídio à Conferência Estadual de Saúdedo Estado de São Paulo.2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. RuaMonte Alegre, 984, 05014-001, São Paulo, SP, Brasil.3 Núcleo de Investigação dos Sistemas Locais de Saúdedo Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde do Estadode São Paulo. Rua São Antônio, 590/4o andar, 01314-000, São Paulo, SP, Brasil.

O controle social é, na história de democrati-zação das políticas de saúde, um dos camposque construiu visibilidade aos movimentos desaúde, quer pela denúncia das "ausências eomissões" dos serviços instalados, quer pelaluta em construir um espaço regular para oexercício do controle nos serviços e nas buro-cracias da gestão da saúde. Foi uma experiênciamarcante, no início da década de 80, a de criar

os conselhos de saúde enquanto representaçãopopular no controle do Estado.

Sem dúvida, pode-se afirmar que esta expe-riência contrapôs democracia participativa edemocracia direta, na região leste da cidade deSão Paulo, quando o povo ia às urnas votar emseus representantes no conselho. É interessantenotar que até hoje é prática do movimentosaber, a cada eleição, quantos votos mobilizoupara formar os conselhos.

A partir da Constituição de 1988 e da consti-tuição do Sistema Único de Saúde, a presençada população já deveria ser uma situação postade saída. Todavia, o processo de democrati-zação não se apresenta do mesmo modo emcada um dos municípios. Permanece a luta pelaconstituição dos conselhos, pela legitimidade,como da representação popular, pela discussãode sua formação paritária entre população,trabalhadores de saúde e dirigentes.

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Não se pretende, nesta reflexão, um balançoda situação atual, no sentido de voltar a discutira composição da representação. Busca-se avan-çar para novos problemas.

O primeiro problema seria quanto à con-cepção sobre a incidência do controle social: serestrita aos serviços de saúde ou ampliada àpolítica de saúde. O que é entendido comocampo do controle social?

Na conjuntura pós-Constituição de 1988,vivemos um novo momento democrático, isto é,hoje, as leis, a princípio, amparam a partici-pação da população nas políticas de saúde esão, a princípio, defensoras dos direitos sociais.

Todavia temos um novo problema, que é ode fazer com que as leis deixem de ser apenasinstrumentos formais, passando à aplicação dasmesmas. Esta conjuntura supõe uma novainstrumentação das lutas democráticas e popula-res, no sentido de se prepararem para a apli-cação da lei.

Por terceiro, busca-se mapear questões quese põem quando o controle social se orientapara constituir uma pressão pela mudança/alte-ração da situação. Em outras palavras, indicam--se as dificuldades, frente ao estilo políticobrasileiro de exercer a autoridade e fazer políti-ca, em se criar um espaço democrático.

A intenção é, portanto, de criar condiçõespara a leitura crítica do controle social, contra-pondo a sua versão burocrática a um novopatamar político, como espaço de exercício doprotagonismo de sujeitos democráticos popula-res.

SAÚDE COMO DIREITO ECOMO SERVIÇO

O direito à saúde, defendido na ReformaSanitária, traz, intrinsecamente à sua consti-tuição, o apoio, a participação e a pressão dossetores populares.

Em outras palavras, o direito social de tergarantida a condição de saúde de uma popu-lação supõe o próprio movimento dessa popu-lação em conseguir o reconhecimento e aefetivação desse direito.

Num tom provocativo, cabe perguntar se estaafirmação não contém, em si, uma perversidade,uma vez que exige do sujeito/usuário e, por-

tanto, detentor da necessidade, um duplo ônus:além de possuir a necessidade, deve gastar umsobreesforço em criar a solução para atendê-la.No limite do raciocínio da sociedade de livre-mercado, onde opera o princípio da auto-regu-lação "fornecedor-consumidor", esta exigênciado consumidor seria a demonstração da incom-petência da "pesquisa de mercado" em estabele-cer as características do produto "aos moldes dofreguês".

A questão, porém, é muito mais complexapois, para funcionar na plena lógica de merca-do, o "produto saúde" deveria ser uma necessi-dade de consumo individual, cuja satisfaçãoseria uma questão de gosto e de estilo, e nãosó de necessidade. Porém, saúde, que é umaquestão de vida individual e coletiva, exige umpadrão público e social. Isto supõe entendê-lanão como um produto a ser consumido, mas,sobretudo, delinear o projeto que se quercomo padrão de qualidade de vida de umasociedade e, nela, de cada um dos cidadãos.

Por mais que queiram transmutar a saúde emprodutos consumíveis — sejam medicamentose/ou tratamentos — ou em mercadorias acompor o imaginário das pessoas, transforman-do-a em símbolos de consumo, ela é, mesmoque virtualmente, mais do que isso, quer doponto de vista individual, quer do ponto devista coletivo.

Saúde é mais do que "uma coisa"; ela é umvalor e uma perspectiva: "ter saúde é o melhorremédio", segundo o dito popular. Saúde édireito.

O começo da discussão sobre saúde e contro-le social necessita tomar distância da armadilha"saúde-consumo", onde o controle é verificar sea mercadoria está adequada conforme o rótulo.

Esta perspectiva supõe "naturalizar" a doençae as carências como coisas que devem aconte-cer, onde é "normal" ficar doente e consumirum "comprimido de saúde".

O que se quer dizer é que direito à saúde émais do que direito ao consumo de saúde.Portanto, direito à saúde é mais do que demo-cratização do consumo da assistência médica,embora esta lhe seja fundamental. Saúde é maisdo que "a cesta de serviços", mesmo que públi-cos, ainda que estes sejam básicos à vida dapopulação.

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Saúde, enquanto tal, não é uma necessidadecujos contornos de sua satisfação estão plena-mente dados de saída.

