Doutorado Leonardo Soares

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS

LEONARDO FRANCISCO SOARES

LEITURAS DA OUTRA EUROPANA LITERATURA E NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL

GUERRAS E MEMRIAS

Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2006

Leonardo Francisco Soares

LEITURAS DA OUTRA EUROPANA LITERATURA E NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL

GUERRAS E MEMRIAS

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obteno do grau de Doutor em Letras: Estudos Literrios. rea de concentrao: Literatura Comparada Orientadora: Prof Dr Graciela Ravetti Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG

Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2006

Tese intitulada Leituras da Outra Europa: guerras e memrias na literatura e no cinema da Europa Centro-Oriental, aprovada pela banca examinadora constituda pelos seguintes professores:

Prof Dr Graciela Ravetti Faculdade de Letras/UFMG - Orientadora

Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios FALE/UFMG

Belo Horizonte, 31 de outubro de 2006

Este trabalho foi realizado com o auxlio de bolsa de estudos da Fundao de Apoio Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

Ao Jos: so faraway, and so close

MEUS AGRADECIMENTOS professora Graciela Ravetti, meu agradecimento especial, pela orientao sempre instigante e pela pacincia e confiana dispensadas, o que certamente me incentivou a terminar esta tese. Aos professores Luis Alberto Brando Santos e Cssio EduardoViana Hissa, membros do exame de qualificao, pelas leituras atentas. Seus comentrios crticos e sugestes ampliaram o meu horizonte de indagaes sobre o tema e permitiram circunscrever melhor as etapas da tese. professora Maria Esther Maciel, pelas memrias de Borges e pelas sugestes bibliogrficas contidas no incentivante parecer do projeto definitivo de tese. Ao professor Aleksandar Jovanovic, pela gentileza com que se disps a me enviar material bibliogrfico, fazer sugestes e ler o projeto desta tese. Aos professores Teodoro Renn Assuno, Murilo Marcondes de Moura e lcio Loureiro Cornelsen, pelo apoio bibliogrfico e sugestes para lidar com a noo de guerra. professora Leda Maria Martins, pelo dilogo iniciado no mestrado. Nossas incessantes conversas e seu exemplo de seriedade e coerncia no trabalho intelectual contriburam de forma decisiva no germe deste trabalho. Aos meus familiares, colegas, alunos e amigos que, de diferentes maneiras (solidariedade, partilhas, envios, indicaes, tradues, incentivo, amizade, rumor, silncio), contriburam para que este trabalho se realizasse, em especial e ne... que: Leandra Batista Antunes, (as)ris, Luiz Fernando Lima Braga Jnior, Andra Sirihal Werkema, Ilca Soares, Arthur Parreiras Gomes, Osias Silas Ferraz, Jaider F. Reis, Simone Aparecida da Silva, Eduardo Roberto Batista, Cntia Moraes Mota, Mrcio Lanna, Rosa Teodoro, Lidiany Silva Barbosa, Ana Aparecida Soares de Aguiar, Rudson Carlos Vieira, rica Rapunzel e Glauber. Letcia Magalhes Munaier Teixeira (e a todos os funcionrios do Colegiado de Ps-Graduao em Estudos Literrios), por continuarem trazendo leveza s questes burocrticas. Vvien Gonzaga, por MUITO.

Toda essa literatura um ataque contra as fronteiras...Franz Kafka, Dirios

(...) encontraram-se aqui as letras de metade do mundo e por algum milagre, sobreviveram lado a lado aos piores tempos.Stefan Chwin, A breve histria de uma piada (cenas da Europa Centro-Oriental)

Tudo cabe no globo. (...) O mundo do rio no o mundo da ponte.Joo Guimares Rosa, Orientao

(...) toda origem forjada no caminho cujo destino o meio.Antonio Cicero, Amaznia

RESUMO

Este estudo examina os processos especficos de construo de identidades, em narrativas advindas do cinema e da literatura da Europa Centro-Oriental. A partir do trabalho com um corpus composto de obras produzidas nas ltimas dcadas do sculo XX textos literrios de Ismail Kadar, Danilo Ki e Istvn rkny; e os filmes Antes da chuva, de Milcho Manchevski, Um olhar a cada dia, de Theo Angelopoulos e Underground mentiras da guerra, de Emir Kusturica , investiga-se o problema das diferentes configuraes da guerra nesses textos. Articula-se, ainda, o tema da guerra com as concepes de nao, histria, memria e representao.

RESUMEN

Este estudio examina los procesos especficos de construccin de identidades en narrativas venidas del cine y de la literatura de Europa Centro-Oriental. A partir del trabajo con un corpus compuesto de obras producidas durante las ltimas dcadas del siglo XX textos literarios de Ismail Kadar, Danilo Ki e Istvn rkny; y los filmes Antes de la lluvia, de Milcho Manchevski, La mirada de Ulises, de Theo Angelopoulos y Underground, de Emir Kusturica , se investiga el problema de las diferentes configuraciones de la guerra en esos textos. Se articula, tambin, el tema de la guerra con las concepciones de nacin, historia, memoria y representacin.

RESUME

Cette tude examine les processus spcifiques de construction des identits dans les narrations tant cinmatographiques que littraires en Europe de l'Est. On recherche les diffrents modes de reprsentations de la guerre travers l'analyse d'un corpus constitu d'oeuvres des dernires dcennies du XXme sicle les textes des crivains Ismail Kadar, Danilo Ki et Istvn rkny et les films Pred dozhdot (Before the rain), de Milcho Manchevski, Le regard dUlysse, de Theo Angelopoulos et Underground il tait une fois un pays, dEmir Kusturica. On articule galement le thme de la guerre avec les conceptions respectives de la nation, de lhistoire, de la mmoire et de la reprsentation.

LISTA DE FIGURAS

1. Underground mentiras da guerra (imagem da terra-jangada de ningum) ........ 49 2. Europe as queen (reproduo da cosmografia de Sebastian Mnster)..................... 69 3. Um olhar a cada dia (imagem da passagem do Navio Azul)................................. 129 4. Um olhar a cada dia (imagem do encontro de guarda-chuvas e tochas) ............... 131 5. Um olhar a cada dia (imagem da Cabea de Lenin).............................................. 136 6. Underground (imagens de fico e documentrio em confluncia)....................... 221

SUMRIO

INTRODUO Estimativas e clculos preliminares ....................................................... 13

PARTE I EUROPA: PAISAGEM NA NEBLINA CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia ........................ 30 1.1 Da epgrafe ou Se oriente rapaz... ...................................................................... 30 1.2 Antes da Europa: o mito ..................................................................................... 51 1.3 Um continente sem bordas.................................................................................. 62 1.4 Dentro e fora da Europa ...................................................................................... 75

PARTE II GUERRA: MEMRIAS EM F MAIOR CAPTULO 2 Representar a Guerra ............................................................................... 90 2.1 Mas a guerra disse: sou!..................................................................................... 90 2.2 Textos em guerra............................................................................................... 100 2.3. O ponto cego de uma experincia ..................................................................... 143 CAPTULO 3 A inveno da memria ......................................................................... 161 3.1 Quem reivindica a verdade histrica?............................................................... 161 3.2 Arquivo dos mortos........................................................................................... 186 3.3 Mentiras em 35 mm .......................................................................................... 211

CONCLUSO POST-SCRIPTUM ...................................................................................... 230

REFERNCIAS................................................................................................................. 234

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INTRODUO

ESTIMATIVAS E CLCULOS PRELIMINARES1

No vero de 1958 o autor visitava tranqilamente o Museu Histrico e Geogrfico da Filadlfia quando, ao voltar-se um pouco para a direita, avistou de repente um pcaro blgaro. (...) Como toda gente, tambm ele sempre ouvira falar, desde a mais tenra infncia, sobre pcaros e sobre blgaros mas sempre achando que se tratava apenas de um jogo de palavras ou, na melhor das hipteses, de personagens de conto de fadas, to reais quanto as aventuras do baro de Mnchhausen. Nunca lhe passara pela cabea que, numa esquina qualquer do mundo, de repente lhe pudesse aparecer pela frente um blgaro segurando um pcaro, ou ento um pcaro com um blgaro dentro, ou ainda e muito menos um pcaro simplesmente blgaro...Campos de Carvalho, O pcaro blgaro

Um pcaro blgaro com data (sculo XIII a.C.), etiqueta (dinastia Lovtschajiik) e tudo (sala 304-B, ala direita), sob a guarda da bandeira norteamericana!2 Eis o acidente geonomstico que leva o narrador-personagem do livro de Campos de Carvalho a propor uma expedio Bulgria para conferir com os prprios olhos se o amorvel pas de fato existe. O acontecimento inslito um pcaro blgaro em um museu da Filadlfia leva-o a publicar um anncio no jornal: Expedio Bulgria. Procuram-se voluntrios. Nessa narrativa desconcertante de Campos de Carvalho, na qual o nonsense impera, tudo termina, sim, em uma partida... de pquer.

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TZU. A arte da guerra, p. 13. CARVALHO. O pcaro blgaro, p. 311-312.

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Tomo a premissa do romance de Campos de Carvalho como termo de comparao para minha relao inicial com a Outra Europa, a Europa Centro-Oriental, se que ela existe.3 Ao longo dos anos, vrios foram os meus encontros com pcaros blgaros, que nos espreitam nas encruzilhadas de diferentes economias significantes muitas vezes travestidos de Meninos da rua Paulo, de Ferenc Molnr, A metamorfose, de Franz Kafka, Mephisto, de Istvn Szab, Montenegro prolas e porcos, de Duzan Makvejev, A cavalaria vermelha, de Isaac Babel, espera dos brbaros, de Konstantinos Kavfis, entre outros disfarces cheios de consoantes. Porm, nesses encontros, apesar de certo estranhamento, talvez devido ao espanto geonomstico, nunca fui assaltado pela nebulosa questo geogrfica a respeito da existncia das bordas de l, do Velho Continente. Na ltima dcada do sculo XX, vi aumentar o nmero de noticirios, publicaes, tradues, narrativas flmicas e literrias, enfim, a circulao de imagens e referncias Europa Centro-Oriental. Na verdade, poucas reas foram alvo de tanto interesse e cobertura jornalstica quanto a pennsula balcnica.4 Tanto no Brasil quanto em outros pases do dito Ocidente, esse recrudescimento do interesse por aquela parte do mundo, a sua alta visibilidade, ao longo da dcada de 90 do sculo passado, estavam relacionados a um fator negativo: os conflitos blicos que, nesse perodo, se desencadearam na regio mais especificamente, na ex-Iugoslvia. Segundo Dina Iordanova, ao longo de um dos seus estudos sobre a cultura da Europa Centro-Oriental,5 representaes dessa regio da Europa tornaram-se um componente integral do escopo da mdia ocidental, devido a uma atrao desse olhar3

