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Universidade Anhanguera-Uniderp Pós-Graduação CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU TELEVIRTUAL EM DIREITO NOTARIAL E REGISTRAL DELFINA DO CARMO TEIXEIRA DE ABREU Averbação da Sentença de Multiparentalidade: os efeitos jurídicos do registro civil de filhos oriundos de famílias socioafetivas.

Artigo Final Delfina

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Universidade Anhanguera-UniderpPós-Graduação

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU TELEVIRTUAL EM DIREITO NOTARIAL E REGISTRAL

DELFINA DO CARMO TEIXEIRA DE ABREU

Averbação da Sentença de Multiparentalidade: os efeitos jurídicos do registro civil de filhos oriundos de famílias

socioafetivas.

TERESINA /PIAUÍ2014

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Universidade Anhanguera-Uniderp

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU TELEVIRTUAL EM DIREITO NOTARIAL E REGISTRAL

DELFINA DO CARMO TEIXEIRA DE ABREU

Averbação da Sentença de Multiparentalidade: os efeitos jurídicos do registro civil de filhos oriundos de famílias

socioafetivas.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial, para conclusão do Curso de Pós Graduação Lato Sensu Televirtual em Direito Notarial e Registral, na Universidade Anhanguera - UNIDERP, sob a orientação do Prof. Fabio Gazzi.

TERESINA /PIAUÍ

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2014

RESUMO

A presente monografia visa analisar a possibilidade da aplicação da

multiparentalidade dentro do ordenamento jurídico pátrio, a partir da apresentação

dos conceitos de família e de filiação, bem como analisando os efeitos jurídicos

desse fenômeno jurídico. Este trabalho foi realizado através do método dedutivo,

com a leitura de doutrina, legislação e jurisprudência. A técnica para elaboração da

pesquisa foi a prescritiva, baseando-se em referencial teórico bibliográfico de

diversos autores na área de estudo, legislação e jurisprudência. As citações foram

efetuadas a partir do sistema autor/data. O trabalho procura, portanto, detalhar os

efeitos do reconhecimento da múltipla vinculação parental, abordando desde a

questão registral, como a averbação de sentença de multiparentalidade, até os

julgados mais recentes acerca do tema.

Palavras-chaves: Multiparentalidade. Averbação de Sentença. Registro Civil.

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ABSTRACT

This thesis aims to analyze the possibility of applying the multiple parenthood within the national legal system, from the presentation of the concepts of family and kinship, as well as analyzing the legal effects of this legal phenomenon. This work was performed by the deductive method, with the reading of doctrine, legislation and jurisprudence. The technique for preparing the research was prescriptive, based on reference theoretical framework of several authors in the study area, legislation and jurisprudence. The quotes were taken from the author's system / data. The work therefore seeks to detail the effects of parental recognition of multiple binding, approaching from the registral issue, as the annotation of sentence multiple parenthood, even the most recent sentences on the subject.

Keywords: Multiple Parenthood. Registration of Judgment. Civil Registry.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO_____________________________________________________6

1 A FAMÍLIA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO__________________________7

2 A MULTIPARENTALIDADE__________________________________________10

3 O EXERCÍCIO DA MULTIPARENTALIDADE E SEUS EFEITOS_____________12

4 OS EFEITOS JURÍDICOS DO REGISTRO CIVIL DE FILHOS ORIUNDOS DE

FAMÍLIAS SOCIOAFETIVAS__________________________________________14

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS__________________________________________18

6 REFERENCIAS___________________________________________________19

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INTRODUÇÃO

O instituto familiar sofreu intensas modificações em sua forma de

estruturação na recente história do Brasil, fazendo-se necessária a observação das

mesmas para um correto aperfeiçoamento do Direito de Família. Neste sentido,

pretende-se discorrer acerca da nova conjuntura social familiar, na qual se verifica o

advento do afeto como valor jurídico digno de proteção, nos termos da Constituição

Federal de 1988.

