234

2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento

2 Eacutetica e filosofia poliacutetica

EacuteTICA E FILOSOFIA POLIacuteTICA

Ceticismo em Movimento

4 Eacutetica e filosofia poliacutetica

IMAGEM DA CAPA httpscafilunioestedotcomfileswordpresscom201605banner-60x120-1pngw=775

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr Ceacutelia Machado Benvenho

Joseacute Francisco de Assis Dias Joseacute Luiz Giombelli Mariani

(Organizadores)

EacuteTICA E FILOSOFIA POLIacuteTICA

Ceticismo em Movimento

Primeira Ediccedilatildeo E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Toledo ndash PR

2016

6 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Copyright 2016 by

Organizadores EDITORA

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL

Ademir Menin ndash UNIOESTE ndash PR Joseacute Aparecido Pereira ndash PUC-PR Joseacute Beluci Caporalini ndash UEM Lorella Congiunti ndash PUU ndash Roma

COMITEcirc CIENTIacuteFICO Dr Ceacutesar Augusto Battisti ndash UNIOESTE ndash PR Dr Clademir Luis Araldi ndash UFPel ndash Pelotas ndash RS Dr Claudinei Aparecido de Freitas da Silva ndash UNIOESTE ndash PR Dr Ivo da Silva Jr ndash UNIFESP ndash SP Dr Joatildeo Virgiacutelio Tagliavini ndash UFSCar ndash SP Dr Joseacute Luiz Ames ndash UNIOESTE ndash PR Dr Roberto Saraiva Kahlmeyer Mertens ndash UNIOESTE ndash PR Drordf Ester Maria Dreher Heuser ndash UNIOESTE - PR

REVISAtildeO ORTOGRAacuteFICA Prof Ademir Menin

DIAGRAMACcedilAtildeO E DESIGN Editora Vivens Ltda

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo-na-Publicaccedilatildeo (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecaacuteria CRB9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o territoacuterio na-cional Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmi-tida por qualquer forma eou quaisquer meios ou arquivada em qual-quer sistema ou banco de dados sem permissatildeo escrita da Editora

Os textos satildeo de responsabilidade exclusiva de seus autores Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Rua Pedro Lodi nordm 566 ndash Jardim Coopagro Toledo ndash PR ndash CEP 85903-510 Fone (45) 3056-5596

httpwwwvivenscombr e-mail contatovivenscombr

Eacutetica e filosofia poliacutetica ceticismo em

E84 movimento organizadores Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo[et al]ndash1 ed e-book ndash Toledo

PR Vivens 2016 232 p

Modo de Acesso World Wide Web

lthttpwwwvivenscombrgt

ISBN 978-85-92670-20-7

1 Ceticismo 2 Conhecimento e verdade 3

Filosofia francesa 3 Montaigne Michel de 1533-

1592 I Tiacutetulo

CDD 22 ed 194

SUMAacuteRIO APRESENTACcedilAtildeO I = O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE Henrique Zanelato II = MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo III = AMIZADE EM MONTAIGNE Junior Cesar Luna IV = O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O CAMINHO DA FILOSOFIA Elissa Gabriela Fernandes Sanches V = A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo Anderson Lucas dos Santos Pereira VI = O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE Joseacute Luiz Giombelli Mariani VII = VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMO ENSAIOS DE MONTAIGNE Andre Scoralick

09

13

33

71

107

137

161

179

8 Eacutetica e filosofia poliacutetica

VIII = NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE Stefano Busellato 205

APRESENTACcedilAtildeO Este livro resultou das conferecircncias proferidas

durante as Jornadas de Eacutetica amp Filosofia Poliacutetica e Metafiacutesica amp Conhecimento que realizaram em 2016 a sua 9ordf ediccedilatildeo O evento conjugado teve como principal caracteriacutestica reunir especialistas de diferentes regiotildees do Brasil que pesquisem determinado assunto autor ou problema A cada ano um docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia organiza o evento como forma de propiciar a cada nova ediccedilatildeo a discussatildeo de diferentes temas filosoacuteficos relacionados a ambas as Linhas de Pesquisa como uma forma de articulaccedilatildeo de diferentes grupos de pesquisa em atividade (Eacutetica e Filosofia Poliacutetica Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Metafiacutesica e Conhecimento Wilson Antonio Frezzatti Jr e Stefano Busellato)

Por sua vez anualmente o colegiado do curso de graduaccedilatildeo em filosofia designa um professor como coordenador da Semana Acadecircmica (Joseacute Francisco de Assis Dias) As ediccedilotildees anteriores reuniram pesquisadores de diversos Estados brasileiros e ateacute mesmo alguns do exterior Nessa oportunidade os especialistas puderam debater sobre temas bastante pontuais

Para 2016 visando pois a promover o debate em torno da questatildeo da fundamentaccedilatildeo do ceticismo a Jornada em Eacutetica e Filosofia Poliacutetica almejou estudar o legado ceacutetico em particular a leitura de Sexto Empiacuterico feita por Montaigne principal divulgador do ceticismo no iniacutecio da Idade Moderna Recorre-se a argumentos que levam agrave incerteza sobre a apreensatildeo de um conhecimento verdadeiro O procedimento de Montaigne eacute o de opor a toda razatildeo uma razatildeo igual objetivando negar o Dogmatismo e estabelecer a duacutevida radical em relaccedilatildeo agraves doutrinas que afirmam ter a verdade Como

10 Eacutetica e filosofia poliacutetica

base da sua criacutetica recorre agrave tradiccedilatildeo ceacutetica antiga advinda de Pirro e de modo particular agraves Hipotiposes Pirrocircnicas O estudo dos Ensaios constitui uma fonte inesgotaacutevel de problemas A apropriaccedilatildeo e inovaccedilatildeo montaigniana do ceticismo eacute um deles

O ceticismo eacute uma forma de pensar que nos livraria das amarras de uma racionalidade comprometida em revelar um conhecimento indubitaacutevel Mas como isso aparece nos Ensaios Por que a diaphonia ateacute agora na histoacuteria do pensamento tem se revelado invenciacutevel

Na realidade em torno do ceticismo os textos desta obra apontam trecircs pensadores que de alguma forma se articulam Santo Agostinho que passou pelo ceticismo acadecircmico e foi lido pelo pirrocircnico Montaigne Este por sua vez foi lido por Nietzsche quando ganhou de presente um exemplar dos Essais

O tema da Jornada em Metafiacutesica e Conhecimento eacute ldquoZaratustra Arte e Vidardquo De certa maneira eacute sequecircncia do tema da II Jornada (2009) ldquoZaratustra Filosofia e Vidardquo A jornada deste ano debateu com pesquisadores poacutes-graduandos graduandos e professores de filosofia do Ensino Meacutedio a relaccedilatildeo entre filosofia arte e vida partindo do eixo teoacuterico do filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche no qual a filosofia eacute expressatildeo de modos de vida

Diferentes modos de vida produzem diferentes filosofias ou seja uma determinada filosofia expressa uma determinada experiecircncia Esse tema aleacutem da importacircncia de apresentar uma perspectiva acerca da proacutepria filosofia eacute relevante para os trabalhos de pesquisa que vecircm sendo desenvolvidos no Doutorado Mestrado e Graduaccedilatildeo da UNIOESTE

Os organizadores desta obra tecircm a grata satisfaccedilatildeo de apresentar textos de estudiosos de dois autores tatildeo importantes para o pensamento filosoacutefico como eacute o caso de Montaigne e de Nietzsche Por questotildees de ordem metodoloacutegica os textos estatildeo sendo

Apresentaccedilatildeo 11

publicados em dois livros conforme a proposta das duas Jornadas

Boa leitura a todos

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr

12 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= I =

O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE

Henrique Zanelato

11 INTRODUCcedilAtildeO

Pretendemos com a presente comunicaccedilatildeo

discutir certa leitura de Michel de Montaigne1 que sugere uma ldquoevoluccedilatildeordquo em seu pensamento passando de estoico a epicurista com uma chamada ldquocrise ceacuteticardquo entre elas Tal leitura eacute proposta por Pierre Villey a quem os leitores de Montaigne devem muito devido a organizaccedilatildeo feita sobre a cronologia da obra do ensaiacutesta bem como a indicaccedilatildeo das fontes utilizadas durante os anos de composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios Montaigne teria

Mestrando e graduado em filosofia pela UNIOESTE E-mail henriquezanelatoIIhotmailcom 1 ldquoMichel Eyquem seigneur de Montaigne nasceu em 1533 filho e herdeiro de Pierre Seigneur de Montaigne (dois filhos anteriores morreram apoacutes o nascimento) Foi educado falando latim como a primeira liacutengua e sempre conservou uma disposiccedilatildeo de espiacuterito latina embora conhecesse o grego preferia usar traduccedilotildees Depois de estudar direito finalmente tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux Casou-se em 1565 Em 1569 publicou a sua versatildeo francesa de Theologia naturalis de Raymond Sebond o seu Apologie eacute apenas em parte uma defesa de Sebond em que estabelece limites ceacuteticos para o raciociacutenio humano sobre Deus o homem e a natureza Em 1571 mudou-se para suas terras em Montaigne dedicando-se agrave leitura agrave reflexatildeo e agrave composiccedilatildeo de seus Ensaios (primeira versatildeo 1580) Montaigne tinha aversatildeo ao fanatismo e agraves crueldades do periacuteodo das guerras religiosas mas apoiava a ortodoxia catoacutelica e a instituiccedilatildeo monaacuterquica Duas vezes foi eleito prefeito de Bordeaux (1581 e 1583) cargo que ocupou por quatro anos Morreu em Montaigne em 1592 enquanto preparava a ediccedilatildeo final e a mais rica de seus Ensaiosrdquo (MONTAIGNE 2010)

14 Eacutetica e filosofia poliacutetica

iniciado a composiccedilatildeo de sua obra aproximadamente em 1571 escrevendo ateacute sua morte em 1592

Um esclarecimento preacutevio eacute necessaacuterio os Ensaios se dividem em trecircs livros com capiacutetulos sobre diversos temas Aleacutem disso a obra natildeo foi publicada toda de uma vez dividindo-se em trecircs ediccedilotildees e essa distinccedilatildeo nos eacute essencial aqui a primeira ediccedilatildeo surgiu em 1580 na qual os dois primeiros livros foram publicados em 1588 a obra ganhou mais um livro aleacutem de acrescentar vaacuterios acreacutescimos aos dois primeiros posteriormente a 1588 uma nova publicaccedilatildeo surge com novos acreacutescimos Essa distinccedilatildeo eacute feita nas publicaccedilotildees atuais com algumas indicaccedilotildees [A] corresponde agrave primeira ediccedilatildeo de 1580 [B] agrave segunda e [C] agrave terceira

Nosso intento ao discutir essa proposta evolutiva teraacute como foco a primeira ediccedilatildeo da obra ou seja com os textos de 1572 segundo os quais se diz que Montaigne teria adotado uma postura estoica Para isso faremos a comparaccedilatildeo desses primeiros textos com textos mais tardios bem como a comparaccedilatildeo com a literatura ceacutetica a fim de procurar elementos que confirmem ou rejeitem essa hipoacutetese de Villey de que Montaigne teria abandonado o estoicismo depois do contato com as obras ceacuteticas receacutem descobertas no Renascimento

A pesquisa sobre Montaigne deve muito ao estudo de Villey As fontes e a evoluccedilatildeo dos Ensaios de Montaigne publicado em 1908 lanccedilou uma importante luz sobre a obra do ensaiacutesta

[] vasto estudo que investiga fontes referecircncias e citaccedilotildees contextualiza historicamente os temas e propotildee uma cronologia para a composiccedilatildeo da obra de Montaigne Com este estudo Villey consolidou uma nova e fecunda leitura dos Ensaios em que se desenha sua coerecircncia Durante alguns seacuteculos aceitou-se a foacutermula de que os Ensaios eram obra fragmentaacuteria coleccedilatildeo de citaccedilotildees uma conversa

O problema do ceticismo 15

despretensiosa com o leitor na qual o acaso construiacutea o discurso (VASCONCELLOS 2000 p XI)

Aleacutem disso Montaigne natildeo organizou os capiacutetulos

segundo a ordem de composiccedilatildeo deles nos deixando no escuro ateacute Villey sobre a data da escrita de cada um deles Todas as datas que aparecem no iniacutecio dos capiacutetulos satildeo sugeridas por Villey de acordo com os temas sobre os quais Montaigne escrevia ou sobre as referecircncias feitas pelo ensaiacutesta a determinada obra ou sobre algum evento histoacuterico citado por ele Assim devemos salientar que a precisatildeo nas datas eacute apenas aproximada jaacute que sugeridas mais de 300 anos depois

Durante seu trabalho de investigaccedilatildeo Villey encontrou certa coerecircncia numa leitura que sugere uma evoluccedilatildeo no pensamento de Montaigne de acordo com as influecircncias que sofrera em suas leituras Assim propotildee que

[] Montaigne nos vinte anos em que se dedicou agrave composiccedilatildeo dos Ensaios fez um percurso filosoacutefico Em linhas gerais sua hipoacutetese eacute a de que a princiacutepio estreitamente marcado pelo estoicismo de Secircneca Montaigne teria exercitado o gecircnero literaacuterio conhecido como leccedilons (compilaccedilatildeo da filosofia dos antigos coletacircnea de exemplos e maacuteximas morais) Seus primeiros ensaios portanto na esteira das leccedilons seriam bastante impessoais O rigor deste gecircnero segundo Villey foi abrandado com a leitura das Obras morais de Plutarco que lhe permitiu uma moralidade mais amena introduzindo ao texto juiacutezos pessoais Contudo o ensaio como gecircnero literaacuterio soacute surgiria apoacutes a leitura de Sexto Empiacuterico cujo ceticismo possibilitou ao ensaiacutesta ponderar sobre a vaidade da razatildeo humana e as dificuldades de qualquer conhecimento que se aventure aleacutem dos limites do proacuteprio sujeito Viria daiacute a ecircnfase dada agrave expressatildeo de si mesmo os ensaios caracterizando-se por constituiacuterem a realizaccedilatildeo de um auto-retrato De modo

16 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que inicialmente estoico Montaigne apoacutes a crise ceacutetica teria finalmente aderido ao epicurismo ou filosofia da natureza filosofia ldquoque se contenta em regular em vez de combatecirc-los os instintos naturais a que ela abandona o homemrdquo (VASCONCELLOS 2000 p XII)

A partir dessa proposta de Villey e de alguns

trabalhos que vecircm questionando tal leitura nos propomos a investigar em que medida essa tese evolutiva se sustenta jaacute que julgamos encontrar elementos que colocam em xeque tanto um apelo totalmente estoico no iniacutecio da obra quanto um totalmente epicurista no fim dela Para isso faremos a anaacutelise de alguns capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 comparando-os com a Apologia de Raymond Sebond capiacutetulo no qual Montaigne trabalha o ceticismo de modo mais expliacutecito Faremos algumas indicaccedilotildees tambeacutem sobre alguns capiacutetulos do terceiro livro tidos como epicuristas a fim de questionar o abandono do ceticismo por Montaigne depois da ldquocrise ceacuteticardquo

Entre os capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 dois deles nos parecem fornecer alguns elementos para pontuar certa fragilidade na tese de que Montaigne teria adotado o estoicismo nesse periacuteodo Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32) e Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37) Mesmo que seja possiacutevel identificar alguns capiacutetulos com temas estoicos bem como vaacuterias citaccedilotildees e referecircncias agrave essa escola Secircneca principalmente natildeo podemos deixar de notar em outros capiacutetulos uma visiacutevel inconsistecircncia entre a confianccedila na razatildeo aspecto marcante do estoicismo e certos juiacutezos de Montaigne

Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32)

Este ensaio estaacute ao que parece relacionado estritamente com um tema contemporacircneo a Montaigne

O problema do ceticismo 17

a Reforma Protestante Tal tema eacute debatido em diversos momentos da obra montaigniana obtendo grande destaque naquele que eacute talvez o mais ceacutelebre de seus ensaios a Apologia de Raymond Sebond A Apologia eacute um dos textos mais discutidos pelos estudiosos do autor francecircs principalmente no que se refere ao ceticismo o deixaremos de lado aqui por se tratar de um ensaio posterior ao contato de Montaigne com a obra de Sexto Empiacuterico principal fonte para os estudos ceacuteticos O que nos interessa agora eacute uma anaacutelise do trigeacutesimo segundo ensaio do Livro I que segundo a nota introdutoacuteria de Villey estaria situado no comeccedilo da composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios

Este capiacutetulo foi composto poucos meses apoacutes a vitoacuteria de Dom Joatildeo da Aacuteustria em Lepanto (outubro de 1571) Um empreacutestimo tomado dos Annales drsquoAquitaine de Jean Bouchet tambeacutem atesta que ele eacute de aproximadamente 1572 (VILLEY 2000 p 321)

Outro aspecto digno de nota sobre este ensaio eacute

que a maior parte do texto compotildee a camada A ou seja a camada da primeira ediccedilatildeo do livro de 1580 Cremos portanto que I 32 contenha algo sobre o modo de pensar de Montaigne do iniacutecio de sua obra Dito isso passemos pois ao texto

Notamos desde as primeiras palavras de Montaigne o assunto do ensaio a facilidade de se falar das coisas desconhecidas Tal facilidade se deve em grande medida ao fato de que tais assuntos por natildeo serem comuns agrave experiecircncia ou agrave reflexatildeo popular natildeo sejam facilmente contrariados e muito menos refutados

[C] Por causa disso diz Platatildeo eacute muito mais faacutecil satisfazer ao falar da natureza dos deuses do que da natureza dos homens porque a ignoracircncia dos ouvintes abre um belo e amplo caminho e toda a

18 Eacutetica e filosofia poliacutetica

liberdade para o manejo de uma mateacuteria secreta (I 32 322)

O desconhecido eacute segundo ele ldquoo verdadeiro

campo e assunto da imposturardquo e todos os que se ocupam dele satildeo contadores de faacutebulas ldquocomo alquimistas prognosticadores astroacutelogos quiromantes meacutedicosrdquo Montaigne entatildeo soma a esses aqueles que parecem ser o alvo de sua criacutetica apesar de se mostrar receoso quanto a isso

A ele eu acrescentaria de bom grado se ousasse um bando de pessoas inteacuterpretes e controladores habituais dos desiacutegnios de Deus que tecircm a pretensatildeo de descobrir as causas de cada acontecimento e ver nos segredos da vontade divina os incompreensiacuteveis motivos de suas obras (I 32 322)

Notamos aqui uma comparaccedilatildeo entre

ldquoimpostores e contadores de faacutebulasrdquo com ldquoos inteacuterpretes da vontade de Deusrdquo e entre ldquoas coisas desconhecidasrdquo com ldquoas causas de cada acontecimento e os segredos da vontade divinardquo Apesar de se afirmar como catoacutelico em diversos ensaios (mesmo que isso seja motivo de discussatildeo entre os inteacuterpretes) Montaigne se posiciona contra alguns haacutebitos comuns agrave cristandade da eacutepoca ldquoMas considero mau o que vejo em uso de procurar firmar e apoiar nossa religiatildeo no sucesso e prosperidade de nossos empreendimentosrdquo (I 32 323) Sua criacutetica eacute entatildeo direcionada agravequeles cristatildeos sejam eles catoacutelicos ou protestantes que tentam justificar a legitimidade de suas reinvindicaccedilotildees pelos acontecimentos

[] nas guerras em que estamos pela religiatildeo os que levaram vantagem no confronto de Rochelabeille festejando muito a ocorrecircncia e servindo-se dessa boa fortuna para garantir a aprovaccedilatildeo de seu partido quando depois vecircm a desculpar seus infortuacutenios de

O problema do ceticismo 19

Mont-Contour e de Jarnac como sendo varas e castigos paternos (I 32 323)

O confronto de Rochelabeille segundo a nota

ocorreu em maio de 1569 e deu vantagem aos protestantes As outras duas Mont-Contour e Jarnac ocorridas em outubro e marccedilo de 1569 respectivamente favoreceram os catoacutelicos Assim Montaigne chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de justificar a escolha pelo partido catoacutelico ou protestante a partir da argumentaccedilatildeo baseada nas vitoacuterias das batalhas empreendidas de um contra o outro

Outro exemplo oferecido por Montaigne para mostrar a dificuldade de ajustar os eventos histoacutericos se refere agraves mortes semelhantes de algumas personalidades que tiveram relaccedilotildees diferentes com Deus

E quem quisesse justificar que Aacuterio e Leatildeo seu papa principais chefes daquela heresia em eacutepocas diversas tenham morrido de mortes tatildeo parecidas e tatildeo estranhas (pois afastando-se do debate por dor de barriga para ir agrave privada laacute ambos entregaram subitamente a alma) e exagerar essa vinganccedila divina pela circunstacircncia do lugar ainda poderia bem acrescentar-lhe a morte de Heliogaacutebalo que tambeacutem foi morto em uma retreta Mas ora Ireneu viu-se envolvido pela mesma fortuna (I 32 323-324)

A heresia a que Montaigne se refere

aproximando dos dois primeiros nomes eacute o arianismo2 Heliogaacutebalo foi um ldquoimperador romano de origem siacuteria cujo reinado se caracterizou pelos excessos de todo tipo introduziu em Roma o culto a Baal de que era sacerdote na Siacuteriardquo3 O outro foi ldquoSanto Ireneu padre e doutor da

2 O arianismo foi uma linha de pensamento que negava a consubstanciaccedilatildeo de Cristo Para ela Cristo natildeo seria eterno como o Pai mas uma criatura dele 3 Cf nota 10 deste capiacutetulo dos Ensaios na paacutegina 324

20 Eacutetica e filosofia poliacutetica

igreja bispo de Lyon morto no iniacutecio do seacutec IIIrdquo4 A intenccedilatildeo eacute a mesma dos exemplos anteriores Como poderia algueacutem conciliar exemplos de figuras tatildeo opostas Dizer que Deus teria se utilizado de castigo tatildeo peculiar para punir os primeiros seria ateacute aceitaacutevel mas por que um homem santo teria destino semelhante Ou para os primeiros exemplos Deus seria ora protestante ora catoacutelico Seria ele arbitraacuterio em suas decisotildees

Apesar de tantos acontecimentos apontarem contra o que argumentam ldquonatildeo deixam entretanto de perseguir sua bola e com o mesmo laacutepis pintar o preto e o brancordquo ldquovendem duas vezes o mesmo trigo e com a mesma boca sopram o quente e o friordquo Eacute faacutecil ao leitor perceber o quanto tudo isso eacute fraacutegil e Montaigne alerta para o perigo de que na falta de sucessos o povo acabe por ter sua feacute abalada ou por perdecirc-la

Em um acreacutescimo da uacuteltima ediccedilatildeo drsquoOs Ensaios ele afirma

[C] Deus querendo ensinar-nos que os bons tecircm outra coisa a esperar e os maus outra coisa a temer aleacutem das venturas ou desventuras deste mundo maneja-as e aplica-as de acordo com seu comando secreto e priva-nos dos meios de nos aproveitarmos tolamente delas E satildeo logrados os que querem se prevalecer disso segundo a razatildeo humana Nunca datildeo uma estocada sem receberem duas Santo Agostinho daacute uma bela prova disso contra seus adversaacuterios Eacute um conflito que se decide pelas armas da memoacuteria mais do que pelas da razatildeo (I 32 324)

Seria o vencedor da disputa aquele que

conhecesse mais exemplos ou que fosse mais capaz de moldaacute-los de acordo com sua causa para convencer os ouvintes Pois pelo que parece ou as coisas natildeo acontecem com base em um criteacuterio uacutenico e imutaacutevel ou ele nos eacute totalmente desconhecido Assim se uma

4 Cf nota seguinte na mesma paacutegina

O problema do ceticismo 21

batalha eacute vencida por um ou outro partido natildeo eacute porque Deus apoie a sua causa ou se algueacutem morre de modo natildeo tatildeo convencional natildeo seria isso motivo para julgar essa morte como um castigo

O que podemos notar eacute que Montaigne tem consciecircncia da facilidade com a qual eacute possiacutevel distorcer os fatos adequando-os bem ou mal com a nossa causa principalmente quando se trata de um assunto pouco comum Certa maleabilidade da razatildeo eacute reconhecida por ele A religiatildeo natildeo podendo ser fundamentada pela razatildeo deve procurar outra base sobre a qual se assentar A sugestatildeo de Montaigne para os assuntos de religiatildeo eacute que cada um tenha feacute evitando justificaacute-la com bases que natildeo satildeo capazes de tanto

[A] A um cristatildeo basta acreditar que todas as coisas vecircm de Deus recebecirc-las reconhecendo sua divina e inescrutaacutevel sabedoria e por conseguinte aceitaacute-las de bom grado sob qualquer feiccedilatildeo que lhe sejam enviadas [] Nossa crenccedila tem muitos outros fundamentos sem a legitimar pelos acontecimentos (I 32 322-323)

Natildeo queremos adentrar na questatildeo da defesa da

religiatildeo catoacutelica por Montaigne ou na conciliaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o ceticismo discutida na Apologia e motivo de controveacutersias entre os comentadores O que nos interessa eacute destacar a fragilidade e impotecircncia da razatildeo quando tentada a justificar os misteacuterios divinos preferindo confiar agrave sabedoria de Deus a razatildeo de todos os acontecimentos pois ldquoeacute difiacutecil ajustar as coisas divinas agrave nossa balanccedila sem que elas sofram diminuiccedilatildeordquo (I 32 323)

Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37)

Este ensaio apesar de Villey natildeo concluir com certeza eacute considerado por ele como datado aproximadamente de 1572 com base em outros textos

22 Eacutetica e filosofia poliacutetica

em que Montaigne insere exemplos retirados das mesmas fontes5 Eacute curto assim como o analisado anteriormente e embora apresente mais acreacutescimos das ediccedilotildees posteriores acreditamos ter uma quantidade razoaacutevel de elementos da primeira camada para nos basearmos

Ele inicia-se com uma reflexatildeo sobre trecircs exemplos nos quais o vencedor de uma batalha chora a morte de seu inimigo

[A] [] Antiacutegono ficou muito desgostoso com seu filho por lhe ter apresentado a cabeccedila do rei Pirro seu inimigo que naquele mesmo momento acabara de ser morto em combate contra ele e que tendo-a visto pocircs-se a chorar fortemente e que o duque Reneacute de Lorena tambeacutem lamentou a morte do duque Carlos de Borgonha que acabara de derrotar e acompanhou enlutado seu enterro e que na batalha de Auray que o conde de Montfort venceu contra Charles de Blois seu adversaacuterio para o ducado de Bretanha o vitorioso ao encontrar o corpo de seu inimigo morto demonstrou grande pesar (I 38 348-349)

Montaigne posiciona-se com isso contrariamente

aos versos de Petrarca e Lucano que insere logo a seguir6 Apesar de considerar verdadeira a motivaccedilatildeo e a

5 ldquoSomos tentados a admitir aliaacutes sem razotildees decisivas que este capiacutetulo foi composto por volta de 1572 De fato podemos supor que os capiacutetulos XXXVIII XLI XLIV XLV XLVII satildeo contemporacircneos pois todos eles colocados a pouca distacircncia uns dos outros foram sugeridos por exemplos extraiacutedos da mesma obra ndash as Vidas de

Plutarco ndash e apresentam notaacuteveis analogias de estrutura Ora como os capiacutetulos XLI e XLVII satildeo de 1572 eacute possiacutevel que todo o grupo seja da mesma eacutepocardquo (VILLEY 2000 p 348) 6 ldquoE assim a alma encobre suas paixotildees sob uma aparecircncia contraacuteria sob um semblante ora jubiloso ora sombriordquo (Petrarca soneto LXXXI ediccedilatildeo de 1550 soneto CXXXII) ldquoEle pensou assim que podia sem risco manifestar sentimentos de sogro derramou laacutegrimas forccediladas e extraiu gemido de um coraccedilatildeo jubilosordquo (Lucano IX 1037) Notas 2 e 3 do ensaio paacutegina 349

O problema do ceticismo 23

vontade de vencer a batalha o autor francecircs natildeo vecirc contradiccedilatildeo nem falsidade como sugere o poeta citado na atitude de pranto e pesar dos vencedores Soma entatildeo aos trecircs primeiros o exemplo de Ceacutesar que apesar de estar em guerra contra Pompeu ldquodesviou os olhos como de um espetaacuteculo vil e desagradaacutevelrdquo quando lhe apresentaram a cabeccedila deste E assim como de Petrarca discorda de Lucano que cita em seguida pois natildeo entende como fingidas as laacutegrimas de Ceacutesar tendo em vista que aleacutem de sogro de Pompeu ambos durante muito tempo haviam vivido em harmonia fazendo vaacuterias alianccedilas ldquono manejo dos assuntos puacuteblicosrdquo

O que Montaigne chama a atenccedilatildeo eacute para o fato de que natildeo somos constantes em nosso agir tema este que estaacute presente em alguns outros ensaios Por mais que sejamos conhecidos por uma qualidade ela seja qual for natildeo pode ser a uacuteltima palavra a nosso respeito pois nada impede que o mais corajoso dos homens seja invadido pela covardia em algum caso Pois

Assim como em nossos corpos dizem que haacute uma reuniatildeo de diferentes humores cujo senhor eacute o que comanda mais habitualmente em noacutes segundo nosso temperamento tambeacutem em nossas almas embora haja diversos movimentos que a agitam no entanto eacute preciso que haja um que domine o campo Mas natildeo com uma superioridade tatildeo absoluta que devido agrave volubilidade e maleabilidade da nossa alma os mais fracos ocasionalmente natildeo retomem a praccedila e por sua vez natildeo faccedilam um breve ataque (I 38 350)

Em adiccedilotildees posteriores Montaigne oferece o

proacuteprio exemplo para reforccedilar a ideia Censurar seu criado com palavras duras natildeo o impede de ldquopassada essa explosatildeordquo ajudaacute-lo quando precise mesmo que seja logo em seguida ldquono mesmo instante viro a paacuteginardquo Tambeacutem afirma que ningueacutem poderia julgar falso seu

24 Eacutetica e filosofia poliacutetica

semblante em relaccedilatildeo agrave sua mulher ldquoora frio ora amorosordquo (I 38 351)

A paacutegina seguinte depois de mais alguns exemplos (Nero e Xerxes) leva-nos para a conclusatildeo ponto que queremos destacar qual o motivo de termos sentimentos e atitudes diferentes perante a mesma coisa ou fato se natildeo eacute falsidade O que Montaigne percebe eacute que nada tem apenas um ponto de vista e que mesmo noacutes olhamos a mesma coisa de modos diferentes

[A] Embora tenhamos perseguido com vontade resoluta a vinganccedila de uma ofensa e sentido um extraordinaacuterio contentamento pela vitoacuteria entretanto choramos Natildeo eacute por isso que choramos nada mudou mas nossa alma encara a coisa com outros olhos e representa-a com outra feiccedilatildeo pois cada coisa tem vaacuterias perspectivas e vaacuterios aspectos (I 38 352)

A inconstacircncia aparece deste modo como algo

presente no homem por mais que se queira defini-lo de modo definitivo Natildeo somente que os homens sejam afetados de modos diferentes (ateacute o mesmo homem neste caso) pela mesma coisa mas que a mesma atitude tenha consequecircncias diferentes satildeo temas discutidos pelo ensaiacutesta em outros lugares7 Para Montaigne ldquoao querermos fazer de toda esta sequecircncia um corpo uno enganamo-nosrdquo

Notamos aqui como no outro ensaio8 que eacute possiacutevel discursar de modos diferentes acerca de alguma coisa ndash mesmo que natildeo seja essa a principal preocupaccedilatildeo de Montaigne em I 38 ndash conduzindo a discussatildeo para a conclusatildeo desejada Antes era possiacutevel mesmo que um exame mais acurado apontasse suas falhas argumentar de modo a transformar algum

7 Ver tambeacutem ainda no livro I Por meios diversos chega-se ao mesmo fim O lucro de um eacute prejuiacutezo do outro Diversas decorrecircncias da mesma atitude entre outros 8 I 32

O problema do ceticismo 25

acontecimento em aviso de Deus como posicionamento a favor ou contra um partido ou atitude Agora eacute possiacutevel acusar de falsidade ou mascaramento uma accedilatildeo contraacuteria ao que empreendemos no momento ou contraacuteria ao que se julga ser nossa caracteriacutestica essencial Os versos de Petrarca e Lucano citados no texto do autor francecircs atestam isso

A partir da anaacutelise desses dois capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios partimos agora para uma comparaccedilatildeo deles com o ceticismo partindo de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero com discussotildees ceacuteticas antigas e tambeacutem do proacuteprio Montaigne em textos posteriores principalmente a Apologia

De acordo com a argumentaccedilatildeo de Richard Popkin (2000) o ceticismo sofreu um esquecimento na tradiccedilatildeo filosoacutefica ficando soterrado durante todo o periacuteodo medieval onde predominou principalmente o desenvolvimento da filosofia aristoteacutelica voltada ao cristianismo No entanto no Renascimento durante as discussotildees da Reforma Protestante foram aparecendo lentamente alguns textos ceacuteticos acalorando ainda mais a discussatildeo acerca do chamado ldquocriteacuterio de feacuterdquo As fontes ceacuteticas nesse periacuteodo foram aleacutem de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero jaacute citados tambeacutem Dioacutegenes Laeacutercio que expocircs alguns elementos centrais do ceticismo aleacutem de algumas anedotas

Sexto Empiacuterico apesar de natildeo ter adicionado quase nada de original agrave doutrina ceacutetica eacute o uacutenico pirrocircnico cuja obra sobreviveu Dedicou-se principalmente em traccedilar os caminhos de seus antecessores explicando termos e argumentos de ceacuteticos mais antigos e em discutir as doutrinas dos dogmaacuteticos questionando os criteacuterios e premissas sobre as quais se construiacuteam tais escolas De acordo com Popkin Sexto ficou praticamente desconhecido durante a idade meacutedia e poucos leitores tiveram contato com seus manuscritos antes da primeira publicaccedilatildeo das

26 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Hipotiposes Pirrocircnicas uma traduccedilatildeo latina datada de 1562 Essa eacute talvez a principal obra de Sexto na qual expotildee o ceticismo pirrocircnico diferenciando-o do ceticismo acadecircmico e das demais doutrinas filosoacuteficas

Percebemos que Montaigne muito provavelmente teve acesso agrave obra de Sexto Empiacuterico visto que descreve alguns termos ceacuteticos com grande semelhanccedila no modo como o fez o meacutedico grego Aleacutem disso sabemos que Montaigne mandou gravar nas vigas de sua biblioteca algumas sentenccedilas de Sexto Segundo Villey foi aproximadamente em 1576 que a obra de Sexto teria sido conhecida pelo ensaiacutesta francecircs causando grande impacto em seu pensamento A Apologia de Raymond Sebond apesar de certa reserva de Villey teria sido escrita segundo ele entre 1576 e 1578 natildeo sendo composto todo de uma vez Eacute neste capiacutetulo tambeacutem que se encontram algumas das referecircncias mais claras ao ceticismo no qual a argumentaccedilatildeo de Montaigne eacute mais dura e nitidamente ceacutetica

Um dos aspectos principais para o qual queremos chamar a atenccedilatildeo eacute uma das consideraccedilotildees que Sexto faz acerca do ceticismo

O ceticismo eacute a capacidade de estabelecer antinomias nos fenocircmenos e nas consideraccedilotildees teoacutericas segundo qualquer um dos tropos graccedilas agraves quais nos encaminhamos ndash em virtude da equivalecircncia entre as coisas e proposiccedilotildees contrapostas ndash primeiro ateacute a suspensatildeo do juiacutezo e depois ateacute a ataraxia (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54 Itaacutelico nosso)

A ldquocapacidade de estabelecer antinomiasrdquo

aparece constantemente na obra de Sexto que as usa para contestar determinadas teses que procura contrariar Ao expor algum argumento de uma corrente filosoacutefica de sua eacutepoca o ceacutetico busca meios de por argumentos contraacuterios de antinomias refutaacute-lo

O problema do ceticismo 27

Tambeacutem encontramos esse ldquomeacutetodordquo presente na argumentaccedilatildeo do ceticismo denominado acadecircmico que aparece em alguns textos de Ciacutecero Um deles eacute notaacutevel Sobre a natureza dos deuses Nesse texto vemos uma discussatildeo como o tiacutetulo indica sobre os deuses Nela se inserem trecircs personagens Caio Veleio representante do epicurismo Luciacutelio Balbo estoico e Cota ceacutetico acadecircmico Os dois primeiros expotildeem a doutrina de cada uma de suas escolas positivamente ao passo que o ceacutetico se limita a criticar os argumentos de cada um deles

Na obra o primeiro a expor seus pensamentos eacute Veleio Apoacutes fazer uma seacuterie de consideraccedilotildees acerca do que o povo e os filoacutesofos antigos ndash preacute-socraacuteticos Platatildeo e Aristoacuteteles ndash pensavam sobre os deuses passa a argumentar sobre a teoria das divindades epicuristas De acordo com ele devemos acreditar na existecircncia dos deuses pelo fato de todos os homens terem certas ldquonoccedilotildees implantadas ou antes inatasrdquo (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 31) Tambeacutem afirma que os deuses tecircm formas humanas por ser esta a mais bela que haacute e por ser impossiacutevel que a mente que os deuses tambeacutem possuem habitasse outra forma que natildeo a humana (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 32) entre outras afirmaccedilotildees

Apoacutes a longa exposiccedilatildeo do epicurista Veleio Cota inicia seu discurso Nele depois de vaacuterias acusaccedilotildees contra Epicuro o acadecircmico passa a pontuar todos os elementos do discurso de Veleio Citemos apenas alguns segundo ele natildeo haacute como saber sobre a crenccedila de todos os povos levantando a hipoacutetese de que pode haver povos tatildeo selvagens que natildeo tenha tido nunca a ideia de qualquer deus ou mesmo os proacuteprios ateus (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 36) Algueacutem que tem a ideia de um deus natildeo poderia negaacute-lo de forma nenhuma Mostra com isso que o argumento epicurista das noccedilotildees inatas natildeo se sustenta Aleacutem disso cita outras formas tatildeo belas

28 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quanto a humana e aponta vaacuterios defeitos nela que natildeo poderiam ser admitidos para o divino Faz alusatildeo aos egiacutepcios para quem os deuses tecircm formas mistas de homens e animais (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 42)

Contra Luciacutelio Balbo que desenvolve o discurso estoico sobre o tema a argumentaccedilatildeo de Cota se desenvolve de maneira semelhante pontuando todas as afirmaccedilotildees de modo a mostrar que eacute possiacutevel qualquer que seja o argumento refutaacute-lo ou ao menos construir um oposto que o anule E essa eacute a importacircncia da criaccedilatildeo de antinomias das quais fala Sexto Empiacuterico Os argumentos opostos buscados na experiecircncia ou na dialeacutetica fazem com que o interlocutor fique sem saiacuteda pois uma vez que admita a invalidade dos argumentos ceacuteticos teraacute que confessar o mesmo para os seus por serem compostos sobre as mesmas bases

