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O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN Dayenny Neves Miranda Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman. Rio de Janeiro Julho de 2008

O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

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O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Dayenny Neves Miranda

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos-Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª. Doutora Mariluci Guberman.

Rio de Janeiro Julho de 2008

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RESUMO

O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Dayenny Neves Miranda

Profª Drª Mariluci Guberman

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

O presente estudo consiste em analisar as imagens poéticas em alguns poemas do escritor argentino Raúl González Tuñón. A relevância dessa análise se deve à conjunção harmoniosa de seus versos e estrofes, tanto na produção citadina quanto na da Guerra Civil espanhola. Nesta pesquisa são abordadas as obras El violín del diablo, A la sombra de los barrios amados, La veleta y la antena, La rosa blindada e La muerte en Madrid. Pela participação ativa do poeta na Vanguarda argentina, tratou-se de contextualizá-lo nesse movimento. Por sua poesia apresentar características do surrealismo, pesquisou-se não só essa estética, mas também como se constrói a imagem surrealista na obra tuñoneana e como se apresentam seus personagens. Pela participação do poeta na Guerra Civil espanhola, verificou-se como estão reveladas as imagens bélicas do conflito espanhol, bem como as representações humanas na poesia social do escritor portenho. Este estudo também apresenta uma comparação entre a imagem poética e a imagem fotográfica, onde ambas tomam como tema o confronto espanhol ocorrido de 1936 a 1939.

Palavras-chave: surrealismo, Guerra Civil espanhola, Vanguarda argentina, poesia, Raúl González Tuñón.

Rio de Janeiro Julho de 2008

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RESUMEN

O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Dayenny Neves Miranda

Profª Drª Mariluci Guberman

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Este estudio tiene como objetivo analizar las imágenes poéticas en algunos poemas del escrito argentino Raúl González Tuñón. La relevancia de ese análisis se debe a la conjunción armoniosa de sus versos y estrofas, tanto en la producción citadina como en la de la Guerra Civil espanhola. En esta pesquisa son abordadas las obras El violín del diablo, A la sombra de los barrios amados, La veleta y la antena, La rosa blindada y La muerte en Madrid. Por la participación activa del poeta en la Vanguardia argentina, se trató de contextualizarlo en ese movimiento. Por su poesía presentar características del surrealismo, se pesquisó no sólo esa estética, sino también cómo se construye la imagen surrealista en la obra tuñoneana y como se presentan sus personajes. Por la participación del poeta en la Guerra Civil española, se verificó cómo se revelan las imágenes bélicas del conflicto español, así como las representaciones humanas en la poesía social del escritor porteño. Este estudio también trae una comparación entre la imagen poética y la fotográfica, donde ambas tienen como temática el confronto español ocurrido de 1936 a 1939.

Palabras clave: surrealismo, Guerra Civil española, Vanguardia argentina, poesía, Raúl González Tuñón

Rio de Janeiro Julho de 2008

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RÉSUMÉ

O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Dayenny Neves Miranda

Profª Drª Mariluci Guberman

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

L’ objectif de cette étude consiste à analyser les images poétiques par quelqu’un poemes de l’écrivain argentine Raúl González Tuñón. L’ importante de cet analyse se doit à la conjoction harmonieuse de ses verses et strophes, autant la production citadine que dans la Guerre Civile spagnole. Cette rechercehe s’agit des oeuvres El violín del diablo, A la sombra de los barrios amados, La veleta y la antena, La rosa blindada e La muerte en Madrid. Pour la participation active du poète de la avant-garde argentine, on l’ a situé dans ce mouvement. Pour la caracterization de la poésie surréaliste de Tunon, on a recherché non seulement cet estetique, mais aussi la construction de l’image surrealiste dans l’oeuvre tononeana et l’apresentation de ses personnages. Pour la participation du poète à la Guerre Civile spagnole, on a examiné comment sont revelées les images belliqueuses de la confrontation spagnole et les représentations humaines dans la poésie sociale d’écrivain porteño. Cet étude present aussi une comparaison entre l’image fotographe et poétique, dans lesquelles parlent de la confrontation spagnole qui a apparue en 1936 à 1939.

Mots-clé: surrealisme, Guerre Civile spagnole, Avant-garde argentine, poésie, Raúl González Tuñón

Rio de Janeiro Julho de 2008

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Dedicatória

A Deus, pela vida e pela benção de me conceder

saúde e força.

Ao meu marido Leonardo, pelo amor, pelo apoio e pela

compreensão incondicional.

À minha mãe e à minha avó Leda que sempre me

motivaram a prosseguir nos estudos, desde a minha

infância até essa etapa.

À Professora Mariluci, por sua dedicação, por sua

paciência e por sua confiança em mim e nesta

pesquisa.

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Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela

inicial subvenção financeira, que me auxiliou no início das pesquisas.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo

amplo subsídio financeiro que me foi concedido, o qual me possibilitou aprofundar

minhas pesquisas e concluir o presente curso.

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ pelo suporte

técnico e incentivo acadêmico durante o curso.

À Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman, que mesmo sendo uma

renomada pesquisadora sempre se mostrou amiga, humana e solidária. Sua

obstinação em transmitir conhecimento foi fundamental para o meu desenvolvimento.

Persistente, competente e atualizada, indicava novas bibliografias que poderiam me

auxiliar na tessitura da pesquisa, portanto uma excelente orientadora.

Além da orientação intelectual, a dedicação e o carinho da professora Mariluci se

mostraram presentes em todos os momentos e fases do desenvolvimento da pesquisa,

desde o empréstimo de aportes teóricos tão essenciais para a elaboração do trabalho

até as correções e os conselhos que foram fundamentais para o resultado final.

De suma importância também foi toda a motivação fomentada pela professora

Mariluci para que, desde a Graduação, eu participasse de eventos, como congressos e

colóquios, os quais me proporcionaram uma grande troca de experiências e

conhecimento, o que se tornou fundamental para minha vida acadêmica, profissional e

pessoal, resultando na presente dissertação de Pós-Graduação.

Serei eternamente grata, Mariluci, não apenas pela importante orientação

acadêmica investida em mim durante horas ao telefone e em diversas reuniões,

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abdicando de seu tempo em prol de minha formação, mas, principalmente, pelos

preciosos conselhos que proporcionaram meu desenvolvimento como ser humano.

À Professora Doutora Isis Fernandes Braga, que com seriedade e competência,

expandiu minhas idéias na Pós-Graduação com uma importante base teórica durante o

curso “A fotografia, espelho da sociedade”, realizado na Pós-Graduação da Escola de

Belas Artes da UFRJ, contribuindo, ativamente, na tessitura do quarto capítulo da

minha dissertação, intitulado “A imagem da Guerra Civil espanhola”. Destaco também a

pronta dedicação em sugerir e acrescentar informações essenciais sobre a fotografia,

consequentemente sobre a imagem, que foram pertinentes à análise.

Ao Professor Doutor Edson Rosa da Silva, que no curso de mestrado “A

literatura como arquivo da história”, realizado na Pós-Graduação da Faculdade de

Letras da UFRJ, norteou-me para uma nova visão da história pelo olhar de Baudelaire,

contribuindo para ampliação da minha análise no que concerne ao estudo da obra de

Raúl González Tuñón como poeta, visto que este autor era um fervoroso leitor de

Charles Baudelaire.

À Professora Doutora Helena Gomes Parente Cunha que no curso “O pós-

modernismo na literatura”, ministrado na Pós-Graduação da Faculdade de Letras da

UFRJ, proporcionou-me uma visão mais detalhada dos conflitos e da descentralização

do indivíduo moderno, possibilitando assim, uma observação mais aguçada das

transformações sociais e citadinas que antecederam a época pós-moderna.

À Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman que nos cursos “Poesia e

contexto sócio-cultural” e “Poéticas da modernidade”, ampliou minha visão crítica sobre

a imagem poética da cidade. Com extrema habilidade e um conhecimento profundo

sobre o assunto, Mariluci aportou à discussão sobre a construção da imagem citadina,

conduzindo o aprofundamento da análise por diversos campos literários.

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Ao Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho que, com muita

sensibilidade e embasamento teórico, encaminhou-me nos primeiros passos da

literatura e de seus movimentos literários no início da Graduação, através da disciplina

“Teoria Literária III”.

Ao professor Doutor Joel Rufino, já aposentado, que me direcionou na análise

dos aspectos formais e técnicos da narrativa literária durante a Graduação, através da

disciplina “Literatura Brasileira II”, despertando-me para o mundo dos romances.

À Kátia Maria Romeiro, pessoa que foi fundamental durante minha Graduação,

apoiando-me em alguns momentos difíceis da minha vida.

À Debora Ribeiro Lopes e à Bethania Guerra de Lemos, que me proporcionaram

o acesso a alguns recursos bibliográficos.

A todos meus familiares, principalmente Tio Ignácio e Tia Felicidade pelo

constante incentivo moral e financeiro, pela paciência, pela compreensão e pelo

carinho.

Aos meus amigos que me ajudaram e me apoiaram em todos os momentos.

Aos companheiros de faculdade que compartilharam comigo idéias e ideais tão

valiosos para a vida acadêmica e pessoal.

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Me había ocurrido el nacer y el vagabundear adolescente -cuando era chico miraba llover y me gustaba los agrios dulces […] y cuando de pronto me vi corriendo delante de la muerte -estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanos- la vida me pareció tremendamente deliciosa y tremendamente, verdaderamente peligrosa. Raúl González Tuñón

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Sinopse

Análise crítico-literária da obra poética do

escritor argentino Raúl González Tuñón.

Abordagem da Vanguarda Argentina, bem como

dos percursos realizados pelo autor. Ênfase

para a análise da imagem surrealista e da

imagem da Guerra Civil espanhola. Estudo das

personagens populares de Buenos Aires e dos

atores do conflito bélico espanhol.

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Sumário

INTRODUÇÃO........................................................................................... 13

1ª PARTE: A VANGUARDA ARGENTINA

I. A VANGUARDA ARGENTINA................................................................ 20

II. RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, O CAMINHADOR..................................... 30

2.1 Em Buenos Aires................................................................................. 30

2.2 Na Espanha........................................................................................ 43

2ª PARTE: A IMAGEM NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

III. A IMAGEM SURREALISTA................................................................. 55

3.1 O surrealismo em Buenos Aires....................................................................... 59

3.2 O olhar poético de González Tuñón sobre a capital argentina...................... 61

“Eche veinte centavos en la ranura”, entre o real e o sonho.......................... 61

“Poetango de la belle époque”, o cantor da cidade...................................... 68

“Motivo para una cajita de música”, sonhar é estar vivo............................... 82

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IV. A IMAGEM DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

4.1 A defesa da República Espanhola........................................................... 91

4.2 A imagem do caos na Espanha de 1936................................................... 94

4.2.1 As imagens fotográficas da guerra................................................... 96

4.2.2 As imagens bélicas na poesia de González Tuñón............................ 105

“La Libertaria”, toda manchada de sangue............................................... 107

“Cuidado, que viene el Tercio”, da marcha militar ao ritmo do poema.......... 114

“Domingo Ferreiro”, toque a gaita... ...................................................... 120

CONCLUSÃO.......................................................................................... 131

BIBLIOGRAFIA........................................................................................ 139

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Introdução

Em contato com as obras do escritor argentino Raúl González Tuñón, interessei-

me pela poética e estratégia de sua poesia, que conseguem exprimir simultaneamente

o real e o imaginário. Entretanto, deparei-me com um problema: a escassa divulgação

da vida e da obra de González Tuñón no Brasil. Esse fato foi um desafio que me

impulsionou a buscar e a aprofundar meus estudos sobre esse autor, visto que no

Brasil não se têm notícias de pesquisas a seu respeito, e seu nome é pouco conhecido

pelos pesquisadores brasileiros. Porém, cabe ressaltar a importância do poeta

argentino no universo literário, pois o autor percorreu diversos países como Brasil,

França, Espanha e grande parte da América do Sul e da Ásia, expressando

poeticamente o que observou nesses lugares: na Argentina, ampliou seu universo de

conhecimento e, a partir das inúmeras viagens, estreitou os temas de suas poesias,

como a cidade, a injustiça, as revoluções, a aventura e o cotidiano.

Priorizaram-se nesta pesquisa as experiências literárias que o autor teve na

Argentina (Buenos Aires) e na Espanha. Devido à falta de tempo hábil, torna-se

impossível, neste momento, analisar toda sua produção poética, mas seria importante

estudar a poesia de Raúl González Tuñón produzida na época em que descobre Paris.

Contudo, esta cidade será objeto de estudos futuros.

Nos últimos anos, ocorreu na Argentina um resgate da obra tuñoneana, a qual

foi a fonte de inspiração para grandes autores contemporâneos como Juan Gelman.

Assim começaram a reeditar alguns de seus livros e, inclusive, em 2005 ocorreu uma

homenagem ao centenário de seu nascimento, juntamente com um concurso de

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poesia, que levou seu nome e a mostra de um vídeo sobre seu poema, intitulado

Juancito Caminador, entre outras homenagens.

Nesta dissertação de Mestrado, serão abordadas as seguintes obras de Raúl

González Tuñón: El violín del diablo (1926), A la sombra de los barrios amados (1957),

La veleta y la antena (1971), La rosa blindada (1936) e La muerte en Madrid (1939).

Nesta fase encontramos poemas que tratam das cidades de Buenos Aires e Madrid.

Todos esses espaços foram visitados pelo poeta, assim, será relevante pesquisar o

conceito de cidade na obra poética de González Tuñón.

Esta pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira parte faz-se uma breve

contextualização do poeta na Vanguarda argentina. Por selecionar a cidade como

objeto de estudo, torna-se indispensável o conhecimento de como a capital argentina,

bem como as localidades espanholas, foram apreendidas pelo olhar do autor, e o que

essas urbes significaram para ele.

A obra de Raúl González Tuñón, participante ativo de movimentos artístico-

literários, que fizeram parte da Vanguarda argentina, como Florida e Boedo, exige a

contextualização do poeta nesta época tão fértil para o mundo artístico argentino. Com

este fim, estudar-se-á, no capítulo 1, a Vanguarda argentina (ZANETTI, 1980/1986);

(GARCÍA FELGUERA, 1993) e os manifestos da Vanguarda (OSORIO, 1988);

(SCHWARTZ, 1995), que são necessários para que se tenha uma maior compreensão

e dimensão de suas obras poéticas.

Raúl González Tuñón (1905-1974) nasceu em Buenos Aires, filho de imigrantes

espanhóis; sua mãe morreu quando ele ainda era criança e tinha sete anos; seu pai,

operário, morreu atropelado por um ônibus com um pouco mais de cinqüenta anos.

González Tuñón foi jornalista e poeta, mas pode-se dizer que foi mais poeta que

jornalista.

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Desde a infância, González Tuñón viveu cercado de magia e política. Sua casa

no bairro Once, estava próxima da Praça do Once, que era um lindo bosque, de onde

partiam as famosas manifestações socialistas sempre no dia primeiro de maio. Já sua

imaginação era despertada pelos sons dos apitos dos trens e pelos constantes

passeios ao porto.

A todo esse contexto histórico do autor será dedicado o capítulo 2 desta

dissertação, intitulado “Raúl González Tuñón, o Caminhador”, que está subdivido em:

“Em Buenos Aires” e “Na Espanha”. Nesses subcapítulos faz-se um breve estudo do

poeta no seu momento argentino, bem como no seu momento espanhol.

Na segunda parte deste estudo pretende-se analisar a construção da

imagem poética na obra tuñoneana. Para esse fim, apresenta-se o capítulo 3, intitulado

“A imagem surrealista”, que está subdivido em duas partes. Na primeira parte, “O

surrealismo em Buenos Aires”, aporta-se à questão da estética surrealista nesta

cidade, para tanto toma-se como modelo os estudos sobre o conceito surrealista de

PAZ (1983). Na segunda parte, “O olhar poético de González Tuñón sobre a capital

argentina”, serão analisadas as imagens surrealistas de Buenos Aires e como atuam

nos poemas do escritor argentino.

Percebe-se a importância da cidade (LYNCH, 1999) em sua produção e, para

este fim, tratar-se-á de como o poeta observa e sente o espaço urbano, como o registra

e como esse espaço e seus símbolos (ELIADE, 1991) se imprimem em sua memória.

Ao se pensar no olhar do poeta em relação à cidade, tornam-se necessários os

estudos sobre o olhar (NOVAES, 1988) e a imagem (VILLAFAÑE, 2002).

Raúl González Tuñón, como quase todos os poetas de sua época, participou da

corrente surrealista, por isso algumas de suas poesias apontam para a transformação

do homem através da liberação do inconsciente (FREUD, 1966). Como se pode

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verificar no poema “Eche veinte centavos en la ranura”, do livro El violín del diablo, o

poeta parte do real e ingressa subconscientemente em sua infância, com o propósito

de vivenciar de novo uma etapa feliz de sua vida, através de uma linguagem lúdica.

Dentro do contexto surrealista, encontra-se o poema “Motivo para una cajita de

música”, do livro A la sombra de los barrios amados, onde o eu-lírico exalta o cotidiano

e o bairro, revelando seu amor pela cidade, por seus locais. Como um excelente

observador, o poeta descreve nostalgicamente o ambiente citadino. Nesses versos o

sonho será o mecanismo empregado para provocar o lúdico, simbolizado pela caixinha

de música.

Na composição poética, “Poetango de la Belle époque”, do livro La veleta y la

antena, o poeta se posiciona como o cancioneiro da cidade, evocando de maneira

fantasiosa e criativa os espaços por onde passou. Com o seu rememorar, ele propicia

ao leitor a imersão em sensações nostálgicas e irreais, exaltando todo o ambiente

citadino de forma quase que universal.

No capitulo 4 desta dissertação, “A imagem da Guerra Civil espanhola”, a poesia

lírica cede espaço para o estudo da poesia social de Raúl González Tuñón. Esse

capítulo está dividido em “A defesa da República espanhola”, onde se faz um breve

estudo sobre o movimento republicano na capital espanhola durante o enfrentamento

com o General Francisco Franco, e em “A imagem do caos na Espanha de 1936”. Este

último subdivido em “As imagens fotográficas da guerra” e “As imagens bélicas na

poesia de González Tuñón”.

Para trabalhar a imagem do caos, empregou-se os estudos de CALABRESE

(1994), no qual o autor discorre sobre o conceito de objeto fractal, aplicado à literatura.

Este conceito será amplamente empregado na pesquisa durante a discussão sobre a

imagem poética e a imagem fotográfica.

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Por trabalhar com algumas fotografias bélicas, fez-se necessário o estudo da

construção da fotografia de guerra, desde o seu princípio até o que se chegou com a

Guerra Civil espanhola, quando se empregou, neste trabalho, fotografias de um

importante fotógrafo espanhol desse período: Agustí Centelles (1909-1985).

O primeiro poema, que inaugura a série de análises sobre a Guerra Civil

espanhola, trata de “La Libertaria”. Nessa composição o eu-lírico deixa expresso sua

comoção diante de um acontecimento brutal que marcou o cenário mundial: a morte de

uma jovem de 13 anos durante um confronto entre os soldados e os mineiros

asturianos. Esse poema também se assemelha à espécie de hino republicano, pois

toda sua métrica garante o ritmo durante sua leitura.

O segundo poema aportado é “Cuidado, que viene el Tercio”. Nessa

composição, o autor usa seus recursos poéticos para, através do eu-lírico, alertar a

população perante a constante ameaça. Também, por sua rima e disposição de seus

versos, cria-se uma composição muito semelhante a um tipo de marcha comprometida

com a guerra. Apesar de manter propostas surrealistas, não podemos deixar de

destacar outro marco importante em sua obra que é o caráter social como tema

freqüente em alguns de seus livros. Devemos destacar o poema “Domingo Ferreiro”,

pertencente ao livro La Muerte en Madrid, que denuncia os desmandos e crueldades

praticadas na época da Guerra Civil espanhola. Devido à publicação de três obras

voltadas para essa temática, não se poderia deixar de abordar as cidades espanholas

na época do conflito bélico na Espanha.

Os problemas sociais e políticos sempre estiveram no centro de sua ação e de

sua reflexão, assim como também a consciência de que a poesia deveria acompanhar

os processos históricos. Apesar de possuir livros premiados, de integrar vários

movimentos de suma importância na arte literária e de ter convivido com grandes

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nomes da literatura mundial, como Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Federico García

Lorca e Miguel Hernández, suas poesias são pouco divulgadas. Talvez tanto

esquecimento não seja casual, em se tratando de alguém cuja voz política se deixou

escutar muito longe dos círculos oficiais. Por convicção e eleição própria, sua conduta

foi transgressora do poder instituído e, por isso, ficou à margem. Seus poemas retratam

essa marginalidade.

Em uma entrevista ao escritor argentino Horacio Salas, González Tuñón elege

seus livros prediletos, El violín del diablo, 1926; La calle del agujero en la media, 1930

e La rosa blindada, 1936. O primeiro relata suas andanças juvenis no porto, nos

subúrbios, no baixo mundo portenho, tema de toda obra, onde descreve como ninguém

esse lado marginalizado de Buenos Aires, como os cafetões e os cabarés de

marinheiros, prostitutas, ladrões e canalhas; o segundo, relata o deslumbramento que

Paris lhe causou com suas mulheres, esquinas, bares e boemia; o terceiro é um livro

que reúne algumas idéias políticas da época: González Tuñón é a ante-sala da

sangrenta Guerra Civil espanhola.

Percebe-se que Raúl González Tuñón não se acovardava perante o sistema

político e que nunca deixou de cantar a alma humana em seus versos. O autor

considerava corretas todas as formas de expressão e todos os tipos temáticos, sua

única preocupação era que respeitassem o desejo primeiro do espírito humano, a

fidelidade ideológica. Afirma González Tuñón: “Para mí todas las formas, todos los

temas son válidos. Lo importante es que respondan a un impulso auténtico”. 1

Rául González Tuñón não tinha problemas em ser considerado pouco

rebuscado, pelo contrário, gostava disso. Segundo o autor, “um poeta popular puede

devenir poeta culto, pero difícilmente a la inversa”. 2 Para o autor, mais importante que

1 GONZÁLEZ TUÑÓN (1997) p. 42. 2 Ibidem.

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se enclausurar em uma biblioteca, é ir para a rua e vivenciar a cidade, beber o

conhecimento que ela oferece, desfrutar do seu prazer, entregar-se à urbe e permitir o

embriagar-se dela, para assim retratá-la de forma fiel e sensível.

O objetivo de González Tuñón, durante sua caminhada em busca da forma

perfeita, era fazer-se entender, levar para o outro sua beleza poética. Cantar o amor e

a vida. Doar-se em verso e prosa. Entregar sua alma à sua lírica...

I. A VANGUARDA ARGENTINA

Durante o início do século XX, o movimento vanguardista se associou

diretamente ao Modernismo Hispano-Americano do final do século XIX, que teve como

expoente o escritor nicaragüense Rubén Darío. Escritores de ambos os períodos

apresentavam-se como homens do novo século, declarando uma literatura fruto de um

presente histórico, marcado por intensas transformações, e negando toda uma estética

tradicionalmente denominada como padrão e emblema da elite. Inaugura-se um novo

tempo, um novo pensamento se forma; agora, o momento é de Modernidade.

Enunciada através de um dualismo incessante, ora tradicional ora revolucionária, essa

nova perspectiva passa não somente a surpreender e extasiar, mas também a negar

movimentos artístico-culturais anteriores aos seus, iniciando, desta forma, o que

Octavio Paz (1989) chamou de “tradição da ruptura”.3

3 PAZ (1989) p. 17.

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A partir dos anos 20, verifica-se uma divergência entre duas tendências

literárias: por um lado, o grupo dos pós-modernistas, que buscavam a simplicidade

lírica e condenavam o prosaísmo sentimental; por outro lado, estavam os mais

audazes, que lutavam radicalmente pela liberdade artística, culminando com a estética

de Vanguarda, partidária da ruptura e da renovação da arte até suas últimas

possibilidades.

O termo vanguarda origina-se do francês avant-garde, que se refere, no

contexto militar, a todo deslocamento de uma força que vai para frente do restante em

ação ou ataque. Essa palavra já era utilizada no século XIX para se referir às

tendências progressistas da época. A primeira menção registrada encontra-se no

ensaio de O. Rodrigues, L’artiste, le savant et l’industriel (1825), porém sua

abrangência ao conjunto de movimentos artísticos, que inovou o século XX, só

acontece a partir do período bélico. Por isso, foi amplamente utilizada para definir o

período artístico e literário que antecedeu a Primeira Guerra Mundial e inovou a época

de entre-guerras.

A vanguarda surge na Espanha diante de um cenário político e social

decadente, estabelecido pela crise de 98. O primeiro movimento vanguardista na

Espanha foi inaugurado por Ramón Gómez de la Serna ao publicar El concepto de la

nueva literatura em 1908. Em meio ao conceito de Gómez de la Serna também se

desenvolveu o Ultraísmo em 1918. Este aspirava uma arte liberada dos empecilhos da

razão, uma literatura que funcionasse como um jogo disparado e afortunado, sem

regras que limitassem a imaginação do poeta.

Na América Hispânica a vanguarda poética surge durante a Primeira Guerra

Mundial (1914-1918) e a Revolução Mexicana (1910), porém nesse início de

movimento os poetas parecem ignorar esses dois grandes conflitos políticos, detêm-se

Page 21: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

na estética e decidem avançar na linguagem através da metáfora, que será a grande

fonte de inspiração desses escritores.

O movimento de vanguardas marcou as novas tendências artísticas do século

XX. Esse movimento primava pela plasticidade e pela espacialidade. Como uma crítica

aos valores tradicionais do Modernismo de Rubén Darío4, o início do século XX

representou um período de profundas mudanças da história literária e artística tanto

nos países hispano-americanos como nos países europeus.

Os diversos movimentos de vanguarda, nascidos tanto em solo europeu quanto

em solo hispano-americano, apontavam para uma mesma direção: a ruptura com o

tradicional. Devido à pluralidade de tradições influenciadas por diversos fatores

(sociais, culturais, políticos, econômicos e tecnológicos), os movimentos de vanguarda

tiveram várias ramificações na Europa: cubismo, expressionismo, futurismo, dadaísmo,

ultraísmo, surrealismo. Na América Hispânica as vanguardas surgem quase

simultaneamente em diferentes países, embora com distintas denominações

(criacionismo no Chile, Estridentismo e Contemporâneos no México; Ultraísmo,

Martínfierrismo e Surrealismo na Argentina).

A vanguarda pode ser dividida em duas fases. A primeira com os movimentos

criacionista, ultraísta e estridentista, que parecem culminar em 1926, quando se publica

a antologia Indice de la nueva poesía americana, que irá contribuir para a segunda fase

da vanguarda, o surrealismo.

A entrada oficial da Argentina no conturbado mundo da vanguarda ocorre com a

publicação (em 1921 e 1922) de Jorge Luis Borges dos dois números da revista mural

Prisma, afixados nos muros de Buenos Aires. Após tantos anos no exterior, Borges

4 Rubén Darío, poeta e prosador nicaragüense (1867-1916), foi o iniciador e o máximo representante do Modernismo literário em língua espanhola, um estilo rico em musicalidade, que pretendia inovar a arte poética.

