A Violencia e o Sagrado - Notas Soltas

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  • Uma certa sociologialaicista e a antropologia

    giradiana afirmam,claramente, que o sagrado

    violento,embora [Girard] defenda

    que as religiesmonotestas desmascaram

    essa violnciafundamental, podendo ser

    agentes de paz social.Os textos sagrados,e os textos bblicos

    em particular,conservam a memria

    da violncia, porque como afirma Schmuel

    Trigano existir estarna violncia e o Deus

    bblico um Deuspresente

    na histria e no mundodos homens .

    Porfrio PintoTelogo e investigador

    em Cincia das Religies

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES Ano VIII, 2009 / n. 15 9-14 9

    O religioso simultaneamente o que permite aoshomens viver, amar e dar-se, mas tambm o que os leva aodiar, matar e tomar.

    RGIS DEBRAY

    1. Nos ltimos anos, a violncia de carcter religiosovoltou a perturbar os espritos. Perante os ataquesterroristas daAl-Qaeda1, emNova Iorque eMadrid (em2001 e 2004), o assassinato do cineasta holands TheoVanGogh (em 2004) e as afirmaes polmicas de Bento XVIem Ratisbona (2006), antroplogos e socilogos vieram praa pblica explicar que a religio ambivalente,intolerante e violenta. Essas tomadasdeposio foramde talmodo insistentes que o telogo catlicoHansKng,promotor de uma tica planetria das grandes religiesmonotestas, se perguntava recentemente: Ser possvelque alguns aspectos da violncia sejam inerentes reli-gio enquanto tal e que as religiesmonotestas, pelo factode estarem relacionadas com a unicidade divina, sejamparticularmente intolerantes, no pacficas e tentadas ausar a fora? 2 Como telogo, ele pensa evidentementeque no e chama a ateno para trs pontos fundamentais:em primeiro lugar, a violncia faz parte da vida humanae existe desde que o homem homem, no sendo poss-vel conceber uma poca paradisaca do bom selvagem,

    E D I T O R I A L

    1 Desde 2003, esta organizao assume-se como Qaida al-Jihad(Base do Jihad ou Frente Internacional pelo Jihad contra os Judeuse os Cruzados).

    2Hans KNG, Religion, Violence and Holy Wars, in Interna-tional Review of the Red Cross, 87/858 (2005), p. 254 (verso online,consultada em 24/11/09).

    A violncia e o sagradonotas soltas

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    PORFRIO PINTO

    como propunham os Iluministas; em segundo lugar, a religio, como elementofundamental da cultura, teve umpapel relevante nodesenvolvimento de normas, valorese atitudes que governamo comportamento humano e que esto na base da cultura actualdo respeito pela vida humana; finalmente, as guerras existem, desde temposimemorveis, com o objectivo primeiro de obter o poder e o renome que elas podemdar, sendo realizadas em nome de vrios deuses ou de um s.

    Hegemonia poltica e violncia sagrada2.As recentes afirmaes de Jos Saramago, no contexto do lanamento do seu livroCaim, so reveladoras do pensamento de alguns antroplogos: Aminha posio pr-xima da de Jos Saramago, autor da pea Le triptyque de Tibriade, em volta da qual hojenos reunimos. Tal como ele, eu desconfio das religies, sobretudo das religiesmono-testas. Como ele, considero que elas so perigosas, sobretudopor causa da sua pretensouniversalista. As religies foram hegemnicas ao longo da sua histria e continuam as-lo actualmente, mesmo que se tenha pensado, a um determinado momento damodernidade, que nos tnhamos desenvencilhado da supremacia das crenas religiosase que comevamos, finalmente, a viver nummundo fundado sobre valores seculares,que asseguravam a liberdade de pensamento e a igualdade universal dos indivduos.3Mondher Kilani, o autor destas palavras, ao contrrio de RenGirard, no se interessa essncia dos valores religiosos ou ao discurso essencialista sobre a naturezahumana, mas sim s prticas sociais e histricas, porque o que existe na realidadeso humanidades que se fabricam, que se realizamsegundomodelos que elas instituem.E a religio, historicamente, apresenta-se comouma categoria autoritria, que traduzas diversas culturas entre si, hierarquiza-as e desqualifica-as. Emprimeiro lugar, atravsda distino sagrado-profano: a religio coloca-se no centro, definindo-se de imedia-to em oposio a tudo o que no lhe constitutivo (o profano e o impuro). Em segundolugar, atravs da oposio verdadeiro-falso: a religio verdadeira erige-se comouniversal, nica, designando as demais como primitivas, exticas, supersticiosas.E omais surpreendente que esta ideia monoltica de religio continue a alimentarumOcidente secularizado ou sado da religio. De facto, atravs da categoria religioque o Ocidente continua a compreender e a desqualificar as outras tradies,justificando dessemodo a violncia dos fundamentalismos: O fundamentalismo isl-mico, to atacado hoje noOcidente, no se alimenta unicamente da sua prpria tradioreligiosa hegemnica, mas tambm confrontado com ela pelo outro hegemonismo,o hegemonismo ocidental que persiste, apesar das aparncias, numa leitura religiosado mundo e dos conflitos entre as culturas. 4