"Á saúde define-se no contexto histórico dedeterminada sociedade e num dado momento deseu desenvolvimento, devendo ser conquistadapela população em suas lutas cotidianas".(Brasil, 1986)

O "usuário/consumidor" é, ao mesmo tempo,um sujeito/democrático virtual na construçãoda política de saúde, e não um carente a seratendido por uma instituição transformada em"ofertante de serviços", negadora, em suaprática, dos direitos dos cidadãos.

"Instituir a eqüidade na saúde não se limita auma mera extensão e distribuição mais adequa-da dos serviços, mas,igualmente, à sua confor-mação em um direito". (Cohn, 1992)

No contexto da "Saúde-Projeto-Sociedade", anoção de direito é conquista social. O desafiofica em trabalhar a questão de saúde comodireito e como serviço.

Isto não significa tomar estas perspectivascomo excludentes. Serviço de saúde é umdireito do cidadão, embora saúde, como direito,seja mais do que o serviço de saúde.

É de se ter clara a situação de profundadesigualdade social brasileira e que nela aausência das atenções sociais é fator de empo-brecimento da população. Estamos longe deuma situação de igualdade de acesso a todos, emuito mais longe da eqüidade de resultados dosserviços. O que vivemos é uma situação de altaseletividade e exclusão social.

Portanto, se, de um lado, não se pode afirmarque o horizonte maior da saúde, como direito,são os serviços de saúde, não se pode, porém,pôr de lado tais serviços como constituintes,também, dos direitos dos cidadãos.

Longe de uma situação de abundância e depleno atendimento em serviços de saúde, a qualpermitiria a "cidadania de vigilância", onde oscidadãos vigiam o governo para garantir que osserviços funcionem, Valla e Siqueira (1989)dizem que temos uma "cidadania de escassez"que põe para a população o risco de sobreviver.

O que é mais interessante, porém, é que esteconsumidor (individual e/ou coletivo) sofre a

lógica de mercado às avessas: paga primeiropelos impostos, mas não tem o produto, só odireito virtual de atenção e a necessidade efeti-va para satisfazer.

Portanto, a participação popular na política enos serviços de saúde começa, na condiçãovirtual de usuário/cidadão, em participar de umaidéia-projeto para atender a uma ou mais neces-sidades, na medida em que a necessidade emsaúde, como as demais necessidades humanas,é historicamente determinada. O "fornecedor"tem que saber o que passa no plano simbólico"da freguesia" e, nele, qual é a representação dasaúde-doença e suas demandas por serviços desaúde.

SAÚDE E DISPOSITIVOSCONSTITUCIONAIS

O arcabouço jurídico-legal que institui odireito à saúde em nosso país, composto dapromulgação da nova Constituição, da Consti-tuição Estadual, da Lei Orgânica de cada muni-cípio e da Lei No 8080 (Brasil, 1990) e da LeiNo 8142, demonstra um avanço no sentido deuma nova concepção da saúde, compreendidacomo um produto social e histórico condiciona-do pelas circunstâncias de vida e de trabalhodas pessoas.

Convém, aqui, abrir um breve parêntese sobrea Lei no 8142, de 28 de dezembro de 1990, queestabelece as instâncias colegiadas e participati-vas no campo da saúde: A Conferência deSaúde, que deve se reunir a cada quatro anos,a nível nacional, para avaliar e propor as reade-quações na política de saúde, e cuja composiçãoenvolve diferentes representações sociais; oConselho de Saúde, como órgão gestor decaráter permanente, com representação dosvários segmentos envolvidos na produção,gestão e usufruto da saúde; o Conass — Con-selho Nacional de Secretarias de Saúde; e oConasems — Conselho Nacional de SecretariasMunicipais de Saúde.

A Constituição Estadual do Estado de SãoPaulo (São Paulo, 1989), no artigo 221, afirmaa presença popular nos conselhos estaduais emunicipais de saúde.

No âmbito de toda a legislação, estão conti-dos dispositivos relacionados à vigilância em

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saúde, à saúde do trabalhador, à descentrali-zação do comando do sistema, ao nível doterritório delimitado, e à participação popular esindical na gestão do sistema, em seus váriosníveis.

Apesar de não refletir o conjunto das reivindi-cações dos movimentos sociais organizados, aatual legislação sanitária está além do que sepratica hoje no sistema de saúde. O legal estámais avançado do que o real, neste aspectoespecífico.

Em muitos municípios, trava-se a luta pelaformação do Conselho Municipal de Saúde e,nela, o confronto com prefeitos que designam a"representação popular" de acordo com o seuinteresse. O conceito de paridade é aindapalco de discussões enquanto deva preservar os,no mínimo, 50% de presença popular.

Mesmo reconhecendo que há um avanço, éinegável que há um grande espaço a ocupar, háum vasto campo de ação muito pouco explora-do. Particularmente no campo da vigilância emsaúde, que engloba as diversas vigilâncias(sanitária, epidemiológica e do trabalhador), háuma defasagem entre o que já está estabelecidocomo possibilidade de ação e o que se concreti-za ao nível de funcionamento do conjunto dosistema de saúde.

Grande parte das demandas locais pela açãodas unidades básicas é quanto à vigilânciasanitária, que termina por se transformar emconflito de vizinhos, onde o conselho de saúdese vê na situação de júri popular, ou, então, oassunto vai parar na delegacia do bairro.

A Constituição de 08 de outubro de 1988(Brasil, 1988), que já tem três anos, não foiainda regulamentada. Assim, boa parte dos seusartigos não produz efeito imediato na vida dosbrasileiros. Pior ainda é que, antes mesmo deser experimentada, a Constituição é acusada,por alguns, de inflacionaria. Cúmplice deconstruir a utopia de um horizonte melhor paraos brasileiros, hoje a Constituição está sendocolocada no banco dos réus, sob a acusação doGoverno de que ela "entrava o desenvolvimentonacional".

Apesar destas questões e mesmo sem umaregulamentação específica para a saúde, aConstituição conta com dispositivos que jápodem e devem ser acionados nas lutas desaúde, bem como em outras lutas de cidadania.