Natildeo devemos pensar no entanto que o ceacutetico admita positivamente os argumentos que formula O mesmo Cota afirma algumas vezes que por considerar o assunto difiacutecil de ser tratado natildeo pode dizer o que ou como os deuses satildeo Tambeacutem diz ter mais habilidade em reconhecer os argumentos falsos do que em formular os verdadeiros E mesmo assim o ceacutetico deve forccedilosamente reconhecer que seu argumento natildeo pode ser admitido positivamente visto que o argumento oposto do dogmaacutetico o anula tambeacutem

De todas as expressotildees ceacuteticas com efeito haacute que pressupor que natildeo nos obcecamos de que elas sejam verdadeiras posto que jaacute dissemos que podem ser refutadas por si mesmas ao estarem incluiacutedas entre aquelas que satildeo enunciadas como os purgantes entre os medicamentos natildeo apenas eliminam do corpo a doenccedila mas que tambeacutem satildeo eliminados (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 119)

O problema do ceticismo 29

Notamos que os ceacuteticos eram cientes das consequecircncias de seu modo de argumentar e entendiam que natildeo havia saiacuteda desde que essa saiacuteda significasse a adoccedilatildeo de uma das teses defendidas A uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel defendida pelos pirrocircnicos era a suspensatildeo do juiacutezo ou epocheacute De acordo com eles qualquer um que se pusesse a investigar seriamente sobre a filosofia e natildeo se deixasse levar pela precipitaccedilatildeo impressionado por alguma escola dogmaacutetica acabaria por entender que natildeo haacute criteacuterios para a adoccedilatildeo de uma ou outra tese Todas as premissas que justificariam um criteacuterio satildeo falsas ou injustificaacuteveis

Montaigne sabia disso o capiacutetulo doze do segundo livro dos Ensaios causa controveacutersias ateacute hoje sobre o sentido que o ensaiacutesta deu agrave expressatildeo Apologia de Raymond Sebond Ateacute hoje se discute os motivos de Montaigne na tentativa de defender Sebond como o tiacutetulo sugere acaba por invalidar seus argumentos9 Natildeo pensamos que esse resultado tenha sido acidental como pode parecer mas que foi resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica empreendida por ele Natildeo entraremos poreacutem nessa discussatildeo interminaacutevel

A Apologia se refere ao teoacutelogo catalatildeo Raymond Sebond escritor da obra Theacuteologie Naturelle traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Nela o teoacutelogo se propotildee a fundamentar os artigos da feacute atraveacutes da razatildeo afirmando entre outras coisas que o homem ocupa o topo da escala dos seres acima de todos os outros animais e que eacute o fim e propoacutesito da criaccedilatildeo razatildeo da existecircncia de toda a criaccedilatildeo O objetivo de Montaigne com a Apologia eacute ldquoaliviar seu livro de duas objeccedilotildees principais que lhe satildeo feitasrdquo (II 12 163) A primeira delas eacute que os cristatildeos natildeo devem tentar apoiar a sua religiatildeo atraveacutes de razotildees humanas pois soacute pode ser concebida pela feacute e pela graccedila divina A segunda se

9 Cf nota 14 EVA 2004

30 Eacutetica e filosofia poliacutetica

refere aos que dizem que os argumentos de Sebond satildeo ldquofracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e dispotildeem-se a atacaacute-los facilmenterdquo (II 12 175)

Aos que combatem por meio de pressuposiccedilatildeo eacute preciso pressupor lhes ao contraacuterio o mesmo axioma sobre o qual se estiver debatendo Pois qualquer pressuposiccedilatildeo humana e qualquer enunciaccedilatildeo tem tanta autoridade quanto outra se a razatildeo natildeo fizer diferenccedila entre elas Assim precisamos colocaacute-las todas na balanccedila (II 12 277)

As vaacuterias referecircncias de Montaigne aos ceacuteticos

gregos suas passagens quase literais seu modo de argumentar natildeo nos deixa duacutevidas de que agrave altura da Apologia ele jaacute tivera contato com os textos de Sexto e Ciacutecero e de que o ceticismo havia deixado marcas profundas em seu pensamento O mais extenso e talvez o mais estritamente filosoacutefico dos ensaios ou seja a Apologia ldquoensaio ceacutetico por excelecircncia (EVA 2004 p 11)rdquo demonstra bem isso Voltemos agora poreacutem aos ensaios analisados por noacutes anteriormente Acreditamos ter encontrado na antinomia um ponto comum entre a Apologia e eles

Eacute claro que natildeo haacute a mesma riqueza de exemplos ou de argumentos nos textos de 1572 nem referecircncias tatildeo claras ao ceticismo como aqui As foacutermulas e tropos ceacuteticos tambeacutem provavelmente natildeo lhe eram conhecidas Percebemos no entanto que Montaigne jaacute criticava a pressuposiccedilatildeo vaidosa pela qual se considerava a razatildeo como instrumento suficiente para julgar natildeo apenas os assuntos divinos como em I 32 mas tambeacutem para os assuntos humanos como se viu com o outro ensaio Maleaacutevel como uma massa de modelar a partir da qual se forma as mais diversas figuras com a razatildeo se prova o que quiser desde que os fundamentos sejam aceitos pelo interlocutor

O problema do ceticismo 31

Montaigne procede como prescreve Sexto estabelecendo antinomias de diversas maneira ldquocontrapondo fenocircmenos a fenocircmenos consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas ou uns agraves outrasrdquo (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54) Fenocircmenos a fenocircmenos quando colocados lado a lado as diversas consequecircncias de uma mesma accedilatildeo ou consequecircncias iguais de accedilotildees diferentes consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas quando argumenta dialeticamente criando argumentos para invalidar os do oponente uns agraves outras quando alude a fenocircmenos para refutar argumentos ou vice-versa O nuacutecleo basilar de nossa argumentaccedilatildeo neste estudo e que aponta para um Montaigne com inclinaccedilotildees para o ceticismo desde seus primeiros escritos eacute exatamente essa encontramos exemplos assim natildeo soacute na Apologia mas tambeacutem em ensaios anteriores Se devemos concordar com Villey que aqueles ensaios foram escritos em 1572 antes do contato de Montaigne com o ceticismo pensamos haver razotildees para duvidar de que ele tenha adotado a filosofia estoica durante esse periacuteodo A desconfianccedila nos poderes da razatildeo jaacute nesses ensaios nos parece contraditoacuteria com as opiniotildees do estoicismo quanto a esse tema

REFEREcircNCIAS SEXTO EMPIacuteRICO Esbozos pirrocircnicos Madrid Gredos 1993

MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 2001

CONCEICcedilAtildeO Gilmar Henrique da Montaigne e a poliacutetica Cascavel Edunioeste 2014

EVA Luiz A A A figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007

32 Eacutetica e filosofia poliacutetica

____ Montaigne contra a vaidade um estudo sobre o ceticismo na Apologia de Raimond Sebond Satildeo Paulo HumanitasFFLCHUSP 2004

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

VASCONCELLOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo In MONTAIGNE Os ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

VENDEMIATTI Leandro Abel Sobre a natureza dos deuses de Ciacutecero Dissertaccedilatildeo (mestrado em linguiacutestica) ndash Instituto de estudos da linguagem UNICAMP Campinas 2003

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne In MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

= II =

MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo

Este trabalho eacute parte de minha pesquisa em

desenvolvimento como doutorando em filosofia que objetiva estudar a originalidade ou antes a audaacutecia do pensamento de Montaigne cujo debate e questionamentos se iniciaram no acircmbito da religiatildeo e se estenderam para a filosofia e para a ciecircncia

Montaigne segundo Birchal (2007) relata o eu como fluxo natildeo como lsquosubstacircnciarsquo nem como lsquovaziorsquo No espiacuterito montaigniano quero comeccedilar este texto confessando junto com Porchat que tambeacutem sou um homem desesperado da filosofia e de seus problemas pois para mim os discursos da filosofia natildeo satildeo mais que prodigiosos e sublimes jogos de palavras muitas vezes distante da vida Ou como disse Porchat ldquoUm brinquedo dos

Poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico Email gilmarhenriqueconceicaohotmailcom

34 Eacutetica e filosofia poliacutetica

filoacutesofos com as palavras do Logos com os filoacutesofosrdquo (PORCHAT 2000 p 122) Montaigne chega a dizer que a razatildeo eacute uma espeacutecie de massinha com a qual podemos modelar o que quisermos Montaigne leva ao limite a capacidade da razatildeo Haacute em mim a vivecircncia da duacutevida ceacutetica pirrocircnica como uma profunda inquietaccedilatildeo Fico inquieto com os dogmaacuteticos de todos os tipos Evidentemente as questotildees loacutegicas envolvem um vocabulaacuterio teacutecnico Portanto natildeo estou pensando em loacutegica propriamente mas em filosofia Tal como os pirrocircnicos tambeacutem desconfio dos que falam difiacutecil em filosofia ldquoExprimir-se de modo difiacutecil eacute na verdade deixar transparecer certa falta de rigor intelectualrdquo (PORCHAT 2000 p 125) Eacute este o sentido pelo qual Montaigne conclui que as filosofias difiacuteceis constituem um pirronismo sob a forma resolutiva porque frequentemente a inextrincaacutevel obscuridade de seus textos natildeo nos permite saber nem mesmo qual eacute sua opiniatildeo Ou entatildeo apresentam tantas interpretaccedilotildees divergentes que obnubilam a opiniatildeo Obscurecemos e enclausuramos a compreensatildeo com tantas interpretaccedilotildees10

Pirro natildeo deixou nada escrito pois para ele filosofia natildeo eacute uma doutrina uma teoria ou um saber sistemaacutetico mas principalmente uma praacutetica uma atitude um modus vivendi (MARCONDES

10 [B] Quem natildeo afirmaria que as glosas aumentam as duacutevidas e ignoracircncia visto que natildeo se vecirc livro algum seja humano ou divino no qual o mundo se empenhe cuja dificuldade a interpretaccedilatildeo faccedila sumir O centeacutesimo comentaacuterio remete-o a seu seguinte mais espinhoso e mais escarpado do que o primeiro o achara Quando concordamos entre noacutes lsquoeste livro jaacute teve o suficiente doravante natildeo haacute mais o que dizerrsquo Isso se vecirc melhor na chicanarsquo (III 13 p 427)

Montaigne e o legado ceacutetico 35

2007 p 95) Montaigne seguindo os passos de Pirro e Sexto Empiacuterico foi decisivo na histoacuteria da filosofia sob trecircs aspectos a) ao plantar a semente da duacutevida pirrocircnica que foi desenvolvida por ele e que ficou como heranccedila para filoacutesofos posteriores b) ao argumentar que se explicaccedilatildeo haacute natildeo busca almejar o estatuto de conhecimento mas limita-se agrave constataccedilatildeo de que somos parte de uma natureza que transcende indefinidamente nossa capacidade de conhececirc-la c) Ao demolir nossas certezas visto que natildeo podemos identificar com seguranccedila nossas afecccedilotildees e disposiccedilotildees e natildeo podemos determinar nossos movimentos internos portanto devido agrave complexidade e indeterminaccedilatildeo de nossas afecccedilotildees somente podemos ver uma parte do todo ou um traccedilo entre tantos traccedilos possiacuteveis

Na realidade nos Ensaios temos a apresentaccedilatildeo de conceitos importantes para a compreensatildeo do pensamento montaigniano epokheacute zeteacutesis diaphonia isosthenia epokheacute ataraxia e eudaimonia Tais termos constituem o cerne de todo pensamento ceacutetico e satildeo familiares a Montaigne que com eles trabalha Em Montaigne temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do instante da passagem Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero que eacute tudo o que temos por esta razatildeo Montaigne eacute lsquoo filoacutesofo da aparecircnciarsquo

O ensaiacutesta compreendeu profundamente como poucos o pirronismo Montaigne eacute um pirrocircnico porque questiona ateacute mesmo o pirronismo Em outras palavras eacute isto mesmo que constitui a

36 Eacutetica e filosofia poliacutetica

atitude pirrocircnica Aprecio os inteacuterpretes do pensamento montaigniano quando destoando da exposiccedilatildeo sisuda da vida acadecircmica relatam suas exposiccedilotildees em primeira pessoa Portanto tambeacutem engatinharei do mesmo modo acompanhando de longe os passos de estudiosos que tanto admiro particularmente Oswald Porchat

Constato no ceticismo minha identidade filosoacutefica e minha chave de libertaccedilatildeo natildeo tenho verdade natildeo tenho deus natildeo tenho amigos natildeo tenho irmatildeo natildeo tenho pai e natildeo tenho matildee Se natildeo for exatamente isso eacute quase isto Ou como cantou Bob Dylan lsquoLike a rolling stonersquo Como ultima ratio entendo que estamos completamente soacutes no universo mas isso parece natildeo me entristecer Ao contraacuterio me daacute uma espeacutecie de alegria pois implica em aceitar o traacutegico e a solidatildeo da condiccedilatildeo humana lsquoalone and togetherrsquo Estamos sozinhos juntos Claro a presenccedila de um verdadeiro amigo pode nos acompanhar Aliaacutes as relaccedilotildees sociais e os projetos coletivos possibilitam tecer fios de compartilhamento Como a verdadeira amizade (I 28) eacute rara podemos ter amizades por um ponto soacute Aleacutem disso o amor nos tira da solidatildeo de ser um Por isso mesmo afinal eacute necessaacuterio viver plenamente a vida e a filosofia natildeo pode ser uma rejeiccedilatildeo da vida das vicissitudes e contingecircncias da vida comum A filosofia natildeo pode rejeitar as paixotildees humanas em nome do pensamento Como registra Sexto Empiacuterico ratificado por Montaigne se o ceacutetico condena os dogmas em nenhum momento entretanto entra em conflito com a vida comum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Com o ensaiacutesta temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do

Montaigne e o legado ceacutetico 37

instante da passagem Precisamente pelo fato de que Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero soacute temos para decidir o instante que passa

Neste trabalho elementar o nosso ponto de partida consiste em encetar esforccedilos no sentido de mostrar que Montaigne como leitor de Sexto Empiacuterico visceralmente ceacutetico suspende o juiacutezo sobre as verdades dogmaacuteticas de qualquer natureza em razatildeo disso como o ensaiacutesta natildeo tem um dogma epistemoloacutegico nem metafiacutesico natildeo apresenta um dogma moral ou um dogma poliacutetico Julga que em uacuteltima instacircncia as correntes filosoacuteficas satildeo meramente exerciacutecios de pensamento do homem no mundo Para isso nosso autor se vale em seus escritos de paradoxos de desordem e de supostas incongruecircncias A respeito disso Eva (2007) escreve que eacute certo que um traccedilo importante da reflexatildeo nos Ensaios reside em seu caraacuteter assumidamente provisoacuterio decorrente da liberdade que o autor encontra para voltar atraacutes em relaccedilatildeo ao que dissera anteriormente mesmo ao preccedilo de se contradizer Montaigne por exemplo alterna o elogio e o escaacuternio da philosophie Assim se por um lado a filosofia eacute enaltecida pela sua capacidade de tornar a alma e o corpo sadios por outro lado ela eacute criticada como palco de um conflito de razotildees (II 12)

Meu estudo estaacute focado no ceticismo como concepccedilatildeo filosoacutefica e natildeo como uma seacuterie de duacutevidas (POPKIN2000) Assim o ceticismo teve sua origem no pensamento grego antigo Como eacute

38 Eacutetica e filosofia poliacutetica

sabido durante o helenismo formou-se um conjunto de argumentos ceacuteticos estabelecendo que a nenhuma forma de conhecimento eacute possiacutevel (Ceticismo acadecircmico) b) natildeo haacute evidecircncia adequada ou suficiente para determinar se alguma forma de conhecimento eacute ou natildeo possiacutevel (Ceticismo pirrocircnico)

Como registra Popkin (2000) e Brochard (2009) o ceticismo acadecircmico surgiu na Academia de Platatildeo e sua formulaccedilatildeo teoacuterica eacute atribuiacuteda a Arcesilau e a Caacuterneacuteade que elaboraram uma seacuterie de argumentos voltados sobretudo contra as pretensotildees a conhecimento dos filoacutesofos estoicos procurando mostrar que nada se pode conhecer com certeza Estes argumentos foram transmitidos ateacute noacutes especialmente pelas obras de Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio e Santo Agostinho Os Acadecircmicos formularam uma seacuterie de dificuldades visando mostrar que os dados que obtemos por meio de nossos sentidos satildeo pouco confiaacuteveis que natildeo podemos ter certeza se nosso raciociacutenio eacute seguro e que natildeo possuiacutemos nenhum criteacuterio ou padratildeo garantido para determinar quais de nossos juiacutezos satildeo verdadeiros e quais satildeo falsos De acordo com Popkin

O problema baacutesico em questatildeo aqui eacute que qualquer proposiccedilatildeo pretendendo afirmar algum tipo de conhecimento sobre o mundo conteacutem pretensotildees que vatildeo aleacutem dos relatos meramente empiacutericos sobre como nos parecem ser os fatos (POPKIN 2000 p 2)

Luiz Eva (2007) em seu estudo sobre Montaigne indaga se dada a proeminecircncia que

Montaigne e o legado ceacutetico 39

ganha nos Ensaios o projeto de um exame da condiccedilatildeo humana e da produccedilatildeo de um retrato de si mesmo natildeo estariacuteamos diante de uma figura talvez embrionaacuteria do viacutenculo teoacuterico entre criacutetica epistemoloacutegica e tematizaccedilatildeo da subjetividade temas frequentes na posteridade filosoacutefica e mesmo diretamente associados em diversos filoacutesofos como Descartes Eva ainda sugere que o seu trajeto de estudos parece delinear uma nova imagem do proacuteprio ceticismo de Montaigne um ceticismo de linhagem lsquoradicalrsquo Acrescenta que o ceticismo montaigniano possui uma configuraccedilatildeo conceitual proacutepria e eacute ao mesmo tempo uma filosofia articulada com o pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas corporais e espirituais na medida em que isso se faz ao nosso alcance ldquouma filosofia voltada ao mundo da vida e da accedilatildeo e ao contato do homem com sua efetiva condiccedilatildeordquo (EVA 2007 p 12) Assim torna-se possiacutevel recuperar os contornos proacuteprios de um gecircnero filosoacutefico que em boa medida foram apagados pela maneira como a posteridade acolheu o ceticismo em sua versatildeo cartesiana Aliaacutes de modo geral a versatildeo difundida do ceticismo parece ser aquela advinda de Ciacutecero e Santo Agostinho (portanto na versatildeo Acadecircmica) Descartes Hume e Kant (soacute para citar alguns) enfrentaram a questatildeo da duacutevida ceacutetica Segundo Porchat (2000) Hume eacute um peacutessimo leitor do ceticismo pirrocircnico mas esta eacute outra histoacuteria natildeo iremos tratar disso neste momento

Popkin (2000) como historiador da filosofia moderna em seu estudo sobre os ceacuteticos contraria um padratildeo otimista de representaccedilatildeo dessa mesma

40 Eacutetica e filosofia poliacutetica

histoacuteria como uma aventura em direccedilatildeo ao esclarecimento e a certezas cada vez mais consistentes Como eacute sabido o ceticismo surgiu na Antiguidade Claacutessica como reaccedilatildeo agrave proliferaccedilatildeo de sistemas filosoacuteficos todos eles orientados para a detecccedilatildeo da verdade Em termos mais precisos a atitude ceacutetica emerge da descoberta de que a filosofia eacute um campo de disputa entre sistemas que sustentam que haacute uma profunda distinccedilatildeo entre o que eacute e o que aparece Enquanto homens comuns movidos por apetites e crenccedilas vivem segundo o que lhes parece ser o mundo caberia ao filoacutesofo dizer a verdade com base em sua capacidade extraordinaacuteria de ver o que natildeo se vecirc ordinariamente

A palavra ceticismo deriva de skeacutepsis que significa em grego investigaccedilatildeo O ceacutetico ao investigar os diferentes sistemas filosoacuteficos descobre que todos eles tecircm em comum a pretensatildeo de dizer o que a verdade eacute mas que por supocirc-la pertencendo agrave um mundo aleacutem de nossa percepccedilatildeo comum (o Motor Imoacutevel de Aristoacuteteles ou o Mundo das Ideias de Platatildeo por exemplo) natildeo entram em acordo com relaccedilatildeo ao que ela significa Cada um a descreve de forma particular sem apresentar evidecircncias criacuteveis para sustentar suas hipoacuteteses Trata-se pois de uma querela sobre a qual ateacute agora natildeo se pode decidir Como escreve Porchat os ceacuteticos revelam a existecircncia de um ldquoconflito das filosofiasrdquo Nesse conflito cada novo pensador pretende solucionar os impasses produzidos por seus predecessores oferecendo a possibilidade de uma nova e mais perita definiccedilatildeo da verdade Porchat sugere que ateacute mesmo a tentativa de ver

Montaigne e o legado ceacutetico 41

nas filosofias uma lsquosinfoniarsquo na realidade eacute mais um elemento da lsquodiaphoniarsquo Ou seja parece que o que acaba por acontecer eacute que essas ldquosoluccedilotildeesrdquo tatildeo somente alargam o acircmbito do dissenso Pensando resolver o problema da verdade o filoacutesofo obcecado por essa busca contribui para o aumento da incerteza

O ceticismo pirrocircnico portanto desde suas primeiras formulaccedilotildees com Pirro de Eacutelis ateacute os textos remanescentes de Sexto Empiacuterico (e Montaigne e Francisco Sanchez durante o Renascimento) sustenta a falibilidade humana em termos cognitivos e a ausecircncia de criteacuterios para definir o que eacute a verdade para aleacutem do mundo comum dos fenocircmenos que todos experimentamos

Com efeito Popkin (2000) narra os efeitos e a recepccedilatildeo que os argumentos organizados por Sexto Empiacuterico tiveram nos seacuteculos XVI e XVII Depois de considerar o impacto dos textos e argumentos ceacuteticos nos debates suscitados pela Reforma Protestante Popkin nos conduz ao universo de Michel de Montaigne leitor da primeira traduccedilatildeo latina de Sexto Empiacuterico Jaacute chamamos a atenccedilatildeo para o fato de que Montaigne tambeacutem eacute leitor de diversas obras atinentes ao ceticismo (Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio Santo Agostinho Plutarco Agrippa e Francisco Sanchez) Todavia destas leituras a que mais deixa traccedilos evidentes nos Ensaios eacute a de Sexto Empiacuterico mesmo que Montaigne natildeo cite o seu nome

Montaigne foi muito lido por Descartes Pascal Malebranche Nietzsche Rousseau Hume entre muitos outros Em Montaigne estatildeo

42 Eacutetica e filosofia poliacutetica

magnificamente presentes os temas claacutessicos do ceticismo a falibilidade do conhecimento por meios humanos uma visatildeo da vida social constituiacuteda pelas crenccedilas ordinaacuterias e uma sensibilidade iacutempar para a existecircncia de uma vasta variedade cultural e civilizatoacuteria irredutiacutevel a criteacuterios universais Essa uacuteltima perspectiva estaacute presente em um de seus ensaios a respeito dos iacutendios brasileiros Dos Canibais Nele encontramos o primeiro registro europeu que os percebe como personagens de uma experiecircncia distinta da europeia vale dizer como outra forma de sociedade Essa sensibilidade para com a diferenccedila cultural eacute uma heranccedila expliacutecita do antigo ceticismo que em um dos argumentos legados por Sexto Empiacuterico e alargado no seacuteculo XX por Claude Leacutevi-Strauss percebia a diferenccedila civilizatoacuteria como irredutiacutevel a criteacuterios universais de juiacutezo e avaliaccedilatildeo Mas condenamos o que nos parece estranho aos nossos costumes

Popkin (2000) a partir de Montaigne resgata pensadores ateacute quase desconhecidos Pierre Charron por exemplo herdeiro intelectual de Montaigne escreveraacute um dos livros mais lidos no seacuteculo XVII francecircs o De la Sagesse no qual a sabedoria eacute apresentada como fruto da utilizaccedilatildeo do ceticismo (ou pirronismo) contra as diferentes filosofias dogmaacuteticas (LESSA 2008)

Conforme Sexto e Montaigne as coisas existem poreacutem somente o que podemos saber e dizer delas satildeo de que maneira nos afetam - natildeo o que satildeo em si mesmas Natildeo obstante como iremos argumentar a epokheacute de Sexto natildeo eacute tatildeo radical como a de Pirro Montaigne por seu lado defende tambeacutem uma eacutetica do sentido comum e ainda como

Montaigne e o legado ceacutetico 43

pirrocircnico aceita a indiferenccedila (adiaphora) com respeito a todas as soluccedilotildees morais reivindica tambeacutem a importacircncia do empiacuterico

Montaigne eacute o filoacutesofo do paradoxo e da contradiccedilatildeo quando fala das coisas mas a contradiccedilatildeo estaacute nas proacuteprias coisas em suas muacuteltiplas perspectivas (II 12) Eacute claro que com isso natildeo queremos dizer que Montaigne nunca se contradiga Poreacutem a questatildeo central eacute que eacute exatamente a aceitaccedilatildeo de suas contradiccedilotildees que permite a Montaigne a articulaccedilatildeo de uma postura filosoacutefica que consiste em assumir a proacutepria incoerecircncia como labor filosoacutefico Ele parece fazer as contradiccedilotildees e incoerecircncias aparentes e efetivas trabalharem no exerciacutecio de seu pensamento na investigaccedilatildeo daquilo que lhe aparece

Essa postura arrasta consigo uma consequecircncia metodoloacutegica importante que consiste em identificar a particularidade de sua filosofia ceacutetica Montaigne como um filoacutesofo lsquode nova figurarsquo eacute inteiro Como registra Eva (2007) uma generalizaccedilatildeo aligeirada acerca da contradiccedilatildeo ambiguidade e incoerecircncia de Montaigne pode nos cegar para aquilo que compreendemos como coerecircncia filosoacutefica de Montaigne Ou seja em razatildeo da ditadura do Logos ficamos impossibilitados de observar a possibilidade de as eventuais oscilaccedilotildees opinativas Entretanto acertadamente Eva argumenta que ceticismo natildeo eacute sinocircnimo de irracionalismo ao contraacuterio a posiccedilatildeo ceacutetica estaacute conforme ao emprego da razatildeo Desse modo a constataccedilatildeo da equipolecircncia e da isostenia dos argumentos contraacuterios natildeo significa em Montaigne

44 Eacutetica e filosofia poliacutetica

a impossibilidade de uma investigaccedilatildeo racional visto que para o nosso autor os ceacuteticos se servem da razatildeo para investigar poreacutem natildeo para sentenciar

Montaigne salienta que adere ao phainoacutemenon e que conduz sua vida praacutetica da lsquomaneira comumrsquo como escreve Sexto nas Hipotiposes I 24

Aderindo assim ao aparecer das coisas [phainoacutemena] noacutes vivemos de acordo com as regras normais da vida de modo natildeo dogmaacutetico vendo que natildeo podemos permanecer inativos E parece-nos que essa regulaccedilatildeo da vida possui quatro aspectos O guia da natureza eacute aquele pelo qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo e pensamento a exigecircncia das paixotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva a comer e a sede a beber a tradiccedilatildeo dos costumes e das leis aquela pela qual noacutes consideramos a piedade nas accedilotildees da vida um bem e a impiedade um mal e a instruccedilatildeo das artes aquela pela qual natildeo somos insativos nas artes [teacutechnai] que empreendemos (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

O problema que surge para mim eacute se o ceticismo rejeita todas as filosofias Montaigne rejeita tambeacutem o ceticismo Colegas doutorandos do PPGFil da unioeste ateacute brincaram comigo recentemente quando me falaram lsquovocecirc tem certeza do ceticismorsquo Deixando de lado a brincadeira haacute aiacute algo de real Como posso ter certeza no ceticismo uma vez que isso constitui uma contradiccedilatildeo com a perspectiva ceacutetica Por que o ceticismo natildeo pode se assumir como um posicionamento consistentemente radical Claro a questatildeo estaacute mal colocada Jaacute adiantamos o

Montaigne e o legado ceacutetico 45

pirronismo eacute mais uma atitude do que um sistema de pensamento

O pirronismo acontece no acircmbito mais amplo da diaphonia filosoacutefica Portanto duvidar do proacuteprio ceticismo como Montaigne agraves vezes parece fazer eacute uma atitude pirrocircnica Portanto com isso ele natildeo rompe com o pirronismo ao contraacuterio reforccedila o pirronismo Entretanto Montaigne inova o ceticismo trazendo agrave baila temas que ateacute entatildeo natildeo ventilados no debate ceacutetico De acordo com Smith (2012) poreacutem enquanto Sexto relata as opiniotildees dos outros filoacutesofos Montaigne fala de sua proacutepria vida Quando relata o que lhe aparece Sexto relata somente oposiccedilatildeo de teses e argumentos quando relata o que lhe aparece Montaigne fala de sua vida Sexto nunca pretendeu que relatar a proacutepria vida tivesse relevacircncia filosoacutefica Os Ensaios surgem portanto como uma nova fonte para a diaphoniacuteapirrocircnica

Na tentativa de responder aos meus colegas o que posso dizer eacute que natildeo eacute bem uma certeza que tenho no ceticismo mas eacute isto exatamente que me aparece como ceticismo Talvez seja algo como a forma como vejo o mundo Eu natildeo sabia que eu era profundamente ceacutetico ateacute o dia em que li Montaigne e Sexto Empiacuterico Descobri com eles minha identidade filosoacutefica Na realidade sem ser conscientemente ceacutetico bem cedo passei a desconfiar das explicaccedilotildees que presunccedilosamente pretendem afirmar o que as coisas satildeo efetivamente em sua estrutura interna Sejam elas de acircmbito filosoacutefico poliacutetico ou religioso Jaacute salientei que o ceacutetico desconfia daquilo que chamamos lsquorealidadersquo

46 Eacutetica e filosofia poliacutetica

e sugere que se trata apenas de lsquoconsensorsquo e que muita coisa nos escapa Eacute graccedilas a esse sentido preciso de sua criacutetica tatildeo avassaladora que Montaigne acompanhando Sexto afirma que os philosophes que evocam os fenocircmenos sensiacuteveis como resposta agravequele que os potildee em duacutevida satildeo indignos desse nome

[A] Eles natildeo precisam me dizer eacute verdadeiro pois vecircs e sentes assim eacute preciso que me digam se o que eu penso sentir eu o sinto portanto de fato e se eu o sinto que eles me digam depois por que eu o sinto e como e o quecirc que eles me digam o nome a origem os componentes e os produtos do calor do frio das qualidades daquele que age e daquele que padece ou entatildeo que eles abandonem sua profissatildeo que eacute a de natildeo receber nem aprovar nada senatildeo pela via da razatildeo eacute a sua pedra de toque em toda a espeacutecie de investigaccedilotildees mas certamente eacute uma pedra de toque plena de falsidade de erro de fraqueza e de falha (II 12)

Haacute uma questatildeo muito debatida entre os inteacuterpretes que se referem agraves apropriaccedilotildees compilaccedilotildees e lsquopilhagensrsquo que Montaigne realiza advindas de autores antigos Trata-se de lsquoplaacutegiorsquo tal como entendemos hoje Quer me parecer que natildeo Acompanhemos a escrita de Montaigne quando se refere aos seus lsquoplaacutegiosrsquo

[] No entanto bem sei com quanta ousadia eu mesmo tento a todo momento igualar-me a meus plaacutegios ir par a par com eles natildeo sem uma temeraacuteria esperanccedila de conseguir

Montaigne e o legado ceacutetico 47

enganar os olhos dos juiacutezes ao discerni-los (I 26 p 220) O ensaiacutesta critica o plaacutegio e assume o plaacutegio

Examinemos isto A sua criacutetica ao plaacutegio eacute devastadora classificando-a em primeiro lugar de lsquoinjusticcedila e covardiarsquo de quem natildeo tendo em seu patrimocircnio pessoal coisa alguma com que se promover procura apresentar-se com um valor alheio E em segundo lugar chama o plaacutegio de lsquogrande tolicersquo pois se contenta por embuste em obter aprovaccedilatildeo Afinal a que tipo de plaacutegio Montaigne se refere nesta criacutetica Natildeo agravequele que leva agrave produccedilatildeo do proacuteprio mel ou da autonomia da obra mas aos que apresentam lsquoremendosrsquo lsquodessemelhanccedilasrsquo como seus e que na realidade natildeo soube lsquoassimilaacute-losrsquo como as abelhas e ele proacuteprio o fez Portanto as referecircncias ficam ao modo Frankenstein diriacuteamos recorrendo a uma posterior imagem de um livro que surgiu em 1818 Em Frankenstein aparecem as costuras e natildeo haacute plena consciecircncia Que eacute exatamente a criacutetica aos plaacutegios que Montaigne elabora

Como Montaigne busquei fazer do conhecimento afeto potente porque a inteligecircncia eacute que vecirc e que ouve a inteligecircncia eacute que tudo aproveita que dispotildee que age que domina e que reina todas as outras coisas satildeo cegas surdas e sem alma Mas Montaigne ressalva que eacute bem verdade que a tornamos servil e covarde e em certos momentos lhe recusamos a liberdade de fazer coisa alguma por si mesma (I 26 p 227) Assim com o plaacutegio a gente perde potecircncia produzindo em

48 Eacutetica e filosofia poliacutetica

si afeto triste Refiro-me aqui agrave ideia de conatus e de paralelismo que estatildeo presentes em Spinoza e Montaigne (ldquoO que se instrui natildeo eacute uma alma natildeo eacute um corpo eacute um homem natildeo se deve separaacute-lo em doisrdquoI 26 p 247) O leitor atento provavelmente estaacute percebendo que estou fazendo uma relaccedilatildeo ligeira entre estes dois filoacutesofos mas esta relaccedilatildeo natildeo eacute improacutepria Ilustres leitores de Montaigne divergem sobre o seu pensamento Alguns como por exemplo Pascal e Kant procuram descobrir nele um cristatildeo outros como Emerson veem nele um protoacutetipo do ceacutetico outros um precursor de Voltaire Mas a leitura que comungo eacute a de Sainte-Beuve Sainte-Beuve chega a julgar os Ensaios uma espeacutecie de preparaccedilatildeo de antecacircmara para a Eacutetica de Spinoza Aleacutem disso Justo-Liacutepsio traduziu para o latim a palavra essais com o tiacutetulo de gustare Os Ensaios de Montaigne foram citados em latim pelos seus contemporacircneos com o tiacutetulo geral de conatus significando a tensatildeo da pessoa que opera uma ofensiva contra as coisas Os Ensaios satildeo uma escola de tensatildeo e de liberdade sempre fraacutegil e precaacuteria

Desse modo o recurso do plaacutegio tira da gente e nos impede de perseverar em ser-movimento A paixatildeo do plaacutegio em seu caminho mais curto eacute inflado e mentiroso natildeo importa os atenuantes Se a razatildeo-corpo revela que nosso desejo de ser se realiza fundamentalmente como desejo de conhecer o plaacutegio quer enganar a razatildeo Que loucura Pois Montaigne afirma que na solidatildeo uacuteltima do pensamento sabemos que mentimos Entatildeo a criacutetica e o desmascaramento arranca a cauda plumosa de filoacutesofo grudada com sabatildeo e nos restitui ao fogo

Montaigne e o legado ceacutetico 49

da filosofia No primeiro momento o impacto eacute de desdeacutem e de vergonha poreacutem isto eacute verdadeiramente salutar Quando somos dominados por afetos contraacuterios vemos o melhor e fazemos o pior Montaigne falou que o que diminui a vaidade do pavatildeo satildeo os seus peacutes Entatildeo natildeo haacute plaacutegio em Montaigne pois quando ele mesmo descreve o seu ato de apropriaccedilatildeo de autores se compara agraves abelhas que vatildeo de flor em flor sugando poreacutem o produto final o mel eacute pessoal Do mesmo modo os Ensaios - em que pese a diversidade de autores compilados - eacute produto seu eacute o seu mel Em Montaigne natildeo aparecem as lsquocosturasrsquo

A verdade e a razatildeo satildeo comuns a todos e natildeo pertencem a quem as disse primeiramente mais do que a quem as diz depois [C] Natildeo eacute segundo Platatildeo mais do que segundo eu mesmo jaacute que ele e eu o entendemos e vemos da mesma forma [A] As abelhas sugam das flores aqui e ali mas depois fazem o mel que eacute todo delas jaacute natildeo eacute tomilho nem manjerona Assim tambeacutem as peccedilas emprestadas de outrem ele iraacute transformar e misturar para construir uma obra toda sua ou seja seu julgamento Sua educaccedilatildeo seu trabalho e estudo visam tatildeo-somente a formaacute-lo (I 26 p227)

As Hipotiposes de Sexto nos Ensaiosde Montaigne

O ceticismo objetiva opor objetos sensiacuteveis e objetos do pensamento de maneira que nenhuma das explicaccedilotildees em conflito seja mais criacutevel do que outra Satildeo ceacuteticos aqueles que em uma investigaccedilatildeo

50 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo encontram resultado e persistem na busca Os que encontram o que procuram satildeo chamados de dogmaacuteticos e aqueles que confessam ser inapreensiacutevel satildeo chamados acadecircmicos Dois tipos de argumentaccedilatildeo satildeo usados pelos ceacuteticos a argumentaccedilatildeo geral que leva agrave suspensatildeo do juiacutezo e a especiacutefica que faz objeccedilotildees contra as diversas filosofias O princiacutepio baacutesico do ceticismo eacute de se opor cada explicaccedilatildeo com outra equivalente levando a um estado de repouso abandonando a atitude dogmaacutetica (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Uma noccedilatildeo importante eacute a de suspensatildeo do juiacutezo que permeia toda filosofia ceacutetica e constitui um fim pois eacute o resultado final da investigaccedilatildeo O estado de suspensatildeo do juiacutezo que em grego eacute epokhe eacute a impossibilidade de se afirmar ou de negar a explicaccedilatildeo da aparecircncia em razatildeo da argumentaccedilatildeo geral que opotildee a cada argumento com outro pelo princiacutepio baacutesico do ceticismo O ceacutetico diz o que lhe parece e relata o que sente de forma natildeo dogmaacutetica sem afirmar nada de positivo sobre o que existe na realidade externa O ceacutetico natildeo rejeita o aparente que satildeo as impressotildees sensiacuteveis mas a explicaccedilatildeo do aparente

O criteacuterio de accedilatildeo para o ceacutetico eacute a aparecircncia ou seja as impressotildees sensiacuteveis pois estas natildeo satildeo sujeitas ao questionamento pois satildeo sensaccedilotildees e afecccedilotildees involuntaacuterias As impressotildees sensiacuteveis satildeo o princiacutepio de nosso relacionamento com o mundo As ciecircncias naturais satildeo estudadas A loacutegica e a eacutetica satildeo auxiliares na medida em que aumentam a habilidade de fazer oposiccedilatildeo a qualquer explicaccedilatildeo Aderindo ao que aparece vivemos de acordo com as normas da vida

Montaigne e o legado ceacutetico 51

comum de modo natildeo dogmaacutetico Poreacutem natildeo podendo decidir diante da equumlipolecircncia das controveacutersias acerca da verdade ou falsidade das impressotildees o ceacutetico adota a suspensatildeo Isso pode nos remeter a analogia com o equiliacutebrio de forccedilas de um sistema em equiliacutebrio onde a cada forccedila existe outra de igual intensidade e direccedilatildeo poreacutem de sentido contraacuterio O resultado eacute a ineacutercia O argumento que daacute vantagem ao ceacutetico sobre o dogmaacutetico eacute ldquoaqueles que mantecircm a opiniatildeo de que uma coisa eacute naturalmente boa sentem-se aflitos quando natildeo a encontram e quando a tem apresentam um contentamento irracional e recear perdecirc-lardquo O ceacutetico natildeo determina serem as coisas naturalmente boas ou maacutes natildeo as evitam nem as buscam e por isso natildeo se perturbam (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