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redescobre sua cidade natal, e esse fato o leva a publicar seu primeiro livro de poemas,

Fervor de Buenos Aires (1923), no qual se verifica a influência da estética ultraísta.

O momento político que a Argentina presenciava era propício às

transformações. Em 1926, com sua eleição à presidência da República, Hipólito

Yrigoyen consegue abalar as forças oligárquicas e principia um governo de reformas

sociais que concederá à classe média almejar, pela primeira vez, a possibilidade de

uma real participação na vida nacional. O governo de Yrigoyen também foi

caracterizado, no ano de 1918, por uma respeitável reforma universitária, que provocou

a mudança do sistema educacional argentino e ressoou por toda América Latina. Do

mesmo modo, o pós-guerra e a Revolução Russa trouxeram grande influência

ideológica para os intelectuais e para a constituição do gosto literário.

A partir de 1922, toda ebulição intelectual argentina desencadeia uma explosão

de manifestos, editoriais, folhetos e, principalmente, revistas. Tais instrumentos

propiciaram maior dinamismo ao espírito de ruptura dos grupos vanguardistas. Nessa

década, a Argentina presenciou o surgimento de oitenta e três novas revistas. Toda

essa variedade multiforme refletia as polarizações e as tendências que não demoraram

a se apresentar. São exemplos os binômios nacional/cosmopolita e poesia pura/poesia

engajada, que determinaram os perfis ideológicos das revistas.

Após Prisma, a primeira dessas revistas foi Proa, organizada em sua primeira

fase (1922-1923) por Borges, Eduardo González Lanuza e Francisco Piñero. Se Prisma

e Proa foram as precursoras das revistas de vanguarda, foi com Martín Fierro (1924-

1927) que o movimento de fato se consolidou na Argentina.

Além dos manifestos, muitas dessas revistas eram dirigidas por Oliverio Girondo

e Jorge Luis Borges. Segundo Óscar Collazos “em 1924 o ultraísmo chegou a seu

ápice”. Borges e outros escritores retomam a revista Proa na sua 2ª etapa; enquanto

Page 23: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

isso surge a publicação mais revolucionária da vanguarda argentina: a Revista Martín

Fierro dirigida por Evar Méndez e Oliverio Girondo. Essa revista, que já existia desde

1904, dirigida por Alberto Ghiraldo, e apresentava tendências anarquistas, foi a mais

representativa da vanguarda portenha, devido a sua íntima relação com as propostas

revolucionárias de inovação total da arte, bem como pelo caráter polêmico que

matizava a revista. De acordo com Evar Méndez,

MARTÍN FIERRO aparece quase exclusivamente como um jornal de poetas, e em suas páginas registrou-se o mais fiel reflexo do movimento literário de nossa juventude durante os últimos anos, no que havia de mais vivente e moderno e mais vinculado com a poesia, e precisamente a nova poesia.5

Segundo Jorge Schwartz6 (1995), o impacto das informações das novas

tendências e o caráter polêmico dos temas apresentados definiram Martín Fierro como

um divisor de águas na cultura Argentina. A revista possuía uma função crítica,

criadora e informativa, o que significou um abandono quase total dos critérios

tradicionais.

Oliverio Girondo, principal representante do movimento martinfierrista, como se

assumisse o papel de anunciador da nova estética portenha, escreve o Manifesto

Martín Fierro, publicado pela primeira vez no quarto número da revista, em 15 de maio

de 1924. Nesse manifesto, Girondo condena a arte mimética e afirma que existe a

capacidade de cada um criar sua verdadeira e única arte:

Frente el mimetismo que demuestran... Frente a la incapacidad de contemplar la vida sin escalar las estanterías de las bibliotecas… Martín Fierro tiene fe en nuestra fonética, en nuestra

5 OSORIO (1988) p. 232. 6 SCHWARTZ (1995) p. 105.

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visión, en nuestros modales, en nuestro oído, en nuestra capacidad digestiva y de asimilación.7

Dentre todas as polêmicas contidas em suas páginas, destacam-se os

confrontos entre os grupos literários Boedo e Florida, pólos antagônicos da

intelectualidade argentina. Estes grupos surgiram de uma grande bipolarização

intelectual formada em Buenos Aires no inicio do século XX: de um lado, o grupo

popular Boedo, representado por escritores de acentuado localismo e com propostas

literárias socializantes; do outro, o grupo elitista Florida, representado por escritores de

exacerbado cosmopolitismo e favoráveis a uma aproximação entre a Argentina e os

mais importantes centros intelectuais e culturais da Europa.

Florida e Boedo nomeiam ruas de Buenos Aires, localidades com características

sociais totalmente díspares. A primeira é uma das vias mais importante da capital

argentina, localizada numa região elegante e comercial; a outra se localiza nos

arredores da capital, nos subúrbios onde os habitantes são na maioria imigrantes e

proletários.

Apesar da acepção das duas correntes ser pouco precisa e a distinção entre

ambas por vezes confusa, elas estão bem representadas. Do lado de Florida, os

martinfierristas, reunidos ao redor de uma série de publicações que abrangem desde a

folha mural Prisma e as revistas Proa (1ª e 2ª fases) até, sobretudo, a Martín Fierro (2ª

fase).

No lado adverso, empenhados na literatura como meio apropriado de refletir e

alterar os rumos da sociedade, estão Roberto Mariane, Leonidas Barletta, Álvaro

Yunque e os irmãos Tuñón. Seus modelos são o realismo-naturalismo, a literatura

7 Manifiesto Martín Fierro (1924). In: Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos (1995) p.203.

Page 25: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

russa e a revista Clarté. Seu entusiasmo está na narrativa comprometida com a

realidade, que procura descrever um mundo recém-saído do caos da Primeira Guerra

Mundial e que tem na Revolução Russa um modelo de evolução social. O grupo possui

como instrumento de comunicação cultural as revistas Renovación, Los Pensadores,

Claridad e La Campana de Palo.

Apesar da polêmica entre os dois grupos, existem autores que não pertencem a

nenhum dos grupos e são de difícil classificação, como Roberto Arlt, ou aqueles que

participaram em revistas de ambos os grupos, como Álvaro Yunque, representante de

Boedo, que escreveu para Proa, ou Rául González Tuñón, para Martín Fierro.

Boedo e Florida discutiam também sobre a preocupação com o idioma espanhol,

ou melhor, com a língua “argentina”. Esta contestação tem sua raiz no século XIX,

acendida pelas tendências nacionalistas dos anos 20. “A Martín Fierro tem fé em nossa

fonética”, afirma Oliverio Girondo no Manifesto Martín Fierro. Já os autores boedistas,

consideram imprescindível agregar à língua literária as influências do enorme

contingente de imigrantes dos anos 20 e protestam contra a maneira como são

classificados pelo grupo Florida, que os define “filhos da espanholada, da italianada, da

russalhada, que escrevem mal, sem estilo porque escrevem como ouvem falar nas

ruas”.8 A procedência de ordem social do conflito entre Boedo e Florida reflete de forma

clara, no sistema dos sons articulados, tais crenças diferenciadas.

Outra polêmica ocasionada pela Martín Fierro foi a repercussão dada ao artigo

intitulado “Madrid, meridiano intelectual de Hispanoamérica”, publicado no jornal

madrilenho La Gaceta Literaria (abril de 1927), no qual o escritor Guillermo de Torre,

integrante do ultraísmo espanhol e colaborador de várias revistas de vanguarda latino-

americana, critica a influência francesa e italiana na cultura hispano-americana,

8 SCHWARTZ (1992) p.15.

Page 26: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

enaltecendo o eixo Madri–América Hispânica como o único intercâmbio possível entre

seus antigos colonizados. Veja-se o trecho extraído do livro de Jorge Schwartz

(1992:103):

Pois chegou o momento de manifestar claramente o nosso critério. Não podemos mais contemplar com indiferença essa constante captação latinista das juventudes de fala espanhola, esse desfile enorme de estudantes, escritores e artistas em direção à França e Itália, elegendo tais países como centro de suas atividades (sem ao menos se dignarem tocar num ponto espanhol) ou considerando nosso país campo de turismo pitoresco. Daí então a necessidade urgente de propor e exaltar Madri como o meridiano intelectual da Hispano-América. A nosso ver, as novas gerações de estudantes e intelectuais deveriam romper a corrente equivocada de seus antepassados, aprestando-se a penetrar na atmosfera intelectual da Espanha, certos de que aqui podem encontrar não apenas uma acolhida cordial mas até mesmo uma atenção autêntica – mais desinteressada e eficaz do que a que encontram em Paris, por exemplo, representada por meia dúzia de hábeis aproveitadores do latinismo.9

Em meio a esta declaração desafortunada e preconceituosa, ocorre uma

indignação geral na América Latina, que apesar de desejosa pela inovação da arte,

possuía uma forte consciência patriótica. Logo, coube a Jorge Luis Borges a publicação

em Martín Fierro de um protesto ardente e anticolonialista, denominado “Madri,

¿meridiano intelectual de Hispanoamérica? Sobre el meridiano de una gaceta”,

publicado no número 42 da revista Martín Fierro de 10 de julho de 1927. Veja-se um

trecho extraído de Jorge Schwartz (1992:105):

A sediciosa nova geração espanhola nos convida a estabelecer em Madri (!) o meridiano intelectual desta América. Todos os motivos nos incitam a recusar com entusiasmo o convite. Hei de opinar numa só página de caderno; não os esgotarei. [...]

9 Ibidem p.103.

Page 27: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

P.S. Não quero ser indigno de minhas lembranças nem pretendo me fazer forasteiro nas que sei guardar de Madri; mas o momento não é de salamaleques, é de verdades.

Borges, assim como todos os representantes da intelectualidade argentina, não

tinha a intenção de eliminar a cultura espanhola das tradições portenhas, tão pouco

menosprezá-la, mas jamais se condenaria a um colonialismo indireto conforme o

pretendido por Torre.

Está claro que o manifesto Martín Fierro representou a consolidação do

movimento vanguardista argentino, e que a questão do caráter nacional suscitada na

literatura deu inicio a um debate permanente nas letras latino-americanas, entretanto,

por motivos políticos a revista deixa de circular em 1927.

A Modernidade, período de negação e inovação, refletia no homem a angústia

diante da incerteza de se entregar a uma nova vida estabelecida nos modelos de uma

ideologia revolucionária. O medo do desconhecido, de não saber aonde todas essas

mudanças chegariam ou o que poderiam ocasionar, afloraram no homem um

sentimento de insegurança. O progresso avassalador, que destruía tudo a sua volta em

favor da modernidade, determinou a ideologia do inicio do século XX e propiciou o

surgimento da nostalgia, sentimento corrente em muitas obras poéticas.

Page 28: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

II. Raúl González Tuñón, o ‘Caminhador’

2.1 Em Buenos Aires

Sabe-se que a biografia utilizada como a única maneira de valorizar a obra de

um autor não é pertinente muito menos adequada. Entretanto, para o estudo da poesia

de Raúl González Tuñón, a relação existente entre a vida e a obra pode permitir uma

leitura mais elucidativa, já que o conhecimento da biografia proporciona o entendimento

de certas alusões em seus poemas.

Page 29: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

González Tuñón nasceu em 29 de março de 1905 na rua Saavedra 614, do

bairro do Once, em Buenos Aires, Argentina. Foi o sexto de sete irmãos de uma família

de imigrantes espanhóis. Junto a sua família também viviam seus avós maternos e

duas tias.

Certa vez o autor expressou, em entrevista ao escritor argentino Horacio Salas

(entrevista que deu origem a um livro), um resumo de sua vida, rico em detalhes,

anedotas e opiniões, que formam “o outro lado” de seus poemas. Ou seja, comentou

sobre as pessoas, os acontecimentos e os lugares que o estimularam a transformá-los

em matéria poética. Entre todas as recordações, provavelmente as que são mais

significativas e que o próprio autor declarou como decisivas em sua trajetória poética

são as referências a seus dois avôs:

Mirá, creo que el hecho de haber nacido oyendo los pitazos de una estación de ferrocarril, el haber ido todos los domingos durante mi infancia al puerto a comer pescaditos fritos con mi abuelo Manuel Tuñón, y las historias que me contaba mi padre sobre mi otro abuelo, el imaginero, incidieron en mi vida extraordinariamente. Porque mi amor por los puertos y el vagabundaje y los viajes me vienen de ahí. Y en mi sangre y en mi poesía siguen presentes. El imaginero, que es Juancito Caminador,[...]. Y el poeta social, que sería, de algún modo, Manuel Tuñón. 10

Durante toda sua infância, o autor viveu junto a seu avô materno, Manuel Tuñón,

um mineiro asturiano que trabalhava como metalúrgico na antiga casa Snockel -

palavra corrente em seus poemas - e que era socialista como o seu pai. González

Tuñón atribui a esse avô sua filiação às causas populares e políticas e, segundo ele,

todo esse deslumbramento foi despertado enquanto criança: “yo tenía nueve años

10 GONZÁLEZ TUÑÓN. “Autorretrato”. In: Recordando a Tuñón. (1997) p. 28.

Page 30: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

cuando mi abuelo me llevó por primera vez a una manifestación. Yo estaba

fascinado”.11

Essa diferenciação entre seus dois avôs inaugura as duas vertentes de sua

obra, que a crítica tratou de caracterizar, como poeta lírico e poeta social. E o próprio

autor afirma: “en mí coexisten las dos constantes que existen en mi obra y en mi vida:

la poesía como diálogo del hombre con su tiempo y como aventura total del espíritu,

continúan configurando nuestra actitud, al margen de todo sectarismo”.12 O percurso

de González Tuñón pode ser identificado por quatro vocábulos: jornalista, viajante,

poeta e militante (do partido Comunista).

Raúl González Tuñón está longe de ser um poeta imêmore no contexto da

literatura argentina, entretanto, sua obra é pouco divulgada. O reconhecimento que se

realiza de sua produção, geralmente não provem da crítica oficial. Por todos os

motivos, esta situação um tanto quanto marginal é a que dificulta sua inclusão nos

grupos Florida ou Boedo, cuja vinculação a um ou a outro permanece ambígua. Ao

percorrer os textos sobre a polêmica, seria simples elaborar uma lista de autores que o

situasse em um ou outro grupo. Para se estabelecer conexões entre Florida ou Boedo,

deve-se considerar os poemas de El violín del diablo e Miércoles de Ceniza, que foram

produzidos durante o período em que os grupos disputavam o cenário literário.

Dos mais de vinte livros publicados por González Tuñón, é mínima a proporção

que poderia se vincular à discussão. Sua maior produção se une a outros

acontecimentos literários e/ou políticos. Considerando as inúmeras declarações do

próprio autor, torna-se notória sua filiação aos martinfierristas. Compartilha com eles o

interesse pela pratica poética, a ruptura contra todo academicismo, especialmente

contra os clichês modernistas sustentados pela literatura oficial, a valorização da

11 DOMÍNGUEZ, Nora. In: ZANETTI (1980/1986) p.123. 12 Ibidem.

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imagem e da metáfora, a atitude lúdica, o exercício do verso livre e o aparente

abandono da rima. A estes elementos poder-se-ia somar a atração que exerciam as

correntes européias de ruptura nesses jovens. A maioria destes participava da redação

de Martín Fierro e pertencia a famílias da oligarquia ou relacionadas a ela, enquanto

González Tuñón, filho de imigrantes espanhóis, era vinculado ao proletariado urbano.

Além de sua atividade de jornalista, mantinha com a cidade, com seu povo, com sua

língua, outra relação. Essa procedência, essa atenção com personagens marginais e

carentes, certamente foi uma das causas que o levou a imprimir outro rumo a sua

produção.

No grupo Boedo, González Tuñón afirmou ter bons amigos, com os quais

compartilhou encontros de café e com os que chegou a colaborar na revista boedista

Conducta, somente em 1942, quando já tinha terminado a disputa. As atividades

sociais e políticas sempre estiveram no cerne de sua ponderação, assim como a

consciência de que a poesia deveria acompanhar as evoluções históricas; por isso, não

é incoerente que o tenham associado ao grupo Boedo.

Tanto sua atividade poética quanto seu trabalho como jornalista começam quase

que concomitantemente entre 1922 e 1925. Seu primeiro poema foi publicado em

Caras y Caretas13. Após essa publicação colabora nas revistas Inicial e Proa e, por fim,

integra ativamente a redação de Martín Fierro.

A partir de 1925 inicia efetivamente seu trabalho no periódico Crítica e, depois

em La Nación, El Hogar, Mundo Argentino e, em 1948, no Clarín. De todas essas

publicações foi no diário Crítica que sua carreira jornalística começou, pois foi onde o

autor registrou suas mais relevantes recordações. Com uma aguçada percepção, seu

13 Foi um semanário argentino publicado entre os anos de 1898 à 1941. Foi fundado por Eustaquio Pellicer e foi extremamente popular, sobretudo na primeira época dirigido por José Sixto Álvarez. Em seu desenho destacavam-se as imagens de grande qualidade e em seus textos combinava o humor com o jornalismo mais comprometido, que acompanhou a construção da Argentina moderna e deu conta dos fenômenos políticos, sociais e culturais que atravessaram o país.

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diretor, Botana14, logo percebeu o espírito aventureiro e livre de González Tuñón,

afirmando: “Este Raúl [...] es un pajáro y hay que tratar de tenerlo siempre afuera”. Esta

precisa observação de Botana permitiu que o poeta viajasse, como correspondente do

diário, a Tucumán (1927), Brasil (1931), Chaco paraguaio durante a guerra em 1932,

Patagônia (1933). Suas vivências nesses lugares serviram de estímulo para sua

produção poética.

Seu primeiro livro, El violín del diablo, surge em 1926 graças a seu irmão

Enrique, também escritor, que tinha enviado os originais a um concurso

organizado por Manuel Gleizer15 para jovens escritores. O livro ganha o concurso e

como prêmio é publicado. Nessa obra, o poeta aborda os submundos portenhos e a

periferia, retratando ternamente essa Buenos Aires de pensões, cafetões, cabarés,

marinheiros, prostitutas, ladrões e canalhas. Livro de quarenta e nove poemas que

descrevem suas perambulações juvenis no porto, nos subúrbios e nos cortiços.

Em El violín del diablo encontra-se um poema escrito quando González Tuñón

tinha pouco mais de quinze anos, portanto, em 1920. Esta composição poética,

intitulada “Eche veinte centavos en la ranura”, é considerada pela maioria dos críticos

como a mais brilhante de seu início de carreira. Nesse poema o autor evoca a zona

portuária de Buenos Aires, onde com intensa atividade diurna e noturna existiam

insólitos estabelecimentos, nos quais abundavam salões de novidades: no hall se

encontravam máquinas, que ao se colocar a moeda de vinte centavos e girar uma

manivela, viam-se paisagens de países distantes, que despertavam o sonho de viajar,

14 Natalio Félix Botana Millares, empresário jornalístico uruguaio radicado em Buenos Aires, nasceu em 8 de setembro de 1888 e morreu em 7 de agosto de 1941 em um acidente de carro. O jornalista uruguaio fundou o diário Crítica em 15 de setembro de 1913. O Jornal possuía um tom sensacionalista e chegou a ser um dos mais vendidos do país. Deixou de ser editado em 1962. 15 Nascido em 5 de junho de 1889, imigrante da Rússia, Manuel Gleizer chegou à Argentina por volta de 1900; foi camponês, vendedor ambulante e livreiro. Em 1918, com 29 anos, passa a viver no bairro Villa Crespo. Após três anos de compra e venda de livros, Gleizer abre pela primeira vez as portas de sua livraria, La Cultura. Em 1922 fundou uma editora que entrou para a história por marcar o rumo da literatura argentina dos anos vinte. Manuel Gleizer, grande impulsor das letras argentinas, morreu em 3 de março de 1966.

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fotografias de artistas e postais um tanto quanto pornográficos. Foi esse clima

alucinante, como afirma o escritor, que o inspirou a escrever o poema:

Fui al Paseo de Julio muchas veces y un día ya me deslumbró, me emocionó totalmente. Fue Eche veinte centavos en la ranura. En esos parques de diversiones increíbles, surrealistas antes del surrealismo, había de todo. […] Salí totalmente fascinado. Había una cantina muy atorranta y simpatiquísima y allí me metí para reunir esos elementos que me habían impresionado. Era un repentista.16

Com essa declaração e esse poema, Raúl González Tuñón antecipa o

surrealismo, como também ocorreu com o poeta peruano César Vallejo. A obra abarca

descrições do mundo marginal: a mulher mais gorda do mundo, o anão, as tristezas do

circo, os portos… O grotesco, a paródia gestual de um mundo desprezado, que

encantou a literatura da época, se opõem aos salões resplandecentes da belle époque.

Essa temática social cujos reflexos contemporizaram o período de entre-guerras marca

o início poético de González Tuñón e o seduz: o mundo canalha e menosprezado, que

o poeta vislumbra, torna-se envolvente.

O livro atinge um modesto êxito, Rául González Tuñón passa a ser notado nos

ambientes literários, atinge a redação do jornal Crítica, que, no âmbito jornalístico,

outorgava status de elite da modernidade a quem dele participava.

Sobre El violín del diablo vale ressaltar a opinião de Macedonio Fernández,

quando o jurado que devia julgar os prêmios municipais à nova geração, que esperava

algum reconhecimento, considera o seguinte:

El violín [...] seguirá siendo lo que es: una realidad poética de primera agua, un gran libro de un notable poeta, henchido de belleza, de originalidad y de gracia expresiva [...] Raúl González

16 GONZÁLEZ TUÑÓN. “Autorretrato”. In: Recordando a Tuñón. (1997) p. 32.

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Tuñón, con o sin el premio, es una de las figuras más vigorosas de la nueva generación literaria.17

Segundo González Tuñón, essa espontaneidade e as inspirações que o mundo

visível o presenteavam refletiram-se em seus livros posteriores. Em contrapartida a

atividade jornalística também o seduzia, já que a imprensa argentina conheceu a maior

liberdade de expressão do país entre os anos 1918 e 1930, o jornalismo possibilitava

ao poeta estar atento às vivências e aos problemas do país e do mundo.

Buenos Aires vivia um momento de apogeu do teatro nacional, do circo, dos

tangos, do jazz norte-americano. Os poetas, principalmente, González Tuñón vivia com

uma extraordinária intensidade e enaltecia a cidade, ao mesmo tempo que cantava a

alma do portenho. Foi por essa época que o poeta se interessou pela composição

musical, o tango, após ter sido reconhecido no exterior, tinha retornado a seu país com

um intenso glamour e valorização. González Tuñón, que além de Ricardo Güiraldes e

Oliverio Girondo, era um grande bailarino, não podia excluir-se do ar de época que

pairava sobre a cidade, onde os compassos das orquestras, bem como a voz de Carlos

Gardel, presenteavam as caminhadas noturnas dos escritores por esse espaço

citadino. Assim, decide escrever alguns tangos exaltando a urbe em constante

processo de transformação, embora também marcasse, em algumas canções, a

nostalgia do deslumbramento primário por essa capital.

Em 1928, Raúl González Tuñón ganha o Prêmio Municipal com seu segundo

livro Miércoles de Ceniza, obra que retrata suas experiências durante o ano que

percorreu a região argentina de La Rioja18. Nessa produção literária o autor descobre o

17 SALAS, Horacio. “Centenario de Raúl González Tuñón: demanda contra el olvido”. In: Cuadernos

Hispanoamericanos (2005) p.111. 18 La Rioja é uma cidade da Argentina e capital da Província de La Rioja. Está localizada na porção centro-oriental da província. A cidade foi fundada, em 1591, pelo nobre espanhol Juan Ramírez de Veleasco, na época governador da

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seu país, ou melhor, o interior de seu país e realiza um reconhecimento de si próprio,

bem como da história da Argentina. Com poucas variações das obras anteriores, o livro

continua com a mesma temática, salvo a incorporação do tango como tema

protagônico de diversos poemas. Era evidente: a música de Buenos Aires, depois de

ter conquistado as capitais européias, retorna com sua áurea de triunfo, contribuindo

para sua maior difusão e popularidade.

Com o valor da premiação, González Tuñón viaja para Europa, mais

precisamente, Paris em 1929. Essa viagem foi o marco para sua poesia. Sua trajetória

pelo velho mundo tem duração de um ano; percorre algumas cidades espanholas, mas

se estabelece realmente em Paris. Nessa cidade vincula-se a círculos literários e entra

em contato com o surrealismo. Apesar de não ter um profundo conhecimento da

estética surrealista, o autor já possuía inúmeros poemas que se inseriam nessa

corrente.

Da experiência vivida na cidade francesa surge, no mesmo ano, seu terceiro

livro La calle del agujero en la media, no qual exerce uma versificação menos formal e

amplia o verso livre. Sua poesia ganha liberdade e desprende-se de costumes poéticos

passados como os versos rítmicos alexandrinos. Desta forma escreve poemas, como

“La cerveza del pescador de Schiltiheim”, “La calle del agujero en la media” e “Escrito

sobre una mesa de Montparnasse”, que muitos críticos consideram sua melhor

composição poética e que integra o conjunto de trabalhos mais representativos da

vanguarda latino-americana de inícios do século XX. Nesse último poema González

Tuñón expressa seu deslumbramento por Paris, sua sensação de solidão e comenta:

“Vengo de Buenos Aires, digo a mis amigos desconocidos, de Buenos Aires que es tres

província de Tucumán, que batizou a nova cidade de “Todos los Santos de la Nueva Rioja”, em homenagem à sua terra natal na Espanha. Em 20 de maio de 1591, foi instalada a prefeitura e traçou-se o tecido urbano citadino. Por ter sido uma das primeiras cidades fundadas na região e devido ao isolamento geográfico, até hoje, a localidade conserva características coloniais tanto da arquitetura quanto das antigas tradições.

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veces más grande que París y tres veces más pequeña.”19 Em toda sua obra poética

percebe-se um argentino apaixonado por Paris, por suas mulheres, por suas esquinas,

por sua boemia, enfim pelo surrealismo.

Em Buenos Aires, próximo ao porto, proletários, estudantes e desempregados

ocuparam antigos imóveis criando a “Villa Desocupación”, e González Tuñón foi

designado pelo jornal a contar o que acontecia naquele lugar. Figurando entre o povo,

escreveu uma grande reportagem sobre essas vidas, intitulada “La ciudad del hambre”.

Também quando organizaram uma passeata em protesto, González Tuñón esteve com

eles enquanto a polícia atirava e batia na população, que corria entre suas casas de

papelão. Como reação imediata, Raúl González Tuñón fundou na capital argentina, em

1933, a revista Contra e publicou seu poema “Las brigadas del choque”, uma espécie

de arte poética e discurso ideológico, que define seu posicionamento contra a

burguesia e contra a guarda civil. Por causa desse poema é preso, solto após pagar

fiança e processado. Após esse acontecimento, viaja para Espanha e lá tem

conhecimento de sua sentença: dois anos de prisão condicional por incitação à

rebelião, o que gera, imediatamente, um manifesto de protesto redigidos por seus

companheiros. Assiste, em Paris, ao Primeiro Congresso de Intelectuais para a Defesa

da Cultura e retorna à Argentina. A revista desaparece após a publicação de cinco

números.

