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CENTRO DE ESTUDOS DE CARTOGRAFIA ANTIGA c x x SECÇÃO DE LISBOA NATUREZA E ESTATUTO DA CAPITANIA DO BRASIL POR MANUEL NUNES DIAS JUNTA DE INVESTIGAÇÕES CIENTÍFICAS DO ULTRAMAR LISBOA • 1979

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Estatuto e natureza das Capitanias

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CENTRO DE ESTUDOS DE CARTOGRAFIA ANTIGA

c x x

SECÇÃO DE LISBOA

NATUREZA E ESTATUTODA CAPITANIA DO BRASIL

POR

MANUEL NUNES DIAS

JUNTA DE INVESTIGAÇÕES CIENTÍFICAS DO ULTRAMAR

L I S B O A • 1979

Separata da

Revista da Universidade de Coimbra

Vol. XXVII —Ano 1979 —pág. 171-188

Composto e impresso na «Imprensa de Coimbra, L.da»

Largo de S. Salvador, 1 a 3 — COIMBRA

NATUREZA E ESTATUTO

DA CAPITANIA DO BRASIL

Com a organização dos resgates do ouro em ambas as costas da ÁfricaNegra, Portugal obteve metais e mercadorias que accionaram as rotas atlân-ticas — capitais para o seu capitalismo monárquico (1).

O comércio africano, do ultramar em geral, era património da Coroa.A arriscada e dispendiosa empresa colonial, que tivera em Ceuta o primeiroarranco, de nítida fisionomia capitalista, era uma instituição do Estado cen-tralizado, criada por ele e posta sob sua égide. O organismo que a instituiuoutorgou-lhe, por privilégio, o monopólio do comércio em todas as regiõesultramarinas. As ignotas e ricas terras descobertas ou conquistadas fica-vam-lhe pertencendo por direito, e nelas exerceria, realmente, todos os pode-res estatais e administrativos de polícia e justiça, como de inteirasoberania.

O critério da realeza era eminentemente patrimonial, confundindo-se,aqui, propriedade e soberania incontrastável, função pública e gestão dosbens particulares do monarca com as terras descobertas ou conquistadas.

A ingerência régia em todos os sectores da vida colonial era declarada-mente inflexível. Nela foi concebido o capitalismo monárquico português,forma incipiente de um sistema de exploração económica de terras e águascoloniais. O controle do trono estava sempre presente, fiscalizador e repres-sivo. O poder de legislar da Coroa, em matéria de economia e administração,procedia da concepção do património, que era inalienável, e da centralizaçãodo poder político, que estava em suas mãos.

As raízes do sistema encontram-se, profundas, nas origens da monarquiae no processo da Reconquista. No velho direito português (2) revelam-seos primeiros lineamentos da estrutura jurídica a cuja sombra se abrigaramos meneios da política económica da Coroa e que deram forma e definiçãoao singular Sistema Colonial português.

(1) Veja-se nossa tese — O capitalismo monárquico português (1415-1549). Contri-buição para o estudo das origens do capitalismo moderno. Vol. I. Coimbra, 1963.

(2) O direito português tem como fontes o direito romano, o direito canónico, o códigovisigótico — que era lei em Leão e Castela ao tempo da fundação da monarquia portuguesa —e o direito consuetudinário, completado, ainda, com os forais e leis gerais.

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A concepção régia que comandou o sistema de exploração comercialultramarina não constitui facto novo, concebido pela conquista das diversasfontes africanas do ouro, da «captura» das especiarias asiáticas desviadaspara o Atlântico ou pela montagem estrutural da colonização do Brasilassente no ensaio capitanial. Nada disso. As suas origens acham-se, nítidas,na formação orgânica da nacionalidade portuguesa. Nasceu e desenvol-veu-se no drama intenso da Reconquista.

Na história das nacionalidades europeias, Portugal representa peculia-ridade. Ele não surgiu por aglutinação de diferentes regiões, congregando-sedentro de determinadas fronteiras naturais (3). O pequeno e irriquietosenhorio não se transformou em reino pela agregação de diversos organismosnacionais, reunidos espontânea e lentamente, ou submetidos, por força cen-trípeta, a um centro hegemónico. Portugal nasceu da conquista e da colo-nização. Expansão pela conquista e sua efectiva consolidação pelo povoa-mento. A formação nacional portuguesa realizou-se pela dilatação de umnúcleo único, pelo seu alargamento num território. Partindo de uma min-guada célula inicial, circunscrita a uma apertada área geográfica debruçadasobre o Atlântico — o «Condado Portucalense» — libertou-se, pela conquistae colonização, transformando-se em reino activo gerador do primeiro EstadoModerno do Ocidente Europeu. A génese da monarquia portuguesa con-figura-se já numa história da expansão, conquista e povoamento.

Nesse processo da Reconquista revela-se a originalidade da sua formaçãonacional. Esmagado contra o mar por um vizinho poderoso e absorvente— a monarquia leonesa — Portugal conseguiu firmar a sua soberania pelavalorização de terras herdadas e das que tomou ao muçulmano infiel.

A profunda instabilidade política e o forte impacto religioso surgidos naPenínsula, com a marcha ascendente do Islão no século viii (4), acabariampor congregar condições que levaram a terra portucalense, doada porAfonso VI de Leão, em 1095, a sua filha Teresa e ao marido — o borgonhêsD. Henrique — a alcançar completa independência (5).

Definitivamente transformado em reino autónomo, Portugal continuoua lutar pela definição do seu território. As terras tomadas constituíampatrimónio da realeza, que podia, assim, doá-las (6) para recompensar ser-

(3) Como aconteceu com a França, Itália e Alemanha.(4) Cf. Palencia. A.G. — La Espana musulmana, págs. 157 e segs., in História

de Espana, t. II. Gallach. Barcelona, 1943; História de Ia Espana musulmana, págs. 9e seg. Col. Labor, 1945.

(5) Herculano, A. — História de Portugal, t. I, págs. 97 e seg. Paris-Lisboa, 1914;Martins, J.P. Oliveira — História de Portugal, t. I, págs. 65 e segs. Lisboa, 1942; Peres,Damião — A Reconquista cristã, págs. 465 e segs., in História de Portugal, t. I. Barce-los, 1928.

(6) Guillarte, L. Domingues — Notas sobre Ia adquisición de tierras y de frutos, ennuestro derecho medieval. Lapresura o escalio, págs. 288 e seg. in Anuário de Historia deiDerecho Espanol. Vol. X. Madrid, 1933.

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viços prestados. Mas a Coroa, ao fazer doações, não abdicava dos seusdireitos soberanos, reservando sempre, para si, a jurisdição suprema (7).

A expansão territorial pela conquista e colonização correspondia, dessemodo, ao alargamento do poder político da realeza, que a presença muçul-mana, trazendo a Península em permanente instabilidade, contribuía pararobustecer, tornando o poder real a única força orientadora e a mais seguragarantia da unidade política do Estado (8).

