Ricardo Bitun

Estudos de Religio, v. 26, n. 42 Edio Especial 63-82 2012 ISSN Impresso: 0103-801X Eletrnico: 2176-1078

Formas elementares da vida religiosa: apontamentos de uma abordagem

durkheimiana para compreenso da atualidade do fenmeno neopentecostal no Brasil

Ricardo Bitun*Joo Clemente de Souza Neto**

ResumoEste texto procura relacionar o pensamento de Durkheim, exposto em As formas ele-mentares da vida religiosa que ora completa cem anos e a mudana do mapa religioso, marcado pelo contnuo crescimento do neopentecostalismo no Brasil. Durkheim en-tende a religio como fato social que opera como fonte de coeso e integrao social na lgica da relao entre sagrado e profano; uma forma de despertar a esperana e fortalecer a solidariedade. Com o processo de modernizao social, novas linguagens e metodologias no campo da religio conseguem capturar e afetar as formas de ser, de pensar e de agir da sociedade brasileira. O neopentecostalismo no Brasil apresenta--se com o intuito de levar a mensagem do evangelho a uma sociedade abalada pelas decepes e fracassos dos sistemas econmicos e polticos. Para isso, emprega gestos, smbolos e linguagem persuasiva voltada subjetividade e emotividade que transitam entre o profano e o sagrado. Ao escrever As formas elementares da vida religiosa, Durkheim, de alguma maneira, resgata a relevncia do estudo das religies como um importante fenmeno social. Contrrio s tendncias dos clssicos da sociologia, ele aposta na crena e no pensamento religioso.Palavras-chave: religio; neopentecostalismo; profano e sagrado.

* Doutor em Sociologia pela PUC-SP, Coordenador de Teologia do Centro de Educao, Filosofia e Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Cefit) e professor no Pro-grama de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Universidade Presbiteriana Mackenzie em So Paulo. E-mail: [email protected]

** Programa de mestrado em Psicologia Educacional do Centro Universitrio FIEO. Professor do curso de Pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Consultor da Prattein. Membro do Instituto Catequtico Secular So Jos e da Associao Civil Gaudium et Spes (Ages). E-mail: [email protected]

64 Ricardo Bitun; Joo Clemente de Souza Neto


The elementary forms of religious life: notes from a Durkheimian approach to understanding the present neo-pentecostal phenomenon in Brazil

AbstractThis text seeks to relate Durkheims thought, exposed in The elementary forms of religious life that now completes one hundred years , and the change in the religious map, ma-rked by the continuous growth of neo-Pentecostalism in Brazil. Durkheim understands religion as a social fact that operates as a source of social cohesion and integration in the logic of the sacred-profane relation; a way of awakening hope and strengthening solidarity. With the process of social modernization, new languages and methodologies in the field of religion can capture and affect the ways of being, thinking, and acting of Brazilian society. Neo-Pentecostalism in Brazil aims at taking the Gospel message to a society shaken by the disappointments and failures of economic and political systems. To do so, it employs gestures, symbols, and persuasive words directed to the subjectivity and emotions that move between the profane and the sacred. In writing The elementary forms of religious life, Durkheim somehow recovers the relevance of the study of religion as an important social phenomenon. Contrary to the trends of sociologys classics, he bets on the religious belief and thought.Keywords: religion; Neo-Pentecostalism; sacred and profane.

Las formas elementales de la vida religiosa: notas de un enfoque durkheimiano para entender el actual fenmeno neopentecostal en Brasil

ResumenEste texto busca relacionar el pensamiento de Durkheim, expuesto en Las formas ele-mentales de la vida religiosa, que ahora completa cien aos, y el cambio de mapa religioso, marcado por el crecimiento continuo del neo-pentecostalismo en Brasil. Durkheim con-sidera la religin como un hecho social que acta como fuente de cohesin e integracin social, en la lgica de la relacin entre lo sagrado y lo profano, una forma de despertar la esperanza y fortalecer la solidaridad. Con el proceso de modernizacin social, nuevos lenguajes y metodologas en el campo de la religin pueden capturar y afectan a las formas de ser, pensar y actuar de la sociedad brasilea. El neo-pentecostalismo en Brasil se presenta con el fin de llevar el mensaje del evangelio a una sociedad sacudida por las desilusiones y los fracasos de los sistemas econmicos y polticos. Para ello, emplea gestos, smbolos y palabras persuasivas, orientadas a la subjetividad y la emotividad, que transitan entre lo profano y lo sagrado. Al escribir Las formas elementales de la vida religiosa, Durkheim de alguna manera rescata la importancia del estudio de la religin como un fenmeno social importante. Contrariamente a las tendencias de los clsicos de la sociologa, el apost en la universalizacin de la creencia y el pensamiento religioso.Palabras clave: religin; neo-pentecostalismo; sagrados y profanos.

Formas elementares da vida religiosa 65


Introduo

Pela primeira vez, encontrei a maneira de abordar sociologicamente o estudo da religio. Foi para mim uma revelao. O curso de 1895 supe uma linha divisria no desenvolvimento de meu pensamento, a ponto que tive de revisar todas as minhas investigaes anteriores, para ajust-las a esta perspectiva. Esta reorientao se deveu inteiramente aos estudos sobre a histria das religies que acabara de empreender e especialmente leitura dos trabalhos de Robert Smith e sua escola. (DURKHEIM, 1989).

Um dia chegar em que nossas sociedades conhecero, novamente, horas de efervescncia criadora, no decurso das quais surgiro novos ideais, aparecero novas frmulas que serviro, durante algum tempo, de guia para a humanidade. (DURKHEIM, 1989).

A finalidade deste artigo resgatar alguns conceitos gerais acerca da noo de religio definida pelo socilogo francs mile Durkheim em As formas elementares da vida religiosa, publicada em 1912 (doravante As Formas), tentando, assim, pensar os novos arranjos que circundam o fenmeno religio-so no Brasil. Seriam as teses levantadas por Durkheim h cem anos capazes de nos ajudar a entender a mudana do campo religioso no Brasil, mais precisamente o crescimento de parte do segmento evanglico denominado neopentecostalismo1? Poderia o estudo das crenas e prticas religiosas dos aborgenes na Austrlia de alguma forma auxiliar na compreenso do carter dinamognico2 do neopentecostalismo em franca ascenso?