Se a Bulgria existe, ento a cidade de Sfia ter que fatalmente existir. Este o nico ponto no qual parecem assentir os que negam e os que defendem intransigentemente a existncia daquele amorvel pas, desde os tempos antidiluvianos at os dias pr-diluvianos de hoje. (CARVALHO. O pcaro blgaro, p. 309). Procura-se aqui, na medida do possvel, no confundir as noes de Europa Centro-Oriental e de Blcs e outras correlatas. Entretanto, como tentarei demonstrar na primeira parte deste trabalho, as questes geonomsticas entre o Danbio e o estreito de Dardanelos so bastante tensas. Trata-se de uma cartografia imaginada, que projeta, nas linhas de mapas desejantes em cobrir pontualmente o espao fsico, obscuros antagonismos ideolgicos. IORDANOVA. Cinema of flames: Balkan Film, Culture and the Media. Nesse livro, a autora concentra-se especificamente nas imagens jornalsticas e de documentrios sobre os conflitos na regio veiculadas na Europa Ocidental. Por outro lado, o filme Underground mentiras da guerra, de Emir Kusturica, ganhar destaque na reflexo, em especial, devido polmica provocada quando do seu lanamento, como se confirmar na ltima parte desta tese.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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ocidental para as questes da guerra, da violncia, da pobreza, ou seja, o nosso interesse na regio sustentava-se, sobretudo, na fascinao pelo espetacular e pelo catastrfico em terras estrangeiras. Apesar de certo trusmo que permeia a afirmao, esta mostra contornos mais interessantes quando se constata que, com a mesma rapidez com que ganhou os meios de comunicao, a Europa Centro-Oriental caiu na marginalidade do dia-a-dia dos mdia, sendo suplantada, respectivamente, pelo Afeganisto, em seguida, pelo Iraque, e, para chegar aos dias em que termino de escrever este trabalho, pelo Lbano. Outra coisa que tornava premente o interesse pelos acontecimentos na regio do Blcs, na ltima dcada do sculo passado, era, como salienta Jos Augusto Lindgren Alves, o fato de a pennsula se encontrar no continente europeu, por definio branco e civilizado, abrigando, ainda por cima, as runas e monumentos (no apenas no territrio da atual Repblica Helnica) a recordarem que ali o Ocidente nasceu.6 As implicaes da circulao e re-circulao das imagens da Europa CentroOriental no extremo Ocidente uma expresso bastante utilizada a respeito do Leste Europeu, ao longo dos anos 90, era Extremo Leste, ttulo inclusive de uma srie de documentrios do Channel 4, de Londres configuram-se como uma das questes que atravessam esta tese e, certamente, indicam os riscos e os efetivos perigos envolvidos neste trabalho. Afinal, o meu interesse pela literatura e pelo cinema advindos desses territrios intensifica-se exatamente em meio voragem de imagens, desejos, represses, investimentos e projees de um olhar ocidental, incontestavelmente conduzidos como o periscpio com o qual Marko, personagem central do filme Underground, de Emir Kusturica, controla o poro pelo epicentro cultural-americanoocidental, que, desde a Segunda Guerra Mundial, assumiu a posio hegemnica antes ocupada por uma cultura europia soberana. Assim como a personagem do romance de Campos de Carvalho, que, diante do desafio atirado acintosamente pela poderosa mquina de propaganda ianque,7 lana-se ao grande propsito de verificar se a Bulgria existe, talvez tenha sido esse encontro6

ALVES. Nacionalismo e etnias em conflito nos Blcs, p. 5. Disponvel . CARVALHO. O prcaro blgaro, p. 312.

em:

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INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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com uma Outra Europa com data, etiqueta e tudo, e tambm sob a proteo da bandeira dos Estados Unidos , que viria detonar, em mim, dvida semelhante a respeito da Europa Centro-Oriental. Ao longo do investimento brutal dos meios de comunicao na questo dos conflitos nos Blcs, alguns antigos clichs voltaram tona e ganharam fora, moldando uma espcie de representao mdia da Europa Centro-Oriental, mesmo dos pases no envolvidos diretamente em combates. Esses clichs, conforme salientado por Slavoj Zizek, em artigo de 1996,8 poderiam ser divididos em dois grupos. Em primeiro lugar, no que tange ao conflito especfico na Bsnia, o que se assistiu foi uma demonizao dos srvios, a partir de uma pblica condenao da Repblica Srvia em contraposio a uma compaixo pela Bsnia. Esse mesmo mecanismo de demonizao, a insistncia em se culpar uns e inocentar outros, denominado por Dina Iordanova de endocrinizao miditica.9 Nesse sentido, os srvios eram percebidos como invisveis guerreiros e vencedores, enquanto os bsnios eram confinados ao papel de vtimas sofridas, uma tipificao tambm comum s tradicionais narrativas de guerra, como tentarei demonstrar no segundo captulo desta tese. Nas palavras de Slavoj Zizek:o principal empenho do Ocidente manter imperturbvel esse enquadramento fantasmtico sublinhado. (...) A verdade sobre a tal demonizao dos srvios reside na fascinao com suas vtimas, percebida claramente atravs das posturas do Ocidente para com imagens horrendas de cadveres mutilados, de crianas feridas e chorando, etc. (traduo minha)10

Devido s guerras na ex-Iugoslvia, no final do sculo XX, uma verdadeira expedio de reprteres partiu para cobrir os acontecimentos. Para explicar o que estava acontecendo na regio, tornou-se lugar comum recuperar pelo menos quinhentos8

ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by other means. Disponvel em: . IORDANOVA. Cinema of flames, p. 168-169. the main endeavor of the West is to keep undisturbed this underlying phantasmatic frame. (...) The truth of so-called demonization of the Serbs resided in the fascination with their victims, wich was clearly perceptible in the Western attitude towards horrifying pictures of mutilated corpses, of wounded and crying children, etc. (ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by other means. Disponvel em: ).INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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anos de histria dos Blcs, com sua mescla de guerras, religies e conflitos tnicos. Em conseqncia, um outro clich jornalstico ganhou predominncia: aquele de que os povos dos Blcs, cooptados pelo redemunho de mitos histricos perigosamente lidos ao p da letra11 , seriam deterministicamente fadados violncia, atrocidade e ao horror das guerras. Armados com testemunhos tpicos e algumas noes histricas decoradas no caminho,12 correspondentes de uma infinidade de veculos de comunicao produziram obras de anlise dos acontecimentos que desenhavam a regio como um mtico cenrio de paixes primordiais e eternas, um espao de horrores tnicos e de intolerncia, sobre os quais nada se poderia fazer. Esse vrtice de paixo tnica uma usual representao dos Blcs seria herana, como muitas vezes as vozes deixavam entrever, de um patrimnio desptico, brbaro, oriental, ortodoxo, muulmano e comunista.13 Tinha-se configurado, portanto, nesse estado de coisas, como denominado por Slavoj Zizek, um exemplar caso de Balcanismo.14 A expresso utilizada por Zizek como uma referncia direta ao conceito de Orientalismo desenvolvido por Edward Said. Em sua reflexo, Said parte do pressuposto de que o Oriente no um fato inerte da natureza, mas encontra a sua significao, no e para o Ocidente, a partir do pensamento, da imagstica e do vocabulrio que so legados por essa mesma entidade11

Os mitos fundadores so, por definio, transistricos: no apenas esto fora da histria, mas fundamentalmente aistricos (...) Mas dentro da histria [sucessiva e linear], seu significado freqentemente transformado. (HALL. Da dispora, p. 29). ALVES. Nacionalismo e etnias em conflito nos Blcs, p. 8. Disponvel . em:

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Cf. ZIZEK. You may!. Disponvel em: ; ALVES. Nacionalismo e etnias em conflito nos Blcs, p. 8. Disponvel em: . Um exemplo desse tipo de reflexo condenada por Slavoj Zizek e Jos Augusto Lindgren Alves seria o livro Guerras contra a Europa, de Alexandre del Valle. Como o ttulo j prenuncia, o autor, um adepto da teoria dos choques civilizacionais de Samuel Huntington, desenvolve uma anlise dos enfrentamentos nos Blcs, no Afeganisto e no Cucaso, a partir da oposio entre o retrocesso islmico e panturco e os valores verdadeiros das naes europias. Ver especialmente o captulo Islamismo e panturquismo, duas ameaas comuns s naes europias, da Irlanda Rssia (Cf. VALLE. Guerras contra a Europa, p. 53-103). Tambm John Keegan, em Uma histria da guerra, faz a seguinte afirmao: Os horrores da guerra na Iugoslvia, to incompreensveis quanto revoltantes para a mente civilizada, desafiam uma explicao em termos militares convencionais. (KEEGAN. Uma histria da guerra, p. 9). ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by other means. Disponvel em: .INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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geogrfica ocidental. Alm disso, a cultura europia ganhou em fora e identidade comparando-se com o Oriente como uma espcie de identidade substituta e at mesmo subterrnea, clandestina.15 De certa maneira, a regio da Outra Europa ocuparia tambm esse locus, de que fala Edward Said, como um eterno espao sobre o qual a Europa Ocidental projeta seus fantasmticos contedos. Com humor e ironia, Slavoj Zizek desenha a situao do seguinte modo:Se se pergunta: onde comea a regio dos Blcs? Sempre se diz que a regio comea l embaixo, para o sudeste. Para os srvios, a regio dos Blcs origina-se no Kosovo ou na Bsnia, onde a Srvia est tratando de defender a civilizao da Europa crist frente ao avano do Outro. No que se refere aos croatas, os Blcs comeam na bizantina Srvia, terra ortodoxa e desptica, contra a qual a Crocia preserva os valores democrticos do Ocidente. Muitos italianos e austracos crem que os Blcs originam-se na Eslovnia, posto avanado do Ocidente, de multido eslava. Muitos alemes vem a ustria como contaminada com a corrupo e ineficincia balcnica, para muitos do norte da Alemanha, a catlica Bavria no est livre da contaminao balcnica. Muitos franceses arrogantes associam a Alemanha com a brutalidade dos balcnicos do Leste, falta-lhes a finesse francesa. Finalmente, para alguns britnicos opositores da Unio Europia, o continente europeu uma nova verso do Imprio Turco, com Bruxelas como a nova Istambul um despotismo voraz a ameaar a liberdade e a autonomia britnicas.16

Os Blcs configuram-se, nesse caso, como um significante vazio17 atravs do qual tem-se mesurada a diferena em relao norma.18