De direito e de facto, a autoridade incontrastável do monarca estendia-sea todo o reino (9). Por outro lado, a Coroa, repartindo as terras conquis-tadas não só pela nobreza e pelo alto clero, mas também pelas ordens reli-giosas e militares, sem abdicar, jamais, da sua soberania, estabelecia senhoriosrurais e criava, simultaneamente, concelhos (10), outorgando privilégios àspopulações que os constituíam e laboravam no processo de humanização dapaisagem (11). De toda a parte iam para Portugal religiosos, militares,lavradores e mercadores, que eram atraídos pelo poder central. Assim sedefinia e valorizava a conquista portuguesa que a Igreja, a seu modo, nuncadeixou de estimular (12).

Mas o movimento da fronteira do reino punha novos problemas; ques-tões de ordem económica tinham de ser superadas pela via marítima.As necessidades interiores, a segurança maior no litoral, os exemplos dosnormandos e dos cruzados, bem assim a atracção comercial exercida pelosempórios do Mar do Norte, do Báltico e do Mediterrâneo acabaram poratirar os portugueses para o Atlântico. Assim, nesses processos de desen-volvimento, instituiu-se o género de vida nacional: o comércio marítimoa distância assente na agricultura, na salinação e na pesca (13).

As investidas contra o Islão na Península e as lutas contra Leão e Cas-tela não eram simples guerrilhas de predomínio. Elas — força viva de um

(7) Idem, pág. 289; Oliveira, E. Freire — Elementos para a história do Municípiode Lisboa, 1.1, pág. 264; Ribeiro, A. — O rei e a integridade do património da Coroa, págs. 168e seg., in História de Portugal, t. II. Barcelos, 1929; Herculano, A. — Apontamentos paraa história dos bens da Coroa e dosforaes, in Opúsculos, t. VI, págs. 183 e seg.; França, E.O. —O poder real em Portugal e as origens do absolutismo, págs. 73 e seg. São Paulo, 1946.

(8) Cf. Merêa, M.P. — Organização social e Administração Pública, in História dePortugal, t. II, pág. 470. Barcelos, 1929; França, E.O.— op. cit. págs. 70-73.

(9) Ordenações Afonsinas, L. II, tit. 63, n.° 2.(10) Guillart — art. cit. pág. 291; La Concha, I. de — La presura, págs. 392 e segs.,

in Anuário de Historia del Derecho Espanol, vol. XIV. Madrid, 1942; Ribeiro, A. — O reie a integridade do património..., págs. 170 e segs., in loc. cit.

(11) Os concelhos constituíram centros de povoamento e colonização. As povoa-ções, que deviam a sua origem aos aforamentos, foram em muitos casos o embrião de futu-ros concelhos.

(12) A Reconquista foi sempre animada pela Santa Sé (Cf. Bulas de Gregório IXaos cristãos de Portugal — uma de 21 de outubro de 1234, e outra de 18 de feve-reiro de 1241 —, in Silva Marques. Documentos, vol. I, págs. 2 e segs. Ed. do Institutopara a Alta Cultura. Lisboa, 1944.

(13) Cortesão, J. — Os factores democráticos da formação de Portugal, in Históriado Regímen Republicano em Portugal, vol. I, págs. 59 e segs. Lisboa, 1930.

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organismo em crescimento — buscavam a consagração da sua autonomiana complexa urdidura internacional. O ideal não era apenas religioso (14).Se o fosse nada passaria de uma cruzada. Uma vez expulso o invasor sar-raceno, tudo voltaria ao ponto de partida. O quadro político da Penínsulanão se alteraria. Mas não é isso que acontece. O fervor religioso da expan-são não se desvincula do ideal da autonomia política de um agregado social.Essa dupla característica é que dá singularidade à Reconquista portuguesa:libertação e efectiva ocupação do território pela colonização, comvista a uma soberania política. Diversa, sem dúvida, da Reconquistacastelhana.

A própria estrutura militar da primeira dinastia, em que o rei comandaseus exércitos, revela tais directrizes de conquista e colonização. O militarconquista e assegura a defesa das terras que o colono valoriza. E, note-se,o mesmo se dá no ultramar, onde, ao lado da feitoria comercial, construiu-seo forte militar para salvaguarda do trato pacífico e ocupação, da terra aben-çoada pelo missionário. Os três elementos humanos — o militar, o mer-cador e o religioso — encontram-se sempre presentes e uníssonos em ambosprocessos: na Reconquista peninsular e na expansão colonial. É que o por-tuguês nasceu guerreiro e povoador para construir uma singular monarquiacolonizadora, de desenvolvimento simultâneo rural e marítimo.

À medida que o organismo político foi-se estruturando sob o comandoúnico da realeza, o monarca foi reduzindo, e mesmo anulando, o poderdaqueles elementos que lhe haviam sido indispensáveis nas aflitivas horas daconquista, colonização e defesa do território (15).

A acção do trono, a partir, sobretudo do meado do século xiv, insere-seno drama sócio-económico que se apoderou da Nação. As crises (16)levaram ao intervencionismo régio, único poder que se mantinha firme.A alta dos salários, a anemia dos metais nobres, a baixa das rendas da terra,a falta de mão-de-obra e o espectro da fome — malefícios ligados à «Guerrados Cem Anos» e às pestes que se seguiram (17) — acabariam por transformara realeza num absorvente estatismo monárquico.

A centralização à volta do trono, durante o século xv, assenta nessesfundamentos, em que os «homens bons» e a «arraia miúda» dos Conselhosformam ao lado do rei (18). A coroação dos Avis culmina na afirmaçãode um Estado político, cuja aliança estreita com as forças do alto comércioconfiaria ao monarca o comando supremo do novo processo nacional: a con-quista do Atlântico (19).

(14) Veja-se o nosso citado Capitalismo..., vol. I, págs. 69 e segs.(15) Cf. França, E. O. — op. cit..(16). Cf. nossa referida tese — O Capitalismo..., vol. I, págs. 3 e segs.(17) Ibidem.(18) Sérgio, A. — Prefácio, págs. XI e seg., à Crónica de D. João I, de Fernão Lopes,

Vol. I. Porto, 1945.(19) Veja-se nosso Capitalismo..., vol. I, págs. 13 e segs.

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A expansão ultramarina portuguesa seria, assim, um elo, natural pro-longamento, do drama da Reconquista, admirável evento de superação dascrises que, no século xiv, abalaram o Ocidente cristão. Impunha-se a saídapara o Mar Oceano. O intruso sarraceno já tinha sido afugentado do ter-ritório; e as lutas com Castela vinham sendo ultimadas. Solução dispendiosae arriscada. Mas única. Um complexo de móveis profundos e múltiplasrazões impulsionavam, cada vez mais, os barcos portugueses para o mar.