Para Durkheim, as transformaes sociais despontam em momentos de efervescncia criadora, com base em novas ideias que passam a guiar a humanidade num determinado perodo. Assim, o desafio do autor consistiu em responder aos problemas de uma reforma moral da sociedade francesa envelhecida e ajudar a sociedade a liberar-se das cangas, do domnio, jugo e opresso das religies tradicionais, mas que poderiam despertar e promover nas pessoas um novo ideal humanista. O exerccio proposto neste artigo ganha ainda mais relevncia por tratar-se da comemorao do centenrio da obra acima mencionada. Em linhas gerais, As formas tornou-se importante, no apenas por tratar-se de um estudo aprofundado dos modelos religiosos

1 Veremos mais abaixo os dados dos Censos 1980/1991/2000/2010 realizados no Brasil.2 Durkheim chama de carter dinamognico a virtude dinamognica de toda espcie de religio.

Para Durkheim a religio , antes de tudo, um sistema de foras. O homem religioso um homem que experimenta um poder que no se percebe na vida comum. A vida religiosa leva o homem a experimentar esta fora, us-la, passando a viver dela.



como estrutura fundamental para se pensar o mundo, mas por reposicionar a religio como categoria essencial para pensar a sociedade moderna, algo considerado indispensvel para as cincias sociais que, na poca de Durkheim, encontravam-se em plena expanso.

Assim, fomos desafiados a no permitir que passasse em branco esta data clebre para uma obra to significativa para as Cincias Sociais. Sem contar que, como socilogos e pesquisadores da temtica religiosa, deveramos ao menos inquirir se o aumento vertiginoso da efervescncia religiosa3 no Brasil ainda pode ser compreendido por meio do instrumental metodolgi-co durkheimiano, ou seja, nosso intuito consiste em pensar as concepes centenrias de Durkheim acerca da religio, confrontando-as com o cenrio religioso brasileiro. Desejamos, portanto, compreender se As formas podem oferecer um construto para problematizarmos o fenmeno religioso neo-pentecostal no Brasil hoje.

Para a realizao de tal exerccio, algumas questes emergem como fundamentais, a saber: se a prtica religiosa neopentecostal encaixa-se nas noes apresentadas por Durkheim, que tratou da importncia da coeso social para a existncia e o fortalecimento das sociedades, tendo na religio um importante instrumento de integrao social. Segundo o autor, na reli-gio que se podem compreender as razes para uma sociedade permanecer reunida e unida. Seria o neopentecostalismo um instrumento importante de integrao social? guisa dessa problemtica, poderamos ainda nos per-guntar se a dicotomia proposta por Durkheim entre profano e sagrado4, como elemento comum a qualquer religio, poderia ainda ser aplicada no estudo do fenmeno do neopentecostalismo no Brasil, num cenrio em que o profano e o sagrado se misturam e se confundem.

Religio como um meio de coeso socialAo lado de Max Weber e Karl Marx, Durkheim busca compreender

como a ordem social se forma e mantm, ainda que cada um deles encontre

3 Como bem nos lembra Sanchis, sobre a de no prefcio de sua obra Regras do mtodo sociolgico Durkheim manifesta sua preocupao com um tempo de renascimento do misticismo, ao mesmo tempo que contraditoriamente expe sua f no futuro da razo. Nas palavras do prprio Durkheim: Nossas sociedades portam nelas mesmas suas fontes de calor. [] Este estado de incerteza e de confusa agitao no saberia durar eternamente. Um dia vir! Era sua espera e confiana na vinda de uma nova religio que, no repita simplesmente as religies do passado e, sobretudo, que no pretenda anular a progressiva e definitiva investida triunfante da razo (TEIXEIRA, 2003, p. 38-39).

4 Buscamos evitar neste artigo algumas contradies polmicas da obra de Durkheim, como a polarizao antittica entre indivduo e sociedade ou, ainda, a realidade ontolgica da sociedade (grupo social) e conscincia coletiva.



respostas diferentes para a mesma indagao5. Para Durkheim, a resposta vem pelo coletivo, ou seja, os fatos sociais que explicam os estados individuais, e no o contrrio. Ao enveredar por este caminho, objetiva dar Sociologia a autonomia de cincia, ao mesmo tempo em que caminha em direo oposta s grandes explicaes vigentes na sua poca6.

Muito mais do que nas demais obras escritas por Durkheim, em As For-mas, os conceitos so descritos a partir da construo de um sistema terico de oposies binrias, tais como sociologia e psicologia, social e individual, regras morais e apetites sensuais, normal e patolgico etc. So traos mar-cantes de seu pensamento.

Numa espcie de resposta tradio empirista, bem como ao mate-rialismo marxista, Durkheim defende que as sociedades no se constituem apenas em torno de questes materiais, ou mesmo econmicas. Elas se organizam tambm em torno de ideias e modelos morais, de modo que o que estrutura determinada conjuntura social sempre o ideal moral. Nes-se aspecto, Durkheim constata, em Da diviso do trabalho social (1893)7, que estamos vivendo uma crise moral mais do que econmica. Hoje, no Brasil, atravessamos uma crise moral ou ainda o esvaziamento do sentido da moral.

Com a multiplicidade de religies, cabe, talvez, apresentar um limite na obra de Durkheim. Ele sempre buscou mostrar que a religio tem o papel de integrao social, mas, s vezes, percebemos a religio como uma fora desinte-gradora da sociedade, sobretudo quando ela ganha um carter fundamentalista.