González Tuñón, quando esteve no Brasil, na revolução liderada por Getúlio

Vargas, escreveu quase todo o livro que seria publicado anos mais tarde, em 1934,

com o título El otro lado de la estrella. Por isso, o poeta não acreditava na poética

nacionalista e afirmou: “La poesía es internacional, porque cuando más nacional es,

más internacional se torna”.20 Nesta obra, González Tuñón continua esta mesma fase

19 GONZÁLEZ TUÑÓN (2005) p.28. 20 GONZÁLEZ TUÑÓN. “Autorretrato”. In: Recordando a Tuñón. (1997) p. 33.

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de sua poesia: o verso amplo que chega a se fundir com a prosa. Ainda escreve um

dos seus melhores poemas de amor, “Lluvia”, dedicado a sua primeira esposa Amparo

Mon: “Te quiero con toda la ternura de la lluvia. Te quiero con toda la furia de la lluvia.

Te quiero con todos los tambores de la lluvia. Te quiero con todos los violines de la

lluvia”.

Em 1935 publica seu quinto livro, Todos bailan, poemas de Juancito Caminador,

uma espécie de “alter ego” do poeta, imaginado a partir de uma etiqueta de whisky

Johny Walker, donde se via uma personagem com bastão e um chapéu caminhando

pelo mundo. Certo de seu ofício como poeta, González Tuñón canta agora não

somente o amor e a vida descomprometida, mas também os homens dispostos a uma

atitude de solidariedade e de combate. Seus poemas alertam para o clima de pré-

guerra europeu, o apogeu do jazz, os gangsters dos Estados Unidos, ou seja, já

preparavam o leitor para o advento de sua poesia social.

Após passar alguns anos na Espanha, o escritor regressa a sua pátria e segue

suas viagens pela América Latina. Viaja por Guadalupe, Martinica, Lima e Valparaiso,

onde permanece por algum tempo. Em 1940 morre sua primeira esposa Amparo Mon,

com quem havia se casado em 1935. Em 1941 publica sua décima obra, Canciones del

tercer frente, que reúne quatro livros: Himnos y canciones, A nosotros, la poesía, Las

calles y las islas e Los caprichos de Juancito Caminador. O escritor dedica essa obra

aos amigos que fez pelo mundo, e nela segue a presença da personagem “Juancito

Caminador”. Ainda em 1941 se muda para o Chile onde vive até 1945. Na terra de

Pablo Neruda funda o diário El siglo, escrevendo duas colunas diárias, dando

continuidade ao seu estilo mordaz e irreverente.

Ainda no Chile, em 1943, publicou Himno de pólvora, com poemas e textos em

prosa, cujo tema central trata dos feitos da guerra, e a belíssima Elegía en la muerte de

Page 38: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Miguel Hernández. Após o conflito bélico espanhol, sua poesia será um entrelaçado,

onde o social e o político se entrecruzarão com uma atitude lírica gerida pela nostalgia

e pela ternura. Afirma o poeta:

Creo que todo tiempo por venir será mejor. Creo, sí, que en el tiempo pasado […] siempre hay algo que fue mejor, entrañable, que es lo que merece perdurar y forma la base sutil de ese sentimiento tan puro que es la nostalgia. […] Creo que no es uno el que se mete en la época, es la época la que se mete en uno, con sus ráfagas puras e impuras.21

Com a explosão do peronismo, em 1943, quando se inicia a política populista

argentina, González Tuñón regressa a Buenos Aires e publica seu Primer Canto

Argentino em 1945. Essa composição poética está estruturada em quatro partes, nas

quais se alternam a história passada e a presente, uma condição de canto geral das

lutas do povo argentino. É a etapa de acentuação política na obra de González Tuñón,

portanto, pode-se dizer que o acento está colocado na poesia e que os sonhos, a vida

cotidiana, a magia são quase imperceptíveis perante seu discurso político.

No início dos anos cinqüenta, Raúl González Tuñón conhece outro amor de sua

vida: Nélida Rodríguez Márquez, que o acompanharia até sua morte. Casa-se com ela,

em 1952, e publica Hay alguien que está esperando. Nesse livro, como os que se

sucederão, o autor retoma o lirismo dos primeiros poemas e recorda as pessoas

queridas já ausentes.

Em Todos los hombres del mundo son hermanos (1954), o poeta volta a buscar

os objetos poéticos que o arrebataram no início de sua carreira. Desta forma,

reaparecem em seus poemas o bairro, o tango, o porto e sua vida pessoal; embora

21 Ibidem (1997) p. 36.

Page 39: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

nenhum desses elementos deixassem de ser aludidos em suas composições, eles se

encontravam mais discretos e menos evidentes.

A la sombra de los barrios amados (1957) constitui uma etapa de síntese da

poética tuñoneana, retomando os objetos e os lugares que o deslumbraram quando

jovem. Também escreve poemas em homenagem às pessoas com quem vive ou viveu.

Nessa fase sua poética, totalmente consolidada, reflete o convívio harmonioso do

poeta social com o poeta lírico.

A partir de então sua vida transcorre em pleno exercício poético. Admirado pelos

jovens poetas, surpresos com a sua generosidade, seu tratamento sempre amável com

os que se iniciam nessa profissão, um grupo juvenil, próximo à estética de González

Tuñón, formou uma aliança literária chamada “El pan duro”, que funcionou do ano de

1955 a 1957. Desta coligação surgirá o primeiro livro de Juan Gelman: Violín y otras

cuestiones, em que González Tuñón escreve o prólogo, e José Luis Mangieri criará a

editora La Rosa Blindada, na qual serão publicadas algumas das últimas produções de

Raúl González Tuñón.

Entre 1945 e o ano de sua morte, o escritor vive em Buenos Aires, porém sua

disposição para as viagens o leva em 1953, 1958 e 1971 a participar de diferentes

celebrações na União Soviética. Também viaja para La Habana em 1963 onde forma o

corpo de jurado de poesia para o Premio Casa de las Américas. Na primeira dessas

viagens, além de conhecer a União Soviética, como integrante da primeira delegação

cultural, visita Varsóvia, Praga, Pequim e Shangai. Anos mais tarde viaja como

convidado especial ao Primeiro Congresso de Escritores de Ásia e da África,

percorrendo ainda Moscou, Estocolmo, Amsterdam e Genebra.

A ultima década de vida de Raúl González Tuñón foi intensamente produtiva:

Demanda contra el olvido (1963), Poemas para el atril de una pianola (1965), Crónicas

Page 40: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

del país de nunca jamás (1965), El rumbo de las islas perdidas (1969), La veleta y la

antena (1969) e dois livros póstumos La literatura resplandeciente (1976) e El banco en

la plaza (1977).

Diferente dos seus outros livros, La literatura resplandeciente (1976) é um texto

teórico onde o autor desenvolve o conceito de “realismo romântico” , pois essa era a

denominação que ele atribuía a sua estética literária. O termo substantivo, e por isso

central, é o do realismo ao que se acrescenta o qualificativo romântico. Inverter a

ordem seria alterar a proposta do poeta. Este conceito parte da compreensão de que

todo grande escritor reflete a sua época e, portanto, é realista. Para fazê-lo, usa fatos

cotidianos, situações da vida e os transforma em linguagem literária, imprimindo a

marca pessoal do autor. É uma composição de vocábulos que remetem a uma época

específica, porém poderia ajustar-se a todas, inclusive a atual. Para González Tuñón

houve realistas românticos em todos os tempos. Ainda nesse livro, inclui várias

crônicas.

Raúl González Tuñón também se atreveu a produzir obras de teatro. No total

foram quatro: Reunión a medianoche (La casa de remate) em 1934, La calle donde

yace el corazón (El desconocido), escrita durante a década de trinta, mas incluída em

seu último volume, Dan tres vueltas y luego se van, em colaboração com Nicolás

Olivari em 1934 e La cueva caliente em 1957.

O escritor também produziu quatro antologias poéticas, uma delas publicada

pela editora Losada em 1974, Antologia poética de Raúl González Tuñón; antes havia

organizado: La luna con gatillo (1957), em dois volumes, Diálogo del hombre con su

tiempo (1965), seleção breve que inclui poemas escritos entre os anos de 1925 e 1964;

nesse mesmo ano, Poesía de Raúl González Tuñón.

Page 41: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Em 1972 recebe o Grand Premio de Honor de la Sociedad Argentina de

Escritores (SADE). Na noite anterior a sua morte escreve seu último poema. Estava por

completar setenta anos e parte no dia 14 de agosto de 1974 para se encontrar com

Federico García Lorca, Miguel Hernández, Amparo Mon, seu irmão Enrique e seu avô

socialista, para caminhar pelo céu, pintando-o de poema e de revoluções...

2.2 Na Espanha

Esta etapa corresponde à segunda fase da obra de González Tuñón. Nela o

poeta assinala sua confiança no papel do artista como indivíduo dentro da sociedade e

indica a mobilidade do escritor, membro do Partido Comunista, que aceitava a doutrina

do mesmo, sem contudo abandonar o olhar crítico pessoal de sua poesia, acreditando

que o poeta deve estar sempre muito consciente de suas convicções e sentimentos.

González Tuñón, por ter vivenciado o processo político do peronismo22, na

Argentina, e observado a lentidão das mudanças sociais, tratou de mostrar em sua

poesia civil e heróica o caminho a seguir e o exemplo dos grandes lutadores. Os versos

de González Tuñón possuem uma qualidade lírica exemplar, bem como a identificação

sensível do autor com os temas que aborda. O político e o poeta vivem em busca de

um mundo melhor. Foi um fervoroso militante antifascista e participou de alguns

acontecimentos políticos europeus, como a greve dos mineiros de Asturias (1935) e a

Guerra Civil espanhola (1936-1939). Toda sua obra, composta nessa fase, toma como

22 Peronismo é a denominação dada genericamente ao movimento nacional justicialista criado e liderado a partir do pensamento de Juan Domingo Perón eleito presidente da Argentina em 1946, 1951 e 1973. Perón possuía um governo popular apoiado pela Igreja, pelo Exército e pelo Movimento sindical, e baseava-se num forte nacionalismo, centralizado no poder do Estado. Perón ainda contava com o carisma da primeira-dama, Eva Perón. Apesar disso, seu governo mostrava-se autoritarista e punia de forma severa quem fizesse críticas ao governo.

Page 42: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

tema fundamental esses dois eventos. Ao visualizar os confrontos ocorridos em terras

espanholas, durante os anos que ali permaneceu, o poeta foi arrebatado por um

sentimento comovedor, que o levou a escrever La rosa blindada (1936), Las puertas

del fuego (1938), La muerte en Madrid (1939) e Ocho documentos de hoy (1936).

Em sua segunda viagem à Europa em 1935, Raúl González Tuñón chega à

Espanha pela primeira vez, ainda que antes tivesse estado em vários portos desse

país. Essa foi uma viagem de lua de mel, após seu casamento com Amparo Mon, sua

primeira esposa. De acordo com o autor, sua segunda viagem corresponde ao que ele

chamou de memorável em sua vida de poeta, de jornalista, de homem do seu tempo,

foi a que mais deixou marcas em suas experiências. Viveu por quase um ano na capital

espanhola, e conforme suas palavras:

Viví en constante estado de exaltación lírica, pero también de exaltación civil. Me encontré allí (ya en Buenos Aires había escrito el poema “La Libertaria”) y fui a saludar a La Pasionaria23 y ella me contó- minuciosamente- todo el drama de Asturias, me sentí tremendamente tocado. 24

Assim que chega à Espanha, González Tuñón, que já tinha conhecido a

Federico García Lorca em Buenos Aires, entra em contato com ele e com Pablo

Neruda, na época Cônsul do Chile naquele país. O escritor argentino ao saber de sua

condenação na Argentina, por incitação à rebelião, ganha a solidariedade dos poetas

espanhóis, Vicente Aleixandre, Rafael Alberti, Miguel Hernández e León Felipe, que

assinam um manifesto de protesto, levado por César Vallejo para Paris, onde o

ratificam também André Gide, André Malraux, Louis Aragon, Jean Cassou, entre

outros.

23 Isidora Deolores Ibárruri Gómez (também conhecida como La Pasionaria) foi uma líder comunista espanhola. Nasceu em Gallarta, uma localidade de Biscaia (província do País Basco) na Espanha, em 9 de dezembro de 1895. Em 1918 escreve seu primeiro artigo assinado com o pseudônimo de La Pasionaria, que a acompanha a vida toda. Em 15 de abril de 1920, filia-se ao Partido Comunista espanhol, no qual permaneceria por toda sua vida, e o qual presidiria a partir de 1960. Ela distinguiu-se durante a Guerra Civil espanhola, na oposição ao General Franco. Exilou-se na URSS após a vitória de Franco, e regressou a Espanha em 1977. Faleceu em Madri em 1989. 24 GONZÁLEZ TUÑÓN. “Autorretrato”. In: Recordando a Tuñón. (1997) p.37.

Page 43: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Imediatamente González Tuñón se associa ao mundo intelectual madrilenho e

se comove intensamente com a repressão do levantamento de Asturias. A ideologia se

unia nesse caso à origem de seu avô asturiano, que despertou seu sentimento

revolucionário, expresso nos poemas “Recuerdo de Manuel Tuñón” e “La copla al

servicio de la revolución”: Este último registrado a seguir.

En Mieres nació mi abuelo, mi abuela en Pola de Siero. La capital de mi sangre se debe llamar Oviedo.

O poema autobiográfico “La copla al servicio de la revolución”, expressa a

identificação irrestrita avô-poeta através de comparações, que levaram González

Tuñón ao mundo do combate e da poesia.

Esse confronto dos mineiros asturianos, em 1935, impressionou o poeta, posto

que jamais tinha visto uma realidade tão violenta e cruel, nem mesmo durante os anos

em que foi correspondente do diário Crítica. O resultado desse choque com a realidade

foi a elaboração poética, esta vez dura e combativa de La rosa blindada em 1936, onde

a partir de um tema bélico a poesia se expressa tanto em verso rimado quanto em

longos períodos de verso livre e prosa. Essa obra reúne todos os elementos

fundamentais da épica de González Tuñón, ações heróicas dos mineiros com suas

mulheres e filhos, a história de Aída La Fuente morta em um vale mineiro de Asturias e

poemas onde anteciparia o sangrento levantamento de Franco.

A península estava em ebulição: o enfrentamento entre esquerda e direita era

iminente e chegaria em julho de 1936. González Tuñón começa a escrever La rosa

blindada. Esse livro foi o precursor da poesia de guerra na América Latina. Raúl

González Tuñón também seria o responsável pela transformação na poesia de Miguel

Hernández, em direção a uma temática mais enraizada com sua circunstância política,

Page 44: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

conforme afirma o autor Andrés Sorel no seu livro Miguel Hernández, escritor y poeta

de la revolución (1976). Conforme González Tuñón,

Miguel Hernández [...] continuaba la línea de una retórica muy brillante. [...], pero trabajaba dentro de las formas tradicionales hispánicas. Él me oyó discutir alguna vez con Neruda. Yo estaba muy dolido por el drama de la cuenca minera […] Yo reiteraba aquellas palabras de Jacques Roumains, el gran poeta haitiano […] La frase es de su ensayo La poesía como arma, y expresa: “Hay momentos en la historia del mundo en que la poesía deviene un arma, puede y debe convertirse en un arma”. Miguel me dio una cita en una tabernita […] Tenía los ojos llenos de preguntas. Yo insistía en la posibilidad de una eventual interpretación poética en determinados hechos sociales, y le insistía en que el caso es buscar la forma que corresponda mejor al contenido […]. No sé si aquel día Miguel quedó convencido, aunque más tarde tuve motivos para pensar que sí.25

A poucos meses do regresso de González Tuñón a Buenos Aires, explode a

Guerra Civil na Espanha. Na Argentina reinava o autoritarismo e o poeta era observado

pelo governo. Após publicar Ocho documentos de hoy, onde reunia parte de seu

trabalho solidário com a República espanhola, teve conhecimento do assassinato de

Federico García Lorca e decidiu que seu lugar seria na Espanha. Consegue, então,

que La Nueva España, um jornal republicano editado em Buenos Aires, o enviasse

como correspondente de guerra. Dessa experiência surgiram Las puertas del fuego e

La muerte en Madrid. Nesse último livro dedica o poema “Muerte del poeta” a seu

grande amigo García Lorca. Abaixo está um dos trechos do poema:

¡Qué muerte enamorada de su muerte! ¡Qué fusilado corazón tan vivo! ¡Qué luna de ceniza tan ardiente en dónde se desploma Federico!...26

25 CUADERNOS HISPANOAMERICANOS. “Raúl González Tuñón: un modo de tutear a Dios”. In: Sección de

notas (1978) p. 97. 26 GONZÁLEZ TUÑÓN (1939).

Page 45: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Como jornalista, conservou a mesma comoção nas notas que enviara a El Diario

de Buenos Aires, e ao jornal republicano La Nueva España, para os quais fora

designado correspondente afim de noticiar tais confrontos. Nessa função, visita as

frentes de Jarama e Utrera, testemunha a defesa de Madri, percorre Barcelona e

Valencia, participa ativamente do “Segundo Congreso Internacional en Defensa de la

Cultura” e do “Congreso de Intelectuales Antifascistas” em Valencia em 1937. Nesta

época, um fato marca profundamente a vida do poeta das revoluções: em 1935,

Federico García Lorca, León Felipe e, sobretudo, Miguel Hernández, que segundo o

poeta o seguiu, sabiam que ele estava escrevendo os poemas de La rosa blindada;

imediatamente, León Felipe organizou um ato no Ateneu de Madri, durante o qual

González Tuñón leu os poemas mais combativos do livro em questão. Conforme o

escritor argentino, ao terminar sua leitura, aproxima-se uma jovem de luto e pede-lhe

uma cópia da composição poética “La Libertaria”, alegando ser irmã de Aida La Fuente,

a protagonista do poema. Passam-se dois anos e González Tuñón volta à Espanha

como correspondente, de acordo com suas próprias palavras:

[...] se realizan en Madrid un homenaje a los periodistas de todo el mundo que estábamos allí. Era un acto con el folklore de los distintos países representados. En una de esas, el acto termina con un coro solemne que canta La libertaria. Me quedé impresionado con eso. No dijeron quién era el autor. Fui al escenario dispuesto a decirlo, pero una lamparita me iluminó. […] en lugar de decir que yo era el autor, pregunté quién era el autor. Me dijeron: “Un autor desconocido, autor anónimo”. ¡Autor anónimo! ¡A los 32 años!27

27 GONZÁLEZ TUÑÓN. “Autorretrato”. In: Recordando a Tuñón. (1997) p. 38.

Page 46: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Ao contrário de outros poetas para os quais a militância adquiriu um papel

primordial, González Tuñón pôde fugir à doutrina a golpes de poesia. Inclusive seus

artigos em jornais comunistas revelam sua lucidez e seu espírito crítico. É fundamental

confrontar os poemas sociais com o prólogo de González Tuñón em La rosa blindada,

no qual ele define o que deve ser poesia:

Y si una pretensión tengo es la de ser un poeta revolucionario, la de haber abandonado esa especie de virtuosismo burgués decadente, no para caer en la vulgar crónica chabacana que pretende ser clara y directa y resulta ñoña, sino para vincular mi sensibilidad y mi conocimiento de la técnica del oficio a los hechos sociales que sacuden al mundo. Sin que lo político menoscabe a lo artístico o viceversa, confundiendo, más bien, ambas realidades en una. 28

Ainda no prólogo, González Tuñón explica que uma poesia revolucionária deve

conter três características, para ser autêntica:

1º Cuando poesía y revolución se confunden, son consubstanciales […]. Es decir no menoscabando la poesía en sí, haciéndola perdurable por su contenido estético además de su contenido humano. 2º Cuando el contenido social corresponde a la nueva técnica. No se trata de negar el proceso poético […], pero resulta absurdo componer hoy poemas ceñidos a tal o cual regla formal. 3º Pero no hay que confundir técnica nueva […] con travesuras gramaticales, etc., o poemas sin ritmo […]. Porque, generalmente, esa actitud poética que fue una reacción saludable contra el academismo, está reñida con ese ritmo de marcha, de himno […] que debe tener casi siempre el poema revolucionario. Llamo “técnica nueva” al conocimiento y a la superación de todas las técnicas, a la desenvoltura que nos da ese conocimiento, a la libertad de tonos, ritmos, imágenes, palabras, y a lo que siempre tuvieron los poetas de cada época creadora,[…] a lo que sigue la línea poética que nació con la primera palabra pronunciada por el hombre en la tierra: a la personalidad de un poeta.29

28 GONZÁLEZ TUÑÓN (1962) p. 12. 29 Ibidem p. 13/14.

Page 47: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Já foi dito anteriormente que La rosa blindada e La muerte en Madrid

correspondem ao período de aproximação de González Tuñón à Espanha e à Guerra

Civil, e que nessa época sua poesia sofre uma profunda transformação. No seu

primeiro momento ficaram a exaltação do eu e de seu mundo; no segundo, que trata da

poesia bélica, não se dissipam essas características, mas se incorporam de outra

maneira: o eu-lírico se direciona para o outro, transformando-se em um sentimento

universal.

Em La rosa blindada, o poeta recorre à narrativa e, em La muerte en Madrid,

insere estrofes populares da guerra em forma de epígrafes. Esta eleição implica uma

mudança em sua concepção poética, sobre a qual adverte no prólogo. A transformação

identifica-se com a problemática espanhola: utilizar a narrativa ou as estrofes é

inscrever-se em uma tradição; neste caso, tipicamente popular, é dar conta da

Espanha ainda que não se a nomeie. Raúl González Tuñón afirma “Si quiero llegar al

pueblo español debo partir de él, de su lenguaje, de sus tradiciones, y por ello elige el

romance o las coplas”.30 A narrativa não é o único registro empregado por González

Tuñón, abundam os poemas compostos com quartetos ou tercetos octossilábicos.

Contudo o poeta conserva o gosto e a liberdade de empregar diversos tipos de estrofes

em um mesmo poema ou o verso livre ou o poema em prosa. A rima também preserva

a mesma independência.

É considerável o papel de pioneiro que exerce Raúl González Tuñón entre os

poetas espanhóis dessa época. O episódio sobre a difusão que teve seu poema “La

Libertaria” serve de exemplo. O poeta se empenhava em descobrir uma forma poética

significativa que amalgamasse e acompanhasse os processos históricos.

30 GONZÁLEZ TUÑÓN. In: ZANETTI (1980/1986) p.134.

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A carta que o poeta mexicano Octavio Paz envia ao sobrinho de Raúl González

Tuñón aborda essa importante influência que a poesia tuñoneana gerou, tanto nos

poetas hispano-americanos quanto nos poetas espanhóis:

México D. F., 12 de noviembre de 1993 Sr. Eduardo Álvarez Tuñón … Aún está viva en mi memoria la tarde en que lo conocí, en julio de 1937, en Madrid. Me lo presentó mi compatriota Sequeiros, en las vísperas del Congreso de Escritores para la Defensa de la Cultura. Él ya era un consagrado y me impresionó ese hombre suave y firme, que había escrito los más encendidos poemas sobre el pueblo español. Recuerdo haberlo oído leer “La libertaria”, ese poema en el cual todos los oficios de España confluyen como un rezo. Para esa generación escribir poesía combativa era escribir a la sombra de Raúl González Tuñón. Es el Rubén Darío de la poesía social y no cometo una herejía si afirmo que España en el corazón de Neruda y España aparta de mí este cáliz, de Vallejo, no hubieran podido ser sin La rosa blindada. […]

Desconozco su restante producción, pero recuerdo que Luis Cernuda me dijo que era también un importante poeta lírico.

Todo me aleja de aquellos años, pero en mi biblioteca guardo La rosa blindada porque es un hito.

Lo saluda, Octavio Paz31

O estudo de certos vocábulos que se repetem e adquirem outro significado

dentro da obra tuñoneana, constituindo um campo semântico, é essencial para que se

elabore uma adequada análise crítica de sua produção. Um bom exemplo é o caso do

livro La rosa blindada, em que é notória a conjunção de formas tradicionais e formas

modernas. Nele o substantivo “rosa” adquire outro significado, que somado ao adjetivo

“blindada”, remete ao campo da guerra. Essa é uma das construções marcantes da

poética de González Tuñón, sendo fácil localizá-la em diferentes momentos. A

metáfora nucleadora, “rosa blindada” abriga signos aparentemente antagônicos, visto

que “rosa” representa a vida, e “blindada” o que não pode ser visto; portanto, a

31 ORGAMBIDE, Pedro. (1997) p. 119.

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anulação da vida, a morte. Este jogo antitético pode ser apreciado na produção

tuñoneana. Segundo o autor, em Conversaciones con Raúl González Tuñón (1975),

afirma ao escritor Horacio Salas que não tinha medo de repetir-se em seus poemas:

“Pienso que citar varias veces el barco en la botella, las cajitas de música, las veletas,

no es repetirse, sino seguir moviéndose en medio de los símbolos que siempre he

amado”. 32

Raúl González Tuñón assiste o surgimento das milícias populares. Vive nas ruas

e seu coração está em guerra. Observa as crianças mortas por um bombardeio. Blinda

a rosa. Saúda o quinto Regimento. Marcha com os voluntários. Descobre o caos.

Conhece La Pasionaria. Sua poesia é um registro fiel: a morte de García Lorca, os

tanques de guerra, os aviões, a morte de Antonio Machado... Toda a Espanha está

nele, nessa poesia em ação à serviço do combate contra o fascismo. Enlutada.

Rebelde. Revolucionária. Guerreira. Em um trem, no caminhão de soldados, entre os

estampidos das bombas e a conversa sincera dos companheiros, Raúl González

Tuñón escreve seus poemas. Canta. Conta. Resplandece as evidências da destruição:

Donde el carbón se junta con la sangre y la ametralladora bailarina lanza sus abanicos de metralla donde todo termina.

Em meio ao choque, à desordem do espaço citadino, surge a melhor poesia

social de Raúl González Tuñón, a que se alimenta do imediato, da indignação perante

a realidade urgente do compromisso civil e da paixão individual. A poesia que carrega o

ritmo compadecido da guerra e a experiência vital de sensações vis:

32 SALAS, Horacio. (1975).

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miran crecer aromo, mirto y parra y entre los huesos la raíz del grito; para su tumba campo de granito y el polvo de oro para su guitarra.33 ------------------------------------------------- Hay que ser piedra o pura flor o agua conocer el secreto violeta de la pólvora, haber visto morir delante del relámpago, conocer la importancia del ajo y el espliego, haber andado al sol, bajo la lluvia, al frío, haber visto un soldado con el fusil ardiente, cantando, sin embargo, la libertad querida. 34

Esse importante poeta, que procurou amalgamar sua vida à sua obra, como se

as fusionasse para alcançar a perfeita composição poética, a que aflorasse no leitor a

diversidade de sentimentos que se tem e que por vezes se esquece em uma gaveta.