Os instrumentos constitucionais dos quais apopulação pode se valer se dão nas três esferasde poder: o Legislativo, o Executivo e o Judi-ciário.

PODER LEGISLATIVO

Os representantes eleitos podem propor projetosde lei no legislativo (Artigo 61, Parágrafo 2o).

Quem os elegeu pode:

• Participar de audiências para debatê-las (Arti-go 58, parágrafo 2o, inciso II).

• Referendar uma lei ou manifestar, em plebis-cito, sobre assuntos considerados relevantespelo Congresso Nacional (Artigo 49, XV).

• Quando organizadas em confederação sindi-cal, entidades de classe ou partido políticopodem pedir a retirada de uma lei que contra-rie o que ficou estabelecido na Constituição(Artigo 103, VIII e IX).

PODER EXECUTIVO

No chamado Estado de Direito, a AdministraçãoPública está vinculada às estritas previsõeslegais. Escrava da lei, pode se supor que o povocomanda a Administração.

• Possibilidades de participação direta noExecutivo, através de órgãos populares comfunções de direção administrativa, como nocaso da saúde (Artigo 198, III).

• Legitima a capacidade do cidadão, dos parti-dos políticos, das associações e dos sindicatospara, fiscalizando a contabilidade, os financia-mentos, o orçamento das entidades adminis-trativas, denunciar irregularidades aos Tribu-nais de Contas (Artigo 74, parágrafo 2o).

• Para não deixar dúvida sobre a obrigaçãoconstitucional do encarregado da Adminis-tração Pública, define como crime de respon-sabilidade do Presidente da República os atosque atentem contra o "exercício dos direitospolíticos, individuais e sociais" (Artigo 85, III).

PODER JUDICIÁRIO

Mandado de injunção

• Qualquer pessoa pode pedir ao Juiz para quefaça valer o direito criado pelo legislador enão aplicado pelo Administrador (Artigo 5o,LXXI).

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Mandado de Segurança

Impetrado pelo indivíduo ofendido ou pelopartido político, organização sindical, entidadede classe ou associação na defesa de seusmembros ou associados (Artigo 5o, LXIX eLXX).

Habeas data

Garantir ao indivíduo o acesso à informaçãoe sua veracidade.

Dentre as poucas leis que foram produzidas,regulamentadoras da Constituição, está o Códi-go de Defesa do Consumidor — o CDC.

Todavia, poucos utilizam o CDC, embora eleestabeleça normas de ordem pública e de inte-resse social. Portanto, suas regras prevalecemsobre a vontade das partes. A saúde é tratadacomo prioridade no CDC, quer na perspectivade relações de consumo, quer na vigilânciasanitária (Lazzarini, 1991).

O Código da Defesa do Consumidor é uminstrumento que visa garantir as efetivas pre-caução e reparação de danos patrimoniais emorais, no plano individual, coletivo ou difuso.

Nesta perspectiva, defende a saúde comoproteção à vida e segurança contra os riscosprovocados por práticas no fornecimento deprodutos considerados perigosos ou nocivos.

Com isto, ele possibilita:

Pelo Artigo 4o — quanto às relações de consu-mo

- a abrangência do conceito de fornecedorsignifica que qualquer vício (defeito) de quali-dade, segurança, quantidade ou inadequação deum produto ou serviço ofertado por um forne-cedor público ou privado está sob a mira doCDC;- racionalização e melhoria dos serviços públicos"adequada e eficaz prestação dos serviços públi-cos";- assegura como direito do consumidor o acessoaos órgãos judiciários e administrativos, atravésda Curadoria de Garantia dos Direitos Cons-titucionais;- cria uma série de dispositivos para facilitaresse acesso, entre os quais a facilitação dos seusdireitos com a inversão do ônus da prova, a seufavor.

Pelo Artigo 2o — quanto à qualidade do pro-duto

- os órgãos públicos, por si ou por suas empre-sas, concessionárias,permissionárias ou sobqualquer outra forma de empreendimento, sãoobrigados a fornecer serviços adequados, efi-cientes, seguros e, quanto aos essenciais, contí-nuos;- nos casos de descumprimento, total ou par-cial, das obrigações referidas neste artigo, serãoas pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las ereparar os danos causados;- os consumidores, através de suas associações,têm legitimidade para representar os direitosdos consumidores perante o poder judiciário.Devem, para tanto, estar constituídos há pelomenos um ano;- nas ações coletivas, não haverá, o adiantamen-to de custas, emolumentos, honorários periciaise quaisquer outras despesas, nem condenaçãoda associação autora, salvo comprovada má-féem honorários de advogados, custas e despesasprocessuais. Desta forma, fica facilitado o acessoà Justiça para as associações.

Pelo Artigo 10o, Parágrafo 3o — quanto àsações de vigilância sanitária

- obrigação de informar a população: "sempreque tiverem conhecimento da periculosidade deprodutos ou serviços à saúde ou segurança dosconsumidores, a União, os Estados, o DistritoFederal e os Municípios deverão informá-los arespeito."

As leis são instrumentos de luta e não sódispositivos formais. Temos que dominá-laspara podermos ter mais munição na "bata-lha da saúde".

A sociedade brasileira decidiu assumir seupróprio governo quando elaborou a Constituiçãode 1988. Assistiu-se, então, pela primeira vezna história do Parlamento Nacional, à partici-pação das organizações sociais na elaboraçãodas normas fundamentais do Estado.

A tomada da responsabilidade de organizar edirigir sua vida em sociedade revela-se noartigo que inaugura a Constituição: é ao povoque pertence todo o poder. É ele quem deveexercitá-lo. Para tanto, pode ou eleger represen-tantes ou agir em nome próprio. E as matériasque devem fazer parte de qualquer constituiçãoque objetive reger uma sociedade no final do

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século XX foram tratadas com essa diretriz.Assim, tanto a organização do governo como ocontrole do poder econômico e a garantia dosdireitos das pessoas, consideradas individual-mente ou na coletividade, permitem, na ex-pressão constitucional, a atuação imediata dopovo, fonte de todo o poder.