Seguindo uma preocupao recorrente na produo das cincias so-ciais, herdada da filosofia kantiana, Durkheim prope-se a encarar o estudo das sociedades pensando na produo de uma teoria geral do social. Com o intuito de pensar leis gerais, prope-se a observar as estruturas sociais consideradas elementares pela tradio evolucionista do Ocidente. nesse exerccio metodolgico de observar o microcosmo para compreender o ma-crocosmo (que seria a sociedade moderna europeia), que Durkheim percebe que a lgica estrutural de todo conhecimento emerge da experincia ritual, do exerccio lgico de se pensar o mundo a partir de categorias religiosas. A experincia religiosa no decorrer da histria produz um saber que contribui 5 Durkheim (1858-1917), assim como Max Weber (1858-1917) e Karl Marx (1818-1883),

buscaram estabelecer uma relao de reciprocidade entre as condies sociais de vida e suas propostas de cincia no contexto das mudanas que a Europa Ocidental conheceu com o surgimento e implantao do capitalismo (BIZELLI, s/d).

6 Podemos citar, por exemplo, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau.7 Com o ttulo escolhido para essa obra, Durkheim pretende se diferenciar da leitura sobre

o trabalho produzida por Marx e pela tradio marxista. Marx institucionalizou uma de-terminada anlise que pensava a diviso social do trabalho. Durkheim inverte a questo, tentando pensar a diviso do trabalho social.



para a construo do processo civilizatrio. As representaes sociais produ-zidas por grupos sociais interferem nas maneiras de agir desses grupos. No decorrer da histria, a humanidade teve que elaborar uma ideia de religio anterior ao surgimento da cincia.

Neste processo de institucionalizao da cincia e de diferenciao em relao esfera do sagrado, surge uma caracterstica marcante na noo de religio ou do ato religioso, que o sobrenatural ou a crena no mundo do mistrio. A religio seria, portanto, uma espcie de especulao sobre tudo o que escapa cincia e, de maneira mais geral, do pensamento claro (DURKHEIM, 1989, p. 5). A religio uma forma de capturar o inconce-bvel, visto como representaes coletivas.

Tal suposto repe novamente a clssica oposio estabelecida pelo autor entre as dimenses sagrado e profano. O sagrado est clivado, ou repousa sobre uma clivagem do mundo profano. Pode-se perceber isso no sacrifcio, que geralmente faz a ponte entre o profano e o sagrado. Em outras palavras, a vtima quem cria as condies para comunicao entre esses dois mundos.

Cada uma das partes no sacrifcio o sacrificante, o sacrificador e a prpria

vtima percorre uma curva que o eleva progressivamente at o ponto cul-minante do sagrado, de onde ela, em seguida, desce novamente at o profano.

(HERVIEU-LGER, WILLAIME, 2009, p. 176).

Em As Formas, Durkheim descreve o fenmeno religioso como um siste-ma de coeso social, uma fora que produz valores e refora alguns princpios societrios. Toda religio, de uma maneira geral, ultrapassa as discusses e debates filosficos, sociolgicos e cientficos. De uma forma ou de outra, o fenmeno religioso fornece elementos para renovar a sociedade. Assim,

a fora religiosa o sentimento que a coletividade inspira a seus membros,

mas projetado fora das conscincias que o experimentam, e objetivado. Para objetivar-se, ele se fixa sobre um objeto, que se torna sagrado. (SANCHIS,

2003, p. 43-44).

A religio aparece como fonte de coeso, fora que impede a desinte-grao social. Em Durkheim (1989, p. 31) no existe religio falsa, uma vez que cada grupo e cada sociedade tm suas razes para crer e organizar rituais prprios. O que interessa, para Durkheim, entender a funo da religio como fato social em qualquer sociedade ou grupo, exterior ao indivduo e dotado de carter coercitivo. As formulaes religiosas constituem-se de componentes ideais ou, se quisermos, de princpios morais que acabam por



produzir uma regulao moral. Como j citado, o essencial na religio a dicotomia entre o profano e o sagrado, o qual no se identifica exclusivamente com o invisvel, uma vez que se materializa no visvel. H, nessa concepo, certa complexidade nem sempre decifrvel em um primeiro olhar.

A histria geralmente produzida com base na relao entre o profano e o sagrado e isto pode ser percebido por meio dos rituais religiosos. Em As formas, Durkheim chega seguinte definio de religio:

um sistema solidrio de crenas e de prticas relativas a coisas sagradas, isto

, separadas, proibidas, crenas e prticas que renem uma mesma comunidade

moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem. O segundo elemento que participa assim de nossa definio no menos essencial que o primei-ro, pois, ao mostrar que a ideia de religio inseparvel da ideia de igreja,

ele faz pressentir que a religio deve ser uma coisa eminentemente coletiva. (DURKHEIM, 2003, p. 32).

Mesmo que imaginemos que a religio consiste em um estado subjetivo presente no interior do ser humano, ou que cada sujeito tem a faculdade de escolher per se uma religio, esta ideia no modificaria a definio de Durkheim, pois, para ele, a religio um fato social a ser compreendido com base em sua funo e nas motivaes do fiel.

A ontologia do social no se restringe s conscincias individuais e nem mesmo ao culto a uma divindade. Elemento fundante da ontologia social a relao entre o sagrado e o profano, presente j nas sociedades primitivas.

O sagrado e o profano foram sempre e por toda parte concebidos pelo esp-rito humano como gneros separados, como dois mundos entre os quais nada h em comum [] uma vez que a noo de sagrado no pensamento dos

homens, sempre e por toda a parte separada da noo do profano [] mas o aspecto caracterstico do fenmeno religioso o fato de que ele pressupe uma

diviso e bipartida do universo conhecido e conhecvel em dois gneros que compreendem tudo o que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas sagradas so aquelas que os interditos protegem e isolam; as coisas profanas, aquelas s quais esses interditos se aplicam e que devem permanecer distancia das primeiras. (DURKHEIM, 1991, p. 30).