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SAID. Orientalismo, p. 15. If you ask, Where do the Balkans begin? you will always be told that they begin down there, towards the south-east. For Serbs, they begin in Kosovo or in Bosnia where Serbia is trying to defend civilised Christian Europe against the encroachments of this Other. For the Croats, the Balkans begin in Orthodox, despotic and Byzantine Serbia, against which Croatia safeguards Western democratic values. For many Italians and Austrians, they begin in Slovenia, the Western outpost of the Slavic hordes. For many Germans, Austria is tainted with Balkan corruption and inefficiency; for many Northern Germans, Catholic Bavaria is not free of Balkan contamination. Many arrogant Frenchmen associate Germany with Eastern Balkan brutality - it lacks French finesse. Finally, to some British opponents of the European Union, Continental Europe is a new version of the Turkish Empire with Brussels as the new Istanbul - a voracious despotism threatening British freedom and sovereignty. (ZIZEK. You may!. Disponvel em: ). O conceito de significante vazio, cunhado por Ernesto Laclau, seria, no sentido estrito do termo, um significante (Se) sem significado (So), que continua sendo, apesar da ausncia do conceito, parte integrante de um sistema de significao. (Cf. LACLAU. Emancipacin y diferencia, p. 69-86). Cf. HALL. Da dispora, p. 65.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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Sem a garantia de sucesso, uma outra tentativa de compreenso dos acontecimentos da ltima dcada do sculo XX, na regio dos Blcs, possvel. A conformao da Europa Centro-Oriental, ao contrrio do Estado-nao moderno,19 que se afirmara a partir do pressuposto da homogeneidade cultural organizada em torno de valores ditos universais, seculares e individualistas liberais, culturalmente heterognea. Objeto da conquista, dominao e influncia de trs diferentes imprios Otomano, Austro-hngaro e sovitico, para ficar nos ltimos quinhentos anos , a regio sempre foi, de formas distintas, multitnica e multicultural. Como adverte Stuart Hall:Os sistemas coloniais de monocultura do mundo ocidental, os sistemas de trabalho semi-escravo do Sudeste da sia, da ndia colonial, assim como os vrios Estados-nao conscientemente fabricados a partir de um quadro tnico mais fluido na frica, pelos poderes colonizadores; no Oriente Mdio, nos Blcs e na Europa Central, pelas grandes potncias todos se ajustam mais ou menos descrio multicultural.20

Com o fim do velho sistema imperial europeu, vrios Estados-nao, multitnicos e multiculturais, foram criados sem a modificao de condies anteriores de convivncia e de existncia sob o domnio dos antigos imprios. Fronteiras inventadas, comunidades imaginadas: uma variedade de tradies tnicas, culturais e religiosas tendo que imaginar21 uma mesma relao com a terra de origem, que elaborar a mesma natureza de seu pertencimento, que inventar tradies22 que fornecessem bases para uma identidade nacional, una, primordial e indivisvel. Com o fim da Guerra Fria, efeitos semelhantes aos do desmantelamento dos velhos sistemas imperiais seriam causados. Como salienta Stuart Hall, a ruptura, ps-1989, da Unio Sovitica como formao transtnica e transnacional foi seguida pela tentativa, liderada pelos Estados Unidos da Amrica, de construir uma nova ordem mundial: Uma caracterstica desse impulso foi a presso contnua do Ocidente, destinada a arrastar, contra sua vontade e da noite para o dia, aquelas sociedades to distintas e19

Sobre a questo do Estado-nao, ver os escritos de Eric Hobsbawm, em especial: HOBSBAWM. Naes e nacionalismo desde 1780, p. 9-61. HALL. Da dispora, p. 53. Cf. ANDERSON. Comunidades imaginadas. Cf. HOBSBAWM; RANGER. A inveno das tradies.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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relativamente subdesenvolvidas do Leste Europeu para o que se chamou de o mercado.23 Em conseqncia dessa projeo da lgica envolvimento cultural, poltico e social do mercado para o interior de culturas e constituies polticas antigas, problemas pendentes e emergentes relacionados ao desenvolvimento social somaram-se ao ressurgimento de traos antigos de nacionalismos tnicos e religiosos no-resolvidos, levando ao conflito sob a forma multicultural. Segundo Stuart Hall, ao analisar os acontecimentos na Europa Centro-Oriental, na ltima dcada do sculo XX: importante frisar que esse no um simples ressurgimento de etnias arcaicas, embora tais elementos possam persistir. Traos antigos se combinam com novas e emergentes formas de etnicidade, que freqentemente resultam da globalizao desigual ou da modernizao falha. Essa mistura explosiva revaloriza seletivamente os discursos mais antigos, condensando numa combinao letal aquilo que Hobsbawm e Ranger (1993) denominaram a inveno da tradio e o que Michael Ignatieff (1994) chamou (depois de Freud) de narcisismo das pequenas diferenas.24

Apesar da digresso feita, o objetivo desta pesquisa no como tambm no o era o do Hilrio narrador-personagem do livro de Campos de Carvalho25 firmar nenhuma verdade definitiva sobre uma identidade plena, pura e ntegra da Europa Centro-Oriental, isenta da projeo ocidental. A proposta pensar, tendo como pano de fundo o mal-estar causado por essa forma de marginalizao da Outra Europa, na ltima dcada do sculo passado, processos especficos de construo de identidades, a partir dos dispositivos que a literatura e o cinema so capazes de oferecer. Para tanto, atravs de um corpus composto por narrativas advindas do cinema e da literatura da Europa Centro-Oriental e produzidas nas ltimas dcadas do sculo XX, enfatiza-se aqui a questo das diferentes configuraes da guerra, articulando-a com as concepes de nao, identidade, representao, histria e memria.. A convico central a de que, mesmo diante dos debates mais clamorosos, a literatura e o cinema podem formular respostas prprias, e no apenas reagir de maneira circunstancial e secundria experincia humana.

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HALL. Da dispora, p. 55. HALL. Da dispora, p. 55. CARVALHO. O pcaro blgaro, p. 309.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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Nos livros Trs cantos fnebres para o Kosovo, de Ismail Kadar (Albnia, 1998/1999),26 Um tmulo para Boris Davidovitch: sete captulos de uma mesma histria, de Danilo Ki (Iugoslvia, 1976/1987), e A exposio das rosas: duas novelas, de Istvn rkny (Hungria, 1977, 1967/1993); e nos filmes Antes da chuva, de Milcho Manchevski (Macednia, 1994), Underground mentiras da guerra, de Emir Kusturica (Iugoslvia, 1995), e Um olhar a cada dia, de Theo Angelopoulos (Grcia, 1995),27 a guerra surge como um ponto de apoio comum aos povos heterogneos da Europa Centro-Oriental, funcionando, ao mesmo tempo, como formadora e desintegradora de identidades. Alm disso, nessas narrativas, a linguagem, assim como os espaos, configura-se em luta, em emergncia, em guerra. Como ficar mais explcito atravs das anlises de Um tmulo para Boris Davidovitch, de Danilo Ki, e de Underground, de Emir Kusturica, essas narrativas estabelecem, ainda, dilogos difceis e atravessados com os circuitos de informao e de comunicao. A seleo desse corpus guarda uma dimenso arbitrria e igualmente necessria.28 Se, por um lado, outras narrativas poderiam fazer parte deste trabalho, por outro, o recorte apresenta uma srie de orientaes temporal, espacial, temtica e de leitura que tornou possvel a sua configurao. Como j aludido, o critrio inicial foi o fato de serem textos produzidos na Europa Centro-Oriental e, principalmente, de terem sido veiculados no extremo Ocidente, nas ltimas dcadas do sculo XX, alm, claro, de tratarem da questo da guerra. A ttulo de localizao: os trs filmes selecionados foram exibidos comercialmente no Brasil; alm disso, Underground recebeu a Palma de Ouro em Cannes 1995, sendo que, no mesmo ano e no mesmo festival, Um olhar a cada dia ficou com o Grande Prmio do Jri; Antes da chuva, por sua vez, foi vencedor do Leo de Ouro no Festival de Veneza 1994, sendo, tambm, indicado ao Oscar de Melhor filme estrangeiro. Esse reconhecimento nos principais26

A primeira data refere-se ao ano de publicao dos livros e lanamento dos filmes no seu pas de origem; a segunda data, ao lanamento no Brasil. No caso de A exposio das rosas, as duas primeiras datas so referentes s duas novelas A exposio das rosas e A famlia Tth, respectivamente; a ltima, data de publicao no Brasil. Ao longo da elaborao desta tese, estive em contato constante com outros livros de Ismail Kadar, Danilo Ki e Istvn rkny, sendo assim, em alguns momentos deste trabalho, reporto-me a outras obras desses autores. No caso dos filmes, procurou-se dar nfase s trs produes acima citadas. Cf. SAUSSURE. Curso de lingstica geral, p. 81-84; BENVENISTE. Problemas de lingstica geral, p. 53-59.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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festivais de cinema do Ocidente, aliado constatao de que os trs filmes so coprodues,29 influi sobremaneira no fato de eles terem chegado ao circuito comercial ocidental e na prpria construo dos olhares de Angelopoulos, Manchevski e Kusturica, em dilogo, no isento de tenso, com o mercado, com o Ocidente. Quanto aos textos literrios, na segunda metade da dcada de 1980, a Companhia das Letras lanou no Brasil dois livros de Danilo Ki, Jardim, cinzas e Um tmulo para Boris Davidovitch, na esteira do sucesso de A insustentvel leveza do ser, do tcheco Milan Kundera.30 Por sua vez, Ismail Kadar experimentou uma certa notoriedade, aqui no Brasil, depois que seu romance Abril despedaado foi adaptado para o cinema pelo diretor Walter Salles, em 2001. Antes, boa parte de sua obra j se encontrava traduzida para o portugus. Talvez o menos conhecido dos seis seja Istvn rkny; no obstante, seu livro A exposio das rosas iniciou, em 1993, a coleo LESTE (Editora 34), sob a direo de Nelson Ascher, dedicada a divulgar, no Brasil, os livros de escritores dessa Outra Europa. Por fim, o carter mais necessrio da escolha: o critrio de seleo deste corpus esteve intimamente relacionado com a forma como essas narrativas lidam com as questes propostas por este trabalho, ou seja, tratou-se de selecionar narrativas literrias e flmicas que trouxessem a temtica da guerra vinculada aos processos identitrios dos povos da Europa Centro-Oriental, representao da guerra na literatura e no cinema, histria e memria, de modo a permitir a problematizao e a indagao a respeito dessas questes, no se configurando, portanto, em manifestaes meramente consolidadas na tradio. Tomo narrativas flmicas e literrias sem o propsito, entretanto, de desenvolver questes referentes especificidade desses dois sistemas artsticos e discursivos ou de aprofundar a anlise das relaes entre eles, o que no significa que tais especificidades tenham sido de todo descartadas. Estas esto consideradas nesta proposio de dilogo entre literatura e cinema, tomando como suporte terico a