Ultimada a Reconquista, completou-se o novo género de vida: o comérciomarítimo a distância com base na agricultura, na salinação e na pesca.

O empreendimento de Ceuta, a colonização das ilhas, o reconhecimentoeconómico-geográfico do Atlântico africano e a montagem da rota do Cabo,com a «captura» dos empórios de ambas as margens do Índico, configuramum outro processo de expansão — prolongamento da Reconquista — inauditorumo traçado, com firmeza de propósitos, por uma «ideia de império» atlân-tico, congraçador, burguês e capitalístico; antítese — singular transposição —da outra «ideia de império» territorial, guerreiro, senhorial e agrário. Factonovo na História do Mundo que inaugurou a modernidade.

Assim se nos afigura exacto. A primeira dinastia — a Afonsina — for-mou a Nação; a segunda — a dos Avis — estruturou o Estado Moderno,pioneirismo que nem sempre tem sido revelado em toda a sua amplitude.A organização das rotas atlânticas de Arguim, da Mina, do Cabo e do Brasilaumentou imensamente a competência e jurisdição da monarquia centrali-zadora. Dir-se-ia tratar-se da consagração da Reconquista. Coroação danacionalidade. . :

Portugal, assentando em sólidas linhas o tráfico do ouro africano e dasespeciarias asiáticas, superou-se a si próprio, levando à Europa uma profundarenovação; enorme abalo no quadro das relações internacionais.

A luta com o mar largo foi uma continuação de Aljubarrota; rematede uma revolução democrática e patriótica; coroamento da Independência.Aljubarrota levou os Avís a anteciparem-se aos vizinhos castelhanos na fainade auscultar o Atlântico ainda por cartografar. No Mar Oceano encontra-ram a seiva vivificadora, salvação do Ocidente. Aljubarrota inauguraa segunda fase da expansão retomada com o assalto a Ceuta — ponto departida para a abordagem da «Terra dos Negros» e do mar ignoto.

Sem este encadeamento, singular processo e necessária isagoge, o SistemaColonial — máquina burocrática de governo ultramarino — fica escamo-teado e, portanto, incompreendido em sua profundeza estrutural.

No Brasil, no ultramar em geral, a concepção patrimonial da realezacontinuou a mesma. E cada vez mais presente, na medida em que o patri-mónio ultramarino foi posto sob a égide e protecção do trono. Tudo erada Coroa e só a ela pertencia como património inalheável. A monarquiacentralizada fez-se notar de modo fiscalizador e repressivo, frequentes vezes.A concepção da patrimonialidade régia foi princípio que se inseriu no ordena-mento jurídico do Sistema Colonial. As terras e águas descobertas ou con-quistadas eram propriedade da Coroa, à semelhança das tomadas peninsulares

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da primeira dinastia. A exploração pelos particulares só por concessãorégia — graciosa ou onerosa — poderia legalmente fazer-se. Em todo o ultra-mar, o comércio é da Coroa, como património inalienável, podendo, entre-tanto, delegar a exploração da colónia mediante circunstâncias e sempreconforme sua incontrastável soberania. Como no tempo da Reconquista,o monarca, possuindo a propriedade dos domínios conquistados, pode dispordeles como bem entender (20).

A nova expansão correspondia, assim, a um alargamento da autoridadeda realeza. E foi precisamente isso que levou ao carácter estatal do pro-cesso de humanização da paisagem nas regiões tropicais senhoreadas pelamonarquia portuguesa. Descoberta e conquista; povoamento e colonização;tudo era superintendido pelo rei, o grande empresário colonial do capitalismomonárquico, em cujo processo o «político» — que era o trono — dirigiuo «económico», então representado pelo mercantilismo. Respeitadas ascambiantes, advindas das novas condições do meio ultramarino, o armador,o empresário, o comerciante — burguês ou nobre, não importa — adquiremestamentos que, certamente, jamais haviam sonhado. A mudança da con-juntura permitiu-lhes subsistir ou permanecer em suas novas posições caracte-rizadas da viragem estrutural em todos os sectores da vida. O prestígioque a nobreza agrária, militarista e senhorial, desfrutara no decurso da Recon-quista deslizou, dentro do processo daquela mobilidade, para a burguesiacomercial e marítima.

Senhora das terras, a Coroa é-o, também, das rotas e do tráfico.Do exclusivismo do dommio sobre as conquistas e descobertas decorre, natu-ralmente, o monopólio do comércio que levou à montagem do capitalismomonárquico, sistema experimental de exploração ultramarina.

Do novo património advém nova riqueza. Os novos homens e as novasterras, com as suas mercadorias altamente comerciáveis, aumentam a padro-nádiga da realeza (21). A soberania da Coroa não só é mantida mas larga-mente dilatada.

E, como sucedia na época da Reconquista, o monarca passou a fazerconcessões dos novos domínios; sem, contudo, abdicar da patrimonialidade.

Com efeito, a Coroa não delega a soberania; apenas o governo de formaa podê-lo retomar a qualquer instante conforme sua incontrastável vontade.E note-se. Mesmo que se não efectuasse a reversão das terras doadas, oudo governo delas, o princípio subsistia sempre, como jurisprudência constitu-cional (22). De igual modo pode o rei, se lhe convém, delegar a exploração

(20) Cf. Ordenações Afonsinas. L. 2.°, tit. XX, n.° 26; Chancelaria de D. João III,Liv. 21, fls. 73, in Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

(21) Nos Livros das Chancelarias, guardados no Arquivo Nacional da Torre doTombo, em Lisboa, encontram-se acervos para a apuração.

(22) Na Reconquista, embora geralmente se não efectuasse a reversão das terrasdoadas, o princípio subsistia sempre. Assim é que a partir do remado de Afonso II (1223-48),surgiu a necessidade das chamadas «confirmações régias».

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do comércio mediante concessão graciosa (23) ou arrendamento (24), que,por sua natureza, é oneroso. Qualquer que fosse o expediente — graciosoou oneroso—jamais o trono perdia o monopólio do tráfico; a posse ouo domínio real que decorre da propriedade dele, podendo, também, retomá-loquando entender (25).

A realeza, para garantir a posse da conquista ou domínio da terra des-coberta, constrói, como o fez nos primeiros tempos da formação nacional,fortalezas militares destinadas à salvaguarda do património e à regularidadedos resgates. Assim voltam a encontrar-se, no ultramar, o mercador, o mili-tar e o missionário; todos colonizadores, cada qual a seu modo e consoanteas circunstâncias.

Juntamente com o forte crescem, institucionalizadas, a feitoria e a capi-tania. E a monarquia centralizada fortalecia-se, por ora, pela ocupaçãomilitar, pela exploração mercantilista e pela evangelização — constantes quese encontram, urdidas, no processo da colonização moderna.