    3Mondher KILANI, La religion. Une catgorie autoritaire, in www.contrepoint philosophique.ch/Philosophie/Pages/FrancoisFelix/DossierSaramago/03ConferenceKilani.htm (consultado em 24/11/09).

    4 Ibidem. A este propsito interessante a crtica ao livro de Samuel P. HUNTINGTON, O Choque dasCivilizaes e a Mudana na Ordem Mundial (Lisboa, Gradiva, 1999), feita por Denis PELLETIER, Religion etViolence, in Vingtime Sicle. Revue dhistoire, 76, Oct./Dc. 2002, pp. 25-33. Segundo este autor, a tese dolivro de Huntington contm uma dupla reduo: primeiro, o choque das civilizaes no seria mais doque uma verso secularizada das guerras de religio, porque as grandes religies so o fundamento dasgrandes civilizaes; em segundo lugar, porque o Islo surge claramente como uma religio inferior, queno soube organizar estruturas de lealdade poltica, e primitiva, dependente da antiga estrutura familiarclnica e tribal.

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    A VIOLNCIA E O SAGRADO

    3.Esta reflexo deM.Kilani, que se aproximamuito da teoria poltica da religio deMarcel Gauchet 5, renuncia, portanto, ao discurso essencialista sobre a naturezahumana, que caracteriza, por outro lado, a reflexo de Ren Girard. Para este autor, ohomem constitutivamente animadopelo desejo de apropriaomimtica, desejo esseque gera uma inevitvel rivalidademimtica, na origem da violncia fundamental eque pe em risco a vida social. As religies (e os Estados) tentam canalizar essaviolncia fundamental e ocult-la atravs da violncia sacrificial. O sacrifcio arepetio ritual de um crime fundador que, inicialmente, restabeleceu a paz e, agora,impede o desenvolvimento dos grmenes da violncia. Deste modo, R. Girard colocao sagrado no mago da religio e a violncia [como] o corao ou a alma secreta dosagrado6. O sagrado profundamente ambivalente: Suponhamos, com efeito, que osagrado no seja outra coisa seno a violncia humana, coisificada e contida pelomecanismovitimrio e pelos ritos e tabus que dele derivam, e que o profano seja omun-do comum das interaces humanas, protegido da sua violncia potencial pelo confi-namento que a religio impe a esta ltima. Compreenderamos, ento, que o religiosodeva ser definido pela separao rigorosa destes dois domnios, pois esta separaoque estabiliza e garante a ordem social; compreenderamos igualmente a ambiguidadeintrnseca do sagrado, por um lado, impuro, porque imbudo de violncia e por issovirtualmente mortfero, e, por outro, puro, porque contendo essa violncia atravs deum espartilho de ritos e interditos e, por isso, salutar; compreenderamos, enfim, aconverso, sempre possvel, do sagrado puro em sagrado impuro, e vice-versa. 7

