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ACTAS DEL X ENCUENTRO DE CIENCIAS COGNITIVAS DE LA MÚSICA Alejandro Pereira Ghiena, Paz Jacquier, Mónica Valles y Mauricio Martínez (Editores) Musicalidad Humana: Debates actuales en evolución, desarrollo y cognición e implicancias socio-culturales. Actas del X Encuentro de Ciencias Cognitivas de la Música, pp. 807-818. © 2011 - Sociedad Argentina para las Ciencias Cognitivas de la Música (SACCoM) - ISBN 978-987-27082-0-7 O PIANO MESTIÇO Composição para piano a partir de matrizes do nordeste do Brasil SÉRGIO RICARDO DE GODOY LIMA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO Resumo O estado de Pernambuco, sito à região nordeste do Brasil, apresenta um grande número de manifestações da cultura popular que permanecem em atividade até hoje. O piano é instrumento que também tem história no panorama musical desse estado, mas não se evidencia, em sua linguagem, uma linha de desenvolvimento tendo como base as matrizes musicais locais. Esse trabalho inicialmente discorre sobre aspectos históricos e estilísticos característicos de uma dessas matrizes: o maracatu nação. Em um segundo momento apresenta uma rápida abordagem histórica sobre a música para piano em Pernambuco junto com uma breve análise de dois maracatus para piano. Finalmente, discute os processos criativos envolvidos na elaboração de uma obra originail por meio de registros em partitura e gravações de áudio. Abstract Pernambuco’s State, located in Brasil's northeast, has a cultural life strongly based on folk movements, and there is a large number of them in activity by now. The piano is part of the music history of that State, but there aren’t evidences of a particular language developed on this instrument based on local musical sources. First this work discusses about historical and stylistic aspects of one of these sources: the maracatu nação; then it gives an historical overview of piano music in Pernambuco and a short analyses of two maracatus for piano. Finally, it discusses the creative processes envolved in the elaboration of one new composition for piano with accompaniment, supported by the use of scores and audio recordings. Introdução O presente trabalho descreve a pesquisa que deu subsídios para a composição de obras inéditas de música popular com base em matrizes da cultura popular da região nordeste do Brasil, mais especificamente no estado de Pernambuco. Este resumo se divide em duas partes: A primeira apresenta o contexto em que se inserem as composições, uma explanação suscinta sobre a matriz escolhida, o maracatu, concluindo com um breve histórico sobre o piano em Pernambuco. Em seguida comenta aspectos estilísticos de dois maracatus originais para piano dos compositores Capiba e Egberto Gismonti. Na segunda parte apresenta uma obra com piano composta sobre a matriz em estudo. Neste caso estão incluidas partituras no modelo melodia com cifras e partitura guia com elementos característicos destacados. No presente trabalho, optou-se por uma abordagem que inclui dois vieses: um histórico e outro artístico. Junto as referências bibliográficas estão indicadas outras, discográficas e por meios eletrônicos, que certamente contribuem para um maior aprofundamento sobre o assunto. O objetivo deste trabalho não é o estudo histórico aprofundado sobre o maracatu e a linguagem da música popular com piano, mas sim a identificação de elementos musicais que se mostrem presentes nos dois ambientes, e que sirvam de subsídios composicionais. Neste intuito foram utilizados procedimentos e recursos típicos de uma análise mista descritiva e fenomenológica, foram utilizadas partituras tradicionais e gravações de grupos de maracatu tradicionais e de música popular com piano. Ao final, estão aquí apresentadas uma das composições populares originais resultantes deste processo.

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ACTAS DEL X ENCUENTRO DE CIENCIAS COGNITIVAS DE LA MÚSICA

Alejandro Pereira Ghiena, Paz Jacquier, Mónica Valles y Mauricio Martínez (Editores) Musicalidad Humana: Debates actuales en evolución, desarrollo y cognición e implicancias socio-culturales. Actas del X Encuentro de Ciencias Cognitivas de la Música, pp. 807-818. © 2011 - Sociedad Argentina para las Ciencias Cognitivas de la Música (SACCoM) - ISBN 978-987-27082-0-7

O PIANO MESTIÇO

Composição para piano a partir de matrizes do nordeste do Brasil SÉRGIO RICARDO DE GODOY LIMA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

Resumo O estado de Pernambuco, sito à região nordeste do Brasil, apresenta um grande

número de manifestações da cultura popular que permanecem em atividade até hoje. O piano é instrumento que também tem história no panorama musical desse estado, mas não se evidencia, em sua linguagem, uma linha de desenvolvimento tendo como base as matrizes musicais locais. Esse trabalho inicialmente discorre sobre aspectos históricos e estilísticos característicos de uma dessas matrizes: o maracatu nação. Em um segundo momento apresenta uma rápida abordagem histórica sobre a música para piano em Pernambuco junto com uma breve análise de dois maracatus para piano. Finalmente, discute os processos criativos envolvidos na elaboração de uma obra originail por meio de registros em partitura e gravações de áudio.

Abstract Pernambuco’s State, located in Brasil's northeast, has a cultural life strongly based on

folk movements, and there is a large number of them in activity by now. The piano is part of the music history of that State, but there aren’t evidences of a particular language developed on this instrument based on local musical sources. First this work discusses about historical and stylistic aspects of one of these sources: the maracatu nação; then it gives an historical overview of piano music in Pernambuco and a short analyses of two maracatus for piano. Finally, it discusses the creative processes envolved in the elaboration of one new composition for piano with accompaniment, supported by the use of scores and audio recordings.