Como atributo da sua soberania, a Coroa conservou o «quinto» decarácter militar (26). Os novos domínios dilatam-se à sombra protectorados mesmos direitos concedidos pela realeza na época da Reconquista. Ape-nas se constata uma cambiante que decorre da própria estrutura do SistemaColonial. Como a nova conquista assenta na troca a distância, no numerá-rio, no imediatismo material do lucro, na mobilidade do capital mercantilista,o monarca foi, aos poucos, deixando de ser apenas o chefe político e militardo agregado social, para tornar-se, também, o empresário colonial, o maiorde todos, o único mandante. Os restantes eram meros mandatários. E, assimmesmo, dependentes da incontrastável vontade régia.

Com isso, novo empreendimento levou ao carácter estatal do capita-lismo colonizador da monarquia centralizada. O rei, agora, à testa da novaempresa, de nítida estrutura mercantilista, distancia-se enormemente dos seuscavaleiros da Reconquista. Em contrapartida, aproxima-se, mais e maisda burguesia comercial e marítima; encaminhando, com isso, os seus capitaispara a administração ultramarina.

Dessa forma foi-se, desde a abordagem da «Terra dos Negros», ensaiandoum processo inteiramente diverso e sob o signo do capitalismo moderno que,só então se inaugurou. Daí organizar-se a Nação, pelo monopólio da eco-nomia e centralização política sob o comando único do rei. Expressão essa

(23) Nos Livros das Chancelarias, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, encon-tram-se numerosas concessões da espécie para a Idade Média.

(24) De igual modo, os Livros das Chancelarias comprovam o sistema de arrenda-mento.

(25) Foi o que se deu com Afonso V e seu filho D. João II.(26) O «quinto real» era um imposto directo sobre os despojos obtidos nas guerras,

Consistia no pagamento da quinta parte da presa tirada ao inimigo. Foi, na Idade Média,tributo de carácter militar e um dos mais importantes rendimentos da Coroa. Mais tardecom a expansão, manteve-se o tributo sobre as explorações mineiras.

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de um estágio económico-social com pleno sentido de modernidade que cor-responde, sem dúvida, à instituição de um ensaio capitalista de relevadoobjecto estatal.

O património inalienável da Coroa era, ademais, reconhecido e defen-dido pela Santa Sé (27). Os reis houveram-se como únicos senhores a justotítulo dos mares e terras descobertas ou conquistadas. No uso e gozo desseindiscutível direito que como de propriedade se conceituou, trataram osmonarcas de o exercitar, cada um a seu modo e em consequência com os seusrecursos e circunstâncias, imbuídos, todos eles, do mesmo espírito exclusi-vista, que é característico daquele direito.

Os Avis fizeram-se absolutos soberanos e em vista disso, os únicos comdireitos usufrutários do comércio com os povos das suas conquistas e des-cobertas. Princípio jurídico da Idade Média portuguesa que transitoupara o ultramar e que atribuía à Coroa a posse e o domínio do património,qualquer que fosse a sua natureza ou localização (28).

Mas nem sempre a realeza esteve em condições para, ela própria, exploraro monopólio instituído. Não podendo fazê-lo directamente foi levadaa experimentar soluções ditadas pela conjuntura. A expressão fazia-se atravésde arriscada e dispendiosa repetição de esforços. A obra colonizadora con-sumia vidas e dinheiro. O empreendimento era deficitário para o trono.Terras e águas estavam ainda por cartografar. Muita coisa figurava nomundo dos sonhos. À Coroa não convinha a empresa directa. Bastava-lheo direito de interdição. Por isso estabeleceu, de modo imperativo, consoantesua competência e jurisdição, as modalidades colonizadoras que lhe pareces-sem mais convenientes ao seu património e às possibilidades de a servir.

Em vista disso, antes da tentativa directa, preferiu a iniciativa privadaa serviço da monarquia centralizada, que se exprimiu na necessidade deautorização régia e no pagamento de determinada tributação.

Daí resultou a cessão graciosa e «senhorial» de património aos infantesD. Henrique e D. Fernando; a cedência do monopólio ao capital particularcondicionada aos conhecidos arrendamentos onerosos; o regime das capita-nias nas ilhas atlânticas e, afinal, no Brasil. Etapas experimentais da patri-monialidade de um Sistema Colonial.

O regime vigente até 1443, ano em que a Coroa delegou o exclusivismodo tráfico africano ao infante D. Henrique (29), foi simples. A Coroa impos-sibilitada de o fazer directamente, incrementou a expansão ultramarinaconcedendo — a quem queria fazer mercê — o direito de empreender viagensde comércio ou de reconhecimento geográfico à costa do ocidente africano.O tráfico não era livre. As viagens dependiam do favor régio. A Coroa

(27) Colecção de Bulas, M. 7, n.° 29, in Arquivo Nacional da Torre do Tombo.(28) Ibidem.(29) O diploma régio da cessão do monopólio ao infante D. Henrique, datado de

22 de outubro de 1443, acha-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo — Chancelariade D. Afonso V, L. 24, fl. 61.

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delegava ou não o direito que era exclusivamente seu. A concessão dependia,outrossim, do pagamento de contribuições geralmente traduzidas na cobrançado quinto dos géneros ou mercadorias transaccionadas (30).

O tráfico nunca foi liberado. Havia, sim, um rigor de intervençãoda Coroa, caracterizada na necessidade de autorização régia, expressamenteconcedida, mediante a cobrança percentual dos resultados obtidos no empreen-dimento. Com isso a realeza ditava os diplomas da cessão, jamais abdi-cando das prerrogativas de estabelecer as modalidades de exploração empre-sarial que lhe parecessem mais proveitosas.

Mercê daquele processo, ninguém podia enviar mercadorias, levar,trazer ou vender sem prévia anuência da Coroa, sob pena de perda das car-regações e navios (31).

O rei era o chefe e protector da empresa colonial. Mas o grande pro-pulsor da expansão, em sua primeira fase, foi o infante D. Henrique. Em 25de setembro de 1433, a realeza, por carta de D. Duarte, concedeu-lhe a isen-ção do pagamento devido à Coroa do quinto dos lucros oriundos da pira-taria organizada à sua custa (32). Semelhante privilégio foi confirmado porD. Afonso V em 1 de Junho de 1439 (33). Anteriormente a esta confirmação,já D. Duarte, em 26 de setembro de 1433, fizera mercê ao infante D. Henriquedas ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta. A doação era vitalícia e comtodos os direitos, rendas e jurisdição cível e crime, salvo em sentença de mortee talhamento de membro, e com competência exclusiva, para a realeza, dacunhagem e curso da moeda (34). Ao mesmo tempo, D. Duarte, por cartade doação dada naquele mesmo dia, concedeu à Ordem de Cristo — poro infante D. Henrique seu regedor e governador lhe pedir — todo o espiritualdas mesmas ilhas, reservando para si o dízimo do pescado e demais direitosreais (35).