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Underground mentiras da guerra (Frana/Iugoslvia/Alemanha/Hungria); Um olhar a cada dia (Grcia/Frana/Itlia); Antes da chuva (Macednia/Frana/Reino Unido). Cf. Folhetim, p. 1-28. Fascculo dedicado a Danilo Ki, publicado no jornal Folha de S. Paulo, de 28 de novembro de 1986, ano da publicao da primeira traduo de um livro de Ki no Brasil: Jardim, cinzas.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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semiologia, atravs de autores como Roland Barthes e Christian Metz, e tambm privilegiando as reflexes de Gilles Deleuze e o trabalho de Csar Guimares. Neste trabalho, a literatura e o cinema encontram-se associados, apresentando traos discursivos e narrativos comuns. Tomando as palavras de Csar Guimares: Para alm da comparao entre a imagem literria e a imagem tcnica, o que est em questo a maneira como a linguagem tal como a concebemos em nosso tempo dispe as relaes entre o visvel e o legvel, entre o que se v e o que se l,31 seja nas narrativas produzidas pelo signo lingstico ou pela tcnica cinematogrfica. Nesse sentido, ao longo deste trabalho, utilizo de modo especfico as noes de narrativa ficcional e de texto: ressalto que narrativa, sumariamente, conforme utilizada aqui, consiste no estabelecimento de uma organizao temporal que afeta e ordena, no momento mesmo de sua produo, o diverso, o acidental e o singular. Tal ordenamento no anterior ao ato de construo da narrativa, mas coincidente com ele, afinal este ato constitui o seu objeto.32 Quanto segunda noo, conforme salienta Luiz Costa Lima:A fico (...) no uma especificidade da linguagem (verbal ou no verbal), confiada literatura e s artes. H uma fico cotidiana, como h uma fico literria, as quais no se definem por si prprias, mas em funo de um reconhecimento que lhes prestam ou deixam de prestar perodos e culturas.33

Alm disso, o termo filme, quando utilizado nesta tese, remete definio proposta por Christian Metz, ou seja, a de um discurso significante localizvel, possibilitando encarar o material flmico como um texto passvel de mltiplas leituras: (...) batizaremos de filme, salvo preciso especial, o filme enquanto discurso significante (texto), ou ainda enquanto objeto de linguagem.34 Da mesma maneira, o conceito de texto, aqui, o identifica com os produtos da interao social, na contingncia mesma do processo social. Assim, tomo o texto como suporte no qual se realiza a dinmica da

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GUIMARES. Imagens da memria, p. 66. Sobre as implicaes dessa noo de narrativa, ver: LIMA. A aguarrs do tempo, p. 15-121. LIMA. O controle do imaginrio, p. 8. METZ. A significao do cinema, p. 11-12.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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produo de sentidos, rede na qual se produz sentido e que produzida no tempo e no espao.35 Quanto anlise dessas narrativas ficcionais, desses textos, ela feita de modo individual e independente, e no de modo genrico. Por outro lado, a recorrncia de algumas problematizaes, a repetio de algumas estruturas, a semelhana de alguns enfoques temticos apontam para uma articulao entre essas diferentes configuraes da guerra, uma recursividade que me levou a caracteriz-las como textos em guerra. Ao utilizar essa noo, no pretendo criar, fundar um gnero ou uma etiqueta a ser aplicada a filmes e livros. O fato que a noo de romance de guerra, poesia de guerra e filme de guerra configura-se como um autntico gnero na primeira metade do sculo XX. Como o seu prprio nome expe, esse gnero de guerra apresenta o estigma do referencial imediatamente dado, sendo caracterizado em oposio s vanguardas, arte experimental. A idia a de que aquela war poetry esteve mais ou menos fatalizada para a expresso convencional.36 E assim considerando, as narrativas com as quais trabalho desnaturalizam essa viso, construindo um vnculo outro entre arte e guerra; da a proposta de trat-las a partir de uma noo diversa. No que diz respeito ao referencial terico, como possvel confirmar nas Referncias, ao final deste trabalho, a prpria natureza da pesquisa obrigou-me a dialogar com uma srie abundante de discursos advindos de variados espaos epistemolgicos, tais como a teoria literria, a geografia, a histria, a filosofia, a sociologia, a cincia poltica, a semiologia. Como ser dito em outro momento desta tese, a realidade, como objeto de conhecimento, de linguagem, no se deixa apreender enquanto poro indivisvel, mas se pluraliza e escapa a qualquer tentativa de captura. Assim, rastreando vrias lnguas e disciplinas, com passagens inevitveis por Jacques Derrida, Italo Calvino, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Walter Benjamin; interrogo, tambm, autores como Eric Hobsbawm, Edward Said, Benedit Anderson, Norberto Elias, Hayden White, Linda Hutcheon, Susan Sontag e Hommi Bhabha; busco, ainda, uma importante interao com o pensamento crtico de Luiz Costa Lima, Franois35

Nas palavras de Roland Barthes: texto toda unidade ou sntese significativa quer seja verbal ou visual. BARTHES. Mitologias, p. 201. MOURA. Trs poetas brasileiros e a Segunda Guerra Mundial, p. 181.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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Hartog e Ricardo Piglia; na mesma medida, procuro dialogar com as reflexes realizadas no prprio mbito da UFMG, entre as quais destaco, por sua importncia para esta pesquisa, as produes de Luis Alberto Brando Santos, Cssio Eduardo Viana Hissa e Csar Guimares. Tal encontro de vozes e saberes, conscientemente polifnico, aponta, portanto, para uma viso de estudos literrios para a qual fui sensibilizado desde o curso de graduao, nessa mesma universidade. Em outras palavras, uma tentativa de no atrelar a produo de conhecimento a modos absolutistas e reducionistas de controle dos saberes. Ao transgredir e ultrapassar fronteiras, a proposta produzir uma reflexo que se aproxime do saber paradoxal produzido pela literatura: O saber produzido pela literatura baseia-se na gerao de imagens simultaneamente inusitadas e familiares, na busca de um efeito de identificao do real que to mais intenso quanto maior o estranhamento produzido.37 No atoa que, ao longo da tese, chamo tambm vozes e imagens, advindas tanto do cinema quanto da literatura, para contribuir na conduo do trabalho terico e analtico: as cartografias de Jorge Luis Borges e de Lewis Carroll; a jangada de pedra de Jos Saramago; a cidade invisvel de Italo Calvino; os dirios de Franz Kafka; a terceira margem de Joo Guimares Rosa, as Europas de Hesodo, squilo, Moschos e Ovdio; as imagens de guerra em emergncia de Samuel Fuller, Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola e Robert Altman; as guerras de cinema de David Wark Griffith, Victor Fleming e Steven Spielberg; as galxias de Haroldo de Campos; o olhar de Wim Wenders; a nau de Federico Fellini; o obscuro objeto de Luis Buel; a Irlanda, porca que devora sua ninhada, de James Joyce; as odissias de Homero; as metamorfoses de Woody Allen; os livros, objetos transcendentes de Peter Greenaway e de Caetano Veloso; os ossos de Vasko Popa; as mensagens de Fernando Pessoa... No que tange anlise de textos das mais variadas culturas que compem a Europa Centro-Oriental, apoio-me, principalmente, nos trabalhos de Aleksandar Jovanovic, Nelson Ascher e Henryk Siewierski sobre aspectos diversos da lngua, da literatura e da histria dos diversos pases da regio. Na questo da familiaridade com os idiomas que permeiam as obras em anlise e da qualidade das respectivas tradues, busquei auxlio nos trabalhos e conselhos do j citado pesquisador Aleksandar37

SANTOS. Nao: Fico, p. 187-188.INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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Jovanovic e dos estudos publicados no peridico Slavic and East European Journal, publicado pela American Association of Teachers of Slavic and East European Languages of the U.S. No tocante identidade da Outra Europa, procurei enfatizar, na exposio e anlise de trs reflexes especficas, as dos escritores Czeslaw Milosz, Gjrgy Konrd e Milan Kundera. Quanto fortuna crtica das narrativas trabalhadas na tese, destaco os trabalhos de Andrew Horton, de Franoise Ltoublon e Caroline Eades, de Anne Rutherford e de Celina Figueiredo Lage sobre Theo Angelopoulos; a pesquisa de Andra Frana sobre os filmes Antes da chuva e Underground; as leituras da obra de Emir Kusturica realizadas por Dina Iordanova e por Goran Gocic; as anlises de Leyla Perrone-Moiss, de Alexandre Prztojevic, de Katharina Melic e de Massimo Rizzante sobre a obra de Danilo Ki; as leituras de Jerusa Pires Ferreira, de ric Faye e de Gilles Banderier da obra de Ismail Kadar; as incurses de Nelson Ascher e de Arthur Nestrovski sobre os textos de Istvn rkny. Por fim, uma explicao tambm necessria a propsito da forma e do plano deste estudo. A tese divide-se em duas partes. Na primeira, Europa: Paisagem na neblina, composta de um captulo, A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia, dividido, por sua vez, em quatro sees Da epgrafe ou Se oriente rapaz...; Antes da Europa: o mito; Um continente sem bordas; Dentro e fora da Europa , busco rastrear as noes de Europa (ocidental) e Europa Centro-Oriental, salientando o carter inventado, poroso e adaptvel das mesmas. Trs imagens me acompanham nessa primeira parte da pesquisa: a terra-jangada de ningum, que se arranca do continente no final do filme Underground mentiras da guerra; o estertor bablico de Hannah Krzyzewska, em Um tmulo para Boris Davidovitch: sete captulos de uma mesma histria; e o mapa da Europa como mula teimosa diante do pax turco Murat, em Trs cantos fnebres para Kosovo. A imagem invisvel que se produz do contato do feixe de luz do projetor e a tela branca da cinemateca de Sarajevo, no filme Um olhar a cada dia, aludida ao final do primeiro captulo, ir anunciar a segunda parte da tese, Guerra: memrias em f maior, composta de dois captulos, nos quais me detenho na reflexo sobre os textos escolhidos para anlise. O captulo 2, Representar a guerra, dividido em trs sees:INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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Mas a guerra disse: sou!, Textos em guerra, e O ponto cego de uma experincia. Na primeira seo, tomo como ponto de partida a correspondncia trocada por Albert Einstein e Sigmund Freud, em 1932, e, em dilogo ainda com as leituras de Giorgio Agamben, Erich Hobsbawn e Umberto Eco, entre outros, busco salientar que, ao longo do sculo XX, o estado de exceo irrompe de seus confins espao-temporais, esparrama-se para fora deles, borrando a distino precisa entre perodos de guerra e perodos de paz: a exceo da guerra converte-se em norma, como afirma a personagem Aleksander Kirkov, do filme Antes da chuva. Em seguida, tomo os filmes Antes da chuva e Um olhar a cada dia, respectivamente, para desenvolver a noo de textos em guerra. A respeito da relao intrnseca entre a essncia da guerra e a essncia do dispositivo cinematogrfico, lano mo, nesse momento da tese, das pesquisas de Paul Virilio, que exploram a questo em profundidade, alm das reflexes de Ismail Xavier e de Amir Labaki sobre o relacionamento entre guerra e cinema ao longo do sculo passado. Na terceira seo a partir de perguntas como: de que maneira se pode transmitir o ponto cego de uma experincia? Como manifestar o valor da experincia? , procedo a anlise de Exposio das rosas: duas novelas, examinando as noes/experincias de guerra e de morte e a problematizao de sua representao. A investigao em torno da tarefa paradoxal de transmisso e reconhecimento da irrepresentabilidade da experincia da catstrofe apoia-se nas reflexes tericas de Walter Benjamin, Mrcio Selligman-Silva, Jeanne Marie Gagnebin, Shoshana Felman e Idelber Avelar. No terceiro captulo, A inveno da memria, dividido em trs sees Quem reivindica a verdade histrica, Arquivo dos mortos, e Mentiras em 35mm , valho-me, entre outros, das noes e conceitos de arquivo, a partir de Jacques Derrida e Fausto Colombo; de ideal enciclopdico, atravs das anlises de Leyla Perrone-Moiss, Maria Esther Maciel e Massimo Rizzante; de documento/monumento, partindo principalmente de Jacques Le Goff; e de ficcional, a partir das problematizaes de Wolfgang Iser e Juan Jos Saer, para pensar os lugares da memria na literatura de Ismail Kadar e de Danilo Ki e no filme Underground mentiras da guerra. A partir do questionamento a respeito dos nveis de construo da experincia da memriaINTRODUO Estimativas e clculos preliminares