Introdução O presente trabalho descreve a pesquisa que deu subsídios para a composição de obras

inéditas de música popular com base em matrizes da cultura popular da região nordeste do Brasil, mais especificamente no estado de Pernambuco. Este resumo se divide em duas partes:

A primeira apresenta o contexto em que se inserem as composições, uma explanação suscinta sobre a matriz escolhida, o maracatu, concluindo com um breve histórico sobre o piano em Pernambuco. Em seguida comenta aspectos estilísticos de dois maracatus originais para piano dos compositores Capiba e Egberto Gismonti. Na segunda parte apresenta uma obra com piano composta sobre a matriz em estudo. Neste caso estão incluidas partituras no modelo melodia com cifras e partitura guia com elementos característicos destacados.

No presente trabalho, optou-se por uma abordagem que inclui dois vieses: um histórico e outro artístico. Junto as referências bibliográficas estão indicadas outras, discográficas e por meios eletrônicos, que certamente contribuem para um maior aprofundamento sobre o assunto.

O objetivo deste trabalho não é o estudo histórico aprofundado sobre o maracatu e a linguagem da música popular com piano, mas sim a identificação de elementos musicais que se mostrem presentes nos dois ambientes, e que sirvam de subsídios composicionais. Neste intuito foram utilizados procedimentos e recursos típicos de uma análise mista descritiva e fenomenológica, foram utilizadas partituras tradicionais e gravações de grupos de maracatu tradicionais e de música popular com piano. Ao final, estão aquí apresentadas uma das composições populares originais resultantes deste processo.

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O maracatu nação

Aspectos históricos O maracatu nação é uma manifestação tradicional com origens na cultura afro descendente

do estado de Pernambuco, na região nordeste do Brasil. Surgiu durante o período do regime de escravidão, que oficialmente terminou em 13 de maio de 1888. Anteriormente o maracatu costumava ser identificado como herdeiro direto das Instituições de Reis de Congo e Angola, tipo de cerimonial existente no período colonial brasileiro em que integrantes das comunidades negras de escravos eram batizados reis e rainhas de uma nação e supostamente passariam a gozar de determinada representatividade sobre os demais escravos diante do governo colonial. Eram realizadas as Coroações de Reis de Congo e Angola, ou as chamadas Coroação de Reis Negros, nas igrejas de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito no Recife, hoje capital do estado de Pernambuco.

Os modelos de cortejos de maracatus que hoje mostram-se assemelhados aos das procissões católicas são mais um indício provável desse processo. Como e porque houve essa assimilação do modelo de cortejo? O pesquisador Roberto Benjamim propõe:

“Poder-se-iam estabelecer três hipóteses confluentes e não-excludentes para a origem dos cortejos carnavalescos. A primeira delas fiel à licença do período carnavalesco, é a da aglutinação, neste festejo de manifestações populares ocorrentes em outras datas festivas e que foram proibidas ou perderam a sua função em razão das mudanças sociais. A segunda hipótese é a da cópia do modelo, de natureza hegemônica, imposto para as procissões e outros cortejos cívicos que, por imitação, foram apropriados e introduzidos no carnaval ou também impostos pelo Poder Público às agremiações carnavalescas. A terceira é a da caricatura, ou seja, no espírito do mundo pelo avesso, nos dias da licença carnavalesca, o povo pode caricaturar o modelo solene das elites... Pode-se afirmar que o maracatu trouxe para o carnaval o modelo processional do cortejo de reis negros que acompanhava os rituais da Festa do Rosário.” (Benjamin 2002, p. 45)

Lima (2008) defende a não linearidade histórica do maracatu como descendente unicamente dessa tradição e vai além ao afirmar que não é possível localizar suas origens uma vez que até hoje só foi encontrado um único registro documental conhecido sobre maracatu de autoria de Pereira da Costa, pesquisador que viveu na virada do séc. XIX para o XX; e ainda, todos os escritos conhecidos existentes do séc. XX apresentariam discordâncias entre si ou apenas repetem de maneira unânime esse relato anterior mais antigo. Para reforçar ainda mais sua tese, ele identifica diversas outras influências sobre o maracatu e propõe que este não teria origem única.

Existe uma outra manifestação de origens distintas chamado de maracatu rural ou de baque solto mas que não guarda nenhuma relação com os maracatus nação. Ainda não se conhece as razões do porquê desta confusão entre denominações de folguedos distintos.

O que é sabido é que hoje o que se chama de maracatu nação se refere a um grupo organizado com origens em agrupamentos de escravos, chamados nações, mas que tem passado por inúmeras mudanças em suas tradições no correr de sua história. É possível relacionar do ponto de vista histórico os seus costumes a práticas religiosas. Anteriormente os historiadores associavam a existência dos maracatus diretamente a rituais de crenças afro descendentes locais como o candomblé. Hoje se discute a veracidade ou a permanência dessa associação. Lima (2008), afirma que nos últimos vinte anos não encontrou nenhuma ligação de qualquer ordem de nenhuma nação de maracatu com qualquer terreiro na região, e encontrou diversos integrantes do maracatu pertencentes a outras denominações religiosas como a jurema por exemplo.