Observaremos que Montaigne nos Ensaios

retoma a tradiccedilatildeo ceacutetica da Antiguidade preservando-a ao mesmo tempo em que a reconstroacutei e lhe confere novo sentido dando origem a um ceticismo de ldquolinhagem radicalrdquo (EVA 2007 p 389) a partir de interrogaccedilotildees que natildeo cessam A visatildeo interrogativa de Montaigne eacute pirrocircnica ldquo[B] Essa visatildeo eacute expressa com mais clareza pela interrogaccedilatildeo lsquoQue sei eu rsquo tal como a trago de divisa numa balanccedilardquo (II 12 p 292) Haacute diferentes respostas para o problema da viabilidade do pirronismo mas concordamos com a ideia de relativa continuidade do pirronismo destacando a noccedilatildeo de fenocircmeno como eixo que marca essa continuidade (GAZINELLI 2009) Observa-se que Dioacutegenes Laeacutercio (2009) continua exercendo consideraacutevel influecircncia sobre a interpretaccedilatildeo do

52 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo com sua obra A vida de Pirro Ao discorrer sobre o pirronismo Laeacutercio considera-o o mais nobre filosofar por ter inventado em seu modo de vida os estados de akatalepsiacutea (inapreensibilidade das coisas) e de epokheacute(suspensatildeo de juiacutezo)

Sendo assim nada dizia ser nem belo nem feio nem justo nem injusto mas igualmente sobre todas as coisas afirmava nada ser em verdade mas todos os homens agirem segundo a convenccedilatildeo e o costume pois cada coisa natildeo eacute mais isso que aquilo (LAEacuteRCIO 2009 p 161)

Como viemos chamando a atenccedilatildeo Montaigne eacute leitor rigoroso de Sexto Empiacuterico um dos expoentes maacuteximos do ceticismo Do mesmo modo como afirmamos anteriormente lembremos que este diz ser princiacutepio pirrocircnico fundamental criar antinomias opondo razotildees contraacuterias para renovar o estado de epokheacute decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a verdade nas filosofias conflitantes (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Temos entatildeo a natildeo resoluccedilatildeo da diaphonia e por essa razatildeo o ceacutetico eacute lsquodo contrarsquo O tiacutetulo das obras de Sexto Empiacuterico daacute-nos uma ideia do caraacuteter destrutivo1 e ao mesmo tempo construtivo dessa filosofia

Observemos desse modo a centralidade que tem a palavra lsquocontrarsquo no legado de Sexto Contra os dogmaacuteticos (dividido em cinco livros Contra os loacutegicos I e II Contra os fiacutesicos I e II e Contra os eacuteticos) e Contra os professores (dividido em seis livros Contra os gramaacuteticos Contra os retoacutericos Contra os geocircmetras Contra os aritmeacuteticos Contra os astroacutelogos e Contra os muacutesicos) Acrescente-se

Montaigne e o legado ceacutetico 53

todavia que o escrito mais conhecido do lsquodivinorsquo Sexto satildeo as Hipotiposes Pirrocircnicas Esse livro comeccedila distinguindo a principal diferenccedila entre os sistemas filosoacuteficos em seguida o capiacutetulo III aborda a denominaccedilatildeo do ceticismo Sexto nesta obra posiciona-se contra o dogmatismo recorrendo aos argumentos das proacuteprias doutrinas contrapondo-os de maneira que se refutem uns aos outros e anulem-se O objetivo de tal esforccedilo eacute questionar a presunccedilatildeo da sabedoria e do conhecimento apontar as aporias controveacutersias e disputas em torno do que seria a verdade demolir pretensotildees acerca de criteacuterios para se alcanccedilar a verdade e em consequecircncia a sabedoria Inversamente ele tambeacutem ataca a posiccedilatildeo dos acadecircmicos no que tange agrave negaccedilatildeo radical da possibilidade do conhecimento visto que julga que isso constitui uma espeacutecie de dogmatismo negativo (SEXTO EMPIacuteRICO 2013)

De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores (MARCONDES 2007) Como natildeo eacute possiacutevel aqui nos adentrarmos em todos os conceitos ceacuteticos devido agrave sua centralidade fixemo-nos apenas na epokheacute A epokheacute eacute uma consequecircncia da incapacidade de decisatildeo racional a favor de um lado ou outro da

54 Eacutetica e filosofia poliacutetica

questatildeo Eacute uma atitude de natildeo aceitar nem negar determinada tese em virtude do igual peso das razotildees opostas Natildeo eacute a aplicaccedilatildeo da epokheacute que mostra a universal contradiccedilatildeo antes eacute a constataccedilatildeo da diaphonia das opiniotildees que leva agrave suspensatildeo ceacutetica do juiacutezo A suspensatildeo do juiacutezo por sua vez traz consigo a ataraxia ou a imperturbabilidade da alma A epokheacute ceacutetica leva-nos a um profundo respeito por tudo aquilo que eacute variaacutevel nas partes Esta valorizaccedilatildeo do variaacutevel e do diverso tem consequecircncias no domiacutenio poliacutetico

Na realidade o ceticismo penetrou especialmente no Renascimento a partir da disputa sobre o ldquopadratildeo corretordquo do conhecimento religioso o que era chamado de lsquoa regra da feacutersquo como reconhecer o verdadeiro criteacuterio Os protestantes negam a regra de feacute da Igreja e apresentam um criteacuterio de conhecimento religioso muito diferente Busca-se assim um criteacuterio de verdade e adentra-se nas dificuldades filosoacuteficas geradas por esse conflito como mostra Montaigne no mencionado texto Apologia a Raymond Sebond (II 12) Nesse ensaio o ponto culminante eacute a duacutevida total2 O valor da evidecircncia depende do criteacuterio e natildeo o contraacuterio Assim a anaacutelise da experiecircncia sensiacutevel base de todo conhecimento coloca o problema do criteacuterio Natildeo haacute criteacuterio com certeza ou fundamento confiaacutevel Desse modo na luta para estabelecer o verdadeiro criteacuterio da feacute uma postura ceacutetica surge dentre alguns pensadores porque o problema em questatildeo fora examinado por Sexto em Hipotiposes pirrocircnicas

Montaigne e o legado ceacutetico 55

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilatildeo enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes o forccedilamos a um regresso ad infinitum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a p 163-165)

Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Lidamos apenas com o parecer e o que natildeo nos parece eacute ainda parecer Natildeo eacute possiacutevel ao ser humano ir aleacutem da aparecircncia em direccedilatildeo ao ser ldquoSegundo Pirro tem-se o puro parecer sem fundo segundo o ceticismo fenomecircnico tem-se o parecer contra o fundo de ser incognosciacutevel com a cisatildeo (natildeo pirroniana) do parecer e do ser segundo Montaigne tem-se o puro parecer aparentemente sem fundordquo (HUISMAN 2001 p 697) Natildeo se trata da verdade do ente como se algum sentido houvesse em expor o ente em sua verdade independentemente de um olhar A uacutenica verdade que o ser humano atinge natildeo eacute a de um sujeito ou de um objeto que se incline para um lado ou para o outro mas a verdade de um aspecto

56 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que natildeo eacute indissociaacutevel da apreensatildeo ou seja a verdade da aparecircncia verdade concreta visto que ele natildeo separa o olhar e o olhado o julgante e o julgado a verdade da aparecircncia os une correlaciona-os com um nexo interno A observaccedilatildeo de Montaigne se volta para o mundo e para a vida e seu juiacutezo pronuncia suas convicccedilotildees seguras marcadas por seu selo pessoal

Os filoacutesofos e moralistas doutrinais pretendem dizer o que eacute e mostrar como se deve viver para se conformar agraves leis de Deus ou da Natureza supostamente conhecidas ou ainda agrave vocaccedilatildeo do homem tal como a determinaria sua essecircncia ou seu lugar no universo Montaigne consciente da contingecircncia de seu pensamento expotildee convicccedilotildees a tiacutetulo pessoal por vezes com um vigor extremo ele natildeo daacute por cauccedilatildeo senatildeo a atitude que nesta exposiccedilatildeo se decifra como a marca de um selo e nela se confirma por reflexatildeo (TOURNON 2004 p 116)

O ensaiacutesta se opotildee ao mundo e adere ao mundo critica a poliacutetica e se insere na poliacutetica critica a razatildeo e recorre agrave razatildeo Starobinski (1992) refere-se ao movimento de oposiccedilatildeo ao mundo como recusa da mentira e da dissimulaccedilatildeo em Montaigne e talvez isso componha na verdade sua adesatildeo ao mundo como veracidade e plenitude satildeo faces do mesmo homem Ao denunciar os prestiacutegios do parecer Montaigne toma partido implicitamente pela plenitude sem equiacutevoco do ser verdadeiro Mas ele soacute o conhece pela forccedila da recusa que o faz considerar inaceitaacuteveis a mentira e a maacutescara Montaigne no instante em que se opotildee ao mundo

Montaigne e o legado ceacutetico 57

natildeo pode valer-se de nenhuma verdade possuiacuteda proclama apenas o seu oacutedio da lsquosimulaccedilatildeorsquo O verdadeiro eacute o positivo ainda desconhecido implicado pela negaccedilatildeo dirigida contra o mal pululante o verdadeiro natildeo tem fisionomia determinada eacute apenas a energia natildeo aplacada que anima e que arma o ato da recusa (STAROBINSKI 1992 p 15-16)

As Hipotiposes Pirrocircnicas reapresentam os principais argumentos do ceticismo antigo com toda a sua heranccedila demolidora em sua dimensatildeo epistemoloacutegica Como mostra Montaigne em vaacuterios de seus ensaios a impossibilidade de se estabelecer um criteacuterio de verdade indiscutiacutevel e para todos eacute fundamental na criacutetica ceacutetica aos partidos dos filoacutesofos Nesta direccedilatildeo retomemos os quatro primeiros tropos de Enesidemo que satildeo aqueles que nos dizem respeito a quem julga ou seja o sujeito que apreende o mundo mostrando dessa forma que nos precipitamos ao formular juiacutezos acerca da realidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000b) De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da

58 Eacutetica e filosofia poliacutetica

relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Saliente-se que a afinidade teoacuterica de Montaigne estaacute no fato de que os escritos de Sexto Empiacuterico satildeo dirigidos contra a defesa dogmaacutetica da pretensatildeo de conhecer a verdade absoluta tanto na moral como nas ciencias No autor natildeo haacute um fim absoluto a ser buscado Ainda que no capiacutetulo XII de Hipotiposes Sexto Empiacuterico diga que a finalidade do ceacutetico eacute a tranquilidade (ataraxia) em questotildees de opiniatildeo e a metriopathia (afecccedilotildees moderadas relativamente aos acontecimentos) (SEXTO EMPIgraveRICO) a rigor a busca da ataraxia mediante a aquisiccedilatildeo da verdade estaacute na sua preacute-histoacuteria dogmaacutetica ndash que se infiltra na sua natureza de ceacutetico enquanto ele eacute zeteacutetico isto eacute indagador buscador da verdade Poreacutem jaacute como ceacutetico que encontra a ataraxia ou seja que experimentou a tranquilidade pela equipolecircncia (isotheacuteneia) dos argumentos jaacute que ao produzir isostheacuteneia eacute levado agrave suspensatildeo do juiacutezo e vecirc acontecer a tranquilidade O ceacutetico constata o que se vecirc o que acontece constata as contradiccedilotildees das coisas constata que os argumentos contraacuterios satildeo equivalentes igualmente criacuteveis (isostheacuteneia) constata que natildeo pode decidir entre eles (epokheacute) constata que ao suspender a opiniatildeo sente-se tranquilo (ataraxia) E reitera esse caminho realista como uma espeacutecie de escada que depois eacute abandonada ou como um purgante que elimina tudo inclusive a si mesmo Se natildeo podemos acessar a verdade podemos evitar o erro suspendendo o juiacutezo (MAIA NETO 2012)

Montaigne e o legado ceacutetico 59

Conforme a traduccedilatildeo conhecida e muito utilizada de Danilo Marcondes (1997) nas Hipotiposes Pirrocircnicas (HP) I 8 encontramos

o ceticismo eacute a capacidade de colocar frente a frente [ou opor] umas com as outras da maneira que seja tanto as coisas que aparecem quanto as coisas inteligiacuteveis capacidade estaacute que devido agrave forccedila igual que haacute nas coisas e nos pensamentos opostos nos faz ter agrave suspensatildeo (epockeacute) e em seguida agrave tranquilidade (ataraxia)

Conforme o diagnoacutestico ceacutetico da diaphonia em que as diferentes filosofias se opotildeem e se equivalem na certeza da posse da verdade Tal como Montaigne reproduz na Apologia Sexto distingue os filoacutesofos dogmaacuteticos que tem a certeza da posse da verdade os filoacutesofos acadecircmicos que estatildeo certos da impossibilidade da verdade e os verdadeiramente ceacuteticos que natildeo se cansaram da busca Frente agrave equipolecircncia das filosofias o ceacutetico atinge o estado de epockeacute Nesta condiccedilatildeo soacute diz o que aparece mas natildeo como substacircncia ou essecircncia

No entanto natildeo haacute um ceticismo mas vaacuterias concepccedilotildees diferentes

Mesmo o que podemos considerar a lsquotradiccedilatildeo ceacuteticarsquo natildeo se constitui linearmente a partir de um momento inaugural ou da figura de um grande mestre tratando-se muito mais de uma tradiccedilatildeo reconstruiacuteda (MARCONDES 2007)

Sexto Empiacuterico nas Hipotiposes (I 1)

escreve

60 Eacutetica e filosofia poliacutetica

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra o objeto de sua busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser ele inapreensiacutevel ou ainda persiste na sua busca O mesmo ocorre com os objetos investigados pela filosofia e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os lsquodogmaacuteticosrsquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel sustentar que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica

As diferenciaccedilotildees entre acadecircmicos e pirrocircnicos satildeo muito controversas poreacutem natildeo esmiuccedilaremos este debate Poreacutem neste trabalho consideramos que quem de fato merece o nome de ceacuteticos satildeo os pirrocircnicos Os acadecircmicos tecircm uma posiccedilatildeo de dogmatismo negativo A posiccedilatildeo ceacutetica se caracteriza pela suspensatildeo do juiacutezo quanto agrave possiblidade ou natildeo de algo ser verdadeiro ou falso A epokheacute desse modo natildeo eacute uma decisatildeo preacutevia e sim uma consequecircncia que surge em oposiccedilatildeo aos dogmaacuteticos que enaltecem nossa capacidade racional De seu lado o pirrocircnico formula seu pensamento para enfraquecer as certezas dogmaacuteticas poreacutem natildeo almeja impor o seu pensamento natildeo elabora uma teoria indiscutiacutevel e afirmativa a respeito de algo nem pretende uma substancializaccedilatildeo Eacute este o sentido pelo qual o

Montaigne e o legado ceacutetico 61

ceticismo busca a cura para essa doenccedila que eacute a precipitaccedilatildeo dogmaacutetica o ceacutetico conforme Sexto Empiacuterico (HP I 16) natildeo assente a coisas natildeo-evidentes natildeo adota dogmas Mais a frente escreve (HP I 17) ldquopois noacutes seguimos um raciociacutenio determinado que nos mostra de acordo com a aparecircncia como viver segundo os costumes tradicionais as leis os modos de vida e nossas afecccedilotildees proacutepriasrdquo Como se pode concluir Sexto Empiacuterico resgata a vida a experiecircncia e o fenocircmeno natildeo pretendendo dogmatizar nossas impressotildees no momento em que formulamos juiacutezos visto que haacute profundas razotildees para duvidar de formulaccedilotildees deste tipo

Acompanhando a letra de Inague Juacutenior (2009)11 trataremos dos quatro primeiros tropos ou modos de Enesidemo Salienta-se aiacute a duacutevida de que as coisas natildeo se diferenciam entre si pois satildeo igualmente incertas e indiscerniacuteveis isto induz-nos epockeacute uma vez que a todo discurso pode se opor outro discurso igual de mesma forccedila persuasiva Estamos assim frente agrave manifestaccedilatildeo da equipolecircncia (isostheacuteneia) no que se refere agrave credibilidade dos argumentos conflitantes que sempre podem ser apresentados de um lado ou de outro da questatildeo (Sexto Empiacuterico HP I 10) sendo que ndash em razatildeo da equipolecircncia - nenhum deles revela-se indiscutiacutevel O ceacutetico natildeo nega a existecircncia do fenocircmeno e sim do que dizem dele Em HP I 40 temos o iniacutecio dessa exposiccedilatildeo

11 httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Cfr MARCONDES 2007

62 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o primeiro argumento (ou tropo) como dissemos eacute aquele que mostra que devido agraves diferenccedilas entre os animais as mesmas impressotildees natildeo satildeo produzidas pelas mesmas coisas Isto inferimos tanto das diferenccedilas quanto agrave geraccedilatildeo dos animais quanto da variedade de composiccedilatildeo de seus corpos

Do mesmo modo discursariacuteamos sobre o prazer e o desprazer pois o que nos agrada enquanto animais com certa constituiccedilatildeo poderia natildeo nos agradar se tiveacutessemos outra

Avanccedilando com Sexto acerca do segundo modo observemos a seguinte citaccedilatildeo de Sexto

O segundo modo eacute como haviacuteamos dito aquele baseado nas diferenccedilas entre os homens pois mesmo se admitimos por hipoacutetese que os homens satildeo mais dignos de creacutedito do que os animais irracionais verificaremos que mesmo nossas proacuteprias diferenccedilas por si mesmas levam agrave suspensatildeo Pois diz-se que o ser humano eacute composto de duas coisas alma e corpo [] Assim no que diz respeito ao corpo diferimos no que diz respeito ao nosso aspecto e no que diz respeito agraves nossas peculiaridades constitutivas (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 79)

Ocorre que tambeacutem na questatildeo da alma temos inuacutemeras teorias que se contradizem e se aniquilam ora se divergimos na nossa capacidade de formular juiacutezos natildeo eacute possiacutevel dizer a verdade Eacute esta a razatildeo pela qual o ceacutetico afirma que apenas podemos dizer aquilo que nos aparece e jamais a coisa em si Buscar a substancializaccedilatildeo eacute o mesmo que incorrer em precipitaccedilotildees e contradiccedilotildees

Montaigne e o legado ceacutetico 63

constantes (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 85) Assim a epokheacute eacute o resultado a que chega o ceacutetico

Na sequecircncia o terceiro modo de Enesidemo centra-se no individual considerando-se a constituiccedilatildeo corporal humana haacute contradiccedilotildees naquilo que os sentidos apreendem Logo soacute podemos falar daquilo que aparece e natildeo daquilo que eacute Jaacute o quarto modo da epockeacute volta-se para qualquer dos sentidos humanos O divino Sexto eacute descreve do seguinte modo

Este modo baseia-se como dizemos nas ldquocircunstacircnciasrdquo e com este termo queremos indicar condiccedilotildees ou disposiccedilotildees Este modo dizemos lida com estados que satildeo ou naturais ou natildeo-naturais tais como estar acordado ou estar dormindo com condicionamentos devido agrave idade ao movimento ou ao repouso ao amor ou ao oacutedio ao vazio ou ao preenchimento agrave embriaguez ou agrave sobriedade com predisposiccedilotildees tais como confianccedila ou medo sofrimento ou alegria (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 100)

Por conseguinte diminui bastante as possibilidades de estabelecer um indiscutiacutevel criteacuterio de verdade seja em razatildeo das oposiccedilotildees entre as apreensotildees entre as distintas espeacutecies seja em razatildeo das contradiccedilotildees das apreensotildees entre os seres humanos e o conflito entre as apreensotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Daiacute temos as contradiccedilotildees das apreensotildees visto que as coisas nos atingem de muacuteltiplas formas a depender das diferenccedilas subjetivas que impossibilita a imparcialidade

64 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os julgamentos satildeo sempre fraacutegeis As circunstacircncias mencionadas acima remetem agrave necessidade de se ter uma preferecircncia por uma determinada circunstacircncia esta tomada como paracircmetro dos julgamentos Podemos pois tomar uma circunstacircncia ou impressatildeo como preferencial percorrendo dois caminhos (HP I 114-117)

Conforme Huisman (2002) eacute fundamental chamar a atenccedilatildeo para o fato de que a epockeacutepirrocircnica eacute mais radical que a epockeacutede Sexto Empiacuterico por uma pequena diferenccedila enquanto o criador do ceticismo recusou-se a definir os graus dos comportamentos dos homens visto que as existecircncias satildeo equivalentes e satildeo dirigidas pela experiecircncia Assim sendo haacute uma distacircncia que parece insuperaacutevel que acontece entre o ser e o parecer tal como entendia Pirro Montaigne escreve que o pensamento de Pirro

[] apresenta o homem nu e vazio reconhecendo sua fraqueza natural apropriado para receber do alto uma forccedila externa desguarnecido de ciecircncia humana e portanto mais apto para alojar em si a divina anulando seu proacuteprio julgamento a fim de dar mais espaccedilo para a feacute [C] nem descrendo [A] nem estabelecendo nenhum dogma contra as observacircncias comuns humilde obediente disciplinaacutevel zeloso inimigo jurado da heresia e consequentemente isentando-se das ideacuteias irreligiosas e vatildes introduzidas pelas falsas seitas (II 12 p 260)

Parece que o fenomenismo de Sexto se mostra formulado em termos bem dualiacutesticos o

Montaigne e o legado ceacutetico 65

fenocircmeno torna-se a impressatildeo ou alteraccedilatildeo sensiacutevel do sujeito e como tal eacute contraposto ao objeto agrave ldquocoisa externardquo ou seja agrave coisa que eacute diferente do sujeito sendo pressuposta como causa da alteraccedilatildeo sensiacutevel do proacuteprio sujeito Como mera alteraccedilatildeo do sujeito o fenocircmeno natildeo resume em si toda a realidade deixando fora de si o ldquoobjeto externordquo o que eacute declarado senatildeo como incognosciacutevel de direito pelo menos como natildeo conhecido de fato (REALE G amp ANTISERI 1990)

A proacutepria conduta do ceacutetico eacute de flutuaccedilatildeo no sentido de que natildeo haacute da parte dele uma verdade inquestionaacutevel a ser defendida como eacute caso dos dogmaacuteticos que com isso se precipitam e sofrem Claro que o ceacutetico estaacute tatildeo vulneraacutevel agraves necessidades quanto o dogmaacutetico todavia com a epokheacute e da posterior ataraxia ele natildeo sofre duas vezes numa mesma circunstacircncia e ao mesmo tempo como eacute o caso dos dogmaacuteticos ou seja pela necessidade mesma e pelos juiacutezos que formulam acerca dela (INAGUE JUacuteNIOR 2009) CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Sergio Cardoso escreveu que a produccedilatildeo acadecircmica atualmente no que se refere aos Ensaios de Montaigne eacute muito grande e que ela o consagra como filoacutesofo estudando suas abordagens em todas as disciplinas da filosofia da epistemologia agrave poliacutetica (CARDOSO 2017) especialmente no Brasil que eacute um dos paiacuteses que mais produziram dissertaccedilotildees e teses acerca do Ensaiacutesta Cardoso recomenda frequentar os Ensaios cujos contornos abissais natildeo

66 Eacutetica e filosofia poliacutetica

se datildeo agrave primeira vista numa visatildeo aparentemente placida ldquoEacute verdade que na superfiacutecie tranquila dos Ensaios natildeo se notam os abalos siacutesmicos sobre os quais deslizam suas aacuteguas claras Eacute preciso conviver com eles para alcanccedilar a dimensatildeo extraordinaacuteria destas rupturas promovidas pelo filoacutesofo (CARDOSO 2017 p 19)

Conforme Eva em lsquoMontaigne ceacuteticorsquo (2017) a libertaccedilatildeo dos princiacutepios universais dogmaacuteticos da religiatildeo e da metafiacutesica encontra fundamento nos argumentos dos ceacuteticos Mas este inteacuterprete apresenta em Montaigne um ceticismo existencial mais que epistemoloacutegico ou argumentativo bem como uma moralidade mais ativa e afirmativa que aquela da submissatildeo agraves sensaccedilotildees inclinaccedilotildees e costumes tal como sugere Pirro

Montaigne natildeo somente confere aos Ensaios a dimensatildeo subjetiva e provisoacuteria como tambeacutem se contrapotildee agraves noccedilotildees abstratas e geneacutericas e aponta a experiecircncia de si como o uacutenico saber capaz de orientar de alguma maneira nossas accedilotildees sempre singulares circunstanciadas e referidas a situaccedilotildees particulares Montaigne substitui a erudiccedilatildeo inflada as certezas pela experiecircncia buscando a observaccedilatildeo direta a anaacutelise e a criacutetica dos fatos Quando a razatildeo nos falta empregamos a experiecircncia De fato como vimos ao longo de nossa exposiccedilatildeo os escritos montaignianos abrem-se para vaacuterias possibilidades de articulaccedilatildeo porque natildeo se fecham a uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Eacute por essa razatildeo que Montaigne acompanhando Sexto opta pelo partido dos ceacuteticos para quem o julgador e o julgado estatildeo em contiacutenua mutaccedilatildeo e movimento (II 12)

Montaigne e o legado ceacutetico 67

Como assinalamos no transcorrer do texto Sexto se apresenta como um ceacutetico pirrocircnico e com este procedimento busca diferenciar sua filosofia do ceticismo acadecircmico Este ceticismo foi praticado pelos herdeiros de uma tradiccedilatildeo natildeo dogmaacutetica da Academia de Platatildeo do qual Ciacutecero foi testemunha Tambeacutem Santo Agostinho em sua fase ceacutetica passou pelo ceticismo acadecircmico e nos legou uma criacutetica a esta escola em sua obra Contra os Acadecircmicos Nesta obra a questatildeo debatida eacute a conexatildeo entre verdade e felicidade e divergindo dos acadecircmicos Santo Agostinho argumenta que a verdade pode ser conhecida e que inclusive a encontrou Montaigne incorpora a divisatildeo oferecida por Sexto Empiacuterico ndash e mencionada anteriormente - entre trecircs gecircneros baacutesicos de escolas de pensamento os dogmaacuteticos que argumentam saber algo com certeza e apresentam doutrinas explicaccedilotildees filosoacuteficas acerca do real os acadecircmicos que concluiacuteram que estatildeo seguros que a verdade natildeo pode ser encontrada efetivamente e por fim os verdadeiramente ceacuteticos skeptikon os que investigam porque julgam natildeo terem ainda chegado a uma conclusatildeo acerca do conhecimento da verdade Estamos nos referindo aos pirrocircnicos obviamente Os pirrocircnicos avaliam que todos os filoacutesofos tecircm limites sendo difiacutecil decidir qual eacute a verdadeira Desse modo eles permanecem em epokheacute mas perseveram incansavelmente em sua busca

Em seus estudos sempre argutos sobre Montaigne e o ceticismo Eva registra que os argumentos expostos por Sexto Empiacuterico ressurgem

68 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quase todos nos Ensaios Em seguida este inteacuterprete daacute como exemplo o fato de que Sexto compara as percepccedilotildees humanas com aquelas que supostamente encontrariacuteamos nos animais com o intuito de argumentar que se pode tratar as representaccedilotildees humanas como verdadeiras uma vez que natildeo temos acesso a um criteacuterio para comparaacute-las Esta comparaccedilatildeo encontra-se na base daquela que Montaigne realiza na famosa Apologia a Raymond Sebond Outro exemplo dado pelo inteacuterprete Sexto Empiacuterico confronta a diversidade de costumes leis e normas de conduta entre os diferentes povos com o mesmo objetivo de impedir nossa presunccedilatildeo de acesso agrave verdade isto se aproxima bastante do debate que Montaigne elabora em II 12 no problema do acesso agraves leis naturais na moral REFEREcircNCIAS BIRCHAL Telma O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte UFMG 2007 BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009 CARDOSO Seacutergio (org) Dossiecirc Ensaiar a proacutepria vida Montaigne filoacutesofo Revista Cult marccedilo de 2017) COMTE Jaimir O iniacutecio Sexto Empiacuterico e o ceticismo pirrocircnico Revista Cult 2015 EMPIacuteRICO Sexto Contra os retoacutericos Satildeo Paulo Unesp 2013 _______ Outlines of Pyrrhonism Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

Montaigne e o legado ceacutetico 69

_______ Against the logicians Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000b _______ Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronica sn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010) EVA Luiz A A Figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007 LAEacuteRCIO Dioacutegenes A vida de Pirro Trad Gabriela G Gazinelli Satildeo Paulo Loyola 2009 LESSA Renato Uma histoacuteria da duacutevida uma resenha de A Histoacuteria do Ceticismo de Richard Popkin Rio de Janeiro Ediccedilatildeo Laboratoacuterio de Estudos Hum(e)anos ndash Online Setembro 2008) MAIA NETO Joseacute Raimundo Ceticismo e Poliacutetica em Montaignerevistaestudoshumeanoscomceticismo-e-politica-em-montaigne-por-jose-raimundo-12 de dez de 2012 MARCONDES Danilo Iniciaccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia Rio de Janeiro Zahar 2007 MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 2002 2006 (Coleccedilatildeo Paideacuteia) 3 v NOBRE Marcos REGO Joseacute Marcio Conversas com filoacutesofos brasileiros Satildeo Paulo Ed 34 2000 NAKAM Geacuteralde Montaigne et son temps Les eacuteveacutenements et les Essais lhistoire la vie le livre Paris Gallimard 1993

70 Eacutetica e filosofia poliacutetica

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000 PORCHAT Oswald Sobre o que aparece Skeacutepsis Satildeo Paulo n 1 p 17 2007 _______ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1994 REALE G ANTISERI D Histoacuteria da Filosofia Antiguidade e Idade Meacutedia Vol I 3ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo Paulus 1990 SMITH Pliacutenio Junqueira O meacutetodo ceacutetico da oposiccedilatildeo e as fantasias de Montaigne Kriterion vol53 no126 Belo Horizonte Dec 2012 STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia da Letras 1992 VILLEY Pierre Les sources et lrsquoevolution des Essais de Montaigne Paris Hechette 1908 INAGUE JUacuteNIOR Marcelo Disponiacutevel em In httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Acesso 14072009

= III =

AMIZADE EM MONTAIGNE

Junior Cesar Luna

31 INTRODUCcedilAtildeO

De iniacutecio eacute preciso lembrar que amizade surgiu

como questatildeo filosoacutefica desde a Antiguidade na ocasiatildeo em que o nuacutecleo da discussatildeo filosoacutefica abandona a reflexatildeo sobre o cosmos e adota o homem como objeto num ambiente cultural e poliacutetico que envolve seacuterios problemas12 e questionamentos morais na filosofia antiga Nesta conjuntura de discussatildeo das relaccedilotildees humanas no meio social insere-se a reflexatildeo sobre a amizade tema este discutido natildeo soacute por Aristoacuteteles na Greacutecia antiga13

Mestre em filosofia moderna e contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute 12 A leitura dos Diaacutelogos de Platatildeo Mecircnon Banquete e Fedro satildeo

relevantes para compreendermos o contexto histoacuterico em que se insere o problema e a relaccedilatildeo entre a filosofia de Platatildeo e Aristoacuteteles pois tratam de pontos essenciais da filosofia deste pensador e cruzam-se problemas fundamentais da existecircncia humana Em Fedro e Banquete Platatildeo estuda nos dois diaacutelogos a noccedilatildeo do amor onde se origina qual seu verdadeiro objeto como se situa e qual a funccedilatildeo Em Mecircnon notamos a formaccedilatildeo embrionaacuteria do sistema platocircnico Trata-se de saber se a virtude pode ou natildeo ser ensinada se existe ou natildeo ldquociecircnciardquo da virtude ou eacute um dom da natureza Identificamos a influecircncia sofista bem viva neste diaacutelogo Os sofistas antigos ensinaram que as ideias satildeo para os homens e natildeo os homens para as ideias Isso ocasionou uma grande crise na filosofia antiga envolvendo seacuterias questotildees morais e eacuteticas que se confundem na filosofia grega 13 Soacutecrates deu iniacutecio agraves discussotildees sobre a justiccedila a virtude e o amor entre os sofistas e Platatildeo e tambeacutem com Soacutecrates teve iniacutecio a reflexatildeo filosoacutefica sobre a amizade

72 Eacutetica e filosofia poliacutetica

como tambeacutem por outros contemporacircneos a ele com bastante representatividade na era heleniacutestica

No Renascimento Michel de Montaigne ao escrever sobre a amizade daacute ares de ter encontrado uma verdadeira amizade Em Da Amizade capiacutetulo 28 do primeiro livro dos Ensaios relatou toda a importacircncia de seu viacutenculo de amizade com Eacutetienne de La Boeacutetie Mas ao descrevecirc-lo diferiu dos conceitos jaacute estabelecidos pelos filoacutesofos claacutessicos e tambeacutem da maneira que os pensadores do seu tempo entendiam a amizade em seu conceito e extensatildeo aleacutem de trabalhar a questatildeo tambeacutem no acircmbito privado estritamente particular Isto fica evidente quando escreve acerca das possiblidades de utilizaccedilatildeo do termo amizade na sociedade Neste trabalho foram buscadas as questotildees eminentemente eacuteticas e filosoacuteficas em relaccedilatildeo agrave amizade perseguindo a sua possiacutevel definiccedilatildeo a instituiccedilatildeo de um caraacuteter normativo bem como a sua elevaccedilatildeo a uma possiacutevel universalidade Como se pode observar questotildees como estas trazem em seu bojo inextinguiacuteveis polecircmicas Inevitavelmente nossa apresentaccedilatildeo se insere no conjunto deste debate filosoacutefico Na realidade insere-se na constataccedilatildeo deste tema na histoacuteria da filosofia neste repique que parece natildeo ter fim isto acabou se constituindo em uma motivaccedilatildeo para continuarmos pensando a amizade como um problema filosoacutefico em Montaigne

Portanto este trabalho objetiva discutir nuclearmente a relaccedilatildeo de amizade entre Montaigne e La Boeacutetie o seu ldquoirmatildeo de alianccedilardquo A leitura dos Ensaios provoca uma indagaccedilatildeo Qual eacute o estatuto filosoacutefico da amizade Afinal este tema perpassa toda a histoacuteria da filosofia Observamos que o homem por si soacute eacute um ser social isso torna o assunto da amizade bastante pertinente e uma reflexatildeo sobre o mesmo eacute extremamente relevante

Amizade em Montaigne 73

Em Da amizade Montaigne interroga a natureza de diferentes laccedilos diversos que ligam os seres humanos entre si Basicamente para ser amigo eacute preciso ser amigo de si mesmo conforme iremos argumentar O ensaiacutesta acompanha a interpretaccedilatildeo dos antigos ateacute um certo ponto depois ele os abandona Na questatildeo da amizade Montaigne eacute leitor e criacutetico de Aristoacuteteles Ciacutecero e Epicuro porque a definiccedilatildeo de amizade dos antigos necessita de uma reinterpretaccedilatildeo para compreender a de Montaigne e La Boeacutetie Mas concorda que a amizade eacute o sentimento mais perfeito que pode existir nas relaccedilotildees humanas e argumenta que se trata de uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar A amizade tem com isso a dimensatildeo da sociabilizaccedilatildeo uma vez que olhar para o outro eacute ter a consciecircncia de que o homem eacute um ser social Em decorrecircncia este trabalho justifica-se na medida em que a investigaccedilatildeo revela a importacircncia de La Boeacutetie para o iniacutecio da empreitada de redaccedilatildeo dos Ensaios De fato a morte de La Boeacutetie causou um impacto profundo na alma de Montaigne que o levou a cair numa recordaccedilatildeo penosa que lhe fez muito mal como registra em seu Journal de voyage (MONTAIGNE 1962) Podemos especular os Ensaios teriam sido escritos se La Boeacutetie natildeo tivesse morrido Os Ensaios foram a forma de tornar presente o amigo ausente como escreve Silva (2014 p 24) Para esta investigaccedilatildeo recorremos aos inteacuterpretes dos Ensaios e a proacutepria obra evidentemente Como mostra o tiacutetulo desta apresentaccedilatildeo o assunto central eacute a questatildeo da amizade que se apresenta para Montaigne como um relevante problema filosoacutefico Iremos argumentar que em Montaigne a amizade eacute o lugar de um encontro de si pois a identidade do eu eacute afirmada por meio dela Assim a amizade eacute o lugar da experiecircncia de si ou seja natildeo eacute na solidatildeo ou na pura volta a si que Montaigne encontra a solidez de

74 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uma vida verdadeira a real existecircncia de si mesmo mas numa relaccedilatildeo singular e paradigmaacutetica com o outro

Trataremos das formas de amizade que eacute encontrada no ensaio Da Amizade Nesse sentido tem especial importacircncia a visatildeo de Aristoacuteteles sobre a justiccedila equidade e amizade tentaremos mostrar a leitura de Montaigne acerca do pensamento aristoteacutelico especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco que foi usada por Montaigne para fundamentar a questatildeo da equidade Apoiado em Aristoacuteteles Montaigne escreve que os bons legisladores se ocuparam mais da amizade que da justiccedila O problema da amizade eacute fundamental para o ensaiacutesta porque avalia que das relaccedilotildees humanas eacute a das mais lsquobelas e nobresrsquo

Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma14

Montaigne distingue a amizade da relaccedilatildeo entre

irmatildeos pois os familiares natildeo satildeo livres escolhas de afeiccedilatildeo como o eacute uma verdadeira amizade O amor pelos pais tambeacutem natildeo eacute amizade uma vez que natildeo eacute uma relaccedilatildeo horizontal E com as mulheres que amamos eacute possiacutevel amizade desse tipo Montaigne salienta que se fosse possiacutevel a amizade desse tipo com quem gozamos as deliacutecias do corpo essa seria perfeita e total Do mesmo modo tratar-se-aacute da questatildeo asseverada por Ciacutecero acerca do valor da amizade de modo particular quando este afirma que haacute amizades profundas e refinadas amizades comuns e superficiais

Observamos que de Epicuro Montaigne retomaraacute a discussatildeo da utilidade da amizade Apresentar-se-aacute as

14 I 28 p 275

Amizade em Montaigne 75

exigecircncias e condiccedilotildees apresentadas por Montaigne para o desenvolvimento de uma verdadeira amizade Argumentaremos que a amizade eacute para Montaigne uma relaccedilatildeo consigo mesmo na qual o outro nos revela a noacutes mesmos como uma espeacutecie de espelhamento Trataremos da gecircnese da amizade de Montaigne com La Boeacutetie porque para Montaigne isso tem implicaccedilotildees filosoacuteficas da mais alta importacircncia mostraremos assim que os desapontamentos com a magistratura soacute natildeo satildeo maiores devido as ocorrecircncias particulares que o levaram ao encontro de Eacutetienne de La Boeacutetie em um evento festivo da cidade de Bordeaux quando este pertencia ao parlamento desde 1554 O Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria de La Boeacutetie ldquoserviu de intermediaacuterio para o nosso primeiro contatordquo15 entre os amigos e de pronto abriu caminho para uma beliacutessima e intensa amizade pois era notoacuteria uma afinidade de pensamento que teve grande contribuiccedilatildeo para a singularidade deste viacutenculo Desse modo abrindo espaccedilo para o contraditoacuterio trataremos de mostrar a diversidade de definiccedilotildees no que tange ao problema da amizade refletida por numerosos pensadores poreacutem aqui abordaremos apenas os que consideramos mais relevantes para esta apresentaccedilatildeo