O direito de família sofreu inúmeras modificações com o passar dos anos,

fazendo com que inúmeras relações de parentesco surgissem e assim evoluindo

para novos grupos familiares. A interferência efetiva de pais afins no exercício da

autoridade parental, em complementariedade aos pais biológicos é cada vez mais

constante na evolução do direito de família e notarial brasileiros. Dessa forma,

padrastos e madrastas são mais frequentemente reconhecidos pelos filhos afins

como pais. Dentro do enfoque familiar, destacam-se as sentenças judiciais que

reconhecem essa relação de parentesco e permitem posterior averbação no registro

civil de nascimento dos filhos oriundos desse novo instituto familiar que é a

Multiparentalidade. Assim, a principal indagação é: é necessária a escolha por

apenas uma única paternidade singular quando do conflito dos critérios registral,

biológico e afetivo que envolve a Multiparentalidade? Que efeitos jurídicos o registro

civil de nascimento de filhos oriundos dessas famílias socioafetivas são mais

evidentes?

A escolha do tema sobreveio das discussões tímidas na doutrina e na

jurisprudência, demonstrando-se a necessidade de pronunciamento legislativo a

respeito, bem como devida a pouca experiência vivida acerca do assunto, o qual

vem regendo inúmeros conflitos, embora trabalhe com registros civis em um Cartório

da cidade de Caxias, Estado do Maranhão, o qual me permite verificar a ausência de

averbações originadas em virtude de ações judiciais que tenham por objeto a

Multiparentalidade, o que não evidencia a ausência dessas famílias socioafetivas na

região, mas simplesmente a falta de informação sobre o instituto.

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A multiparentalidade, ou seja, a possibilidade de uma pessoa ter mais de

um pai e/ou mais de uma mãe, ao mesmo tempo, é uma realidade que já pode ser

verificada socialmente e, recentemente, vem sendo reconhecida juridicamente.

Contudo, sua aplicabilidade na seara registral ainda gera polêmica, eis

que, ordinariamente, tem-se que no registro de nascimento deve constar apenas o

nome de um pai e/ou de uma mãe.

Assim, com o intuito de demonstrar a possibilidade de exteriorização da

multiparentalidade no registro de nascimento é que se explicará o instituto jurídico,

tendo por base os princípios do registro público.

1 A FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

Embora se trate de um instituto jurídico protegido constitucionalmente e

regulamentado em livro próprio dentro do Código Civil (2002), não há na legislação

nacional conceituação expressa do termo “família”, vindo esta a receber diversas

conotações doutrinárias ao longo do tempo:

A conceituação de família oferece, de plano, um paradoxo para sua compreensão. O Código Civil não a define. Por outro lado, não existe identidade de conceitos para o Direito, para a Sociologia e para a Antropologia. Não bastasse ainda a flutuação de seu conceito, como todo fenômeno social, no tempo e no espaço, a extensão dessa compreensão difere nos diversos ramos do direito. (VENOSA, 2010, p.01)

O artigo 1593 do Código Civil de 2002 declara que o parentesco é natural

ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Segundo Pontes de

Miranda (1998. v. 9, p. 367, apud, BUCHMANN, 2013) a relação entre duas

pessoas, uma das quais nascida da outra, chama-se paternidade, ou maternidade.

A família natural é o modelo mais antigo de conceito familiar, estabelece o

vínculo sanguíneo constituído por pai, mãe e filhos. A constituição de todas as

pessoas interligadas por vínculo de sangue, originadas de um tronco ancestral

comum relaciona todos os parentes consanguíneos. No sentido exato é o conjunto

de pessoas formadas pelos pais e seus filhos, ou seja, em primeiro grau e em linha

reta. Isto se observa também no artigo 1591 do Código Civil de 2002.

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Em 2002, a Lei n. 10.406 instituiu o Código Civil brasileiro vigente, cujo

projeto original data de 1975, de modo que ele apenas veio a regulamentar as

conquistas já consagradas pela Constituição Federal e demais leis anteriormente

promulgadas. Nas palavras de Rodrigues (2002, p.14) o novo Código apresenta-se

na parte destinada ao direito de família como aglutinador das significativas

inovações legislativas e conceituais a respeito desse ramo do direito que, a partir da

Constituição Federal, tem-se mostrado extremamente dinâmico.