Esse bravo autor, enunciador do bem e do mal, da fantasia e da realidade, que

proporciona ao leitor abrir essa gaveta e dela tirar sua bandeira, pode ser lembrado

conforme suas próprias palavras:

Fue un poeta completo de su vida y su obra. Escribió versos casi celestes, casi mágicos, de invención verdadera, y como hombre de su tiempo que era, también ardientes cantos y poemas civiles de esquinas y banderas.35

33 GONZÁLEZ TUÑÓN (1989) p. 90. 34 Ibidem, p. 91. 35 GONZÁLEZ TUÑÓN (1983) p. 26.

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III – A imagem surrealista

A arte moderna surgiu de uma ruptura com os ideais do século XIX. Pode-se

identificar esse século, devido às influências dos diversos fatores, como sociais,

culturais, ideológicos, etc. A partir desses fatores, houve o surgimento de diferentes

movimentos de vanguarda na Europa do século XX: cubismo, futurismo,

expressionismo, dadaísmo, ultraísmo e surrealismo. Na América Latina, a Vanguarda

começa quase simultaneamente em diferentes países, só que com outras

Page 52: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

nomenclaturas, como criacionismo, estridentismo, contemporâneos, martinfierrismo,

ultraísmo, surrealismo etc.

O Criacionismo foi a primeira manifestação vanguardista na América Hispânica.

Ocorre no Chile, com a publicação do Manifesto Non Serviam, em 1914, pelo poeta

chileno Vicente Huidobro. Esse movimento é marcado pela ruptura com a arte

mimética: para os criacionistas a poesia não deve ser mimética, mas sim criação pura.

O poeta expressa em seu manifesto: “No he de ser tu esclavo, madre Natura, seré tu

amo”. Dessa forma, Huidobro expõe seu desejo de fazer uma poesia criada por si

mesmo e, portanto, diferente de toda a que já foi feita, ou seja, não a quer imitar, mas

sim criar uma nova realidade. Essa nova tendência estética evidencia a busca pela

verdadeira criação poética. Vicente Huidobro valoriza o poeta criador e condena o

imitador. Ele mesmo afirma em seu poema, intitulado “Arte poética”: “Por qué cantáis la

rosa, ¡oh, Poetas! Hacedla florecer en el poema”. Com essas palavras, o autor sintetiza

o criacionismo, pois ele critica nitidamente a idéia da arte como imitação da natureza.

Com o descobrimento da fotografia, no século XIX, modifica-se o sentimento da

verdadeira arte, pois para expressar a arte mimética já existe esse novo invento. Daí a

grande repulsa da arte como cópia da natureza. Nessa fase o mais importante, era a

expressão do sentimento perante a natureza, ou seja, o que interessava era o que ela

despertava no poeta, não mais o reflexo do real, e sim o que se apreende desse real.

O criacionismo de Huidobro, influenciado por Paul Valèry, preocupa-se com a

imagem poética. A poesia, que em 1888 se transformara em palavra-música, com o

poeta chileno volta-se para a plasticidade e funda a palavra-pintura. Em seu poema

“Canción Nueva”, Huidobro ilustra o criacionismo, pois faz uma espécie de canto à

poesia inovadora. Ele utiliza um conjunto de elementos e princípios teórico-poéticos

que oferecem uma percepção de suas concepções: “La primera condición del poeta es

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crear, la segunda, crear, y la tercera, crear”. Por meio da preocupação com a

plasticidade das imagens e do movimento no poema, Huidobro insere efeitos estéticos

que proporcionam à obra o surgimento de uma poesia-pintura, valorizando o aspecto

visual.

A partir desse movimento, surgiram dois mais, o ultraísmo espanhol e o

argentino, ambos vistos por Vicente Huidobro como imitações de seu criacionismo.

Após a publicação, em Madri, do Manifesto Ultraísta (1918), por autores como

Guillermo de Torre, Rafael Cansinos Assens entre outros, Jorge Luis Borges em 1921,

por meio de seu manifesto Ultra, lança o movimento Ultraísta em Buenos Aires. Nesse

texto o autor comenta a chegada de uma nova estética, a qual tinha como objetivo

mudar o panorama literário, por isso faz uma critica à estética Modernista, afirmando

que: “la belleza Ruberiana es cosa madura y colmada [...] y por esto es una cosa

acabada, concluida”; portanto, é preciso haver mudança na arte literária.

Para o movimento ultraísta, a poesia deve ser múltipla, possuir vários

significados e por isso seu elemento primordial é a metáfora. As frases medianas, os

nexos e os adjetivos inúteis devem ser abolidos; os trabalhos ornamentais, a

nebulosidade rebuscada também devem ser esquecidos e as imagens precisam ser

simplificadas em uma. Essas são as propostas estéticas para a nova forma poética que

denota a negação, e seu objetivo com tal negação era o de despir a arte como forma

de alcançar a “poesia pura”. Com a publicação da revista Martín Fierro, em 1924, surge

o martinfierrismo na Argentina.

A Vanguarda foi uma estética, uma linguagem, uma visão do mundo, ou seja, se

funda e se rompe com a intenção de mudar a realidade. Em 1924 surge uma nova

linguagem na poesia, que permite ao poeta utilizar livremente as palavras, as idéias e

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as associações. Trata-se da segunda fase da Vanguarda, o Surrealismo, fundado por

André Breton, em Paris, com a publicação do Primeiro Manifesto Surrealista.

A palavra surrealismo foi criada em Paris, em 1917, pelo escritor Guillaume

Apollinaire, que a empregou para descrever a inovação artística, que não poderia ser

descrita como “surrealista”, no sentido hoje atribuído ao termo. No entanto, no

manifesto que lançou o movimento surrealista, Breton adotou essa palavra, “nomeando

de surrealismo o novo modo de expressão de que dispomos e que gostaríamos de

apresentar aos nossos amigos”. Breton, (1985:58) define “surrealismo” da seguinte

maneira:

Substantivo, masculino. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.

A escritura automática, a expressão verbal, seja através do poema ou através da

prosa, constitui um dos patamares angulares do surrealismo. Breton utilizou o vocábulo

surrealismo para descrever as práticas literárias e artísticas dele próprio e de seus

“amigos”. Iniciada em Paris, na década de 20, terminou por abranger a poesia, a

pintura, a prosa, a escultura, a fotografia, o cinema e o intervencionismo. Inicialmente,

o surrealismo se restringiu à arte literária e só depois se estendeu para as artes visuais

com Surrealismo e Pintura, escrito em 1925 por Breton.

Em 1924, no Manifesto do surrealismo, Breton conceituou o automatismo

psíquico puro como a prática artística surrealista mais importante, o principal caminho

de acesso ao maravilhoso. A definição proposta por Breton enfatiza a natureza

absoluta do automatismo surrealista: poesia, pintura, prosa, deveriam se originar do

encadeamento das primeiras palavras ou imagens que ocorressem à mente.

Page 55: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Ao longo dos anos 20, o surrealismo foi uma sucessão de encontros,

vernissagens, publicações e lançamentos. Como um apelo em favor da renovação das

atividades surrealistas, Breton escreveu um segundo manifesto do surrealismo em

1930, no qual relata as dificuldades experimentadas pelos movimentos e insiste em sua

visão do surrealismo como um caminho rumo a um mundo mental de infinitas

possibilidades, enfatizando a obsessão do primeiro manifesto pelo irracional, o

espontâneo e o inconsciente.

3.1 O surrealismo em Buenos Aires

O escritor argentino Aldo Pellegrini foi o responsável por organizar o primeiro

grupo surrealista em Buenos Aires. Autor da primeira Antología de la Poesía

Surrealista, apreciada por Breton, ele divulgou essa prática para outros escritores

argentinos da época. Conforme Pellegrini, o surrealismo:

Promueve la manifestación espontánea de la imaginación por medio del automatismo, el material de los sueños, y los estados crepusculares, mediúmnicos y delirantes. De esta manera consigue derribar las fronteras entre la ficción y la realidad, y desencadenar aproximaciones insólitas entre elementos originariamente alejados u opuestos.

É notório que Raúl González Tuñón, na Argentina, pertenceu à geração de

Jorge Luis Borges, Oliveiro Girondo, Roberto Arlt, Ricardo Güiraldes entre outros,

compreendendo assim a corrente surrealista. Na poesia, junto a Borges, González

Tuñón foi um dos poetas que desenvolveu com mais coesão o tema urbano, porém a

diferença está na abordagem tuñoneana que focaliza mais o papel do ser humano,

sobretudo o do homem e o da mulher pobre na cultura citadina, situando-os no seu

espaço social e no seu trabalho. Como uma constante, desenterra os elementos de

uma mitologia urbana, onde o simples, o popular, possui o papel protagônico.

Page 56: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Raúl González Tuñón elabora suas poesias urbanas a partir da observação de

espaços comuns, como o porto, a rua, o cortiço... Passa a descrever esse mundo, em

seus poemas, localizando o leitor na Buenos Aires da época em questão, seus

costumes e as peculiaridades dos grupos sócio-econômicos oprimidos. Seu amor pelo

povo operário, assim como sua fé na possibilidade de mudança e transformação social

tornam sua poesia única.

Essa atitude de tomar uma grande cidade como tema poético não tinha

antecedentes literários na América Latina. Até o século XIX, era quase desconhecida,

um dos primeiros que se atreveu a dedicar uma obra total à grande metrópole foi o

renomado poeta francês Charles Baudelaire, o qual descreveu Paris com enorme

fervor. Na Argentina, à partir do escritor Evaristo Carriego, com seu poema “La canción

del barrio”, o subúrbio de Buenos Aires, espaço da cidade, ingressou na literatura

como tema poético habitual. Seguidores dessa temática, os jovens poetas da década

de XX, entre eles González Tuñón, decidiram revelar a cidade mediante palavras,

contribuindo a edificar uma mitologia portenha, que não estivesse somente povoada de

personagens baderneiros, de cortiços e de casas pouco conceituadas. A nova poesia

teria que resgatar do esquecimento a simplicidade, a população trabalhadora, o clima

peculiar e familiar dos bairros e ruas, enfim, o cotidiano da urbe moderna. Raúl

González Tuñón foi um dos poucos poetas que assumiu esta temática citadina ao

longo de toda sua obra, tanto que alguns poemas desse cunho aparecem inclusive em

seu livro póstumo El banco de la plaza (1977) e, segundo o seu mais expressivo

biógrafo Héctor Yánover “quien no lo ha leído no ha leído poesía argentina”.36

As poesias de González Tuñón exercem uma influência singular quando se

escondem nas dobras da memória, aglutinando-se com o inconsciente coletivo ou

36 CUADERNOS HISPANOAMERICANOS. In: Sección de notas. Nº 334 (1978) p. 101.

Page 57: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

individual. Nesse território do surrealismo encontram-se poemas como “Eche veinte

centavos en la ranura”, “Escrito sobre una mesa en Montparnasse”, “Poetango de la

Belle Époque”, “Motivo para una cajita de música” e as inúmeras andanças de

“Juancito Caminador”, poemas que contribuem para fundamentação da modernidade

literária na poesia argentina do século XX.

Nessa liberação do inconsciente, isto é, nesse automatismo psíquico dos poetas

foi que surgiram poesias de suma importância para toda a literatura mundial. O

surrealismo foi a libertação do pensamento mais íntimo, que possibilitou,

principalmente, para González Tuñón o desabrochar de sua produção literária. É

importante ressaltar que antes mesmo da chegada da corrente surrealista na

Argentina, o autor já elaborava composições dentro dessa linha poética. Esse

movimento literário foi o marco da obra tuñoneana e, a partir dele, foram desenvolvidas

outras formas de expressão, surgiram novas correntes de cunho social que também

arrebataram o escritor argentino, mas a imagem surrealista nunca se fez ausente em

suas obras.

3.2 O olhar poético de González Tuñón sobre a capital argentina

”Eche veinte centavos en la ranura”

Na primeira parte deste estudo, será tratada a cidade de Buenos Aires. Raúl

González Tuñón foi um dos melhores observadores e amantes dessa urbe: bairros,

personagens típicas dos locais mais marginalizados dessa cidade, como o porto,

predominam em sua poesia. O autor, ao mesmo tempo que aborda o cosmopolitismo,

observa atentamente o que ocorre na cidade argentina, bem como no mundo.

Page 58: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Raúl González Tuñón é um poeta citadino, pois trata sua própria cidade e as de

outros países. Seus temas preferidos foram “os submundos portenhos”, o que levou

Jorge Luis Borges a considerá-lo conforme Nora Domínguez (In: Zanetti,

1980/1986:128) “o outro poeta suburbano”, na dedicatória de Luna de enfrente. Embora

haja muitos temas que coincidam com os da produção de Borges como, por exemplo, a

valorização dos bairros, dos armazéns, dos instrumentos musicais, a poesia de Raúl

González Tuñón, durante muito tempo esteve marginalizada: ele não conseguiu, como

a maioria dos poetas, um significativo reconhecimento em vida.

O poema “Eche veinte centavos en la ranura”, de sua autoria e que compõe El

violín del diablo (1926), é uma sensível retratação do porto de Buenos Aires e de suas

personagens típicas, construídas no poema através de arquétipos37 e alegorias38,

formando um mundo de metáforas.

Em “Eche veinte centavos en la ranura” o autor flutua entre o real e o sonho. Por

meio do real ele regressa à infância criando assim dois grandes campos semânticos,

que, nesse poema, formam parte das imagens poéticas de uma cidade: circo e porto.

Esses campos semânticos figuram como alegorias da vida. Para entendê-los é

necessário lançar mão do conhecimento de mundo, assim teremos suporte para

comprovar que ambos despertam em cada um de nós sensações e recordações

similares:

A pesar de la sala sucia y oscura de gentes y de lámparas luminosa si quiere ver la vida color de rosa

eche veinte centavos en la ranura. Y no ponga los ojos en esa hermosa

que frunce de promesas la boca impura. Eche veinte centavos en la ranura si quiere ver la vida color de rosa.

El dolor mata, amigo, la vida es dura, 37 [arquétipo] modelo de seres criados; padrão; exemplar; que serve de modelo; original. In: Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (1993). 38 [alegoría] [sirve] para expresar poéticamente un pensamiento, a partir de comparaciones o metáforas [y] se establece una correspondencia entre elementos imaginarios. Tomadas literalmente, las alegorías ofrecen un sentido insuficiente, pero éste se [completa] con el sentido del contexto. In: BERISTÁIN (1992).

Page 59: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

y ya que usted no tiene hogar ni esposa si quiere ver la vida color de rosa eche veinte centavos en la ranura

O poema “Eche veinte centavos en la ranura”, divide-se em seis partes. Na

primeira, o poeta se dirige ao leitor tentando persuadi-lo a fugir do real e entrar num

mundo de fantasias, na “vida color de rosa” (vv. 3, 8 e 11). Há um jogo de antíteses,

como claro x escuro no primeiro e segundo verso, puro x impuro no sexto e sétimo

verso, além de duas grandes metáforas nucleadoras do poema, que são: vida cor de

rosa x vida dura. Essas metáforas harmonizam toda a composição poética, imprimindo

um sentido explícito. Feita a leitura da estrofe, percebe-se também a representação

sutil de um ambiente de luxuria, onde se encontram mulheres livres do porto, cafetões

e outros tipos:

Lamparillas de la Kermesse,

títeres y titiriteros, volver a ser niño otra vez

y andar entre los marineros de Liverpool o de Suez.

Na segunda parte do poema há uma nítida regressão por parte do poeta ao

mundo infantil, que se comprova principalmente no verso “volver a ser niño otra vez”.

Surge ao final um novo espaço lírico que será predominante em toda a obra, o porto. A

criação desse espaço poético é comprovada através de um recurso muito utilizado pela

poesia tuñoneana, denominado nomeação. Nesse caso a nomeação se deu pela

citação de “Liverpool o de Suez”, que apesar de serem lugares distantes da realidade

argentina, conseguem estabelecer um clima de familiaridade, pois ambos são portos:

Teatrillos de utilería. Detrás de esos turbios cristales

hay una sala sombría:

Page 60: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Paraísos artificiales.

Na terceira parte o poeta, através de metáforas, retoma o porto de modo realista: um lugar onde se tira proveito, onde as futilidades predominam, nada é tão nítido nesse local, até mesmo os cristais, que lá se encontram, não são claros e escondem um mundo sem luz, escuro, onde trabalham mulheres escravizadas que por meio da sedução criam a ilusão desse falso paraíso:

Cien lucecitas. Maravilla de reflejos funambulescos

¡Aquí hay mujer y manzanilla! Aquí hay olvido, aquí hay refrescos.

Pero sobre todo mujeres para los hombres de los puertos

que prenden con alfileres sus ojos en los ojos muertos.

No debe tener esqueleto el enano de Sarrasani,

que bien parece un amuleto de la joyería Escasany. Salta la cuerda, sáltala,

ojos de rata, cara de clown y el trala-trala-trálala

ritma en tu viejo corazón.

Estampas, luces, musiquillas, misterios de los reservados donde entrarán a hurtadillas

los marineros alucinados.

Y fiesta, fiesta casi idiota y tragicómica y grotesca.

Pero otra esperanza remota de vida miliunanochesca...

A quarta parte foi dividida em quatro estrofes. Na primeira, o poeta retrata o

porto, agora não mais distante da realidade argentina, por se tratar do próprio porto de

sua cidade. Entretanto, esse ambiente poético, que é tão característico de algumas

cidades, não tem nada de belo à primeira vista. González Tuñón revela literalmente

todo cotidiano de impureza, promiscuidade e mistério que envolve o porto:

Cien lucecitas. Maravilla de reflejos funambulescos

Page 61: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

O primeiro verso inicia com uma expressão luminosa, mas os reflexos que são

produzidos por essa luz não iluminam, não trazem vida, somente escuridão e morte. No

porto existem mulheres, bebidas, esquecimentos, recordações e marinheiros que

procuram essas mulheres desesperançadas para se satisfazerem. Tudo isto é

expresso pelo autor através de um sublime jogo de metáforas que dá mais amplitude à

imaginação do leitor.

Na segunda estrofe, González Tuñón cria uma atmosfera circense, ao trazer à

tona seus pensamentos de criança, relembrando o circo que um dia viu nesse lugar.

Para atribuir a essa parte um caráter verossímil, o autor emprega palavras que

simbolizam lugares reais nessa sociedade, como “Sarrasani e Escasany”. Esta é mais

uma das características da poética tuñoneana, e se denomina auto-referência. Além de

utilizar o vocábulo “clown” da língua inglesa para manter a rima e o vínculo com a

imagem do circo, também emprega, nessa parte, a carnavalização das personagens,

embora o anão e o palhaço sejam verdadeiros arquétipos.

Na terceira e quarta estrofe, o poeta volta à realidade e continua retratando esse

ambiente periférico portenho. Ainda sobre um olhar pessimista, ele deixa subentendido

todo o “poder” que a vida marginal exerce nos homens, criando um ar misterioso ao

redor desse espaço. Lugar este onde nem tudo é revelado, onde a sedução impera e

cria uma falsa ilusão de felicidade, através de festas que iludem os homens, levando-os

a uma vida de prazeres.

Na quarta estrofe, a intertextualidade apresenta-se através da expressão “vida

miliunanochesca”, uma alusão ao livro das Mil e uma Noites, enfatizando ainda mais

essa vida de prazeres que é o sonho da maioria dos seres humanos. A imagem criada

neste momento do poema é um cenário vivo mentalizado a partir de referenciais, como

bordéis, prostíbulos e lugares semelhantes a esses. Nesses lugares ocorrem festas

Page 62: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

fúteis e grotescas, onde, muitas vezes, os homens por um momento feliz de prazer

levam, como presente para suas mulheres, enfermidades. Percebe-se nesse momento

que o autor com a artifício da linguagem conseguiu produzir uma imagem bem definida,

capaz até de revelar um aspecto social.39 Embora o ambiente seja repudiado pela

sociedade, por seu papel negativo, é a partir dessa negatividade que se espelha o

poema:

¡Qué lindo es ir a ver

la mujer la mujer más gorda del mundo!

Entrar con un miedo profundo

pensando en la giganta de Baudelaire...

Nos engañaremos, no hay duda, si desnuda nunca muy desnuda, si barbuda nunca muy barbuda

será la mujer Pero ese momento de miedo profundo...

¡Qué lindo es ir a ver la mujer,

la mujer más gorda del mundo!

Na penúltima parte, o autor retorna ao circo e imagina certa personagem desse

lugar. Só que agora ele trata essa personagem de forma grotesca. O autor novamente

joga com a intertextualidade quando cita “la giganta”, elemento também da composição

poética “A giganta” de As Flores do Mal, do poeta francês Charles Baudelaire 40. Esse

elemento, por sua vez, cria um elo entre sonho e fantasia, imprimindo um pouco de

erotismo à obra, já que nesse poema um homem passeava pelo corpo desnudo da

giganta.

Em toda essa parte há a alusão à personagem do circo, “la mujer más gorda del

mundo”, que causa curiosidade e espanto em todos os homens. Assim, pode-se

39 LYNCH (1997) p.5. 40 BAUDELAIRE (1985) p. 149.

Page 63: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

afirmar que essa mulher por despertar imaginação e fazer parte da fantasia circense é

mais um dos arquétipos tuñoneanos.

Y no se inmute, amigo, la vida es dura, con la filosofía poco se goza.

Si quiere ver la vida color de rosa. Eche veinte centavos en la ranura

Na última parte o autor volta a se dirigir ao leitor e, mais uma vez, o convida a

entrar nesse mundo de sonho e fantasia, onde tudo é alegre e perfeito. O poeta afirma

que com discurso pouco se aproveita a vida e que para vivê-la intensamente é

necessário experimentá-la, senti-la, deixar-se levar por ela sem medo. A vida cor de

rosa que González Tuñón vem oferecendo ao longo do poema é uma fuga do real para

o imaginário do prazer.

Pode-se concluir que o poeta criou “Eche veinte centavos en la ranura”, como já

afirmamos, apoiado em duas grandes metáforas nucleadoras41 “vida cor de rosa” e

“vida dura”, nas quais se inserem outras, como o porto e o circo. O autor empregou

muitas metáforas nesse poema por acreditar, certamente, na força semântica dessa

figura de linguagem, a metáfora, um elemento capaz de unir o real e o sonho. O porto

simboliza a “vida dura”, pois o trabalho é árduo, as pessoas que circulam são na

maioria marginalizadas, quase tudo de mais baixo e promíscuo se encontra no porto.

Já o circo simboliza a vida de sonho e fantasia, de brincadeiras e esperanças, “vida cor

de rosa”, que leva o homem a retornar a sua infância e sonhar com uma vida melhor.

Tanto o porto quanto o circo surgem como imagens da cidade e, em algum momento,

vistas aos olhos sensíveis de um autor, podem se transformar em poesia, sendo

41 [Metáfora nucleadora] [Las] metáforas ligadas a los elementos primitivos y a la experiencia común, se prestan de una manera peculiar al proceso de rejuvenecimiento de la imagen por el empleo de otra metáfora tomada del mismo campo semántico. In: LE GUERN (1985).

Page 64: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

configuradas como alegorias da vida, por fazer parte das fantasias que cada indivíduo

guarda em sua memória.

Em cada um desses espaços poéticos encontramos pessoas comuns a esses

lugares, que servem portanto para caracterizá-los: no porto, estivadores, marinheiros,

mulheres livres; no circo, palhaços, anões, mulheres barbudas... Todas essas

personagens não só se constituem como arquétipos, mas também como alegorias da

ilusão, visto que através delas o homem pode viver o real ou regressar à infância e

sonhar em ser feliz...

“Poetango de la belle époque”

A poesia “Poetango de la belle époque” a ser analisada a seguir, foi extraída do

livro La veleta y la antena de 1971, a penúltima obra poética de Raúl González Tuñón.

Tanto A la sombra de los barrios amados (1957), como La veleta y la antena

constituem uma etapa de síntese da obra tuñoneana. Como afirma a escritora Nora

Domínguez:(1980/1986:130)

… en esta etapa conviven en una situación de equilibrio el llamado poeta social y el más individual. Es, tal vez, su etapa más homogénea; en las anteriores había en todos los casos un libro que descollaba sobre los otros, aquí no se puede hacer esa distinción.

Em La literatura resplandeciente (1976), seu único livro teórico, González Tuñón

desenvolve, como afirmado anteriormente, o conceito de realismo romântico, o qual,

segundo ele, deve estender toda poesia, porém este conceito se fortalecerá nesta

etapa de conjunção entre fantasia e consciência, que são os espaços a que nos

remetem La veleta y la antena. Raúl González Tuñón utiliza o substantivo realismo

Page 65: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

acrescentando a ele o qualificativo romântico. Para o autor houve realistas românticos

em todas as épocas. O escritor argentino afirma:

Eso que tiene el arte auténtico: la realidad (no su copia, mediocre, además, y de inspiración libresca) el hecho humano y el artista que lo interpreta, lo desentraña, lo explica, lo muestra, lo da vuelta, si se quiere, lo inventa, pero siempre real, humano y aún demasiado humano. Y absolutamente en proyección universal. (De “El camino” en Hay alguien que está esperando, 1952)

Em “Poetango de la belle époque”, percebe-se a presença desse conceito

mesclado ao surrealismo. O título do poema sugere esse realismo romântico. O eu-

lírico, para marcar seu envolvimento total com a poesia, joga com as palavras numa

apreciável junção de poeta + tango, criando assim um neologismo que nomeia o poeta

como um cantor e, no caso de González Tuñón, um cantor da cidade. Essa

identificação com a música é revelada pelas palavras do próprio autor quando afirma:

“porque no soy un químico del verso sino un cantor, en el sentido más neto de la

palabra”.42

Em quase toda sua obra percebemos a marca da musicalidade, tanto que muitas

de suas poesias foram transformadas em canções, especialmente em tangos, como é

o caso de “Eche veinte centavos en la ranura”, “Juancito Caminador”, “La Libertaria” e

muitas outras.

Este poeta-cantor do poema também faz menção à corrente a qual pertence, ou

seja, apresenta sua filiação literária, no caso La belle époque. Esta foi uma época na

história da França, que começou no fim do século XIX e durou até a Primeira Guerra

mundial. A belle époque foi considerada uma era de ouro da beleza artística e

intelectual, marcada por profundas transformações culturais, que se traduziram como

novos modos de pensar e viver o cotidiano. Ao se intitular “poetango de la belle 42 GONZÁLEZ TUÑÓN “Autorretrato” In: Recordando a Tuñón. (1997),p. 33.

Page 66: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

époque” o sujeito do poema atribui a seus versos todo aquele período áureo da arte

literária. Ele evoca para sua poesia todo o glamour que rodeia esta época de inovação,

emblematizando e embelezando, desta forma, sua lírica.