32 TEMA DA AMIZADE EM MONTAIGNE

Starobinski (1993) mostra o desenvolvimento do

conceito de amizade em Montaigne explicando que este conceito o acompanha e o motiva no iniacutecio de seu retiro (que natildeo eacute o de um ermitatildeo mas sim o de um observador atento da sociedade) para a redaccedilatildeo dos Ensaios obra da vida de Montaigne que se dedicou a ela por cerca de vinte anos Essa obra expressa uma tentativa de conhecimento do fluxo do instante que passa e de se

15 I 28 p 232

76 Eacutetica e filosofia poliacutetica

deixar conhecer por seus parentes e amigos (ou lsquoao leitorrsquo conforme afirma) mostrando todavia que o uacutenico que lhe conhecia por completo Eacutetienne de La Boeacutetie (o fiel amigo ausente desde sua morte em 1563) o acompanha sempre em seus pensamentos como um guardiatildeo da sua mais pura imagem

Ele (La Boeacutetie) era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1993 p 45)

Em seguida Starobinski indica o movimento

montaigniano para construccedilatildeo de uma amizade equitativa virtuosa e indivisiacutevel que foi experimentada pelo proacuteprio ensaiacutesta em uma vivecircncia intensa com La Boeacutetie Nessa direccedilatildeo Starobinski escreve sobre a importante contribuiccedilatildeo da leitura dos claacutessicos antigos para definiccedilatildeo de amizade em Montaigne uma vez que o ensaiacutesta se utiliza dos antigos para abrilhantar o aspecto exemplar e inigualaacutevel de sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie descrevendo caracteriacutesticas de sua amizade que soacute pode ser vivida por homens como ldquoraridaderdquo e que saibam viver com reciprocidade como escolha profunda Aleacutem disso esse tipo de amizade implica numa alienaccedilatildeo16 voluntaacuteria da vontade de ambas as partes ao ponto de suas almas unirem-se de tal forma que natildeo haja mais uma linha divisoacuteria entre elas torna-se uma alma em dois corpos

Uma breve anaacutelise do Da Amizade aponta algumas destas caracteriacutesticas descritas por Montaigne salientando a importacircncia de um amigo que aparece como ponto central da apresentaccedilatildeo do capiacutetulo sobretudo pelo fato de que eacute dedicado agrave memoacuteria de

16 Registre-se poreacutem que a palavra lsquoalienaccedilatildeorsquo natildeo eacute usada por Montaigne (CONCEICAtildeO 2014 p 163)

Amizade em Montaigne 77

Eacutetienne de La Boeacutetie Na realidade trata-se de uma curta poreacutem intensa amizade que se estabeleceu entre ambos A falta deste amigo deixa um grande vazio visto que estaacute ausente agora aquele que lhe revelava a sua imagem Provavelmente eacute a ausecircncia do amigo que o impele a escrever na tentativa de recuperar a sua imagem que a morte do amigo levou consigo

A amizade ocupa um lugar central tanto na obra quanto na vida de Montaigne A concepccedilatildeo montaigniana da amizade eacute inseparaacutevel da memoacuteria da existecircncia de La Boeacutetie por isso estaacutevamos argumentando que ele se afasta da concepccedilatildeo claacutessico-renascentista pois para ele escrever sobre a amizade era escrever sobre si mesmo era um autoconhecimento da singularidade

Na amizade que de fato falo elas se mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniu se me pressionarem para dizer por que o amava sinto que isso soacute pode ser expresso [C] respondendo ldquoporque era ele porque era eurdquo (I 28 p 281)

O fato de todo o capitulo 28 ser uma homenagem

e uma reflexatildeo sobre La Boeacutetie jaacute sugere o quanto eacute difiacutecil a tarefa de precisar conceitualmente algo como lsquouma concepccedilatildeo montaignianarsquo acerca da amizade Todavia uma coisa eacute clara a amizade em que Montaigne e La Boeacutetie haviam compartilhado caracteriza-se pela fusatildeo perfeita com que se interligam os amigos Haacute algo de miacutestico na amizade ideal uma espeacutecie de transcendecircncia muacutetua por meio da qual se perdem e se confundem as almas dos companheiros

Pois essa amizade perfeita de que falo eacute indivisiacutevel cada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhe resta para distribuir alhures ao contraacuterio ele se aborrece por natildeo ser duplo triplo ou quaacutedruplo e por

78 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo ter vaacuterias almas e vaacuterias vontades para entregaacute-las todas a esse objeto (I28 p 285)

Claramente nota-se que a amizade para

Montaigne tem um aspecto interessante ela aponta para o amor equitativo vinculado agrave justiccedila e agrave igualdade inspirado em Aristoacuteteles De fato esta ideia eacute apontada no pensamento do Estagirita17 especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco para fundamentar a noccedilatildeo de equidade Quando somadas igualdade e justiccedila ao sentimento de amizade como resultado temos a amizade equitativa Esta amizade eacute fruto da reciprocidade dos amigos pois tem em vista a igualdade em porccedilotildees idecircnticas de um para com o outro Dessa maneira esta reflexatildeo aristoteacutelica eacute contemporacircnea a Montaigne de maneira que se apoia na noccedilatildeo de teacuteleia philia para que ocorra segundo Seacutergio Cardoso uma decifraccedilatildeo laboriosa da alianccedila que unira [Montaigne] a La Boeacutetie (CARDOSO 1987) Quando Montaigne se refere ao amigo La Boeacutetie afirma que ele e seu amigo se procuravam antes mesmo de se terem visto de modo que nascia neles uma afeiccedilatildeo com raiacutezes profundas E mais uma amizade desproporcional agravequilo que eacute relatado porque tem algo de indiziacutevel Assim ele compara a afeiccedilatildeo por seu amigo com um decreto de Providecircncia

procuraacutevamos antes mesmo de termos conhecido e por informaccedilotildees que ouviacuteamos um sobre o outro e que faziam em nossa afeiccedilatildeo mais efeito do que a razatildeo atribui agrave informaccedilatildeo creio que por alguma ordem do ceacuteu abraccedilaacutevamo-nos por nossos nomes18 (I28 p 281)

17 Aristoacuteteles eacute frequentemente referido como lsquoo Estagiritarsquo (ou ldquoo Filoacutesoforsquo) Isso se daacute pelo fato de que Estagira eacute o nome da cidade conhecida por ser onde nasceu Aristoacuteteles 18 Na traduccedilatildeo da Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo de 1984 ldquoNoacutes nos procuraacutevamos antes de nos termos visto e nascia em noacutes uma

Amizade em Montaigne 79

Com efeito a amizade eacute uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar O decreto da providecircncia se equipara agrave amizade agrave medida que considera as disposiccedilotildees ou medidas proacuteprias para alcanccedilar um fim no caso o nascimento desproporcional da afeiccedilatildeo Pode-se afirmar ainda que a Providecircncia ou ordem do ceacuteu corresponde a um acontecimento feliz ldquoSe as accedilotildees de ambos se desencontrassem eles natildeo seriam nem amigos um do outro segundo minha medida nem amigos de si mesmordquo (I 28 p 283)

Montaigne observa na obra de Ciacutecero uma narrativa do pensamento de Quiacutelon a respeito de amar como se pudesse vir a odiar Estes sentimentos extremos satildeo o que de fato compotildeem a vida Assim o filoacutesofo percebe pertinecircncia nos escritos de Ciacutecero o qual aponta que cautela e prudecircncia satildeo imprescindiacuteveis na escolha dos amigos para que natildeo se ame algueacutem que mais tarde venha a odiar Para tanto alerta para natildeo as confundir as amizades corriqueiras com a sua e a de La Boeacutetie

[B] mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p 283)

Para Montaigne na alma se encontra o desejo de

se unir ao outro para que encontre sua plena realizaccedilatildeo Sobretudo com os acontecimentos de sua vida tais como a morte do pai e do amigo o ensaiacutesta eacute levado a pensar em uma descontinuidade entre alma e corpo No bojo de sua reflexatildeo e nessa descontinuidade entre alma e corpo o autor faz o exerciacutecio da epocheacute suspensatildeo do juiacutezo Refletir significa um retorno aos acontecimentos e

afeiccedilatildeo em verdade fora de proporccedilotildees com o que nos era relatado no que vejo como que um decreto da Providecircnciardquo (I 28 p 94)

80 Eacutetica e filosofia poliacutetica

experiecircncias marcantes que natildeo podem ser apagados da memoacuteria de Montaigne Escrever representa deixar viva na histoacuteria sua experiecircncia de vida marcada pelos sentimentos de dor e de alegria Aleacutem do mais significa ainda presentificar a amizade de maneira que a entrega ao outro eacute assinalada pelos ensaios para natildeo se perder a parte que ainda resta da imagem de La Boeacutetie visto que como assinalamos ele escreve para que a imagem do amigo natildeo se perca neste fluxo constante que tudo arrasta

Na amizade se unem as vontades porque ambos buscam a mesma finalidade o bem ao outro numa fusatildeo verdadeiramente perfeita Assim forma-se uma amizade indivisiacutevel Por essa razatildeo natildeo eacute possiacutevel uma multiplicidade de amigos conforme aponta Seacutergio Cardoso

Se o amigo deseja o que seu amigo deseja se eacute tatildeo seguro da vontade do amigo como da sua proacutepria a hipoacutetese da multiplicidade dos amigos compromete a unidade da proacutepria vontade justamente a grande daacutediva da amizade (CARDOSO 1987 p 184)

Montaigne e La Boeacutetie adotam a mesma postura e

detestam a servidatildeo dos cidadatildeos ao tirano inclusive La Boeacutetie vecirc a amizade como uma saiacuteda possiacutevel de oposiccedilatildeo agrave tirania Poreacutem Montaigne quando apresenta a possibilidade de utilizar o termo amizade na sociedade natildeo sugere associaacute-la agrave lsquoamizade perfeitarsquo Prefere com isso denominar amizade verdadeiramente apenas sua forma perfeita relativa ao nome

A partir disso o ensaiacutesta pensa o conceito da amizade indivisiacutevel para apontar a uniatildeo das vontades bem como a distinccedilatildeo para com as amizades corriqueiras e opacas que acentuam o bem particular ou privado o utilitarismo e o bem familiar Epicuro registra em suas Sentenccedilas Principais que de todas as coisas que a sabedoria nos oferece para a felicidade da vida a maior eacute

Amizade em Montaigne 81

a amizade De acordo com ele a amizade ainda que natildeo nos livre das dores do corpo e da alma nos auxilia a suportaacute-las Como eacute sabido Epicuro julga que o mais alto prazer reside no que chama de sauacutede Entre os prazeres elege a amizade Por isso o conviacutevio entre os estudiosos de sua doutrina era tatildeo importante a ponto de viverem em uma comunidade nominada de ldquoO Jardimrdquo Portanto de todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida a maior eacute a aquisiccedilatildeo da amizade

Constatamos em nossa pesquisa que Montaigne diverge de Aristoacuteteles quanto agrave origem da amizade poreacutem recorre ao Estagirita para fundamentar a ideia de amizade como amor equitativo ligado agrave concepccedilatildeo de justiccedila19 e igualdade Como vimos anteriormente em tais definiccedilotildees no pensamento de Aristoacuteteles o igual eacute definido pelo termo grego isoacutetes igualdade que eacute correspondente agrave justa medida Mas a principal divergecircncia com Aristoacuteteles eacute expressa por Montaigne quando se refere agrave ldquoorigemrdquo da relaccedilatildeo entre amigos Montaigne afirma que a origem da amizade natildeo se encontra na bondade ou na virtude dos sujeitos mas sim em si mesmo ou seja eacute imanente agrave proacutepria relaccedilatildeo20

Se Montaigne parte como indicamos anteriormente da acepccedilatildeo mais abrangente da palavra amizade ndash cujo contexto acabamos de assinalar ndash eacute no entanto apenas com uma intenccedilatildeo purgativa e criacutetica Pois na verdade a primeira parte de seu texto examinando a tipologia tradicional das formas associativas opera uma reduccedilatildeo tatildeo draacutestica na extensatildeo do conceito que solapa profundamente natildeo soacute as elaboraccedilotildees

19 Vale lembrar que segundo Aristoacuteteles o dikaion justo eacute definido como o isos igual isto eacute uma posiccedilatildeo que recomenda a si mesma a todos sem necessidade de evidecircncia Haja vista que o igual eacute uma mediania de modo que o justo tambeacutem eacute uma espeacutecie de mediania (SILVA 2014 p 99) 20 CARDOSO 1986 p 172

82 Eacutetica e filosofia poliacutetica

humanistas de seu tempo mas tambeacutem a ldquoopiniatildeo dos antigosrdquo (CARDOSO 1986 p 169)

Portanto a posiccedilatildeo de Montaigne eacute divergente do

que afirma Aristoacuteteles

[] A amizade perfeita eacute a existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de excelecircncia moral neste caso cada uma das pessoas quer bem agrave outra de maneira idecircntica porque a outra pessoa eacute boa e elas satildeo boas em si mesmas Entatildeo as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles satildeo amigas no sentido mais amplo pois querem bem por causa da proacutepria natureza dos amigos e natildeo por acidente [] (EN VIII 3 p 176)

Podemos entender entatildeo que ao se referir agrave

amizade Montaigne restringe radicalmente seu significado quanto as outras formas de amizade existentes diferentemente daquelas que os antigos fazem referecircncias tradicionais O ensaiacutesta julga que elas apenas se assemelham com a amizade mas de fato natildeo satildeo Diante desta anaacutelise cabe expor algumas formas de amizade que Montaigne analisa e comenta ora tecendo duras criacuteticas ora concordando parcialmente

Em primeiro lugar vejamos a amizade que tem por motivaccedilatildeo o viacutenculo familiar Existe limitaccedilotildees que impedem familiares de se tornarem amigos A criacutetica montaigniana tem como objetivo atingir e destruir a noccedilatildeo de amizade utilizada para identificar relaccedilotildees de viacutenculo comum devido a sua semelhanccedila entre as relaccedilotildees de viacutenculo natural matrimonial camaradagem e social Ao mostrar essas divergecircncias dentro do conceito de amizade ele natildeo pretende criar um novo designo mas sim reservar o termo para nominar apenas o mais puro viacutenculo entre os homens dentro de uma sociedade Da mesma forma natildeo eacute de seu interesse criar um tratado sobre o tema objetivando sanar as divergecircncias entre as

Amizade em Montaigne 83

definiccedilotildees tatildeo pouco apresentar o caraacuteter normativo da amizade bem como a possibilidade de sua universalizaccedilatildeo Isto natildeo compotildee qualquer pretensatildeo de Montaigne

Ora Montaigne seguindo os passos de Aristoacuteteles natildeo discorda que o homem seja um animal social ao contraacuterio nesta mesma direccedilatildeo reforccedila escrevendo nos ensaios

Natildeo haacute algo a que a natureza pareccedila nos ter encaminhado tanto como para a sociedade E diz Aristoacuteteles que os bons legisladores ocuparam-se mais da amizade que da justiccedila Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma (I 28 275)

Para Montaigne se o homem deseja viver

adequadamente precisa ter amigos pois isto estaacute de acordo com as leis da natureza Assim afirma Sergio Cardoso dizendo que

O amigo nos espelha e nos identifica Por isso talvez Aristoacuteteles ndash que Montaigne acompanha de perto ndash tenha dito na abertura de sua grande dissertaccedilatildeo sobre a amizade que ela ldquoeacute o que haacute de mais necessaacuterio para viver (CARDOSO 1986 p 162)

A amizade seria entatildeo o ldquoviacutenculo social por

excelecircncia pois ela faz do viver em comum uma escolha e natildeo uma necessidaderdquo como apontou Labarriegravere (2003)21 Ainda no mesmo sentido o ensaiacutesta visa extrair

21 LABARRIEgraveRE Jean-Louis Aristoacuteteles verbete inserto In Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral organizado por CANTO-

SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral trad Ana

84 Eacutetica e filosofia poliacutetica

elementos que permitem um entendimento maior dos viacutenculos naturais de relaccedilatildeo do homem Poreacutem diferente de Aristoacuteteles que pontua a amizade no terreno da natureza (ou seja a amizade eacute natural ao ser humano) Montaigne observa que a amizade estaacute no campo da eacutetica das escolhas portanto natildeo estaacute determinado e esclarece sua diferenccedila frente aos laccedilos familiares

Na questatildeo da amizade Montaigne concorda com os filoacutesofos Aristipo22 e Plutarco23 (que o ensaiacutesta tanto admira) quando desconsideram as relaccedilotildees familiares Montaigne eacute fulminante quando afirma que a famiacutelia natildeo promove a amizade tal como ele a concebe Principalmente pela hipoacutetese da plenitude da virtude hiacuteperocheacute24 ou seja a famiacutelia natildeo permite as relaccedilotildees de amizade devida a diferenccedila existente entre seus membros A exemplo disto toma a relaccedilatildeo entre pai e filho afirmando que jamais um pai poderia ser amigo de seu filho a reciacuteproca tambeacutem eacute verdadeira jamais um filho poderia ser amigo de seu pai O que impossibilitaria o desenvolvimento desta relaccedilatildeo De acordo com Montaigne eacute em razatildeo do lsquorespeitorsquo que pais e filhos natildeo podem ser amigos visto que devido a sua posiccedilatildeo de desigualdade os filhos natildeo podem dirigir duras advertecircncias a seu pai como devem sempre fazer ao amigo Assim tendo que as suprimir falharia com a fidelidade a seu amigo Portanto amizade se restringe a este tipo de viacutenculo de modo que entre pais e filhos natildeo existe amizade de que fala nosso autor

Maria Ribeiro-Althoff et alii vol 1 Rio Grande do Sul Editora Unisinos 2003 p 123 22 435 a 356 aC filoacutesofo grego fundador da escola cirenaica que defende o controle sobre o prazer afirmando que o prazer eacute o que daacute sentido agrave vida 23 46 a 126 dC filoacutesofo e historiador grego do periacuteodo greco-romano foi muito influente na cultura ocidental 24 Superioridade respeito consideraccedilatildeo e estima que constituem a famiacutelia

Amizade em Montaigne 85

O princiacutepio do respeito impede a relaccedilatildeo amical entre pai e filho devido ao niacutevel hieraacuterquico dentro da famiacutelia Assim o filho deve se espelhar em seu pai tendo como orientaccedilatildeo a noccedilatildeo de mimesis25 Sobre a questatildeo da relaccedilatildeo de amizade entre pais e filhos Montaigne segue Aristoacuteteles de perto (CARDOSO 1986 p 176) no que diz respeito ao problema da voluntariedade pois os familiares tecircm o mesmo sangue como se fosse um outro ldquoeurdquo desta forma natildeo existe a possiblidade da escolha nestas relaccedilotildees Isto implica em outra limitaccedilatildeo para a amizade entre famiacutelia Natildeo existe amizade de caraacuteter involuntaacuterio ou seja um amigo escolhe o outro e vice-versa voluntariamente livre de obrigaccedilotildees preacute-concebidas

Vale a pena lembrar que foi a pedido de seu pai que Montaigne traduziu a Theacuteologie naturelle de Raymond Sebond publicada em 1487 assim fez para natildeo o desagradar deixando perceptiacutevel seu afeto respeitoso Em que pese o carinho a admiraccedilatildeo e o respeito pela figura paterna o pai de Montaigne natildeo era seu amigo porque natildeo poderia secirc-lo Exatamente porque como jaacute chamamos a atenccedilatildeo a amizade ao contraacuterio do ambiente familiar tem uma conotaccedilatildeo espontacircnea que compreende as duas vontades que se fundem numa soacute Por maior que fosse a afeiccedilatildeo para com seu pai natildeo existiam elementos fundamentais do viacutenculo de amizade Esta eacute arquitetada pela abertura muacutetua sem nenhum tipo de ressentimento ou receio que englobe uma relaccedilatildeo de verticalidade como eacute o caso do respeito de filho Horizontalidade na amizade implica em que um confie no outro de maneira reciacuteproca e juntos onde por meio do diaacutelogo constituam os elementos que compotildeem os seus deveres muacutetuos da amizade tais como os da correccedilatildeo e da troca de experiecircncias Ou numa palavra amor muacutetuo

25 A arte de imitar termo grego

86 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Desse modo eacute o diaacutelogo que sustenta a amizade

e permite a consciecircncia da vontade do outro a comunicaccedilatildeo eacute fundamental para a composiccedilatildeo do viacutenculo de amizade26 pois ela eacute quem alimenta e fornece subsiacutedios para o fortalecimento deste viacutenculo amical sendo que ao dialogar discute-se ideias apresenta-se ao outro aquilo que sente em seu interior sem reservas ou receio livre de constrangimento tendo por objetivo ser entendido pelo outro Dentro da famiacutelia isso seria impossiacutevel aliaacutes quantas vezes pais se tornam opressores de ideias natildeo permitindo que os filhos expressem o que pensam dos atos por eles cometidos O respeito na verticalidade impede uma intimidade acentuada entre os membros da famiacutelia e os torna inconveniente Obviamente nos referimos agrave verticalidade e agrave horizontalidade de relaccedilotildees no sentido de procurar distinguir de que tipo de respeito estamos falando Quando Montaigne refere-se ao lsquorespeito pelo pairsquo como uma dificuldade para a amizade natildeo eacute que natildeo deva haver respeito em todas as relaccedilotildees humanas Ocorre apenas que Montaigne chama a nossa atenccedilatildeo pelo fato de que o respeito que se tem pelo pai eacute diferente daquele que se tem pelo amigo

A comunicaccedilatildeo sincera eacute uma das primeiras incumbecircncias da amizade o aconselhamento eacute o caminho aberto entre as pessoas para se advertir dar avisos formular censuras visando sempre o crescimento muacutetuo bem como o estreitamento do viacutenculo Como o amigo eacute aquele capaz de advertir Montaigne chama a atenccedilatildeo para as relaccedilotildees que alguns chamam de amizade poreacutem satildeo carregadas de palavras suaves superficiais elogios exagerados e benevolecircncias banais Montaigne estaacute afinado com Ciacutecero quando este escreve

Portanto advertir e ser advertido eacute proacuteprio da amizade verdadeira desde que isso seja feito com franqueza e

26 A amizade alimenta-se de comunicaccedilatildeo (I 28 276)

Amizade em Montaigne 87

afabilidade e recebido com paciecircncia e sem ressentimento Estejamos persuadidos de que na amizade nada eacute pior que a adulaccedilatildeo a lisonja a bajulaccedilatildeo sim podemos multiplicar os nomes como quisermos mas eacute preciso condenar o viacutecio dessas criaturas friacutevolas e falazes que sempre falam para agradar nunca para dizer a verdade (CIacuteCERO 2012 p 75)

As pessoas incapazes de dizer a verdade natildeo

estatildeo propensas a bons relacionamentos estas tecircm como objetivo o interesse pessoal e o proacuteprio prazer vivem camufladas pautadas na individualidade de seus interesses Ciacutecero adverte ainda formulando a primeira lei da amizade afirmando que o amigo deve ser prudente usar francamente sua opiniatildeo repreender com severidade quando necessaacuterio e que seja capaz de obedecer agraves orientaccedilotildees do outro com paciecircncia e sem ressentimento

Retomemos que haacute uma outra criacutetica montaigniana a respeito da amizade entre familiares a que tem por foco os irmatildeos Tambeacutem nesta situaccedilatildeo o obstaacuteculo eacute o mesmo que a dos pais para com os filhos a condiccedilatildeo de desigualdade e a falta de escolha entre os sujeitos Ningueacutem escolhe os proacuteprios irmatildeos Para tanto faz como se fossem suas as palavras de Aristipo e Plutarco quando

ldquopressionado sobre a afeiccedilatildeo que devia a seus filhos por terem saiacutedo dele pocircs-se a cuspir dizendo que aquilo tambeacutem saiacutera delerdquo e Plutarco que queria induzir a entender-se bem com o irmatildeo respondeu que lsquonatildeo tinha maior consideraccedilatildeo por ele soacute porque saiu do mesmo buracorsquo (I 28 276)

Montaigne argumenta que aquilo ao qual se daacute o

nome de lsquoamizadersquo e de lsquoamigorsquo verdadeiramente natildeo merece tal nome quando se trata de ligaccedilotildees familiares O ensaiacutesta parece entender que existe uma divergecircncia

88 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na concepccedilatildeo de viacutenculo familiar e de amizade pois amizade desempenha um papel diferente da famiacutelia na sociedade Afinal procuramos mostrar que conforme Montaigne a desigualdade entre os familiares bem como o respeito e a impossibilidade de escolha inviabilizam a amizade com viacutenculo familiar visto que impotildee limites aos quais a amizade natildeo suporta Acrescenta Birchal

Em relaccedilatildeo aos viacutenculos naturais como os laccedilos de paternidade e filiaccedilatildeo a amizade eacute superior pois escolhida (e natildeo determinada pela natureza) e fundada numa igualdade (ao contraacuterio da hierarquia entre pai e filho que impede a plena comunicaccedilatildeo) (BIRCHAL 2000 p 292)

Em prosseguimento Michel de Montaigne natildeo

deixa de observar que tambeacutem se associa a amizade no casamento ou na relaccedilatildeo existente entre um homem e uma mulher Disso Montaigne discorda uma vez que para ele o amor conjugal de um casal natildeo pode ser entendido como relaccedilatildeo de amizade Conclui que o marido natildeo eacute amigo de sua mulher Acompanhando Aristoacuteteles Montaigne faz questatildeo de distinguir a amizade daquele sentimento passional que existe para com as mulheres Ainda que reconheccedila que a escolha por uma mulher e natildeo por outra seja proveniente do livre arbiacutetrio (diferente do caso de irmatildeos) a paixatildeo eacute um sentimento arriscado inconstante e fraacutegil Se o marido se tornar um amigo da esposa a relaccedilatildeo corporal apaixonada esfria Nesta questatildeo continuemos a seguir Montaigne em sua escrita sobre o valor da amizade

Na amizade eacute um calor geral e universal temperado e uniforme em tudo um calor constante e sereno todo doccedilura e gentileza que nada tem de rude e pungente Tatildeo logo entra nos termos da amizade isto eacute na concordacircncia das vontades o amor se dissipa ou se enfraquece A fruiccedilatildeo arruiacutena-o pois sua meta eacute corporal e sujeita agrave saciedade A amizade ao contraacuterio

Amizade em Montaigne 89

eacute desfrutada na medida em que eacute desejada e apenas na fruiccedilatildeo se cria se alimenta e cresce porque eacute espiritual e a alma se aprimora com o uso (I 28 277278)

Acrescenta Montaigne que sobre a amizade no

relacionamento conjugal vale a pena observar que o caraacuteter voluntaacuterio se extingue apenas em sua adesatildeo de maneira que passando isto a liberdade se esvai Nosso autor chama a atenccedilatildeo ainda na questatildeo conjugal que esta pode adquirir ateacute uma caracteriacutestica comercial sobretudo o caso daqueles matrimocircnios engendrados para aumentar o patrimocircnio e a riqueza Acrescente ainda que na eacutepoca de Montaigne era muito difiacutecil a separaccedilatildeo dos cocircnjuges Ele brinca dizendo que o casamento somente tem lsquoporta de entradarsquo Claro tais fatos satildeo adversos aos interesses da amizade que soacute pode ter por fim ela mesma e por isso nela haacute liberdade tanto para adesatildeo quanto para rescisatildeo desse relacionamento (diferente do casamento)

Desta forma acabamos de ver que o ensaiacutesta reforccedila que a finalidade da amizade deve ser ela mesma contrapondo-se ao casamento pois neste podemos notar objetivos adversos agrave sua finalidade O lsquobom casamentorsquo seria aquele que se aproxima da amizade Entatildeo e se nossa amante pudesse ser nossa amiga Respondendo a esta indagaccedilatildeo o ensaiacutesta considera que se por acaso pudeacutessemos ter este relacionamento de maneira livre e voluntaacuteria com nosso cocircnjuge seria sem duacutevida a mais plena e completa amizade jaacute experimentada pela humanidade Eacute interessante a afirmaccedilatildeo do ensaiacutesta quando diz o bom casamento eacute aquele que se assemelha com a amizade27 No entanto segundo Montaigne natildeo existem registros de que isso possa ter acontecido e pelo consenso dos antigos isto estaacute longe de acontecer

27 III 5 99

90 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Logo em seguida a esta passagem dos Ensaios

Montaigne discute se eacute possiacutevel uma relaccedilatildeo de amizade no caso da pederastia antiga grega Comeccedila dizendo que a pederastia eacute lsquoabominada pelos costumes de sua eacutepocarsquo Como ceacutetico ele acata os costumes mas nem sempre Montaigne concorda na vida privada com os costumes Note-se que ele se refere ao fato de que a pederastia eacute lsquoabominado por nossos costumesrsquo poreacutem natildeo diz que ele pessoalmente a condena Natildeo eacute nosso propoacutesito aprofundar este tema mas Montaigne parece rechaccedilar a pederastia grega natildeo por uma questatildeo moral mas por natildeo ser uma relaccedilatildeo entre iguais (diferenccedila de idade de classe de ofiacutecio) Mas no tocante agrave pederastia entre iguais Montaigne natildeo se deteacutem a examinar Assim sendo neste caso Montaigne critica o viacutenculo estabelecido entre pessoas com disparidade de idade e diferenccedila de objetivos Portanto podemos entender porque para Montaigne tambeacutem temos obstaacuteculos na consecuccedilatildeo da amizade no caso da pederastia antiga grega e mesmo no relacionamento entre pessoas do mesmo gecircnero porque o fim da amizade natildeo estaacute nela mesma mas sim em um sentimento avassalador de paixatildeo Eacute uma relaccedilatildeo humana mas natildeo cumpre as exigecircncias estabelecidas pela amizade a que Montaigne se refere

E aquela outra licenciosidade grega eacute legitimamente abominada por nossos costumes Entretanto como segundo o uso ela comportava uma tatildeo necessaacuteria disparidade de idades e diferenccedila de benefiacutecios entre os amantes tampouco atendia suficientemente agrave perfeita uniatildeo e concordacircncia que aqui exigimos (I 28 279)

Logo em seguida Montaigne debatendo sempre

acerca da amizade usa os questionamentos de Ciacutecero agrave praacutetica da pederastia problematizando sobre a possibilidade de neste tipo de relaccedilatildeo amorosa haver

Amizade em Montaigne 91

amizade Pergunta ldquoo que seria de fato este amor de amizade De onde viria que ele natildeo se ligue nem a um jovem feio nem a um anciatildeo belordquo Respondendo parcialmente agrave questatildeo conclui que ldquotudo o que se pode apresentar em favor da academia eacute dizer que se tratava de um amor que terminava em amizaderdquo (I 28 280) Sugere assim que tanto o casamento quanto a pederastia podem terminar em amizade Ocorre que Montaigne suscita perguntas ateacute mesmo quando procura respondecirc-las Isto posto cabe agora analisar a diferenccedila da amizade para com os viacutenculos comuns na sociedade

Nesta ideia de amizade frouxa novamente a leitura de Montaigne aproxima-se de Aristoacuteteles visto que para o Estagirita as amizades comuns equivalem a relaccedilotildees de camaradagem Nestas relaccedilotildees ldquoas amizades deste tipo satildeo apenas acidentais pois natildeo eacute por ser quem ela eacute que a pessoa eacute amada mas por proporcionar agrave outra algum proveito ou prazerrdquo (EN VII 4 p 177) Sendo assim amizade comum eacute aquela em que o interesse estaacute nas vantagens e as accedilotildees praticadas de um para com o outro fundamentam-se no dever soacute em si mesmo e natildeo satildeo motivadas pelo bem que proporcionam ao outro Portanto natildeo eacute uma relaccedilatildeo de igualdade pois o dever leva ao sentimento de obrigaccedilatildeo com o outro em busca de um favor do reconhecimento ou seja trazendo para a nossa expressatildeo popular ldquoo que eu vou ganhar em troca distordquo accedilotildees que visam ao lucro ou favorecimento

Neste mesmo rumo Montaigne clama para que sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie natildeo seja colocada na mesma linha das relaccedilotildees de camaradagem pois nestas temos que andar sempre atentos cautelosos devido a desconfianccedila nas intenccedilotildees do outro deste modo natildeo devemos deixar de ter prudecircncia Se na amizade verdadeira haacute uma entrega ao amigo por ela mesma jaacute

92 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na amizade comum eacute preciso preservar-se porque natildeo eacute por ela mesma

Que natildeo me coloquem na mesma linha essas outras amizades comuns tenho tanto conhecimento delas como qualquer outro e das mais perfeitas em seu gecircnero mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p283)

Em outras palavras as amizades comuns tecircm

como finalidade o prazer ou a utilidade elementos que natildeo deixam de existir em nenhuma espeacutecie de amizade A diferenccedila eacute que no viacutenculo de amizade que Montaigne descreve este natildeo eacute o fim uacuteltimo da amizade De qualquer forma amizade soacute existe entre pessoas boas e ser uacutetil e agradaacutevel satildeo caracteriacutesticas de bons cidadatildeos Embora sejam elas fundamentais a amizade pura natildeo se esgota quando recebe favor do outro pois este deseja o bem para si tanto para com o outro Neste sentido compreende Aristoacuteteles (ao qual Montaigne de perto como empreacutestimo para sua proacutepria concepccedilatildeo) que

a amizade por prazer tem alguma semelhanccedila com esta espeacutecie pois pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente agradaacuteveis Acontece o mesmo em relaccedilatildeo agrave amizade por interesse pois as pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente uacuteteis (EN VIII 6 p 179)

A questatildeo que distingue os tipos de amizade

como se vecirc eacute o fim almejado Na perspectiva do ensaiacutesta a definiccedilatildeo

aristoteacutelica de uma alma em dois corpos eacute a justificativa para uma fusatildeo das vontades Por esta razatildeo Montaigne descreve sua experiecircncia de amizade com La Boeacutetie como sendo onde este princiacutepio estaacute presente onde ldquotudo eacute verdadeiramente comum entre elesrdquo Nesta

Amizade em Montaigne 93

amizade existe uma harmonia uma uniatildeo completa e sem reservas em uma palavra perfeita

Nesse nobre comeacutercio os serviccedilos e benefiacutecios que alimentam as outras amizades nem sequer merecem ser levados em conta a causa eacute essa fusatildeo plena de nossas vontades Pois assim como a amizade que tenho para comigo natildeo recebe aumento pelo socorro que me presto na necessidade natildeo importa o que digam os estoacuteicos e como natildeo me sou grato pelo serviccedilo que faccedilo assim tambeacutem a uniatildeo de tais amigos sendo realmente perfeita faz que eles percam a percepccedilatildeo desses deveres e odeiem e eliminem dentre eles estas palavras de divisatildeo e diferenccedila benefiacutecio obrigaccedilatildeo reconhecimento pedido agradecimento e suas semelhanccedilas Como tudo verdadeiramente comum entre eles ndash vontades pensamentos julgamentos bens mulheres filhos honra e vida ndash e sua harmonia eacute de uma uacutenica alma em dois corpos segundo a muito adequada definiccedilatildeo de Aristoacuteteles (I 28 p 284)

Na amizade perfeita tudo eacute conhecido pelo

amigo seus pensamentos suas intenccedilotildees e julgamentos Montaigne afirma que sua alma e a de La Boeacutetie andavam tatildeo juntas quanto possiacutevel por este motivo a comunhatildeo de ideias e experiecircncias era concebida com a mesma convicccedilatildeo da afeiccedilatildeo que sentiam um pelo outro De modo que a admiraccedilatildeo reciproca eacute complementada pela correspondecircncia do gosto e compartilhada pelo diaacutelogo que alimenta a amizade De modo que lsquocom certezarsquo as intenccedilotildees do amigo de Montaigne eram conhecidas por ele bem como seus julgamentos por isso ele escreve que de bom grado confiaria mais no amigo do que em si mesmo

A amizade verdadeira eacute uma experiecircncia de singularidade por isso Montaigne considera uma raridade a amizade que teve com La Boeacutetie Montaigne julga que esta amizade eacute incomparaacutevel devido a sua integridade e

94 Eacutetica e filosofia poliacutetica

dedicaccedilatildeo extrema sobre a qual natildeo se encontra registros de uma amizade tatildeo perfeita na histoacuteria e muito menos entre os contemporacircneos Reforccedila e a eleva ao mais alto grau da perfeiccedilatildeo humana pois a virtude da amizade eacute bela e perfeita quando sua finalidade eacute ela mesma Desta forma existe um caraacuteter de completude neste tipo de amizade onde um completa o outro numa harmonia incomparaacutevel Vejamos isso nas proacuteprias palavras do ensaiacutesta ao escrever sobre os primeiros encontros com o Amigo

Encaminhando assim essa amizade que enquanto Deus quis alimentamos entre noacutes tatildeo integra e tatildeo perfeita que sem a menor duacutevida natildeo se lecirc sobre outras iguais e entre nossos contemporacircneos natildeo se vecirc o menor indicio de sua praacutetica Para construiacute-la satildeo necessaacuterias tantas circunstancias que eacute muito se afortuna o conseguir uma vez a cada trecircs seacuteculos (I 28 p 275)

Aleacutem disso a uniatildeo dos amigos eacute de grande

intensidade ao ponto de consolidar esta bela alianccedila com um nobre tratamento chamando-o de irmatildeo ldquoNa verdade o nome irmatildeo eacute um nome belo e cheio de deleccedilatildeo e por esse motivo noacutes dois ele e eu usamo-lo em nossa alianccedilardquo (I 28 276) Starobinski lembra que La Boeacutetie ao deixar sua biblioteca e seus papeacuteis de heranccedila para Montaigne escreve uma carta onde expressa ao amigo seu desejo e chama-o de irmatildeo

E depois voltando seu discurso para mim Meu irmatildeo disse ele que amo tatildeo afetuosamente e que escolhera entre tantos homens para renovar convosco essa virtuosa e sincera amizade cujo uso estaacute pelos viacutecios haacute tanto tempo afastado de noacutes que dele natildeo restam senatildeo alguns velhos vestiacutegios na memoacuteria da Antiguidade Suplico-vos como sinal de minha afeiccedilatildeo por voacutes que aceiteis ser o sucessor de minha biblioteca e de meus livros que vos dou (apud STAROBINSKI 1992 p 60)

Amizade em Montaigne 95

Sem duacutevidas esta atitude de La Boeacutetie eacute uma

marca concreta da amizade intensa e verdadeira para com Montaigne Deixar a biblioteca como heranccedila tem um valor que vai muito aleacutem dos bens materiais pois estava ali em seus papeacuteis parte de Montaigne bem como de suas ideias compartilhadas com o amigo Eacute um ato que expressa confianccedila imensuraacutevel e para retribuir agrave altura esta mesma Montaigne insere nos ensaios a figura de seu amigo de forma indireta na redaccedilatildeo dos textos aleacutem de dedicar o escrito da Amizade onde se esforccedila para mostrar a constituiccedilatildeo desta amizade perfeita e a diferenciaacute-la das demais Observa Cardoso