Assim, a verdadeira revolução legislativa em matéria de direito privado e,

especificamente na seara familiar, ocorrera antes da entrada em vigor do Código

Civil de 2002, com a promulgação da Constituição da República em 1988.

Ao discorrer sobre a evolução legislativa, Dias (2011, p. 34) expõe que

houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos

interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade,

confiança, respeito e amor. Ao Estado, inclusive nas suas funções legislativas e

jurisdicionais, foi imposto o dever jurídico constitucional de implementar medidas

necessárias e indispensáveis para a constituição e desenvolvimento das famílias.

No mesmo sentido posiciona-se Lôbo (2008, p.11), pregando que “a

família converteu-se em um espaço de realização da afetividade humana”, e que tal

conversão decorre em virtude do “fenômeno jurídico-social denominado

repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana

mais do que suas relações patrimoniais”.

Analisando-se todas essas mudanças comportamentais da sociedade

brasileira, observa-se que a unidade familiar sofreu intensas modificações,

abandonando até mesmo a singularidade do termo “unidade familiar” para passar a

abarcar diversas “pluralidades familiares”.

Segundo Venosa, a partir do século XX, o conceito de arranjo familiar

sofreu mudanças sociais. Há alguns anos, o direito de família brasileiro decidia o

conflito entre a filiação biológica e a filiação socioafetiva, levando em consideração o

elemento biológico, contudo, mais recentemente passou a ser adotada a relação

socioafetiva como forma de filiação legitima.

Uma das primeiras barreiras a ser superada pelo Direito de Família, na

tensão entre facticidade e validade e no desafio pela reconstrução de seus institutos,

foi a da família codificada, que teve que ceder espaços e conviver com outros

núcleos familiares essencialmente informais, porque despidos das solenidades que

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revestem o casamento, mas que a despeito de sua forma – ou ausência dela –

mostraram-se marcados pelo compromisso da comunhão de vida, da lealdade e da

mútua assistência moral e material. Trata-se de um compromisso com a realização

da democracia no interior da família.

O art. 226 da Constituição Federal de 1988 prevê como tipos de família o

casamento, a união estável e as famílias monoparentais. Entretanto, tal dispositivo

não encerra uma enumeração taxativa, mas sim, exemplificativa, pois se a liberdade

de constituição de família é um direito fundamental, não pode o Estado limitar as

formas de família, ou os modos de exercício deste direito fundamental. Afinal, se os

núcleos humanos cumprem a mesma função de estruturação psíquica e de livre

desenvolvimento da personalidade de seus membros, não há razão para não

qualificá-los como família.

Por isso, são exemplos de entidades familiares os casais homoafetivos,

as famílias anaparentais, os avós que vivem com seus netos, entre outras. Como

mencionado, uma nova espécie de entidade familiar que vem despontando como

fenômeno social – e por isso, jurídico – consubstancia-se nas famílias recompostas,

resultado da liberdade de constituição e dissolução das entidades familiares

conjugais.

Família reconstituída é “a estrutura familiar originada do casamento ou da

união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros tem filho ou

filhos de um vínculo anterior”. Esse fenômeno vem crescendo atualmente, em face

do aumento do número de separações, divórcios e dissoluções de união estável,

conforme comprovado por dados do IBGE. As famílias que se formam em resultado

do rompimento conjugal, tornam-se monoparentais. Essa situação pode ter um

tempo definido ou não, já que vinculada à recomposição familiar, agregando-se um

novo cônjuge ou companheiro àquele núcleo familiar, fazendo que surja, dessa

forma, um novo arranjo.