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nesses campos minados, analiso, respectivamente, o encontro entre mito e histria, os cruzamentos entre diferentes construes da verdade histrica na pica impossvel de Ismail Kadar; a tenso entre memria e imaginrio, fico e verdade, no arquivo dos mortos de Danilo Ki; e, por fim, sou forado a encarar o espelho deformante para o qual Emir Kusturica nos obriga a todos a olhar, desvelando e desconstruindo os suportes documentos e monumentos e os marcos referenciais da memria coletiva.

INTRODUO Estimativas e clculos preliminares

PARTE IEUROPA: PAISAGEM NA NEBLINA

... a Europa, a sia... Essas entidades s existiram no esprito dos brbaros ou em suas representaes grficas. Espcie de quimeras, meio mulher, meio no sei o qu.Ismail Kadar, Trs cantos fnebres para Kosovo

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CAPTULO 1

A INVENO DA EUROPA:REFLEXES EM TORNO DE UMA IDIA

En aquel Imperio, el Arte de la Cartografa logr tal Perfeccin que el mapa de una sola Provincia ocupaba toda una Ciudad, y el mapa del imperio, toda una Provincia. Con el tiempo, esos Mapas Desmesurados no satisfacieron y los Colegios de Cartgrafos levantaron un Mapa del Imperio, que tena el tamao del Imperio y coincida puntualmente con l. Menos Adictas al Estudio de la Cartografa, las Generaciones siguientes entendieron que ese dilatado Mapa era Intil y no sin Impiedad lo entregaron a las Inclemencias del Sol y de los Inviernos. En los desiertos del Oeste perduran despedazadas Ruinas del Mapa, habitadas por Animales y por Mendigos; en todo el Pas no hay otra reliquia de las Disciplinas Geogrficas.Surez Miranda: Viajes de varones prudentes, Libro cuarto, cap. XLV, Lrida, 1658 Jorge Luis Borges, Del rigor en la ciencia

1.1. Da epgrafe ou Se oriente rapaz ...38Fronteiras, limites, marcos, raias, beiras, balizas, linhas, limiares, contornos, bandas, divisas, extremidades, estremaduras, marcas, separaes, termos, franjas, fmbrias, orlas, comarcas, cercaduras, arraias, abas, permetros, confinanas, estremas, extremos, barras, debruns, fins, confins, bordas, bordadas, margens...39 Memria. Ainda me so caras meados dos anos 80 do sculo XX as lembranas das aulas de geografia e de histria do colgio: mapas desenhando territrios; datas e nomes demarcando fatos no tempo; causas e conseqncias. Era a classificao, a taxonomia,38 39

GIL. Oriente, p. 6. Cf. FRONTEIRA; LIMITE. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, p. 1394; 1759.

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enfim, a ordem do caos, das coisas, dos seres, que me inquietavam. O porto seguro representado por aqueles desenhos, nmeros e nomes acalmavam-me, mas tambm me domavam. Na minha nsia adolescente por apreender aquela profuso de superfcies e planos, passei a decorar os contornos e nomes dos pases Repblicas (democrticas, federais, populares), Estados, Naes e suas capitais: Zaire Kinshasa; URSS Moscou; Tchecoslovquia Praga; Iugoslvia Belgrado; Alemanha Ocidental Bonn; Alemanha Oriental Berlim Oriental... O lpis sobre o Atlas, sob a superfcie tnue do papel de seda, percorria os contornos com um cuidado semelhante ao dos primeiros geogrphos,40 embora eu fosse apenas um copista. O priplo do grafite tinha de ser perfeito, afinal, naquela tarefa, no havia lugar para o heterclito. Era a ordem do mundo, a minha certeza. Certeza? Mas, afinal, quem me dera tal garantia? A Guerra, ou melhor, duas guerras, grandes, mundiais. Aquela ordem, a estabilidade das (minhas) fronteiras, forame legada como conseqncia das duas Grandes Guerras do sculo XX. Um mundo dividido em dois sustentados por outra guerra; esta, fria. Pelo menos, era o que eu pude apreender daquelas aulas resqucios de um condicionalismo histrico ingnuo, prestgio das vises finalistas e de um modelo de cincia e de cientificidade preso aos padres de objetividade do sculo XIX. Alm disso, o fato histrico de o mapa poltico do mundo mais precisamente, o da Europa, a Velha e Grande Dama41 manter-se praticamente intacto, de 1945 ao final dos anos 80 ento, o meu presente , confirmava-me a impresso de que as fronteiras e os nomes eram algo natural e imvel.4240

O termo geogrphos, ao que parece, foi introduzido por Eratstenes, no sculo III a.C., e designava aquele que desenha ou descreve a terra, o autor de um tratado de geografia ou cartgrafo. Antes de sua introduo, falava-se em periegets, o autor de um percurso ou uma volta ao mundo habitado. (Cf. HARTOG. Memria de Ulisses, p. 103). A imagem da Europa metonimicamente representada pela figura de uma velha dama aparece no livro Trs cantos fnebres para Kossovo, de Ismail Kadar. Referncia semelhante j aparecera no primeiro romance de Ismail Kadar, O general do exrcito morto, p. 14; p. 230; p. 239. Obviamente, essa imobilidade era apenas aparente. Sob a mscara da serenidade, a segunda metade do breve sculo XX era abalada por mudanas drsticas. Estas no eram mais localizadas ou regionais, mas globais. (Cf. HOBSBAWM. A crise atual das ideologias, p. 213-226; HOBSBAWM. A era dos extremos, p. 223-536).CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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09 de novembro de 1989. A contingncia histrica abalava as minhas certezas. A derrubada do Muro de Berlim era o incio da crise das (minhas) ideologias. Conseqentemente, veio o fim da diviso do mundo em dois blocos; a unio das duas Alemanhas; o desaparecimento da URSS; a semidesintegrao da Tchecoslovquia; o esfacelamento da Iugoslvia. Em pouco tempo, meus mapas e catlogos de capitais se desatualizaram, no mais coincidiam puntualmente,43 ponto por ponto. A queda de um outro muro se insinuava: o da iluso de uma concreta e precisa noo de fronteira e de seus desdobramentos. Para alguns mais especificamente, mas no somente, Francis Fukuyama44 , era o fim da histria o triunfo global e definitivo da democracia sobre o modelo totalitrio ; para mim, o comeo: outra histria, menos utpica e mais heterotpica.45 Em outras palavras, no mais o acercamento completo e objetivo da Verdade absoluta dos fatos, mas a sombra inevitvel do trpico46 espao da escolha; elemento de incerteza. As portas para essa outra histria j me haviam sido abertas bem antes dos acontecimentos aludidos acima, no na sala de aula do colgio, mas noutro lugar: a biblioteca. A literatura, prtica discursiva entre outras, me abria espao para formas singulares de interlocuo, ultrapassando limites e mobilizando fronteiras. Era o campo das probabilidades e das possibilidades diversas de construo de conhecimento sobre a realidade que se descortinava. O encontro com o texto literrio era, para mim, o encontro com o discurso (Discursus)47 percurso transcurso como ao de correr para

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BORGES. Del rigor en la ciencia, p. 225. Cf. FUKUYAMA. O fim da histria e o ltimo homem. Sobre a oposio utopia/heterotopia, ver: FOUCAULT. De outros espaos. Disponvel em: . Nessa conferncia proferida por Michel Foucault, no Cercle d'Etudes Architecturales, em 1967, o autor desenvolve com vagar a noo de heterotopia. Esta designaria os contra-lugares, espcies de utopias realizadas nas quais todos os outros lugares reais de uma dada cultura podem ser encontrados. Por outro lado, se, apesar de irreais, as utopias consolam, as heterotopias inquietam, solapando a linguagem ao impedir de nomear isto e aquilo, ao fracionar ou emaranhar os nomes comuns, ao arruinar a sintaxe. Tambm no prefcio de As palavras e as coisas, escrito um ano antes (1966), Foucault faz uma breve aluso s noes de utopia e de heterotopia, ver: FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. 7-8. trpico o processo pelo qual todo discurso constitui os objetos que ele apenas pretende descrever realisticamente e analisar objetivamente. (WHITE. Trpicos do discurso, p. 14). DISCURSO. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, p. 1054.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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diversas partes, de tomar vrias direes, sem temer o perigo da contingncia ou o risco dos itinerrios inusitados. Se, por um lado, o meu breve relato autobiogrfico atribuiu, de certa forma, s aulas de geografia e histria a responsabilidade ou pelo menos parte dela por minha leitura ordenada e finalista do mundo, foi tambm a leitura de um livro de geografia48 que me sugeriu a escolha de Del Rigor en la Ciencia, de Jorge Luis Borges, como epgrafe deste captulo. O que poderia parecer, em um primeiro momento, irnico, inusitado a cartografia borgiana em um livro de geografia , tinha, para mim, um outro sabor, o de o saber49 produzido pelo texto literrio ao dialogar com outras formas de construo discursiva sobre a realidade. Estava, agora, no mbito de uma outra geografia, de uma outra histria. Alm disso, outro desvio no meu caminho era o fato de no encontrar o texto de Jorge Luis Borges que, diga-se de passagem, dado pelo prprio Borges como de autoria de Surez Miranda: Viagens de vares prudentes, Livro quarto, cap. XIV, 165850 , citado por Cssio Eduardo Viana Hissa,51 a partir da Histria universal da infmia.52 Um enigma borgiano me era proposto pela mobilidade das fronteiras entre os saberes. Esse encontro inesperado s veio confirmar uma certeza, a de que configurar a possibilidade de produo de sentido sobre a realidade a partir de um modelo nico de cincia, como nica forma possvel de saber, significa, hoje, atrelar as disciplinas, cientficas ou no, a uma forma estreita, absolutista e reducionista de produo de conhecimento. At porque a realidade, como objeto de conhecimento, de linguagem, no se deixa apreender enquanto poro absoluta, indivisvel, mas se pluraliza e escapa48 49 50 51 52

HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 26-33. Sobre a proximidade entre a ordem do saber e o ingrediente do sabor, ver: BARTHES. Aula, p. 21-22. BORGES. Del rigor en la ciencia, p. 225. HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 26. Minha edio do mesmo livro do escritor argentino: 2 edio, revista, editora Globo, 2001. Note-se que a edio de Histria universal da infmia citada por Cssio Eduardo Viana Hissa a 5 edio, Editora Globo, 1989. Pude consultar a 4 edio, Editora Globo, 1988; nela consta Do rigor da cincia e um outro texto tambm ausente de minha edio, O inimigo generoso. (Cf. BORGES. O inimigo generoso, p. 70; BORGES. Do rigor da cincia, p. 71). A edio espanhola das obras completas de Borges, Mara Kodama y Emec Editores, 1989 (Cf. BORGES. Obras completas, V. I), tambm no traz esses dois textos dentro de Histria universal da infmia. Eles aparecem dentro do livro El Hacedor, na parte intitulada Museo (Cf. BORGES. Obras completas, V. II, p. 225; 229).CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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a qualquer tentativa de captura. Sendo assim, nas palavras de Cssio Eduardo Viana Hissa:a geografia, tal como todas as outras disciplinas, entendidas como cientficas ou no, tem a sua existncia e o seu significado condicionados pela fuga de seus territrios, edificados ao longo da histria da modernidade. No h geografia sem a transgresso de suas prprias fronteiras, assim como no h qualquer outra disciplina na ausncia da contgua ultrapassagem de seus prprios territrios, to sonhados como rigidamente demarcados.53

Tal afirmao aponta para a existncia dos limites, afinal, as disciplinas no existem sem o estabelecimento destes, ao mesmo tempo em que alude para a necessidade premente de se question-los. Alm disso, ao transgredirem e ultrapassarem as suas fronteiras, as disciplinas experimentam o exerccio de produzir um saber paradoxal, da ordem daquele provocado pelo texto literrio, um saber, nas palavras de Luis Alberto Ferreira Brando Santos, que to mais penetrante e abrangente quanto mais aberto e especulativo.54 Entre as acepes do termo limite est o que no pode ou que no deve ser ultrapassado,55 ou seja, tal noo aponta para idia de obstculo para o trnsito, para o transcurso,56 o limite como cerceamento da liberdade, aquele que se pe a vigiar o territrio e o domnio proibidos, como se nele houvesse uma vida autnoma e a vocao da guarda.57 Conseqentemente, anuncia-se a noo de propriedade atrelada de identidade que territorializa o outro e confirma, reivindica o eu. O inventrio dos mundos concomitante inveno do brbaro, do outro.58

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HISSA. A mobilidade das fronteiras. p. 14. SANTOS. Nao: Fico, p. 6. LIMITE. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, p. 1759. Sobre a noo de transcurso, tal como utilizada aqui, sempre contingente, e sempre interrogador dessa contingncia, ver: SANTOS. Nao: Fico, p. 9. HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 19. Cf. HARTOG. Memria de Ulisses, p. 93-122.

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Por outro lado, o limite, a fronteira,59 o mapa so formas e conceitos inventados para dar sentido s coisas, para facilitar a compreenso daquilo que diverso e heterclito. Elementos intrusos e idealizados que, muitas vezes, so tomados por reprodues exatas, ponto por ponto, de uma realidade supostamente ordenada; disso que fala Jorge Luis Borges, de um rigor na cincia, que se quer reproduo exata e no se reconhece como representao. O maior intento dos cartgrafos de Borges a busca desmedida pelo rigor: um Mapa do Imprio que possua o Tamanho do Imprio e coincidia ponto por ponto com ele. (traduo minha)60 revela-se intil, pois, nesse intento, falta a necessria interpretao/leitura da realidade. Outra imagem do mapa como representao exata do territrio aparece na Concluso de Slvia e Bruno, de Lewis Carroll, mais especificamente, no dilogo entre o narrador e Mein Herr na verdade, o professor , que reproduzo aqui: Mapas de bolso... como so teis! Essa outra dvida que temos para com a sua nao: mapas. Foi com vocs que aprendemos a arte da Cartografia. Todavia, acabamos desenvolvendo-a muito alm de seus conhecimentos. Qual a escala que vocs consideram ser a mais til de todas? No meu modo de ver, a escala de um para dez mil. O mapa fica muito menor que o terreno! protestou Mein Herr. Logo de incio, adotamos uma bem mais detalhada: um para trezentos. Com o tempo, acabamos usando uma ainda mais detalhada: um para dois! Por fim, acabamos elaborando o mapa do pas na escala de um por um! esse o mapa que vocs usam? Ainda no, porque no conseguimos estend-lo no cho. Os fazendeiros protestaram, alegando que esse mapa acabaria tapando toda a luz do sol. O remdio foi usar como mapa o prprio terreno do pas, e asseguro que est dando muito certo! (grifos meus)61

Como os exemplos retirados de Jorge Luis Borges e Lewis Carroll permitem entrever, quando o melhor modelo de um fenmeno o fenmeno mesmo, o cientfico

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Apesar da equivalncia, os conceitos de limite e de fronteira estabelecem distncias e deslocamentos. A fronteira constitui um espao abstrato por onde passa o limite. Este reconhecido como linha abstrata e no pode, portanto, ser habitado, ao contrrio da fronteira que, ocupando um faixa (areal), mostra-se espao de transio e intercmbios variveis. (Cf. HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 34-45). un Mapa del Imperio que tena el tamao del Imperio y coincida puntualmente con l (BORGES. Del rigor en la ciencia, p. 225.). CARROLL. Obras escolhidas, 722-723.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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revela sua impotncia e sua interveno resulta suprflua (traduo minha).62 Em outras palavras, aqui tomadas de Paul Virilio, que, por sua vez, l A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica, de Walter Benjamin, o excesso de exatido redunda em delrio de interpretao.63 Significativo o exemplo dado por Virilio, o do sistema INS, no Japo, um coletor central de informaes do tamanho de uma cidade e que, segundo o governo japons, seria estendido s cinqenta maiores cidades do pas. Seria a ubiqidade tico-eletrnica incidindo sobre a configurao do territrio com a mesma iluso de inteireza dos cartgrafos aos quais Jorge Luis Borges e Lewis Carroll fazem aluso. Essa ambio de fazer da geografia uma cincia exata, ironizada por Borges e Carroll, j era cara aos primeiros geogrphos. Eratstenes, o mesmo que introduziu o termo geogrphos, no sculo III a.C., tambm aquele que, tendo a ambio de fazer da geografia uma cincia verdadeiramente geomtrica, visava a construir uma representao exata do espao terrestre: o mapa devendo operar como um dispositivo geomtrico (grifos meus).64 Tal intento aparece tambm nos mapas matematicamente rigorosos do Iluminismo. O projeto iluminista, com sua concepo da ordenao racional do espao e do tempo, concebia o mapa como artefato e tambm viso totalizante do mundo.65 A cartografia moderna, ltima relquia das Disciplinas Geogrficas,66 na busca pela objetividade, alicerou-se nesses fundamentos iluministas de racionalizao e controle do espao. O avano da tecnologia tornou ainda mais problemtica a relao entre os sistemas de representao cartogrficos e a percepo da realidade. Como afirma Luis Alberto Ferreira Brando Santos:

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Cuando el mejor modelo de un fenmeno es el fenmeno mismo, el cientfico ha revelado su impotencia y su intervencin resulta superflua. (BENSEOR. Borges, los espacios geogrficos y los espacios literarios. Disponvel em: ). Ver tambm: HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 27: O avano da ansiedade pleo rigor transforma a j precria representao em reproduo. VIRILIO. O espao crtico e as perspectivas do tempo real, p. 60. HARTOG. Memria de Ulisses, p. 121. Cf. HARVEY. O tempo e o espao do projeto do Iluminismo, p. 219-235. BORGES. Del rigor en la ciencia, p. 225.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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Com o desenvolvimento vertiginoso das novas tecnologias informatizadas, tende-se a supor que, na atualidade, as possibilidades de representao do espao tornem-se cada vez mais poderosas e exatas. No entanto, tais tecnologias possuem uma dimenso ambgua: na busca da alta definio, da preciso rigorosa das formas de representao, criam-se linguagens codificadas que, por serem progressivamente mais complexas e mediatizadoras, geram o risco de um delrio de interpretao.67

Cabe aqui uma analogia entre os mapas e o sistema de signos lingsticos68 para compreender melhor a relao arbitrria entre os sistemas de representao cartogrficos e a realidade. Um mapa pretende ser a representao ou o conjunto de informaes a respeito de um espao determinado. Essa representao se d a partir de smbolos. Espera-se, assim, que as pessoas possam se deslocar nos territrios, viajar a lugares em que nunca estiveram antes, usando mapas, que devem ser lidos atentando-se para o sistema de smbolos utilizado. Segundo Oswald Dreyer-Eimbcke:Um mapa s inteligvel para quem conhece essa linguagem visual, de modo que seja capaz de interpretar os cdigos do original geogrfico. Esses smbolos precisam ser apreendidos como se fossem vocbulos, processo esse que facilitado pelo uso de imagens de associao abstrata.69

Todo mapa uma representao feita por algum com determinados objetivos, de acordo com certos princpios e pressupostos estabelecidos por convenes. Tais convenes iro variar de acordo com as pocas. Assim, por exemplo, os mapas medievais acentuaro as qualidades sensuais, e no, como no Iluminismo, as racionais e objetivas, da ordem do espao.70 Desconhecer o fato de que o mapa no o espao absoluto em si, mas um conjunto de informaes organizadas por um sistema de smbolos, tomar a representao, arbitrria e necessria, pela reproduo, tanto mais fiel quanto mais67 68

SANTOS. Nao: Fico, p. 93. Sobre a questo da natureza do signo lingstico, ver: SAUSSURE. Curso de lingstica geral, p. 79-93; BENVENISTE. Problemas de lingstica geral, p. 53-59. Noutro vis, saliento a desconstruo, proposta por Jacques Derrida, da noo de signo nos dois primeiros captulos (O fim do livro e o comeo da escritura; Lingstica e Gramatologia) da primeira parte (O fim do livro e o comeo da escritura), do livro Gramatologia, p. 7-90. DREYER-EIMBCKE. O descobrimento da terra, p. 16. HARVEY. O tempo e o espao do projeto do Iluminismo, p. 219-235.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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intil. desconhecer o jogo intercambivel entre as palavras e as coisas, to bem descrito, por exemplo, por Marco Polo a Kublai Khan, na geografia fantstica desenhada por Italo Calvino, em As cidades invisveis:Os olhos no vem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas: o torqus indica a casa do tira-dentes; o jarro, a taberna; as alabardas, o corpo de guarda; a balana, a quitanda. Esttuas e escudos reproduzem imagens de lees delfins torres estrelas: smbolo de que alguma coisa sabe-se l o qu tem como smbolo um leo ou delfim ou torre ou estrela.71