Montaigne esquadrinha toda a gama dos viacutenculos associativos e interroga a natureza destes laccedilos diversos que atamos homens entre si (o estatuto das diversas philiai portanto jaacute que para os antigos esta palavra designa tambeacutem mais amplamente todas as formas de afinidade entre os seres e de suas associaccedilotildees) Ao mesmo tempo ele como que hierarquiza esses viacutenculos pelo grau da alianccedila que propiciam pela sua consistecircncia e solidez e instala no topo da classificaccedilatildeo reinando soberana a verdadeira amizade a amizade acabada ndash teacuteleacuteia philia dissera Aristoacuteteles ndash ldquouniatildeo perfeitardquo sem brechas ou fissuras ldquoDivina ligaccedilatildeordquo ldquoa coisa mais uma e unidardquo atada pelos ldquonoacutes serrados e duraacuteveisrdquo de uma ldquocostura santardquo fusatildeo das almas satildeo as expressotildees de Montaigne para essa amizade Amizade que ele afirma ser o estofo da alianccedila que o associara a Etienne de La Boeacutetie (CARDOSO 1987 p 165)

Uma expressatildeo marcante neste ensaio da

Amizade eacute a de ldquofusatildeo das almasrdquo que provem de uma forccedila28 arrebatadora ldquoinexplicaacutevel e fatalrdquo que segundo Montaigne foi ldquomediadora dessa uniatildeordquo (I 28 281) ndash

28 Na nota 22 da p 281 esta forccedila eacute chamada de lsquodestinorsquo

96 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uniatildeo entre Montaigne e La Boeacutetie Avalia que mesmo sem saber como explicar sabe-se que esta forccedila domina as vontades de maneira a mesclar a tal ponto que natildeo existe maneiras de identificaacute-las separadamente as almas ldquose mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniurdquo (I 28 281) Todavia esta fusatildeo natildeo a anula pessoas esta amizade soacute pode existir porque era Montaigne e porque era La Boeacutetie Natildeo se perde a individualidade na amizade perfeita pois um eacute o complemento do outro

A lsquoamizade perfeitarsquo eacute indivisiacutevel e de completude ldquoCada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhes resta para distribuir alhuresrdquo (I 28 285) diferente das lsquoamizades superficiaisrsquo e das amizades comuns Na amizade perfeita soacute existe espaccedilo para dois iguais (equivalente a uma alma) Assim aquele que pretende ampliar a experiecircncia da amizade perfeita entra em um dilema paradoxal Seguindo as questotildees postas no texto por Montaigne exatamente porque a amizade eacute indivisiacutevel e de completude torna-se clara a dificuldade em se ter muitos amigos ldquose dois pedissem para ser socorridos qual acudiriacuteeis Se solicitassem de voacutes serviccedilos opostos que ordem encontrariacuteeis nisso29 Se um confiasse ao vosso silecircncio algo que ao outro fosse uacutetil saber como vos desenredariacuteeis dissordquo (I 28 p 285286) Portanto quanto agrave amizade perfeita eacute impossiacutevel que seja dupla Aleacutem disto duplicar-se jaacute eacute uma daacutediva inigualaacutevel e aqueles que dizem querer estendecirc-la para mais um ainda natildeo conhecem a grandeza da amizade perfeita

Montaigne usa os exemplos antigos e suas experiecircncias para fundar suas opiniotildees assinalando que

29 Qual deles atenderiacuteeis em primeiro lugar Ou talvez como resolveriacuteeis essa dificuldade

Amizade em Montaigne 97

natildeo tem por objetivo ensinar o que se deve fazer30 Este tipo de amizade natildeo tem preccedilo A propoacutesito disto o ensaiacutesta comenta um exemplo de Eudacircmidas

Em suma satildeo fatos inimaginaacuteveis para quem natildeo experimentou e que me faz elogiar extremamente a resposta daquele jovem soldado a Ciro que lhe perguntava por quanto ele queria dar um cavalo com o qual acabara de ganhar o precircmio da corrida e se queria trocaacute-lo por um reino ldquoPor certo que natildeo meu senhor mas de muito bom grado o entregaria para obter um amigo se encontrasse homem digno de tal alianccedilardquo (I 28 p 286)

Segundo Starobinski com a morte de La Boeacutetie a

vivecircncia dele seraacute suprida pela atitude de Montaigne de maneira que ele mesmo torna-se objeto de uma representaccedilatildeo no ato da escrita ou seja doravante Montaigne seraacute o objeto de sua investigaccedilatildeo Assim

o ato de observar e de representar constitui ele proacuteprio o objeto de uma representaccedilatildeo O registro nos mostraratildeo pintor no trabalho diante do speculum e da tela em que figura um autorretrato em vias de execuccedilatildeo (STAROBINSKI 1992 p 36) Desta forma a morte do Amigo e a escrita tecircm

conjunturas fundamentais pois existe a possibilidade de eternizar por meio da escrita a experiecircncia vivida e ao mesmo tempo revivecirc-las ao passo que as registra trazendo na memoacuteria a presenccedila daquele que se foi

E por uacuteltimo analisamos que a amizade enquanto experiecircncia de si eacute marcada pela alteridade o que implica supor que o outro eacute constitutivo da identidade do eu De acordo com Starobinski La Boeacutetie era o uacutenico que conhecia Montaigne por completo Por isso ele eacute o

30 ldquoNatildeo me ocupo de dizer ao mundo o que ele deve fazer ndash outros ocupam suficientemente - e sim o que faccedilo nelerdquo (I 28 287)

98 Eacutetica e filosofia poliacutetica

guardiatildeo da sua mais pura imagem do filoacutesofo uma vez que

[] Ele era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1992 p 45)

Em Da Vanidade Montaigne discorre acerca da

amizade com La Boeacutetie Escreve que Na verdadeira amizade em que sou experimentado dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim Natildeo soacute prefiro fazer-lhe bem a que ele me faccedila mas ainda que ele o faccedila a si proacuteprio a que me faccedila faz-me ele entatildeo o maior bem possiacutevel quando a si o faz E se a sua ausecircncia lhe for quer prazenteira quer uacutetil torna-se-me ela bem mais agradaacutevel que a sua presenccedila e de resto natildeo eacute propriamente ausecircncia se haacute meios de comunicarmos um com o outro Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento Em nos separando para mim e eu para ele mais plenamente que se ele estivesse presente Uma parte de cada um de noacutes permanecia desocupada quando estaacutevamos juntos fundiacuteamo-nos num soacute A separaccedilatildeo espacial tornava mais rica a uniatildeo das nossas vontades A insaciaacutevel fome da presenccedila fiacutesica denuncia uma certa fraqueza na fruiccedilatildeo muacutetua das almas (III 9 p 272)

A escrita de Montaigne tem uma dimensatildeo muito

pessoal Busca nos haacutebitos e costumes questotildees referentes agrave humanidade como um todo Quando a razatildeo lhe falta Montaigne se apoia na experiecircncia Eacute verdade que tais bases satildeo fraacutegeis (razatildeo costume experiecircncia) poreacutem tudo o que temos eacute lsquoo que aparecersquo Desse modo ele utiliza como base de seu estudo acerca da amizade a relaccedilatildeo que manteve com La Boeacutetie Inerente agrave temaacutetica da amizade haacute uma perspectiva poliacutetica visto que para Montaigne a inspeccedilatildeo que respalda o juiacutezo relativo deve

Amizade em Montaigne 99

ultrapassar a experiecircncia de si e alcanccedilar a experiecircncia do coletivo e da opiniatildeo puacuteblica31 Ou seja para ele a ideia de humanidade se coloca acima da ideia de paacutetria e isso implica em que a amizade desempenha papel central nisso na medida em que declara a amizade mais alta aquela que dedica ao gecircnero humano Por todas estas razotildees nosso autor descreve a amizade pura e desinteressada como o fundamento de toda a sabedoria

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Satildeo estas as razotildees de toda a argumentaccedilatildeo que

enfim se depreende da leitura de Montaigne natildeo pode existir uma amizade imposta A amizade compreende um amor equitativo em outras palavras justo e igual Na amizade nada eacute privado do amigo principalmente a vontade que eacute comum desde sua origem e inclusive a proacutepria forma de enxergar a vida O desiacutegnio eacute o mesmo ser apenas uma alma em dois corpos Este pensamento se refere agrave uniatildeo das almas num soacute corpo como diziacuteamos Uma uniatildeo na qual se perde o privado todavia natildeo se perde a individualidade Esta eacute reconhecida pelo exerciacutecio da descoberta de si mesmo no outro Uma descoberta ininterrupta que inclusive vai aleacutem da morte pelo fato de que Montaigne a registra em sua escrita tornando sempre viva a experiecircncia

Viver verdadeiramente eacute realizar uma experiecircncia de amizade que na verdade eacute a descoberta da consciecircncia e da humanidade do proacuteprio lsquoeu como escreve Birchal (2000) Quem nunca teve um amigo teraacute vivido verdadeiramente Por isso a metaacutefora do espelho trazida por Starobinski eacute muito adequada visto que aquilo que o homem eacute consiste na sua proacutepria existecircncia Os atos refletem o que cada ser humano traz de tal sorte

31 CONCEICcedilAtildeO 2014

100 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que o amigo eacute capaz de enxergar-nos nesse espelho e nos decifrar Conforme Seacutergio Cardoso

desejando pois pela sua virtude a proacutepria vida e fazendo-se a vida do amigo igualmente pela virtude semelhante agrave sua o saacutebio a deseja tambeacutem Os amigos se aproximam portanto por meio da unidade da virtude e do Bem (CARDOSO 1987 p 186)

Uma vez que o proacuteprio Montaigne parece nos

querer deixar questotildees em aberto em forma de problema para refletirmos ndash como faz com frequecircncia nos Ensaios ndash talvez seja melhor que tenhamos em matildeos a contextualizaccedilatildeo de sua maneira de pensar e percebermos que o filoacutesofo estaacute aleacutem de seu tempo Eacute importante que natildeo busquemos restringir a leitura de um texto tatildeo rico e tatildeo denso dentro de um esquema que se apresente como mais coerente ou sistemaacutetico pois Os Ensaios satildeo registro de uma tensatildeo e de movimento portanto assistemaacutetico e fluido O problema do ceticismo bem como o da Amizade satildeo de grande importacircncia para a histoacuteria da filosofia e ateacute mesmo para nossos proacuteprios modos particulares de ver o mundo pode ser mais bem aproveitado se natildeo o limitarmos e respeitarmos sua complexidade pois falar sobre a escrita de Montaigne envolve muitos paradoxos Tentar aprisionaacute-lo numa explicaccedilatildeo para uma questatildeo de tamanha abrangecircncia e que talvez seja irrespondiacutevel (no sentido de ser uma questatildeo permanentemente aberta) pode natildeo ser o melhor modo de se tratar o tema da amizade e do ceticismo em um autor que de modo geral tanto adverte contra julgamentos absolutos precipitados e contra a estreiteza de pensamento

A amizade assegura portanto a existecircncia de si mesmo visto que o outro no caso La Boeacutetie eacute uma parte de Montaigne Desse modo a amizade adquire um ideal humanista uma vez que o outro revela o ldquoeurdquo de forma a garantir a sua presenccedila no mundo Com a morte do

Amizade em Montaigne 101

Amigo resta ao autor apenas o ato de redigir para que natildeo morra o restante de si mesmo No entanto aquilo que era a garantia de si mesmo antes da morte do amigo agora com a perda dele torna um ldquoeurdquo em movimento que busca constantemente a si mesmo Acontecendo a sobrevivecircncia do ldquoeurdquo por meio da escrita

Vale dizer que Montaigne tem como base de pesquisa o seu viver e tem como referecircncia ele mesmo bem como a leitura dos textos antigos Portanto trata-se de um autor que natildeo se propotildee escrever um manual a respeito da amizade ou do comportamento humano mas quer apenas apresentar reflexotildees resultantes de sua experiecircncia Segundo Cardoso

soacute aqui chegamos pois propriamente ao essai registro do proacuteprio autor autorretrato expressatildeo de si mesmo ndash gestos gostos opiniotildees reflexotildees ndash ensaios de uma vida (CARDOSO 1992 p 13)

Por fim

eacute indispensaacutevel a amizade para que haja a felicidade Natildeo obstante a morte do amigo essa natildeo seraacute apenas motivo de melancolia mas momento de honra por intermeacutedio da memoacuteria viva da uniatildeo entre eles visto que dividiam e partilhavam tudo (SILVA 2010 p 131)

A dinacircmica da relaccedilatildeo de amizade perfeita natildeo

tem fim com a morte de La Boeacutetie pois recorrendo agrave escrita a fluidez de seu pensamento toma outra dimensatildeo na medida em que a escrita revela uma vivecircncia diferente da amizade vivida

E finalmente vale ressaltar ainda que em Montaigne ldquoencontramos mais o paradoxo e menos o repousordquo (CONCEICcedilAtildeO 2015 p 27) ou seja a leitura dos Ensaios nos provoca mais indagaccedilotildees do que nos daacute respostas prontas

102 Eacutetica e filosofia poliacutetica

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Livro IX Coleccedilatildeo Os Pensadores Editora Nova Cultural Ltda Satildeo Paulo 1996

______ Eacutetica a Nicocircmacos Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

______ Eacutetica a Nicocircmaco Trad Leonel Vallandro e Gerd Bornhein da versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica Trad br Eudoro de Souza Coleccedilatildeo Os Pensadores Volume II Satildeo Paulo Abril Cultural 1979

______ Poliacutetica Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1997

BIGNOTTO N Montaigne Renascentista Kriterion n 86 p 41 1992

BIRCHAL T Montaigne e seus duplos Elementos para uma histoacuteria da subjetividade 2000 Tese (Doutorado) - Universidade de Satildeo Paulo 2000

CARDOSO Seacutergio Villey e Starobinski duas interpretaccedilotildees exemplares sobre a Gecircnese dos Ensaios Kriterion Belo Horizonte v 33 n 86 p 9-28 1992

______ Os sentidos da Paixatildeo Texto ldquoPaixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaignerdquo Companhia das Letras Satildeo Paulo 1986

______ [et al] Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987 p 159-194

COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo de Eduardo Brandatildeo 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2011

Amizade em Montaigne 103

______ Uma feacute um Rei uma Lei Anexo ao Relatoacuterio sd

______ O homem um homem do humanismo renascentista a Michel de Montaigne In Perturbador Mundo Novo Ed Escuta Satildeo Paulo 1992

______ Paixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaigne In NOVAES A (Org) Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1995 p 159-194

______ A crise da razatildeo poliacutetica na Franccedila das guerras de religiatildeo In A Crise da Razatildeo Org Adauto Novaes Satildeo Paulo Cia das letras 1996 p 173

CONCEICcedilAtildeO Gilmar H Montaigne e a Poliacutetica EDUNIOESTE Cascavel 2014

COSTA LIMA L Limites da Voz (Montaigne Schlegel Kafka) 2ordf ed revisada Rio de Janeiro Topbooks 2005

CIacuteCERO Marcos Tulio Da Amizade Trad Gilson Cesar Cardoso De Souza Wmf Martinsfontes Satildeo Paulo 2012

EVA Luiz Antonio Alves Montaigne e o Ceticismo na Apologia de Raymond Sebond a Natureza Dialeacutetica da Criacutetica agrave Vaidade In O que nos faz pensar Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio novembro de 1994 n 8

______ O Ensaio como Ceticismo Manuscrito Unicamp 2001

______ O Fideismo ceacutetico de Montaigne 1947 Kriterion Revista de filosofia v I Belo Horizonte

EMPIacuteRICO Sexto Outlines of Pyrrhonism (HP) In BURY R G (Ed) Sextus Empiricus Cambridge

104 Eacutetica e filosofia poliacutetica

London Harvard University Press William Heinemann 1987 v I (Loeb Classical Library ndeg 273)

______ Outlines of Pyrrhonism Trad Para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

______ Esbozos Pirrocircnicos Madrid Editorial Gredos 1993

JAPIASSUacute Hilton MARCONDES Danilo Dicionaacuterio Baacutesico de Filosofia 5ed Rio de Janeiro Zahar 2008

LA BOEacuteTIE E Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria Trad Laymert Garcia dos Santos Ed Marilena Chauiacute 2 ed Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1982 (Col Elogio da Filosofia)

LACOUTURE Jean Montaigne a cavalo Trad F Rangel Rio de Janeiro Record 1998

MILLIET Sergio Prefaacutecio aos Ensaios de Montaigne Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Ed Globo 1961

MONTAIGNE Journal de voyage en Italie par La Suisse amp lrsquoAllemagne In Œuvres complegraveetes Paris Gallimard 1962 (Bibliothegraveque de La Pleacuteiade)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro II Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek AbiacutelioSatildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro III Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

Amizade em Montaigne 105

MONTAIGNE Michel de Apologie de Raimond Sebond introduction de Samuel Sylvestre de Sacy Collection Ideacutees NRF France Eacuteditions Gallimard 1967

EPICURO Maacuteximas e Sentenccedilas Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

SILVA Nelson Maria Brechoacute da A Amizade em Montaigne Dissertaccedilatildeo de Mestrado- Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciecircncias 2010

STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Traduccedilatildeo de Maria Luacutecia Machado SatildeoPaulo Cia da Letras 1992

TOURNON Andreacute Montaigne Satildeo Paulo Discurso 2004

THEOBALDO Maria Cristina Sobre o ldquoDa educaccedilatildeo das crianccedilasrdquo a nova maneira De Montaigne Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2008

VASCONCELOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 (Paideacuteia)

VILLEY Pierre Os Ensaios de Montaigne Montaigne Ensaios Livro I Traduccedilatildeo Prefaacutecio e notas de Sergio Milliet Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Editora Globo 1961

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

POPKIN Richard H The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza Berkeley Los Angeles London University of California Press 1979

106 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= IV =

O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O

CAMINHO DA FILOSOFIA

Elissa Gabriela Fernandes Sanches 41 INTRODUCcedilAtildeO

De seu primeiro contato e leitura dos escritos de

Ciacutecero ndash especificamente da obra ldquoHortecircnsiordquo ndash Agostinho despertou para a vida filosoacutefica enquanto busca da sabedoria em si proacuteprio Em uma trajetoacuteria de vida marcada por grandes descontinuidades ele era constantemente perturbado pela duacutevida vivida como anguacutestia Tais indagaccedilotildees o motivaram a uma interminaacutevel busca por respostas e diferentes foram os resultados a que chegou Natildeo obstante o pensador patriacutestico se inseriu em diversos paradoxos e foi atormentado pelas proacuteprias tensotildees que encontrava na diaphonia (διαφονία) dos fenocircmenos Em um primeiro momento seus questionamentos o obrigaram a abandonar a seita maniqueiacutesta agrave qual era afiliado e o inseriram em um percurso ceacutetico de caraacuteter acadecircmico que afirmava a impossibilidade de se conhecer a verdade Tal caminhada levou Agostinho agrave conversatildeo ao Cristianismo pouco antes de 386 dC ano em que escreve sua primeira obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo com o objetivo de argumentar que a verdade natildeo soacute estaacute acessiacutevel a todos como tambeacutem pode ser conhecida por nossa razatildeo Uma mudanccedila brusca que diante de seu

Bacharel em Teologia pela Faculdade Nazarena do Brasil e mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE-PR) Contato elissagabrielafshotmailcom

108 Eacutetica e filosofia poliacutetica

contexto de vida eacute compreensiacutevel Sua atitude demonstra que as vaacuterias contradiccedilotildees agraves quais fora incitado o motivaram a ir mais aleacutem em sua jornada na intenccedilatildeo de superaacute-las embora natildeo possamos negar que muitas pontas permaneceram soltas em sua filosofia

Consideramos um risco querer reunir as vaacuterias reflexotildees do Doutor Hiponense segundo um esquema preestabelecido numa espeacutecie de ldquosistemardquo de filosofia agostiniana Agostinho natildeo se deixa aprisionar nestes quadros riacutegidos e doutrinaacuterios por isso discordamos da ideia de buscar um manual da filosofia agostiniana Fazer isso eacute arriscar-se a perder o que haacute de melhor nele e de mais caracteriacutestico suas antiacuteteses Agostinho natildeo avanccedila em linha reta e podemos afirmar que o seu espiacuterito sempre vivo e pujante empenhado em concitar o ser humano a decisotildees eacuteticas e teoreacuteticas sempre novas natildeo possibilita sequer a ideia de um sistema Claro que isso natildeo eacute um limite ao contraacuterio mostra a fertilidade de um pensador considerado um mestre do Ocidente Todo o pensamento de Agostinho gravita em torno de Deus por outro lado nosso foco aqui estaacute direcionado aos aspectos filosoacuteficos de sua reflexatildeo Pretendemos evidenciar o argumento do autor acerca da busca da verdade orientada pelo amor como uma atitude propriamente filosoacutefica

Eacute importante relembrarmos que o termo lsquoFilosofiarsquo foi elaborado por Pitaacutegoras de Samos (571-496 aC) para se referir a um amoramizade pela sabedoria (Philos φιλος amoramizade e Sophia σοφία sabedoria) Mas natildeo se trata de um amor estaacutetico e sim um sentimento que move a filoacutesofa e o filoacutesofo em direccedilatildeo agravequilo que anseia por conhecer que introduz o(a) amante no caminhar que tambeacutem foi trilhado por Agostinho

Assim apesar de ter passado por diferentes fases inclusive por uma fase ceacutetica Agostinho natildeo deixou nenhum escrito que revelasse suas reflexotildees

O amor na busca pela verdade 109

neste momento de sua vida No entanto em diversas de suas obras percebe-se o quanto ele se sentia assombrado por suas proacuteprias indagaccedilotildees Elas lhe serviram como guias orientando-o atraveacutes de sua proacutepria interioridade e visando o encontro da verdade que lhe era velada Em ldquoContra os Acadecircmicosrdquo o filoacutesofo de Cartago questiona eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade Eis a questatildeo central de nosso estudo

Para os membros da antiga Academia de Platatildeo em sua fase ceacutetica o saacutebio deveria se empenhar na busca pelo que eacute verossiacutemil ou provaacutevel natildeo pelo que eacute verdadeiro Esta posiccedilatildeo foi defendida sobretudo por Arcesilau (3165-2410 aC) responsaacutevel pela virada ceacutetica na Academia Em oposiccedilatildeo agrave Zenatildeo ele defendia uma forma rigorosa de ceticismo na qual a verdade natildeo pode ser conhecida e nesta condiccedilatildeo o saacutebio natildeo deve concordar com nenhum parecer que seja favoraacutevel a ela Resta entatildeo ceder agrave epocheacute (ἐποχή) ou suspensatildeo do juiacutezo do assentimento Esta forma de ceticismo foi aprimorada por Carneacuteades (214-129 aC) que se dedicou agrave retoacuterica e argumentaccedilatildeo para melhor defendecirc-lo nos vaacuterios debates em que participava Dessa maneira embora ambos tenham contribuiacutedo fortemente com uma variante radical de ceticismo na Academia ela foi atenuada devido ao surgimento de uma postura mais branda que avaliava a existecircncia de crenccedilas proacuteximas da verdade apesar de natildeo poderem ser julgadas como verdadeiras ou falsas posto que natildeo se pode conhecer o que eacute efetivamente verdadeiro

Entatildeo se na reflexatildeo agostiniana a verdade pode ser encontrada qual o caminho deve ser percorrido para alcanccedilaacute-la Afinal mesmo os ceacuteticos acadecircmicos tambeacutem natildeo duvidavam da existecircncia de uma verdade apenas avaliavam que ela natildeo poderia ser conhecida Agostinho propotildee portanto uma estrutura de

110 Eacutetica e filosofia poliacutetica

argumentaccedilatildeo que vincula a busca da sabedoria com a vontade o desejo em compreendecirc-la

De modo geral o amor eacute o cerne da vontade que pode levar o indiviacuteduo agrave felicidade ou natildeo Nesta condiccedilatildeo sendo a busca um movimento em direccedilatildeo a algo ela natildeo existe sem que o indiviacuteduo deseje aquilo que quer encontrar Portanto se ele quiser a verdade deveraacute antes amaacute-la pois somente o amor permite o deslocamento no sentido da coisa a que se deseja

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute explorar essa ligaccedilatildeo entre amor e verdade que natildeo estaacute expliacutecita no pensamento agostiniano para fins de demonstrar que nele o amor eacute a forccedila que instiga o indiviacuteduo agrave caminhada no encontro da verdade Na tentativa de se distanciar de qualquer forma de ignoracircncia e se aproximar de uma ataraxia (αταραξία) resultante do encontro da verdade Agostinho avalia que o engajar-se neste caminhar eacute o fator de relevacircncia e natildeo a verdade em si para aquele que busca a sabedoria e portanto ser feliz

A divergecircncia com o maniqueiacutesmo na qual o filoacutesofo de Tagaste se introduziu expressa mais uma vez que ele continuava a sofrer desesperado por alcanccedilar aquilo que tanto almejava Ao aproximar-se do ceticismo a questatildeo que o perturbava neste momento era como eacute possiacutevel alcanccedilar uma verdade certa e incontestaacutevel a respeito das coisas invisiacuteveis (natildeo-evidentes) Pergunta esta que acabou levando-o a uma nova caminhada que culminou em sua conversatildeo e consequente crenccedila de que mesmo sendo a verdade singularmente diferenciada da realidade mundana ela pode ser encontrada Ateacute porque eacute na procura da verdade que o indiviacuteduo encontra a Deus a quem almeja conhecer de fato

O amor na busca pela verdade 111

42 ENTRE O CETICISMO E O DOGMATISMO Eacute de senso comum afirmar que uma pessoa eacute

ceacutetica quando ela suspeita acerca da certeza das coisas No entanto essa expressatildeo assumiu tamanha amplitude nos dias atuais que criamos uma grande dificuldade em conceber sequer a possibilidade de um religioso ser ceacutetico Afinal como algueacutem pode acreditar em um ser divino e desconfiar da realidade Parece ser um incriacutevel paradoxo No entanto o ceticismo estaacute aleacutem do que a nossa simples linguagem cotidiana transmite Por exemplo quando olho para o ceacuteu quem me garante que ele eacute azul Mais do que isso como posso afirmar que sua tonalidade eacute de um azul claro Hoje podemos levar em consideraccedilatildeo as explicaccedilotildees cientiacuteficas para conhecermos a realidade Natildeo que elas expressem a absoluta verdade no entanto algumas contribuem para a delimitaccedilatildeo de certas percepccedilotildees Assim como podemos comprovar que a cor do ceacuteu eacute azul Experimentalmente podemos captar os raios ultravioletas que a luz do sol emite e averiguar seu comprimento de onda Cada comprimento eacute percebido pelos nossos olhos atraveacutes de uma cor especiacutefica graccedilas agrave atividade de um tipo celular presente no olho denominado bastonete Ainda devemos inserir nesse processo o aacuterduo trabalho de nossos neurocircnios em enviar as sinapses de forma correta ateacute os nervos conectados agrave nossa visatildeo Se tudo der certo poderemos enxergar o ceacuteu na cor azul Mas o fato de o enxergarmos azul significa que ele eacute azul Ou ele eacute azul para noacutes que possuiacutemos um complexo arcabouccedilo bioloacutegico que nos permite percebecirc-lo dessa maneira

Temos aiacute um conflito Uns podem afirmar que se o ceacuteu emite raios ultravioletas com determinado comprimento de onda entatildeo eacute porque ele eacute azul Outros defendem que ao contraacuterio o ceacuteu natildeo possui cor nenhuma e tudo natildeo passa de uma percepccedilatildeo nossa individual da realidade Alguns ainda podem ser um

112 Eacutetica e filosofia poliacutetica

pouco mais ousados e declarar que nem mesmo podemos garantir a existecircncia dos raios ultravioletas dado que natildeo os enxergamos Neste raciociacutenio seraacute que as maacutequinas que medem o comprimento de onda inventam seus valores Por outro lado o fato de a ciecircncia esclarecer o processo pelo qual percebemos as cores significa entatildeo que eacute uma sequecircncia que ocorre com todos da mesma maneira Seraacute que existem pessoas que percebem as cores de forma diferente No final das contas o ato de duvidar de nossas percepccedilotildees e ateacute mesmo daquelas definidas cientificamente natildeo significa que estamos sendo ceacuteticos

A palavra ldquoceticismordquo veio do termo grego skeptomai (σκέπτομαι) que significa ldquoolhar atentamenterdquo ldquoperscrutarrdquo ldquoexaminarrdquo32 Este vocaacutebulo por sua vez tem origem na palavra skepsis (σκέψις) que pode ser traduzida como ldquoexamerdquo ldquoindagaccedilatildeordquo ldquoconsideraccedilatildeordquo e remete portanto agrave proacutepria postura ceacutetica Pela etimologia podemos considerar que o ceticismo eacute em si a praacutetica de avaliar cuidadosamente acerca daquilo que se busca entender O seu movimento foi introduzido oficialmente por Pirro de Eacutelis filoacutesofo grego que viveu entre os anos de 365 a 275 aC33 Pirro natildeo nos deixou nada por escrito e alguns de seus inteacuterpretes consideram ser este um

32 Para uma anaacutelise mais acurada do ceticismo vinculada agrave criacutetica de Agostinho cf PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012 33 Eacute interessante perceber que mesmo assim podemos detectar certas posturas ceacuteticas em filoacutesofos anteriores como Soacutecrates e Platatildeo Como exemplo temos a maacutexima socraacutetica ldquoSoacute sei que nada seirdquo atitude esta que se assemelha bastante agrave epocheacute ceacutetica na qual

entre a equipolecircncia de duas afirmativas nada pode ser dito quanto ao juiacutezo de ambas Jaacute em Platatildeo seus estudiosos avaliam a presenccedila tanto de uma postura dogmaacutetica como ceacutetica o que demonstra o conflito em tentar localizar o pensador grego diante de correntes filosoacuteficas que se apresentaram bem depois de sua morte

O amor na busca pela verdade 113

procedimento bastante coerente ao seu pensamento visto que ateacute mesmo a escrita implicaria em uma forma de posicionamento Como praticante fiel de sua proacutepria teoria Pirro eacute conhecido como o uacutenico que assumiu verdadeiramente a postura ceacutetica (skepsis) em sua forma mais radical34

Timatildeo de Fliunte (325-235 aC) o mais devoto disciacutepulo de Pirro tomou para si a responsabilidade de escrever natildeo somente aquilo que aprendeu de seu mestre como tambeacutem suas proacuteprias consideraccedilotildees a respeito do ceticismo Contudo de todas as suas obras apenas alguns fragmentos de duas delas sobreviveram agraves cataacutestrofes do tempo e da histoacuteria Silos e Imagens O movimento ceacutetico que Pirro de Eacutelis iniciou foi denominado ceticismo pirrocircnico (Πυρρωνισμός) e sua radicalidade se fundamentava na postura de completa indiferenccedila diante de todas as coisas Aristocles de Messecircnia filoacutesofo peripateacutetico esclarece essa atitude

Alguns haviam naquela eacutepoca entre os antigos que falavam esta linguagem e aos quais Aristoacuteteles se opocircs O proacuteprio Pirro de Eacutelis falou fortemente neste sentido mas ele natildeo deixou nada por escrito Poreacutem seu disciacutepulo Timatildeo diz que o homem que busca ser feliz deve olhar para estas trecircs coisas primeiro quais satildeo as qualidades naturais das coisas segundo de que forma devemos nos posicionar perante elas e por uacuteltimo que vantagem haveraacute para aqueles que assim se posicionarem As coisas por si proacuteprias ele declara demonstrar satildeo igualmente indiferentes instaacuteveis indeterminadas e portanto nem nossos sentidos ou

34 PEREIRA JR 2012 p 30 Richard Popkin (2000 p 15) um conhecido estudioso do ceticismo em sua obra ldquoA Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo tambeacutem comentou acerca da exemplaridade de Pirro de Eacutelis diante de sua teoria ldquoAs histoacuterias acerca de Pirro que chegaram ateacute noacutes revelam que ele natildeo era um teoacuterico mas ao contraacuterio o exemplo vivo e completo de algueacutem que punha tudo em duacutevida um homem que natildeo aceitava se comprometer com nenhum juiacutezo que fosse aleacutem de como as coisas pareciam serrdquo

114 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nossas opiniotildees satildeo verdadeiras ou falsas Por este motivo noacutes natildeo devemos confiar nelas mas sermos sem opiniotildees sem inclinaccedilotildees e sem hesitaccedilotildees afirmando de cada coisa que ela natildeo mais eacute do que natildeo eacute ou que eacute e natildeo eacute ou que nem eacute nem natildeo eacute Para aqueles que estatildeo assim dispostos o resultado Timatildeo afirma seraacute primeiro o silecircncio [afasia ἀφασία] e entatildeo a imperturbabilidade [ataraxia αταραξία] mas Enesidemos diz [que o resultado eacute] prazer (CESAREA Preparation for the Gospel XIV 18 traduccedilatildeo nossa)35

Nesse fragmento ndash que Euseacutebio de Cesareia

expotildee em sua obra ldquoPreparaccedilatildeo para o Evangelhordquo (Εὑαγγελικὴ Προπαρασκευή) escrita entre os anos de 314 e 324 dC ndash Aristocles demonstra ser a atitude ceacutetica uma busca pela felicidade Nesta jornada o indiviacuteduo deve avaliar se realmente vale a pena se dispor diante das caracteriacutesticas naturais das coisas de modo a lanccedilar seus juiacutezos de opiniotildees sobre elas O filoacutesofo de Messecircnia considera que independentemente de como satildeo percebidas as coisas que observamos satildeo sempre indiferentes de tal modo que natildeo podem ser definidas de uma ou de outra forma Neste sentido nossas

35 ldquoSome then there were even of the ancients who spoke this language and who have been opposed by Aristotle Pyrrho indeed of Elis spoke strongly in this sense but has not himself left anything in writing But his disciple Timon says that the man who means to be happy must look to these three things first what are the natural qualities of things secondly in what way we should be disposed towards them and lastly what advantage there will be to those who are so disposed The things themselves then he professes to show are equally indifferent and unstable and indeterminate and therefore neither our senses nor our opinions are either true or false For this reason then we must not trust them but be without opinions and without bias and without wavering saying of every single thing that it no more is than is not or both is and is not or neither is nor is not To those indeed who are thus disposed the result Timon says will be first speechlessness and then imperturbability but Aenesidemus says pleasurerdquo (CAESAREA Preparation for the Gospel XIV 18)

O amor na busca pela verdade 115

impressotildees sobre elas de nada valem portanto natildeo podemos afirmaacute-las mais do que negaacute-las

Mesmo os ceacuteticos radicais como Pirro acreditavam que a felicidade devia ser alcanccedilada Poreacutem o percurso para ser feliz divergia consideravelmente dos dogmaacuteticos os quais definiam a busca pela verdade como a procura pela felicidade Para o ceticismo pirrocircnico e acadecircmico a busca pela felicidade consistia em assumir que a verdade natildeo pode ser alcanccedilada o que levava agrave ataraxia isto eacute agrave imperturbabilidade da alma Esta eacute traduzida como a tranquilidade do intelecto que diante da impossibilidade de conhecer a verdade reorienta o caminho para a sabedoria em direccedilatildeo agrave novas rotas Contudo existe uma leve diferenccedila entre ambas as formas de ceticismo que veremos um pouco mais tarde

Retornando ao exemplo do ceacuteu azul um ceacutetico natildeo duvidaria que esteja enxergando a cor azul do ceacuteu pois

natildeo eacute contra as aparecircncias ou φαινόμενων (phainomenon) que o ceacutetico vai se opor mas contra a possibilidade de conhecimento da natureza ou essecircncia dos fenocircmenos (PEREIRA JR 2012 p 25)

Nesse caso ele duvidaria de nossa capacidade

em descobrir a verdade acerca da cor do ceacuteu isto eacute se ele eacute azul ou natildeo Mesmo com toda a teacutecnica cientiacutefica natildeo soacute natildeo conseguimos avaliar a cor do ceacuteu propriamente dita (pois o fato de percebermos as cores se daacute devido ao nosso ceacuterebro ser capaz de traduzir determinados comprimentos de ondas natildeo porque a cor realmente exista) como elaboramos diversos paracircmetros que nos permitem reconhecer as cores (raios ultravioletas neurocircnios sinapses linguagem) Dessa forma com a ciecircncia apenas demonstramos a impossibilidade de conhecer a verdadeira cor do ceacuteu ou definir se ele eacute azul ou natildeo Isto significa que mesmo o conhecimento cientiacutefico natildeo pode ser utilizado como

116 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma segura para alcanccedilarmos a verdade visto que ele em si avalia como percebemos e interpretamos as coisas e natildeo como as coisas satildeo em sua natureza

Em contraposiccedilatildeo ao ceticismo temos o dogmatismo outra corrente teoacuterica que defende nossa capacidade de natildeo soacute buscar a verdade como tambeacutem de conhececirc-la A palavra dogmatismo vem da raiz grega dogma (δόγμα) que significa ldquoopiniatildeordquo ldquodoutrinardquo Tal substantivo tem origem no verbo dokeo (δοκέω) traduzido como ldquoparecerrdquo ldquoter a aparecircncia derdquo O dogmatismo estaacute intrinsecamente relacionado agrave tese de que por meio das aparecircncias podemos conhecer a verdade e portanto conferirmos juiacutezos de opiniatildeo sobre as coisas Assim a busca por ela natildeo eacute insensata mas faz jus ao nosso proacuteprio desejo humano de sermos felizes Desse modo o que eacute realmente importante eacute a jornada em si que reuacutene natildeo apenas o anseio mas a intenccedilatildeo sincera de que o indiviacuteduo somente encontraraacute a felicidade quando colocaacute-la como o uacutenico fim de sua investigaccedilatildeo O meio que se utiliza para atingir esse fim se torna assim a proacutepria busca pela verdade Mas em que consiste essa busca E seraacute que a verdade pode ser encontrada E o que eacute a verdade Ao longo da tradiccedilatildeo filosoacutefica foram elaboradas diversas respostas para tais perguntas assim como tambeacutem houveram vaacuterias refutaccedilotildees por parte dos ceacuteticos36 Neste estudo a ecircnfase

36 Uma das tentativas foi realizada por Reneacute Descartes O autor francecircs em sua obra ldquoMeditaccedilotildees Metafiacutesicasrdquo escrita em 1641 inicia sua argumentaccedilatildeo com a suspensatildeo de todos os juiacutezos ou seja se inserindo em uma condiccedilatildeo de duacutevida absoluta para identificar nesta condiccedilatildeo o que permaneceria indubitaacutevel Para Descartes a experiecircncia criteacuterio de obtenccedilatildeo da verdade por ser variada em suas muacuteltiplas formas e representada pela dimensatildeo sensiacutevel natildeo poderia fornecer os devidos subsiacutedios para encontrar a verdade o que justificaria a inutilidade da busca O filoacutesofo francecircs utiliza do mesmo raciociacutenio ceacutetico para concluir que neste sentido nem mesmo a proacutepria existecircncia eacute algo certo afinal nenhuma percepccedilatildeo sensiacutevel no mundo poderia conferir consistecircncia ao fato do ser Nisto consiste a primeira meditaccedilatildeo na qual Descartes (Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT

O amor na busca pela verdade 117

incidiraacute sobre as respostas que Agostinho concedeu a tais e outros questionamentos que veremos acerca do assunto

Costumamos associar a postura dogmaacutetica agrave religiatildeo agrave feacute Mais do que buscar precisamos confiar que a verdade existe mesmo que passemos a vida inteira procurando-a e natildeo a encontremos Faz sentido vinculaacute-la ao pensamento religioso que se pauta em diversas doutrinas e postulados promotores de significado agrave crenccedila do indiviacuteduo Mas devemos destacar aqui uma diferenccedila profundamente discreta crenccedila natildeo eacute sinocircnimo de feacute Acreditar em algo natildeo significa que temos feacute naquilo A palavra ldquocrenccedilardquo vem do substantivo latino credentiae que tem origem no verbo tambeacutem latino credo Credo significa ldquoter feacute emrdquo ldquoconfiarrdquo ldquoassumir a realidade ou a existecircncia derdquo ldquopossuir certa opiniatildeordquo ldquonatildeo duvidarrdquo logo estaacute muito mais vinculado ao ato de confiar na verdade de uma proposiccedilatildeo por meio da forccedila de persuasatildeo que este argumento possui A feacute por sua vez remonta ao substantivo latino fides pode ser traduzida como ldquopromessardquo ldquoa condiccedilatildeo de ter a

IX 9) apresenta ldquoas razotildees pelas quais podemos duvidar em geral de todas as coisas e em particular das coisas materiais ao menos enquanto natildeo tivermos outros fundamentos nas ciecircncias senatildeo aqueles que tivemos ateacute o presenterdquo No entanto o que Descartes observa eacute que o criteacuterio ceacutetico de invalidaccedilatildeo da busca pela verdade eacute em si mesmo falho A realidade sensiacutevel eacute de fato variada podendo se apresentar aos indiviacuteduos de diversas formas O ser humano como parte dessa realidade tambeacutem eacute capaz de interpretaacute-la de acordo com o seu ponto de vista Por conseguinte seraacute que a percepccedilatildeo sensiacutevel deve ser considerada o ponto focal na jornada do(a) filoacutesofo(a) Apesar do indiviacuteduo estar em um mundo que se encontra em constante mudanccedila existe um elemento que permanece constante instigado pela duacutevida pela ficccedilatildeo e pela incoerecircncia das coisas o pensamento Este eacute o fundamento a partir do qual se deve avaliar a existecircncia individual e portanto as coisas contidas na dimensatildeo sensiacutevel Isto porque apesar da duacutevida ldquoeacute propriamente o que em mim se chama sentir e isso tomado precisamente assim nada mais eacute do que pensarrdquo (DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT IX 23)

118 Eacutetica e filosofia poliacutetica

confianccedila depositada em umrdquo ldquolealdaderdquo e estaacute bastante proacutexima do sentimento de crer em algo que natildeo se conhece A crenccedila exige a feacute muitas vezes e ambas estatildeo interconectadas poreacutem natildeo podemos afirmar que as duas satildeo a mesma coisa

Nesse sentido podemos acreditar que o ceacuteu eacute azul mesmo que ele natildeo o seja Mas se conseguimos ver a sua cor azul isso eacute o suficiente para convencer a alguns de que ele eacute azul No entanto natildeo temos feacute na cor azul do ceacuteu justamente porque podemos vecirc-lo e afirmarmos o que eacute o ceacuteu e apontarmos para a cor que vemos identificando-a como azul No entanto podemos ter feacute naquele que criou o ceacuteu precisamente porque natildeo o conhecemos e por isso natildeo somos capazes de afirmar a veracidade ou falsidade de sua existecircncia Ainda assim a feacute persiste de forma bastante natural uma vez que somos assaltados pela indagaccedilatildeo e de onde veio o ceacuteu Ningueacutem sabe nem mesmo a ciecircncia eacute capaz de avaliar sua origem a partir do nada

O dogmatismo estaacute portanto muito mais vinculado agrave crenccedila do que agrave feacute em si o que confere abertura suficiente para a existecircncia de fieacuteis ceacuteticos Qualquer um pode acreditar em coisas que desconhece e ao mesmo tempo natildeo acreditar na possibilidade de conhecermos a verdade atraveacutes das aparecircncias37 Natildeo se trata aqui de ser ceacutetico e dogmaacutetico ao mesmo tempo mas de assumir um determinado grau de ceticismo que permite a suspensatildeo do juiacutezo acerca das coisas Este eacute um posicionamento uacutetil e necessaacuterio sobretudo nas diversas ocasiotildees em que precisamos assumir que as

37 Richard Popkins (2000 p 20) comenta ldquorsquoceacuteticorsquo e lsquocrentersquo natildeo satildeo classificaccedilotildees que se opotildeem O ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias das justificaccedilotildees que se apresentam para uma crenccedila duvida que razotildees necessaacuterias e suficientes tenham sido ou possam ser encontradas para mostrar que qualquer crenccedila em particular deva ser verdadeira e natildeo possa ser falsa Mas o ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo

O amor na busca pela verdade 119

nossas crenccedilas natildeo satildeo superiores ou mais verdadeiras que as crenccedilas de outrem Realizemos a epocheacute e natildeo nos deixemos afetar pela aparecircncia de verdade que nossas convicccedilotildees possuem Assim evitemos ser prejudicados por qualquer dificuldade de aceitaccedilatildeo dos diferentes posicionamentos e pontos de vista apresentados pelos outros Se o ceacuteu eacute azul ou verde tanto faz mas natildeo deixemos de aproveitar a oportunidade para apreciar a capacidade que o outro possui para enxergar as coisas de forma diversa da nossa

43 ldquoCONTRA OS ACADEcircMICOSrdquo NA BUSCA PELA VERDADE

A primeira pergunta que nos surge apoacutes a leitura

de ldquoContra os acadecircmicosrdquo (Contra academicos) eacute quem satildeo os acadecircmicos Em um momento inicial muitos podem pensar que todo o ceticismo estaacute inserido no contexto da Academia Entatildeo para entendermos a criacutetica agostiniana precisamos analisar a conjuntura filosoacutefica e histoacuterica no qual estaacute inserida

Um ponto importante que necessitamos ter em mente eacute natildeo podemos falar em ceticismo mas em ceticismos Natildeo existiu apenas um movimento ceacutetico na histoacuteria da filosofia mas vaacuterios Desse modo historiadores e filoacutesofos demarcam quatro fases do ceticismo no Periacuteodo Antigo o ceticismo antigo fundado por Pirro de Eacutelis e que se desenvolveu entre os seacuteculos IV e III aC o ceticismo acadecircmico alvo da criacutetica do bispo de Hipona e estabelecido no interior da Academia de Platatildeo por Arcesilau e Carneacuteades demarcando sua entrada na fase meacutedia da Academia (seacuteculos III e II aC) o ceticismo dialeacutetico representado por Enesidemo e Agripa entre os seacuteculos II e I aC e por fim o ceticismo empiacuterico iniciado por Sexto Empiacuterico no seacuteculo III dC

120 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Jaacute vimos que o ceticismo pirrocircnico ou ceticismo

antigo realizava a defesa de uma postura (skepsis) radical frente agrave possibilidade de natildeo se saber o que eacute a verdade Devido a isso o ceacutetico pirrocircnico se empenhava em ausentar-se totalmente de opiniotildees (afasia) Se a busca pela verdade resulta no conflito em definir entre duas proposiccedilotildees que uma eacute verdadeira e a outra eacute falsa ou que uma seja mais verdadeira que a outra entatildeo natildeo podemos emitir qualquer opiniatildeo acerca das coisas Nossa experiecircncia no mundo nos comprova que todos percebemos a realidade de diferentes maneiras Entatildeo quem percebe como o mundo eacute de verdade Quem conhece a verdade Para evitar ser atormentado por tais indagaccedilotildees impossiacuteveis de serem respondidas o ceacutetico pirrocircnico se afastava da duacutevida ao considerar que nada pode ser afirmado a respeito da natureza das coisas Somente assim era possiacutevel alcanccedilar a tatildeo desejada serenidade do intelecto (ataraxia) atraveacutes da indiferenccedila (adiaphora ἀδιάφορα)

Os ceacuteticos pirrocircnicos procuravam evitar assumir qualquer compromisso acerca de qualquer questatildeo mesmo em relaccedilatildeo agrave validade de seus proacuteprios argumentos O ceticismo para eles era uma habilidade ou atitude mental que permitia opor evidecircncias a favor e contra qualquer questatildeo relativa ao natildeo-evidente [adelo ἄδήλον] de modo a levar agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca desta questatildeo Este estado mental levaria entatildeo agrave ataraxia agrave quietude ou imperturbabilidade quando o ceacutetico entatildeo natildeo mais se preocuparia com questotildees que transcendem as aparecircncias O ceticismo seria a cura para a doenccedila do dogmatismo (POPKIN 2000 p 16)

O conceito de evidente (prodela πρόδηλα) e natildeo-

evidente (adelo) satildeo centrais no pensamento ceacutetico Popkin esclarece que o comportamento do ceacutetico pirrocircnico se direcionava a partir das coisas evidentes agraves natildeo-evidentes isto eacute agravequilo que eacute oculto a noacutes No

O amor na busca pela verdade 121

cotidiano deparamo-nos com diversos fenocircmenos os quais percebemos atraveacutes de nossos sentidos aliados agrave nossa interpretaccedilatildeo realizada por toda a nossa estrutura bioloacutegica mental Sabemos quando estaacute de dia e quando estaacute de noite sentimos o sabor doce salgado amargo dos alimentos que comemos temos contato com diversas texturas atraveacutes da nossa pele e todas essas constataccedilotildees satildeo evidentes manifestam-se a noacutes No entanto a epocheacute eacute aplicada agraves coisas que natildeo satildeo tatildeo claras a noacutes38 Aliaacutes justamente porque natildeo satildeo visiacuteveis que natildeo podemos lanccedilar qualquer forma de juiacutezo sobre elas A opiniatildeo neste momento natildeo contribuiraacute em nada pois natildeo poderemos averiguar sua veracidade

O ceticismo acadecircmico se assemelha ao pirrocircnico pela atitude (skepsis) perante agraves coisas natildeo-evidentes Contudo ele eacute considerado como sendo uma forma mais branda posto que assume a existecircncia de coisas provaacuteveis isto eacute proacuteximas da verdade Por outro lado sua radicalidade se baseava na defesa de que a verdade natildeo pode ser conhecida ponto este que promoveu a criacutetica agostiniana Afinal se afirmamos que a verdade natildeo pode ser conhecida como podemos dizer que existem coisas proacuteximas da verdade O argumento ceacutetico acadecircmico parece conter em si uma contradiccedilatildeo a de que como saberemos que estamos nos aproximando da verdade se natildeo podemos conhececirc-la

Esta forma de ceticismo ao qual se dirige a refutaccedilatildeo do bispo de Hipona foi introduzido na Academia de Platatildeo por Arcesilau (315-240 aC) e mantido nos anos subsequentes por Carneacuteades (214-129 aC) Esta

38 Eacute preciso atentar que a forma de ceticismo assumida por Pirro de Eacutelis abrangia tanto as coisas evidentes como natildeo-evidentes para as quais aplicava a suspensatildeo de seu juiacutezo Contudo ldquoSeus sucessores logo trataram de dar nova roupagem a essa postura adotando a ἐποχή natildeo para todas as coisas mas apenas para aquelas que seriam a seu modo de ver natildeo evidentes (ἄδήλον) Assim as coisas de caraacuteter mais obscuro necessitariam de uma anaacutelise mais acurada antes de qualquer pronunciamentordquo (PEREIRA JR 2012 p 24)

122 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nova etapa da Academia ficou sendo conhecida como fase meacutedia ou segunda ndash tambeacutem denominada Nova Academia ndash na qual vigorou por aproximadamente dois seacuteculos a afirmaccedilatildeo de um novo modelo de ceticismo Uma das fontes que temos para conhecer o ceticismo acadecircmico eacute a obra ldquoOs Acadecircmicosrdquo (Academica) de Ciacutecero escrita em 45 dC e com a qual Agostinho como tradicional leitor das reflexotildees ciceronianas muito provavelmente entrou em contato para realizar sua investida39 Contudo o filoacutesofo patriacutestico natildeo eacute o uacutenico a questionar o ceticismo acadecircmico Sexto Empiacuterico (I 1) meacutedico e filoacutesofo grego em sua obra ldquoHipotiposes Pirrocircnicasrdquo (Πυῤῥώνειοι ὑποτύπωσεις) escrita no seacuteculo II dC logo no comeccedilo de seu primeiro livro afirma

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra aquilo que busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser isto inapreensiacutevel ou ainda persiste em sua busca O mesmo ocorre com as investigaccedilotildees filosoacuteficas e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode

39 ldquoO destaque para essa obra de Ciacutecero justifica-se primeiramente pelo seu caraacuteter eminentemente epistemoloacutegico pois se constitui um verdadeiro tratado sobre a natureza do conhecimento Eacute nessa obra que o autor em questatildeo iraacute apresentar ao mundo romano a filosofia vigente na Academia deixada por Platatildeo Sobretudo foi uma obra amplamente citada por Santo Agostinho em Contra Academicos e certamente a fonte desse filoacutesofo na construccedilatildeo de sua criacutetica ao ceticismo acadecircmico Esse tratado epistemoloacutegico foi editado em duas versotildees ambas com alteraccedilotildees em seus tiacutetulos originais [] Desse modo a primeira ediccedilatildeo denominada de Academica Priora era composta por dois livros Catulus hoje perdido e Lucullus que ficou conhecido como Academica II por se tratar do segundo livro da primeira ediccedilatildeo A segunda ediccedilatildeo denominada de Academica Posteriora foi dividida em quatros livros dos quais apenas a metade do primeiro sobreviveu e ficou conhecida como Academica I por ser o primeiro livro da segunda ediccedilatildeo Santo Agostinho parece conhecer apenas a segunda ediccedilatildeo referindo-se a ela como Academici Librirdquo

(PEREIRA JR 2012 p 60)

O amor na busca pela verdade 123

ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os ldquodogmaacuteticosrdquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoacuteicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel manter que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica40

Podemos notar que o antigo filoacutesofo tampouco

reconhecia o ceticismo dos acadecircmicos e preferiu denominaacute-los simplesmente de ldquoacadecircmicosrdquo Para ele os ceacuteticos estatildeo em contiacutenua busca da verdade diferente dos acadecircmicos que defendem que ela natildeo pode ser apreendida Sabendo que a criacutetica de Agostinho se dirigia ao ceticismo acadecircmico e natildeo agrave sua variante original o ceticismo pirrocircnico devemos levar em consideraccedilatildeo a argumentaccedilatildeo do autor frente ao posicionamento dos membros da Meacutedia Academia (ou Nova Academia) sem orientarmos sua contestaccedilatildeo ao ceticismo como um todo

Quando Agostinho tomou conhecimento do ceticismo logo apoacutes ter abandonado a seita maniqueiacutesta ele decidiu aderir-se ao movimento ceacutetico Essa decisatildeo demonstra a relevacircncia que o autor concedia aos seus questionamentos Desde seus primeiros estudos a busca pelo conhecimento e mais ainda pela verdade orientou seu trajeto Ao ler a obra de Ciacutecero ldquoHortecircnsiordquo (Hortensius) Agostinho (Confissotildees III 4 grifo nosso) eacute arrebatado por um forte anseio pela sabedoria e comenta em sua obra ldquoConfissotildeesrdquo (Confessiones)

Esse livro conteacutem uma exortaccedilatildeo ao estudo da filosofia Chama-se Hortecircnsio Ele mudou o alvo das minhas afeiccedilotildees e encaminhou para Voacutes Senhor as minhas preces transformando as minhas aspiraccedilotildees e desejos [] Natildeo era o estilo mas sim o assunto

40 Traduccedilatildeo de Danilo Marcondes

124 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tratado que me persuadia a lecirc-lo [] o amor agrave sabedoria pelo qual aqueles estudos literaacuterios me apaixonavam tem o nome grego de filosofia [] Apenas me deleitava naquela exortaccedilatildeo o fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim o desejo de amar buscar conquistar reter e abraccedilar natildeo esta ou aquela seita mas sim a proacutepria sabedoria qualquer que ela fosse

Entretanto o autor afirma logo depois que o seu

desejo soacute natildeo era completo devido agrave ausecircncia do nome de Cristo na obra Isso significava que tal sabedoria defendida pela filosofia ainda natildeo correspondia agrave verdade agrave qual buscava jornada esta que o inflamaria de expectativas e esperanccedilas apoacutes a conversatildeo

44 A BUSCA PELA SABEDORIA EXIGE AMOR POR ELA

Existem diversos elementos que constituem a

jornada daquele que almeja alcanccedilar a sabedoria Natildeo podemos de forma alguma acreditar que tal caminhar nos exige apenas a leitura de obras de caraacuteter filosoacutefico A philosophia (φιλοσοφία) reuacutene um conjunto de requisitos para que possa ser praticada Dentre eles temos o pensar reflexivo um contato com o eu que perpasse todas as situaccedilotildees as quais necessitamos individualmente entender melhor temos a discussatildeo o debate um movimento dialeacutetico que torna visiacutevel meus pensamentos ao outro de modo a permitir que eles sejam trabalhados por um ponto de vista diferente do meu temos a aceitaccedilatildeo de certas afinidades em que reconhecemos apreciar determinados conteuacutedos em detrimento de outros o que nos facilita a elaboraccedilatildeo de nossos proacuteprios problemas temos a aprendizagem que localiza pontos de partida que datildeo origem ao nosso caminhar temos a coragem de que em determinado momento precisaremos refletir sozinhos ndash sem nos

O amor na busca pela verdade 125

escondermos por traacutes da identidade de algum autor ndash natildeo porque estaremos diante de um problema novo mas porque cada indiviacuteduo eacute totalmente diferente do outro e portanto percebe a realidade de uma forma diferente Poreacutem o que nos insere nesta busca Porquecirc estudar philosophia

Para Agostinho tudo perpassava o amor Natildeo um sentimento romacircntico ou banal igual encontramos muitas vezes nos dias atuais mas algo promotor de movimento O amor como vontade estimula-nos a sair de nosso lugar em direccedilatildeo agravequilo que desejamos Devemos considerar entatildeo que o amor agostiniano possui trecircs constituintes aquele que ama o amor e aquilo que eacute amado Eacute uma triacuteade em que o amor intermedia a relaccedilatildeo entre o amante e seu objeto de desejo

O bispo de Hipona compreende que a existecircncia depende do amor Sem o amor noacutes nem sequer desejariacuteamos natildeo haveria nada que nos estimulasse a sair de noacutes mesmos Este eacute digamos o benefiacutecio de amar e antes dele o indiviacuteduo estaacute isolado em seu ego distante de tudo de todos do mundo41 Mas esta

41 ldquo[] santo Agostinho natildeo considera realmente seacuteria a ideacuteia de solipsismo Afirma ele em Contra os acadecircmicos que se chamo lsquoo mundorsquo ao que me parece ser o mundo entatildeo posso saber que o mundo existe Mas ter dito isso eacute apenas parte de seu esforccedilo continuado para mostrar que em vez do ceticismo acadecircmico haacute pelo menos algumas coisas que podem ser conhecidas Agostinho natildeo tenta perguntar agrave maneira de Descartes se e no caso afirmativo como posso saber que aleacutem do meu mundo fenomenal haacute um mundo fiacutesico que existe independentemente de mim e das minhas impressotildees acerca desse mundo Expresso no jargatildeo da filosofia do seacuteculo XX ele natildeo reconhece o Problema do Mundo Externo e muito menos tentou solucionaacute-lo Existe poreacutem um aspecto em que Agostinho encara muito a seacuterio o isolamento do ego Ele imagina como isso era para ele quando bebecirc antes de ter aprendido as palavras de qualquer liacutengua natural [] De acordo com esse lsquoquadro agostiniano da linguagemrsquo cada um de noacutes quebra o isolamento do seu ego epistemoloacutegico ao ter os nomes das coisas assinalados para noacutes de tal modo que acabamos por estar aptos a expressar os nossos

126 Eacutetica e filosofia poliacutetica

condiccedilatildeo natildeo perdura por muito tempo pois logo na infacircncia Agostinho entende que comeccedilamos a nos aproximar das coisas das pessoas e assim comeccedilamos a desejar Este desejo eacute expresso pela forma ainda primaacuteria de comunicaccedilatildeo atraveacutes de gestos sons e sinais que evoluem para o pronunciamento de palavras que expressam determinados sentidos Eacute dessa forma que Agostinho (Confissotildees I 6) descreve os momentos iniciais de sua proacutepria infacircncia

A pouco e pouco ia reconhecendo onde me encontrava Queria exprimir os meus desejos agraves pessoas que os deviam satisfazer e natildeo podia porque os desejos estavam dentro e elas fora sem poderem penetrar-me na alma com nenhum dos sentidos Estendia os braccedilos soltava vagidos fazia sinais semelhantes aos meus desejos os poucos que me era possiacutevel esboccedilar e que eu exprimia como podia Mas eram inexpressivos Como ningueacutem me obedecia ou porque natildeo entendiam ou porque receavam fazer-me mal indignava-me com essas pessoas grandes e insubmissas que sendo livres recusavam servir-me Vingava-me delas chorando Reconheci que assim eram as crianccedilas como depois pude observar

Destacamos nessa passagem o fato de que

Agostinho concede aos receacutem-nascidos uma faculdade do desejo como se desde entatildeo fossem capazes de distinguir aquilo que eles querem Contudo ele descreve tambeacutem a dependecircncia destes de outras pessoas para que pudessem conseguir alcanccedilar aquilo que desejam Os bebecircs apesar de jaacute conseguirem se movimentar para apontar em direccedilatildeo agraves coisas que os atraem ndash seja pela emissatildeo de sons ou gesticulaccedilotildees ndash ainda natildeo possuem uma estrutura bioloacutegica bem desenvolvida para sozinhos atingirem tais objetos Com o tempo eles natildeo

proacuteprios desejos usando as palavras que aprendemos []rdquo (MATTHEWS 2007 p 41 e 44)

O amor na busca pela verdade 127

apenas aprendem a ser autocircnomos como a equilibrar seus desejos e manipular a vontade

Contudo o amor natildeo eacute somente a chave para fugir do isolamento como tambeacutem para alcanccedilar uma determinada autonomia O termo ldquodeterminadardquo eacute utilizado para se referir a uma autonomia especiacutefica fruto do anseio do amante O livre-arbiacutetrio a noacutes concedido nos ilude e nos faz acreditar que podemos possuir uma total independecircncia diante do mundo Ao nos tornarmos responsaacuteveis por nossas escolhas e decisotildees tambeacutem nos tornamos responsaacuteveis pelas consequecircncias que elas acarretam Nesse raciociacutenio necessitamos distinguir o amor de vontade no pensamento agostiniano

Afirmamos mais cedo o ldquoamor como vontaderdquo Seraacute entatildeo que podemos pensar em outra forma de amor Natildeo foi bem assim que Agostinho avaliou a questatildeo Karl Jaspers (1962 p 95 traduccedilatildeo nossa) filoacutesofo alematildeo e estudioso da filosofia agostiniana escreveu

Na vida humana Agostinho natildeo encontra nada em que natildeo haacute amor Em tudo o que eacute o homem eacute fundamentalmente vontade e o cerne mais profundo da vontade eacute o amor Amar eacute um lutar por alguma coisa que eu natildeo tenho (appetitus) Como o peso move corpos o amor move almas Elas [as almas] natildeo satildeo outra coisa aleacutem de forccedilas da vontade [] Tudo o que o homem faz ateacute mesmo o mal eacute causado pelo amor [] E parar de amar natildeo eacute a soluccedilatildeo pois isto significa lsquoestar inerte morto abjeto miseraacutevelrsquo A saiacuteda natildeo eacute extinguir um amor perigoso mas purificaacute-lo [] lsquoAme o que eacute digno do amorrsquo42

42 ldquoIn human life Augustine finds nothing in which there is no love In everything that he is man is ultimately will and the innermost core of will is love Love is a striving for something I have not (appetitus) As weight moves bodies so love moves souls They are nothing other than forces of the will [hellip] Everything a man does even evil is caused by love [hellip] And to cease loving is no solution For that is to lsquobe inert dead contemptible

128 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quando amamos acreditamos sermos autocircnomos

por sermos capazes de amar ou melhor de termos liberdade para escolhermos o nosso objeto de amor Poreacutem tal desejo de posse nos torna dependentes daquilo que amamos Precisamente porque queremos estar proacuteximos de tais objetos sofremos com qualquer possibilidade de perda O tempo no mundo nos transforma em amantes ambiciosos posto que buscamos a todo momento novos objetos de amor natildeo apenas devido ao prazer que sentimos ao alcanccedilaacute-los como tambeacutem para suprirmos o vazio da perda gerado pelas coisas que foram tomadas de noacutes pelo proacuteprio tempo Entatildeo o amor natildeo apenas causa alegria mas tambeacutem pode causar tristeza infelicidade dependecircncia Para isso natildeo acontecer eacute preciso direcionar corretamente o amor A vontade eacute aquilo que estimula o movimento da alma Ao querer algo o indiviacuteduo se insere em um conflito entre obedecer ou natildeo agrave sua vontade Se obedececirc-la a alma poderaacute ordenar a accedilatildeo caso contraacuterio o indiviacuteduo permanece inerte parado No entanto a vontade eacute apenas propulsora e quando o indiviacuteduo se torna amante ao decidir agir ele deixa de querer e passa a ser controlado pelo puro desejo que o leva agravequilo que anseia Ao alcanccedilar aquilo que motivou sua accedilatildeo algo necessita mantecirc-lo estaacutevel proacuteximo ao objeto Esta eacute a funccedilatildeo do amor conferir estabilidade para que o sujeito possa enfim descansar naquilo que buscava deleitar-se

A relaccedilatildeo entre o amor e o ceticismo em Agostinho se expressa quando o autor afirma ser necessaacuterio investigar aquilo que eacute digno de ser amado Essa racionalizaccedilatildeo da busca faz com que tomemos cuidado para natildeo amar qualquer coisa que natildeo valha a pena Mas o que natildeo merece ser amado para Agostinho O filoacutesofo patriacutestico (Confissotildees IV 10 grifo nosso) nos concede uma pista para responder a esta questatildeo

wretchedrsquo The way out is not to extinguish a dangerous love but to purify it [hellip] lsquoLove what is worthy of loversquordquo (JASPERS 1962 p 95)

O amor na busca pela verdade 129

Que minha alma Vos louve por tudo isto oacute meu Deus Criador de todas as coisas Que natildeo se agarre a elas pelo visco do amor que entra pelos sentidos do corpo Tambeacutem as coisas caminham para natildeo existirem e dilaceram a alma com desejos pestilenciais porque ela quer existir e gosta de descansar no que ama Mas natildeo tem onde porque as coisas natildeo satildeo estaacuteveis fogem

Se as coisas satildeo instaacuteveis e portanto fogem de

noacutes natildeo porque natildeo querem ser amadas mas porque estatildeo sujeitas ao tempo entatildeo devemos direcionar nossa busca para aquilo que eacute estaacutevel No entanto o que eacute estaacutevel no mundo se ele estaacute tomado pelo tempo Surge aiacute a necessidade de se buscar algo que esteja fora do mundo a Sabedoria Desse modo a philosophia como sendo amor agrave sabedoria eacute para Agostinho uma forma de encontrar a verdade Entretanto nosso autor natildeo faz referecircncia a qualquer verdade proveniente de qualquer conhecimento ou conteuacutedo de caraacuteter reflexivo Para ele existe a verdadeira Sabedoria aquela de onde surgiu todas as outras coisas no mundo43 Dessa forma Agostinho natildeo eacute apenas um dogmaacutetico como acredita fielmente que a verdade eacute uma soacute manifesta pela Sabedoria Sua conversatildeo ao Cristianismo fez com que abandonasse o ceticismo pois mesmo este natildeo o aliviou de suas indagaccedilotildees A busca era contiacutenua como ele (Confissotildees X 40) mesmo revela

43 Plotino (2000 p 121 grifo nosso) pai do neoplatonismo comenta acerca dessa essecircncia originaacuteria o Bem (ou Uno) a partir do qual existem os outros bens Agostinho foi fortemente influenciado pelo pensamento neoplatocircnico nas leituras que realizou ao longo da vida e desse modo Plotino se torna um grande aliado na compreensatildeo de sua filosofia ldquoEacute pelo Uno que todos os seres satildeo seres tanto os seres que satildeo seres no sentido primeiro do termo quanto tudo o que se diz fazer parte dos seres de qualquer maneira que seja O que entatildeo poderia realmente ser senatildeo o Uno se eacute verdade que privados do Uno que eacute seu predicado tais seres deixam de secirc-lordquo

130 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Percorri o melhor possiacutevel com os sentidos o mundo exterior Observei em mim a vida do corpo e os proacuteprios sentidos Passei depois agraves profundezas da memoacuteria a essas amplidotildees sucessivas Observei-as estupefacto Mas sem Voacutes nada pude distinguir Contudo reconheci que Voacutes nada disto eacutereis

Eacutetienne Gilson (2006 p 17) comenta que a busca

de Agostinho se direciona a algo que ldquosatisfaz todo desejo e por consequecircncia confere a pazrdquo Natildeo muito diferente dos ceacuteticos o bispo de Hipona tambeacutem acreditava que o que o ser humano quer na verdade eacute ser feliz Da mesma maneira essa felicidade consistia na paz da alma (beatitude) em que finalmente possui todas as condiccedilotildees necessaacuterias para repousar sobre o que ama fruindo-o Existe um caminho que conduz a essa felicidade segundo Agostinho e neste sentido natildeo podemos fugir de sua teologia pois para ele a Sabedoria consiste em apenas uma coisa Deus Natildeo somente o conhecimento de Deus mas alcanccedilaacute-lo e estar proacuteximo dele Natildeo obstante o pensador nos lanccedila em mais um conflito como estar proacuteximo de Deus se ele estaacute aleacutem do tempo mundano e eacute exatamente por isso que ele deve ser buscado

Bem se os ceacuteticos natildeo acreditam que a verdade pode ser encontrada como por exemplo os acadecircmicos como estes poderatildeo se aproximar de Deus Este eacute o ponto eles natildeo podem Segundo Agostinho os ceacuteticos nunca seratildeo felizes pois sua proacutepria teoria os impedem de alcanccedilarem a beatitude Podemos afirmar que mesmo aqueles que natildeo satildeo acadecircmicos como argumentou Sexto Empiacuterico isto eacute aqueles que buscam continuamente a verdade (os ceacuteticos pirrocircnicos) natildeo satildeo capazes de enxergaacute-la visto que com a suspensatildeo do juiacutezo natildeo distinguem entre o que eacute verdadeiro e o que natildeo o eacute Mesmo se eles optarem por natildeo se manifestarem apenas diante das coisas natildeo-evidentes Deus permaneceria uma incoacutegnita pois frente aos seus

O amor na busca pela verdade 131

criteacuterios ceacuteticos ele eacute algo natildeo-evidente Todos estes indiviacuteduos que escolhem natildeo se empenhar em definir a verdade e buscaacute-la satildeo infelizes pois ldquose a sabedoria implica a beatitude e se a beatitude implica Deus o ceacutetico natildeo poderia possuir nem Deus nem a beatitude nem a sabedoriardquo (GILSON 2006 p 20)

Contudo a duacutevida ainda permanece como buscar a Deus Noacutes possuiacutemos alguma faculdade que nos permite estar em contato com o que natildeo conhecemos diretamente O caraacuteter neoplatocircnico da filosofia de Agostinho se revela quando este argumenta que nada existe sem Deus Portanto como entes somos partes de um Ser que na realidade eacute o todo Se de alguma forma participamos do Ser possuiacutemos entatildeo a capacidade para encontraacute-lo E eacute assim que deve ser compreendido o conceito agostiniano de homem interior pois o Ser estaacute em cada um de noacutes conferindo-nos existecircncia Buscar o Ser ou a Deus eacute realizar um movimento de retorno a si uma introspecccedilatildeo no proacuteprio eu que ao se reconhecer como ente eacute guiado pela proacutepria essecircncia que estaacute em seu interior O Ser nos conduz neste instante de encontro a ele que se revela como o Bem Supremo a verdadeira Sabedoria Deus eacute apreendido pelo pensamento pelo ato reflexivo e introspectivo de identificar-se como parte como ente por conseguinte como dependente em sua existecircncia de uma totalidade que estaacute aleacutem de si Aliaacutes eacute nisso que consiste a caridade agostiniana e portanto buscar verdadeiramente a Sabedoria

45 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Recordemos a pergunta levantada por Agostinho

em sua obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade44 Para o filoacutesofo a

44 A pergunta na realidade estaacute impliacutecita em todo o debate realizado na obra No entanto eacute interessante observar que na parte do texto em

132 Eacutetica e filosofia poliacutetica

felicidade depende da busca pela verdade e natildeo basta procuraacute-la apenas eacute preciso empenhar-se em encontraacute-la Para isso eacute necessaacuterio delimitar o que eacute a verdade afinal sabemos que ela existe e que pode ser encontrada Entatildeo para que direccedilatildeo deveremos caminhar nesta jornada O bispo de Hipona correspondendo agrave sua reflexatildeo de cunho teoloacutegico avalia ser Deus a verdadeira Sabedoria o que implica que sem Deus natildeo eacute possiacutevel sermos felizes Isso talvez soe pouco filosoacutefico para noacutes mas devemos atentar que Deus eacute por si soacute um grande problema para a filosofia Natildeo basta apenas assumir que devemos buscar a Deus mas entender de que se trata esse ldquoDeusrdquo na filosofia agostiniana

O autor entende a Deus como sendo aquilo de quem tudo procede Uma das passagens mais famosas de suas ldquoConfissotildeesrdquo se denomina ldquoQuem eacute Deusrdquo (Quid amatur cum Deus amatur) e nela Agostinho relata sua aacuterdua busca no interior da criaccedilatildeo para descobrir de onde vieram todas as coisas por quem tais seres foram criados Ao final a natureza proclama ldquorepara que a mateacuteria eacute menor na parte que no todordquo e entatildeo o autor (Confissotildees X 6) declara

Por isso te digo oacute minha alma que eacute superior ao corpo porque vivificas a mateacuteria do teu corpo dando-lhe vida o que nenhum corpo pode fazer a outro corpo Aleacutem disso teu Deus eacute tambeacutem para ti vida da tua vida

que Agostinho (Contra os Acadecircmicos I 25) expotildee a questatildeo que seraacute tratada ele inicia a conversa da seguinte forma ldquoE uma vez tendo-nos reunido por conselho meu num lugar que me pareceu oportuno para tal eu disse Por acaso duvidais que devemos saber o que eacute verdadeirordquo Em seguida o autor questiona ldquoSe pudeacutessemos ser felizes mesmo natildeo tendo compreendido o que eacute verdadeiro julgais ainda ser necessaacuteria a compreensatildeo do mesmo [] O que vos parece disse eu Julgais podermos ser felizes mesmo natildeo tendo encontrado a verdaderdquo

O amor na busca pela verdade 133

Temos duas informaccedilotildees acerca de Deus nestes

trechos ele eacute a mateacuteria do todo e por isso eacute o que confere vida agrave nossa vida e Deus eacute tambeacutem a substacircncia assim como as partes os entes Na ontologia agostiniana existe a substacircncia e o que natildeo eacute substacircncia ou seja o nada45 Sendo Deus a substacircncia originaacuteria todas as coisas e sobretudo noacutes mesmos revelamos cotidianamente a sua existecircncia Dessa forma natildeo eacute difiacutecil para Agostinho distinguir a verdadeira Sabedoria uma vez que ela estaacute presente em tudo

Por ser o todo tambeacutem natildeo eacute uma tarefa complicada descobrir onde buscaacute-la ou qual o caminho deve ser percorrido para encontraacute-la Como partes podemos afirmar que a Sabedoria estaacute em noacutes tambeacutem assim como ela se mostra em toda a natureza E como acessar essa Sabedoria que estaacute tatildeo disponiacutevel a noacutes De acordo com Agostinho esse eacute o empreendimento humano que perpassa o se sentir parte de uma parte (o mundo) e acreditar que esta parte eacute o todo ateacute descobrir que na realidade o todo eacute outra coisa inimaginaacutevel eterno e absolutamente infinito

Precisamos relembrar que antes de Agostinho aderir agrave feacute cristatilde ele seguia o movimento do ceticismo

45 O nada ou o vazio natildeo eacute Eacute neste argumento que se fundamenta a ideia de mal em Agostinho O mal em si natildeo existe porque se existisse seria substacircncia E assim sendo ou ele seria Deus ou teria sido criado por ele Agostinho recusa estas duas possibilidades Deus natildeo eacute o mal porque ele eacute o Sumo Bem e tampouco ele conteacutem o mal ou o criou pois todas as coisas criadas satildeo boas Tambeacutem natildeo existe um deus mal pois isto implicaria dizer que existem dois deuses e Agostinho em correspondecircncia agrave sua influecircncia neoplatocircnica defendia a ideia do Uno Deus eacute o Ser o Uno e nenhum outro Ser existe aleacutem dele E devido a isso eacute apenas dele que vieram todas as coisas Desse modo o mal natildeo existe ele eacute o nada O mal que encontramos no mundo eacute resultado de nossas accedilotildees derivadas de nossas escolhas as quais provecircm de nosso conflito entre as vontades No entanto natildeo eacute uma disputa entre vontade boa e maacute mas uma briga entre o querer e o natildeo-querer

134 Eacutetica e filosofia poliacutetica

acadecircmico sendo ele proacuteprio alvo de suas criacuteticas posteriores Contudo ao que parece o ceticismo acabou se tornando uma ponte para a sua conversatildeo ao cristianismo o qual permitiu-lhe encontrar e se ancorar naquilo que considerava ser por fim a verdadeira Sabedoria

REFEREcircNCIAS AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos A Ambroacutesio de Pina 21 ed Braganccedila Paulista Universitaacuteria Satildeo Francisco 2006 (Col Pensamento Humano)

______ Contra os acadecircmicos Trad Enio Paulo Giachini Petroacutepolis Vozes 2014

CESAREA Eusebius Preparation for the Gospel Trad E H Gifford Disponiacutevel em lthttpwwwtertullianorgfathersindexhtmPraeparatio_Evangelica_(The_Preparation_of_the_Gospel)gt Acesso em 26 jun 2016

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Metafiacutesicas Trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Folha de S Paulo 2015 (Col Folha Grandes Nomes do Pensamento v 5)

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes Pirrocircnicas Livro I Trad Danilo Marcondes Rev o que nos faz pensar n 12 set 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 27 jun 2016

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2006

O amor na busca pela verdade 135

JASPERS Karl Plato and Augustine Nova York Harcourt Brace amp Company 1962 (Col The Great Philosophers v 1)

MATTHEWS Gareth B Santo Agostinho a vida e as ideacuteias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007

PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012

PLOTINO Tratado das Eneacuteadas Trad Ameacuterico Sommerman Satildeo Paulo Polar Editorial 2000