Não obstante a grande relevância do fenômeno na esfera sociológica, é

incipiente a manifestação jurídica sobre o tema, não apenas em termos legislativos,

mas também, doutrinários e jurisprudenciais, situação que tende a mudar. O

pronunciamento legal mais antigo cinge-se ao art. 1.595 do CCB/02, que prevê o

parentesco por afinidade do cônjuge ou do companheiro aos parentes do outro, que

se restringe aos ascendentes, descendentes e irmãos. Entretanto, a lei se cala a

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respeito da maioria das relações jurídicas que se formam entre esses novos

parentes afins e novos arranjos familiares.

2 MULTIPARENTALIDADE

Quando se percebe a relação de parentalidade como algo que ultrapassa

a conexão biológica existente entre duas ou mais pessoas (PAULO, 2009, p. 26),

identificando que ela é mais que uma simples autorização – para o exercício de

direitos patrimoniais – dada pela codificação e ser pai ou ser mãe são papéis

importantes, não há como refutar a ideia de que cada uma dessas funções poderá

ou não ser atribuída, concomitantemente, a mais de uma pessoa e exercidas, ao

mesmo tempo por cada uma delas.

A doutrina costuma reconhecer a existência de parentesco socioafetivo a

partir da comprovação dos requisitos que compõem a posse de estado de filho,

sendo eles, nome, trato e fama. Sem dúvida, trata-se a posse de estado de meio

hábil a comprovar o vínculo afetivo entre pais e filhos de criação, mas ela não é

capaz de constituir o próprio vínculo, pois, como sabido, posse de estado é apenas

meio de prova subsidiário, e, portanto, não gera estado. Sendo assim, não é ela a

definir a substância desse novo tipo de parentesco, mas apenas sua comprovação.

O que constitui a essência da socioafetividade é o exercício fático da

autoridade parental, ou seja, é o fato de alguém, que não é genitor biológico,

desincumbir-se de praticar as condutas necessárias para criar e educar filhos

menores, com o escopo de edificar sua personalidade, independentemente de

vínculos consanguíneos que geram tal obrigação legal. Portanto, nesse novo vínculo

de parentesco, não é a paternidade ou a maternidade que ocasiona a titularidade da

autoridade parental e o dever de exercê-la em prol dos filhos menores. É o próprio

exercício da autoridade parental, externado sob a roupagem de condutas objetivas

como criar, educar e assistir a prole, que acaba por gerar o vínculo jurídico da

parentalidade.

A multiparentalidade pode ter como causa o fato de o pai biológico

desconhecer o nascimento de seu filho, razão pela qual outra pessoa passa a

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exercer a função paterno/filial. Outro fator é o surgimento crescente das famílias

recompostas, em que pode ocorrer uma superposição de papeis parentais, já que,

por vezes, o padrasto/madrasta passa a exercer faticamente a autoridade parental,

sem que haja, contudo, o afastamento do genitor do convívio com o filho. É possível,

ainda, a multiparentalidade temporal, em que a recomposição familiar ocorre após a

morte do pai ou mãe biológico e o padrasto/madrasta passa a exercer esta função.

Nesses casos, o registro de nascimento deveria conter o real histórico parental

(TEXEIRA, RODRIGUES, 2010).

Segundo a Teoria Tridimensional do Direito de Família, o ser humano é

genético, afetivo e ontológico. O homem é um ser que convive e compartilha no

mundo da ancestralidade sanguínea, no mundo do relacionamento social/ familiar e

se relaciona consigo mesmo. (FERREIRA, 2006, p. 512)

A multiplicidade de vínculos familiares vem definida, de modo excepcional, pelo amor e pela afetividade, diferentemente da família clássica onde a vinculação pelos laços consanguíneos, com ou sem afeto, predomina. O elemento afetivo é indispensável à subsistência da família mosaico, exigindo de seus membros extraordinária capacidade de adaptação, considerando o fato de serem egressos de famílias anteriores, (des)construídas, e, portanto, guardando o conjunto de valores da experiência familiar.