    4.Para RenGirard, porm, possvel pr um fim aomecanismo da violncia e abrircaminho para uma sociedade pacificada. As religies monotestas particularmenteo Judasmo e o Cristianismo podem faz-lo, porque descobriram o funcionamentoda violncia mimtica e reabilitaram a vtima inocente: [Todos os dramas bblicos]proclamama inocncia das vtimas da violncia colectiva, que osmitos tm falsamentepor culpveis, juntamente comamultidodosmassacradoresEmtoda a tradio judeo--crist, j no so as vtimas as culpadas, mas os perseguidores.8 Por isso, ele insurge--se contra o optimismo das Luzes, que se esfora por no ver este jogo da violnciasacrificial, insistindo no mito da bondade natural do homem. O mecanismo dobode expiatrio continua a exercer o seu contgio mimtico, o que faz com que,emperodos de perturbao, uma comunidade inteira se possa reunir contra umavtimainocente, de que ningum reconhece j essa inocncia. E omesmo aconteceu e acontecetambmna histria doCristianismo, emque as guerras e osmassacres se devemao factodos cristos deixarem triunfar essemesmo contgio violento, pois mesmoosmelhoresde entre ns so incapazes de triunfar do contgio violento pelas suas prprias foras9.

    5Esta definio de Camille TAROT, Les lyncheurs et le concombre ou de la dfinition de la religion,quand mme, in Revue du MAUSS, 22 (2003) 2, pp. 278-279 (verso online, consultada em 26/11/09).

    6 Veja-se a sntese em Alain JAUVION, Mimesis et Violence chez Ren Girard, in Herms, 22 (1998),pp. 47-52.

    7Lucien SCUBLA, Prface, in C. TAROT, Le symbolique et le sacr. Thories de la religion, Paris, Ed. La D-couverte/MAUSS, 2008, p. 15.

    8Ren GIRARD, La pierre rejete par les btisseurs, in Thologiques, 13/2 (2005), p. 174 (verso online,consultada em 26/11/09).

    9 Ibidem, p. 177. curiosa esta passagem de R. Girard. De facto, um pouco mais frente, ele vai colocarem evidncia o papel do Esprito Santo, o Parclito, no sentido de defensor das vtimas ou advogadode defesa, como a fora que ajudar os discpulos a superar o contgio violento (pp. 177-178).

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    Contudo, sem a revelao judeo-crist, ns no saberamos nunca que havia bodesexpiatrios e permaneceramos prisioneiros da estrutura vitimria 10.

    Aviolncia nos textos sagrados5.Amodernidade, portanto, tinha pensado ter colocado um fim legitimao religiosada violncia,mas esta voltou a surgir, camuflada, nas guerras doltimo sculo. verdadeque, nos ltimos anos, os responsveis religiosos rejeitam essa apropriao doreligioso e argumentam que os seus textos fundadores se centram no amor, na paz ena compaixo. Porm, no menos verdade que a violncia tambmest presente nessesmesmos textos fundamentais. Da a questo colocada por Alain Benoist: Por maissagrados que sejam os textos fundadores, a f inseparvel de uma hermenutica.E nenhum texto se reduz interpretao que lhe queiram dar fundamentalistas ouliberais. 11 Mas, o que dizem os textos e como interpret-los?

    6. Jesus Cristo: bode expiatrio ou cordeiro inocente?Aviolncia gera vtimas, amaior partedas vezes inocentes, e estas vtimas sofrem. Enquanto oCristianismo afirmaovalor salutarou redentor do sofrimento, a comear pelo do Crucificado 12, a cultura moderna temdificuldade em compreender isso. Para os primeiros cristos, o sofrimento e a mortede Jesus na cruz constituam tambm um escndalo e foi por isso que a comunidadesentiu necessidade de os integrar numa narrativa religiosa, que lhes desse um sentidoe perdesse esse seu carcter escandaloso. Foi assim que o Cristianismo reflectiu o sofri-mento do Salvador crucificado como sofrimento redentor (NovoTestamento emgeral)ou sacrifcio (carta aos Hebreus).

    ONovo Testamento apresenta trs interpretaes damorte doMessias. A primeira,que fazia parte do querigma primitivo, no valorizava tanto a morte de Jesus em simesma, mas a aco divina atravs da gesta do Nazareno: tendo sido injustamentecondenado, Deus ressuscitou-o e constituiu-o Senhor (cf. Act 2,14-36). Posteriormente,a comunidade sentiu necessidade de encontrar um sentido tortura e morte de Jesus:a morte do Senhor , ento, inscrita num plano de Deus acerca da salvao da huma-nidade; Jesusmorreupara que se cumprissemas Escrituras. Finalmente, e para completara interpretao precedente, era necessrio explicar tambmo alcance damorte de Jesuspara o ser humano: Cristomorreu por ns, pela nossa salvao; a suamorte umdomdeDeus, quenopoupouo seu filho (Rm8,32). Baseando-se nesta terceira interpretao,a tradio latina posterior preocupou-se em explicar a mecnica interna salvao,usando para isso trs metforas do foro jurdico: o resgate, que seria o preo a pagarpela redeno do homem (mas a quem: a Deus ou a Satans?); a satisfao, segundo aqual era necessrio que Jesus incarnasse e padecesse para restabelecer a harmonia original,deturpada pelo pecado humano; e a expiao, que seria a reparao das faltas, segundoo princpio veterotestamentrio da retribuio (pagar pelo mal que se faz). A teologiatradicional transformou Jesus num bode expiatrio, quando, na revelao neotesta-