Desde 2001, o percussionista Naná Vasconcelos tem reunido várias dessas nações de maracatu para desfilarem na sexta-feira que antecede o carnaval, a noite de abertura do carnaval do Recife. Este momento de celebração mais festivo, digamos assim, segue o rastro de um outro encontro que ocorre há décadas. É a Noite dos Tambores Silenciosos: à meia-noite da segunda para a terça-feira de carnaval no Pátio do Terço, no centro da cidade de Recife há uma reunião de maracatus nação quando todos apresentam seus cortejos para homenagear os antepassados negros escravos mortos na escravidão.

O maracatu nação é também chamado maracatu de baque virado. Isto deve-se ao toque executado pelos tambores menores: os repiques ou viradores. Esses tambores pequenos chamados de viradores, são encubidos de executar uma espécie de improviso com um ritmo mais frenético e subdividido que em conjunto com os demais ritmos dos meiões e dos marcantes resulta na textura polirrítmica característica de um maracatu. Os padrões rítmicos da base percussiva são chamados de baque, e os solos são chamados de viradas. Os padrões de baques e viradas de um maracatu são dois dos elementos idiomáticos mais fortes que compõem a identidade musical de uma nação.

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Aspectos musicais A música do maracatu apresenta diversas características que apontam para um caráter

religioso, nitidamente de características ritualísticas, responsorial apresenta certa rigidez estrutural e uso repetitivo de padrões rítmicos, melódicos e de forma.

Alguns esclarecimentos são necessários antes de se entrar numa descrição um pouco mais pormenorizada de alguns aspectos musicais do gênero em questão. Foi delimitada uma amostra com vinte e cinco fonogramas de toadas de maracatus nação tradicionais gravados em estúdio e mais três fonogramas de gravações ao vivo. Procedeu-se a escuta seguida de representação simbólica em partitura tradicional. É importante ressaltar que apesar de ser reconhecida a problemática de se utilizar partituras tradicionais para a representação de músicas de tradições não européias, foi esta a interface escolhida posto que o objetivo primordial da pesquisa era a identificação de elementos característicos estruturais que pudessem servir de base para a composição de repertório de música popular para piano, este sim instrumento temperado de origem européia.

O fato de a maioria desses fonogramas pertencerem a CD's comerciais lançados pelos próprios grupos, pode levantar questionamentos a respeito da própria interpretaçao dos grupos em estúdio. Aspectos como elaboração de arranjos e a duração de cada faixa podem ter sido claramente influentes na execução das toadas. Por outro lado há de se considerar o registro de autoria da maioria das toadas, salvo as de domínio público, assim indicadas. Ambos os casos foram contempoladas, foram dispensadas de análise apenas adaptações de todas de compositores que não integram os grupos.

Aspectos rítmicos Os padrões rítmicos são chamados de baques, são grupos rítmicos com um compasso de

extensão que se repetem por seções inteiras. Ocorre também estruturas maiores de quatro compassos que formam um ciclo rítmico onde o último compasso apresenta uma pequena variação. O andamento é andante, com possibilidades de ser acelerado durante a execução. É comum se escrever os ritmos de maracatu em compassos quaternários e com a semínima como unidade de tempo, com base nessas considerações a figura 1 ilustra um exemplo de ciclo rítmico de uso comum.

Figura 1. Exemplo de ciclo rítmico de quatro compassos.

Aspectos morfológicos Obedece a uma estrutura estrófica cujas melodias, chamadas de toadas, costumam, hoje,

ser puxadas pelos mestres e não mais pelas rainhas. A toada, pode ser de seção única, com ou sem introdução, ou binária AB com ritornello em cada seção (Cesar 2003).

A razão da outra denominação do maracatu nação, chamado maracatu de baque virado, deve-se ao toque executado pelos tambores menores agudos: os repiques ou viradores. Os tambores dos maracatus também são chamados de alfaias e são ordenados em três tamanhos e afinações. As alfaias menores, os viradores, geralmente executam um ritmo mais frenético e cheio de subdividisões que em conjunto com os demais ritmos dos médios (meiões) e graves (marcantes) geram a textura polirrítmica característica de um maracatu. Quando o mestre demanda que os tambores agudos executem os solos, durante a música, é dito que estão virando, fazendo as viradas. A virada em um maracatu é uma espécie de clímax na apresentação do grupo, e caracteriza-se como um dos elementos idiomáticos que compõem a identidade musical dessa manifestação que assim também é denominado maracatu de baque virado.

Aspectos melódicos No universo delimitado foram encontradas melodias predominantemente em estruturas

maiores, algumas com inflexões modais, e em menor quantidade em estrutura menor. A intenção entoativa mais do que a intensão da afinação precisa é nítida, as melodias se apresentam sobre estruturas maiores e menores próprias do universo modal e tonal. Foram encontrados exemplos principalmente com o uso de escalas maiores, menores e modais principalmente mixolídia e eólia.

Ocorre também o deslocamento do início rítmico de uma frase. O tema da toada pode ser apresentado como tético na chamada da toada e na primeira exposição completa, contudo na volta, pode ocorrer que o mestre puxador inicie o tema numa posição intermediária do compasso, ou seja em um terceiro tempo, o que tecnicamente é um deslocamento do início rítmico para o terceiro tempo, mas o grupo parece não se incomodar e segue tocando normalmente.