Diversos mecanismos foram indicados paraprovocar a participação popular na gestão doBrasil. Uma destas vias, mais tradicional, são osmecanismos formais de democracia represen-tativa, isto é, através dos representantes parla-mentares — vereadores, deputados e senadores—, uma vez que a Constituição ampliou opoder do Legislativo face ao Executivo.

A segunda via, na qual a área de saúde teveforte contribuição pela experiência, é a dademocracia participativa e democracia dire-ta, através da presença de órgãos popularesjunto ao Executivo, operando o controle e afiscalização das ações do Governo, tarefa estaque é estendida a sindicatos, partidos e demaisorganismos sociais.

A terceira via, através do Judiciário, possibili-ta, a princípio, que qualquer pessoa faça valero direito criado pela legislação e não aplicadopela administração.

A presença da participação popular direta-mente no Executivo tem levado, inclusive, àconstrução da concepção de que o quartopoder é o poder popular na ação de Governoe de Gestão.

Sem dúvida, a Constituição amarrou a consa-gração dos direitos ao que se pode denominar''burocracia jurídica e do Judiciário". Todavia,este segmento do Estado não passou ainda poruma "reforma" capaz de pensá-lo e operá-lonum ritmo compatível com o seu papel assegu-rador da democracia. Isto não deve, porém,intimidar a sociedade. Pelo contrário, é colocan-do-se de frente a esta instância de poder queconseguiremos alterá-la, vale dizer, desburocra-tizá-la em defesa da democracia.

Saúde é direito de todos na norma constitu-cional, todavia não tenha sido, ainda, direitoreclamado no tribunal: direito que não entra najustiça é direito simbólico, e não direito de fato.

O Governo não está aprovando as leis deregulamentação da Constituição. Portanto, ocontrole social na saúde, como direito, temcomo primeiro ponto de pauta a própria regula-

mentação da Constituição quanto ao direito àsaúde.

Isto significa entrar em rota de colisão com oestilo tradicional de fazer política no Brasil,onde as decisões não são tomadas na esferapública, ou onde não ocorre uma "regulaçãosocial pública".

No Brasil, o estilo político tradicional é deresolver as situações caso a caso e, de preferên-cia, no interior dos gabinetes, e não de formaclara, global, transparente e pública. Assim, aefetiva universalização da saúde e, nela, aeqüidade de resultados são alguns dos grandesdesafios que supõe muita luta democrática dasociedade.

Embora o discurso constitucional ecoe na vozde governantes e de dirigentes públicos e ex-presse, sem dúvida, o avanço de uma vontadepolítica, esta vontade política não-regulamenta-da se transveste em "vontade de políticos", ondecada caso é um caso. Na ausência de lei federalregulamentadora do direito à saúde, ocorre oque Oliveira (1990) chama de "regulação tran-cada", onde existe, simultaneamente, a ausênciade regras estáveis e a ausência de direitos.

Cabe aqui uma rápida indicação — já quenão é área de nossa especialidade profissional— quanto à superação da concepção política dedireito, na direção de construção do direitocoletivo capaz, inclusive, de inaugurar a di-mensão coletiva da cidadania. Seriam os direi-tos de grupos sociais, o direito comunitáriogerando a defesa da responsabilidade socialpelas condições de vida construídas para apopulação. A exemplo, uma auditoria da dívidaexterna brasileira poderia culpabilizar responsa-bilidades? De quem?

A ausência de uma explícita regulação nadireção da universalidade do direito — e nãomera isonomia que não capta a heterogeneidadedo real — faz com que a política do favor, daclientela, prevaleça à política do direito, ou, emoutras palavras, com que não se tenha certezaou garantias prévias; tudo vai depender dointeresse de quem vai atender, não há padrõesantecipados. Quando se consegue entrar, não sesabe em que condições de atendimento se vaisair.

Mas não se trata só de "vigiar o serviço", poiso trato do resultado é negócio a ser tratadoantes de começar o serviço: quem não diz o que

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quer de começo acaba recebendo o que nãoquer ao final.

Como depende do interesse e do estilo degovernar de quem está no governo e, semdúvida, da tecnoburocracia, o avanço políticoda política de saúde, bem como das demaispolíticas sociais, é uma "coisa que vai e vem",não tem garantias de continuidade.

Neste quadro flutuante, o controle socialencontra um campo quase ilimitado de ação.

No estilo brasileiro pouco democrático deconstrução das políticas e decisões, a regulaçãodo Estado é feita sem a esfera pública, istotanto nas políticas sociais como nas econômi-cas. A ausência da esfera pública significa autilização do fundo público, do dinheiro públi-co, de forma casuística — sem regras gerais,sem um projeto transparente e sem a presençados interesses divergentes — ao serem toma-das as decisões.

Em outras palavras, as decisões dos dirigentespúblicos — incluindo os técnicos — são toma-das para atender aos interesses dos que têmmais influência, na maioria das vezes favore-cendo os interesses de quem está no poder.

As decisões se dão na base de "conchavo",convocando apenas diretamente o interessado,como diz Francisco de Oliveira: "é a regulaçãoad hoc, que opera num vazio de alteridade".Isto é, sem a presença do outro, ou dos outrosinteresses e interessados (Oliveira, 1990).

Se o assunto é decidido em petit comité entreos mesmos, como pode ocorrer a vigilância docontrole social? Nesta situação não-transparente,o que acontece é a denúncia da exclusão, donão estar presente, do não ser chamado; é adenúncia do uso dos recursos para favoreceralguns.