No sculo XX, a sociedade transformou-se, atingindo todos os eixos norteadores, da diviso do trabalho religio. Estes fatores, que eram o fundamento da organizao societria, alteraram-se radicalmente a ponto de pensadores acreditarem que estaramos vivendo o fim da histria ou na era



dos extremos. Novos arranjos societrios emergiram e todos os paradigmas eclipsaram-se, sem conseguir mais explicar a realidade. Com o passar do tempo, verificou-se, no uma crise dos paradigmas, mas uma mudana na realidade a exigir a recriao das categorias explicativas do mundo.

Diante dos novos arranjos sociais, tambm nos perguntamos se as ca-tegorias sagrado e profano na obra de Durkheim no necessitariam tambm ser recriadas. Suas concepes foram formuladas num momento de maior rigidez das estruturas sociais, hoje muito mais flexveis, no sentido de facilitar uma simbiose entre o profano e o sagrado.

Por este olhar, uma leitura apressada de Durkheim poderia sugerir que as categorias sagrado e profano so uma aporia. No seria, porm, a religio um construto social, no pensamento de Durkheim, pelo qual sagrado e profano s existem na relao entre um e outro em um processo de organizao do mundo a partir da formulao de leis binrias de pensamento? Como iden-tificar, ento, o sagrado sem o profano? Ou vice-versa? Seria essa dicotomia uma caracterstica peculiar das sociedades primitivas que se tornaria ausente, ou quase imperceptvel, nas sociedades complexas? No poderamos pensar que essa diviso ganha uma feio de opacidade no neopentecostalismo por ser produto de uma sociedade mais complexa e sofisticada, sem, contudo, efetivar a eliminao das barreiras8?

A religio como representao socialA noo de religio, com base na relao entre profano e sagrado,

pode ser entendida, em Durkheim, como uma construo social. Em As Formas, Durkheim parte da proposio de que Deus e os objetos sagrados so representaes de determinada sociedade (cf. PARSONS, 2010, p. 494). Destaca Durkheim que os conceitos que utilizamos no so metodicamente constitudos; so extrados da linguagem, isto , da experincia comum, sem que tenham sido submetidos a nenhuma crtica preliminar (2003, p. 476). Os conceitos cientficos, por sua vez, resultam de crticas e anlises de um grupo minoritrio que constitui a comunidade cientfica.

No neopentecostalismo, diferentes concepes e prticas organizam-se e estruturam-se com base nas oposies entre sagrado e profano. Na realidade, o neopentecostalismo s existe em virtude dessa relao. No Ocidente, as religies tradicionais esto perdendo sua fora e entrando em declnio do ponto de vista de instrumento hegemnico, ao passo que novas organizaes 8 No ignoramos as crticas feitas por Gaston Richard em relao anlise durkheimiana

da religio. Dentre as crticas de Richard destacamos a associao que Durkheim prope entre o sentimento religioso e o sentimento social. Para ler mais sobre o assunto, ver Willaime (2012).



religiosas assumem essa funo9. Talvez o neopentecostalismo ganhe fora na cultura brasileira por causa dessa mistura que existe nesta sociedade. Nela, no se observa uma demarcao rgida entre os espaos de profano e sagrado, pblico e privado, a casa e a rua, e assim por diante.

Segundo Durkheim, a cincia detm, em nossas sociedades indivi-dualistas e racionalistas, a autoridade intelectual e moral suprema. Porm, esta mesma sociedade, que determina e favorece o desenvolvimento do individualismo e do racionalismo, tem, de alguma maneira, a necessidade de crenas comuns. Ora, ao que parece, estas crenas no podem ser pro-porcionadas pela religio tradicional, que no responde s exigncias do esprito cientfico (cf. ARON, 1982, p. 321).

a partir de experincias prprias e dos espaos em que est inserido que o sujeito adere a determinadas representaes coletivas, pois no basta a um conceito ou a uma representao serem verdadeiros para que sejam assumidos por uma coletividade ou um indivduo. Conceitos ou represen-taes precisam repercutir em outras crenas ou opinies para que sejam reconhecidos. Assim, na vida social, todas as coisas repousam na opinio, mesmo a cincia. Esta pode ajudar a esclarecer e a ampliar a conscincia das consequncias da opinio.

verdade que, deste modo, pode faz-la mudar, mas a cincia continua a

depender da opinio no momento em que parece-lhe ditar a lei, pois, como mostramos, da opinio que ela tira a fora necessria para agir sobre a opinio.

(DURKHEIM, 2003, p. 487).

Nesse sentido, o trabalho de Durkheim universaliza a noo de religio ao reconhecer, como religio, todas as formas de crena, incluindo as totmicas que, na poca, eram consideradas apenas um trao de ausncia de civilizao. Um segundo aspecto importante no seu pensamento foi situar um entendi-mento da religio como sistema de ideias e prticas. As crenas e os ritos constituem o incio da vida religiosa da humanidade. Ao estudar o fenmeno religioso, o livre pesquisador deve libertar-se de preconceitos e pr-noes e colocar-se nessa realidade a partir das percepes dos crentes. Desse modo, ele pode identificar facilmente os sinais exteriores da religio que lhe per-mitem reconhecer os fenmenos religiosos onde quer que se encontrem, e que impedem que os confundam com outros (DURKHEIM, 2003, p. 4).

9 Ver Pierucci (2004).



Em sntese, as ideias religiosas tm um carter social em Durkheim e, como tal, devem ser estudadas pelas cincias sociais. Elas extrapolam o simples aspecto da transcendncia e interferem profundamente no agir e na conduta das pessoas. Integram o controle social e sua interferncia pode ser observada nas regras sociais e morais. Cada sociedade, em determinado contexto histrico, constri uma noo de religio que envolve a existncia das pessoas e interfere no sentido de suas vidas. Algumas coisas sagradas, por essa razo, so capturadas empiricamente no quadro da existncia hu-mana, sobretudo na formao moral, na identidade e na atitude do sujeito. Os rituais definem o lugar das prticas e os procedimentos atitudinais. Para Durkheim, portanto, a religio uma comunidade moral.