É possível, portanto, um exercício fático da autoridade parental. É sob tal

perspectiva que deve ser analisado o art. 1.636, CCB/02, que é taxativo no sentido

de que as novas núpcias ou nova união estável contraída pelo genitor não induzem

à perda do poder familiar quanto aos filhos do relacionamento anterior. A situação se

torna mais complexa em função da última parte do caput daquele dispositivo, que

estabelece que o exercício da autoridade parental se perfaz sem a interferência do

novo cônjuge ou companheiro. O mesmo ocorre quando o genitor solteiro casar ou

estabelecer união estável. Ao que tudo indica, esse dispositivo visa tutelar o genitor

biológico e não o menor inserido no novo contexto familiar, que deve receber a tutela

mais abrangente possível.

A prática reflete exatamente o oposto do que o dispositivo prevê. A

realidade impõe novas formas de arranjos familiares, que provocam rearranjos

internos, decorrentes da estrutura havida na família anterior, agora desfeita. Cada

cônjuge ou companheiro, além dos filhos, leva sua experiência para aquele novo

relacionamento.

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Entende-se, portanto, que o princípio da afetividade funciona como um

vetor que reestrutura a tutela jurídica do direito de família, que passa a se ocupar

mais da qualidade dos laços travados nos núcleos familiares do que com a forma

através da qual as entidades familiares se apresentam em sociedade, superando o

formalismo das codificações liberais e o patrimonialismo que delas herdamos.

Portanto, o princípio da afetividade não comanda o dever de afeto, porquanto se

trata de conduta de foro íntimo, incoercitível pelo Direito.

Nesse diapasão, a multiparentalidade deve ser defendida como

alternativa de tutela jurídica para um fenômeno já existente em nossa sociedade,

que é fruto, precipuamente, da liberdade de (des)constituição familiar e da

consequente formação de famílias reconstituídas. A nosso sentir, a

multiparentalidade garante aos filhos menores que, na prática, convivem com

múltiplas figuras parentais a tutela jurídica de todos os efeitos que emanam tanto da

vinculação biológica como da socioafetiva, que, como demonstrado, em alguns

casos, não são excludentes, e nem haveria razão para ser, se tal restrição exclui a

tutela aos menores, presumidamente vulneráveis:

3 O EXERCÍCIO DA MULTIPARENTALIDADE E SEUS EFEITOS

A primeira alteração a ser realizada, com o fito de viabilizar o

reconhecimento e o exercício da múltipla vinculação parental, principalmente em

relação às famílias recompostas, deve ser feita no artigo 1636 do CC, que preceitua

que os pais que estabelecerem família reconstituída terão a prerrogativa de exercer

a autoridade parental sem interferência do pai ou mãe afim. Como já demonstrado,

tal dispositivo de lei não encontra ressonância na realidade das famílias

recompostas, nas quais, ao contrário, a interferência vedada pela lei ocorre

diariamente como reflexo da convivência familiar e, antes ainda, como condição de

vida em comum de todas as pessoas que compõem um novo arranjo familiar.

Há necessidade de reforma do art. 1636 CC, por ser ele mera ficção

jurídica, cujo conteúdo pode, quando menos, “depor contra” os interesses do menor,

a partir do momento que, potencialmente, pode restringir a amplitude de sua própria

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tutela. Faz-se urgente, portanto, a adequação da norma à realidade, efetiva proteção

ao menor.

Verifica-se que a multiparentalidade resolve, também, o tormentoso

conflito hoje existente em inúmeros casos em que colidem a verdade biológica com

a socioafetiva e/ou registral. A partir do momento que se entende pela insuficiência

do sistema biparental nas famílias contemporâneas – haja vista que a realidade é

mais rica de possibilidades do que o Direito – assumir a multiparentalidade como

regra acaba por resolver o problema do conflito mencionado, na medida em que a

pessoa poderá cumular vínculos parentais criados durante sua vida, de modo que

seu registro de nascimento possa efetivamente refletir sua história familiar

consanguínea e construída a partir das interações com os outros.

O critério tradicional a embasar a verdade afetiva reside,

substancialmente, na posse do estado de filiação, que, por sua vez, consiste na

“situação fática na qual uma pessoa desfruta do status de filho em relação a outra

pessoa, independentemente dessa situação corresponder à realidade legal”. (LÔBO,

2008, p.210)

Gomes (1994, p. 311) complementa ao caracterizar o estado de filho

como "ter de fato o título correspondente, desfrutar as vantagens a ele ligadas e

suportar seus encargos. É passar a ser tratado como filho".