POPKIN Richard A Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

136 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= V =

A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo

Anderson Lucas dos Santos Pereira

51 INTRODUCcedilAtildeO

O presente trabalho tem como intuito analisar a

questatildeo da verdade em Santo Agostinho Como eacute sabido esse ser mutante chamado Santo Agostinho teve uma fase ceacutetica que posteriormente seraacute por ele criticada em sua busca incessante pela verdade Todavia o aguilhatildeo ceacutetico acompanharaacute Santo Agostinho por toda sua vida mesmo convertido Tal trabalho tem a pretensatildeo de dar luz ao problema ceacutetico que haacute no presente autor percorrendo e averiguando por algumas de suas principais obras a questatildeo da Verdade analisando ateacute que medida o problema ceacutetico se daacute como resolvido

52 A REDENCcedilAtildeO E O AGUILHAtildeO CEacuteTICO EM SANTO AGOSTINHO

Confessar Eis o instante da ressurreiccedilatildeo O

inclinar-se a contemplar o caminho da redenccedilatildeo depois de uma estadia na corrupccedilatildeo em prol da transgressatildeo Render-se eacute sentir-se viacutevido suspender-se de todas as ldquonuvens de metalrdquo negar todo o mal e com isso elevar-se em destino a vereda pueril da emancipaccedilatildeo Quando Agostinho confessa concomitantemente liberta-se de alguns dos mais friacutevolos grilhotildees que enclausura seu espiacuterito longe do ser divino pois libertar-se se torna o

Graduando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute

138 Eacutetica e filosofia poliacutetica

caminho para a salvaccedilatildeo sossegar no divino se torna uma suacuteplica para a emancipaccedilatildeo de si Perante isso o viver ganha uma nova finalidade um dia natildeo eacute vivido apenas para esse dia a verdade evoca sua grandeza no proacuteprio caminho da redenccedilatildeo A verdade torna-se pretexto para o caminho da liberdade pois ser livre eacute praticar a verdade na factualidade e ser verdadeiro eacute ter como paradigma o caminho do Ser no qual enquanto estiver percorrendo timidamente contemplaraacute a autenticidade

Alguns perguntariam qual entatildeo eacute o caminho correto para a ressurreiccedilatildeo A liberdade com seu tom teacutetrico nos responderia natildeo haacute caminho pronto o trabalho do peregrino eacute aacuterduo ao mesmo tempo que teraacute de percorrer o caminho o teraacute tambeacutem para construiacute-lo pois inquieto eacute o coraccedilatildeo de um homem ateacute encontrar a verdade repousando nos braccedilos de Deus A finalidade teoloacutegica estaacute dada coube a Agostinho traccedilar o caminho ateacute a integridade Contudo ao confessar Agostinho natildeo tem o intuito apenas de expurgar suas laacutestimas anguacutestias que atordoam sua alma deixando-a inquieta mas sim tambeacutem mostrar a todos que lerem seu livro o Verdadeiro caminho para a redenccedilatildeo baseando-se em uma vida confessada ao lado de seu Pai

Mas a quem narro eu estes fatos Natildeo eacute a voacutes meu Deus Na vossa presenccedila dirijo-me ao gecircnero humano aquele a que eu pertenccedilo ainda que essas paacuteginas possam chegar apenas a uma minoria Entatildeo para que escrevo isto Para que eu e todos que lerem essas palavras pensemos de que abismo profundo se deve clamar por Voacutes (Conf 23 p 53-54)

Encontraraacute muitas pedras no caminho o saacutebio que

decidir percorrer esta trilha Agostinho virtuoso tu eacutes A ferro e fogo entre o erro e a voluacutepia tu vivestes livrou-se ainda em tempo do sensualismo do corruptiacutevel emancipou-se tambeacutem da duacutevida generalizada que antes

A busca da verdade em Santo Agostinho 139

fluiacutea em seu sangue rendeu-se ao maniqueiacutesmo em sua juventude mas logo conseguiu ver salvaccedilatildeo para o pereciacutevel confessou-se e teve a caridade de nos presentear com seu livro (Confissotildees) como uma forma de libertaccedilatildeo do ser para que outras pessoas sigam o caminho do pequeno cordeiro que levaraacute agrave verdade irrefutaacutevel Deus Quem percorrer essa vereda com acircnsia agrave libertaccedilatildeo de si primeiramente teraacute que morrer para assim alcanccedilar a liberdade pois o acircmago da existecircncia soacute eacute concebiacutevel quando deixamos tudo e aceitamos o que os olhos natildeo podem ver

Assim Agostinho invoca sua uacutenica verdade ao compasso do soliloacutequio contempla a luz da salvaccedilatildeo uma verdade irrevogaacutevel jaacute impressa em sua alma o Verbo transparece de uma forma inata Todos fomos feitos por Deus medite que O encontraraacute Mas a certeza do caminho natildeo possui clareza devemos primeiramente o louvar ou o invocar

Mas quem o invoca sem antes natildeo o conhecer Ou por ventura natildeo sois antes invocados para depois serdes conhecido Mas como evocaratildeo em que natildeo acreditaratildeo (Confissotildees p 27)

Entatildeo mostra-se penumbra em meio agrave busca da

salvaccedilatildeo A duacutevida natildeo estaacute cessada mesmo que o caminho fora jaacute projetado agrave luz Mesmo em meio ao horizonte em direccedilatildeo agrave luz do sol a penumbra criada pelas aacutervores rochas em meio agrave jornada obstruiraacute seu caminho Vemos entatildeo que a duacutevida natildeo estaacute introjetada no conhecimento de si para Deus mas sim adversamente na ldquoquestatildeo que Deus fez dele ndash a questatildeo dentro da questatildeordquo (WAZTEL 2015 p 97) Deus estaacute concebido mas a obscuridade rodeia sua legiacutetima face transcende os escombros limitados que datildeo forma agrave nossa razatildeo O corromper da carne natildeo concebe o todo da Eternidade mas mesmo assim

140 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eacute pela feacute que comeccedilamos a ser curados mas nossa salvaccedilatildeo seraacute perfeita quando este corpo corruptiacutevel for revestido da incorruptibilidade e quando este corpo mortal for revestido de imortalidade Essa eacute esperanccedila natildeo ainda realidade

Eis a anguacutestia percorrida pelas suas Verdades

indagando de uma forma sutil e inocente o natildeo comensuraacutevel com sua crenccedila pelo breve futuro

Traccedilar o caminho eis a consequecircncia de ser jogado ao mundo da imundiacutecie do pecado e da voluacutepia Agostinho com suas Confissotildees leva-nos a esta inexoraacutevel caminhada em direccedilatildeo ao futuro na qual com os passos vagarosos caminhamos para a salvaccedilatildeo tendo como pano de fundo a formaccedilatildeo moral do homem perante Deus O caminho explanado nas Confissotildees nos mostra que desde quando nascemos a partir de nossos primeiros segundos em plano terreno nascemos imperfeitos e seres pecadores Agostinho nos salienta

em que podia pecar neste tempo Em desejar ardentemente os peitos de minha matildee Se agora suspirasse com a mesma avidez natildeo pelos seios maternos mas pelo alimento que eacute proacuteprio de minha idade seria escarnecido e justamente censurado (Confissotildees p 33)

Vemos entatildeo que a noccedilatildeo de pecado se daacute

desde o alvorecer de nossa vida desde a amamentaccedilatildeo as laacutegrimas de uma crianccedila satildeo a vinganccedila pelo leite natildeo concebido na hora desejada Seraacute isso a reminiscecircncia de um dos primeiros pecados ldquoOu seria justo mesmo para aquela idade exigir com choros o que talvez o que seria concebidordquo (Confissotildees p 34) Eis a duacutevida novamente fomentando o ardor da alma em direccedilatildeo agrave clemecircncia divina Vemos a transgreccedilatildeo como uma caracteriacutestica jaacute impliacutecita no homem desde sua nascenccedila e que o caminho em prol da redenccedilatildeo torna-se aacuterduo em

A busca da verdade em Santo Agostinho 141

meio ao viacutecio do pecado pois tudo que vislumbramos e vivemos no cotidiano perverte-se em benefiacutecio agrave culpa nos desvirtua do caminho divino rumo a redenccedilatildeo

Agostinho nas Confissotildees nos relata os pecados que cometeu em sua adolescecircncia em benefiacutecio ao ldquocalorrdquo da transgressatildeo Quando ele se debruccedila em seu passado constata nele a beleza materialista que o rodeia vendo isso nas minuacutecias cotidianas como por exemplo nos prazeres sensuais da carne nos jogos de poderes no deleite sobre a inveja perante outros Com esses poucos exemplos vemos o quatildeo distante Agostinho estaacute do caminho postulado em direccedilatildeo agrave veracidade divina pois tais bens se tornam decompositores das virtudes negando ldquoTu Deus Tua Verdade Tua leirdquo (Salmos 40) ldquoeu escapuli de ti em minha adolescecircncia e me extraviei meu Deus ndash foi um grande desvio de tua constacircncia e me tornei para mim mesmo um lugar de desolaccedilatildeordquo O viacutecio leva o ser agrave desolaccedilatildeo no sentido de estar longe do caminho postergado pela luz divina a desolaccedilatildeo se daacute no desassossego da alma em natildeo conter Deus em seu coraccedilatildeo preferindo o tormento e a anguacutestia na desertidatildeo da alma

Quando ousamos corromper a ordem em prol do pecado estamos efetuando um modo de alienaccedilatildeo da transgressatildeo Contudo vemos que tal ldquofealdaderdquo perante os dogmas divinos natildeo satildeo uma negaccedilatildeo de si e de Deus (pois isso seria partir de um adendo maniqueiacutesta) mas sim a negaccedilatildeo de si e de Deus seria a proacutepria noccedilatildeo de suiciacutedio Com isso vemos que para Agostinho os prazeres materiais nada satildeo do que objetos obstinados para a perdiccedilatildeo e com isso para a decomposiccedilatildeo da alma pois eles natildeo deixam uma impressatildeo duradoura como uma Verdade Eterna por maior que for o prazer de tal ente Jaacute o prazer perante a divindade (Aacutegape) se daacute na infinidade da ideia pois como vemos a proacutepria noccedilatildeo de graccedila eacute infinita

142 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Mas diferentemente quando morremos para o

mundo pereciacutevel (em prol da redenccedilatildeo) repercutiremos os passos do Messias ldquoJesus de Nazareacuterdquo Tal morte para Santo Agostinho se daacute como uma representaccedilatildeo da ldquomorte realrdquo pois em meio ao padecimento Jesus se dava como um ser apaacutetico ao medo aceitando seu destino em prol do incorruptiacutevel Eis a figura da morte original Jesus desmaterializou-se com um intuito maior para que pudesse retornar a nossos coraccedilotildees e com isso nos propiciar uma morte particular e legiacutetima Negar o caminho que Jesus de Nazareacute percorreu eacute o mesmo que negar Deus e morrer para Ele A vida sem Deus se daacute na perdiccedilatildeo de ser levando-nos agraves piores dores sendo assim o ideal de vida eacute voltado agrave contemplaccedilatildeo divina concomitante a uma vida confessada Quando nos desvirtuamos do caminho da Verdade negamos tambeacutem o amor de Deus Fomos feitos para sermos estimados por Ele somos sua Suma importacircncia pois ldquoO que faraacutes tu Deus se eu perecer Eu sou teu vaso e se me quebro Eu sou tua aacutegua e se apodreccedilo Sou tua roupa e teu trabalho Sem mim perdes tu e teu sentidordquo (RILKE Rainer Novos poemas p 62) Somos feitos para almejar a Deus Ele eacute inato agrave alma humana nossa harmonia estaacute intriacutenseca ao Verbo ldquoTu nos comoves e nos comprazemos em glorificar a ti que nos fizestes teus ndash e assim o coraccedilatildeo dentro de noacutes eacute desassossegado ateacute sossegar em tirdquo

Com isso vemos que Deus estaacute em tudo e que noacutes devemos O almejar de corpo e alma Sem Deus a alma se daacute como um lugar confinado aacutevido pelos pecados carnais cabe ao Rei adentrar agrave alma e a reparar E se acaso a morada de meu ser for muito pequena entatildeo ldquodeixe que seja expandida por tirdquo Eis o caminho seguido por Jesus de Nazareacute no qual devemos nos aliar para com isso nos santificar

Como seria uma vida sem Deus onde os ornamentos do futuro enfeitam sua existecircncia com seus

A busca da verdade em Santo Agostinho 143

tons obscuros Como seria viver uma vida proacutediga percorrendo os caminhos do absurdo Agostinho retrata a partir de uma reflexatildeo da paraacutebola de Lucas 15 sobre o ser aduacuteltero do caminho de Deus seguindo a infidelidade morrendo para seu Pai Esta paraacutebola conta a histoacuteria de um pai e dois filhos na qual o filho mais novo um dia pediu parte de sua heranccedila ao pai O pai com sua condolecircncia daacute a seu filho tal parte de seus bens como resultado vecirc seu filho partir pelo mundo afora A vida proacutediga e desordenada do filho mais novo faz com que em poucos meses ele gaste todo seu dinheiro com momentos dissoluacuteveis tornando-se pobre Com sua vida em xeque vecirc-se obrigado a trabalhar em terras de um carrasco tornando-se seu escravo alimentando-se escondido do resto da comida dos porcos para natildeo morrer de fome Ficando evidente natildeo apenas sua miseacuteria material mas tambeacutem miseacuteria propriamente existencial de um coraccedilatildeo que natildeo possui Deus Com a consciecircncia pesada de ter transgredido voltou agraves terras de seu pai e abraccedilando-o e beijando-o implorou para que seu pai o deixasse trabalhar para ele como carteiro (oficio de seu pai) O filho mais velho chega em cena diante do que vecirc seu pai abraccedilando o filho proacutedigo e o presenteando com uma grande festa por sua volta irrita-se e rebela-se contra o pai pois ele nunca havia ganhado nada de seu pai mesmo natildeo o traindo e seu irmatildeo por ter traiacutedo havia ganho uma festa por sua volta O pai com toda sua serenidade entatildeo responde ao filho que todos seus bens pertencem tambeacutem a ele mas que era justo alegrar-se naquele dia pois seu irmatildeo estava morto e reviveu tinha se perdido mas achou-se

Em uma adaptaccedilatildeo da paraacutebola do filho proacutedigo Agostinho nos apresenta seu eu da juventude como um eu corrompedor dos valores que ele agora pregava Agostinho nos conta que em sua juventude com a companhia de seus amigos roubara a propriedade de outrem uma porccedilatildeo de frutas natildeo cometeu tal delito pela

144 Eacutetica e filosofia poliacutetica

fome que sentira mas apenas pela adrenalina da transgressatildeo das regras Tanto na paraacutebola do filho proacutedigo quanto na adaptaccedilatildeo confessional os elementos incisivos na proacutepria noccedilatildeo de pecado original Um deles eacute a pobreza motivacional perante o fato de roubar que apenas tinha como intuito ilusoacuterio a delimitaccedilatildeo das normas e ser concebido em um grupo de amigos e tambeacutem uma disposiccedilatildeo de substituir o consenso racional implantado por uma ausecircncia da razatildeo

Com isso a partir de uma analogia entre a paraacutebola biacuteblica e a confissatildeo de Santo Agostinho alguns nuances que se assemelham e se negam Vemos a partir de uma explanaccedilatildeo de James Watzel tais similaridades e dissonacircncias

Jaacute existem umas divergecircncias oacutebvias da paraacutebola de Lucas Agostinho natildeo estaacute desperdiccedilando uma heranccedila que lhe foi concedida voluntariamente estaacute desperdiccedilando um fruto que a lei o proiacutebe de colher E natildeo apenas ele ele natildeo ousaria infringir a lei caso estivesse sozinho e menos consciente de sua necessidade de ser aceito no grupo Agostinho tece em sua faacutebula do proacutedigo dois elementos que associa com o pecado original pobreza de motivo (natildeo existe uma boa razatildeo para enfrentar as leis de Deus e perder o Eacuteden) e uma disposiccedilatildeo para substituir o consenso por uma ausecircncia de razatildeo (ningueacutem perde o Eacuteden sozinho) Com resultado muda seu foco para a natureza proacutediga do pecado ndash uma forma de pobreza obstinada velado como um movimento para a auto expressatildeo licenciosa (WATZEL James Compreender Santo Agostinho p 76)

Vemos entatildeo um retrocesso ao mito adacircmico e

segundo Agostinho a primeira causa das transgressotildees futuras Deus dentre os sete dias natildeo criou o pecado o homem que se possibilitou a ele a partir de seu livre-arbiacutetrio Todos os pecados em si possuem consigo a caracteriacutestica do pecado primordial concebido na gecircnese

A busca da verdade em Santo Agostinho 145

da criaccedilatildeo a transgressatildeo a desordem o desvirtuamento eacute o fundamento do pecado em si O mal natildeo eacute nada mais que essa transgressatildeo de ordem uma negaccedilatildeo em prol da ilusatildeo da liberdade que se fundamentou na corrupccedilatildeo desvinculando-se do eterno Deste modo a infecccedilatildeo postulada pelo pecado original e toda sua culpabilidade condenando desde as crianccedilas no ventre de suas matildees ateacute as mentes mais perversas e contagiosas Eis o contaacutegio hereditaacuterio que perpassa por todas as culturas e tempos que afeta e alastra-se como uma praga por toda a humanidade

Tal pecado original se daacute como uma obra da liberdade humana sendo destituiacuteda da Natureza de Deus e concomitantemente concebida como uma negaccedilatildeo do Mesmo Tudo que natildeo se constitui a partir da benccedilatildeo divina rui em meio as trevas Adatildeo o terroso perde com isso Assim como o resto do mundo a proximidade com o Ser divino sendo retirado da gleba deteriorando-se em meio ao poacute A poeira caoacutetica eacute a heranccedila postergada pelos primeiros humanos que se espalha e perpetua transmitida a todo gecircnero humano pelo primeiro homem o ancestral iniciador da perdiccedilatildeo Vemos entatildeo a histoacuteria do universo segmentada em duas partes uma anterior ao pecado e uma poacutestuma a ele consistido na perdiccedilatildeo humana na desuniatildeo e no desassossego longe de Deus

Em Satildeo Paulo temos Adatildeo como ldquoa figura daquele que devia virrdquo e por mais que natildeo conceba uma visatildeo primordial do pecado Como um contaacutegio hereditaacuterio assim como em Santo Agostinho podemos jaacute salientar a evidecircncia de tal concepccedilatildeo ou seja do que posteriormente tornou-se a noccedilatildeo de pecado primordial

12O pecado entrou no mundo por um soacute homem Atraveacutes do pecado entrou a morte E a morte passou para todos os homens porque todos pecaram 13Na realidade antes de ser dada a Lei jaacute havia pecado no mundo Mas o pecado natildeo pode ser imputado quando

146 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo haacute lei 14No entanto a morte reinou desde Adatildeo ateacute Moiseacutes mesmo sobre os que natildeo pecaram como Adatildeo - o qual ndash era a figura provisoacuteria daquele que devia vir 15Mas isso natildeo quer dizer que o dom da graccedila de Deus seja comparaacutevel agrave falta de Adatildeo A transgressatildeo de um soacute levou a multidatildeo humana agrave morte mas foi de modo bem mais superior que a graccedila de Deus ou seja o dom gratuito concedido atraveacutes de um soacute homem Jesus Cristo se derramou em abundacircncia sobre todos Palavra do Senhor (Satildeo Paulo aos Romanos 512-15)

Com este fragmento da epiacutestola de Satildeo Paulo aos

romanos percebe-se que diferentemente de Santo Agostinho e o mal original Paulo salienta que ldquoAtraveacutes do pecado entrou a morte e a morte passou para todos os homens porque todos pecaramrdquo A morte neste sentido ganha um indicativo do conceito do mais puro mal tornando o mal algo concebido criado diferindo-se da posiccedilatildeo agostiniana do mal como o livre-arbiacutetrio escolhido pelo homem O pecado em Paulo natildeo foi inventado pelo homem eacute por conseguinte uma forccedila interior ao proacuteprio homem instituiacuteda por uma forccedila maior

Mas o que levou Adatildeo ou qualquer outro humano a cometer pecados negando o que haacute de mais Belo Justo e Bom Qual eacute a maior motivaccedilatildeo para ser um transgressor de acordo com Agostinho

Agrave preguiccedila parece apetecer apenas o descanso mas que repouso seguro haacute fora do senhor A luxuacuteria deseja apelidar-se saciedade e abundacircncia Voacutes poreacutem sois a plenitude e abundacircncia interminaacutevel da suavidade incorruptiacutevel A prodigalidade cobre-se com a sombra da liberalidade mas o mais magnacircnimo dispensador de bens sois Voacutes A avareza quer possuir muito e Voacutes possuis tudo a inveja litiga a partir da ldquoexcelecircnciardquo mas haveraacute algum Ser mais excelente que voacutes A ira procura a vinganccedila e quem se vinga mais justamente que voacutes (Confissotildees p 60)

A busca da verdade em Santo Agostinho 147

No entanto os bens corruptiacuteveis tecircm sua beleza que se resume na aptidatildeo pelo seu fim Independente do fim seja pela mera inclinaccedilatildeo a pecar ou pelas riquezas e soberba visceral o pecado procura a partir de sua beleza enganadora impulsionar o homem ao decliacutenio da alma com isso deleitando-se em meio agrave luxuacuteria o pecado mais avassalador e imundo Neste momento o homem agrada-se aos braccedilos de Asmodeus sucumbindo-se em meio ao caos levando o mesmo fim que Sodoma

Diante dessas constataccedilotildees surge uma outra questatildeo Porque a preferecircncia por esses prazeres corruptiacuteveis sendo que Deus posto a noacutes se daacute como um ser insaciaacutevel A resposta para isso encontra-se no conceito ldquodesejordquo (desidĕrĭvm) Etimologicamente veremos que tal conceito tem origem latina onde o radical ldquoderdquo indica um movimento de declive ou seja um movimento de cima para baixo Enquanto o prefixo do conceito (sidĕrĭvm) significa ldquoestrelardquo ldquoastrordquo ldquocorpo celesterdquo Com tal especificaccedilatildeo lembramos sobre a estrela caiacuteda dos ceacuteus (Luacutecifer a estrela da manhatilde) que a partir de seu desejo de se igualizar a Deus por seu orgulho foi exilado dos ceacuteus em declive ao inferno No paraiacuteso adacircmico tambeacutem o desejo foi o progenitor do pecado resultando na expulsatildeo do paraiacuteso A transgressatildeo nada mais eacute que o desejo pelo natildeo concebido pelo proibido

Vemos em Santo Agostinho que tal fonte de desejo por natildeo apenas conceber Deus como seu objeto mas variados entes o desejo se daacute como segundo Hannah Arendt expotildee

Santo Agostinho define o amor como uma forma de desejo que dentro da temporalidade se coloca como anseio de se apropriar deste algo bom seja por recuperaccedilatildeo do que jaacute se teve ou alcanccedilando o que ainda natildeo se tem Mas o problema eacute que este desejo de posse implica o medo medo de perder medo de natildeo alcanccedilar que remete de novo o homem agrave

148 Eacutetica e filosofia poliacutetica

instabilidade que por sua vez gera o movimento Santo Agostinho se volta para a questatildeo uacuteltima do amor como anseio de superaccedilatildeo do medo do isolamento e da instabilidade o que implica a superaccedilatildeo da proacutepria temporalidade A vida na temporalidade eacute um entre entre o natildeo mais e o ainda natildeo Desse modo Santo Agostinho afirma que o homem eacute aquilo que ama e para ele quem natildeo ama natildeo eacute nada E portanto adverte eacute necessaacuterio ter cuidado em relaccedilatildeo ao que se ama no sentido de estar atento ao que se ama O que o homem ama onde potildee a atenccedilatildeo ali estaacute o seu destino (ARENDT Hannah O conceito de amor em Santo Agostinho)

Na realidade para Santo Agostinho haacute uma

expansividade o desejo Ou seja a lsquoestrutura fundamental do entersquo (o desejo) eacute a forma de um apetite que instala o querente na solidatildeo expotildee-no a todas as anguacutestias e a todas as audaacutecias mas atraiccediloa uma dinacircmica irrecusaacutevel a vontade de ser feliz Felicidade alegria ou qualquer outro nome que se lhe chame o objeto do desejo revela o fim uacuteltimo do ser criado ser feliz O desejo eacute ontoloacutegico eacute um movimento um anseio em direccedilatildeo a algo bom o que jaacute implica a ideia da instabilidade do ser humano que eacute assim um ser em tracircnsito O homem eacute aquilo que se esforccedila por atingir Ficamos parecidos com o que amamos O amor eacute a mediaccedilatildeo entre o que ama e aquilo que ama o que ama nunca estaacute isolado daquilo que ama isso lhe pertence A realizaccedilatildeo eacute a beatitude que natildeo consiste em amar mas em fruir daquilo que eacute amado e desejado Todo o amor eacute tensatildeo dirigida para esta fruiccedilatildeo No entanto ningueacutem eacute feliz se natildeo fruir do que ama Fruir eacute estar perto do objeto desejado O que pode impedir o homem neste trajeto eacute a sua proacutepria vontade o livre-arbiacutetrio Cabe aos homens elegerem o objeto de seu amor aquilo que pensa que os faraacute felizes O mal natildeo estaacute no mundo ou nos objetos do mundo mas onde se coloca o coraccedilatildeo A morte como o fim da vida lanccedila a proacutepria vida para o retorno ao seu

A busca da verdade em Santo Agostinho 149

ser O amor tem a forccedila da morte porque o poder de subtrair o homem ao mundo reenvia agrave eleiccedilatildeo no seio do mundo Em outras palavras o sentimento de que natildeo haacute o que perder eacute o objetivo maior do amor lsquoTorna-te o que eacutesrsquo ndash isto eacute reconhece com gratidatildeo o que o fato de ter nascido te proporciona

Agostinho nas confissotildees lembra de um amigo falecido pela febre chorou lamuriou-se sobre a vida de seu amigo visando uma tristeza mais teatral quanto intensa Teatral natildeo no sentido de sentir uma tristeza falsa perante seu amigo mas sim uma tristeza anaacuteloga agraves trageacutedias gregas algo que encanta e ilude ao mesmo tempo Agostinho nas confissotildees nos diz que a morte de seu amigo se dava de um modo entristecedor para ele pois o amigo fazia parte dele quando ele via seu amigo via ao mesmo tempo o seu eu estampado na figura do amigo

Meu coraccedilatildeo estava inteiramente na sombra da tristeza e a morte era o que eu via em tudo Minha terra natal era uma puniccedilatildeo para mim a casa do meu pai um lugar estranho e desafortunado As coisas que eu partilhava com meu amigo voltavam e me torturavam cruelmente em sua ausecircncia Meus olhos se mantinham procurando por ele em todo lugar e ele havia partido

Em outra passagem das Confissotildees Agostinho

retrata o quanto seu eu transgressor contemplava e pranteava por figuras que natildeo eram seu Deus colocando seu amor nos seres corruptiacuteveis negando o eterno Por exemplo quando Agostinho defronta-se em sua juventude com a obra traacutegica de Virgiacutelio denominada Eneida sente-se frustrado por ter chorado naquela eacutepoca por uma ficccedilatildeo traacutegica na qual Dido mulher de Eneacuteas mata-se por seu amor pois ele queria fundar Troacuteia em Roma em vez de ficar ao lado de sua esposa Agostinho frustra-se pois estava chorando por um ser que aleacutem de

150 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ficcional tambeacutem se lamuriava por Eneacuteas natildeo ter auto-piedade de si negando a Deus em favor de uma guerra Quando Agostinho refere-se aos atos traacutegicos o mesmo diz que a mimeses da vida no teatro se daacute em um fundo falso no qual apenas o que conta eacute a aparecircncia da tristeza negando o real sofrer Agostinho nega a importacircncia da catarse aristoteacutelica dos sentimentos pois o homem que sofre por medo da perca de um ente querido ou de sua proacutepria vida estaacute com a alma perturbada (perturbatio animi) negando a felicidade virtuosa possui o medo do devir aos braccedilos de Deus Vemos com isso que o amor por mais que seja sincero pode desvirtuar-se ao caminho da morte perante Deus

Mas voltando agrave questatildeo ao cerne do problema proposto sobre o caminho da redenccedilatildeo Agostinho por mais que tenha se rendido agrave graccedila da salvaccedilatildeo obtecircm uma soluccedilatildeo para com sua duacutevida perante o conhecimento de Deus Em outras palavras sua experiecircncia fruitiva perante o Absoluto se daacute de forma clara e distinta Segundo o comentaacuterio de Jacques Maritain filoacutesofo da religiatildeo especialista em Santo Agostinho

A experiecircncia miacutestica consiste essencialmente numa ldquoexperiecircncia fruitiva do Absolutordquo Como experiecircncia fruitiva ela se exerce atraveacutes de um tipo de conhecimento de seu objeto e de adesatildeo afetivo-volitiva que transcendem o modo usual de operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer e visa em sua intencionalidade objetiva o Absoluto ultrapassando a contingecircncia e relatividade dos objetos que se aparecem agrave nossa experiecircncia ordinaacuteria (MARITAIN 1930)

Se observar possibilidade da ldquoaberturardquo perante o

divino de uma forma transcendental que supera a forma loacutegicaformal de conhecimento experienciativo delimitando o conhecimento perante a possibilidade

A busca da verdade em Santo Agostinho 151

intramundana concebida pelo sensualismo concomitante agrave experiecircncia casual Conceber o divino eacute ir aleacutem do conhecimento funcional e utilitaacuterio posto no cotidiano eacute transgredir a sensibilidade corriqueira diluir-se em um ecircxtase em sintonia com a Luz gravada na alma onde mesmo fechando os olhos poderei Te ver mesmo trancando os ouvidos poderei Te ouvir no qual mesmo sem minha proacutepria boca poderei Te invocar pois como suportar a sensibilidade se natildeo tornar ela uma definiccedilatildeo do ausente Uma suposiccedilatildeo do indiziacutevel Eis o sentimento extaacutetico lanccedilando-se aos braccedilos do inconcebiacutevel cegado pela luz que vela o impossiacutevel sendo apenas o que eacute todo o absurdo ldquoeis o misteacuterio da feacuterdquo (Oraccedilatildeo Eucariacutestica III) Sobre o misteacuterio cita Agostinho

[] A quem confessaria a minha ignoracircncia com mais proveito do que a ti que natildeo se desapraz com o forte zelo que me inflamas por tuas Escrituras Concede-me o que amo pois este amor eacute um dom teu Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios Eu suplico por Cristo em nome do Santo dos santos que ningueacutem perturbe minha investigaccedilatildeo Acreditei e por isso falo Minha esperanccedila a esperanccedila pela qual vivo eacute contemplar as deliacutecias do senhor [] (Confissotildees p 123)

Percebemos o caraacuteter afetivo-volitivo na suacuteplica

de Agostinho pela ldquocontemplaccedilatildeo das deliacutecias do senhorrdquo a intencionalidade objetiva relacionada com a superaccedilatildeo da contingecircncia e da relatividade em busca de um porto no qual se encerra a dissoluccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na luz absoluta Assim Santo Agostinho exerce a experiecircncia fruitiva na busca de sua experiecircncia miacutestica agrave guisa da determinaccedilatildeo do conhecimento do enigma ou

152 Eacutetica e filosofia poliacutetica

seja do proacuteprio misteacuterio que faz mister salientar que eacute o proacuteprio Absoluto

Nota-se que a ideia de transformaccedilatildeo da vida estaacute imbricada no contexto do fascinium daiacute podemos deliberar sobre o que Santo Agostinho busca atraveacutes da experiecircncia miacutestica ou seja confessando a sua ignoracircncia a Deus ele espera natildeo somente uma aproximaccedilatildeo com o absoluto mas tambeacutem uma quase-identidade com este revelando a ele a luz em consonacircncia com a experiecircncia miacutestica O sujeito Agostinho visa a comunhatildeo com o objeto intencionado ou seja com o misteacuterio do Absoluto O Livro XI das Confissotildees se encontra sob o influxo da miacutestica especulativa ou seja das fontes claacutessicas e neoplatocircnicas o eixo subjetivo em consonacircncia com a objetividade a harmonia sujeitoobjeto pela via do conhecimento embora este conhecimento esteja em grau iacutenfimo em relaccedilatildeo ao Sagrado que eacute incognosciacutevel

[] Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios [] (Confissotildees p 123)

Vemos com isso natildeo apenas uma harmonia com a teologia cristatilde sobre o misteacuterio da feacute mas tambeacutem uma posiccedilatildeo filosoacutefica denominada pirronismo um desassossego causado pelo misteacuterio ainda natildeo resolvido O problema epistemoloacutegico sobre o conhecimento ldquoperante aquele que Eacuterdquo natildeo se resolve apenas pelo consentimento da redenccedilatildeo pois assim como um ceacutetico pirrocircnico Agostinho nega o assentimento a preposiccedilotildees que podem ser duacutebias sobre o indiziacutevel pois nos falta evidecircncias sobre o Ser caindo sempre na vatilde aparecircncia

Mas quem realmente foi Pirro Como se dava a ldquometodologiardquo pirrocircnica para com a episteme E o mais

A busca da verdade em Santo Agostinho 153

importante como pode vincular tal noccedilatildeo pirrocircnica sobre o conhecimento com o misteacuterio divino

Pirro foi um filoacutesofo antigo nascido em Eacutelida entre 365 e 360 aC Foi um pensador muito influenciado pela escola socraacutetica na qual inclinou-se sobre e radicalizou a ignoracircncia saacutebia de Soacutecrates dando gecircnese a um importante ensinamento que se repercute ateacute os dias de hoje Falo da renuacutencia epistemoloacutegica sobre a Verdade uacuteltima sobre o fundamento (archeacute) da natureza (physis) que nega a essecircncia informando que a mesma ainda natildeo foi concebida denegando qualquer consentimento sobre a Verdade mas que ainda como um peregrino busca a mesma tendo sempre em vista o conceber de tal entidade assim como comenta Giovanni Reale

Enquanto o caminho da ontologia vai das aparecircncias ao ser (seja para os fiacutesicos seja para os metafiacutesicos) ao contraacuterio Pirro volta do ser agraves aparecircncias negando qualquer juiacutezo sobre o ser e reconhecendo consequumlentemente apenas o aparecer (REALE p 144)

A partir de tal perspectiva vemos a renuacutencia do

ser a abdicaccedilatildeo do inclinar-se a uma substacircncia que talvez natildeo possa estar contida no homem nem no mundo e que portanto devemos nos suspender perante tais juiacutezos epistemoloacutegicos sobre a existecircncia pois apenas assim que podemos alcanccedilar segundo Tiacutemon disciacutepulo imediato de Pirro ldquoa afasia e depois a ataraxiardquo (Aristoacutecles test 53)

A partir de tal epocheacute pirrocircnica natildeo podemos julgar ajuizar o mundo a partir de uma verdade fulcral pois nada por essecircncia eacute belo ou feio justo ou injusto bom ou mal assim como nos afirma Dioacutegenes Laeacutecio sobre Pirro ldquopois o que os homens fazem acontece por convenccedilatildeo e por haacutebito e nada eacute mais que aquilordquo (LAEacuteRCIO p 234) Com isso vemos que tais valores natildeo possuem uma estatura ontoloacutegica assim como

154 Eacutetica e filosofia poliacutetica

queriam os dogmaacuteticos mas apenas o puro fenocircmeno do mundo assim como nos aparece pois o valor da coisa-em-si eacute inconcebiacutevel fazendo-nos sempre nos suspender sobre tal Giovanni Reale nos mostra a incomensurabilidade do ser enquanto ser em tal fragmento a partir de um exemplo trivial ldquoIsso significa que em si o mel sendo como qualquer outra coisa indeterminado e inqualificaacutevel enquanto soacute o aparecer eacute qualificaacutevelrdquo (REALE p 148)

Mas contudo Pirro natildeo chegou a dissolver o mundo todo em uma simples aparecircncia pura e universal pois tal renuacutencia total seria o mesmo que cair em um dogmatismo negativo ou seja a uma absoluta certeza desviando-se da duacutevida hiperboacutelica Para a comprovaccedilatildeo de tal argumento segue-se uma passagem de Tiacutemon em uma conversa com um terceiro sobre como Pirro leva sua vida pacata sem grandes idealizaccedilotildees laborativas

Oacute Pirro esse meu coraccedilatildeo deseja aprender de ti como e que tu mesmo sendo homem tatildeo facilmente levas a vida tranquumlila tu que eacutes apenas guia para os homens semelhante a um Deus

Pirro com isso responde Dir-te-ei na verdade como me parece que seja tomando como reto cacircnon essa palavra de verdade uma natureza do divino e do bem viver eternamente do qual deriva para o homem a vida igualiacutessima

Como entender tal resposta de Pirro Segundo Giovanni Reale o Deus e o Bem pirrocircnico natildeo se daacute no mundano nem no transcendente mas sim satildeo apenas aspectos que se desvanecem e que com isso fogem da sensibilidade A afasia concomitante agrave apatia eacute tal ldquosupremaciardquo virtuosa ceacutetica que se sustenta na privaccedilatildeo de toda a faculdade de escolha quando natildeo haacute um sustento aonde possa apoiar-se Vemos com isso as

A busca da verdade em Santo Agostinho 155

escolhas se esvaiacuterem do terreno uma vez soacutelido para os filoacutesofos dogmaacuteticos eis o fundamento da virtude ceacutetica Tal virtude se daacute no movimento de negaccedilatildeo de qualquer juiacutezo cognitivo permanecendo sem qualquer inclinaccedilatildeo sendo indiferente a entidade julgada

eacute preciso natildeo ter opiniatildeo [] afirmando de cada coisa que eacute natildeo mais do que natildeo eacute ou que eacute e que natildeo eacute ou que ainda nem eacute ou nem natildeo eacute Os que se potildeem nesta posiccedilatildeo conseguiratildeo em primeiro lugar a afasia (ARISTOacuteCLES p 18)

Mas como devemos entender essa afasia ceacutetica

Talvez natildeo viver para este mundo Negar a exterioridade Natildeo mais poder de maneira nenhuma se expressar Viver em um mero solipsismo passivo de maneira nenhuma ajuizando o mundo Natildeo segundo Sexto Empiacuterico nas Hipotipoacuteses Pirrocircnicas comenta

Sobre a afasia digamos o seguinte [] Em sentido geneacuterico ldquofasirdquo eacute uma palavra que significa afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo como ldquoeacute diardquo ldquonatildeo eacute diardquo [] Portanto afasia equivale a renunciar agrave fasi no seu significado comum no qual dizemos que estatildeo contidas a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo de modo que afasia eacute uma afecccedilatildeo interna a noacutes na qual nem afirmamos nem negamos (ARISTOCLES)

Eis o caminho do ser virtuoso alcanccedilar neste

ecircxtase redutivo a ataraxia a ldquovida igualiacutessimardquo em suma redenccedilatildeo consigo mesmo Eis a forma pirrocircnica de viver

Enquanto os seus companheiros de viagem no navio apavoravam-se por causa da tempestade ele permanecia tranquumlilo e retomava acircnimo apontando um leitatildeozinho que continuava a comer e acrescentando que tal imperturbabilidade era exemplar para o comportamento do saacutebio (EMPIacuteRICO I 192)

156 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Vemos com isso o fim de todo pirrocircnico a total apatia do saacutebio as pupilas vazias de anima mas que ainda em seu interior cabendo consigo o sorriso de um homem sereno perante o mundo (um saacutebio)