Segundo Clifford Geertz (1978, p. 104), a religio um sistema de smbolos que interfere na formao psquica e em nossa forma de comu-nicao10. Como sistema simblico, ela estabelece uma fora poderosssima nas disposies motivadoras dos seres humanos; como representao, opera na interface das aes humanas e do imaginrio, contribuindo para que o sujeito possa compreender-se e compreender o mundo, de modo a perceber o sagrado numa relao conflituosa ou no. Desde as chamadas sociedades simples, ou primitivas, s mais complexas, somos seres em busca do sagrado.

Para Durkheim, a religio no uma simples regra social, pois constitui um elemento ontolgico da sociedade. Em sntese, Durkheim faz um estudo meticuloso da religio e, ao mesmo tempo, compreende sua influncia na sociedade e na formao da cincia. Ela no possui imunidade contra os poderes poltico e econmico; sofre suas interferncias e neles interfere.

Talvez possamos constatar que no existe uma religio que no seja uma cosmologia, ao mesmo tempo em que uma especulao sobre o divino (GEERTZ, 1978, p. 211). A religio uma cosmoviso que mostra as coisas boas e ruins do mundo. O profano e o sagrado ajudam o ser humano a dis-cernir suas atitudes. O sagrado aparece quase como um princpio soberano da tica. Neste jogo, os contedos religiosos diferem do senso comum e movem a realidade. A religio transforma o mundo a partir da busca do sagrado e da materializao dos contedos do sagrado no mundo.

No possvel afirmar que a religio criou o mundo ou foi por ele cria-da. Cada um desses elementos parece ter vida prpria. A religio uma fora coletiva que desencadeia os processos de conscientizao. Por esse olhar, os

10 Vale a pena ressaltar que, para Geertz, a religio como sistema simblico no est na mesma dimenso de Durkheim. Geertz extrai a definio acima do pensamento de Max Weber, ao relacionar a prtica dos homens a teias, isto , h uma valorizao na dimenso em que os indivduos interagem, o que para Durkheim um problema. Em Durkheim, tudo social e o indivduo sempre determinado por ele.



pressupostos de Durkheim permitem dizer que a religio no pertence a um mundo particular, mas coletivo. Ela constitui a conscincia coletiva.

Mudanas religiosas e crescimento do neopentecostalismo no Brasil

Na tentativa de capturar os ecos da perspectiva durkheimiana no novo mapa religioso no Brasil, tomamos, como exemplo, o desenvolvimento do neopentecostalismo. Conhecer a maneira como ocorreu a chegada dos pri-meiros protestantes no Brasil e sua implantao permite analisar os caminhos tomados pelo pentecostalismo no Brasil. Do ponto de vista sociolgico, o pentecostalismo d continuidade ao protestantismo de fato filho do protes-tantismo embora sua contestao no tenha a mesma base legitimadora que o protestantismo histrico teve (MARIZ, 1998, p. 87). Alvarez11 acrescenta que a maioria das igrejas pentecostais surgiu das igrejas histricas herdeiras da Reforma Protestante do sculo XVI (CAMPOS, 1996, p. 29). Poderamos dizer que as igrejas pentecostais so desdobramentos das igrejas da Reforma. Dentro da produo discursiva deste pertencimento, possvel encontrar estudiosos que defendem parentesco direto entre as igrejas neopentecostais e as de tradio protestante. Esse mesmo parentesco facilmente reconhecido hoje na fala de fundadores e de pastores de igrejas neopentecostais.

A sociologia da religio no Brasil, desde o incio, acena para a queda da hegemonia do catolicismo e o crescimento de outras denominaes religiosas. O protestantismo no Brasil, em relao ao crescimento populacional, ainda que lento nos primeiros anos de sua chegada, tem experimentado um rpido aceleramento a partir da dcada de 1940. De 1940 a 1950 a populao cresceu 26%, enquanto os protestantes cresceram 62%; de 1950 a 1960 a populao cresceu 35% e os protestantes mantiveram a taxa de 62%; de 1960 a 1970 a populao cresceu 33% enquanto os protestantes subiram para 70%; de 1970 a 1990 a populao cresceu 21%, enquanto os protestantes chegaram a 116% de crescimento12. De 1990 a 2000 a populao cresceu 15%, enquanto os protestantes chegaram a 49,59% de crescimento; De 2000 a 2010 a populao cresceu 11% , enquanto os protestantes chegaram a 62% de crescimento.

11 Alvarez resume assim a histria do movimento pentecostal do sculo XX. um movi-mento missionrio de carter mundial, possui uma dinmica prpria, porm herdou muitos traos teolgicos distintivos dos movimentos de santidade da Inglaterra e dos Estados Unidos, particularmente do metodismo. hoje um movimento que cresce e se expande rapidamente, com diversidade de manifestaes. Em cada Continente, possui suas formas eclesisticas e doutrinrias prprias e peculiares, com uma nfase comum na experincia e vida no Esprito Santo (ALVAREZ apud CAMPOS, 1996, p. 29).

12 Censo Demogrfico, PNAD, 1988.



BRASIL

NmerosAbsolutosCenso de

1980


1991

% de crescimento

(80-91)


2000


2010

% de crescimento(2000-2010)

Total Evanglicos (Protestantes)

7.885.846 13.189.282 67,3% 26.166.930 42.275.440 61,56%

Tradicionais(Histricos)

4.022.343 4.388.310 9,1% 7.159.383 7.686.827 7,36%

Pentecostais 3.863.503 8.179.666 111,7% 17.689.862 25.370.484 43,41%

No determinada(Outros evanglicos)

- 621.306 - 1.317.685 9.218.129 599,57%

Fonte: Censos Demogrficos de 1980-201013.

Olhando para os dados dos censos, sobretudo o de 2010, podemos observar que a denominao religiosa que mais cresceu, no campo do cris-tianismo, foi a Assembleia de Deus. Em dez anos, a Assembleia de Deus aumentou em quase quatro milhes de adeptos. Devemos considerar que o censo no classificou dois segmentos que vm crescendo nos ltimos dez anos, a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Internacional da Graa, o que explicaria o nmero apresentado no item outros, que superior ao da Assembleia de Deus.