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Instrumentação A instrumentação de um maracatu nação, além das vozes, é composta exclusivamente por

intstrumentos da família da percussão. Segue uma lista dos principais instrumentos: Ganzá – Dentre os maracatus tradicionais só era utilizado pelo Nação Estrela Brilhante;

Guerra-Peixe associa isto ao fato deste maracatu ter um baque mais rápido do que os outros (Guerra-Peixe 1984). Hoje esse instrumento está bem mais difundido, e é utilizado para executar as subdivisões repetidas, geralmente acentuando o último quarto de cada tempo.

Abê ou xequerê – Executa ritmos com uma colcheia na primeira metade do tempo e na segunda metade, subdivisões de quarto de tempo com acentuação nos dois últimos, costuma atuar junto aos ganzás. Dentre os grupos de maracatus tradicionais, apnas o Maracatu Estrela Brilhante utilizava abês e ganzás.

Gonguê – O gonguê é um idiofone feito de ferro fundido e geralmente possui uma única campânula de grande dimensões. É tocado com uma baqueta explorando-se suas sonoridades agudas e graves, tocando-se mais próximo da boca da campânula (som grave), ou próximo à haste (som agudo). O gonguê tem um toque fixo para cada toada, geralmente não se deve modificar o ritmo iniciado. Este toque é como a clave na música cubana, e é mantido pelo instrumento durante todo o tempo de cada toada, só variando de uma música para outra, se for o caso. O gonguê, dentro do maracatu, tem o papel fundamental de manter a marcação para as variações dos baques e virações também, como um toque de um metrônomo.

Tarol/Caixa-de-Guerra – O tarol também é chamado de caixa mas há uma tendência de se chamar assim somente ao tarol industrializado. A caixa-deguerra é um pouco maior, na sua altura, e tem menos esteira, o que resulta num timbre menos metálico. Ambos são usados mantendo um toque continuamente, mas existe um certo espaço para variações rítmicas, sem contudo quebrar o baque. Devido ao timbre médio/agudo, fazem a ligação entre o gonguê e os instrumentos graves preenchendo bem o espaço com marcações rítmicas subdivididas.

Alfaias –Também chamadas de zabumbas, as alfaias são organizadas segundo sua afinação, em tambores graves, médios e agudos. O toque mais característico de um maracatu nação é o chamado baque de marcação. As alfaias responsáveis continuamente por essa pulsação são chamadas de marcantes, e são as mais graves. São consideradas as mais importantes e basta dizer que tradicionalmente são as únicas que são batizadas, assim como o tocador desse tambor precisava ser também considerado homem de boa reputação na comunidade. Isto acontece devido a essência religiosa do maracatu. A tradição diz que antes da primeira vez este instrumentista teria de passar por um ritual de iniciação em terreiro de confiança. As demais alfaias são o meião (médio) e o repique ou virador, o mais agudo do grupo.

O naipe de tambores fica assim constituído: grave com o marcante fazendo o baque básico quase imutável, o meião com som médio que preenche as convenções determinadas e o virador que vira ou sola, que dá o nome de maracatu de baque virado ao maracatu nação. O mestre do maracatu rege o grupo com um apito.

Os baques e toques característicos do maracatu variam muito de nome e de interpretação de um grupo para outro, o “baque de marcação” por exemplo está representado com uma variação opcional no seu quarto compasso. No caso do maracatu nação ou de baque virado, essa “virada”, ou “viração” dos repiques representa um momento em que esses instrumentos ficam executando livremente as virações até quando o mestre der o sinal com o apito, para que voltem a marcar os baques ou passem para outro momento na música. A figura 2 apresenta o baque de marcação enquanto o toque virado pode ser visto na figura 3.

Figura 2. Baque de marcação.

Figura 3. Exemplo de toque virado.

O termo virada é de uso comum na música popular, usado por bateristas para designar uma pequena frase, variante do padrão de condução e marcação executado em uma música ou em parte dela. Esta variação funciona como introdução, ou como ligação entre duas partes de uma música ou ainda como uma frase rítmica conclusiva. Geralmente é curta durando um ou dois compassos no

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máximo. No maracatu de baque virado a virada ou viração é o momento onde os tambores fazem subdivisões improvisadas sobre a base de marcação.

Cada maracatu tem sua identidade musical demarcada por sua formação instrumental, seus padrões de baques, andamentos, aspectos de dinâmica, divisões rítmicas, estilos de execução das toadas e dos baques e como foi dito, suas formas de viradas, e ainda, a denominação e o estilo de execução dos baques é algo absolutamente particular de uma nação. Alguns dos toques encontrados estão ilustrados nas figuras 4 a 7.

Figura 4. Exemplo de baque de alfaia de marcação.

Figura 5. Exemplo de baque de alfaia meião.

Figura 6. Exemplo de outra variação de baque de meião.

Figura 7. Exemplo de toque do gonguê.