A democracia brasileira já permite, a nívellegal, o direito pelo menos da reclamaçãopública, embora, em algumas cidades, comoCanapí, "quem fala leva tiro". A Constituiçãogarante estes direitos. A questão agora é coloca-los em prática.

A cultura política brasileira ainda convivecom o fenômeno do coronelismo, que sujeita apopulação ao poder dos proprietários, donos dapolítica local. Sob coação e medo, só é dito oque se quer ouvir, é a anulação da vontade desi. É a herança patrimonialista.

A barbárie antidemocrática também se trans-

veste de populismo, onde direitos se transfor-mam em doações e favores. Em uma cargacultural paternalista, as ações são bondades dosgovernantes ou exercício de clientelismo. Nessasituação, instaura-se uma espécie de negócio, detroca, entre o eleitor (de fato ou potencial) e orepresentante político, que busca salientar ocaráter individual da conquista. É uma cumpli-cidade onde "eu lhe atendo porque você é umdos meus".

Privatizado o Estado nos recursos, no fundopúblico e na política, como se dão a presençapopular e o controle social?

SAÚDE, REPRESENTAÇÃO POPULAR ECONTROLE SOCIAL

Estas rememorações da política brasileirapermitem colocar a discussão do controle socialnão em um patamar burocrático, mas sim emum patamar político.

Não se trata de "vigiar uma burocracia", aindaque, imediatamente, a relação seja a do usuáriocom o hospital, com a unidade básica, com afábrica, com uma diretoria. O que está emquestão é criar uma nova cultura política/demo-crática que, ao democratizar as decisões, tragaa alteridade.

Este conceito de alteridade, ou da presença doalter — o outro, emprestado da psicologia —quer marcar a distinção das situações ondeestão presentes sempre os mesmos. Um e outrosão sujeitos, portanto, protagonistas de decisõese de ações. O que se quer marcar é a presençade um sujeito que se contrapõe, que tem forçae presença para pressionar e ter protagonismo,isto é, ser sujeito, e não sujeitado. Não se tratade simplesmente mais um, mas da presença deum pólo de representação que tem capacidade,pela sua posição histórica e social, de se contra-por àqueles que detêm o poder institucional. E,mais do que um adjetivo, como representante"popular" ou uma "nova" representação, teruma inserção substantiva na construção coletivado direito à saúde.

O conceito de alteridade, pelo seu caráter-substantivo, permite o significado da oposiçãoem presença. Resta indagar como tomar partee partido nesse processo de construção dodireito à saúde.

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A organização da representação popular emconselhos é, sem dúvida, um avanço, mas umavanço face ao autoritarismo do passado. Énecessário estender o poder da representaçãopopular à construção e gestão da política desaúde.

A presença popular não é "estilo populista deesquerda", ou ideário de sanitaristas ou deassistentes sociais "que adoram uma reu-niãozinha". É direito de tornar o Estadoefetivamente coisa pública. É desprivatizarinteresses. É introduzir "cenas de negociaçãoexplícitas".

Todavia, a alteridade não é igual à presençafísica das pessoas, dos representantes. Estes têmque ter a capacidade de influir, de se contrapor,o que significa ter informações, ter opinião, naperspectiva da defesa de interesses coletivos.

Em outros termos, as representações têm quedominar as condições, os instrumentos, paraserem de fato protagonistas, sujeitos da ação, enão meros complementos.

Um dos efeitos nocivos da democracia parti-cipativa vivida na Nova República foi a doençado partipacionismo, que terminou transforman-do o "povo" em coisa que se põe na reunião, naassembléia, etc. O "povo" virou munição paraos dirigentes conseguirem verbas nas lutas deorçamento; o "povo" é a moeda para algunsganharem força. Em outras palavras, o "povo"vira uma presença que preenche espaços, masque é congelada em sua capacidade de autoriahistórica.

Sem dúvida, ainda necessitamos de muitosmomentos de presença de massa para podermostocar a sensibilidade das pessoas. A exposiçãopública e explícita da exclusão faz-se necessáriaface à trivialização da questão social no Brasil,embora hoje a sociedade-espetáculo já exijamanifestações mais elaboradas, como a dosbancários, que, uniformizados ensaiaram umapartida de futebol durante a sua greve. Ou a dosecologistas, que, em Angra dos Reis, criaramcenas de acidentes automobilísticos como formade protesto.

O que se quer salientar é a compreensão dapresença popular na política de saúde, na con-dição de uma exercício de democracia direta. Ocontrole social é, a princípio, uma forma deinterlocução regulada e institucionalizada que já

tem um considerável grau de aceitação delegitimidade.

As novas questões se colocam, portanto, emcomo se dá esse controle ou em quanto ele setem tornado um efetivo exercício democrático.Não basta indagar se o controle social melhoraos serviços de saúde.

Esta maneira de colocar a questão transformaa relação social que se estabelece entre asrepresentações do Estado e da sociedade civil,como espaço de controle social, em um ajustefuncional e burocrático. Talvez uma perguntamelhor fosse: qual o grau de apropriação popu-lar das políticas e ações de saúde a partir docontrole social?

É interessante, por exemplo, darmo-nos contado domínio da política de saúde por algunsantigos militantes dos movimentos de saúde.Seguramente, muitos são interlocutores bemmais capacitados do que vários dirigentes.

O espaço do controle social, ainda que institu-cionalizado, não é meramente administrativo; éum espaço político que põe em cena interes-ses, imaginários, representações. Este espaçoé uma situação de partida, e não de chegada.

É neste contexto que se entende que, a prin-cípio, o exercício do controle social é espaço decriação de uma cultura política democrática.Todavia, esta intenção, ou "idéia perspectiva",se defronta não só com a cultura elitista eburocrática dos "animais institucionais", mastambém com a tradicional cultura casuística etutelar, que busca reduzir cada situação a umcaso particular.

O conceito, que se levantava há pouco, dealteridade, enquanto capacidade de exercíciodo protagonismo na defesa de interesses que secontrapõem ao estabelecido, passa a ser útilmais para mostrar a sua negação do que a suaafirmação em nossa realidade.