O poema está divido em duas partes, cada parte com três estrofes de versos

díspares. Na primeira parte o sujeito poético revela uma cidade com seus locais e

personagens típicas. São imagens aludidas a uma cidade que se modificou,

abandonando o encanto do antigo para ceder passagem ao novo, ao moderno. Na

segunda parte o eu–lírico se dirige diretamente à cidade e, em meio aos relatos de

experiências passadas neste ambiente urbano, ele renova a esperança de futuros

cantos poéticos.

La noche de la razzia los herreros cantaban y quedaron después de la tormenta súbita

la sombra vigilante del árbol esquinero y el silencio insolente del arrabal herido. … Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás? tenía su encanto, eh, la belle époque,

mirada desde el ángulo de nuestra adolescencia implacable y ansiosa.

Nos quatro primeiros versos, da primeira estrofe, dessa primeira parte, o poeta

indica uma mobilização perante o objeto de sua observação (a cidade), não somente o

pensamento, a verbalização (linguagem – ideologia) do poeta, mas também os

mecanismos (consciente-inconsciente) de sua percepção. Esses dados de sua

percepção informam muito pouco sobre sua visão poética, porém indicam a presença

de uma atitude receptiva, mobilizadora e, sem dúvida, sensível aos estímulos do real

concreto.

Nos versos acima o autor descreve um acontecimento situando tempo (“la

noche”) e espaço (“arrabal”). Por meio de metáforas, deixa expresso conscientemente

os problemas sociais que ocorrem nesse ambiente citadino: “sombra vigilante” /

Page 67: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

“arrabal herido”. Também mostra a preocupação da população, aqui representada

pelos ‘herreros’, que vivem nos subúrbios, atentos a possíveis tribulações.

Ainda se pode entender esses versos como se o poeta estivesse mergulhado no

sub-consciente e de lá fosse arrancado ferozmente, para logo a seguir refletir sobre o

real. Esta interpretação seria possível se comparada a este momento literário do eu-

poético com o próprio momento do autor. Como já foi citado, o início da obra tuñoneana

está marcado pelo surrealismo, depois esse estilo é sobreposto por um estilo mais

social, mais tenaz e, nas suas obras posteriores, o escritor retoma de dentro de sua

memória o fabuloso e inquietante mundo dos sonhos.

Uma das características da poética de Raúl González Tuñón é o emprego de

citações e referências. É o que se verifica no quinto verso da estrofe: (... Sin embargo,

Raúl, ¿no te acordás?), quando o eu-lírico utiliza, apesar de ter alterado o pronome

pessoal tú para vos, um verso do poema “España en el corazón”: “Raúl, te acuerdas?”

elaborado pelo escritor chileno Pablo Neruda (2004:118) em homenagem ao autor

argentino. Essa intertextualidade adotada estabelece uma interação entre o texto

original e o que o cita, revelando um novo objeto de leitura.

Com referência ao mesmo verso, a pontuação adotada no início é um recurso

muito recorrente na poética tuñoneana, pois segundo seu criador, permite que a

imaginação do leitor, a partir do que já leu, crie suas próprias inferências, construindo

assim uma significação individual. Esse apelo para a recordação do autor feito pelo eu-

lírico, sendo uma forma de personificação, reforça a vinculação do gosto de ambos por

um mesmo estilo de época; ao mesmo tempo, marca um saudosismo, uma nostalgia

por aquela época que tanto assombrava aos jovens escritores do mundo, sedentos

daquela “nova arte”.

Page 68: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Absorvido pelo inconsciente43, o eu-poético perambula por esse ambiente oculto,

voltando seu olhar para antigos espaços e formando imagens aparentemente

desconexas do mundo real.

Por sobre los exilios y las muertes, los gobiernos volteados y el último tranvía que dobló hacia la vaga estación del ocaso

veo ahora en la gris esfumatura de la distancia, que es el tiempo,

el íntimo esplendor de la Vuelta de Rocha con su perfil de patio, con su siempre domingo.

La tarima del trío musicante en Barracas palpitando en el ritmo grave y cordial de un tango

y ese Bar y Billares saliendo a la vereda donde una vez Aieta sacó viruta al fueye

junto al cine Buen Orden cuyo antiguo esqueleto cayó luego de haber proyectado en su sábana

la última película del hondo cine mudo.

Nesses versos o sujeito do poema emerge num túnel do tempo e recorda fatos e

locais que estiveram presentes em sua vida em algum momento anterior. Cita a

sucessão de governos fracassados que se estabeleceram na Argentina, explicitando

como foi o término dos mesmos “exilio y muertes”. E como representante do último

sopro de imaginação, que conduz o processo criador até a nostalgia, o “tranvía”. Esse

condutor ao chegar a alguma estação, qualquer ponto, permite que o eu-lírico

vislumbre, através do tempo, a época esplendorosa de um local familiar “perfil de

pátio”, extremamente vivaz, que era a “Vuelta de Rocha”. Este ambiente portenho era

conhecido por seus vários eventos de domingo e, principalmente, pelas apresentações

de tango.

43 [Inconsciente] o psquismo não é redutível ao consciente e [...] certos “conteúdos” só se tornam acessíveis à consciência depois de superados certas resistências [...]. In: Lampanche e Pontalis (1992).

Page 69: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

No poema há uma identificação do bairro “Vuelta de Rocha” através da

recordação. A partir da observação do sujeito-poético se conhece esse espaço urbano.

Contudo esse olhar é um olhar mais maduro, um olhar do viajante. González Tuñón já

havia percorrido diversos países e vivenciado inúmeras culturas, logo, o seu olhar

havia se transformado, e sua cidade agora era vista com outros olhos. Conforme o

sociólogo Sérgio Cardoso: “[...] o distanciamento das viagens não desenraiza o sujeito,

apenas diferencia seu mundo”44. González Tuñón, apesar de ter conhecido várias

localidades, nunca deixou de ser o mais legítimo portenho e admirador do tango.

A nostalgia precede e sucede Raúl González Tuñón. Sua cidade é nostalgia, é

tango. De acordo com Héctor Yanóver, “Poesía y música son una misma cosa. Y en la

medida que buscamos la expresión de Buenos Aires, escribimos innumerables tangos

con música de poema”45.

O autor sempre declarou seu amor pelos bairros dos subúrbios da capital

argentina que fizeram parte de sua vida. Em muitas de suas obras é possível encontrar

referências a alguns desses bairros como el Once, el Judío, Riachuelo entre outros.

Nessa poesia ele descreve com saudosismo a região de La Boca. O eu-lírico cita seus

bares, sua música, seus cantores e o cinema Buen Orden que não existe mais. Nada

lhe escapa. Com o olhar aguçado do viajante, ele vai relatando, através de sua

memória, fatos, objetos, pessoas que emergem de seu sub-consciente.

De forma quase mecânica, como se mudasse a tela do cinema, o sujeito poético

mergulha ainda mais no interior de sua memória, aproximando-se ao automatismo

psíquico.

Y reflejada en otra pantalla, en la memoria,

44 CARDOSO, Sérgio (1988) p. 359/360. 45 YANOVER, Héctor “A la sombra de los barrios amados”. In: Recordando a Tuñón. (1997) p. 55.

Page 70: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

pasa ahora la insomne y extraña singladura del Paseo de Julio con su ángel y sus monstruos.

Los vidrios de colores del bailetín insólito con su pianola henchida de cálidas mazurkas y el pop-art inefable de los muñecos móviles

y los juegos lumínicos vibrando en el inverosímil Salón de Novedades

-donde nació el surrealismo- con su violín de lata y el barco en la botella

que amamos para siempre. Y la noche soltando su empecinado grillo

por la gran selva de cemento. La buseca del Chanta y el vendedor de globos.

Nessa parte do poema se percebe “el máximo de precisión para el máximo de

desvarío"46, forma que, conforme o escritor mexicano Octavio Paz, pode condensar o

surrealismo. A partir de várias enumerações, que parecem aleatórias, o poeta reflete

em sua poesia seu sub-consciente lúdico. Se anteriormente percebíamos a flutuação

do consciente, agora não mais, posto que há uma profunda absorção interiorizada de

suas percepções mentais.

A insônia também está associada ao sub-consciente e, nesses primeiros versos

a encontramos vinculada à memória. É uma espécie de “memória inconsciente”

ocasionada pela ausência do sono.

A aparente dicotomia “angél/monstruos” forma um jogo análogo a outros pares,

luz/trevas, claro/escuro, bem/ mal, quando o sujeito do poema registra esse ambiente

citadino (Paseo de Julio) efetuando um intenso confronto urbano entre o bem e o mal.

Essa dualidade de Raúl González Tuñón é adequada a sua preocupação também

dicotômica pela política e a literatura, o real e o mágico, o militarismo e a aventura, o

nacional e o universal, interesses que não se submetem uns aos outros, mas sim que

complementam a visão do poeta por esse mundo que tanto o perturbava, e que jamais

o deixou de assustar. Ele mesmo declara em seu auto-retrato:

46 Paz, Octavio (1983) p. 15.

Page 71: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Contempla el mundo. Porque contemplando el mundo se aprenden más cosas que encerrándose años y años en una biblioteca como hicieron muchos escritores. Porque contemplando el mundo uno aprende a luchar por todo aquello que pueda embellecerlo y contra todo aquello que lo afea.47

De acordo com Mircea Eliade, “as imagens, os símbolos e os mitos não são

criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem

uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser”48. Por meio dessas

inúmeras imagens, o sujeito lírico deixa registrado, no poema símbolos que são

freqüentes em sua obra, como : “el barco en la botella”, “el vendedor de globos” e “el

grillo”. Estas alegorias formam parte do mundo infantil sempre retomado nos poemas

tuñoneanos. A insistente recorrência ao sub-consciente infantil aciona a liberação da

memória individual que desembocará no surrealismo, uma importante estratégia usada

por González Tuñón para se atingir o consciente lúdico em suas obras.

No surrealismo as palavras ganham vida. É como se elas fossem auto-

suficientes e, por isso, comandassem o fluir do canto imagístico, representado em

versos e estrofes poéticas. Assim, ao mencionar “bailetín” e “mazurkas”, o sujeito do

poema concede ritmo e sensualidade à estrofe já que os dois vocábulos se referem à

dança.

Ainda na mesma estrofe, verifica-se uma vez mais o comprometimento do poeta

com o surrealismo. Ele vê nas grandes invenções do século (“muñecos móviles”,

“juegos lumínicos”) a perpetuação dessa corrente literária: “el inverosímil Salón de

Novedades -donde nació el surrealismo”. Também marca a importância da supra-

47 GONZÁLEZ TUÑÓN “Autorretrato”. In: Recordando a Tuñón (1997) p. 32 48 ELIADE, Mircea Imagens e símbolos (1991) p.8/9.

Page 72: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

realidade em sua obra, pois retoma parte do título do seu primeiro livro El violín del

diablo, “violín” totalmente surrealista, para demonstrar a retomada desse estilo em sua

produção poética.

A imagem desta grande selva de cimento, ou seja, a cidade moderna, mais uma

metáfora utilizada como recurso poético, não afugenta seu canto de amor e nostalgia

de uma urbe que mescla o novo com o antigo. Conforme Justo Villafañe: “o mundo da

imagem esta aí, com seu tremendo poder de sugestão e sua indubitável influência

social, suas incógnitas e problemas, que exigem uma solução imediata, mesmo que

seja ilusória”.49

Na segunda parte do poema há um direcionamento da observação do eu-lírico,

que antes passeava pelas ruas e bairros da cidade, e agora se dirige a ela como um

todo.

Buenos Aires, yo amo tu aire impuro y puro que inspiró largamente mi verso impuro y puro

a la luz de la estrella del bosque de ladrillo. Te caminé, te olí, te bebí, te canté:

dejada la bohemia, su lado oscuro y áspero, nunca olvidé al bohemio ni al francotirador

que vigila en mi sangre.

Em um momento de profunda exaltação lírica o sujeito do poema declara seu

amor pela cidade, um amor incondicional, pois ama tanto o ruim quanto o bom

(impuro/puro) que ela tem. Essa dicotomia o inspirou a criar seus versos, que assim

como a cidade, são sujos e limpos, e estão impregnados totalmente com o urbano, mas

principalmente com o marginal do lado urbano.

Buenos Aires desde o início da lírica tuñoenana foi cantado exaustivamente

como principal motivo poético. Conforme o escritor alemão Walter Benjamin “o

49 VILLAFAÑE, Justo (2002) p. 13

Page 73: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

surrealismo dá voz a esse mundo de coisas, em cujo centro está a cidade”50. González

Tuñón fundou a cidade mediante palavras, contribuindo a edificar uma mitologia

portenha que não estivesse só povoada de marginais, cortiços e lupanares. A poesia

trataria de resgatar do esquecimento cenas de suas ruas, matizes da paisagem e

personagens anônimos, não o épico, e sim o cotidiano; não somente o heróico, mas

também o monótono. De acordo com Kevin Lynch, um ambiente não se apresenta de

uma única forma. A cada observador lhe é atribuída a função de recriar uma imagem

mental da realidade, que naquele momento é captada pelo seu olhar:

O ambiente visual torna-se parte integrante da vida dos habitantes. A cidade não é de modo algum perfeita, mesmo no sentido restrito da imaginabilidade, nem todo o seu sucesso visual se deve apenas a essa qualidade, mas parece haver um prazer simples e automático, um sentimento de satisfação, presença e certeza, que decorre da simples contemplação da cidade ou da possibilidade de caminhar por suas ruas.51

O sujeito do poema revela sua vivência citadina como experiência desde o

sensorial. Ele emprega os cincos sentidos do corpo humano para retratar tudo que

absorveu da capital argentina. O caminhar é a ação mais completa porque envolve

todos os sentidos. Talvez, por isso a mesma se represente na poética de González

Tuñón de forma constante e incansável. Ao caminhar vemos, ouvimos, tocamos e

sentimos aromas que nos recordam sabores, enfim nos envolvemos mutuamente numa

interação ímpar entre o sujeito e o ambiente. Porém, o eu-poético enfatiza essas

sensações ao discriminá-las; “Te caminé, te olí, te bebí, te canté” e registra toda sua

comoção por essa urbe evocadora através de sua música poética. Certa vez disse o

poeta: “...la música amontonada del mundo...”

50 Cf. Walter Benjamin. PEIXOTO (2004) p.99. 51 LYNCH, Kevin (1997) p. 103.

Page 74: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

A poesia de Raúl González Tuñón é um entrelaçado onde o social e o político se

entrecruzam com uma atitude lírica regida pela nostalgia e pela ternura. Percebe-se

uma confirmação da relação entre sua vida e sua fundamentação poética: “nunca

olvidé al bohemio ni al francotirador que vigila en mi sangre”. Essas duas vertentes, a

lírica e a social, sempre freqüentaram as páginas das escrituras tuñoneanas: o sujeito

do poema afirma que abandonou o lado escuro e áspero da boemia, mas que a mesma

segue presente em seu interior.

En las cosas que nombro está la poesía y aún crece en mi duende tu aventura

y se asoma a mis ojos reflejando al destino de esa magia plural de ciudades que forman

el país argentino, imán de las bitácoras, en cuyo azul transfondo transcurre la esperanza.

Verifica-se que o eu-lírico se intitula nomeador da poesia e, portanto, detentor do

conhecimento poético. Como um sujeito criador, o poeta dá vida às palavras, aos

objetos e aos espaços, transformando-os em alegorias ilusórias. Conforme Octavio Paz

“las palabras son paracaídas que se abren en pleno vuelo [...] Antes de tocar tierra,

estallan y se disuelven en explosiones coloridas”52. Desta forma seria como se os

vocábulos se despregassem do inconsciente poético e fossem se juntando para

compor a poesia que, no momento da leitura, se dissipam.

De acordo com o autor Kevin Lynch “olhar para as cidades pode dar um prazer

especial”53. Encontramos indícios de prazer nessa poesia, que através de detalhes da

observação funda a constante exaltação desse ambiente urbano. Para o poeta, a

grande aventura do inconsciente está na comoção, no assombro que os objetos,

52 Paz, Octavio (1983) p.201. 53 LYNCH, Kevin (1997) p.1.

Page 75: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

espaços citadinos lhe causam. Esse descobrir, desvendar o desconhecido, surpreender

o destino é o que move o sujeito-poético.

Conforme o sujeito do poema, o país é formado por cidades tão plurais que

encantam o transeunte. Essa diversidade é derivada dos muitos substratos culturais da

Argentina, especialmente de Buenos Aires, onde vários imigrantes se estabeleceram.

Os poetas mais autênticos que cantaram a capital argentina, advertiram que não se

poderia cantar o inexistente e, por isso, buscaram seus motivos nas histórias simples e

nos seres desconhecidos; retiraram seus ídolos do próprio povo e acrescentaram a

cadência do tango à poesia. Baseando-se nessa busca, González Tuñón resgata os

elementos de uma mitologia citadina, onde o simples, o popular desempenha um papel

principal.

A imagem espelhada é uma imagem aflorada do sub-consciente, uma imagem

do desejo poético sobre Buenos Aires. O eu-lirico deixa evidente a esperança que

habita no país argentino, o qual denomina como aglutinador de direções “imán de las

bitácoras”. A realidade e a imaginação sobrevivem na memória e afloram por meio dos

símbolos empregados pela poesia. Percebe-se que o eu-lírico se relaciona com o

poema por meio do sub-consciente, do qual saltam as imagens plurais da sociedade

argentina.

Y ese perfil de niebla de ciudades que anduve -laboriosas, angélicas o canallas y absurdas-

y el resplandor de las belles époques en los mapas sutiles de soñados países que me están esperando en el futuro.

Page 76: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

De acordo com o poeta Jorge Luis Borges “la ciudad es el teatro por excelencia

del intelectual, y tanto los escritores como su público son actores urbanos”54. Nessa

estrofe, o sujeito do poema realiza uma síntese de seu percurso como espectador

desse ambiente. As cidades por onde andou estão sendo resgatadas de seu sub-

consciente: “ese perfil de niebla de ciudades que anduve”. Através de adjetivos “-

laboriosas, angélicas o canallas y absurdas”, o poeta qualifica as cosmópolis por onde

percorreu seu canto. Essa dualidade constante entre o bem e o mal “angélicas o

canallas” reflete a incansável busca pela exaltação do marginal, não o discriminando,

mas revelando que em todo lado negativo reside o positivo. Conforme palavras de

González Tuñón: “Era un mundo increíble, canalla, sombrío y tremendo, pero dentro de

esa canallería había algo de angelical también [...] todo lo imaginable y lo inimaginable,

un mundo sórdido y al mismo tiempo puro”55.

O olhar que Raúl González Tuñón lança sobre a cidade se deve a sua obstinada

busca pelo novo sem desprezar o antigo. Sérgio Cardoso56 em seu texto o “Olhar do

viajante” exemplifica essa forma de enxergar o mundo ao seu redor. Para ele o olhar

não se anestesia na amplitude de um espaço; ao contrário, está sempre em busca de

barreiras que despertem e fixem sua atenção. Essa procura pelo novo é o que

impulsiona González Tuñón a percorrer o mundo, é o que o motiva a seguir sonhando

com espaços, pessoas ou objetos cotidianos distantes de sua realidade, mas que o

assombram vivazmente e proporcionam a ele projetar-se no amanhã, no desconhecido

de maneira destemida. Para o autor ainda há paises a descobrir e esse é o desejo que

mantém pulsando sua imaginação. Certa vez afirmou: “y mi corazón continúa alegre y

54 Cf. Jorge Luis Borges. SARLO (1995) p.20. 55 SALAS, Horacio Conversaciones con Raúl González Tuñón (1975). 56 CARDOSO, Sérgio. In: NOVAES (1988) p.358.

Page 77: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

violento como el corazón alborotado de un mundo nuevo”57. Sua fé é inabalável. Não

pode deixar de crer, é um poeta...

“Motivo para una cajita de música”

A poesia “Motivo para una cajita de música” a ser analisada a seguir compõe o

livro A la sombra de los barrios amados (1957), que é considerado como seu livro mais

explicitamente portenho. Mesmo após terem passados trinta e um anos da publicação

de seu primeiro livro, a poesia de González Tuñón é tão fresca como a inicial. Nessa

obra convivem em equilíbrio o individual do poeta e o social. É uma etapa de síntese do

poeta, na qual há uma conjunção da fantasia e da consciência, que são espaços a que

nos remetem suas obras. O poeta retoma sua escritura inicial carregada de lirismo,

metáforas e arquétipos, embora agora a mesma tenha um matiz nostálgico.

“Motivo para una cajita de música” está composta por três estrofes com números

de versos desiguais, além de dois versos livres, este último recurso é frequentemente

usado na poética tuñoneana.

Qual seria o motivo para uma caixinha de música? Será que ela é capaz de

despertar o consciente para o sonho? Sabe-se que caixinha é um símbolo feminino

interpretado como uma representação do inconsciente, mas caixinha de música teria a

mesma simbologia? Essas indagações buscam responder acerca de um objeto tão

comum e ao mesmo tempo tão fantástico.

Toda menina já sonhou ou sonha com o encanto de receber um presente como

este. Ao abrir a caixinha de música, emerge-se subitamente, no sub-consciente e,

57 GONZÁLEZ TUÑÓN (1997) p. 48.

Page 78: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

pode-se passar o tempo sem se dar conta dele, é como se o tempo parasse por alguns

instantes. Esse objeto é capaz de produzir sensações ímpares e fabricar, através dos

desejos, os sonhos. Nesse mundo mágico, que a caixinha de música aflora, nota-se

que o escritor empregou esse título em seu poema, por representar um canto de amor

ao cotidiano fabuloso das ruas do bairro da cidade moderna.

A caixinha, criadora da fantasia, estímulo do inconsciente é sujeito do desejo

sendo, portanto, um objeto que provoca a escritura surrealista. Através das armas da

imaginação junto com a poesia, o movimento surrealista propunha a transformação do

mundo.

En otoño, las calles, en el barrio, se tiñen

de una especial atmósfera, de silencio con alas. Casi con el aroma de un estío

apenas olvidado. Son calles como sueños pero despiertas, lúcidas.

Os três primeiros versos da primeira estrofe anunciam a chegada do outono, por

meio de efeitos causados em certos elementos citadinos, as ruas. Para o sujeito-

poético essa estação o comove, pois o envolve em uma atmosfera que desperta sua

imaginação, representado no poema pela metáfora “silencio con alas”. Pode-se

entender essa comparação, posto que em silêncio há ausência de som, supondo-se

um estado de inércia. Como asas (“alas”) simbolizam alçar vôo, a junção dessas duas

palavras significa a imaginação do poeta no momento de sua inspiração artística. De

acordo com o sujeito-poético essa atmosfera é especial, pois propicia o mergulho

psíquico aflorando o sub-consciente e liberando de forma automática os seus mais

reclusos pensamentos.

Page 79: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

À liberação do inconsciente, deu-se o nome de surrealismo, termo muito

utilizado durante a segunda fase da vanguarda argentina. Entretanto, cabe lembrar que

a essa parte desconhecida o autor não tem acesso, ele pode chegar ao sub-

consciente. Para o escritor mexicano Octavio Paz, o surrealismo:

... no parte de una teoría de la realidad: tampoco es una doctrina de la libertad. Se trata más bien del ejercicio concreto de la libertad, esto es, de poner en acción la libre disposición del hombre en un cuerpo a cuerpo con lo real. Desde el principio la concepción surrealista no distingue entre el conocimiento poético de la realidad y su transformación: conocer es un acto que transforma aquello que se conoce. La actividad poética vuelve a ser una operación mágica.58

Essa atitude do poeta em ir de encontro com a realidade está impressa na

poesia pela utilização de um espaço concreto, real, “las calles del barrio”. A criação

dessa imagem, interiorizada e intimista, revela que essas ruas são conhecidas ou

peculiares ao cotidiano do eu-lírico.

O escritor Fernando Aínsa (1998:171) sintetiza muito bem a relação entre o

espaço externo e o interno:

La espacialidad externa que genera el orden urbano, tiene siempre el reverso de una espacialidad intensa vivida interiormente, lo que no supone un espacio dual, sino un solo y mismo espacio que, por un lado, es exterioridad y por otro interioridad, peculiar manifestación “in-tensa” de lo “extenso”.

Evidencia-se que esse espaço social (bairros), comum à população, tem no

agente do poema uma representação própria, fruto de seus íntimos desejos. Assim, o

bairro tem como função ser o tópico para a nostalgia intimista.

58 PAZ (1986) p.138/139.

Page 80: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

À semelhança do poema anterior, Raúl González Tuñón emprega como recurso

poético marcas sutis dos sentidos humanos, como visão, tato, olfato, paladar e

audição. Nessa primeira estrofe do poema está explicitado o sentido da visão, pois

para perceber a transformação das cores, “las calles [...] se tiñen”, é necessária a

percepção visual. Também nos dois versos, que se seguem, o poeta faz uso do olfato:

“el aroma de um estio”. Dessa forma ele atribui características humanas a sua poesia,

ele a humaniza, dando-lhe vida.

Ao citar “otoño” e “estío”, o agente do poema deixa evidente a recente mudança

de estações. Através do vocábulo “casi” e “olvidado” se registra esse fortuito momento,

em que a transição de uma estação para outra deixa seu fugaz aroma. Para o poeta, o

outono é a época que propicia a imaginação, pois é a temporada de transformação das

árvores, que perdem suas folhas e depois ganham novas folhagens. Do mesmo modo

atua o sujeito criador, que abandona conceitos passados, emerge num silêncio e

permite a fluidez da consciência como o vento que se propaga nas ruas, além de lograr

uma nova folha poética.

Na sua busca constante pela perfeição poética, o sujeito do poema se apropria

da imagem das ruas e por meio dessa interação entre o sujeito e o objeto, ou seja, por

essa interferência do homem, o objeto se subjetiva. Segundo Octavio Paz “Nunca es

posible ver el objeto en sí; siempre está iluminado por el ojo que lo mira, siempre está

moldeado por la mano que lo acaricia, lo oprime o lo empuña”59.

No processo de seu delírio, o sujeito do poema pousa seu olhar sobre o

ambiente mais vivaz da cidade, as ruas. Estas são responsáveis pela circulação da

população e de seus bens de consumo. O poeta apropria-se dessa situação e baseia

59 PAZ (1986) p.139.

Page 81: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

seu canto nesse espaço social e integrado, como se quisesse atribuir a sua obra a

mesma fluidez e vivacidade das ruas.

No universo das ruas a vida acontece. Esses espaços urbanos quase sempre

habitaram o inconsciente humano, pois eles representam a liberdade e o desejo de se

conhecer o desconhecido. Geralmente o que se procura ou o que se precisa se

encontra na rua, logo, esse ambiente comovedor da cidade é responsável por

despertar o desejo e incitar a imaginação, pois como afirma Octavio Paz:

…el hombre tiene “poderes” que constituyen nuestra propia manera de ser y se llaman: imaginación y deseo. El hombre es un ser que imagina y su razón misma no es sino una de las formas de ese continuo imaginar. En su esencia, imaginar es ir más allá de sí mismo, proyectarse, continuo trascenderse. Ser que imagina porque desea, el hombre es el ser capaz de transformar el universo entero en imagen de su deseo60.