Defende-se tese justamente oposta, no sentido de que todos os efeitos

jurídicos (alimentos, herança, poder/dever familiar, parentesco, guarda

compartilhada, nome, visitas, paternidade/maternidade genética e afetiva e demais

direitos existenciais) das duas paternidades devem ser outorgadas ao ser humano,

na medida em que a condição humana é tridimensional, genética, afetiva e

ontológica (WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Família:

reconhecimento de todos os direitos das filiações genética e socioafetiva. Revista

Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, fev-mar/2009, ano X, nº 08, Porto

Alegre: Editora Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2009, p.113).

Os tribunais brasileiros começam a reconhecer este Direito. Veja-se um

caso no Tribunal de Justiça de Rondônia: (apud, JANOTTI; SOUZA, CORRÊA E

JUNIOR, 2012)

Na sentença, a narrativa dos fatos demonstra que a genitora da requerente vivia em união estável com o seu pai biológico. Contudo, antes de o pai biológico tomar conhecimento da gravidez, o casal colocou fim ao

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relacionamento e a mãe da requerente passou a viver com o pai registral. Esse, conhecendo a situação, registrou a criança em seu nome, estabelecendo o que se chama de “adoção à brasileira”. Logo, o pai registral não era o pai biológico.

Assim, a requerente, uma menina com 11 anos, buscou judicialmente o reconhecimento de falsidade da paternidade registral e reconhecimento da paternidade biológica. Contudo, restou demonstrado pelas provas dos autos, em especial o estudo psicossocial realizado, que a requerente mantinha vínculo afetivo estreito com o pai registral. Assim,

[...] a pretendida declaração de inexistência do vínculo parental entre a autora e o pai registro afetivo fatalmente prejudicará seu interesse, que diga-se, tem prioridade absoluta, e assim também afronta a dignidade da pessoa humana. Não há motivo para ignorar o liame socioafetivo estabelecido durante anos na vida de uma criança, que cresceu e manteve o estado de filha com outra pessoa que não o seu pai biológico, sem se atentar para a evolução do conceito jurídico de filiação, como muito bem ponderou a representante do Ministério Público em seu laborioso estudo (RONDÔNIA, 2012).

Ante essa possibilidade de ter em seu registro de nascimento a sua

realidade familiar – um pai biológico (que até pode vir a se tornar, também,

socioafetivo) e um pai socioafetivo (que teve como referência paterna durantes os 11

anos de sua vida e ambos pretendem cultivar essa relação paternal) – não há

motivos para o Direito restringir as referências familiares dessa criança, agindo

contra seus reais interesses, desprotegendo-a. Essa linha de raciocínio acaba por

atentar flagrantemente contra os direitos fundamentais da criança, sem falar no

princípio da proteção integral e do melhor interesse do menor.

Conclui-se, portanto, que perante as mudanças no Direito das Famílias e

nos conceitos que o envolvem, a questão da afetividade conquistou espaço,

passando a ganhar vozes na doutrina e a embasar decisões judiciais. Essa

progressiva valorização do afeto nas relações familiares acarretou no que se

denomina de mudança de paradigma.

4 OS EFEITOS JURÍDICOS DO REGISTRO CIVIL DE FILHOS ORIUNDOS DE FAMÍLIAS SOCIOAFETIVAS

O retrato da vida civil de qualquer cidadão, no que tange ao seu estado

de filiação, tem repositório nas Serventias Extrajudiciais de Registro Civil das

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Pessoas Naturais, regulamentadas pela Lei Federal nº 6.015/73, Lei de Registros

Públicos (BRASIL, 1973).