Controle Social e a Alteridade Negada

O controle social, como uma operação quími-ca que mistura vontades e interesses, vai apre-sentar resultados dos mais explosivos aos maisinsossos.

A alteridade cooptada é um deles e ocorreem dois sentidos: primeiro pela fragilidade darepresentação que não possui informação e

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capacidade argumentativa, e, portanto, poucoopina; segundo, pela prática da cumplicidade,que ao incluir o interesse restrito e imediato dosrepresentantes populares, afasta-os da luta pelaatenção mais ampla dos representados. Estaquestão abre a necessidade de se instalar umapolítica de informação que não seja meratransmissora, mas polemizadora de questões,equivale dizer, capaz de problematizar, argu-mentar e formar opinião.

A alteridade subalternizada, onde a relaçãoé de deferência de quem tem o poder pela"visita que chega". O espaço não é do alter,mas dos "donos do poder". O grande risco é ainfantilização, tratando os representantes popu-lares como crianças do pré-primário. Reduzem--se os assuntos, é retirada a sua complexidade,desproblematizam-se as questões, pois " o povonão iria entender". Na verdade, é a reiteraçãoda cultura elitista, onde o "povo" é visto comoignorante, digno de comiseração. É claro queisto não significa o domínio popular da lingua-gem técnica dos "entendidos". Supõe estaperspectiva a decodificação dos temas em ummodo de falar que não provoque o ocultamentodas questões. Enfim, ter um programa quetraduza para todos entenderem.

A alteridade tutelada, uma variante dasubalternidade. Esta forma é, em geral, exercidapela tecnoburocracia. Muitos segmentos técni-cos que se entendem identificados com osinteresses populares terminam por ocupar oespaço da interlocução para si, criando umvazio de alteridade popular por "advogar acausa" e tomar o lugar do "alter popular".Francisco de Oliveira (1990) salienta que ossegmentos médios, através de suas organizaçõesou de ocupação de espaços nas organizaçõessindicais e sociais, tendem a se transformar no"superego", ou em um falso alter, do Estado,transformando a oposição menos ideológica emais programática. Nesta redução burocrática,a vigilância é empobrecida para o controle do"cumprimento de medidas mensuradas pelometro da competência técnica dos agentestécnicos da não-esfera pública".

Estes estilos de relação acabam por consagraruma democracia conservadora onde os "álteres"ficam numa condição de "quase-sujeitos políti-cos" e não alteram a forma de "regulaçãotruncada", ou caso a caso. Aumenta o número

dos que se sentam à mesa, mas ainda nãorepercute aquilo que se discute à mesa para osrepresentados.

Alguns dirigentes consideram ofensivas asreuniões de portas abertas, gravadas, compresença da imprensa, etc. O estilo Juruna,motivo de múltiplas piadas, é, na verdade, atentativa de proteção ao conchavo, na perspecti-va da direção da regulação caminhar para aesfera pública.

A direção de "democracia avançada", nocampo do controle social, é, portanto, a intro-dução de mecanismos, estilos e relações querompam com a cultura casuística.

Por sua vez, esta ruptura toca na questão docompromisso com o decidido, como também dagarantia de continuidade das decisões. Isto põedois problemas: a institucionalidade e a com-plexidade das questões.

Saúde e Novas Exigências para oControle Social

A luta dos movimentos de saúde, no princípiodos anos 80, marcava a discussão da claraautonomia popular dos conselhos de saúdefrente à organização estatal. A questão doreconhecimento do movimento popular comoum interlocutor legítimo, devidamente identifi-cado e reconhecido, exigia a presença de ummédico, do chefe, nas reuniões do conselho. Erabuscado um vínculo na burocracia do Estadoque, todavia, não subordinasse a representaçãopopular e a distinguisse dos organismos trans-classistas, como clubes de serviços, liderançastradicionais instituídas, etc.

Conquistado o patamar de interlocutor privile-giado de saúde, o movimento social teve me-lhor caracterizada a sua autonomia. Todavia, oprocesso decisório interno dos organismos doEstado, das burocracias de saúde, introduziuoutras questões, como a democracia interna e aparticipação de funcionários nas decisões sobrea gestão de saúde.

A questão do envolvimento dos trabalhadoresde saúde evidentemente traz outros elementos,como, o interesse das corporações, o ponto devista de quem opera os serviços de saúde, e nãosó o de quem os dirige. É fato, também, que aprodução de serviços de saúde, na perspectivademocrática e de consagração de direitos, passa

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não só pela cultura política autoritária, tutelar eclientelista de dirigentes, mas dos própriostrabalhadores de saúde.

Não basta o avanço virtual da norma emconsiderar a saúde como direito. A cabeça, omodo de pensar, as representações, o imaginá-rio dos trabalhadores de saúde — estes são osque dão forma a tais direitos à população aoatendê-la no balcão, na consulta ou na portaria.

Como prefigurando um "Estado paralelo", éna dinâmica do funcionamento dos serviçosque, concretamente, a população vive a relaçãogoverno-população e constrói o seu conceito dedireito — ou não — à saúde. O direito não serealiza de imediato. A representação do traba-lhador da saúde e de seus interesses é umamediação que circula na realização concreta dodireito.

Portanto, a forma de regularização e denormalização da presença popular na gestão desaúde indicou o caminho tripartite, envolvendoos trabalhadores de saúde, os dirigentes e arepresentação popular.

Se, no começo da década de 80, as represen-tações dos movimentos lutavam pelo seu reco-nhecimento como interlocutores das necessida-des populares, ao final da mesma esta luta foilegitimada e "normalizada". Como tal, não émais inusitada, ou não é uma presença clandes-tina devido à adesão deste ou daquele chefemais progressista ou mais democrático.