O agente do poema compara as ruas com os sonhos, com os desejos ocultos,

com as fantasias que permeiam os pensamentos de todos nós e que através do

inconsciente libertamos. Apesar dessas ruas representarem o “mundo dos sonhos”,

elas são para o poeta despertas e lúcidas, pois carregam a realidade. Novamente há

uma humanização na poesia ao se atribuir características humanas, “despiertas,

lúcidas”, a um espaço físico.

Soñar es estar vivo.

Siempre amaré estas calles, con su color de pueblo, cuna de la esperanza, camino del recuerdo.

Sus tendidos crepúsculos y sus mañanas altas me dieron el fervor. Yo les devuelvo sueños.

60 Ibidem p. 137.

Page 82: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

“Soñar es estar vivo”. Com esta afirmação, percebe-se que o sonho é a força

motriz do ser humano. Sem os sonhos continuaríamos existindo? Talvez, mas

deixaríamos de viver, de vivenciar experiências lúdicas, de nos projetar no futuro. A

noção de tempo perderia o sentido, já que o amanhã não teria qualquer significação na

vida do homem. Por isso, para o poeta a necessidade de sonhar, de imaginar é vital e a

utilização do surrealismo faz-se necessária. O surrealismo continuará representando

um convite à aventura interior, ao redescobrimento de nós mesmos.

O homem movido pelo desejo, almeja somar-se à imagem de seu desejo e

assim se transformar em imagem. O homem é imagem, e a faz sua o surrealismo.

Através de diversas metáforas, que propiciam a criação da imaginação, funda-se

uma imagem sentimental e subjetiva das ruas. Como foi dito, neste estudo, as ruas

cantadas no poema, provavelmente, têm vinculação com a história do sujeito poético,

que afirma seu amor eterno pelo espaço urbano. Essas ruas também mostram parte da

vida de Raúl González Tuñón. Sabe-se que o autor cresceu em um bairro de operários,

sendo assim, a metáfora “calles con su color de pueblo” remete às ruas desse bairro

repleto de trabalhadores. O poeta percebe o seu amanhã no espaço social carregado

de simbologias; segundo ele, as ruas carregam a possibilidade do devir, guardam a

esperança.

Quando caminhamos por alguma rua, que fez parte de nossa vida, ativamos o

mecanismo da memória e mergulhamos dentro do túnel do tempo, relembrando

episódios que marcaram o nosso viver. Imergimos no consciente com a intenção de

trazer à tona a consciência esquecida. Seria possível recordar o passado sem

interferências fantasiosas? Não podemos garantir a pureza da consciência anterior,

pois o passado é algo pertencente ao sub-consciente, já está impregnado pelo que foi

e pelo que gostaríamos que tivesse sido. Nenhuma pessoa poderá relatar puros

Page 83: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

acontecimentos de sua vida sem que os mesmos carreguem substratos imaginativos

impossíveis de se afirmar como discursos féis ao acontecido. O passado é um tempo

que pertence também ao inconsciente e, portanto, um dos mecanismos do surrealismo.

O convívio diário do poeta com as ruas foi fundamental, pois proporcionou

inspiração para seus futuros cantos à cidade: “Sus tendidos crepúsculos y sus

mañanas altas - Me dieron el fervor. Yo les devuelvo sueños”. Toda experiência

citadina do eu-lírico propiciou a escritura de sua poesia. Como uma espécie de

retribuição, o poeta devolve para essas ruas a liberdade do inconsciente, o sonho. O

fato de González Tuñón ter sido boêmio das altas madrugadas, de ter um particular

gosto pela vida, principalmente noturna, aproxima sua biografia a sua poesia. Certa vez

o escritor afirmou “no conozco nada más conmovedor que la vida”. Assim sendo, após

ter usufruído de madrugadas e recarregado sua energia, o eu-poético se pôs a

escrever para essa mesma cidade, presenteando-a com seu poema.

El poema es sueño.

En otoño, las calles… En otoño, las calles

melancólicas, sueñan que viven porque saben

que saben porque sueñan.

O poema para o eu-lírico é sonho, já que o sonho vem do desejo e este vem da

imaginação, conformando o inconsciente e o sub-consciente que irão desemborcar no

surrealismo. Nesse sentido, a poesia constituiria, então, uma expressão do espírito

humano.

Na última estrofe o poeta usa reticências para permitir que o leitor deixe sua

imaginação fluir. Ao empregar essa pontuação também transmite a sensação do

transcorrer da poesia: “En otoño, las calles…”. As ruas estão repletas de melancolia, de

Page 84: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

tristeza, porém não deixam de sonhar. Essa melancolia pode ser atribuída ao outono

onde as ruas espelham uma imagem de decomposição da paisagem. É como se não

houvesse mais vida e o mundo tivesse se apagando, visto que as plantas mudam suas

colorações ou perdem suas folhagens. O sonho, então, é o responsável pela vitalidade

desse espaço social, é indispensável para que se mantenha vivo, pulsante no

imaginário citadino.

Através do paralelismo “viven porque saben / saben porque sueñan”, o sujeito do

poema enfatiza sua fé no amanhã. Segundo ele, as ruas fervem, têm o seu fluir

assegurado porque são, antes de tudo, motivadoras do desejo, do sonho, e esse poder

de imaginação, que elas carregam, proporciona sabedoria e transmissão da cultura

popular, dos mitos e lendas tão correntes nas avenidas citadinas. Sonhar é saber

esperar uma nova estação.

Page 85: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

IV. A IMAGEM DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

4.1 A defesa da República espanhola

A Guerra Civil espanhola (1936-1939) foi o evento mais traumático que ocorreu

antes da segunda Guerra Mundial. Nela estiveram presentes quase todas as idéias de

um conflito bélico, que marcou o século XX. De um lado se posicionavam as forças do

nacionalismo e do fascismo, aliadas às classes e instituições tradicionais da Espanha

(o Exército, a Igreja e o Latifúndio); de outro lado, a Frente Popular que formava o

governo Republicano, representando os sindicatos, os partidos de esquerda e os

partidários da democracia.

Para a Direita espanhola tratava-se de uma Cruzada para libertar o país da

influência comunista e reintegrar os valores da Espanha tradicional, autoritária e

católica. Portanto era preciso acabar com a República, que havia sido proclamada em

1931, com a queda da monarquia. No entanto para a Esquerda, era necessário

terminar com o avanço do fascismo que já havia conquistado a Itália, a Alemanha e a

Áustria. Conforme as decisões da Internacional Comunista de 1935, ela deveria

aproximar-se dos partidos democráticos de classe média e formar uma Frente Popular

com o intuito de acabar com a onda de vitórias nazi-fascistas. Desta maneira,

Page 86: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

socialistas, comunistas, anarquistas e democratas liberais deveriam unir-se a fim de

terminar com a tendência mundial favorável aos regimes direitistas.

Esse panorama de amplo enfrentamento ideológico fez com que a Guerra Civil

deixasse de ser um acontecimento singularmente espanhol para se converter numa

prova, em que forças disputavam a hegemonia do mundo. Nela envolveram-se a

Alemanha nazista e a Itália fascista, que apoiavam o golpe do General Francisco

Franco. Em contrapartida a União Soviética aderiu ao governo Republicano.

A Espanha de 1930 vivia uma era de completo atraso em relação aos outros

países europeus. Era governada pelo exército, pela igreja católica e pelo latifúndio.

Mantinha seu passado imperial grandioso a alto custo. A Igreja continuava a condenar

a modernidade. No campo existiam mais de três milhões de camponeses pobres que

eram submetidos ainda às práticas feudais e dominados por cinquenta mil fidalgos

proprietários de terras. Como resultado da grave crise econômica de 30, iniciada pela

quebra da bolsa de Nova Iorque, a ditadura do General Primo Rivera foi derrubada e,

por conseguinte, caiu também a monarquia. O Rei Alfonso XIII foi obrigado a exilar-se e

proclamou-se a República em 1931, chamada de “República de Trabalhadores”. Seus

idealizadores esperavam que a Espanha pudesse alinhar-se com seus vizinhos

ocidentais e partir para uma reforma modernizante, que separasse Estado e Igreja,

inserindo assim as grandes conquistas sociais e eleitorais recentes, além de assegurar

a diversidade política e partidária, a liberdade de expressão e organização sindical.

Porém o país terminou por conhecer um cruel enfrentamento de classes, posto que a

crise, seguida de uma grande depressão econômica, gerou uma frustração total na

sociedade espanhola.

Iniciam-se assim inúmeras eleições que acabam por incitar ainda mais a

população que descontente vai para as ruas protestar. Com um golpe militar dado pela

Page 87: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

direita em 18 de julho de 1936 explode uma das mais sangrentas guerras que a Europa

vivenciaria.

A Guerra Civil espanhola movimentou diversas correntes ideológicas e

partidárias. Dentre as que apoiaram a direita podemos destacar nomes como Hitler,

Salazar juntamente com os fascistas da Falange espanhola liderados por José Antônio

e pelo General Francisco Franco. A esquerda teve o apoio de diversos partidos e

organizações como PCE (Partido Comunista Espanhol), FAI (Federação Anarquista

Ibérica), UGT (União Geral dos Trabalhadores) entre outros, além de contar com os

democratas liberais, com os republicanos e mais alguns partidos autônomos (Esquerda

catalã, os galegos e o Partido Nacional Basco).

Na literatura, esse conflito bélico ganhou inúmeros representantes, dentre eles

estão alguns dos poetas mais famosos do mundo hispânico, como Raúl González

Tuñón, Pablo Neruda, Federico García Lorca, César Vallejo, Antonio Machado, Miguel

Hernández e Rafael Alberti. Esses poetas contribuíram muito com a República

espanhola, pois através de suas críticas, crônicas e poesias enviadas para os jornais

da época, eles transmitiam todo o horror dessa guerra tão cruel, dando a conhecer ao

mundo o caos que vivia a Espanha. Também organizavam alianças intelectuais que

tinham a intenção de ajudar os republicanos.

No mundo das imagens contamos com grandes fotógrafos, que vão contribuir

com suas fotografias pulsantes, para a chegada da informação à população mundial.

Entre eles cabe destacar as fotografias de Robert Capa, David Seymour, Cartier-

Bresson, José Suárez e Agustí Centelles. A maioria destes fotógrafos escolheu sem

hesitar o lado dos republicanos por compartilharem das mesmas visões românticas e

utópicas. Essas fotografias vão causar grande horror e tristeza na população, por

Page 88: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

retratarem com veracidade os milhares de mortos e a destruição desmedida que

ocorria em solo espanhol.

4.2 A imagem dos caos na Espanha de 1936

Para entender melhor o período caótico da Guerra Civil espanhola é preciso

analisar a proporção e a dimensão que representa a palavra caos, bem como suas

implicações dentro desse contexto. “Confusão dos elementos, antes da criação do

mundo; grande desordem; balbúrdia; babel”, assim está definido o vocábulo caos pelo

dicionário brasileiro da língua portuguesa. Esta definição explica o que é este evento,

porém não atenta para dimensão e implicação do estabelecimento caótico dentro do

contexto mundial, termo que foi muito empregado durante a revolução industrial e que,

nos atuais tempos, é frequentemente usado no chamado mundo moderno pelos mais

variados ramos de estudo.

Para um melhor aprofundamento do termo, tem-se o estudo do investigador e

professor italiano Omar Calabrese. No capítulo sexto de seu livro La era neobarroca, o

estudioso problematiza o caos. Segundo ele (1994:132), desde as origens do

pensamento filosófico ocidental se contrapõem duas séries de noções: a ordem e a

desordem. A ordem é denominada por Calabrese como “un principio de regularidad”,

ela pode definir e prever fenômenos, enquanto a desordem abarca tudo que foge à

regularidade, ou seja, tudo o que é irregular, azar, caos, indefinido, imprevisível e

inteligível.

Para Calabrese, fenômenos aparentemente sistêmicos podem ser suscetíveis a

dinâmicas de turbulências, que propiciam a transformação do que era regular e

Page 89: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

ordenado em desordenado e irregular. A dinâmica de certos fenômenos, que tendem a

grandes complexidades, hoje nomeamos de caos.

Omar Calabrese (1994:136) se baseia na concepção matemática de Benoit

Mandelbrot, Les objets fractals, na qual o “objeto fractal” consiste em “cualquier cosa

cuya forma sea extremadamente irregular, extremadamente interrumpida o accidentada

[...]. Un ‘objeto fractal’ es, por tanto, un objeto físico (natural o artificial) que muestra

intuitivamente una forma fractal” Não só se baseando nesta consideração, como

também em algumas outras, o professor italiano amplia o sentido de objeto fractal

agregando a ele a noção de cultura e arte. Segundo ele (1994:142),

[...] cualquier objeto se torna en objeto estético sólo después de una valorización por parte de un sujeto individual o colectivo. Sin embargo, también es verdad que las figuras fractales poseen al menos un carácter capaz de ser valorizado como estético: lo maravilloso.

Com base nesta afirmação de Calabrese, pode-se entender de que maneira

acontecimentos trágicos, como por exemplo, os conflitos bélicos, transformam-se em

maravilhosas obras artísticas. Dentro desta concepção é compreensível que

reconheçam a beleza de Guernica, quadro pintado por Pablo Picasso, que retrata o

horror de uma batalha e da literatura latino-americana de Juan Carlos Onetti, que

aborda o caos através da fragmentação, do vazio, da desolação. Com as fotografias de

guerra também se pode observar esse aspecto de lo maravilloso, pois as mesmas

retratam a captação de um instante caótico da realidade, imortalizado pela

fragmentação da imagem impressa em concretismos, que ao ser recebido e observado

por um receptor, visualiza uma verdadeira obra prima.

Diversos acontecimentos trágicos, como a Guerra Civil espanhola, revelaram ao

mundo o caos. Depois ocasionaram na população a sensação de vazio e a constatação

Page 90: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

da impotência humana perante a ciência, que associada a uma desordem do poder, a

sua fragmentação, pode arruinar não só o planeta mas também a todos os seres vivos.

4.2.1 As imagens fotográficas da guerra

A fotografia, nascida em um âmbito positivista, foi vista quase unicamente como

registro visual da verdade, tendo sido adotada, nessa condição, pela imprensa. Com a

evolução das práticas foto-jornalísticas, esses gêneros realistas passaram do domínio

do real para o domínio do crível, já no final do século, devido à manipulação das

imagens em função de objetivos que nada tinham a ver com a verdade, mas de fato,

com o que se podia crer.

Em meio a esse processo de criação dos fotógrafos surge o foto-jornalismo,

carregado de cultura e ideologia, representando através das fotografias a realidade

histórica e testemunhal de uma sociedade, embora às vezes influenciado pela visão

realista de seu autor.

Até se chegar ao foto-jornalismo, a fotografia passou por diversas fases. Nasce

na chamada câmara clara e escura, depois surge o pictoralismo movimento, que

objetivava a integração da fotografia às artes plásticas, bem como a fotografia de

retrato, que imitava os cenários utilizados pela pintura e, assim por diante, até o

aparecimento das primeiras manifestações do foto-jornalismo no momento em que os

fotógrafos apontam a câmera para um episódio, tendo em vista fazer chegar essa

imagem a um público com intenção testemunhal.

O foto-jornalismo se nutre principalmente de acontecimentos bélicos e

revoluções. A primeira guerra para onde os jornais enviaram seus correspondentes foi

Page 91: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

a Guerra Americano-Mexicana de 1846-1848. Apesar de serem feitas por um

daguerreotipista anônimo, as imagens registravam soldados e oficiais de guerra antes

da batalha. A muitas revoluções foram enviados fotógrafos e com isso o

desenvolvimento da fotografia de imprensa foi-se transformando com afinco e, em

meados do século XIX, inicia-se a edição de publicações ilustradas da revista The

Ilustrated London News. Seu fundador, Herbert Ingram, afirmou que daria aos seus

leitores informação continuadamente dos acontecimentos mundiais e nacionais mais

relevantes da sociedade à política, com a ajuda de imagens variadas e realistas. Nos

seus primeiros cinco anos a tiragem dessa revista aumenta relevantemente e indica o

crescente gosto social pela imagem.

A fotografia de imprensa foi e é de suma importância para a evolução da

população enquanto indivíduos participantes de uma sociedade. Ela proporciona

integração, interação e contribui assiduamente para o desenvolvimento tanto de seu

emissor quanto de seu receptor. Além disso, o foto-jornalismo possui cinco forças que

ocasionaram e ocasionam sua evolução, são elas: a ação pessoal onde cada fotógrafo

elege por influência própria adotar ou não certos recursos; a ação social que a

fotografia de imprensa produz nas pessoas e na sociedade; a ação ideológica onde se

verificam as semelhanças de visões do mundo por parte dos fotógrafos; a ação cultural

que vê o foto-jornalismo como produto de cultura e a ação tecnológica que perspectiva

a fotografia jornalística como um produtor da tecnologia. Essas ações, expostas pelo

autor Jorge Pedro Sousa,61 confirmam a importância da fotografia de imprensa para

seu próprio meio, bem como para os indivíduos e a sociedade.

Foto-jornalismo, segundo o site Wikipedia "é a prática do jornalismo por meio da

linguagem fotográfica em substituição à linguagem verbal”62. O foto-jornalismo

61 T ermo extraído do site http://ubista.ubi.pt/~comum/sousa-jorge-pedro-historia_fotojorn1.htm 62 http://pt.wikipedia.org/wiki/Fotojornalismo

Page 92: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

preenche uma função bem determinada e tem características próprias. O impacto é

elemento fundamental. A informação é imprescindível, assim como a atualidade e o

interesse social.

Já na década de cinqüenta do século XIX, a fotografia havia se beneficiado dos

avanços técnicos, químicos e óticos, que lhe possibilitaram abdicar dos estúdios e

partir para a documentação de imagens do mundo com o realismo que a pintura não

conseguia. Portanto a fotografia de pronto se tornou instrumento de prova, testemunho

e verdade e, depois, a época lhe deu status de “espelho do real”. Essa qualidade de

autenticidade e sentido utilitário da fotografia é desde suas origens uma particularidade

essencial que faz deste meio o ideal para criar testemunhos de forma verídica, como

por exemplo as batalhas, uma importante forma de propagar essa prática.

Desde sua origem as guerras foram adotadas como tema principal pela arte de

fotografar. Até o descobrimento da fotografia, os conflitos bélicos eram algo longínquo

e de certo modo excitante. A população desconhecia os cruéis detalhes desses

conflitos: cadáveres, feridos e mutilados estavam somente nos textos ou nas pinturas.

Foi assim que a participação britânica na Guerra da Criméia (1854-55), com o

conseqüente interesse da população, levou o editor Thomas Agnew a convidar o

fotógrafo oficial do Museu Britânico, Roger Fenton, a ir à frente da batalha, para cobrir

“foto-jornalísticamente” o evento.

As fotografias produzidas por Fenton na Guerra da Crimeia foram publicadas na

imprensa sob a forma de gravuras, e constituíram o primeiro indício do privilégio que o

foto-jornalismo vai conceder à cobertura de conflitos bélicos. Roger Fenton,

considerado como primeiro repórte fotográfico, tinha como missão realizar fotos do

referido conflito com o intuito de acalmar os temores da opinião pública britânica sobre

as tropas que ali estavam. Suas fotografias não mostram o horror da dor e da morte, ao

Page 93: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

contrário, são imagens de soldados e oficiais sorridentes, posando para o fotógrafo, ou

imagens dos campos de batalha limpos de cadáveres, porém repletos de bala de

canhão.

Com a primeira cobertura foto-jornalística de guerra, realizada por Fenton, nasce

a censura prévia ao foto-jornalismo. Por isso as fotos de Fenton não revelavam a

dureza dos combates, mas sim a “guerra fictícia”, com soldados longe da frente de

batalha. É ainda a guerra com sua mácula de heroísmo, tão habitualmente apresentada

pela pintura. Cabe ressaltar também as limitações técnicas, já que nessa época os

materiais utilizados eram pesados e difíceis de operar, fato que impossibilitava chegar

a tempo de fotografar os instantes fugazes de uma batalha.

Durante a Guerra da Secessão americana de 1861, realizam-se inúmeras

fotografias dos acontecimentos. Ao contrário do que aconteceu a Fenton, durante a

Guerra da Secessão, sem censura, começou a aparecer uma estética do horror.

Utiliza-se a fotografia para denunciar as atrocidades da guerra, assim como para

denunciar o adversário ou para registrar episódios importantes da memória coletiva do

país. Diferente de Fenton, muitos dos que fotografaram a guerra civil americana eram

independentes, e não possuíam nenhum tipo de censura na hora de forjar a crueldade

dos acontecimentos.

A Guerra da Secessão contribuiu em vários aspectos para o desenvolvimento da

fotografia de guerra, bem como para o foto-jornalismo. A guerra foi despida de sua

auréola de epopéia, a fotografia passou a ser vista como força atuante e capaz de

persuadir devido ao seu realismo. Os fotógrafos tiveram a noção de que era preciso

estar perto do acontecimento quando este ocorresse. Também a noção de que a

fotografia possuía uma carga dramática superior à da pintura levaram os fotógrafos a

vislumbrar o poder do novo meio.

Page 94: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Outro conflito que propagou a fotografia de guerra foi a Guerra Civil espanhola.

Nela vários fotógrafos espanhóis, até então desconhecidos, distinguiram-se durante o

conflito que ensangüentou seu país. Dentre eles está Agustí Centelles, que cobriu

exaustivamente a frente de Aragão. Conforme C. Brothers, a fotografia sobre a Guerra

Civil da Espanha tinha notoriamente fins persuasivos, especialmente porque o conflito

provocou intensa polarização política na Europa.

A conseqüente exposição das fotos traumáticas dos acontecimentos violentos

nas casas de família ocasionaram mudanças em toda sociedade. Depois da fotografia,

a guerra nunca mais seria a mesma. Com o novo meio, o leitor era projetado num

mundo mais próximo, mais real, mais cruel. Neste momento a escrita cede espaço para

a imagem. É desta forma que a publicidade utilizará a fotografia de guerra a seu favor.

Agustí Centelles nasceu em Grao (Valencia) na Espanha em 1909, e foi junto

com seus pais viver em Barcelona a partir de um ano de idade, por isso pode ser

considerado mais barcelonês que valenciano. Já muito jovem se iniciou na fotografia

trabalhando no jornal El día gráfico, onde publicou suas primeiras fotografias. Foi neste

diário, onde começou a trabalhar como aprendiz de Ramón Baños, que assimilou a

técnica do retrato. Anos mais tarde foi ajudante de Josep Baldosa, o qual haveria de

introduzi-lo no mundo do foto-jornalismo. Porém em 1934 principia por conta própria

sua carreira de fotógrafo fazendo reportagens nas ruas, espetáculos, esportes para

vender aos jornais da época como: La Publicitat, Diari de Barcelona, Última hora,

L’Opinió, La Vanguardia e La Rambla .

É considerado o precursor do foto-jornalismo na Espanha (denominado como o

Robert Capa espanhol), no entanto, sua obra sobre a Guerra Civil espanhola só foi

reconhecida após muitos anos. Com a morte de Franco (1975) e a chegada da

democracia na Espanha, Centelles retorna à França (1976), recupera a mala com seus

Page 95: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

negativos e publica-os; com isso recebe, em 1984, o Prêmio Nacional de Fotografia

pelo Ministério de Cultura da Espanha. Autor de Agustí Centelles: La lucidez de la

mejor fotografía de guerra, falece em 01 dezembro de 1985, aos 76 anos, em

Barcelona, esse grande nome do foto-jornalismo espanhol.

Centelles foi um dos primeiros fotógrafos que utilizou uma câmera Leica na

Espanha. Essa câmera possibilitou-lhe colaborar como reporte gráfico em diversos

jornais da época. Sendo o terceiro fotógrafo a utilizar este tipo de câmera, conseguiu

realizar através dela um tipo de fotografia diferente das que existiam na época. Os

retratos de Centelles tinham uma grande força expressiva abandonando as clássicas

fotografias planas, sem relevo, que até então eram feitas e que estavam, de certo

modo, condicionadas pelas câmeras de placas e pela utilização do magnésio.

Como fotógrafo não buscava a criatividade, mas sim mostrar a crua realidade.

Suas fotografias eram autênticas, verídicas e expressavam o cotidiano de preocupação

e horror da sociedade espanhola. As primeiras fotografias de um conflito bélico,

considerando como o primeiro evento foto-jornalístico, a Guerra da Criméia, realizadas

por Roger Fenton não apresentavam nenhum indício de guerra. Eram imagens

manipuladas de soldados bem instalados, longe da frente, campos de batalhas sem

mortos, ou seja, imagens de uma “falsa guerra”, em que o fotógrafo se preocupava em

retratar o “glamour” bélico como se fazia na pintura. Esse primeiro registro visual de

uma guerra é totalmente distinto do registro visual de Centelles, pois enquanto o

fotógrafo espanhol fotografava o real, a dor, a morte e o desespero o outro fotografava

o falso heroísmo, a falsa alegria dos soldados, os falsos campos sem corpos. Em certa

ocasião, Agustí Centelles declarou em uma entrevista: “Yo me daba cuenta de que el

reportaje gráfico de entonces era muy

amanerado y estético. Y a mí esto no me

Page 96: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

gustaba. Yo sentía la necesidad de reflejar una cosa más viva”.63 Por isso buscava

realizar fotos livres de qualquer intervenção, puras, num cenário real e vivo conhecido

pela população.

Na fotografia64 exposta ao lado, a objetiva de Centelles capta uma imagem de

tristeza onde se percebe indícios de uma revolução. Cavalos mortos, pessoas tapando

o nariz para não sentir o mal-cheiro; nesse momento, o fotógrafo consegue registrar até

mesmo a fumaça produzida pela incineração dos eqüinos mortos. Mais uma vez, ele

marca com a veracidade de suas fotografias a imagem caótica que será exposta para a

população.

O presente fotógrafo tinha como perspectiva apresentar os objetos focados

sobre um plano principal tais como são

percebidos pela vista, para que assim suas

fotos resultassem no mais natural

possível. Sua lente captava o centro, porém

nunca deixava de registrar e dar a devida

importância ao todo. Em muitas de suas

fotografias o todo simbolizava mais que o centro, ou seja, o objeto focado em segundo

plano tinha mais significação do que o objeto focado em primeiro plano. Esta afirmação

pode ser confirmada pela observação da foto acima.

Pioneiro da reportagem moderna,

considerando que a Guerra Civil da Espanha foi o

primeiro grande conflito bélico que mereceu uma

atenção especial por parte dos meios de comunicação

internacional, o que pode determinar o começo do

63 http://es.wikipedia.org/wiki/Agust%C3%Ad_Centelles 64 Centelles. Incineração de cavalos mortos na Praça Catalunha – 19/07/36.