O piano e o maracatu

Breve histórico do piano em Pernambuco O piano teria chegado em Pernambuco após a abertura dos portos a nações amigas, por

um decreto do Príncipe Regente D. João, em 1808. O registro mais antigo que se conhece sobre a chegada do piano é de autoria de Henry Koster, viajante que em seu “Viagens ao Nordeste do Brasil” conta que em agosto de 1810, esteve em festa na casa de um seminarista em Olinda, embalada por um professor de música que tocou um piano noite adentro que só foi interrompido a pedidos dos dançarinos cansados. A edição de músicas para piano já funcionava em meados do séc. XIX, no Recife. Desde 1850 quando foi inaugurado o principal teatro de Pernambuco, o Teatro de Santa Isabel, em Recife, fez-se o grande cenário do piano em Pernambuco, que sempre foi associado a bons hábitos e costumes das boas famílias de Pernambuco. Cada casa nobre tinha de possuir esse instrumento e mesmo templos e igrejas católicas também passaram a possuir um. Desde então começam a surgir compositores para esse instrumento tais como Mestre Joaquim Tomás da Cunha Lima Cantuária, Francisco Libânio Colás, Euclides de Aquino Fonseca, Victor Augusto Nepomuceno e seu filho Alberto Nepomuceno que morou no Recife de 1872 a 1884, voltando ao seu estado de origem, o Ceará, após a morte de seu pai e depois seguindo viagem para se estabelecer no Rio de Janeiro onde veio a falecer em 1920 (Silva 1987).

Nas duas primeiras décadas do século XX, funcionaram muitos cineteatros no Recife, onde o piano aparecia junto a pequenas orquestras. Este período áureo perdurou até o declínio do cinema mudo quando, em um primeiro momento, cedeu lugar ao rádio e a radiola nas residências. No entanto, com o advento do rádio, principalmente a partir da década de 1930, tem início uma nova fase para o piano: nesta época começam a surgir orquestras nas rádios, onde ele era incluído. Nomes como Guerra-Peixe, Nelson Ferreira, Hermeto Pascoal, Clóvis Pereira, dentre outros, fizeram parte dessa história como instrumentistas, compositores, arranjadores ou regentes de orquestras. Com a chegada da televisão na década de 1960, o piano permaneceu ainda em atividade como integrante da orquestra, mas só até meados da década de 1970 quando houve o declínio da TV em Pernambuco.

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De todo esse movimento só restaram, a partir da década de 1980, a participação de pianistas isolados em bares, casas noturnas e restaurantes. Em 1980 foi realizado o I Ciclo de Música Pernambucana para Piano, idéia original do musicólogo e compositor Padre Jaime Diniz, e foram realizados quatro concertos em maio desse mesmo ano no Teatro de Santa Isabel apresentando música popular, de teatro e de salão para piano.

Na ocasião, foi realizada uma pesquisa envolvendo mais de 100 anos de história desse instrumento em Pernambuco. Foram encontradas antigas composições editadas pela Casa Préalle, de antigos compositores que se juntaram às novas obras de Capiba, Nelson Ferreira e Marlos Nobre. O sucesso desse empreendimento levou à realização de mais duas edições desse evento e em 2000 foi produzida uma regravaçãoram de parte do repertório desse I Ciclo com a participação de dois dos pianistas que participaram originalmente nos concertos: Elyanna Caldas e Marco Caneca.

É interessante observar o registro dos mais variados estilos: valsa, noturno, serenata, gavota, polca, tango, pas de quatre, one-step, foxtrot, fox-blue, choro, quadrilha, maxixe, shimmy, marcha carnavalesca mas poucos são de origem pernambucanas como o frevo canção e o maracatu nação. O Padre Jaime Diniz comenta sobre a chegada dos estilos estrangeiros no início do século XX no estado, e da adoção desses estilos por parte dos compositores:

“Gilberto Freyre, em páginas de sua mocidade (1932), dava a impressão de um tanto desolado em face a quase ausência de música no Recife. De um Recife que aos visitantes parecia ser uma cidade sem música, numa impressão primeira. Ressaltava a importância da música, da nossa música. Referia-se à chamada Jazz Music que acompanha as danças modernas. Acreditava, o então jovem ensaísta, que a verdadeira música ‘refina’, mas a jazzística ‘deve embrutecer’. Era a década de vinte, aberta às importações musicais dos States. O piano tem a sua culpa na descaracterização da nossa música e das nossas danças. Acredito que muita importação musical americana entrou, em Pernambuco, pelo piano, ou com sua colaboração. Na década de 20, e depois da de 30, já se conhecia Onestep, Shimmy, Fox-trot, ritmos e danças norte-americanos. (E) até pernambucanos, como Alfredo gama, Argentina Maciel, Sérgio Sobreira, Nelson ferreira, Valdemar de Oliveira, entre muitíssimos outros, deixaram-se rodopiar nas novas ondas das danças estrangeiras. Uma inundação de foxes – de shimmys, e sei lá mais o quê.” (Silva 1987, p. 80)

Os maracatus para piano, encontrados, pouco se assemelham ao maracatu nação conforme conhecemos hoje. O compositor Capiba compôs um chamado “É de Tororó” cujo tema guarda poucas semelhanças estilísticas com uma toada tradicional. vista melódico, que na gravação da pianista Elyanna Caldas (Caldas s/d) foram mais ressaltadas com o apoio de um tambor e um agogô. A pianista Josefina Aguiar também tem uma gravação desta música ao vivo (Aguiar s/d), em que podemos sentir o peso dos acordes com uma sonoridade que faz lembrar tambores. O processo de estilização dos maracatus pode ter se iniciado deste antes, segundo relatos de 1938: “O maracatu escasseou e já não tinha mais o esplendor de dantes. Hoje está na moda. Dá que falar. Entrou até nos salões e já o macaqueiam a pretexto de estilizá-lo...” (Sette 1958, p. 328).