Mas não foi apenas o infante D. Henrique o único aquinhoado pelosfavores do trono. Seu irmão, D. Pedro, também recebeu da Coroa algumasconcessões. Sabe-se que o futuro Regente do Reino obteve do Estado, porCarta de D. Duarte, de 6 de novembro de 1433, à semelhança da recebidapor D. Henrique, a isenção do pagamento devido à realeza do quinto doslucros procedentes da pirataria em que operavam os seus capitães (36).

Um tal regime de concessões chegou ao grau mais elevado com o mono-pólio do tráfico africano concedido pela Coroa ao infante D. Henrique, atra-vés da Carta Régia de 22 de outubro de 1443, em virtude da qual ninguém

(30) Pela Carta acima referida, sabe-se que a Coroa conservou o quinto de caráctermilitar.

(31) Cf. Chancelaria de D. Afonso V, L. 24, fls. 61, in loc. cit.(32) Idem, L. 19, fl. 19.(33) Ibidem.(34) Idem, Chancelaria de D. Duarte, L. 1.°, fl. 18.(35) Ibidem.(36) Idem, Chancelaria de Afonso V, L. l.°5 fl. 19.

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poderia legalmente viajar, além do Bojador, sem a licença do Príncipe, sobpena de apreensão dos navios e respectivas carregações (37).

Com isso, por delegação régia, o papel do Estado passou para a Casado Infante. A concessão graciosa a D. Henrique seria, quer-nos parecer,uma decorrência das iniciativas bélicas dos seus capitães. Espécie de recom-pensa à moda da Reconquista. Ninguém, certamente, estaria em melhorescondições materiais e espirituais para ser favorecido pela cessão do monopólio.O infante D. Henrique dispunha das rendas da Ordem de Cristo (38). Ade-mais, junte-se a isso o prestígio do seu «senhorio» composto por uma mul-tidão de servidores: cavaleiros, escudeiros, artífices, mercadores, agricultorese escravos. A Coroa, com aquele privilégio outorgado, procuraria atraira Casa do Infante para a sua política de expansão colonial.

Graças ao exclusivismo do tráfico, o infante D. Henrique obteve o neces-sário sustento para os seus «leais vassalos» (39) que, nas ilhas atlânticas e na«Terra dos Negros», encontraram condições e derivativos para novos empreen-dimentos.

Com semelhante sistema de concessões, a Coroa fomentava, a seu modo,a empresa ultramarina de acentuadas cataduras capitalísticas e de nítidasfeições colonizadoras. Acentuava-se, mais e mais, a transição de uma estru-tura social agrária e medieval, para um sistema mercantilista e, portanto,moderno.

A cessão graciosa ao infante D. Henrique só terminou em 1460, coma sua morte. O património insular — Madeira, Porto Santo e Deserta —transitou, por aquiescência régia, para o seu sobrinho e afilhado, o infanteD. Fernando (40), irmão de Afonso V, enquanto a Coroa retomou o monopó-lio do tráfico africano e o que bem lhe entendeu (41).

A Coroa continuou a mostrar-se pouco adestrada para a exploraçãodirecta de seu património ultramarino. Anos depois, em 1469, arrendouo monopólio do comércio africano, mediante determinadas condições, sem-pre conforme os proveitos do trono, ao empresário lisboeta FernãoGomes (42).

A esse tempo já nas ilhas atlânticas vigorava o regime de colonizaçãoassente nas capitanias. Anteriormente à Carta Régia de doação das ilhasao infante D. Henrique, em 26 de setembro de 1433, já mencionada e escla-recida na sua natureza, tentou a Coroa a colonização directa das referidasregiões insulares. A tentativa malogrou. Por isso D. Duarte doou-as,

(37) Idem, L. 24, fl. 61.(38) «e os méritos de seu trabalho ficassem metidos na Ordem da Cavalaria de Cristo

que ele governava, de cujo tesouro podia despender» (Barros, João de — Ásia de — Pri-miera Década, L. V., cap. II, pág. 15. Lisboa, 1945).

(39) Cf. Diogo Gomes — As Relações..., pág. 271.(40) Chancelaria de D. Afonso V, L. 24, fl. 61, in loc. cit.(41) Ibidem.(42) Veja-se nosso citado Capitalismo..., vol. I, págs. 328 e segs.

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como «senhorio», a seu irmão D. Henrique, sem, contudo, alienar o direitode cunhar moeda nem de prestar justiça suprema (43).

Sabe-se que durante largo tempo nem a Madeira nem os Açores recebe-ram colonização permanente. Cá e lá, de tempos em tempos, partia um ououtro navio à procura de géneros comerciáveis. Foi na década de 1420 queo receio de uma ocupação castelhana levou Portugal à tentativa de povoa-mento da Madeira, buscando-se introduzir nela a estrutura social e econó-mica da metrópole.

O fracasso condicionou aquela doação. Foi quando o infante D. Hen-rique, em seu «senhorio» madeirense, criou três capitanias «perpétuas e here-ditárias». Seus capitães-donatários exerciam a jurisdição em nome do prín-cipe, concediam terras aos colonos e detinham o exclusivismo dos meios deprodução — moinhos, fornos e lagares comuns —, fomentando, com issoo capitalismo «senhorial» insular. Possuíam ainda o monopólio da vendado sal e o décimo da dízima amealhada por D. Henrique. Tudo era exercidoem nome do infante. Com a sua morte, em 1460, a Coroa retomou o patri-mónio (44).

Semelhante estrutura de administração colonial foi, de igual modoimplantada no Brasil. Primeiramente instituiu-se o arrendamento da «Terrade Santa Cruz» ao cristão-novo Fernão de Loronha, logo na abertura doséculo xvi, e a seus associados, mediante o encargo de, todos os anos, man-darem seus navios a descobrir «trezentas léguas de terra para diante», e eri-girem fortaleza e conservarem-na três anos. No primeiro ano nada paga-riam à Coroa; no segundo obrigavam-se a recolher um sexto; e no terceiro,a realeza amealharia um quarto do total das carregações transportadas parao reino (45). O concessionária legou o seu nome à ilha do território doBrasil — Fernão de Noronha — cuja descoberta e exploração se inseremnaquele arrendamento (46).

Logo na abertura do século xvi o Brasil colocava à Coroa idênticosproblemas que as ilhas Canárias nos primeiros tempos da descoberta. Os indí-genas não deixaram de ser, de algum modo, um obstáculo ao povoamentoou a uma conquista europeia. Ademais, não indicavam nenhuma trilha doouro; e não apontavam o caminho para o «Preste João». A nova terradescoberta sob o signo do capitalismo moderno era para ser colonizadae punha graves questões a resolver. O «modus vivendi» dos índios con-figurava-se, aos empresários apaniguados do trono, como obstáculo nadafácil de se transpor ou contornar. A organização tribal dificultava a colo-nização permanente. Para mais, a realeza continuava impossibilitada de

(43) Chancelaria de D. Duarte, L. 1.°, fl. 18, in loc. cit.(44) Idem de D. Afonso V. L. 24, fl. 61.(45) Baião, António — O comércio do pau-brasil, in História da Colonização Por-

tuguesa do Brasil, vol. II, págs. 324 e segs. Porto, 1933.(46) Idem, pág. 325.