    10 Ibidem, p. 176.11 Alain BENOIST, Intolrance et religion [Texto publicado em La Nouvelle Revue dHistoire], in

    www.alainbenoist.com/pdf/intolerance_et_religion.pdf.12A reflexo que se segue baseada no artigo de Jean-Guy NADEAU, La souffrance rdemptrice: lgi-

    timation ou subversion religieuse de la violence?, in Thologiques, 13/2 (2005), pp. 5-20.

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    A VIOLNCIA E O SAGRADO

    mentria, Ele era apresentado como cordeiro inocente. A teologia actual procurarecuperar de novo esse sentido: no amorte e o sofrimento de Jesus que salvam,massim o Amor de Deus, manifestado em toda a vida terrena de Jesus; Deus no entregao seu Filho tortura e morte, mas entrega-se como dom no prprio Crucificado; aviolncia exercida sobre Jesus no da responsabilidade de Deus, mas dos homens (aviolncia intrnseca vida humana). E, aqui, talvez tenhamos de dar razo aRenGirard:namorte de Jesus h uma denncia domecanismo do bode expiatrio (cf. Jo 11,50).

    7. Dos mrtires aos heris nacionais. Os textos fundamentais das grandes religiesmonotestas do tambm um sentido ao sofrimento e morte dos seus fiis: a mortesagrada dosmrtires. O Judasmo conhece a noo de Kiduch hachem (a santificaodoNome), que remete para amorte por razes de f, porque, emdeterminadas situaes,se deve preferir amorte vida (como ilustrado pelos mrtires do segundo livro dosMacabeus 6,18-7,42). Esta morte uma morte suportada, infligida por terceiros, econstitui uma espcie de autentificao da f na sua verdade fundamental 13.

    O termomrtir, de origemgrega, e que significa testemunha, foi aplicado sobretudoaos cristos dos primeiros sculos, que enfrentaramaperseguio e amorte paramantera integridade da sua f. O valor da sua morte est no testemunho que deram noseguimento, no de normas (comono caso dosMacabeus),mas da pessoa de JesusCristo(veja-se Estvo, emActos 6,8-8,1; e os discpulos doCordeiro, noApocalipse). Tambmaqui, o martrio suportado. Mas, por outro lado, o martrio est tambm na origemde um culto especial, atravs do qual os primeiros cristos acreditavam na eficcia daintercesso daqueles que deram a sua vida por Cristo.

    A seguir conquista muulmana da Palestina surgiu tambm no Islo a noo detestemunha (chahid), para significar a morte sagrada. Contudo, o princpio cor-nico que justifica omartrio muitomais lato do que o da tradio judaico-crist. Tes-temunha aquele que mata ou se deixa morrer na via de Al, ou seja, a violnciano provmexclusivamente da parte do adversrio,mas tambmassumidapelo crente,que recorre a ela com toda a legitimidade. Estemartrio acontece sobretudo em situaode guerra e, por isso, o termo est intimamente ligado ao de jihad 14.

    8.Massacres e guerras santas.Mas o quemais inquieta os espritosmodernos so os textossagrados que referem massacres e guerras santas, embora no seja esse o caso doNovo Testamento cristo.

    A Bblia Hebraica (o Antigo Testamento dos cristos) descreve alguns massacres(sendo o de Ex 32,28 omais paradigmtico, porque seria imediato revelao domono-tesmo), o antema ou hrem dos mpios (nos livros de Josu, Juzes e Samuel) e asguerras de Jav (nos livros de Samuel e Reis). Hoje, um grande nmero de exegetasdo Antigo Testamento colocam em causa a veracidade de tais acontecimentos15. Oslivros, onde surgem tais narrativas, foram concebidos pela chamada escola deuterono-mista, que elabora uma construo literria da histria de Israel, bastante influenciada

    13Cf. Jean-Guy NADEAU, Souffrance rdemptrice dans le judasme? Entrevue avec Schmuel Trigano,in Thologiques, 13/2 (2005), pp. 45-68.