Centelles. Tomada de Montearagón pelos

milicianos – 09/1936

Centelles. Jogos de crianças – 1936.

Page 97: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

fotojornalismo, Centelles foi uma figura que marcou definitivamente esse gênero. Ele

conseguiu através de sua Leica e de sua técnica criar imagens impactantes, cheias de

dinamismo e espontaneidade; movimentou-se entre os campos de batalha e os

conflitos citadinos, e com isso pôde registrar na íntegra e com beleza o caos espanhol

de 1936-1939. Agustí Centelles foi o primeiro fotógrafo a registrar, em 18 de julho de

1936, as primeiras imagens do fracassado levantamento dos militares fascistas nas

ruas de Barcelona. Com grande risco de vida, ele sai pela cidade colhendo imagens

chocantes do que seria o início da Guerra Civil espanhola.

Ao iniciar o conflito bélico, Centelles foi destinado para a frente de Aragón e

Catalunha junto com as milícias populares do exército republicano, e se dedicou a

elaborar reportagens sobre as tropas dessas frentes para La Revista, sendo suas

imagens também exploradas por ambas as frentes em suas propagandas. Realizou

reportagens sobre a conquista de Truel e sobre a batalha de Belchite. Foi também

colaborador do Comissariado de propaganda da Generalitat de Catalunha e

encarregado do arquivo do exército da Catalunha em Barcelona.

Uma fotografia muito divulgada durante o conflito, conhecida por muitos e que

também foi capa de importantes jornais, é a dos três guardas de assalto armados com

fuzis atrás de um cavalo morto. Esta fotografia,

exposta ao lado, na época, foi muito utilizada em

cartazes propagandísticos a favor dos republicanos. Nela

percebe-se que a desordem ocasionada pela ruptura da

ordem política, inaugurou uma cidade caótica.

Centelles. Guardas de assalto fazem barricadas (Barcelona,19/07/1936)

Page 98: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Em 1939, Centelles se auto-exilou na França e

levou consigo os negativos mais relevantes assim

como as câmeras fotográficas. Esteve preso em

diversos campos de concentração onde conseguiu

salvar seus negativos, devido a uma carteira de

jornalista expedida pelas autoridades francesas,

estabelecendo um pequeno laboratório fotográfico no

campo de Bram. Desta forma, conforme mostra a

fotografia ao lado, consegue registrar a dramática situação dos refugiados espanhóis.

Em 1976, Agustí Centelles ao recuperar a maleta com seus negativos e, já com

a chegada da democracia, expõe suas imagens, transformando-se num símbolo do

foto-jornalismo de guerra. Portanto, esse conflito bélico tornou-se para o referido

fotógrafo o maior acontecimento de sua vida profissional, que proporcionou seu

reconhecimento nacionalmente como um dos maiores fotógrafos da Espanha.

4.2.2 As imagens bélicas na poesia de González Tuñón

Raúl González Tuñón foi um poeta preocupado com o social, com a classe

proletária, com as injustiças, entre tantos outros temas. Com a Guerra Civil espanhola

se pode ver sua vertente política e solidária. O conflito bélico espanhol trouxe para o

autor argentino não só três novos livros, como foi citado no segundo capítulo e

importantes amizades, mas principalmente um novo olhar sobre a poesia, um novo

fazer poético com abordagem social, como um meio de comunicação com a massa,

visto que ele também era jornalista.

Campo de concentração de Bram (França, 1939)

Page 99: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Ao chegar à Espanha, e se deparar com a violenta crise dos mineiros asturianos,

González Tuñón decide regressar à Buenos Aires, escrever notas para um jornal e

organizar a Seção Hispano-Americana da Aliança de Intelectuais Antifascistas, com o

intuito de informar os acontecimentos que ocorriam na Espanha. Porém, antes de voltar

à Argentina, o poeta conversa com mineiros asturianos, que o fazem recordar de seu

avô Manuel Tuñón. A partir deste fato, o autor começa a escrever La Rosa Blindada,

livro chave que abre o caminho da poesia de guerra na América Latina.

Em terras espanholas, como correspondente de guerra, Raúl González Tuñón

verá que a morte está nas ruas e nos campos, compartirá a dor e os bombardeios com

Nicolás Guillén, Antonio Machado, García Lorca entre outros. Raúl González Tuñón

passa a ser o primeiro a escrever poemas em solidariedade aos que lutavam pela

liberdade da Espanha, retratando toda a comoção vivida nessa guerra. Por este motivo,

o poeta chileno Pablo Neruda afirma que “Rául, fue el primero que blindó la rosa” e

Octavio Paz sentencia que sem La Rosa Blindada não teria existido nem España en el

corazón, de Neruda, nem España aparta de mí este cáliz, de César Vallejo.

A Guerra Civil espanhola teve em González Tuñón um intérprete poético à

altura dessas façanhas. O próprio autor afirma, em seu auto-retrato, que a Guerra Civil

não só lhe modificou na forma lírica, mas também lhe permitiu ser mais atuante na

sociedade. Após suas experiências de viagens afirmou (Zanetti, 1980/1986:124): “Así

que aprendí que no somos subdesarrollados, es una sabrosa mentira, nosotros somos

mal aprovechados, mal organizados y mal dirigidos”.

“La Libertaria”, toda manchada de sangue

Page 100: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

O poema “La Libertaria” foi escrito em memória de Aída Lafuente, uma jovem de

16 anos que morreu defendendo sua região durante a revolução de outubro de 1934,

ocorrida na bacia de Cuenca em Asturias. O poema foi cantado como uma homenagem

ao encerramento do II Congreso de Escritores Antifascistas para la Defensa de la

Cultura realizado na cidade de Valencia em 1937.

Essa composição poética está formada por seis estrofes com alternância nos

números de seus versos. A maioria das estrofes possui versos paralelos e anafóricos,

que sustentam a cadência rítmica da poesia, tornando-a semelhante a um hino

suavizado e caracterizando-a como uma espécie de “copla popular”, muito comum na

obra tuñoneana desse período.

Estaba toda manchada de sangre, estaba toda matando a los guardias, estaba toda manchada de barro, estaba toda manchada de cielo, estaba toda manchada de España.

A estrofe que inaugura o poema é uma descrição de Aída Lafuente no momento

de sua morte, pois o sujeito poético afirma através do verso inicial a impregnação de

seu corpo pelo sangue, uma alusão ao fim da vida de Aída. Relatos da época revelam

que essa jovem armada com uma metralhadora se juntou a um defensor da cidade na

tentativa de evitar a entrada dos inimigos em Asturias, por isso o poeta descreve

“estaba toda matando a los guardias". Nos versos seguintes, por meio da repetição de

“manchada”, enfatiza-se o idealismo dessa figura, pois esse vocábulo contribui para a

formação de uma imagem de profundo comprometimento com o conflito asturiano, que

ora deixa marcas de barro, ora de céu e até mesmo de seu país. O barro, por

simbolizar tanto a matéria-prima que encontramos na natureza quanto a formação do

Page 101: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

ser humano, imprime no poema um valor local e, ao mesmo tempo humano, pois estar

manchado de barro implica na exaltação de sua região por carregar a terra em seu

corpo e do homem por ser oriundo do barro, conforme o relato bíblico. Uma das

simbologias do vocábulo céu é o absoluto das aspirações humanas65. Essa significação

se adequa ao contexto poético da composição, visto que marca a morte dessa jovem.

O verso final revela uma imagem patriótica de Aída, a qual foi capaz de sacrificar sua

vida em virtude de seus ideais políticos.

Na segunda estrofe o eu-lírico convoca a população espanhola ao enterro de

Aída Lafuente, para isto emprega o verbo venir no imperativo “ven”:

Ven catalán jornalero a su entierro, ven campesino andaluz a su entierro, ven a su entierro yuntero extremeño, ven a su entierro pescador gallego, ven leñador vizcaíno a su entierro,

ven labrador castellano a su entierro, no dejéis solo al minero asturiano.

Através de uma enumeração de pessoas de distintas regiões espanholas e

ocupações de diversos tipos, o poeta passeia por várias localidades da Espanha,

pedindo a presença indiscriminada de todos no sepultamento. Assim, vincula-se a

imagem dessa jovem ao comprometimento político de toda uma nação. O vocábulo

“entierro” empregado repetidamente em todos os versos, exceto no último, enfatiza o

fim do ideal de vida de uma jovem; ao mesmo tempo, alerta para que a luta mineira não

seja enterrada com ela. Pela cultura popular, o enterro seria uma forma de reunir

pessoas em um encontro final para despedidas. González Tuñón aplica esse

significado com intuito de unir, provocando reflexão na população espanhola pela luta

65 O símbolo deste vocábulo se encontra em: CHEVALIER, Jean – GHEERBRANT, Alain. Diccionario de

símbolos. 5ª ed. Barcelona: Herder, 1995

Page 102: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

da permanência de seus objetivos e, conseqüentemente, pela repulsa daquele crime

cruel. Essa comoção é justificada no último verso quando o sujeito poético pede para

que essa população, convocada ao enterro, não deixe sozinho o mineiro asturiano,

mineiro este que representa todos os outros que lutaram contra aquela fatal revolução

outubriana de 1934, a qual seria o ponto de partida para a eclosão da Guerra Civil

espanhola.

Sabe-se que Raúl González Tuñón usa, freqüentemente, como recurso poético

dados de sua vida particular. Em vários poemas o autor deixa registrado pessoas,

gostos e lugares comuns de sua vivência. Em “La Libertaria”, há uma personificação

representada pela presença do mineiro asturiano, que se vincularia à imagem de seu

avô materno Manuel Tuñón, que era de Asturias, operário e socialista.

A imagem nessa obra tuñoneana encontra-se mediada por impressões

particulares do autor, construindo assim uma imagem social e de caráter individual.

Contudo, deve-se ressaltar que o olhar, que apreende essas imagens e as decodificas

em versos poéticos, é o de um argentino, portanto, um olhar estrangeiro, que de acordo

com o autor Nelson Brissac Peixoto (1988:363), “aquele que não é do lugar, [...] acabou

de chegar, é capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem mais perceber”.

Dessa forma a poesia de González Tuñón é fundamental para entender que ver é

apenas uma atitude mecânica e passiva, enquanto olhar implica em um

questionamento daquilo que se vê, sendo completamente reflexivo. O que conduz os

versos de “La Libertaria”, bem como os outros poemas contidos nos seus três livros

sobre a Guerra Civil espanhola, é a reflexão.

Na terceira estrofe o sujeito poético segue convocando a população para o

enterro de Aída, explicando os motivos pelos quais o povo deve vir:

Page 103: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Ven, porque estaba manchada de España, ven, porque era la novia de Octubre, ven, porque era la rosa de Octubre, ven, porque era la novia de España.

Através de uma gradação em série de adjuntos adnominais, ele atribui a essa

personagem feminina um caráter nacional “manchada de España”, tornando-a assim

um emblema daquela revolução mineira que assolava o país. Com conotação afetiva

“novia”, ele a situa dentro do movimento da insurreição asturiana, ocorrido exatamente

no mês citado no poema. Assim “novia de octubre” se refere à mulher comprometida

com aquela insurreição.

Como é mundialmente conhecida, a rosa simboliza mulher e beleza, no entanto,

em 1919, uma mulher lutadora contra o governo em favor de seus ideais comunistas,

chamada de Rosa de Luxemburgo, foi assassinada durante o regime que formava os

primórdios do nazismo alemão, marcando assim seu nome como um emblema de

mulheres revolucionárias. Pode-se dizer que Aída Lafuente era conhecida como “La

rosa roja de Asturias” devido a esse ícone feminino de luta. Também se observa que

quando o sujeito poético nomeia “la rosa de octubre” ele a toma como a maior

representante daquele sangrento conflito, além de atribuir a essa jovem uma singela

beleza.

Verifica-se no último verso que por meio do adjunto adnominal “novia de

España” se estabelece na composição poética uma justificativa central para a presença

permanente dos ideais asturianos dentro da insurreição, pois a metáfora marca o

comprometimento e o amor que essa figura feminina tinha por seu país.

Nessa estrofe o eu lírico pede que a morte de Aída não se perca, que a ideologia

dessa luta não seja abandonada, “no dejéis sola su tumba del campo”, visto que, no

campo, em conjunção com a natureza, a vida intensifica seu caráter cíclico.

Page 104: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

No dejéis sola su tumba del campo donde se mezcla el carbón y la sangre,

florezca siempre la flor de su sangre sobre su cuerpo vestido de rojo, no dejéis sola su tumba del aire.

Tanto “carbón” quanto “sangre” estão relacionados na obra tuñoneana com

guerra e morte. Por sua vez, “el carbón” se relaciona com pó, com ruínas, com ossos,

sendo um objeto fractal (fragmentado) peculiar ao ambiente caótico e indicador de

início e fim, pois conforme as escrituras bíblicas “do pó viemos ao pó retornaremos”. O

poeta, ao misturar a cinza com o sangue, amplia o sentido inicial de “carbón” já que,

por estar debaixo da terra, essa mescla pode germinar, crescer e se transformar em

árvore. Assim, a cinza se humaniza porque, ainda que subterrânea, trabalha.

Comprova-se essa humanização no verso seguinte pelo florescer da flor que simboliza

a regeneração da vida. Também, pode-se assinalar o verso “florezca siempre la flor de

su sangre”, como uma exposição do desejo do poeta pela permanência da ideologia

combatente dos mineiros através da imagem da flor.

Cinza-morte, entendidos no poema como carvão-sangue, são geradores de vida,

deles florescerá sempre a flor, ou seja, nascerá sempre o pensamento, a reflexão

sobre o que acontece naquele ambiente de intensos combates. Também é possível

confrontar o sangue com a relação morte-vida. Morte quando alude a “rio de sangue” e

vida como doadora universal, “flor de su sangre”, sangue que não se estanca, flui

constantemente, é móvil e fecundo. Ao final, o sujeito poético retoma a palavra “tumba”

para enfatizar a relevância do sepultamento. Através do adjunto adnominal “tumba del

campo” e “tumba del aire”, o eu lírico cria um paradoxo, marcando a morte como uma

Page 105: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

metáfora da vida e o ar como a consciência do homem que pelo cotidiano tende a

esquecer os fatos.

Cuando desfilan los guardias de asalto, cuando el obispo revista las tropas, cuando el verdugo tortura al minero,

ella, agitando su túnica roja, quiere salir de la tumba del viento, quiere salir y llamaros hermanos y renovaros valor y esperanza

Na penúltima estrofe o sujeito lírico enumera acontecimentos comuns naquele

cotidiano, como: invasão dos soldados, revistas das tropas e os crimes de torturas,

porém essa aparente citação é uma alusão irônica às barbáries que ocorriam durante o

confronto mineiro. Daí o motivo para o levante daquela que foi a mártir da revolução de

Cuenca, daquela que empunhou a bandeira do movimento asturiano. Mais uma vez o

poeta retoma o vocábulo “tumba”, estabelecendo junto com “viento” a memória da

heroína, que quer simbolicamente sair do túmulo, figurar eternamente como uma

esperança, por isso o poeta incita “renovaros valor y esperanza”.

O sujeito lírico ressalta na poesia duas imagens, uma que está no nível explícito

e outra, no nível implícito, por isso mesmo intuída a partir da observação minuciosa dos

detalhes concedidos pelo poeta. Em primeiro plano é revelada a imagem de Aída

Lafuente, marcada em todo o poema através do gênero e dos símbolos universais

femininos: flor, noiva e rosa. No nível implícito é descrita uma imagem abstrata,

percebida pela junção dos significados de algumas palavras ao acontecimento de

outubro. Trata-se de uma representação ideológica e política que começava a

despontar dentro da obra tuñoneana.

y recordaros la fecha de Octubre

Page 106: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

cuando caían las frutas de acero y estaba toda manchada de España y estaba toda la novia de Octubre y estaba toda la rosa de Octubre y estaba toda la novia de España.

Ao final, o poeta insiste na rememoração constante do dia e mês em que Aída

foi morta, mês este que marca na Europa o outono, estação onde caem as folhas, por

isso “Cuando caían las frutas de acero”. No entanto, essas frutas não saciam a fome,

são frutas que não podem ser comidas, são de aço. A imagem que esse alimento

revela, o anunciador de momentos difíceis, prevê um cruel futuro para a Espanha.

Frutas simbolizam abundância, porém “frutas de acero” seria abundância de ferros,

aços, elementos que compõem as munições e as armas, objetos agora habituais

dentro das casas e regiões espanholas, indicadores de uma possível guerra.

Ainda na última estrofe, percebe-se que o poeta retoma, por meio de aliterações,

a idéia inicial, pois emprega uma parte da primeira estrofe com adjuntos adnominais

usados na terceira estrofe para aludir a la libertaria. Observa-se também que “novia de

Octubre”, “rosa de Octubre” e “novia de España” formam uma gradação que parte de

um valor regional para um valor nacional, já que o conflito ocorrido na região de

Asturias se refletiu em toda Espanha.

“Cuidado, que viene el Tercio”, da marcha militar ao ritmo do poema

O poema “Cuidado, que viene el Tercio” pertence ao livro La Rosa Blindada,

publicado em maio de 1936, sendo o primeiro livro de poesias de González Tuñón com

a temática de revoluções populares na Espanha, incluindo a Guerra Civil. Por sua

cadência e disposição de seus versos e estrofes, a composição poética, assemelha-se

Page 107: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

a uma espécie de marcha suavizada. Nesse período da obra de González Tuñón suas

poesias se impregnavam de ritmo e, concomitantemente, se caracterizavam pelo verso

livre, como se poderá verificar nesse poema.

A imagem poética nessa obra surge através de uma linguagem que anuncia a

guerra. Já no título da poesia, o poeta chama a atenção para as batalhas que

começavam ocorrer em solo espanhol, devido a visões políticas divergentes entre o

governo da época e a monarquia, que havia sido derrubada anos antes pelos

republicanos. Em todas as estrofes há um alerta para a chegada dos soldados, os

quais combatem a serviço de seu general. Essa constância de chamadas, que o sujeito

poético ressalta dentro do poema, causa no leitor uma sensação de insegurança, que

acaba envolvendo-se nesse clima de tensão tão peculiar à população na época do

conflito espanhol. Com isso o autor revela para seu leitor a imagem de uma sociedade

amedrontada e acuada pela ameaça das tropas franquistas que trouxeram o caos.

La Legión ha entrado a España.

O primeiro verso que inaugura o poema é de sobreaviso para o leitor, que

representa a população espanhola, visto que na época em questão o texto em prosa ou

verso era a maior e melhor forma de comunicação com a massa. Observa-se que o

autor coloca o vocábulo “Legión” em maiúscula. Poder-se-ia entender essa atitude

como exaltação dos soldados que compõem o exército inimigo atribuindo a eles poder,

mesmo sendo este poder destrutivo. Outra maneira de compreender este vocábulo é

vê-lo como uma forma mascarada de insulto às tropas militares, pois “legión” também

se define, conforme a Bíblia, por demônios. Assim o autor estaria denominando

pejorativamente tal exército e expondo sua posição em relação à guerra.

Page 108: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

A primeira estrofe do poema expressa uma preocupação do eu lírico em alertar

as pessoas comuns da sociedade para cuidarem e protegerem aquilo que amam, pois

os soldados franquistas, denominados por González Tuñón de “lobos” (termo que o

autor retoma no poema Domingo Ferreiro), estavam chegando e vinham para destruir.

Eles tinham “el desierto en el alma”, ou seja, eram desalmados.

Hombre, cuida tu mujer, obrero, guarda tu casa.

Mira que vienen los lobos con el desierto en el alma.

Na segunda estrofe o sujeito poético alerta ao trabalhador rural, que para o autor

é uma pessoa com poucos recursos.

Pobre colono, defiende tu finca, la hipotecada, que no te van a dejar ni verdura ni majada.

O eu-lírico avisa ao colono que defenda sua fazenda que está hipotecada, pois

os que chegam não deixarão nenhuma forma de sobrevivência para ele, reafirmando a

entrada em terra espanhola dos que trazem a ruína e a dor.

A terceira estrofe dá indícios da crise econômica que sofria a Espanha, não era

só o fazendeiro que tinha seu bem hipotecado, mas também o comerciante tinha sua

loja com baixos lucros. Novamente o poeta pede ao povo que tenha cuidado com sua

família e com seus bens, já que o vil exército condecorado, como o próprio sujeito-lírico

afirma no poema, pode tomar tudo sem qualquer explicação.

La Legión ha entrado a España.

Cierra, pequeño burgués

Page 109: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

tu tienda de renta flaca. Guarda tu novia, muchacho,

de la hez condecorada.

Todos, segundo o poeta merecem ser alertados, inclusive a meretriz, depreciada

pela sociedade. Para o eu-lírico esta mulher de vida livre é como qualquer outro

membro da comunidade, que luta, sofre e trabalha pela sobrevivência.

Prostituta, ten cuidado que no te invadan la casa los rufianes de la arena

que pegan, pero no pagan.

Raúl González Tuñón, em muitos de seus poemas, retrata essa personagem

menosprezada, com o intuito de elevar sua condição humana perante a sociedade e,

assim, diminuir o preconceito em torno desse arquétipo da realidade citadina. Por este

motivo o autor canta em seus versos essa mulher tão esquecida propositalmente pela

população. Ele humaniza a prostituta, marginalizada perante o olhar popular. Na obra

tuñoneana a imagem da meretriz nunca é representada negativamente, ao contrário, é

apresentada com respeito e até com pesar. Sabe-se que é de seu interesse lírico

revelar as personagens que estão à margem, expô-las de forma bela, nunca com

preconceitos ou desprezos. Nessa estrofe o poeta descreve a atitude covarde dos

soldados, chamados por ele de “rufianes de la arena”, que invadem, abusam e

usufruem da prostituta, simplesmente pela imposição de seu poder e de sua força.

Mais uma vez o eu-lírico registra a entrada dos militares franquistas que trazem a

desordem para a Espanha.

Page 110: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Na quinta estrofe o sujeito poético volta seu olhar para a Igreja e segue

recomendando cuidados. Ainda na mesma estrofe ele cita de uma forma irônica a

figura do “tahur” que representa o malandro portuário.

La Legión ha entrado a España.

Cura, cuida tu sobrina y el tesoro de tu arca.

Tahur, ándate a los puertos que para fulleros basta.

Cria-se então um paralelo entre a imagem do representante eclesiástico e a do

homem errante que perambula nos portos à procura de um bom negócio. Essas

imagens, como as anteriores, são imagens sociais. Em toda poesia o eu-lírico alude a

personagens comuns singulares que permeiam a cidade e o campo. Assim, mesclando

diferentes classes sociais, “obrero, colono, burgués, prostituta, cura, tahur, bodeguero”,

o poeta deixa transparecer seu olhar igualitário, no qual todos os homens são dignos e,

como todos, podem ser vitimados pelo governo. Apesar de a sociedade diferenciar

pessoas por classe econômica e social, o sujeito do poema deixa representado através

de seus versos uma imagem igualitária de todos os homens, pois todos podem ser

submetidos ao poderio dos que lutam pela monarquia.

Na sexta estrofe o poeta segue avisando às pessoas comuns do povo que

tomem cuidado. Nesse momento, o eu lírico se volta para uma personagem que vive

em um ambiente comum, como as bodegas, os bares, as casas de show.

Bodeguero, tus corambres esconde en la cueva vasta que ya vienen los que traen el desierto en la garganta.

Page 111: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

O sujeito poético determina que o dono da bodega esconda na cova sua fome

de vingança e sua raiva. O poeta se utiliza de um recurso estilístico, o neologismo

(“corambres”), para que a personagem possa dissimular sua fome de justiça, de

coragem e rancor perante as tropas franquistas. Dessa forma ele aglutina o vocábulo

“color” (cor) ao vocábulo “hambres” (fomes) formando “corambres” que, no plural,

associa sua fome biológica a sua fome de vingança.

La Legión ha entrado a España.

Que ya vienen galopando sobre la angustia de España,

asesinando palomas y fusilando cigarras,

que ya vienen galopando

sobre la angustia de España los soldados enemigos de la dignidad humana.

La Legión ha entrado a España.

Nas duas últimas estrofes o eu poético se apóia no paralelismo para expressar

sua idéia final. Repete os dois primeiros versos da penúltima estrofe, na última estrofe,

enfatizando a situação de desespero e angústia que começava a se estabelecer na

Espanha. Assim, pode-se afirmar que a regularidade e ordem citadina habitual,

destruídas pela fragmentação social, estabelecem na sociedade espanhola a

desordem, que culminará no vazio caótico deixado pela guerra.

Na penúltima estrofe o sujeito do poema além de descrever a entrada das tropas

de Franco em solo espanhol, revela também um panorama de caos, horror, morte,

enfim desolação, pois afirma que os soldados vêm para acabar com a paz e harmonia,

simbolizada no poema pelo vocábulo “palomas” (pombas). Ainda evidencia a morte

Page 112: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

brutal da celebração da vida, representada pelas cigarras, as quais cantam para

celebrar o dia vindouro.

Ao final o sujeito poético segue com sua crítica algoz sobre o exército do general

Francisco Franco. Afirma que eles são soldados inimigos da dignidade humana, pois os

mesmos vinham espalhando desgraça, crueldade e dor sobre toda população

espanhola. Termina justificando novamente que todo esse ambiente de intensa

fragmentação geradora do caos, acontece devido à entrada dessas tropas na Espanha.

Desta forma percebemos que o poema “Cuidado, que viene el tercio” trata-se de uma

composição poética cíclica, pois começa e termina com versos idênticos: “La Legión ha

entrado a España”. Por ser cíclica, também se auto-recria, ou seja, a ordem inicial é

interrompida pela desordem, porém ao final o poeta retoma o princípio de regularidade

para novamente estabelecer o caos, com isto a poesia não se finda.

“Domingo Ferreiro”, toque a gaita...

Tanto a imagem fotográfica quanto a poética apresentam singularidades e

pontos em comum com o meio que a produz, como se pode verificar nas diversas fotos

do fotógrafo espanhol Agustí Centelles e na poesia do poeta e jornalista argentino Raúl

González Tuñón. Ambas têm em comum o mesmo tema ou pano de fundo, a Guerra

Civil espanhola, onde fotógrafo e poeta se aproximam com o mesmo objetivo:

denunciar o brutal massacre em terras espanholas.

O poema “Domingo Ferreiro” pertence ao livro Muerte en Madrid (1939), de Raúl

González Tuñón, e as fotografias são do fotógrafo Agustí Centelles, as quais retratam

Page 113: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

alguns conflitos ocorridos durante a Guerra Civil espanhola. Poesia e fotos serão

expostos paralelamente e as suas análises.

A criação da imagem nesta poesia se dá através do conhecimento que temos

sobre guerras. Esse saber irá aflorar nossa sensibilidade, e no decorrer da leitura

formaremos continuamente imagens associadas ao período bélico. Ao final nos

deparamos com uma imagem que define bem o que é uma guerra: “perdas contínuas

de compaixão, de alegrias, de esperanças, enfim perdas de vidas”.