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humanizar, ela própria, directamente, como empresário colonial, a terraainda inteiramente por descobrir.

Em vista do amontoado de problemas em aberto, D. Manuel preferiumanter o regime do arrendamento. Por isso outros concessionários foram,à semelhança de Fernão de Loronha, beneficiados em suas tentativas de reco-nhecimento e exploração de trechos da costa brasileira.

As raízes do sistema capitanial encontram-se nas origens da monarquiae no processo da Reconquista. No velho Direito português revelam-se osprimeiros lineamentos da estrutura jurídica em cuja sombra abrigou-se a polí-tica da Coroa e que deu forma no Sistema Colonial dos Avis.

Por isso a colonização do Brasil ameaçava arrastar-se por longo cursode tempo. A problemática encontrada pela Coroa nos Açores, de certo modo,e, sobretudo, nas ilhas de Cabo Verde, ampliou-se no Atlântico brasileiro.

Mas o Brasil despontava, não obstante os problemas a resolver, comoadmirável «Eldorado». É certo que à Coroa convinha mais a mantença desua rota do Cabo e a segurança de seu Império do Oriente. Mas a novaterra no Atlântico americano, embora ainda atraindo pouca gente, e contras-tando com os fulgores deslumbrantes das carregações de torna-viagem dotráfico asiático, chamaria, necessariamente, as atenções do trono para a suadefesa.

A sistemática e gradual exploração geográfica da costa vinha sendo feita.Fortificações e feitorias buscavam garantir o património. A avareza aliení-gena constituía-se numa ameaça permanente. O processo do arrendamentoa ricos cristãos-novos (Fernão de Loronha, até 1512; e Jorge Lopes Bixorda,empós, até 1516), de ano para ano, alterava as perspectivas oferecidas pelarota do Brasil, chamando a atenção de D. Manuel para a sua imensa colóniaamericana. O comércio do pau-brasil gerava certa abastança. Em Per-nambuco e em Porto Seguro já eram accionadas feitorias. Outros núcleos depovoamento e trato mercantil isolados surgiam atraindo a concorrênciaestrangeira que operava no corso e na pirataria — «ladrões do mar» — e punhaem constante sobressalto o empresariado associado à Coroa. O tráfico ilí-cito, notadamente o praticado por franceses, tomava parte nas transacções.A acção do mercantilismo salteador aumentava mais e mais.

Como já acontecera na Madeira, um século antes, a Coroa resolveuintervir. O expediente régio manuelino, enviando todos os anos uma armadade alguns navios, sob a chefia de um capitão incumbido de cruzar as costas doBrasil, embora — de 1516 a 1530 — contribuísse para uma melhor defesa dolitoral, não se exprimira em saldo positivo. De igual modo, as poucas fei-torias, não obstante estruturadas conforme o sistema português de defesa,e elevadas à condição de capitanias de «mar e terra», com capitães nomeadospela realeza por determinado tempo; e, apesar do fornecimento, por parteda Coroa, de ferramentas e abastecimentos regulares de materiais de cons-trução para os colonos. Impunha-se, com efeito, o estabelecimento de outramodalidade colonizadora, tendo-se prioritariamente em vista a salvaguardado património da colónia através da ocupação permanente.

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O açúcar accionaria o processo colonizador. A Coroa tomara a seucargo a montagem de engenhos. Considerava-se que o açúcar podia repre-sentar a melhor maneira de conveniente e lucrativo povoamento, à maneirado sucedido na Madeira e S. Tomé. Nesse tempo, no final da segunda décadado século xvi, os franceses já percorriam activamente o Atlântico brasileiro.As armadas manuelinas de patrulhamento das costas já não bastavam paraprotecção eficiente. Agravando ainda mais o sistema de defesa do litoral,os pequenos núcleos de colonização encontravam-se distanciados uns dosoutros e sem relacionamento eficaz. Com isso era-lhe impossível impedirdesembarques intrusos que punham em constante ameaça o povoamentoda nova terra.

Diante da delicada conjuntura, D. João m instituiu o sistema tradicionalda colonização, já aplicado nas ilhas atlânticas, com proveitosos resultadosna Madeira: a divisão do Brasil em capitanias, empreendimento colonizadorde enorme afoiteza e acentuado carácter moderno posto no contexto docapitalismo comercial e politicamente superintendido pela Coroa.

O mercantilismo justificava a nova empresa que surgia, de igual modo,como as anteriores, sob a égide e protecção do Estado monárquico. O expe-diente político, estruturado para a conquista e colonização, visava o alarga-mento das trocas mercantis. Para mais, a defesa do património da Coroa.O povoamento, imprescindível estratégia da conquista, exigia poupança decapitais. Dada a escassez de rendas públicas, a monarquia centralizadasuperou a barreira entregando, por delegação, a gigantesca empresa aosburocratas do reino e do Oriente, leais vassalos e fidalgos de boa cepa, homensadestrados nas contendas ultramarinas.

D. João III estaria informado da extensão territorial. A fase manuelinadas armadas de reconhecimento da costa já havia cartografado grande partedo Atlântico brasileiro para se poder concluir, sem enormes erros, o quea vasta terra americana ofereceria ao mercantilismo colonizador portuguêse ao absolutismo monárquico dos Avis.

Certamente mais do que a cobiça pelo açúcar, a defesa do tráfico dopau-brasil estaria bem presente no espírito de Diogo de Gouveia, o assessordo trono que instou D. João III a estabelecer semelhante modalidade colo-nizadora (47). Teria informes seguros sobre a actuação do mercantilismoalienígena em terras e águas brasileiras. Os franceses, especialmente, eramuma constante impertinência. O conselheiro do rei tinha bem fundamentadotemor. O que conhecia da colónia americana já era suficiente para persuadiro monarca a pôr em prática a sua estratégia: colonização do imenso patrimó-nio através do agrarismo aristocrático e do mercantilismo. As duas con-cepções do Império, definidas ao término da Reconquista, viriam amalga-mar-se no Brasil numa mescla admirável consoante a realidade tropical.

(47) Merêa, Paulo — A solução tradicional da colonização do Brasil. Idem, vol. III,págs. 167 e segs.

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A burguesia comercial e marítima com a nobreza ensaiada na expansãoultramarina. Povoamento de enormes espaços vazios através da mesclagemde elementos oriundos de três continentes: o branco, o negro e o índio. Nadamais proveitoso se afiguraria então. O esforço colonizador, sem exclusãoda Coroa, seria colectivo. Diogo de Gouveia, eminente mestre domiciliadoem França, tinha bem fundamentado o delineamento levado a D. João m.Temia a ocupação do Brasil pelos franceses. Impunha-se, com irresistívelanseio, a defesa do Atlântico brasileiro.