    14Cf. Ali G. DIZBONI, Le concept de martyre en islam, in Thologiques, 13/2 (2005), pp. 69-81.15Efectivamente, os dados recentes da arqueologia no coincidem de todo com os textos bblicos: no

    h vestgios de que as coisas se tenham passado como a Bblia o relata e existem fortes suspeitas de queestamos perante construes literrias, muitos posteriores aos supostos eventos histricos.

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    pela literatura propagandstica assria, onde os feitosmilitares so empolados e colocadosao servio doDeus nacional (neste caso, Jav), e onde no faltavammassacres e depor-taes 16. As outras duas correntes literrias judaicas, a escola sacerdotal e a escolaproftica somuitssimomenos coniventes com a violncia. O aparecimento domono-tesmo, durante o exlio da Babilnia, e, com ele, do Judasmo propriamente dito, inau-guramuma etapa histrica onde no possvel afirmar que o Judasmo fosse particular-mente violento (embora conhea situaes de revolta, comono tempodeAntocoEpifnioou da ocupao romana da Palestina).

    ONovoTestamento, e particularmente os Evangelhos, apresentamumadoutrina denoviolncia. verdade, porm, que ahistriada Igreja, posterior aoditodeConstantino,est bastante salpicada demassacres, perseguies e guerras, que amancharam: a Igrejaparticipou activamente emactividades e campanhas violentas, totalmente incompatveiscom o esprito pacfico e no violento do seu Fundador; o imprio cristo (de CarlosMagno aos Reis Catlicos, e mesmo posteriormente) combateu violentamente os seusinimigos externos e internos: execues e deportaes, cruzadas, autos-de-f emassacres.Mas, em todas estas pocas, houve sempre algumque questionou se o sentido da cruzdo Nazareno no teria sido completamente deturpado17.

    O termorabe associado guerra santa jihad,mas no se trata aqui deuma simplesequivalncia. Na verdade, a jihad tem vrios sentidos. Em primeiro lugar, em numero-sas passagens do Alcoro, o termo significa simplesmente esforo, tendo em vista oencontro comDeus.Noutras, significa ainda a luta consigomesmo, pelo que utilizadopara evocar o combate espiritual do crente. Noutras, enfim, significa tambm bata-lha, combate intenso, aparentado ao conflito blico (lutar naviadeAl). este sentidoque permite afirmar que o Islo, desde o incio, uma religiomilitante: ela foi obrigadaa lutar contra as tribos rabes e os habitantes deMeca, que se opunham ao Profeta. Porisso, a guerra aceite comomeio poltico, o que permite a rpida expansodo Islo; alis,como vimos supra, a morte na via de Al, omartrio, recompensada com o paraso.Por outro lado, este esprito militante tambm conivente com a vontade de paz,promovendo o estatuto da pessoa protegida (dhimmi), que aplicado aos habitantes deMeca, aos judeus e aos cristos, e que permite falar de tolerncia no Islo18.

    9.Concluindo, neste breve percurso quisemos reflectir acerca da relao entre violn-cia e religio. Sero as religiesmonotestas violentas, pelo facto de seremmonotestase pretenderem ao universalismo?Uma certa sociologia laicista diria que sim e a antro-pologia giradiana afirma claramente que o sagrado violento, embora defenda que asreligies monotestas desmascaram essa violncia fundamental, podendo ser agentesde paz social. Os textos sagrados, e os textos bblicos emparticular, conservamamemriada violncia, porque como afirma Schmuel Trigano existir estar na violncia eo Deus bblico um Deus presente na histria e no mundo dos homens19.

    16Acerca desta construo literria, veja-se Thomas RMER, La premire histoire de Israel. Lcole deutro-nomiste luvre, Genebra, Labor et Fides, 2007.

    17Cf. Hans KNG, op. cit., pp. 258s.18 Ibidem, pp. 259-261.19Entrevista de Jean-Guy NADEAU, op. cit., pp. 50-51.