Qualquer ocorrência que, por qualquer modo, altere um registro, deve se

dar por averbação, o que no presente caso não é diferente. O próprio Código Civil

brasileiro (BRASIL, 2002) traz a previsão da presente averbação:

Art. 10. Far-se-á averbação em registro público: I - das sentenças que decretarem a nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal; II - dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação; (grifo nosso)

O ato de averbação no assento de nascimento daquele que teve

reconhecida a multiparentalidade, se faz nos termos do art. 97, da Lei de Registros

Públicos (BRASIL, 1973): “Art. 97. A averbação será feita pelo oficial do cartório em

que constar o assento à vista da carta de sentença, de mandado ou de petição

acompanhada de certidão ou documento legal e autêntico, com audiência do

Ministério Público.”

Assim, na hipótese de sentença declaratória de multiparentalidade, o

Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais, responsável pelo registro afetado,

mediante a apresentação de mandado de averbação, lançará à margem do assento

os dados do(s) pai(s)/mãe(s), nos termos da decisão judicial.

A situação de alocação de dois pais ou de duas mães no registro de

nascimento não é novidade, eis que, nos casos em que a justiça autoriza a adoção

por casais homoafetivos, como, por exemplo, recentemente autorizado pelo Superior

Tribunal de Justiça, é essa a solução.

Destaca-se, que nenhuma adjetivação no tocante a filiação deve ser feita,

sob pena de se desrespeitar a Carta Magna da República, assim como a legislação

infraconstitucional.

Outro ponto que merece atenção é a expedição das certidões do registro

civil, comprovando a situação da multiparentalidade.

Para que ela se operacionalize, contudo, é necessário que seja

exteriorizada através de modificações no registro de nascimento. Contudo, o registro

não pode ser um óbice para sua efetivação, considerando que sua função é refletir a

verdade real; e, se a verdade real concretiza-se no fato de várias pessoas

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exercerem funções parentais na vida dos filhos, o registro deve refletir esta

realidade.

Problema semelhante pode ser constatado com a adoção por casais

homoafetivos, de modo que muitos apontam como obstáculo à efetivação a

operacionalização registral. Entretanto, julgados que têm deferido a adoção por

pares homossexuais têm encontrado alternativas para superar esse obstáculo

meramente formal, qual seja, ao invés de fazer referências ao pai ou à mãe, ter

como ponto central o filho, ou seja, “filho de”, o que dispensa a diferenciação dos

genitores por questões de gênero.

O mesmo deve ocorrer com a nova situação da multiparentalidade: o

registro deve se adaptar a esta nova situação, constando espaço para mais de um

pai ou mais de uma mãe, para que, a partir da efetivação do registro, gere todos os

efeitos advindos da filiação. A lei n. 11.924/09 corroborou esses novos paradigmas,

ao determinar uma alteração no art. 57 da Lei 6.015/73, com o seguinte teor:

Art. 57. (...)

§ 8o  O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.

Em 2009, o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, por meio dos

Provimentos 02 (BRASIL, 2009) e 03 (BRASIL, 2009), fixou modelos de certidões de

nascimento, casamento e óbito, uniformizando a expedição desses documentos em

todo o país.

De fato, a inclusão dos nomes dos eventuais pais ou mães que venham a

ser reconhecidos hão de constar no registro de nascimento da pessoa, nos termos

da Lei Federal nº 6.015/73, conhecida popularmente como Lei de Registros

Públicos, responsável pelo registro da filiação e pelos efeitos jurídicos que essa

passa a emanar.

Ocorre, todavia, que a Lei de Registros Públicos não faz previsão acerca

da hipótese de multiparentalidade, o que é bastante óbvio, ao considerar-se que se

trata de uma lei de 1973, enquanto o fenômeno da multiparentalidade, por outro

lado, é bastante recente, fruto da sociedade contemporânea em que vivemos e de

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suas conquistas, a exemplo do avento dos exames de DNA e do paradigma da

socioafetividade.

Todavia, esta lacuna jurídica no âmbito da legislação ordinária não se

demonstra como um empecilho ao exercício da multiparentalidade, visto que o

referido instituto é contemplado pelos princípios constitucionais, os quais, como se

sabe, são hierarquicamente superiores dentro do ordenamento jurídico.