Ao se esquecerem de que as palavras no so as coisas, de que os mapas no so os espaos geogrficos, as pessoas tomam os sistemas de representao do mundo como algo natural e acabado, e no como representaes de unidades culturais, que tm valor relativo dentro de certo contexto histrico-social; tambm este construdo, inventado: a suposta concretude e acessibilidade dos meios histricos, estes contextos dos textos examinados por estudiosos da literatura, so elas prprias produtos da capacidade fictcia dos historiadores que estudaram estes contextos (grifos meus).72 dessa ordem a exatido atingida pela Arte Cartogrfica do Imprio aludido por Jorge Luis Borges e do mundo de Mein Herr. No h mais distanciamento ou diferenciao entre o signo e a coisa representada. Nessa pretensa perfeio, no h espao para a leitura, para a interpretao; apenas, para a reproduo. No deixa de ser sintomtico o fato de os fragmentos do Mapa do Imprio encontrarem-se espalhados pelos Desertos do Oeste. O Oeste a direo, na esfera celeste, onde se pem os astros, esquerda de quem olha para o norte; ocaso; poente; ocidente.73 Nas palavras de Cassio Eduardo Viana Hissa, alm de ser o lugar onde o sol se pe, o Oeste ao qual se refere Jorge Luis Borges o produto da racionalidade, do rigor e da meticulosidade cartesianos da cincia e da modernidade: O ocidente da modernidade que se propaga, que expande todos os valores relacionados ao progresso, que se globaliza na suposta ltima revoluo tcnico-cientfica fundamentada na razo e no rigor digitalizado.74

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CALVINO. As cidades invisveis, p. 17. WHITE. Trpicos do discurso, p. 106. OESTE. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, p. 2051. HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 29.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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Com a inicial maiscula, Ocidente designa, para os europeus, a regio do mundo que compe a parte oeste do Velho Continente. Todavia, os americanos do norte, situados a mais de 5.000 quilmetros do oeste de l, por exemplo, no tiveram problemas com o rtulo Ocidente (The West), e mesmo, a partir de meados do sculo XX, com seu domnio. Quanto ao povo rabe, ele emprega o termo Poente (Maghreb) por oposio ao Levante (Machreq), para designar a parte ocidental do conjunto geopoltico do mundo rabe-islmico, sendo o termo Marrocos, por exemplo, a traduo de Maghreb.75 Novamente, a ordem das representaes, subjetivas, humanas, demasiado humanas. O Ocidente... a Europa... a Cristandade... a Grcia... os ns. Fragmentos de um Mapa, pedaos de um Muro: runas. 09 de novembro de 1989. Os ventos do deserto so tomados como ventos de liberdade, o triunfo da democracia e o fim da histria.76 Sob a poeira dos escombros, no entanto, outra paisagem Paisagem na neblina77 desenhava-se para mim. Depois de 1989, o mapa da Europa e do mundo se metamorfoseava e, ao contrrio dos ps-guerras (1919, 1945), no havia vencedores para determinar, supervisionar ou, pelo menos, ratificar fronteiras contestadas.78 A Europa, cujas formas e contornos; limites e fronteiras, naes e capitais, eu guardara de cor, jaz, posta nos cotovelos.79 Ao fit-la, a imagem devolvida revelava-se para alm da Grande Dama dos olhos gregos, dos cotovelos italianos e ingleses, do rosto portugus80 uma Quimera,81 um corpo impossvel; uma vez75 76

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Cf. VALLE. Guerras contra a Europa, p. 319. Sobre as noes cambiantes do termo Ocidente, ver as pginas 319 a 328 da mesma obra. Cito aqui, a ttulo de ilustrao, textos, escritos no calor da queda, que atestam essa leitura otimista da derrubada do Muro de Berlim: DARNTON. Escrito no muro, p. 12-17; TOURAINE. O duro caminho da democracia, p. 18-25; PAZ. Ironia e compaixo, p. 26-29; BRODSKY. O mundo visto de um carrossel, p. 30-36. Por outro lado, saliento que nem sempre a leitura otimista do fato era acompanhada da assertiva do fim da histria. Conforme atesta Octavio Paz, em A outra voz, escrito em 01 de dezembro de 1989: No assistimos ao fim da histria, como disse um professor americano, e sim a um recomeo. Ressurreio de realidades enterradas, reapario do esquecido e do reprimido que, como outras vezes na histria, pode desembocar em uma regenerao. (PAZ. A outra voz, p. 134). PAISAGEM na neblina. Direo: Theo Angelopoulos... (1988). Cf. HOBSBAWM. A era dos extremos, p. 537-538. PESSOA. Mensagem, p. 21 (poema Os castellos) PESSOA. Mensagem, p. 21 (poema Os castellos) A Quimera, animal fabuloso parte posterior de serpente e cabea de leo implantada num corpo de cabra , o produto da unio do monstro Tfon e da vbora Equidna. (Cf. QUIMERA. In: GRIMAL. Dicionrio da mitologia grega e romana, p. 402).CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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fragmentado, s lhe foi possvel recuperar a unidade do corpo atravs de formas hbridas e monstruosas.82 Os acontecimentos posteriores a novembro de 1989, em especfico, os conflitos nos Blcs, tornaram visveis e legveis, para mim, uma regio peculiar, um caleidoscpio de povos, religies, culturas e, obviamente, de lnguas. Srvios, bsnios, croatas, albaneses; catlicos, cristos ortodoxos, muulmanos, judeus; eslovacos, tchecos, ucranianos; hngaros... Babel. Como bem mostra Jacques Derrida:A Torre de Babel no configura apenas uma multiplicidade irredutvel das lnguas, ela exibe um no-acabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificao, da construo arquitetural, do sistema e da arquitetnica.83

A Velha Europa de tradies ditas imemoriais84 mostrava-se, assim, muito mais afeita s metamorfoses do que eu supusera, quase uma imundcie de contrastes, como ns (ns?): apesar de dependentes, ocidentais.85 A visibilidade e a legibilidade desse universo outro, feito de fronteiras ariscas e mutveis, que a cada guerra se deslocam e mudam de nome, renem-se e se separam, desaparecem..., fez-se, para mim atravs das imagens e narrativas do cinema e da literatura da chamada Europa Centro-Oriental que chegaram aqui pelas vias da traduo.86 Com o recrudescimento dos conflitos nos Blcs, o nmero de filmes e livros oriundos dessa regio e traduzidos no Brasil aumentou no decorrer dos anos 90 do sculo XX. Nomes um tanto difceis de pronunciar, uma multiplicidade de lnguas estranhas carentes de vogais! Por outro lado, olhares singulares sobre a identidade, sobre a guerra, sobre o ato de narrar.

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MORAES. O corpo impossvel, p. 89. DERRIDA. Torres de Babel, p. 11-12. Sobre o tema das tradies inventadas, ver: HOBSBAWM. Introduo: a inveno das tradies, p. 923; SAID. Cultura e imperialismo, p. 46-50. Aqui fao referncias a Mrio de Andrade a nossa formao nacional no natural, no espontnea, no , por assim dizer, lgica. Da a imundcie de contrastes que somos. No tempo ainda de compreender a alma-brasil por sntese. (ANDRADE. Aspectos da literatura brasileira, p. 8) e a Silviano Santiago (SANTIAGO. Apesar de dependente, universal, p. 13-24). comum a utilizao dos termos lanado ou no lanado para se referir aos filmes que chegaram ou no chegaram, respectivamente, a ser exibidos no Brasil. Todavia, optei, considerando-a mais adequada, por utilizar a idia de traduo tambm me referindo ao discurso flmico.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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tcito o fato de que, nos pases localizados na Europa Centro-Oriental, a experincia da guerra que consome e desintegra o espao, os lugares, os nomes vivida de forma intensa e intrnseca. Os livros Trs cantos fnebres para o Kosovo, do albans Ismail Kadar, Um tmulo para Boris Davidovitch: sete captulos de uma mesma histria, do iugoslavo Danilo Ki, e A exposio das rosas: duas novelas, do hngaro Istvn rkny; e os filmes Antes da chuva, do macednio Milcho Manchevski, Underground mentiras da guerra, do iugoslavo87 Emir Kusturica, e Um olhar a cada dia, do grego Theo Angelopoulos textos em guerra e no de guerra88 , buscam exatamente um resgate da imagem, do olhar, do narrar, em meio destruio, em meio imploso das fronteiras, dos territrios, dos sujeitos. Nesse sentido, uma caracterstica marcante dessas narrativas vai ser a conscincia da Histria,89 o que pode ser evidenciado pela forma como tais textos lidam com a modulao/construo temporal. um tempo, nas palavras do escritor polons Czeslaw Milosz, a respeito das narrativas da Europa Centro-Oriental,modulado de maneira diferente do que o tempo de seus equivalentes ocidentais.(...) o tempo intenso, convulsionado, cheio de surpresas, praticamente um ativo participante da histria. Isto, porque o tempo associado com um perigo ameaando a existncia de uma comunidade nacional a que pertence o escritor.90

Em anotaes de seus Dirios, datadas de 25 de dezembro de 1912, Franz Kafka figura emblemtica dessa regio salienta de modo significativo essa forma de experincia e de vivncia da histria qual os artistas dessa Outra Europa estariam fadados:O que nas grandes literaturas acontece no plano mais baixo, e constitui um sto de nenhum modo indispensvel ao edifcio, aqui acontece em plena luz; o que l provoca o momentneo intersse (sic) de umas

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Mantenho o adjetivo ptrio iugoslavo ao me referir a Danilo Ki, porque o escritor faleceu em 15 de outubro de 1989, ou seja, antes do esfacelamento do pas. Quanto a Emir Kusturica, inicialmente tambm utilizo a nacionalidade iugoslava, j que, mesmo depois da desintegrao do pas, o cineasta ainda se denominava iugoslavo. Falarei sobre essa questo nas prximas pginas. Essa dicotomia textos de guerra e em guerra ser desenvolvida no Captulo 2 desta tese. Expresso cunhada pelo poeta polons Czeslaw Milosz. (Cf. MILOSZ. Atitudes centro-europias, p. 4). MILOSZ. Atitudes centro-europias, p. 4.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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poucas pessoas, aqui absorve a ateno universal, como um assunto de vida e de morte.91