Em suma, nos ltimos 30 anos os evanglicos passaram de 6,6% para 22,2% da populao brasileira. At 2000 eram 15%. Atualmente ultrapassam os 42 milhes de brasileiros, mais precisamente 42.275.440. Entre 2000 e 2010 os catlicos passaram de 73,6% para 64,6%, uma populao de 123 milhes em nmeros absolutos.

Vrias so as explicaes dadas para este crescimento. Uma delas que o protestantismo, diferentemente do catolicismo, no se configura com uma autoridade centralizada, antes, permaneceu fracionado, oferecendo assim

a possibilidade de encontrar diferentes formas de expresso dessa nova religio, conferindo uma diversidade, uma plasticidade ao campo protestante que ser de fundamental importncia na sua dinmica interna no decorrer do sculo

XX. (SIEPIERSKI, 2001, p. 33).

13 O Censo de 1980 foi o primeiro a separar protestantes e pentecostais em diferentes ca-tegorias.



Outra explicao percebida ainda no sculo XIX, em que, mesmo com o avano do cientificismo, se presencia uma retomada do ardor religioso. Vrios movimentos conhecidos como avivamentos acontecem nos Estados Unidos da Amrica influenciando a igreja protestante norte-americana. O movimento pentecostal surge de um desses reavivamentos ocorridos no Norte da Amrica, influenciados principalmente pelos movimentos de santidade (holliness) que ocorriam nos pases de lngua inglesa no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX.

Primeiro, cabe lembrar que o termo pentecostal14 vem do movimento surgido nos Estados Unidos no incio do sculo XX. A nfase do movimento est no dom da glossolalia15, recebido por meio do batismo com o Esprito Santo. Esta crena est firmada no livro de Atos dos Apstolos, captulo 2, quando os apstolos reunidos recebem o Esprito Santo prometido por Jesus e, cheios do Esprito Santo, comeam a falar em outras lnguas. Considera-se pentecostalismo moderno16 o movimento iniciado em Topeka, Kansas, no ano de 1900, com Charles Parham em uma escola bblica denominada Betel17.14 A palavra pentecostal tem suas razes na festa de pentecostes dos judeus, comemorada no

quinquagsimo dia posterior Pscoa judaica. A septuaginta usa o termo pentcontahmeras como a traduo do hebraico cinquenta dias, referindo-se ao nmero de dias partindo da oferta do molho da cevada at o incio da pscoa. No quinquagsimo dia era a festa de pentecostes (DOUGLAS, 1986, p. 1265).

15 A glossolalia evidencia-se ao longo da histria. At mesmo a Assembleia de Deus concorda com o falar em outras lnguas no decurso da histria do cristianismo (AN-DERSON, 1979, p. 26).

16 O falar em lnguas, no chamado movimento pentecostal moderno, teve como precursores nomes como: Ricardo G. Spurling, ministro licenciado e pastor da Igreja Batista no estado de Tennessee, EUA; Tomlinson e Parham, no incio do sculo XX. Charles F. Parham (1873-1929) tido como o pai do pentecostalismo moderno, tendo criado o Lar de Curas Betel (1898) e o Colgio Bblico Betel (1900), em Topeka, Kansas, o qual ensinava que a evidncia do batismo com o Esprito Santo seria sem dvida a glossolalia. Deste ponto em diante se desenvolveu o movimento pentecostal, perseguindo o batismo com o Esprito Santo e sua evidncia visvel, a glossolalia.

17 Parham e seus alunos, ligados aos movimentos de santidade Holliness, receberam forte influncia do metodismo wesleyano, com ensinamentos sobre a perfeio crist e a inten-sa busca pela santificao. Este grupo, que tinha Parham como cabea, buscava provas bblicas para o chamado batismo no Esprito Santo. Chegaram ento concluso de que a nica certeza e sinal escriturstico para o batismo no Esprito Santo era o falar em lnguas. No dia 1 de janeiro de 1901, um moo estudante estava orando durante a noite, quando experimentou de repente a paz e a alegria de Cristo, comeando a louvar a Deus em lnguas. Dentro de alguns dias, toda a comunidade recebera o batismo com o Esprito Santo. Dessa maneira que surge o moderno movimento pentecostal. Essa experincia, acompanhada por poderosos ministrios de converso, curas, profecias etc. espalhou-se pelo Texas e, em 1906, alcanou Los Angeles, onde cresceu substancialmente, passando para Chicago, Nova York, Londres e Escandinvia em meados de 1915. (RANAGHAN, KEVIN, DOROTHY, 1972, p. 319).



O maior expoente deste movimento foi William Seymour. Nas palavras de Anderson: O que havia sido, com Parham, um movimento relativamente pequeno e localizado, assumiria propores internacionais atravs do minis-trio em Los Angeles de um negro obscuro (ANDERSON, 1979, p. 189). Aluno de Parham, negro, nascido como escravo, cego de um olho, Seymour foi convidado a pregar em Los Angeles onde o batismo com o Esprito Santo teria intensa repercusso. Sem hesitar, alugou um velho armazm na Azuza Street (Rua Azuza) e iniciou ali seu ministrio. A liderana era formada por doze ancios, compondo-se de brancos, negros e mulheres. O pentecostalismo rapidamente se alastrou pelos Estados Unidos e pelo mundo. Os brancos que haviam recebido a ordenao na Igreja de Deus em Cristo (predominante-mente negra) saram para fundar a Assembleia de Deus (quase exclusivamente branca) em 1914 (cf. ANDERSON, 1979, p. 189)18.

De uma forma ou de outra, cada nova realidade faz emergir novas prticas religiosas na perspectiva de um reavivamento da f. como se, em dado momento da histria, uma representao religiosa e sua prtica fossem congeladas e de suas entranhas emergisse um novo movimento religioso. Como se pode observar, o neopentecostalismo nasce no cerne da igreja protestante e dentro da prpria Igreja Catlica.