O registro não pode ser um óbice para a sua efetivação, considerando

que sua função é refletir a verdade real; e, se a verdade real concretiza-se no fato de

várias pessoas exercerem funções parentais na vida dos filhos, o registro deve

refletir esta realidade.

É neste vértice que reside a importância do caráter registral da

paternidade, visto que, muito embora o aspecto material da paternidade resida nos

critérios afetivos e biológicos, será somente o critério registral que cumprirá os

requisitos da paternidade no plano formal, os quais, por sua vez, resultarão no

estado da pessoa natural, vindo a operar no mundo dos fatos as consequências

morais e patrimoniais advindas do vínculo paterno-filial.

Especificamente no tocante à filiação, o CNJ, tanto na certidão de

nascimento, quanto nas demais, exige o campo filiação, porém sem delimitar

quantas ou quais seriam as pessoas que figurariam naquele campo. Assim, se criou

o modelo ideal para o surgimento da multiparentalidade dentro dos registros das

pessoas naturais.

Assim o sendo, a averbação da multiparentalidade reconhecida através

de ação declaratória se dará nos termos do artigo 97 da Lei de Registros Públicos

(BRASIL, 1973):Art. 97. A averbação será feita pelo oficial do cartório em que constar o assento à vista da carta de sentença, de mandado ou de petição acompanhada de certidão ou documento legal e autêntico, com audiência do Ministério Público.

Neste diapasão Cysne (2008, p.199) contribui ao dizer que “hoje o que

deve ser priorizado por parte da doutrina, da legislação infraconstitucional e da

jurisprudência é uma aceitação e adequação às novas formas de organizações

familiares, baseadas, sobretudo, na afetividade”.

Diante Desse Panorama, Não Há Obstáculos Para Que O Direito Acolha

A Multiparentalidade Como Fato Jurídico, Por Ser, Muitas Vezes, A Alternativa Que

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Melhor Tutela A Criança Inserida Em Famílias Reconstituídas, Pois Esta Tem Nos

Seus Dois Pais Ou Duas Mães, Verdadeiras Referências Parentais Que, Uma Vez

Suprimidas, Podem Lhe Gerar Danos Desnecessários, Tão-Somente Em Virtude Do

Apego A Concepções Oitocentistas Que Não Mais Atendem À Realidade Atual.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mais novo paradigma a ser construído é o da multiparentalidade, tendo

em vista que o Direito precisa jurisdicionalizar essa realidade social, na qual pais e

padrastos exercem funções complementares na vida de seus filhos, atreladas ao

exercício da autoridade parental. É este exercício que entendemos ser gerador do

parentesco socioafetivo, exteriorizado pela posse de estado de filho, que tem no

elemento “tratamento” seu pilar central.

A filiação, enquanto instituto do Direito de Família, se demonstra um

conceito igualmente dinâmico no mundo jurídico, visto que sua evolução histórica

explicita o quão já se aperfeiçoou em conceder tratamento isonômico aos filhos,

deixando de descrimina-los entre legítimos e ilegítimos de acordo com sua origem.

Neste aspecto, impossível não citar a Constituição Federal de 1988 como a

responsável direta por esta conquista, refletindo tal avanço na renovação legislativa

e jurisprudencial de todo o país.

Nesse sentido, a Lei 11.924/09 veio compor a trilogia da posse de estado

de filho, facultando o acréscimo do nome do padrasto ou da madrasta, juntamente

com os patronímicos da família biológica, demonstrando a clara possibilidade de se

cumular o referencial parental, de modo que o nome reflita a realidade familiar

completa.

Observam-se, dessa forma, reflexos jurídicos benéficos para o filho, eis

que ele terá em relação aos seus pais/mães todos os direitos de família, como os

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oriundos do poder familiar e alimentos; direitos sucessórios; direitos previdenciários;

etc.

Assim, o reconhecimento jurídico da multiparentalidade e sua

exteriorização, por meio da averbação no registro civil, efetiva a garantia de todos os

direitos advindos da pluralidade de pais/mães.

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Tribunais, 2011.

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