Alinho s reflexes de Czeslaw Milosz e Franz Kafka o que Homi K. Bhabha afirma a respeito do espao, do povo-nao e do escrever a nao modernos: Precisamos de um outro tempo de escrita que seja capaz de inscrever as intersees ambivalentes e quiasmticas de tempo e lugar que constituem a problemtica experincia moderna da nao ocidental (grifo do autor).92 As problemticas fronteiras e limites da Europa Centro-Oriental encontram-se encenadas nos textos com os quais trabalho nesta tese, atravs dessas temporalidades ambivalentes do espao-nao. A prpria apresentao desses livros e filmes e de seus autores coloca uma fissura, um abismo: a construo das identidades, dos lugares, das nacionalidades e o escrever essas nacionalidades, lugares e identidades. Essa fissura, esse abismo um obstculo que, ao mesmo tempo em que embaraa, proporciona uma posio privilegiada para se refletir sobre o complexo problema das identidades, porque deixa mostra a fragilidade dos discursos sobre o assunto. Como se referir, por exemplo, aps a decomposio da Iugoslvia, ao escritor Danilo Ki e ao cineasta Emir Kusturica? No quero dizer aqui que a questo da identidade no que se refere aos outros autores seja bem resolvida afinal, a questo das identidades e o problema das nacionalidades perpassa todas as letras da Europa Centro-Oriental93 , mas que a desintegrao do pas a partir de 1991 torna as coisas ainda mais complexas, a fratura mais exposta. Danilo Ki, de nome eslavo e sobrenome hngaro, que uma vez afirmara, sintomaticamente, em uma entrevista: Eu sou um bastardo, vindo de nenhuma parte (traduo minha),94 era filho de me srvia, crist ortodoxa, natural da regio de Montenegro,95 e de pai hngaro, judeu; nasceu em 22 de fevereiro de 1935, em91

KAFKA. Dirios, p. 162. Este trecho dos Dirios retomado por Gilles Deleuze e Flix Guattari para confirmar uma das caractersticas das literaturas menores: nelas tudo poltico. (Cf. DELEUZE; GUATTARI. Kafka: por uma literatura menor, p. 25). BHABHA. O local da cultura, p. 201. JOVANOVIC. Iugoslvia, uma constelao cultural, p. 57. Je suis un btard venu de nulle part (KI, Danilo. Le rsidu amer de l'existence, p. 295). Montenegro uma das seis repblicas ao lado da Srvia, Crocia, Eslovnia, Macednia, Bsnia que compunham a ex-Iugoslvia, alm das duas regies autnomas, Kosovo e Voivdina, sob influncia Srvia.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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Subotica, na ento Iugoslvia.96 Perto da fronteira com a Hungria, Subotica ficava na Voivdina e pertencera, at o final da Primeira Guerra Mundial, exatamente aos hngaros, ou melhor, ao imprio austro-hngaro; ou seja, ex-Iugoslvia, ex-Voivdina, ex-Hungria, ex-imprio austro-hngaro, todos esses ex foram acumulados pela mesma regio em menos de um sculo (traduo minha).97 Em 1941, o exrcito hngaro invade a Voivdina e, aps o massacre de judeus e de srvios, pelos fascistas hngaros, a famlia de Danilo Ki obrigada a deixar a regio, sendo acolhida por parentes em Kerkabarabas, na Hungria. No decorrer da guerra, o pai de Ki deportado para Auschwitz, de onde no retornar.98 No perodo em que vive na Hungria entre 1941 e 1947 , Danilo Ki experimenta o uso de duas lnguas: o servo-croata e o hngaro; a vivncia desses dois idiomas ter grande importncia na trajetria ficcional do escritor.99 Anos depois, como professor de literatura em universidades da Frana, onde se instala definitivamente a partir de 1979 at a sua morte, adiciona ao seu universo lingstico o francs: a lngua do exlio, a lngua das tradues.100 E as confuses/convulses sobre suas origens e identidade no param por a, pois Danilo Ki96

Os dados biogrficos de Danilo Ki foram colhidos nas seguintes fontes: ASCHER. Pomos da discrdia; KI. Le rsidu amer de l'existence; KI. An interview with Danilo Ki by Brendan Lemon. Disponvel em: ; DOSSIER Danilo Ki. Disponvel em: ; PROGUIDIS. Le residu amer de l'homme. Disponvel em: ; LORCA. Danilo Ki, ou l'ironie contre l'horreur. Disponvel em: ; SONTAG. Questo de nfase, p. 125-131. ex-Yougoslavie, ex-Vovodine, ex-Hongrie, ex-Empire austro-hongrois, tous ces ex ayant t accumuls par la mme rgion en moins dun sicle. (PROGUIDIS. Le residu amer de l'homme. Disponvel em: ). No romance Jardim, cinzas, de Danilo Ki, misto de memria e fico, a personagem Eduard Scham, pai do narrador da histria, Andi Scham, tambm desaparecer em Auschwitz. Eduard uma espcie de profeta louco que trabalha durante anos sobre um guia chamado Guia das vias de comunicao terrestres, martimas, ferrovirias e areas, que nasce da ambio inicial de responder pergunta (enigma): como ir Nicargua?, e termina transformando-se em um borgiano compndio cosmolgico, para cuja documentao ele consulta uma enorme bibliografia sobre os assuntos mais variados, em quase todas as lnguas da Europa. Danilo Ki chega a listar cerca de duzentas disciplinas que Eduard teria consultado. (Cf. KI. Jardim, cinzas, p. 43-51). KI. Le rsidu amer de l'existence, p. 295. importante salientar que o autor se definiu sempre como Iugoslavo e dizia que se sentia em casa em Zagreb como em Belgrado (Cf. PRSTOJEVIC. Un certain got de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Ki. Disponvel em: ; SONTAG.Questo de nfase, p. 126). Danilo Ki traduziu para o servo-croata alguns dos mais importantes escritores franceses: Lautramont, Raymond Queneau, Pierre Corneille, Jacques Prvert e Charles Baudelaire. Tambm traduziu textos de escritores contemporneos, do russo, do hngaro e do ingls, embora seu trabalho

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morreu em 15 de outubro de 1989, antes da queda do Muro de Berlim; antes do esfacelamento da Iugoslvia. Esse esboo biogrfico do escritor permite exemplificar o palimpsesto em que se configura o mundo socioespacial dessa Outra Europa, alm de confirmar o carter arisco e difuso das fronteiras. Essa experincia de desconcerto babilnico101 do escritor iugoslavo encenada no primeiro captulo do livro Um tmulo para Boris Davidovitch: sete captulos de uma mesma histria, intitulado A faca com cabo de pau-rosa, quando o narrador revela o desejo de forjar uma lngua universal do horror (traduo minha),102 que contenha a mistura de todas a lnguas. Tarefa esta que ele no consegue concluir:Esta histria, nascida na dvida e na incerteza, s tem o mal (que alguns chamam de sorte) de ser verdadeira: foi registrada por mos honestas, segundo testemunhos confiveis. Mas, para que se chegasse verdade com que sonha o autor, teria que ser contada em romeno, hngaro, ucraniano ou idiche; ou antes numa mistura de todas as lnguas. (...) Se o narrador, portanto, pudesse atingir esse momento de desconcerto babilnico, inacessvel e apavorante, ouvir-se-iam at as humildes preces de Hana Krzyzewska e suas splicas horrveis, pronunciadas em romeno, em polons, depois em ucraniano (como se a questo de sua morte no fosse mais que resultado de um engano trgico), e depois, no momento do espasmo derradeiro e do sossego, seria possvel ouvir seu delrio transformar-se em orao pelos mortos, em hebreu, lngua dos incios e da morte.103

O canal para que se torne possvel, legvel, a verdade sonhada pelo narrador seria a lngua-verdade,104 reconstruo da Torre como apagamento de seu nome, Babel.105 Porm, se, de incio, a construo desse monumento linguageiro feito por Danilo Ki aponta para a unidade ideal entre todas as lnguas, metonimicamentede traduo mais profcuo fosse o do francs. (Cf. DOSSIER Danilo Ki. Disponvel em: ; SONTAG. Questo de nfase, p. 129-130).101

A respeito da etimologia do topnimo bblico Babel: do hebreu babhel, latinizado Babel, equivalente a Babilonia, do assrio bab-ilu porta de deus, grego Babulon, Babulona. (Cf. BABEL1; BABEL2; BABILNIA. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, p. 369). une langue universelle de l'horreur (MELIC, Katarina. La fiction de l'Histoire dans Un tombeau pour Boris Davidovitch de Danilo Ki. Disponvel em: ). A autora utiliza a expresso para marcar o dilogo (contraponto) com Jorge Luis Borges. KI, Danilo. Um tmulo para Boris Davidovitch, p. 7. SANTOS. Nao: Fico, p. 35. BBLIA de Jerusalm. A. T. Gnesis. Cap. 11, p. 45.CAPTULO 1 A inveno da Europa: reflexes em torno de uma idia

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representada pelo hebreu,106 no fim da gradao lngua universal, passvel de se transmitir, de se traduzir uma verdade107 , tal projeto revela-se impossvel, inacessvel e apavorante, porquanto uma Babel que contm em si o desejo da unidade da lngua universal, ideal, dos incios e da morte , e carrega, ao mesmo tempo, no nome e na origem ... nascida na... o germe da diversidade, a quebra e a disperso; a dvida e a incerteza. A lngua pura,108 reconciliao, encontro de todas as lnguas, redunda em desconcerto. Tal performance bablica109 apenas tocada, no na escrita mesma do narrador talvez por sua intradutibilidade, afinal: Como traduzir um texto escrito em diversas lnguas ao mesmo tempo? Como devolver o efeito de pluralidade? E se se traduz para diversas lnguas ao mesmo tempo, chamar-se- a isso traduzir?110 , mas na descrio do assassinato da personagem Hana Krzyzewska, a jovem judia, fugida da Polnia, que chegara a Antonovka (Tchecoslovquia), regio onde se passa a primeira histria, e era obrigada a dar aulas particulares de alemo, um alemo muito semelhante ao idiche:111A jovem estava deitada no lodo beira da gua, entre os troncos nodosos dos chores. Respirando com dificuldade, tentava inutilmente levantar-se e fugir. Enquanto lhe enfiava em pleno peito a lmina curta de sua faca de Bucovina com cabo de pau rosa, Mikcha, suarento e ofegante, no entendia mais que uma ou outra coisa da avalanche de palavras soltas, trmulas, queixosas, que emergiam da lama, do sangue e dos gemidos. Golpeava depressa, animado por uma espcie de dio, que agora se justificava e que acelerava o movimento de sua mo. Em meio ao estrondo das rodas do trem e ao ronco surdo das vigas metlicas da ponte, a jovem comeou a falar, depois a estertorar, em romeno, em polons, em idiche, no fim em ucraniamo, como se a questo de sua morte no fosse mais que o resultado de106

porque ness