Toca la gaita Domingo Ferreiro toca la gaita... «¡Non queiro, non queiro!» Porque están llenas de sangre las rías, porque no quiero, no quiero, no quiero.

Na primeira estrofe o poeta incita a

Domingo Ferreiro que toque sua gaita, mas ele

se nega a tocá-la. Esta negação tão

particular é representada em língua galega no

verso: “¡Non queiro, non queiro!”, assim se cria no poema um pequeno diálogo entre

autor e personagem. Este diálogo apresenta uma linguagem de ruptura: o autor em

linguagem imperativa ordena que Domingo Ferreiro toque a gaita, logo a seguir a

personagem responde negativamente em língua galega. No terceiro verso, Ferreiro

retoma sua voz e justifica o motivo de tal negação: as “rías” estão repletas de sangue,

sangue de uma guerra de difusas ideologias, onde ambos os lados estavam mais

preocupados em impor suas idéias políticas e eliminar seus adversários.

As “rías”, freqüentemente, na literatura simbolizam a vida, pois além de

possuírem seu ciclo vital ativo, também são as responsáveis pelo alimento da

população. Entretanto, a obra revela as “rías” como anunciadora da morte, do caos que

(Praça de Catalunha, o coração de Barcelona ao final do dia – 19 /07/36)

Page 114: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

havia se transformado a Espanha de 36. Naquele momento a terra passou a não ser

digna de música, mas sim de lamento. A imagem criada nessa primeira estrofe, através

da forma simbólica das “rías”, desperta no leitor a sensação de horror e morte vivida

pelas pessoas daquela época. Os leitores sentem essa mesma sensação ao verem

expressas a destruição e a morte na fotografia. A imagem fotográfica exprime essa

tristeza, pois retrata o que ocorria nas cidades espanholas, através do olhar preciso de

Centelles.

As imagens poéticas são produzidas através da ordenação de vocábulos, versos

e estrofes, dependendo, portanto, da competência de um poeta para despertar a

imaginação do leitor, já as imagens fotográficas são produzidas por um aprisionamento

físico de partes do mundo visível, isto é, imagens que dependem de um instrumento de

registro, implicando então a presença de objetos reais e preexistentes.

Por tratar-se de um cenário físico, real e integrado a nosso mundo (a Guerra

Civil espanhola e o local onde ela aconteceu), a imagem criada nesta poesia

desempenha um papel social, pois por meio dela se pode sentir como o autor percebeu

tal acontecimento.

Y se secaron los ramos floridos que ella traía en la falda del viento, que ella traía a su novio soldado o pescador, labrador, marinero.

A segunda estrofe expressa todo o

espírito de tristeza que se vivia na Espanha: a

alegria morrera juntamente com as cores vivas,

as flores secaram, o vento não trazia mais

(Saída de milicianos em Barcelona – 07/1936)

Page 115: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

(Trincheira em Belchite – 09/1937)

aquela doce melodia da gaita aos homens daquela terra. Essa fotografia foi exposta

juntamente com esta estrofe, neste estudo, pois simboliza a despedida de um casal. Na

foto encontram-se tanto o soldado quanto “ela”, e ao lê-se a estrofe e compará-la com

a foto, percebe-se um ambiente de desilusão e falta de esperança, que é finalizado

com o beijo de um futuro incerto. Seria a despedida de tempos brandos para o início de

tempos revoltos.

O registro da imagem poética depende de um suporte, quase sempre uma

superfície, como o papel, que possa servir de receptáculo para a fixação dos

significados, registrados pela caneta esferográfica, que um artista utiliza para deixar

impressos no papel seus significantes. Sem dúvida o principal instrumento

possibilitador da fixação da imagem poética é a caneta, que como prolongamento dos

dedos e dos movimentos da mão, permite desenvolver com maestria sua utilização. É

na visibilidade da escritura que está

impressa a marca de seu agente.

Sobre Galicia ha caído la peste, ay, los oscuros sargentos vinieron. Están colgando en los pinos los hombres, toca la gaita, no quiero, no quiero.

“Sobre Galicia ha caído la peste”:

assim se inicia a terceira estrofe que vem

revelar nitidamente, através de seus harmoniosos versos, como atuavam as tropas

franquistas, denunciando os desmandos e crueldades praticados naquela região. O

General Franco e seu exército haviam chegado à Galicia e junto com eles, a dor, a

morte e a destruição. Aquele momento não era mais propício para a música festiva

Page 116: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

galega e, novamente, o autor se nega a tocar a gaita. O terceiro verso, “Están colgando

en los pinos los hombres”, revela horror, crueldade e dor, porque “colgar en los pino”

seria pendurar as pessoas nos pinheiros, ou seja, cravá-las nas árvores. A quem

cravar? Certamente aos homens a favor da república que lutavam contra o exército de

Franco.

A fotografia acima, exposta concomitantemente com o poema, nos revela que

esses homens estariam entrincheirados nesse ambiente caótico estabelecido pela

fragmentação política da sociedade. Seus olhares para cima esboçam preocupação, o

que marca verdadeiramente a tensão que sofriam esses soldados, resultado do

congelamento de um fato enquadrado. Essa imagem, sendo uma cena real, funciona

como registro do confronto entre o sujeito e o mundo. O que resulta disso não é só uma

imagem, mas um objeto único autêntico e, por isso mesmo, carregado de certa

solenidade, fruto do privilégio da impressão primeira daquele instante raro, no qual

poeta e fotógrafo pousaram seus olhares sobre o mundo, dando forma a esse olhar

num gesto irrepetível.

Nuestros hermanos que están allá abajo pronto vendrán a vengar a los muertos, pronto vendrán en mitad del verano, pronto vendrán en mitad del invierno.

Na quarta estrofe, o poeta expõe

claramente sua posição em relação à

guerra quando cita: “Nuestros hermanos que están allá abajo”, com isso ele se insere

no grupo dos que são a favor da República espanhola, pois os que estavam

geograficamente abaixo eram os republicanos, que ainda mantinham o controle da

capital. Na sua esperança guerreira, o autor afirma que sua “gente” virá vingar os

(Guardas de Assalto e Civis comemoram a vitória sobre os militares revoltosos em Barcelona – 19 /07/36)

Page 117: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

(Miliciano na Frente de Aragão – 1937)

amigos mortos, não importando se virão no verão ou no inverno, pois certamente

perceberão a humilhação e o sofrimento do povo galego.

A imagem formada nessa estrofe é de revolta e vingança. O autor desperta

esse sentimento no leitor através de um misto de imagens: uma, espaço vivo e real,

região onde estão os companheiros da república; outra, imagem sensorial de rancor e

raiva.

A fotografia de guerra paralelamente à essa estrofe vêm marcar a esperança de

ajuda e reparação dos vários companheiros assassinados e, simultaneamente,

simbolizar todo o contingente indiscriminado de pessoas que morriam. Nessas fotos

observamos ora a gana com que lutavam os republicanos, ora o caos de dor e

destruição que assolava o país. Nessas imagens instauradoras, fundem-se, num gesto

indissociável, o sujeito que a cria, o objeto criado e a fonte da criação.

El que no ha muerto andará por el monte y en las aldeas cayeron los buenos. Ay, que no vayan los lobos al monte, toca la gaita, no quiero, no quiero.

Na quinta estrofe, o autor louva os

sobreviventes da guerra, aproximando-os a Deus

e colocando-os no monte66, já que este é o

símbolo da ligação entre terra e céu.

Evidentemente, González Tuñón também

demonstra solidariedade aos que morreram pela República, pois mesmo que os

sangrentos soldados não subam ao monte para acabar com os poucos que restaram,

ele não tocará a gaita em memória a seus companheiros mortos.

66 [Monte] Esta definição encontra-se em CHEVALIER & GHEERBRANT (1995) p.616.

Page 118: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Nessa estrofe o elo estratégico foi criado através da imagem ambiental física. O

leitor percebe o quadro mental do mundo físico exterior e o apreende. O ambiente

trabalhado foi o monte e a aldeia. Buscando as imagens que temos sobre esses

referentes, descobrimos que o monte refere-se a um ambiente alto, de difícil acesso;

enquanto a aldeia, a planície, lugar acessível. Desta maneira, depreende-se que os

republicanos estão no monte, tentando proteger-se, e seus amigos mortos na aldeia,

onde ocorreu possivelmente a batalha.

A imagem anterior, do homem andando no monte, assinala claramente esse

momento da poesia, onde o soldado protege seu território de possíveis invasões. A

posição focada pelo fotógrafo nesta foto, coloca o objeto em posição elevada e próxima

do céu (assim como no poema), o que pode indicar uma possível simpatia do repórter

com a República. O emissor da imagem, através do enquadramento, recorta o real sob

seu ponto de vista e, por isso pode propor diversas interpretações em função da sua

subjetividade.

Ya llegarán las valientes milicias para acabar con la hez del desierto. Ya llegarán en mitad de la Historia, ya llegarán en mitad de los tiempos.

A sexta estrofe anuncia a vinda

das milícias republicanas, que

mesmo em desvantagem, lutavam bravamente para combater aquelas deploráveis

tropas franquistas vindas do deserto ocidental. Essas valentes milícias chegarão na

metade da guerra, na metade do tempo que resta para o triunfo. A imagem que surge

nessa estrofe é a da esperança, uma imagem sensorial. Percebe-se com essa imagem

(Frente de Aragão – setembro de 1938)

Page 119: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

que o autor tinha certeza da vitória das tropas republicanas e, a partir desse

pensamento utópico, fica nítido o posicionamento de González Tuñón durante a guerra.

A figura das tropas em direção à frente de batalha, captada pela objetiva de

Centelles, demonstra através do cenário toda a dimensão que o referido fotógrafo

conseguia impor entre o sujeito e o mundo. Por meio da poesia, pode-se imaginar o

ambiente e, através da fotografia, o constatá-lo. Enquanto o criador das imagens

poéticas deve ter, fundamentalmente, sensibilidade e imaginação para a figuração, o

agente fotográfico necessita de capacidade perceptiva e prontidão para reagir no

momento certo.

Toca la gaita... ¡que baile el obispo! Toca la gaita, no quiero, no quiero. Porque no es hora de fiesta en España, porque no quiero, no quiero, no quiero.

Na sétima estrofe, o autor ironiza a Igreja

Católica com a expressão “¡que baile el

obispo!” referindo-se à grande indiferença

mantida pelo clero aos intensos massacres que

ocorriam durante a Guerra Civil espanhola.

Normalmente, tocar a gaita é festejar com música bons momentos, mas como

tocar a peculiar melodia desse instrumento se os únicos sons ouvidos eram os dos

gritos e dos bombardeios daquela sangrenta batalha?

A fotografia exposta transmite esse desespero, essa tristeza, esse momento

impróprio para festas. Com tamanha vivacidade, Centelles reproduz nessa imagem

uma realidade singular, uma propaganda da violência para qual o mundo atentava. No

entanto, se as imagens poéticas resultam de um gesto idílico, fruto de uma simpatia, ou

(Bombardeio de Lleida – 2 /11 / 3 7)

Page 120: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

de seu oposto, em relação ao mundo, as imagens fotográficas decorrem de uma

espécie de rapto, captura do real, por trás do qual se insinua um ato não destituído de

certa perversidade. O que se imagina através dos harmoniosos versos, na fotografia,

com toda sua credibilidade documental, expõe-se explicitamente.

(Guardas civis- 1936) Ya llegarán los soldados leales para acabar con los pájaros negros, ya llegarán en mitad de la Biblia, ya llegarán en mitad de los muertos.

“Ya llegarán los soldados leales para

acabar con los pájaros negros”, nesta estrofe

o autor anuncia uma possível vitória da Frente

Popular sobre os mensageiros da morte, assim

denominados pelo poeta às tropas franquistas. Vê-se, claramente nesses versos, o

quão esperançosos eram os republicanos, que sustentavam a idéia de um novo país,

livre de qualquer regime autoritário que pudesse impregnar com sangue o solo

espanhol.

Mais uma vez Agustí Centelles fotografa os soldados, ainda sorridentes e

confiantes em uma possível vitória, marchando em direção à frente de batalha para

acabar com seus inimigos. Essa imagem é capaz de estimular na população

autoconfiança e trazer a esperança de um possível final da guerra. Entretanto a

imagem fotográfica anterior, a mulher chorando o cadáver, vem destruir por completo

todo ânimo causado pela fotografia acima, pois metade da população havia morrido, e

nem mesmo mulheres e crianças escapavam dos massacres.

(Corpo de um guarda de assalto coberto com a bandeira catalã – 19/07/36)

Page 121: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

Toca la gaita. ¡Que baile la víbora! Toca la gaita, no quiero, no quiero. Porque la gaita no quiere que toque. Porque se ha muerto Domingo Ferreiro.

A última estrofe faz uma feroz crítica, possivelmente ao general Francisco

Franco, chamando-o de víbora, ironizando-o com a expressão “¡Que baile la víbora!”,

que pode ser interpretada como o simples ato de dançar ao som da gaita ou como uma

provável expulsão, a eliminação desse ditador. Ao final da estrofe é explicitado o

principal motivo de não querer tocar a gaita, pois ela também está de luto em

sentimento à morte de Domingo Ferreiro, que certamente foi um grande lutador galego

da tão sonhada República espanhola.

A última fotografia é uma simbólica representação dessa personagem bélica

exposta no poema, porém real e integrada por ser uma imagem verídica de um soldado

existente na sociedade espanhola, que provavelmente faleceu com bravura lutando em

busca de seus ideais.

Page 122: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

CONCLUSÃO

Ao se analisar a poesia de Raúl González Tuñón, encontrou-se, primeiramente,

as alternâncias temáticas que abarcam sua produção literária. Sabe-se que o início e o

final da obra tuñoneana estão marcados por uma poesia lírica; enquanto entre essas

duas etapas de sua produção, verifica-se uma poesia de cunho social. Essa visão

totalizante do espaço foi proporcionada ao poeta devido a suas inúmeras viagens pelo

mundo, na companhia indissociável de seu amigo imaginário Juancito Caminador.

Desde pequeno González Tuñón se mostrava sensível aos estímulos do mundo

visível. Essa sensibilidade é percebida pelas constantes alusões a momentos, objetos,

pessoas e lugares que circulam dentro de suas linhas poéticas. A maior parte desses

elementos foi conhecida pelo escritor. O descobrimento juvenil do poeta pela

vanguarda argentina o impulsionou a ingressar de forma atuante nessa fase fértil da

cultura e da arte na capital portenha. Sua participação e contribuição nos grupos

antagônicos Florida e Boedo foi conflitante, porém, intensamente enriquecedora. Sabe-

se que, dos poucos críticos existentes sobre a poética de Raúl González Tuñón, raros

foram aqueles que conseguiram localizar o poeta dentro de um ou outro grupo.

A maioria dos poetas da época possuía vínculos unitários com Florida ou com

Boedo, entretanto González Tuñón circulava entre ambos de forma pacífica e influente,

como um perfeito caminhador. Por ser ainda muito jovem, o poeta oscilava entre

Florida e Boedo, conseguindo compartilhar suas escrituras com os dois grupos.

Page 123: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

A vanguarda argentina foi responsável por iniciar poeticamente González Tuñón.

A revista Martín Fierro proporcionou ao autor o aprimoramento da lírica, com seus

recursos e suas metáforas, e o grupo Boedo foi indispensável para a iniciação de sua

vinculação política e social.

A experiência vivida por Raúl González Tuñón na capital argentina foi

circundada por elementos imaginários e reais. Com um espírito tipicamente patriota, o

autor procurou conhecer quase todas as regiões da Argentina e, assim, cantar a

extensão de seu país em seus versos. Contudo, seu temperamento inquieto o

impulsionava a descobrir o mundo, seu Juancito Caminador o instigava a viajar e

retratar em lírica suas mais belas e cruéis experiências. As viagens proporcionavam um

aprimoramento da sua estética, estabeleciam grandes amizades e o levavam a

conhecer novas formas métricas, novas concepções poéticas.

Durante algum tempo, o circo foi uma obsessão do jovem poeta, tanto que seu

primeiro poema foi publicado quando o escritor tinha dezessete anos, em homenagem

a um palhaço chamado Frank Brown. De acordo com González Tuñón, Frank Brown o

deslumbrou, era um palhaço maravilhoso, um inglês totalmente influenciado pelos

costumes da América Latina, de grande atração para as crianças. O ambiente circense

o contagiava desde o tempo em que seu avô o levava ao porto; por isso, González

Tuñón, quando tinha aproximadamente dezoito anos, seguiu um circo que estava

saindo da cidade e partindo em direção ao interior.

Outro espaço de suma importância na obra tuñoneana é o porto, que está

presente em quase todos os seus poemas. O porto é para o poeta o símbolo da busca,

da esperança e do sonho, é através dele que partem os navios que levam Juancito a

caminhar pelo mundo mágico.

Page 124: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

A leitura inicial que o poeta realiza de seu mundo tem os limites precisos de um

bairro, um bairro de Buenos Aires, na Argentina do início do século XX: um pequeno

universo que reúne em seus cortiços os imigrantes italianos, espanhóis e os próprios

argentinos que exerciam modestos ofícios. Nesse rico e limitado universo se reflete a

vida cotidiana do simples proletariado. Dessas simplicidades é que González Tuñón

nutre sua primeira poesia. Saltimbancos, mulheres fatais do cinema mudo, ecos de

Evaristo Carriego, acompanham o poeta em suas iniciais incursões pelos bairros, pelo

subúrbio, pelo porto e pela poesia.

Aos vinte anos Raúl González Tuñón publica seu primeiro livro. Nele aparece o

poema que resume sua visão de adolescente vagabundo e lúcido: “Eche veinte

centavos en la ranura”. Este poema anuncia o surrealismo, antes mesmo de que o

surrealismo aparecesse na França em 1924, época em que o poeta se encontrava com

dezenove anos. Logo, não é nenhum absurdo afirmar que González Tuñón foi o

precursor do surrealismo, pois as diversas correntes, como cubismo, dadaísmo,

criacionismo, que antecederam esse movimento originário da França, faziam parte do

universo tuñoneano.

“Eche veinte centavos en la ranura” representa o surreal, o inimaginável, o

delirante mundo dos sonhos, estimulado pela apreensão do mundo visível, o

consciente-subsconsciente gravado pela imortalidade poética. Nesses versos,

encontra-se o porto, o marinheiro, o palhaço, o circo e algumas personagens que

constituem a alma circense. Percebe-se a intimidade com que González Tuñón se

refere a esse ambiente portenho, seu amor pelo descobrimento insólito do novo e pelo

vagar nas ruas da cidade de Buenos Aires, que se abria diante de seus olhos.

Em vez de temer a cidade, que se transformava violentamente, com as

mudanças abruptas, González Tuñón se extasiava perante essa urbe. A liberdade de

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passear por todos os lugares, de estar em um local e rapidamente em outro o

encantava. O poeta experimentava, pela primeira vez, o prazer de sentir, de viver a

cidade em sua totalidade.

O gosto pelo popular, pelo simples, pela embriaguez da vida noturna da cidade,

o faz criar um companheiro que pode brincar com as cidades, esgotar seus recursos e

reinventar-se na próxima página. Juancito Caminador se funde com a vida particular do

poeta, com seu inconsciente lúdico, podendo entrar e sair de sua obra sem causar

dano, perambular em qualquer espaço e tempo. Ser o herói romântico do real-surreal.

González Tuñón canta as belezas pobres do ambiente citadino, seus

submundos, sua gente. Na composição poética “Poetango de la belle époque”, pode-se

encontrar marcas de suas primeiras poesias, ele ainda é um cancioneiro, mesmo que

nostálgico. Também se encontram registrados em seus versos o insólito, o inábil, o

surreal. Sua eterna paixão pela capital argentina segue revelada em seus poemas.

O aludido mundo infantil, na obra tuñoneana, resplandece no título do poema

“Motivo para una cajita de música”. São freqüentes os elementos tomados da infância e

registrados nos poemas, como: os cata-ventos, os barcos dentro das garrafas e a

própria caixinha de música. Essas constantes repetições afirmam o amor do poeta por

esses símbolos e, consequentemente, por sua infância. Essa composição também é

um convite ao “país das maravilhas”, da imaginação. O autor, ao ingressar no mundo

dos sonhos, possibilita ao ser humano vivenciar por mais uma vez a felicidade

primaveril, a inocência de um olhar sobre um espaço comum, transformado por

instantes em fabuloso.

Em toda obra de González Tuñón a alternância contemplação/mudança ocorre

de uma forma fluida, em uma correspondência dialética entre o mundo observado e o

mundo a transformar. Uma palavra se renova ao longo de sua obra, uma palavra-

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chave, “cordial”. É cordial, amigável, sua primeira aproximação ao bairro e ao subúrbio;

cordial e alegre sua aproximação aos circos, às feiras e ao mundo dos marinheiros;

cordial e nostálgica sua visão dos seres e dos objetos queridos; cordial e combatente...

Sua poesia está marcada pela nomeação, pelas citações e referências, pela

auto-referencialidade, pelas intensas e inúmeras metáforas. O mundo dos objetos é,

em geral, o que atrai o poeta. Mediante um processo de composição, as nomeações e

as metáforas se humanizam, aproximando-se desta forma ao mundo dos homens sem

exceder nunca os limites impostos, já que dentro do espaço tuñoneano imperam

sempre o homem e suas lutas cotidianas e sociais.

No terreno dessa substantivação, percebe-se também o uso de nomes que remetem à

esfera familiar ou à esfera da amizade, como por exemplo o poema “Lluvia”, dedicado a

sua esposa, o “Poema para un niño que habla con las cosas”, dedicado a seu filho e os

inúmeros poemas dedicados a seu irmão Enrique. Tanto essas referências como as

nomeações de lugares, países, bairros, cafés, travam com o leitor uma relação de

reconhecimento, ao mesmo tempo, que têm um efeito de verossimilhança.

Apesar de ter elaborado um número maior de poesias influenciadas pela estética

surrealista, González Tuñón foi mais conhecido como poeta social. Suas obras não

retratam o sistema político, mas sim o homem submetido ao sistema governamental.

Embora seu trabalho poético possa parecer engajado, González Tuñón soube discernir

a arte literária da política, seus poemas de rara beleza aludem ao compromisso do

homem com o seu semelhante.

É evidente que o autor era uma pessoa extremamente sensível ao mundo real,

porém a cruel realidade era combatida com a esperança, com a solidariedade e com a

cordialidade do poeta argentino. Ainda antes de sua estada na Espanha, González

Tuñón se entristeceu com os conflitos que eclodiam na terra de seus antigos

Page 127: O IMAGINÁRIO POÉTICO NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

colonizadores, escrevendo “La Libertaria”. A Guerra Civil foi o divisor de sua carreira

poética. Antes do livro La rosa blindada, ele era um poeta comum, com pouca projeção,

após a publicação torna-se modelo para outros renomados poetas.

Os poemas da Guerra Civil, analisados ao longo deste estudo, possuem a forma

de hino, marcha combatente em ritmo de arte. O poeta emprega a imagem em sua

escritura para denunciar os conflitos bélicos. Continua sendo um cantor citadino, mas

agora seu objetivo é ser solidário, atuante em um momento caótico.

“La Libertaria” e “Cuidado que viene el Tercio” mostram a posição de González

Tuñón, um homem comprometido com seu tempo. Nas suas linhas poéticas formam-se

as imagens da luta, da repulsa por atitudes bárbaras, pelo desrespeito à seu

semelhante em 1936.

A bipolarização partidária, que surge com o caos, rompe com a fluidez das

relações humanas. Essa fragmentação revela-se de forma rítmica, através das

imagens realistas na poesia de González Tuñón, que aludem a esse conflito cruel. O

poeta transfere para o papel o que sente, as imagens que foram registradas em sua

memória se imortalizam em seus versos, portanto, também se configuram como

imagens históricas, à semelhança do quadro Guernica, pintura de Pablo Picasso.

O olhar que vê absorve a realidade para transformá-la em arte através da mão

que escreve, ou da mão que pinta, ou da mão que modela. São artes que refletem o

aprisionamento do real pela sensibilidade de um artista. À semelhança dessas artes, as

fotografias produzidas na época do conflito bélico na Espanha, também produzem esse

aprisionamento. Trata-se de um evento marcante para o cenário do foto-jornalismo,

pois possibilitaram perceber de forma um pouco mais vivaz essa sangrenta guerra. As

fotografias dessa época podem ser tomadas como representações de objetos fractais.

Nelas, verifica-se a destruição do ambiente pelo próprio cunho de veracidade que

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carrega. O objeto focalizado pelo olhar do fotógrafo transmite sua concepção dos fatos,

assim, a fonte de criação, o objeto criado e seu criador se transfiguram em um objeto

único e irrepetível, impregnado de simbologia.

Tanto a imagem fotográfica quanto a imagem poética estão impregnadas pelo

olhar do outro. Ambas revelam a fragilidade do ambiente espanhol, completamente

fragmentado, arruinado. Se o poeta cria imagens de dor, de revolta, de comoção, a

fotografia, por retratar a pura realidade, aflora intensamente essas emoções. Se a

fotografia congela um instante, para torná-lo permanente, a poesia também é o retrato

do fugaz, eternizado na imagem da composição poética.

Tanto a poesia social quanto a poesia citadina do autor em questão, reunidas

nesta pesquisa, comprovam a harmoniosa síntese do fazer poético do escritor

argentino, revelando a habilidade de Raúl González Tuñón na construção do artifício da

linguagem literária.

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1ª PARTE1ª PARTE1ª PARTE1ª PARTE

A VANGUARDA ARGENTINAA VANGUARDA ARGENTINAA VANGUARDA ARGENTINAA VANGUARDA ARGENTINA

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2ª PARTE2ª PARTE2ª PARTE2ª PARTE

A IMAGEM NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓNA IMAGEM NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓNA IMAGEM NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓNA IMAGEM NA OBRA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN

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I. A VANGUARDA ARGENTINA

Allí estaba la gente de Florida, que representaba una inquietud, la búsqueda de nuevas formas expresivas. […] Igualmente respetable era la inquietud social del grupo Boedo. Ambos son dos grupos interesantes de la pequeña historia literaria porteña. Raúl González Tuñón

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II. RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, O CAMINHADOR

Corto sueño y larga andanza en constante despedida; todo nos falta en la vida, todo, menos la esperanza. Raúl González Tuñón

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III. A IMAGEM SURREALISTA

Yo traigo la palabra, el sueño y el juego de lo inconsciente, lo cual quiere decir que yo trabajo con toda la realidad

Raúl González Tuñón

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IV. A IMAGEM DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

Raúl, si el cielo azul se constelara sobre sus cinco cielos de raúles a la Revolución sus cinco azules como cinco banderas entregara. Hombres como tú eres pido para amontonar la muerte de gandules, cuando tú como el rayo gesticules, y como el rayo al rayo des la cara. Enarbolado estás, como el martillo, enarbolado truenas y protestas, enarbolado te alzas a diario y a los obreros de metal sencillo invitas a estampar en turbias testas relámpagos de fuego sanguinario.

Miguel Hernández Madri, dezembro de 1935.