A estratégia colonizadora punha-se na urdidura da expansão. Ao impé-rio do Oriente viria juntar-se, logo empós, o império português atlântico.São elos de uma mesma ideia imperial, salvaguarda do mercantilismo colo-nizador dos Avis. Ademais, o Brasil figurava como «porto-seguro» para osnavios que operavam na rota do Cabo. A defesa do Atlântico Sul revelava-senecessária para a «carreira» da índia e, de igual modo, para a rota do Brasilque se estruturava.

Nesse contexto é que se instituíram as capitanias do Brasil. Eventoque só se compreende numa abordagem globalizada da conjuntura. Históriatotal. Empresa colonizadora, de nítida feição moderna, ainda não devida-mente esclarecida. Etapa experimental de conquista e integração do Atlân-tico brasileiro. Sem retrocesso às instituições senhoriais que Portugal,surpreendentemente, e de modo distinto e desusado, ladeou. Avanço damodernidade capitalística. É o que o empreendimento colonizador revela.Para isso basta perquiri-lo convenientemente. Reflectindo. Sem omitira visão conjunta da problemática.

O génio português para inovar nos espaços tropicais. Singular processode humanização da paisagem. Admirável aptidão. Conveniências dos quese encontram, actuantes, no processo de colonização. Desde a Coroa aomais humilde elemento das forças sócio-económicas urdidas na mesma tramados proveitos.

Essa cadeia do povoamento estruturado num contexto; múltiplos elosde uma corrente engrossada por capitais particulares protegidos, de algummodo, pela Coroa soberana. Colonização. Iniciativa do Estado. Pou-pança privada. Concessões da realeza. Singularidade de um sistema polí-tico. Guerreiros. Comerciantes. Letrados. Um «Eldorado» a defender.Escassos capitais. Condução da conquista da terra. Mercantilismos versusmercantilismos. Gente do mar e gente de terra. Política continental euro-peia e política ultramarina. Partilha política e partilha económica. Terrase águas a defender. Terras e águas a conquistar. Mercados e mercadores.Rotas, navios e portos. História total a ser dilucidada pela avidez da his-toriografia científica contemporânea.

Em semelhante enredo põe-se o ensaio experimental da capitania noBrasil. Ideia de capitania. Revelação de um processo colonizador efectivoe burocraticamente estruturado para a defesa do litoral e conquista dos«hinterlands». Salvaguarda da costa e penetração continental. Extracti-vismo e agricultura comercial para o povoamento da terra e operação mer-

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cantil dos «forelands». Sentido da colonização assente na etapa que sejulgaria salvadora. Da terra. Das águas. Dos homens do empreendi-mento. Das instituições estruturadoras do processo.

O plano levado a D. João III pelo conselheiro Diogo de Gouveia, políticoe economista teórico, visava a ocupação sistemática do Brasil. A armadado nobre Martim Afonso de Souza, com cinco navios e quinhentos homens,caracterizaria a primeira arrancada efectiva. Partindo de Lisboa em dezem-bro de 1530, chegou ao Brasil dois meses mais tarde, com plenos poderes,para dar cumprimento a uma tríplice missão: defesa costeira contra o mercan-tilismo salteador estrangeiro, determinação dos limites exactos da nova coló-nia e superintendência de uma colonização ininterrupta de norte a sul, emtoda a extensão litorânea.

Para aquele fim, a realeza dividira o Brasil em quinze capitanias. Cadalote compreendia cinquenta léguas de costa separado das capitanias confi-nentes por uma linha recta no sentido dos paralelos e estendendo-se, teorica-mente, para oeste, até ao meridiano de Tordesilhas. Semelhantes quinhõesconduziriam, de certo modo, o movimento da fronteira dos actuais Estadoscosteiros do Brasil.

Á incorporação efectiva da terra descoberta ao património da Coroa,através do povoamento permanente, caracterizava, juntamente com o intentode propagação da fé católica, o regime político da capitania. Essa a orienta-ção de D. João m, que se revela na carta de setembro de 1532 endereçadaa Martim Afonso. Seguidamente à partida da armada de 1530, na Cortepensou-se logo na conveniência «que haveria de povoar toda a costa do Bra-sil, havendo pessoas que requeriam nela capitanias» (48).

Na distribuição do linhol litorâneo, procurou a realeza mapear as capi-tanias em iguais extensões territoriais. Frustrou-se, entretanto o propósitorégio, tendo em vista a topografia da costa, sobremaneira acidentada e irregu-lar. Ademais, a nova terra estava ainda por cartografar. Vivia-se aindaa fase do reconhecimento e exploração geográfica. Em virtude disso, osquinhões divergiram enormemente em suas áreas. E de tal modo, que algunsdos aquinhoados, de maior prestígio junto ao trono — Martim Afonsoe Pêro Lopes por exemplo — foram contemplados com lotes de menor exten-são e validade (49).

O sistema político consubstanciado nas capitanias realçam, a cada passo,a acentuada feição monárquica e centralizadora. Não obstante os apani-guados da Coroa «enfeudarem» as concessões recebidas — bens, rendase direitos — o património foi sempre inalienável e unicamente do monarca.A cedência de direitos reais e poderes que afiguravam soberanos constitui-ram-se necessários em virtude da conjuntura. À Coroa convinha interessarseus servidores — leais vassalos — no processo colonizador que vinha de

(48) Idem, pág. 170.(49) Idem, pág. 171.

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longe por recuar à primeira fase do povoamento das ilhas atlânticas — Madeirae Açores.

E o expediente foi-se executando sob o comando do trono. A Coroa,em todo o decurso, jamais abdicou do seu senhorio eminente e supremajurisdição.

As doações, outrossim, não se cingiam a uma modalidade apenas.Houve-as vitalícias. Outras cedências foram em mais de uma vida. De «juroe herdade» (50).

A soberania portuguesa corria sérios riscos no Atlântico americano.Isso explica e justifica semelhante ensaio de colonização. Ou a realezacolonizava a sua terra americana ou ficava ameaçada de perdê-la. Diantedas alternativas optou pela primeira. Foi esse o espírito que presidiu aquelesistema de povoamento.

Ao tempo da instituição das donatárias, a centralização monárquicaem Portugal já estava ultimada. Resultaria, daí, a consequente restriçãodos poderes concedidos pela Coroa aos seus capitães donatários. O regime«senhorial» das ilhas — Madeira e Açores —, por si já dotado de ingredientesda modernidade, transferiu-se para o Brasil com nitidez capitalística, nãoobstante os latos poderes delegados pelo trono aos capitães governadores.

O sistema das capitanias transformou, então, o Brasil numa imensa«colónia de proprietários». As atribuições soberanas, contudo, continuaramsendo prerrogativas do trono.