Câmara (1986), afirma que Capiba acreditou ser possível lançar os maracatus nos salões mas segundo ele, não funcionou. Ele afirma que usou mais o lamento dos negros do que o batuque e conclui dizendo acreditar que ao povo estava menos interessante o sentimentalismo negro e por isso o maracatu foi expulso dos salões. Ele reconhece também que posteriormente ainda compôs alguns mais ritmados. No entanto a intenção era assumidamente lidar com a melodia o que é curioso uma vez que a levada dos tambores parece ser a característica fundamental dessa manifestação.O resultado soa como uma polca que seria a base rítmica para o lamento expresso pela melodia.

Algumas questões podem ser levantadas: Por que a rítmica dos tambores graves, a essência da marcação rítmica de um maracatu de baque virado, não utilizada como elemento característico? Seria por implicar em uma maior dificuldade técnica de execução e de escuta? Seria uma mera opção estética?

O fato é que até hoje não existe uma linha de desenvolvimento da linguagem pianística a partir de qualquer uma das matrizes pernambucanas. Existe portanto uma lacuna quanto a composições para piano solo ou em grupo com elementos de matrizes pernambucanas.

O piano e o maracatu

O ‘Maracatu’ de Egberto Gismonti, uma breve ilustração Pode-se encontrar exemplos de maracatus em obras de Egberto Gismonti, Hermeto

Paschoal, Benjamim Taubkin, Jovino Santos Neto e Sérgio Santos e muitos outros, geralmente como alusões ao gênero. É comum a existência de arranjos com elementos estilísticos típicos do maracatu mas raramente alguma composição que revele o maracatu de maneira essencial.

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O caso do Maracatu de Egberto Gismonti é importante e ilustra bem o contexto da música popular. Desde a primeira escuta é nítida a intenção do compositor em retratar alguns aspectos característicos, resulta em uma composição de caráter fortemente descritivo. Inicia com uma linha oitavas que persiste como idéia fixa por toda a peça, pode facilmente ser uma alusão ao ritmo constante do gonguê. O padrão rítmico-harmônico vigoroso na mão esquerda retrata objetivamente o conjunto polirrítmico dos tambores. O uso relativamente dramático de contrastes de dinâmica com indicações para crescendo e diminuendo parece evocar a passagem de um cortejo. A melodia é monotemática todo em colcheias, sobre a escala de Si menor natural, e a base harmônica é essencialmente construída sobre três acordes o Im, o VIm7(b5) e o Vsus7. Em um momento posterior na peça o compositor desenvolve uma rearmonização passando pelo ciclo das quintas e há sempre um trecho de caráter improvisatório também, mas bem silencioso, uma reverência talvez aos solos dos alfaias viradores.

Dentro do breve espaço dessa comunicação, esses exemplos apontam uns casos interessantes de utilização do maracatu como gênero básico para peça musical solo para piano, ou pelo menos com destaque para esse instrumento no universo da música popular. Verifica-se que persiste essa grande escassez de composição para piano a partir dos gêneros tradicionais locais em Pernambuco ainda permanece.

No presente trabalho de composição optei por utilizar uma formação tradicional em música popular instrumental que é o trio piano, baixo e bateria. Esta opção se deu por razões artísticas de identificação do autor desta pesquisa para com esta formação.

Introdução aos processos criativos A composição original A Estrela resultante dos estudos sobre o maracatu será utilizado

como ilustração parcial dos resultados dessa pesquisa. Inicialmente será apresentado um texto sobre o processo criativo elencando os aspectos musicais mais importantes seguido de breve ficha analítico-descritiva e figura com partituras no formato de melodia e cifras e partitura guia com comentários. desde o primeiro momento ou(vi) um maracatu, as baianas dançando, a umbrela (guarda-sol) no sobe e desce durante o cortejo. São elementos que estimulam imagens em minha mente.

A representação gráfica da harmonia segue o modelo proposto (Chediak 1984) para a classificação dos acordes e sistema de cifragens. Uma tabela resumida está apresentada logo abaixo com todos os tipos de acordes usados nas composições, tomando o Dó Maior (C), como referência:

• C C7(#5)

• Cm C7(9)

• C° C7(b9)

• C6(9) C7(#9)

• C7M C7(#11)

• C7M(#11) C7(b13)

• Cm(7M) C7(13)

• Cm7(b5) C7(sus4)

• Cm7(11) C7(alt)

A estrela O poema de mesmo nome de autoria de Manuel Bandeira sugeriu a melodia.

“Vi uma estrela tão alta ! Vi uma estrela tão fria ! Vi uma estrela luzindo Na minha vida vazia Era uma estrela tão alta ! Era uma estrela tão fria ! Era uma estrela sozinha Luzindo no fim do dia Por que da sua distância Para a minha companhia Não baixava aquela estrela ? Por que tão alta luzia ? E ouvi-a na sombra funda Responder que assim fazia Para dar uma esperança

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Mais triste ao fim do meu dia” “Vi uma estrela tão alta”

Figura 8. Início da melodia de “A Estrela”.

A leitura em voz alta desses versos, naturalmente carrega o sotaque de quem os lê. As inflexões da fala fazem-se evidentes. A investigação desta sonoridade sob a ótica de aspectos musicais foi a chave para esta composição. Foi adotado um processo composicional de um cancionista. Aspectos rítmicos como duração, dinâmica e agógica ficam claramente demarcados soando com sotaque local. As inflexões melódicas denotam uma relação interna com as inflexões das freqüências da própria fala do leitor.