Todavia, a indagação é se esta legitimidadedeve ser legalizada e institucionalizada e comotrabalhar as questões decorrentes de uma possí-vel institucionalização.

Uma questão se refere à relação instituído--instituinte. O movimento social não deve setransformar em uma "personalidade jurídica",sob pena de reduzir sua particularidade e suacapacidade de interlocução a mais uma das"entidades ou organizações sociais". É própriodo movimento a sua capacidade instituinte.

Todavia, o Conselho de Saúde, que não é,nem pode ser, o movimento, ainda que devacom ele manter uma relação orgânica, necessitaser institucionalizado a fim de constituir "umaregularidade" no fluxo decisório da instituição.Em outras palavras, necessita constituir umsujeito coletivo regular ou contínuo, com dele-gação de autoridade para poder influir na gestão

e produção das políticas de saúde.Esta situação de regularidade traz mudanças

nas relações, pois o Conselho, em ação, deveser a própria construção do espaço democrático,do espaço de influência.

O funcionário, que, às vezes, era um "interlo-cutor clandestino", virou "interlocutor oficial".Podemos dizer que o Conselho de Saúde, queera oposição, virou situação. O grande risconesta nova institucionalidade é o de se transfor-mar em mais uma burocracia.

Outra questão da "prova de institucionalidade"poderia ser simplificada destacando-se o seucaráter adjetivo ou substantivo. Em outraspalavras, o que se põe em questão é a manipu-lação dos dirigentes em fazer do "espaço deconstrução democrático palco de jogos de cenaspopulistas", e não de efetivos espaços de in-fluência democrática.

Não basta criar conselhos, comissões, comi-tês; é necessário estabelecer a forma pela qualestes influenciam as decisões institucionais.

Isto significa dizer que o controle social, paraser exercido de fato, precisa não só de infor-mações, mas de regularidades organizacio-nais.

Através destas regularidades organizacio-nais, pretende-se colocar em questão o grau dedemocratização interno das organizações desaúde, que demarca o fluxo do processo decisó-rio e o grau de influência de cada instância ouunidade de organização na gestão institucional.Os momentos de reunião dos conselhos nãopodem ser simples conversas que não penetrama instituição. É necessário ter claro o canal, oucanais, pelo qual ocorre a interferência nadinâmica da instituição, seja um hospital, umaunidade básica, uma diretoria, uma empresa,etc.

Para que o controle social seja, de fato, umespaço de alteridade, é necessário que oespaço institucional onde ele interfere seja, defato, um espaço de regulação, e, ainda mais,exige-se que a instituição defina sua política deregulação; caso contrário, teremos uma "íntimaregulação ad hoc". Um exemplo disto são assituações em que só alguns assuntos é que vãopara o Conselho, ou para o território da alteri-dade. Ou, ainda, no difuso sistema decisório dainstituição, não fica claro quem é que vai dar

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conta, na divisão do trabalho institucional, defazer acontecer aquilo que foi decidido. Afinal,quem faz acontecer o que se discute?

O que se quer assinalar é que o controlesocial, ao provocar a democratização da insti-tuição, provoca, ao mesmo tempo, a necessida-de de que esta torne claro o campo da suaorganização interna, sua divisão de trabalho,seus responsáveis.

A democracia exige a introdução do planeja-mento. A gestão coletiva e democrática seconfronta com a "gestão happening" e casuísti-ca. Ainda que possa parecer aparentemente umacontradição, democracia não combina comlaissez-faire. Ela supõe organização, definiçãode atribuições e de responsabilidades.

É possível que tenha ficado mais claro aomovimento discutir e cobrar as ações quandoo Estado estava sob governos autoritários, quedemarcavam com quem estava o poder, emgeral centralizado, do que nos estilos de gestãosoft, ou pretensamente democráticos, que, aodiluir a autoridade, por entendê-la autoritária,constróem uma fluidez que não demarca osterritórios de decisão. Esta é a falsa descentrali-zação, que desconcentra ações, mas não pode-res.

A construção democrática é mais palco deuma relação de conflito do que de consenso, oque não é fácil nem de se admitir nem de seenfrentar.

Estas considerações, ainda que pontuais esimplificadas, sobre a institucionalização docontrole social já mostram elementos do segun-do problema, posto na ruptura da cultura casuís-tica das organizações prestadoras de serviçospúblicos: a complexidade.

O que se pretende delinear com o conceito decomplexidade é o convívio de múltiplos sujei-tos e interlocutores na construção democrática.

Esta interlocução coletiva supõe uma pedago-gia de trabalho pautada no conflito, nos jogosde negociação.

Por outro lado, esta complexidade tambémadvém dos múltiplos sujeitos - estatais queoperam o sistema de saúde.

Uma das decorrências negativas desta multi-plicidade é a prática do jogo do alheio: "istonão é comigo, é com ele", ou com o outro, emgeral, o ausente.

Compõem este jogo do alheio as outras duas

usuais saídas: mas o "buraco está mais embaixo", ou "é muito complicado". As expli-cações que levam a um grande conformismo esentimento de incapacidade de mudar.

Sem dúvida, as questões conjunturais sãoreflexos de uma estrutura econômica fundada naprofunda e perversa desigualdade econômica esocial da realidade brasileira. Todavia, o segre-do está em como tocar a estrutura pela conjun-tura, que é a sua forma concreta, ainda queaparente, onde se pode atuar no cotidiano.

No "jogo do empurra" de uma instituição paraoutra, termina sendo reproduzido o jogo dosguichês da burocracia, que vai irresponsabili-zando os funcionários, um a um.

O que se quer chamar a atenção é que o"jogo do alheio" pode ser uma tática de oculta-mento das próprias responsabilidades.

A complexidade da construção democráticanão pode, todavia, ser uma barreira que acabepor sustentar "o ocultismo" como "religião dopoder".

O Controle Social em Questão

Esta reflexão buscou demarcar alguns pontossobre o controle social.