A capitania no Brasil não foi um feudo, como alguns entendem. Sequersemifeudal. Sua natureza jurídica revela-a como instituição moderna inse-rida no contexto do mercantilismo. Inventiva monárquica e centralizadora.Dir-se-ia tratar-se de engenho imaginativo do capitalismo régio português,sobejamente reflectido, em virtude das circunstâncias da expansão colonial.

O acto jurídico que a instituiu chamava-se «doação». As cartas dedoação e os forais das capitanias são as fontes para a abordagem e conheci-mento do regime jurídico do Brasil no período anterior ao estabelecimentodo governo geral. Era um diploma legal. Suas normas geravam direitose obrigações. Pela carta de doação, a realeza fazia mercê da capitania deum quinhão do território, abrangendo na cedência importantes atributos daautoridade régia. E, seguidamente, a Coroa dava à capitania um «foral»,no qual constavam os «direitos, foros, tributos e coisas» devidos ao capitãodonatário e ao rei.

Doações de bens da monarquia centralizada e direitos reais, por umlado. Por outro, as cartas de foral. Portanto, dois diplomas. Duas ins-tituições do sistema político-administrativo que se encontram, nítidas, nocapitalismo régio inserido na modernidade. Cartas de doação e cartas deforal. Duas peças do Sistema Colonial. O foral supunha, assim, a préviaexistência da doação. Esta era o principal. Aquele o assessório. Ambos

(50) Cf. Ferreira, Waldemar — História do Direito Brasileiro. As Capitanias Colo-niais de juros e herdade, vol. 1.°. Ed. Saraiva. S. Paulo, 1962.

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diplomas concedidos pelos favores da Coroa — doação e foral — compunhamo Estatuto da capitania.

O objecto da doação era assinalado pelos nomes de «capitania» e «gover-nança»; e o donatário pelo título de «governador» ou «capitão».

Doada pelo incontrastável poder da Coroa, a capitania era inalienável,indivisível e sujeita a normas de sucessão dentro da família. Tudo se faziaconforme a vontade régia. Perderia o donatário a «governança» ao praticarqualquer acto político-administrativo contrário ao ordenado no Estatutoda doação. Ou quando o entendesse o rei doador. Ou o seu sucessor queconfirmaria ou não a cedência.

O «governador» podia criar vilas, nomear ouvidores, dar tabelionatos,tanto de notas como judiciais. Ou exercer amplas funções no cível e nocrime. Tinham, com efeito, enormes atribuições de governo colonial. Digni-dades individuais intransferíveis e transmissíveis por herança ao filho varãomais velho ou, na falta deste, ao filho imediato. Mas tudo de acordo coma carta de doação. Podiam ainda distribuir terras de sesmaria e arrecadarcertos tributos. Mas tudo no ordenado pela Coroa em sua cedência e mediantecondições imperativamente impostas pela realeza. Impunha o monarcaao seu «governador» a obrigação de, à sua custa, defender a terra atravésda conquista e colonização. Bem acima do donatário encontrava-se o rei,o único empresário colonial deveras mandante. Para isso deixou a Coroade fazer cessão e outorga de determinadores poderes que guardou para si.

Nos domínios do direito privado, o ordenamento da metrópole cons-tituiu-se no regulador das relações entre os elementos constitutivos da colónia.E na esfera do direito público os «senhorios proprietários», pelos seus amplís-simos privilégios recebidos, não deixariam de contornar, de algum modo,a legislação imposta pelo trono, abrindo, assim, profundos rombos no diplomalegal da doação.

O comércio pertencia tanto aos colonos, em sistema livre conformeo entendimento da realeza, quanto à Coroa, que possuía os monopólios dopau-brasil, dos escravos, das drogas e especiarias, bem como o quinto detodos os minérios e pedras preciosas. Privando os colonos das principaise mais fáceis fontes de rendimento, a Coroa desviava-os para a faina agrícolae para a criação de outras fontes lucrativas. Com isso fomentou-se a indús-tria açucareira, à semelhança da política económica já largamente praticadana Madeira.

Cada capitania teve um destino diferente. É que diferentes eram os«governadores» e as «governanças». E todos obedientes, embora a seu modo,ao centralismo régio. Nobres, peões e índios — as três ordens sociais nomea-das nas cartas de doação — dependiam, em seus destinos, da vontade sobe-rana do rei. Por isso é que a «hereditariedade» de que alguns falam carac-teriza-se como «concessão ilimitada», em que as capitanias se revelam «coló-nias de proprietários», singular sistema criado por acto da Coroa conformedeterminadas circunstâncias históricas da conjuntura. Mas sempre consoanteos poderes majestáticos do trono.

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Por poderem se transmitir por herança, as capitanias se houveram como«hereditárias». Mas só o foram por vontade do rei doador ou através daconfirmação do seu sucessor. Isso porque as capitanias eram, acima detudo, inalienáveis. Na sucessão das terras e bens da Coroa, apenas esta,e ninguém mais, era a mandante. Pela doação, a realeza fazia mercê dedeterminada parte de seu património territorial, envolvendo-se nela a outorgade atributos quase soberanos. Não soberanos. A soberania era privilégioexclusivo da monarquia centralizada. Não do «governador» ou da sua«governança».

As atribuições delegadas configuravam-se na contrapartida das incum-bências impostas pela Coroa aos capitães donatários. Reciprocidade defavores. Poder régio e esforços privados colectivos, todos convergentes,num sistema político-administrativo de propósito colonizador.

O rei era, afinal, a expressão natural do sistema. A realidade da con-juntura justificou a fundamentação da medida de defesa pela conquista e colo-nização. O quadro se completaria com a escolha dos donatários da absolutaconfiança do trono, com ficha limpa, comprovada capacidade administrativae autoridade para o exercício de uma liderança regional considerada comoindispensável ao êxito dos esquemas do capitalismo monárquico português.

O Brasil apresentava-se, então, com significação óbvia nos esquemasde segurança colonial. A divisão da extensa costa atlântica da colóniaamericana não era um acto solitário nem apenas episódico. D. João in foimotivado por razões políticas e mercantilistas. Tomada de posição dogoverno monárquico com linhas definidoras claramente fixadas. A preo-cupação da Coroa não era fortalecer a empresa privada. Longe disso.Tratava-se de um acto de soberania do trono, de cima para baixo, ostensiva-mente justificado por motivos de ordem económica, mas na verdade reflectindouma decisão política inspirada nas razões de segurança do Estado e salvaguardado Império.

Na implantação de semelhante sistema de povoamento reside um dosvalores mais altos do reinado de D. João m. A capitania foi um marco daacção civilizadora do capitalismo régio português. Dir-se-ia do seu mercan-tilismo colonizador. O Brasil mostrava-se difícil de defender e colonizar.O sistema das capitanias, não obstante os seus malogros, esteve longe deter sido um desastre....

MANUEL NUNES DIAS

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