Neste caso a leitura da primeira palavra, Vi, por exemplo, era sempre pronunciada unida por elisão ao artigo uma, resultando em Vi’uma. Caso a acentuação recaísse sobre a palavra seguinte, estrela poderíamos levantar a hipótese de que o objeto de admiração do poeta seria o centro de sentido do verso. Aliás pode ser até o interesse do poeta mas a melodia como foi composta não favorece a isso. Ao compositor é significativo o fato de ter visto uma estrela. Assume-se como centro da atenção. A palavra “estrela” passa em meio a um motivo melódico descendente e sua sílaba mais forte tre fica com a nota mais grave do fragmento ainda que seja em parte forte do tempo. Acontece que em um maracatu é característico o acento no segundo quarto de tempo, dos terceiro e quarto tempos. O resultado é que tão logo canta-se tre segue-se a sílaba la arremessando a atenção e percepção para adiante, para o advérbio tão.

A sílaba tão passa rápido mas de maneira marcante pelo último quarto de tempo do compasso. A própria característica explosiva da consoante t auxilia sua dicção e por conseguinte sua percepção da sílaba.

O verso termina com o adjetivo alta que cai na primeira parte do primeiro tempo do compasso seguinte. Devido a brevidade desta comunicação apenas o primeiro verso foi escolhido para ilustrar as questões de ordem rítmica envolvidas no jogo entre entoação e melodização de um texto. No maracatu os deslocamentos de acentuação são constantes em nível de tempo, agindo sobre a sensação métrica do compasso, e dentro da unidade de tempo com efeitos de síncope.

Figura 9. Rei e rainha do Maracatu Piaba de Ouro com o guarda-sol ao fundo.1

1 Rei e Rainha do Maracatu Piaba de Ouro (s.d). En: Karina Soares de Melo – Espetáculos Populares de Pernambuco. 2ª ed. Recife: Cepe 1998. p.133.

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Esta sensação de deslocamento remete a uma imagem clara que vem da dança, mais especificamente sobre o movimento de subida e descida do guarda-sol do maracatu. Ele é feito com duplo forro de cetim com alguns enfeites pendurados. É grande o suficiente para cobrir o rei e a rainha durante seu desfile. Durante a dança é movimentado para cima e para baixo. Ocorre que ao subir a haste, o pano de cetim costurado à armação, também por dentro como um forro interno que fica ensacado, sobe atrasado em relação a haste, quando a haste paira no ar o cetim continua seu movimento interno e toca no teto (interno) do guarda-sol. Esse movimento apresenta uma sensação de atraso. Esses retardos nos movimentos na dança, funcionam como co-relatos visuais e tácteis do que é na verdade a estrutura rítmica do maracatu. Num maracatu, a execução de sua célula rítmica deve se dar como se o primeiro quarto de tempo fosse o impulso de movimento para produzir o som que só viria ocorrer no segundo quarto de tempo, as notas do primeiro quarto de tempo seriam como notas fantasmas.

Por outro lado vemos que os instrumentos de percussão agudos tem pouca variação, os médios tem um pouco mais, mas o destaque fica para os graves. É mais ou menos o oposto do samba e do frevo por exemplo, então no piano privilegiou-se o baixo movido enquanto melodia e harmonia permanecem com rítmicas mais regulares.

Guerra-Peixe (1980) relatou as dificuldades com a percepção dos baques, quando morou no Recife na década de 50:

“Só depois de quatro ou cinco meses ouvindo o “baque virado” é que conseguimos entendê-lo (dizemos entendê-lo) para depois anotálo...Infelizmente, arranjadores recifenses (salvo Clóvis Pereira) ainda não conseguiram ajustar o toque às melodias de compositores que se inspiraram no Maracatu...No entanto, em setembro de 1980,...verificamos sua execução perfeitamente natural.” (Guerra-Peixe 1980)

Aspecto melódico A linha melódica é tonal no que diz respeito a existência de centro tonal mas se estabelece

sobre a escala menor natural, em nenhum momento fazendo uso da sensível mas sempre cadenciando pela sétima um tom abaixo.

Para a mão esquerda optei por fazer um movimento de marcação como os alfaias graves e na região central entre o baixo e a melodia alternei entre um contracanto melódico como os meiões num maracatu ou com acordes de apoio como no jazz, mantendo uma atividade rítmica mais regular, como o papel de um gonguê.

De forma intuitiva desenvolvi essa melodia com forte direcionamento descendente no primeiro tema na seção A. Segundo Paz (1994), o ducto melódico é descendente, principalmente e provém em grande parte de das escalas pentatônicas. Duas outras características são relevantes na construção da melodia: o caráter cíclico do ritmo da melodia o deslocamento da acentuação rítmica. Sobre o primeiro aspecto o etnomusicólogo Mukuna (2000) afirma que a presença de ciclos que se repetem representa inegável herança africa internalizada na forma do samba. No maracatu tradicional e neste em análise, este aspecto me pareceu adequado como parâmetro analítico.

A segunda característica diz respeito ao sentido de forte e fraco com relação às notas e suas alturas (freqüências) mais do que com uma acentuação dinâmica que ocorre com os instrumentos de percussão de um maracatu. O uso da diferença de alturas como recurso de acentuação foi largamente explorado na música barroca, por exemplo, em peças para cravo, uma vez que este instrumento não dispunha de ação mecânica que respondesse ao toque do instrumentista no que diz respeito a dinâmica. Por outro lado, quando a terminação de uma frase cai na terça ou na quinta do acorde, em lugar da tônica, o sentido de resolução pode ser um pouco relaxado o que Mário de Andrade havia chamado de fraqueza tonal (Paz 1994).