• Primeiro, o controle social supõe um padrãode representatividade na construção, ope-ração e gestão das políticas sociais, em espe-cifico as de saúde.

A representatividade deve ter a capacidade dese contrapor, influir ou assumir efetivamenteseu poder de alter. Num jogo de palavras, essaalteridade deve ter poder de fazer alteração,entendida desde barulho até mudança.

• Segundo, o controle social deve corrigir aslacunas da democracia representativa, introdu-zindo novos sujeitos democráticos/populares,ampliando, ao mesmo tempo, a democraciapolítica e a democracia social.

A forma coletiva como se organizam osmovimentos e as representações de saúdepermite construir a "idéia — possibilidade" dese superar o exercício da democracia represen-tativa nos limites do Estado de Direito paraformas de democracia direta, exercitando a

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construção popular da democracia, que é umaexigência à sociedade brasileira, tradicionalmen-te autoritária, elitista, paternalista e clientelistano seu estilo de fazer política.

• Terceiro, o controle social é a possibilidadede ruptura da "regulação truncada" e espaçopossível da constituição dos caminhos da "regu-lação na esfera pública".

O controle social é a possibilidade de rompercom o caráter privatista, de favorecimento aalguns. É um exercício de trazer as questões eas decisões para mais interlocutores, como jáfoi dito, para cenas explícitas de negociação.Assim, o controle social, mais do que fiscali-zação, pode constituir espaço de "câmaras denegociação".

• Quarto, a relação social fundadora dos espa-ços de controle social deve estabelecer regras— até para serem modificadas no avanço daexperiência — que definam espaços de influên-cia.

Não se pode ser conivente com a transfor-mação do espaço do controle social em umacontinuidade burocrática de reuniões, onde nãose tem compromisso com os resultados e efei-tos. O exercício da alteridade supõe, como jádito, causar alteração.

• Quinto, o controle social necessita ser institu-cionalizado, tornar-se visível, de modo quealterações em sua continuidade possam tornar--se públicas.

As práticas de tornar públicas as ações e de-cisões para os representados, para a instituição,são fundamentais para ampliar a própria forçadeste controle.

• Sexto, o controle social deve incidir nãosomente sobre a eqüidade dos resultados, mastambém sobre a igualdade do acesso.

Como se disse no princípio, o grande risco étransformar a saúde como serviço, esquecendo-se da saúde como direito. Ou transformar ocontrole social em mecanismo de regulação

para os serviços existentes, isolando-o dohorizonte do que ainda deve ser feito paragarantia do direito à saúde a todos.

• Sétimo, o controle social deve dizer respeitoaos serviços públicos e privados, como também,e principalmente, às atenções não só aos servi-ços básicos, mas à política de saúde do traba-lhador.

Ainda que se traga maior experiência dapresença popular nos serviços públicos desaúde, como exigência das lutas sociais, comisto secundarizando as lutas sindicais de saúdedo trabalhador e a relação de controle dosserviços privados de saúde, o que, aliás, estedocumento não conseguiu superar, é necessárioabrir este campo de integração de lutas e deexperiências de controle social.

Postas estas questões, cabem os encaminha-mentos ou a indicação dos aliados possíveisneste processo de ruptura da regulação truncadadas políticas sociais, efetivando o direito defato, ou, como diz Amélia Cohn, a "cidadaniaativa na democracia social brasileira" (Cohn,1991).

Alianças e Encaminhamentos

Uma das alianças é a que provém do próprioacúmulo do conhecimento, da análise daspráticas e das experiências. Aqui, um desta-que para o núcleo Participação e Saúde/CEDEC, que vem emitindo boletins regularessobre as conclusões parciais da pesquisa "Cida-dania e Políticas Públicas", que tem por base ocaso de São Paulo na gestão 89/92.

Outra aliança é a de somar os avanços docontrole sindical na luta pela saúde do trabalha-dor com as formas de controle da política desaúde pública.

A aliança entre as formas institucionais decontrole do governo e de gestão com os movi-mentos sociais, não permitindo a burocratizaçãodas questões pelas representações popularesinstituídas.

A aliança da política de saúde com questõesmais gerais, tanto no que se refere ao padrão deproteção social do cidadão brasileiro como aoprojeto de reforma do Estado, na busca de uma

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ordem democrática e de uma sociedade justa,pressupõe que se transforme a lógica de regu-lação própria das políticas sociais em mecanis-mos de emancipação de uma ordem socialpredadora.

RESUMO

SPOSATI, A. & LOBO, E. Controle Social ePolíticas de Saúde. Cad. Saúde Públ., Rio deJaneiro, 8 (4): 366-378, out/dez, 1992.Na história de democratização das políticas desaúde, um dos campos que construiuvisibilidade aos movimentos de saúde, querpela denúncia das "ausências e omissões" dosserviços instalados, quer pela luta no sentidode construir um espaço regular para oexercício do controle nos serviços e nasburocracias da gestão da saúde, foi o controlesocial da coisa pública.No início da década de 80, a experiênciamarcante na região leste da cidade de SãoPaulo foi a de criar os conselhos de saúdecomo representação popular no controle doEstado.Nesta reflexão, as autoras não pretendemdiscutir a composição da representação, massim avançar para novos problemas.Na conjuntura pós Constituição de 1988,vivemos um novo momento democrático. Asleis, a princípio, amparam a participação dapopulação nas políticas de saúde e sãodefensoras dos direitos sociais. Como, então,é entendido o campo do controle social? Esterestringe-se aos serviços de saúde ou é maisampliado, englobando a política de saúde?Como é que as leis passam da sua formulaçãopara a sua aplicação?Busca-se, no texto, mapear questões que secolocam quando o controle social se orientapara constituir uma pressão pelamudança/alteração da situação.Palavras-Chave: Controle Social; Direito àSaúde; Representação Popular; DispositivosConstitucionais; Alteridade Negada

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