O pentecostalismo brasileiro afirma ter o intuito de levar a mensagem do Evangelho a um mundo que considerava perdido, como caracterstica fundamental de sua doutrina, que consiste em anunciar a restaurao por meio da ao do Esprito Santo, o qual, nas palavras de Daniel Berg: Jesus, salva, cura, vai voltar e batiza com o Esprito Santo19. A militncia pente-costal no Brasil foi composta basicamente de pregadores urbanos, em praas, ruas e caladas.

Uma tipologia bastante aceita, mas no a nica, para ordenar o campo religioso pentecostal foi a proposta por Paul Freston (1993), na qual divide o movimento pentecostal em trs ondas.

A primeira onda a dcada de 1910, com a chegada da Congregao Crist e

da Assembleia de Deus em 1911 [] A segunda onda pentecostal dos anos

50 e incio de 60, na qual o campo se fragmenta, a relao com a sociedade se dinamiza e trs grandes grupos (em meio a dezenas de menores) surgem:

18 Sobre a histria do pentecostalismo, ver: Rolim (1985) e Hollenweger & Hollenweger (1976).19 O pastor Daniel Berg, antes de voltar para os Estados Unidos, morou por um tempo

na casa do pastor Valter Brunelli, da Igreja Assembleia Bereana, em Vila Mariana. Em conversa, o referido pastor relatou que ao regressar para seu pas de origem no final de seu trabalho no Brasil, disse ao despedir-se: No se esquea, Jesus salva, cura, vai voltar e batiza com o Esprito Santo. A mesma mensagem de quando chegou ao Brasil, relatou Valter Brunelli.



A Igreja do Evangelho Quadrangular (1951), Brasil para Cristo (1955) e Deus

Amor (1962), desenvolvendo-se principalmente num contexto puramente

paulista. A terceira onda comea no final dos anos 70 e ganha fora nos anos

80. Suas principais representantes a Igreja Universal do Reino de Deus (1977)

e a Igreja Internacional da Graa de Deus (1980), [] essas igrejas trazem uma

atualizao inovadora da insero social e do leque de possibilidades teolgi-cas, litrgicas, ticas e estticas do pentecostalismo. (FRESTON, 1993, p. 66).

Seguindo tal tipologia, optamos por focar, neste artigo, a terceira onda, que constitui o movimento neopentecostal egresso do pentecostalismo, que traz caractersticas interessantes para nossa reflexo.

Um olhar sobre os neopentecostais pelas lentes de DurkheimComo observado neste texto, Durkheim busca descrever o fenmeno

religioso a partir de uma pesquisa histrica. Talvez porque intusse que a revoluo do sculo XX no seria a do proletariado, e, sim, a das religies, da busca do sagrado. De fato, no fim do sculo XX, tudo concorre para o sagrado: as decepes e fracassos dos sistemas econmicos e polticos, as crises da prpria natureza, como se os sistemas humano e da natureza perseguissem o sagrado, quisessem ouvir a sua voz. As religies consideradas homogneas perdem sua fora e cedem espao ao surgimento e reconheci-mento de outras religies e denominaes religiosas.

Diante deste quadro mais geral e, depois dos dados apresentados acerca da formao e do crescimento do pentecostalismo brasileiro, pode-se afirmar que a hiptese de Durkheim permite compreender o fenmeno religioso contemporneo aqui descrito.

A transformao das religies tem afetado a forma de ser e de pensar dos brasileiros. Com o processo de modernizao da sociedade brasileira, ingressamos num mundo plural no qual se deslocaram e fragilizaram as interpretaes hegemnicas. Nesse conjunto de mudanas, novas religies apareceram e aparecem, com novas linguagens e metodologias, na tentativa de capturar as novas formas de ser, de pensar e de agir. Tais caractersticas, acima listadas, podem ser percebidas no modelo teolgico e ritual praticado nas igrejas neopentecostais. Num certo sentido, a tradio neopentecostal ergueu-se no desenvolvimento de uma linguagem simples e direta que atinge a subjetividade e a emotividade por meio da Bblia, de gestos, da utilizao de smbolos como a gua, o leo, chaves e ferramentas de trabalho, entre outros, modulaes de voz e discursos persuasivos que transitam entre o profano e o sagrado. Outro elemento marcante o testemunho de pessoas bem-sucedidas. Em seu culto,



Procura-se acolher, dar ateno s pessoas e ouvir suas dificuldades, valoriz--la, conhec-las pelo nome, endereo, profisso A pessoa no pode ser um

nmero. Os irmos tm nome. O que se busca envolv-la no culto, ajud-la

a participar ativamente da celebrao, da msica, do canto, dos gestos, a ma-nifestar seus sentimentos e dons. A equipe do culto se faz presente no meio da assembleia para orientar o manuseio da Bblia, a gestualidade e monitorar os fiis para a uniformidade de atitudes, segundo os estmulos do pastor. O

testemunho de vida dos convertidos e de adeptos, bem como de pessoas de

projeo social, proporciona maior impacto. (CNBB, 2003, p. 17).