Essa última característica juntamente com o ritmo de A Estrela contribui para que a sensação de repouso, no primeiro tempo de cada compasso, se assemelhe a um acento métrico fraco. O que origina ou pelo menos sugere uma percepção invertida da acentuação métrica tradicional do compasso quaternário no maracatu nação.

O acompanhamento harmônico, à mão esquerda, funciona como numa seção rítmico-harmônica no jazz. Armação de acordes, construções harmônicas foram buscadas inicialmente na linguagem do piano popular, como sempre tentando traduzir a linguagem dos demais instrumentos para o piano. Tudo, no entanto, está o tempo inteiro envolto sujeito a uma recriação instantânea, ex neste caso surgiu no primeiro momento isento de avaliações críticas rítmicas, a partir do ritmo da fala.

Nesta composição, a definição de que seria um maracatu, se deu depois, consequência do ritmo da fala, do andamento, do sentido de uma condução agógica, para esse texto a cadência rítmica do maracatu foi a que pareceu mais adequada.

Nesta composição, a melodia surgiu a partir da entoação das alturas da própria fala, portanto, da escuta de uma outra performance, oral.

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Aspectos estruturais De maneira breve, sua tonalidade é de Si menor, escrito em métrica quaternária simples,

em forma ternária ABC, com a primeira seção A com 16 compassos, a seção B conta com 8 compassos e a C também com 8. Ao final há uma coda também com 8. Em A, a melodia é composta por três pequenas frases descendentes de mesma construção rítmica. Essas frases foram construídas sobre um motivo se repete durante toda a seção A. O ritmo é mantido mas há variação com a mudança dos graus nas três primeiras frases. A quarta frase é quase do mesmo tamanho das anteriores, mas apresenta variação no sentido do movimento melódico. do início da frase. Agora este movimento é ascendente e o ritmo de tercina, aliado ao término na nota si, a 11ª do acorde, promove um relaxamento de tensão.

Em B, a tessitura é expandida, o movimento permanece descendente nas três primeiras frases com inversão, também, apenas no início da quarta frase. A estrutura rítmica é bastante semelhante entre as duas primeiras frases.

A terceira frase possui um compasso completo com ritmo característico do toque do gonguê mas sobre a escala de sol dórico, apesar de a sexta não aparecer claramente. A quarta frase guarda uma semelhança com a última frase de A, quanto a aspectos de divisão rítmica e movimentação inicial ascendente, contudo termina no sétimo grau da escala menor natural de si. A diferença é que nesse momento, o lá é a nona aumentada do acorde de dominante, que em si gera uma tensão de preparação.

Por fim, em C, há mudanças com o uso de notas repetidas, com pouca variação de alturas na primeira frase em contraste com o maior movimento na segunda frase que apresenta como uma resposta a primeira. O ritmo básico adotado para a melodia em C é baseado no baque de martelo.

Figura 10. Toque usado na melodia da parte C de “A Estrela”, variante do baque de Martelo.

Figura 11. Partitura do maracatu A Estrela.

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A Coda, apresenta intervalos melódicos fragmentados que devem ser tocados sobre o baque de marcação com comentários rítmicos como toques de meião na região abaixo do dó central. No último compasso há o ataque com acorde anacrústico que tanto funciona como uma ligação para o começo como um final em suspensão. A figura 11 apresenta a partitura no formato melodia com cifras.

Conclusão O interesse pela Tradição tem crescido na história recente da música popular

pernambucana. Verifica-se uma presença mais constante de artistas e grupos tradicionais na mídia local e por outro lado constata-se a presença desta cultura tradicional como um dos elementos formadores da música popular feita hoje nesse estado (Guillen e Lima 2007). De forma mais notória, há por exemplo, por meio do movimento Mangue Beat na década de 1990, uma busca por processos de fusão entre a linguagem do pop/rock e a da chamada cultura de raiz.

Esse movimento vem na esteira de um processo anterior que data da década de 70 e 80 de pesquisa e desenvolvimento de uma linguagem em música e dança popular no Recife. Tal processo veio dar origem ao Balé Popular do Recife, que detinha pesquisas também na área de música popular nordestina e mais especificamente pernambucana, através de nomes como os integrantes da família Madureira, (Antônio, Antúlio e Antero). Este grupo, que tem André Madureira como um dos fundadores e que o lidera até hoje, surgiu a partir do Movimento Armorial que foi idealizado por Ariano Suassuna na década de 60 e que trabalha na perspectiva da criação de uma arte brasileira erudita com fundamentação na cultura popular.

Enfim, como resultado deste trabalho, estão apresentadas algumas reflexões que vem norteando os processos criativos do autor. Aqui foi abordado apenas um gênero e uma obra mas desde o início dessa investigação já são dezenas de trabalhos realizados. Não há, evidentemente, a pretensão de se resolver a problemática sobre a linguagem para piano em Pernambuco, mas de contribuir com essa busca ao tentar traduzir e resignificar essa fusão e profusão entre antigas e novas sonoridades que hoje ecoam pelas ruas do Recife.

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