A observao dos rituais neopentecostais permite-nos afirmar que o texto de Durkheim conserva certa atualidade, tendo em vista que as religies operam na lgica da relao entre sagrado e profano. Tal fato pode ser ob-servado, sobretudo, nas guerras travadas entre as denominaes evanglicas em busca de legitimidade e pelo ttulo de religio sagrada ou verdadeira20. No caso do Brasil, o protestantismo, e em especial os neopentecostais, proclama que a Igreja Catlica deixou-se seduzir por doutrinas profanas, distanciando--se do sagrado, ou seja, da palavra de Deus. Por outro lado, a Igreja Catlica apresenta-se como a instituio que melhor rene os elementos da palavra de Deus, assim como a tradio crist. Nesse jogo contraditrio, h uma mudana no mapa das religies no Brasil. Esta alterao j aparece no censo de 1872, como aponta Cndido Procpio Ferreira de Camargo:

De fato, a histria tem demonstrado o declnio da Igreja Catlica no Brasil. A cada ano, deixa a Igreja um percentual significativo de adeptos e reduz-se sua

capacidade de interferncia nos diferentes espaos pblicos, ou seja, ela vai perdendo sua hegemonia nos campos religioso e social. Aqueles que se diziam catlicos comeam a ter outras preferncias religiosas, em relao aos protestan-tes histricos, pentecostais, neopentecostais, espritas, religies afro-brasileiras, umbandistas e orientais. Cresce tambm o nmero dos que se dizem sem reli-gio. As mudanas religiosas tm atingido os catlicos e protestantes histricos. Mas a base da sociedade brasileira permanece crist. (CAMARGO, 1973, p. 56)

Hecatombes e tragdias de toda ordem despertam a solidariedade hu-mana, que um valor clssico da religio. No sculo XXI, a revoluo no campo religioso irrompe to forte quanto a Reforma protestante do sculo XV. Esses novos arranjos podem ser desdobramentos, novos ecos, da Re-20 Um exemplo clssico que podemos citar aqui o embate entre Edir Macedo, fundador

da Igreja Universal do Reino de Deus, e Valdomiro Santana, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus.



forma e da Revoluo Industrial. Diante desses novos arranjos, das novas contradies no campo da religio, cabe perguntar se est emergindo uma nova forma de crer e se os pressupostos de Durkheim permitem compre-ender este novo momento.

Talvez a ideia de compreender a religio em Durkheim seja uma forma de encontrar um consenso. O autor no parece preocupado em despertar a f; para ele, a f consiste no mecanismo supremo de produo de experincia e de conhecimento sobre as coisas do mundo; na f est a crena na sociedade e a esperana de sua existncia, com a finalidade de fortalecer a solidariedade.

Assim, para Durkheim, os deuses seriam fabricaes da sociedade. A reli-gio, por esse olhar, reproduziria a dinmica da sociedade. Poderamos at afir-mar que a religio a representao da sociedade. Ela imagem da sociedade.

A cada nova tecnologia, ou outro tipo de transformao social, novas formas de religio aparecem, ao passo que as tradicionais veem-se obrigadas a responder aos novos desafios. O que era puro num momento e se fortalecia no sagrado, em outro momento pode ser impuro e repugnar o sagrado. O puro e o impuro, na viso de Durkheim, no sofrem uma antinomia. Ambos encontram-se no sagrado, o qual dotado de ambiguidade. Com o puro se faz o impuro, e reciprocamente. na possibilidade dessa transmutao que consiste a ambiguidade do sagrado (DURKHEIM, 2003, p. 452).

A sociedade permeada pelo fasto e pelo nefasto, que esto no religioso e na prpria moral, na doutrina jurdica, assim como nas relaes cotidianas. Essas ambiguidades e diversidades geram uma unidade porque constituem uma simbiose. O profano est no sagrado e o sagrado est no profano. No h tambm uma unicidade do sagrado e nem do profano. O sagrado pode aparecer como bom e mau. Com o profano o mesmo sucede. Essa mesma dinmica est presente na sociedade.

Diante desse construto, da religio como algo social, uma imagem da sociedade, duas indagaes parecem necessrias: como ficaria o sujeito, o indivduo? A essncia da religio, definida pelo profano e o sagrado, que so construes sociais, suficiente para que o sujeito faa suas escolhas? Essas questes tornam-se mais difceis de responder na sociedade contempornea, em que o profano se apossou do sagrado e vice-versa.

Por essas e outras razes, acreditamos que a obra de Durkheim torna-se atual e ajuda-nos a compreender a situao das religies na realidade brasileira. A cada dia a imprensa e os jornais divulgam notcias sobre alguns atos de corrupo praticados pelas religies e por crentes. a mistura do fasto e do nefasto no sagrado e, vice-versa, no profano. O ideal do esttico presente na religio perde-se, muitas vezes, porque repousa sobre representaes sociais. produto de causas sociais.



Todo ser humano deixa-se mover pela f, pelo ideal e luta, incansavel-mente, para convencer os demais daquilo em que acredita. Rapidamente, deixa de ser isolado para se fortalecer numa comunidade, caso contrrio, sua f estiolaria e ele ficaria s (DURKHEIM, 2003, p. 470). A converso individual, mas vivida em comunidade. Cada um que se converte tem a obrigao de divulgar a sua f e viv-la em comunidade. Toda sociedade tem necessidade de organizar-se, de sistematizar as ideias coletivas sem eliminar as personalidades que aparecem para recriar o novo dessa conscincia coletiva, a exemplo de So Francisco de Assis, Calvino e Lutero.

Apesar de sua ao, que traz novas formas de compreender o mundo, o indivduo no est acima da sociedade; seu posicionamento e sua convico vm do interior da prpria sociedade. Embora possa parecer que o indivduo colocou-se fora da situao, ele est profundamente envolvido nesse contexto. Antes de chegar a esse extremo, convm saber se aquilo que, no indivduo, ultrapassa o indivduo no viria dessa realidade supraindividual, mas dada na experincia, que a sociedade (DURKHEIM, 2003, p. 498). O indivduo captura o contexto social e por ele capturado.

Consideraes finaisApenas dois anos separam As formas elementares da vida religiosa da chegada

do movimento pentecostal ao Brasil. Alm da coincidncia cronolgica, um ponto comum chama nossa ateno. Observamos que, ao escrever As Formas, Durkheim est, de alguma maneira, resgatando a relevncia do estudo das religi-es como um importante fenmeno social. Durkheim segue o caminho inverso dos grandes tericos de sua poca, como Hobbes, Rousseau, Marx e outros. Contrrio s tendncias, aposta na universalizao da crena e do pensamento religioso num momento em que estas questes esto em franco declnio.

Por outro lado, o pentecostalismo segue crescendo, desafiando as te-orias da secularizao, provocando a cincia a repensar a religio ante os paradigmas vigentes.

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