Com isso chegando ao intuito final de tal trabalho nos perguntamos Qual eacute a consonacircncia existente entre um ceacutetico abnegador de qualquer verdade uacuteltima e um cordeiro da luz Qual eacute a semelhanccedila entre o meacutetodo ceacutetico e a redenccedilatildeo agostiniana pela feacute Como podemos conciliar a crenccedila divina em frente a ataraxia Veremos que o aguilhatildeo ceacutetico ainda estaacute incumbido na alma do Santo a anguacutestia ainda atordoa a alma o devir ainda eacute obscuro e Deus ainda natildeo foi concebido A verdade ainda estaacute velada obscurecida pela ignoracircncia do homem A necessidade de Agostinho de clamar a Deus convocaacute-lo em seus ritos justifica sua busca insaciada pela Verdade na qual cessaraacute apenas post mortem

Como salientado antes Agostinho ao contemplar-se com sua divindade adentra em um caminho em direccedilatildeo agrave travessia para a verdade da libertaccedilatildeo da emancipaccedilatildeo de sua alma Mas tal caminho por conter a ldquoqueda agrave carnerdquo torna-se nocivo pedregoso tornando a clareza da verdade uma incoacutegnita Salienta a biacuteblia sagrada ldquoAtenta para a obra de Deus Quem poderaacute endireitar o que ele fez tortordquo (Eclesiastes 7 13) A verdade pode estar dentro de nossos coraccedilotildees a partir da ressurreiccedilatildeo do Messias (o prometido) encarnado mas a figura real de Deus em sua mais esplecircndida Forma delimitada de qualquer compreensatildeo humana apenas pode ser concebida post mortem

Depois de tudo vemos que Santo Agostinho se associa agrave miacutestica revelando que a experiecircncia com o Sagrado implica a supressatildeo do tempo percebemos que no Cap XI sobre ldquoO tempo e eternidaderdquo Santo Agostinho exprime que os espiacuteritos buscam o Absoluto pois ainda se encontram presos nas correntes do tempo

A busca da verdade em Santo Agostinho 157

sendo eles cativos do passado e do futuro assim expotildee o Bispo de Hipona

Os que assim falam natildeo te compreendem ainda oacute sabedoria de Deus luz das inteligecircncias natildeo compreendem ainda como eacute criado o que eacute criado por ti e em ti Esforccedilam-se por saborear as coisas eternas mas seu espiacuterito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras

Santo Agostinho aclara que o momento presente

pode ser experienciado em Deus ou seja na eternidade irrompendo com as malhas do passado e do futuro e ponderando a partir do enlevo do que ldquosempre eacuterdquo ou seja da presenccedila constante do Absoluto sem os grilhotildees do passado e do futuro que encerram o devir o espaccedilo e o tempo e tudo mais que atrela o homem nas algemas do movimento Agostinho ressalta que o homem apenas carece deste porto do Absoluto pois natildeo o identifica como ldquonatildeo serrdquo

Desde que a alma plaine sobre os fatos passados e futuros o homem natildeo experiencia a ultravida na que eacute o feitio proacuteprio de Deus pois o tempo eacute a forma essencial da proacutepria alma esta se desdobra por seccedilotildees se possui por partes e por capiacutetulos havendo um desdobramento e esta abertura eacute o tempo portanto soacute eacute possiacutevel alcanccedilar a experiecircncia emblemaacutetica quando se abole o tempo

Com isso natildeo podemos dar evidecircncia a um certo pirronismo na filosofia miacutestica de Agostinho A procura pelo saciar nos braccedilos de Deus se daacute em uma longa caminhada pelos caminhos obscuros tendo uma impressatildeo apenas sobre a existecircncia de Deus mas natildeo uma clarividecircncia sobre a face divina A luz que cintila dos ceacuteus cega o homem que olha para o alto clamando nunca colocando sua verdadeira face agrave mostra sempre velado por sua camada de luminescecircncia divina Eis o

158 Eacutetica e filosofia poliacutetica

momento de suspender colocar entre parecircnteses sua real forma e viver a vida em meio a este enigma

Agostinho natildeo eacute um ceacutetico pirrocircnico mas perante a incognoscibilidade de Deus ele o coloca como um misteacuterio que nem a feacute ou os ritos poderatildeo explicar Mas Agostinho lamuria-se com isso Natildeo o bispo de Hipona nada mais faz do que esperar a sua hora chegar seguindo os ensinamentos de Soacutecrates e talvez de Pirro Agostinho aprendeu a morrer serenamente aguardando em paz sua hora chegar para conceber a Verdade assim como um ideal pirrocircnico Claramente Pirro e Agostinho traccedilaram caminhos distintos para se alavancar agrave ataraxia um por ter se rendido agrave duacutevida generalizada outro por ter se rendido ao Inconcebiacutevel mas nada impede de terem se encontrado em qualquer encruzilhada saudando o espiacuterito um do outro diluindo-se na plena ataraxia

REFEREcircNCIAS BIacuteBLIA Biacuteblia sagrada Traduccedilatildeo de Padre Antocircnio Pereira de Figueredo Rio de Janeiro Encyclopaedia Britannica 1980 Ediccedilatildeo Ecumecircnica

AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

______ Confissotildees 24 ed Trad de J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Petroacutepolis Vozes 2009 376p

BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009

WATZEL James Compreender Agostinho Trad Caesar Souza Petroacutepoles RJ Vozes 2011

REALE Giovanni Estoicismo Ceticismo e Ecletismo Satildeo Paulo SP Loyola 2011

A busca da verdade em Santo Agostinho 159

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010)

160 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VI =

O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE

Joseacute Luiz Giombelli Mariani 61 INTRODUCcedilAtildeO

O periacuteodo histoacuterico da Reforma Protestante eacute

considerado conturbado e de muitas revoluccedilotildees que culminou na mudanccedila do pensamento ocidental muitos pensadores surgiram nessa eacutepoca cada um defendendo sua feacute e questionando os adversaacuterios ldquoTanto os inovadores quanto os defensores da tradiccedilatildeo viram-se diante do mesmo problema Geralmente tentaram resolvecirc-lo atacando o criteacuterio do adversaacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29)

A problemaacutetica desse periacuteodo da reforma protestante circula em torno de um criteacuterio de verdade este problema foi central na disputa da Reforma acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso chamado de ldquoregra de feacuterdquo Assim escreve Popkin sobre as questotildees levantadas na Reforma que mais tarde se espalhou para a filosofia

O problema de se encontrar um criteacuterio de verdade primeiro levantado em disputas teoloacutegicas foi posteriormente levantado tambeacutem em relaccedilatildeo natural levando agrave crise pyrrhoniemne do iniacutecio do seacuteculo XVII (POPKIN 2000 p 25)

Acadecircmico de graduaccedilatildeo do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute UNIOESTE campus de Toledo Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID) e-mail joseluizmarianigmailcom

162 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Algumas questotildees levantadas nesse periacuteodo satildeo

as seguintes Qual o padratildeo atraveacutes do qual reconhecemos a feacute e como podemos determinar com certeza o que as Escrituras dizem Por meio de que criteacuterio pode dizer que as Escrituras consistem na Palavra de Deus Quais as evidecircncias desta Verdade Revelada Para responder tais questotildees existiram diversas correntes sendo as duas principais o catolicismo versus os seguidores de Lutero conhecidos como protestantes Existiram tambeacutem aqueles que tomaram a atitude ceacutetica como forma de resolver essa problemaacutetica ou seja em linhas gerais para estes natildeo podemos determinar o criteacuterio de verdade apresentado por ambos os lados da discussatildeo da feacute

O presente trabalha apresenta de forma geral os criteacuterios de verdade dos catoacutelicos e dos protestantes e o embate entre ambas e por fim apresenta a saiacuteda apresentada pelos ceacuteticos desse periacuteodo

62 O CETICISMO E O CRISTIANISMO

Primeiramente eacute necessaacuterio fazer uma breve

abordagem acerca desses dois conceitos a saber ceticismo e cristianismo A partir do Dicionaacuterio filosoacutefico de Andreacute Comte-Sponville podemos entender o ceticismo como

O contraacuterio do dogmatismo no sentido teacutecnico do termo Ser ceacutetico eacute pensar que todo pensamento eacute duvidoso - que natildeo temos acesso agrave certeza absoluta Note-se que o ceticismo a natildeo ser que se destrua deve ser incluiacutedo na duacutevida geral que ele instaura tudo eacute incerto inclusive que tudo seja incerto Agrave gloacuteria do pirronismo dizia Pascal Isso natildeo impede de pensar aliaacutes eacute o que obriga a pensar sempre Os ceacuteticos buscam a verdade como todo o filoacutesofo (eacute o que os distingue dos sofistas) mas nunca estatildeo certos de tecirc-la encontrado nem mesmo que seja possiacutevel encontraacute-la

O ceticismo na reforma protestante 163

(eacute o que os distingue dos dogmaacuteticos) Isso natildeo os aborrece Natildeo eacute a certeza que eles amam mas o pensamento e a verdade Por isso gostam do pensamento em ato e da verdade em potecircncia ndash o que eacute a proacutepria filosofia e eacute nisso que dizia Lagneau o ceticismo eacute o verdadeiro Decorre daiacute que ningueacutem eacute obrigado a ser ceacutetico nem autorizado a secirc-lo dogmaticamente (COMTE-SPONVILLE 2003 p 99)

O ceticismo eacute uma corrente filosoacutefica que teve

iniacutecio na antiguidade com Pirro de Eacutelis mais tarde Sexto Empiacuterico e outros tantos seguidores foram importantes na construccedilatildeo desta corrente filosoacutefica grega Portanto o ceticismo antigo foi uma grande corrente de pensamento e de grande importacircncia no pensamento grego muitas questotildees foram levantadas pelos ceacuteticos antigos Sabemos que estes escreveram inuacutemeros textos poreacutem poucos resistiram ao tempo se hoje conhecemos esta corrente do pensamento eacute graccedilas agraves obras tardias de Dioacutegenes Laeacutercio Ciacutecero e especialmente Sexto Empiacuterico

O Cristianismo tem sua base na vida e histoacuteria de Jesus Cristo que viveu em meio agrave cultura judaica Os cristatildeos possuem um livro considerado sagrado pelos seus seguidores que eacute a Biacuteblia tal conjunto de obras tecircm duas divisotildees o Antigo Testamento que satildeo livros que contam a histoacuteria antes da vinda de Jesus e o Novo Testamento que conteacutem os quatro evangelhos chamados de canocircnicos ou seja reconhecidos pela Igreja a saber Matheus Marcos Lucas e Joatildeo aleacutem de cartas e de livros que narram agrave vida das primeiras comunidades de feacute Segundo os Catoacutelicos este livro eacute a Palavra de Deus e eacute inspirado pelo Espiacuterito Santo

Desde a organizaccedilatildeo que ocorreu durante o primeiro seacuteculo da era cristatilde ateacute a Reforma este livro ficou no poder da Igreja por diversos motivos entre eles a falta de alfabetizaccedilatildeo a pobreza e a liacutengua em que eles estavam escritos o latim claacutessico

164 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os catoacutelicos tambeacutem satildeo norteados pela tradiccedilatildeo

da Igreja pelos documentos e pelos conciacutelios que durante toda a sua histoacuteria fizeram e fazem parte mostrando as diretrizes do caminho da Igreja no mundo No Catecismo da Igreja Catoacutelica um dos documentos mais importante da Igreja no que diz respeito a questotildees de feacute no artigo 2 chamado ldquoA transmissatildeo da Revelaccedilatildeo Divinardquo parte 1 nuacutemero 78 encontramos a seguinte explicaccedilatildeo sobre a transmissatildeo da feacute pela Tradiccedilatildeo

Essa transmissatildeo viva realizada no Espiacuterito Santo eacute chamada de Tradiccedilatildeo enquanto distinta da Sagrada Escritura embora intimamente ligada a ela Por meio da Tradiccedilatildeo ldquoa Igreja em sua doutrina vida e culto perpetua e transmite a todas as geraccedilotildees tudo o que ela eacute tudo o que crecircrdquo O ensinamento dos Santos Padres testemunha a presenccedila vivificante desta Tradiccedilatildeo cujas riquezas se transfundem na praxe e na vida da Igreja crente e orante (N 34)

Portanto segundo a Igreja ela possui em suas

matildeos a verdade da feacute iluminada pelo Espiacuterito Santo Eacute confiado aos sucessores dos Apoacutestolos o chamado ldquodepoacutesito da feacuterdquo o catecismo na parte trecircs deste mesmo artigo intitulado ldquoA interpretaccedilatildeo do depoacutesito da feacuterdquo escreve

O ldquoPatrimocircnio Sagradordquo da feacute (ldquodepositum fideirdquo) contido na Sagrada Tradiccedilatildeo e na Sagrada Escritura foi confiado pelos apoacutestolos agrave totalidade da Igreja Apegando-se firmemente ao mesmo o povo santo todo unido a seus Pastores perseveram continuamente na doutrina dos apoacutestolos e na comunhatildeo na fraccedilatildeo do patildeo e nas oraccedilotildees de sorte que na conservaccedilatildeo no exerciacutecio e na profissatildeo da feacute transmitida se crie uma singular unidade de espiacuterito entre os bispos e os fieacuteis (N 35)

O ceticismo na reforma protestante 165

A Igreja Catoacutelica durante seacuteculos foi detentora dessas ldquoverdades absolutasrdquo no que diz respeito agraves questotildees de feacute com a Reforma e com o passar dos anos principalmente nos uacuteltimos seacuteculos com a nossa sociedade globalizada a mesma passou por diversas reformulaccedilotildees ateacute chegarmos ao modelo que hoje vigora mesmo natildeo mudando a hierarquia da Igreja percebe-se que os leigos nos dias de hoje possuem formaccedilatildeo bastante avanccedilada natildeo sendo necessaacuteria total aceitaccedilatildeo daquilo que o clero diz mas haacute uma total compreensatildeo dos dogmas de feacute dos documentos e da Tradiccedilatildeo da Igreja

O texto em questatildeo trabalha com o periacuteodo histoacuterico determinado que eacute o da Reforma Protestante e iniacutecio da modernidade sendo assim nota-se que a Igreja naquela eacutepoca era detentora da ldquoverdaderdquo e que os cristatildeos necessariamente tinham que depositar sua total confianccedila sem ao menos entender e compreender aquilo que estavam ouvindo dos seus ldquopastoresrdquo natildeo havia compreensatildeo por parte dos leigos e sim aceitaccedilatildeo a feacute sem limites

Portanto aparentemente percebe-se aqui uma divergecircncia entre a feacute e o ceticismo Na introduccedilatildeo do artigo intitulado ldquoAlgumas outras palavras sobre ceticismo e cristianismordquo de autoria de Rodrigo Pinto de Brito da Universidade Federal do Sergipe nota-se alguns apontamentos que descrevem claramente esta distinccedilatildeo de conceitos

Nesses caraacutecteres multifacetados se embutem conceitos atribuiccedilotildees ou asserccedilotildees que fazem com que seus campos semacircnticos sejam aparentemente mutuamente excludentes e mesmo radicalmente opostos Por exemplo no caso de ceticismo a duacutevida e a descrenccedila propedecircutica ao ateiacutesmo no caso do cristianismo a feacute e o dogma propedecircuticos ao fanatismo (BRITO 2014)

166 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir desta breve anaacutelise do ceticismo e do

cristianismo compreende-se o motivo do ceticismo ser soacute resgatado no periacuteodo da reforma protestante no iniacutecio da era moderna Na Idade Meacutedia com o auge do catolicismo percebe-se que o proacuteprio ato de questionar os dogmas de feacute natildeo era tolerado quanto mais negar tais ldquoverdadesrdquo nesse sentido muitas pessoas foram agrave fogueira e tiveram condenaccedilotildees baacuterbaras

Alguns estudiosos se detecircm na demonstraccedilatildeo de quem natildeo haacute uma fronteira niacutetida entre ceticismo e cristianismo que essa fronteira eacute somente aparente O meu estudo nesse texto inicial natildeo tem como objetivo investigar tal questatildeo mas tem seu recorte estrito no periacuteodo compreendido como reforma protestante tambeacutem chamada ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo

63 REFORMA PROTESTANTE E O PROBLEMA DO CRITEacuteRIO

Este periacuteodo foi bastante intenso de debates e

discussotildees acerca do criteacuterio de verdade que haacute no catolicismo e depois nas Igrejas criadas a partir da Reforma Protestante tais discussotildees ficaram conhecidas como Reforma Intelectual momento em que antecedeu a modernidade e toda a discussatildeo da teoria do conhecimento e da forma como esse conhecimento acontece Na obra ldquoHistoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo de Richard Popkin no primeiro capiacutetulo intitulado ldquoA crise Intelectual na Reformardquo percebemos que o problema central nesse periacuteodo eacute o criteacuterio de verdade acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso tambeacutem conhecido como ldquoregra de feacuterdquo

Neste sentido Lutero foi o primeiro a criticar publicamente este criteacuterio de verdade da Igreja Catoacutelica principalmente a tradiccedilatildeo e o magisteacuterio do Papa A partir

O ceticismo na reforma protestante 167

disto Lutero desenvolve o seu criteacuterio Assim escreve Popkin

Lutero deu o passo criacutetico que foi negar a regra de feacute da Igreja apresentando um criteacuterio de conhecimento religioso radicalmente diferente Foi neste periacuteodo que ele deixou de ser apenas um reformador atacando os abusos e a corrupccedilatildeo de uma burocracia decadente para tornar-se o liacuteder de uma revolta intelectual que viria a abalar os proacuteprios fundamentos da civilizaccedilatildeo ocidental (POPKIN 2000 p 26)

Os grandes problemas vistos por Lutero na Igreja

Catoacutelica foram a autoridade papal e a Tradiccedilatildeo da Igreja jaacute apresentada no capiacutetulo anterior e que apoacutes esse periacuteodo foi reformulado pela Igreja atraveacutes de diversos documentos e conciacutelios poacutes reforma entre eles estaacute o Conciacutelio Vaticano II que acima de tudo afirmou o conteuacutedo de feacute ou seja os dogmas poreacutem modificou a forma desse conteuacutedo ser anunciado abrindo a Igreja para a evangelizaccedilatildeo fazendo com que todos os leigos conhecessem a Biacuteblia e fossem importantes no processo de evangelizaccedilatildeo e anuacutencio da Palavra de Deus modificando uma das criacuteticas de Lutero

Popkin escreve em seu livro sobre a negaccedilatildeo do Papa por parte de Lutero

Lutero chegou mesmo a negar completamente a autoridade do Papa e dos Conciacutelios mantendo que doutrinas condenadas pelos conciacutelios poderiam ser verdadeiras e que os conciacutelios podem errar jaacute que satildeo compostos apenas por homens (POPKIN 2000 p 26)

A consciecircncia de cada um dos escolhidos jaacute eacute

criteacuterio de verdade jaacute eacute regra de feacute atraveacutes de Iluminaccedilatildeo Divina este foi o criteacuterio de feacute que Lutero desenvolveu e defendeu Popkin escreve assim sobre este novo criteacuterio

168 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nesta declaraccedilatildeo de liberdade cristatilde Lutero estabeleceu seu novo criteacuterio de conhecimento religioso ou seja que aquilo que a consciecircncia eacute compelida a aceitar ao ler as Escrituras eacute verdadeiro (POPKIN 2000 p 27)

Diversas pessoas comeccedilaram a seguir Lutero

apoacutes ele traduzir o livro Sagrado para o alematildeo A resposta dos catoacutelicos a este novo criteacuterio de feacute foi de que nenhum criteacuterio de feacute pode ser compreendido como verdadeiro se este natildeo passar pelo coleacutegio cardinaliacutecio pelos conciacutelios e pela autoridade do Papa

Eis que surge entatildeo outra problemaacutetica desta vez bem mais filosoacutefica que teoloacutegica assim descrita por Popkin

Uma vez que um criteacuterio fundamental foi questionado como se podem decidir quais as possibilidades alternativas a serem aceitas Com base no que podemos defender ou refutar as pretensotildees de Lutero (POPKIN 2000 p 28)

Portanto determinar algum criteacuterio como

verdadeiro se as bases do criteacuterio anterior foram refutadas nesse sentido percebe-se um resgate do ceticismo antigo na religiatildeo e mais tarde este ceticismo resgatado nesse periacuteodo iraacute atingir as demais aacutereas do conhecimento Popkin assim comenta

A caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter consequecircncias extremamente amplas natildeo soacute na teologia mais em todos os domiacutenios intelectuais do ser humano (POPKIN 2000 p 29) O problema desse periacuteodo histoacuterico da Reforma

Protestante tambeacutem pode ser considerado como problema da evidecircncia e do criteacuterio assim Popkin demonstra a problemaacutetica ldquoPara ser capaz de reconhecer a verdadeira feacute era preciso um criteacuterio Mas

O ceticismo na reforma protestante 169

como se poderia reconhecer o verdadeiro criteacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29) Percebe-se que ambos os defensores da Tradiccedilatildeo e os inovadores tentaram resolver o problema da mesma forma atacando o adversaacuterio Os ataques mais comuns que aconteciam segundo Popkin eram

Lutero atacou a autoridade da Igreja mostrando suas inconsistecircncias Os catoacutelicos procuraram mostrar que a consciecircncia de cada um natildeo era confiaacutevel bem como a dificuldade de se discernir o verdadeiro sentido das Escrituras sem a orientaccedilatildeo da Igreja Ambos os lados advertiram sobre a cataacutestrofe ndash intelectual moral e religiosa ndash que ocorreria em consequecircncia de se adotar o criteacuterio do outro (POPKIN 2000 p 29)

Nesse periacuteodo alguns textos do Sexto Empiacuterico

foram trazidos agrave tona e acabaram corroborando na discussatildeo sobre o criteacuterio de verdade como natildeo havia mais criteacuterio aceito o problema ali instaurado era grave pois se perdeu a garantia objetiva restando somente a crenccedila em determinado criteacuterio e ldquoverdaderdquo Popkin reproduz o trecho de Sexto Empiacuterico

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilotildees enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes os forccedilamos a um regresso lsquoad infinitumrsquo (POPKIN 2000 p 28)

A partir do momento em que alguns fragmentos

de Sexto Empiacuterico e de alguns ceacuteticos foram retomados surgiram alguns pensadores que comeccedilaram a usar o

170 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo como postura para defender o catolicismo um desses foi Erasmo de Rotterdam conhecido por sua obra ldquoO elogio da Loucurardquo poreacutem foi na sua obra ldquoDe Libero Arbitriordquo que ele defende uma postura ceacutetica em diversos meios assim afirma Erasmo

os assuntos humanos satildeo tatildeo obscuros e diversos que nada se pode saber com clareza Esta foi a satilde conclusatildeo dos acadecircmicos [os ceacuteticos acadecircmicos] que foram os menos ariscos dentre os filoacutesofos (POPKIN 2000 p 30)

Esta postura ou atitude ceacutetica segundo Erasmo eacute

o que realmente importa e interessa para a salvaccedilatildeo de cada um aceitando os dogmas e as ldquoverdadesrdquo que a Igreja e aqueles que tecircm competecircncia para tal determinam como sendo correto e justo assim escreve Popkin sobre esta postura de Erasmo

Para Erasmo o importante eacute uma forma de piedade cristatilde simples baacutesica o espiacuterito do cristianismo O restante a superestrutura da crenccedila essencial eacute demasiado complexa para o homem julgaacute-la Portanto eacute mais faacutecil permanecer em uma atitude ceacutetica e aceitar a antiquiacutessima sabedoria da Igreja nestes assuntos do que tentar entender e julgar por si proacuteprio (POPKIN 2000 p 31)

Segundo Erasmo toda a estrutura escolaacutestica

instaurada na Igreja com grandes bibliotecas e grandes discussotildees teoloacutegicas entre diversas correntes com grandes teoacutelogos da Igreja eram inuacuteteis pois o que realmente importa eacute a atitude cristatilde de modo geral seguir e realizar os ensinamentos de Jesus Cristo ou seja ldquoTodo o mecanismo dessas mentes escolaacutesticas tinha perdido de vista o ponto essencial a simples atitude cristatilderdquo (POPKIN 2000 p 32) Popkin continua e comenta que o cristatildeo ldquotolordquo para Erasmo eacute mais saacutebio do que um teoacutelogo de Paris

O ceticismo na reforma protestante 171

O cristatildeo tolo estaria em melhor situaccedilatildeo do que o teoacutelogo pretensioso de Paris enredado em um labirinto criado por ele mesmo E assim se algueacutem permanecesse um cristatildeo tolo viveria uma autecircntica via cristatilde e poderia evitar todo o mundo da teologia aceitando sem tentar compreendecirc-las as posiccedilotildees religiosas promulgadas pela igreja (POPKIN 2000 p 32)

Esta teoria de que o cristatildeo tolo estaacute em uma

melhor condiccedilatildeo pois este viveria uma autecircntica vida de feacute cristatilde foi fortemente combatida por Lutero para ele a feacute natildeo deve simplesmente ser aceitaccedilatildeo mas fruto de sua proacutepria consciecircncia por isso ele defendia a universalizaccedilatildeo da Biacuteblia e que toda a consciecircncia tem a capacidade atraveacutes da Iluminaccedilatildeo do Espiacuterito Santo de acolher meditar e saborear a Palavra de Deus para Lutero ldquoEacute como se algueacutem carregasse detritos e excrementos em vasos de ouro e pratardquo (POPKIN 2000 p 32) E ainda Lutero afirma ldquoUm cristatildeo deve [] ter certeza do que afirma ou entatildeo natildeo eacute um cristatildeordquo (POPKIN 2000 p 32)

Portanto para Lutero estes conteuacutedos de feacute satildeo importantes na vida do homem e natildeo podem simplesmente serem aceitos mas devem ser certos e irrefutaacuteveis atraveacutes da experiecircncia de feacute e da certeza oriunda da consciecircncia de cada um Segundo Lutero devemos estar absolutamente certos de sua verdade assim sendo o cristianismo eacute a absoluta negaccedilatildeo do ceticismo

Para o fundador do luteranismo existe um conjunto de verdades de feacute que como o sol natildeo se escurecem apenas porque eu posso fechar os meus olhos e recusar-me a vecirc-lo A analogia mostra que haacute diversas verdades que iluminam poreacutem existem pessoas que querem fechar os olhos a estas verdades ou porque satildeo ceacuteticas ou porque insistem em acreditar na vulneraacutevel Tradiccedilatildeo da Igreja Catoacutelica e natildeo olham

172 Eacutetica e filosofia poliacutetica

para dentro de si em suas proacuteprias consciecircncias ainda para Lutero esta tentativa de Erasmo de uma atitude ceacutetica natildeo passa de um caminho arriscado e com inuacutemeras possibilidades de erro Popkin comenta a resposta de Lutero a Erasmo

E portanto Lutero respondeu a Erasmo que sua perspectiva ceacutetica na verdade natildeo levava agrave crenccedila em Deus mas era uma maneira de escarnecermos Dele Erasmo podia se quisesse aferrar-se a seu ceticismo ateacute ser chamado por Cristo Mas advertiu Lutero ldquoO Espiacuterito Santo natildeo eacute ceacuteticordquo e natildeo inscreveu em nossos coraccedilotildees opiniotildees incertas mas sim afirmaccedilotildees de maior firmezardquo (POPKIN 2000 p 33)

A disputa entre Lutero um reformista e Erasmo

um catoacutelico natildeo muito praticante estava envolta mais uma vez na questatildeo do criteacuterio de verdade onde o primeiro insistia na certeza de que cada um poderia ler as Escrituras como sendo criteacuterio e natildeo delegar isto a outros A verdade se impotildee a noacutes ldquoe o verdadeiro conhecimento religioso natildeo conteacutem contradiccedilotildeesrdquo (POPKIN 2000 p 34) O segundo tinha uma atitude cautelosa de aceitar as decisotildees da Igreja pois sabia ser incapaz de distinguir o verdadeiro do falso Percebe-se que ambos possuiacuteam como regra de feacute ou criteacuterio de verdade algo subjetivo sendo difiacutecil objetivar estes criteacuterios Portanto se tal criteacuterio natildeo pode ser objetivado eles natildeo podem ser considerados criteacuterios de verdade

Outro grande expoente nesse periacuteodo histoacuterico foi Joatildeo Calvino disciacutepulo de Lutero liacuteder dos calvinistas uma corrente dos seguidores de Lutero que tem como regra de feacute a Biacuteblia livro sagrado aleacutem disso a iluminaccedilatildeo Divina Popkin comenta sobre Calvino

Inicialmente Calvino argumentou que a Igreja natildeo pode ser a regra das Escrituras uma vez que a autoridade da Igreja depende ela proacutepria de alguns versiacuteculos das

O ceticismo na reforma protestante 173

Escrituras Portanto as Escrituras satildeo a fonte baacutesica das verdades da religiatildeo (POPKIN 2000 p 35)

Uma grande questatildeo que surgiu a partir da teoria

de Calvino eacute o que nos garante que as Escrituras satildeo Palavra de Deus e como interpretaacute-las de maneira correta Assim nos explica Popkin sobre a teoria de Calvino

Esta persuasatildeo interior natildeo soacute nos assegura que as Escrituras contecircm a Palavra de Deus mas nos compele a ler as Escrituras atentamente para compreender o seu sentido e acreditar nelas (POPKIN 2000 p 35)

Os seguidores de Calvino se intitularam como os

eleitos pessoas escolhidas iluminadas por Deus e atraveacutes desta persuasatildeo interior elas interpretam as Escrituras e satildeo como pastores para aqueles que os seguem (ovelhas) Esta iluminaccedilatildeo dos eleitos acontece atraveacutes do Espiacuterito Santo Popkin escreve sobre a Iluminaccedilatildeo Divina

Haacute portanto uma dupla iluminaccedilatildeo para os eleitos dando-lhes primeiro a regra de feacute as Escrituras e em seguida lugar agrave regra das Escrituras ou seja os meios para discernir sua verdade e crer em sua mensagem Esta dupla iluminaccedilatildeo da regra da feacute e sua aplicaccedilatildeo satildeo capazes de nos dar certeza total (POPKIN 2000 p 35)

Portanto para os primeiros calvinistas a regra de

feacute era a persuasatildeo interior a questatildeo levantada eacute como podemos decidir se esta persuasatildeo eacute autecircntica e natildeo apenas uma certeza subjetiva que pode facilmente ser ilusoacuteria A partir dessa questatildeo percebemos que temos um problema um ciacuterculo de problemas infinitos assim escreve Popkin

174 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o criteacuterio do conhecimento religioso eacute a persuasatildeo interior a garantia da autenticidade da persuasatildeo interior eacute sua origem divina e temos a garantia dela pela persuasatildeo interior (POPKIN 2000 p 37)

Ou seja natildeo podemos considerar a persuasatildeo

interior como regra de feacute ou criteacuterio de verdade pois tambeacutem eacute subjetiva e nunca objetiva

Outro expoente que defendeu uma atitude ceacutetica no que diz respeito agrave feacute foi Sebastiatildeo Castellio de Basileacuteia protestante e que foi o uacutenico a defender Servetus Servetus foi condenado agrave morte como herege por Calvino e seus seguidores Servetus era convencido da persuasatildeo interior de que natildeo haacute base nas escrituras para a doutrina da santiacutessima Trindade convencido portanto de que esta doutrina era falsa

Popkin explica sobre a metodologia usada por Castellio ldquoAtitude moderada e ceacutetica onde ningueacutem pode estar tatildeo certo da verdade em questotildees religiosas de modo que se justifique queimar algueacutem por issordquo (POPKIN 2000 p 38) Ele escreveu uma obra mas natildeo publicou onde respondeu aos calvinistas intitulada ldquoDe Arte Dubitandirdquo uma abordagem cientiacutefica liberal e cautelosa para os problemas intelectuais em contraste com o dogmatismo de seus opositores calvinistas

Podemos entatildeo dizer que dentre estes expoentes ceacuteticos Erasmo eacute bem mais ceacutetico que Castellio pois este se questiona Como duvidar do que eacute certo como Deus sua Bondade Mas como acreditar no que eacute duvidoso como o argumento teleoloacutegico das Escrituras

O ceticismo parcial levantado por Castellio representa outra faceta do problema do conhecimento levantado pelo renascimento se eacute necessaacuterio encontrar uma regra de feacute um criteacuterio para se distinguir a feacute verdadeira da falsa como conseguirmos isto Ele abandona uma busca da certeza na feacute por uma busca razoaacutevel influenciando as formas mais liberais do protestantismo

O ceticismo na reforma protestante 175

64 RELACcedilAtildeO DO CETICISMO COM O FIDEIacuteSMO POSSIacuteVEL LEITURA DO CRITEacuteRIO DE VERDADE

Ambos catoacutelicos e protestantes natildeo possuem a

regra de feacute ou o criteacuterio de verdade pois para algo ser criteacuterio de verdade precisa ser objetivado e aquilo que concerne agrave feacute eacute subjetivo e pessoal natildeo pode ser uma verdade epistemoloacutegica Neste ponto faz-se necessaacuterio abordar mais profundamente dois conceitos o ceticismo e o fideiacutesmo para chegarmos a uma possiacutevel leitura deste criteacuterio de verdade na religiatildeo

Para tanto precisamos compreender o papel do ceacutetico nas tradiccedilotildees antigas sendo elas pirrocircnica e acadecircmica Popkin demostra o papel do ceacutetico quanto agraves crenccedilas

O ceacutetico seja na tradiccedilatildeo pirrocircnica seja na acadecircmica desenvolvia argumentos para mostrar ou sugerir que as evidecircncias razotildees ou provas utilizadas como fundamentos de nossos vaacuterios tipos de crenccedilas natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterios (POPKIN 2000 p 23)

Em momento algum eacute determinado que o ceacutetico e

o crente satildeo classificaccedilotildees opostas e excludentes uma da outra pelo contraacuterio o ceacutetico tem como papel desenvolver argumentos que demonstrem que os vaacuterios tipos de crenccedilas tambeacutem satildeo faliacuteveis e natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterias no ponto de vista objetivo pois natildeo haacute verdades absolutas e natildeo haacute criteacuterios universais e objetivos Em outras palavras o ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias de uma crenccedila mas segundo Popkin ldquoo ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo (POPKIN 2000 p 24)

Portanto o ceacutetico pode ser fideiacutesta sem problema algum pois uma coisa eacute duvidar questionar evidecircncias racionais objetivas e criteacuterios de verdade que tendem a ser universais e absolutos e outra coisa eacute ser crente de

176 Eacutetica e filosofia poliacutetica

alguma crenccedila sendo ela religiosa ou natildeo pois o crer estaacute no campo subjetivo e natildeo objetivo

A partir desta leitura de que o crente e o ceacutetico neste sentido podem andar juntos comeccedila-se a compreender Erasmo Castellio e ateacute mesmo Montaigne o uacuteltimo foi o expoente principal que trouxe agrave tona o ceticismo antigo para a realidade da reforma intelectual e levou tais duacutevidas para as demais aacutereas do conhecimento

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Portanto esta postura ceacutetica de Montaigne tem

suas bases nesse periacuteodo histoacuterico em que ele estaacute vivenciando com a reforma protestante as questotildees acerca do problema do criteacuterio e o iniacutecio do renascimento eacute sem duacutevida um momento muito frutuoso onde inuacutemeras questotildees satildeo levantadas e ocorre de fato uma revoluccedilatildeo no pensamento

Percebe-se no presente trabalho atraveacutes desta leitura histoacuterica e dos problemas levantados por diversos autores como se tentou objetivar algo que eacute subjetivo como se tentou criar criteacuterios de verdade acerca da feacute fazendo com que a verdade se restringisse a sua ldquoverdade religiosardquo o que clareou todo este discurso usado foi o ceticismo que alguns autores resgataram dos antigos

De modo simples esse eacute o iniacutecio da minha pesquisa acerca desse periacuteodo e de questotildees que cercaram este momento importante na transformaccedilatildeo cultural histoacuterica e intelectual do ocidente

REFEREcircNCIAS COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo Eduardo Brandatildeo ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

O ceticismo na reforma protestante 177

JOAtildeO PAULO PP II Catecismo da Igreja Catoacutelica 11 de outubro de 1992 Disponiacutevel emhttpwwwvaticanvaarchivecathechism_poindex_newprima-pagina-cic_pohtml POPKIN Richard H Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza [1923] Traduzido por Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

178 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VII =

VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMOS

ENSAIOS DE MONTAIGNE

Andre Scoralick Eacute bastante banal dizer que a mateacuteria dos Ensaios1

pertence ao campo da moral Basta percorrer os tiacutetulos dos capiacutetulos para encontrar paixotildees viacutecios virtudes questotildees referentes agrave accedilatildeo e ao agente enfim toda uma miriacuteade de problemas referentes agrave moralidade Menos banal no entanto eacute indicar o sentido da reflexatildeo moral que Montaigne conduz em seus Ensaios Natildeo eacute evidente por exemplo que as questotildees eacuteticas natildeo sejam meros objetos de reflexatildeo de uma especulaccedilatildeo desinteressada de um tratamento puramente teoacuterico natildeo eacute evidente que elas possam ter uma finalidade eminentemente praacutetica E no entanto eacute o que o proacuteprio Montaigne sugere em uma seacuterie de passagens do seu livro dentre as quais se encontra aquela do ensaio Da educaccedilatildeo das crianccedilas em que ele aponta as liccedilotildees (morais sobretudo) que o menino deve seguir

Doutorado em Filosofia (2013) pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP instituiccedilatildeo na qual adquiriu o tiacutetulo de Mestre em Filosofia (2008) Bacharel em Filosofia (2002) 1 Utilizaremos aqui a ediccedilatildeo Villey-Saulnier (Les Essais Ed P Villey reeditada por V L Saulnier Paris PUF 1999) que traduzimos livremente no corpo do texto acrescentando o texto francecircs nas notas de rodapeacute (indicando em algarismos romanos o livro e em araacutebicos o capiacutetulo dos Ensaios) Nas citaccedilotildees do corpo do texto indicaremos a paacutegina da traduccedilatildeo para o portuguecircs feita por Rosemary Costek (Satildeo Paulo Martins Fontes 2001) cujas soluccedilotildees por vezes adotamos Nas citaccedilotildees em francecircs a paginaccedilatildeo eacute a da ediccedilatildeo Villey-Saulnier

180 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Eis aqui minhas liccedilotildees Aproveitou-as melhor quem as executa do que quem as sabe A Deus natildeo agrada diz algueacutem em Platatildeo que filosofar seja aprender muitas coisas e tratar das artes () Ele [o aluno] natildeo tanto diraacute sua liccedilatildeo como a executaraacute (I 26 pps 250-251 grifos nossos)2

Da mesma forma natildeo eacute nada evidente a

consequecircncia desta maneira de ver as coisas a saber que os Ensaios tenham uma dimensatildeo normativa para aleacutem da dimensatildeo descritiva que a Nota ao Leitor e o ensaio Do arrependimento parecem indicar ldquosou eu mesmo a mateacuteria do meu livrordquo (I Nota ao leitor p 03) ldquoos outros formam o homem eu o relatordquo (III 2 p 27)3 Segundo esta maneira de ver as coisas (a nossa maneira) tudo se passa como se Montaigne em seus Ensaios natildeo se limitasse ao autorretrato nem fizesse apenas como um dia quis Hugo Friedrich4 uma ldquociecircncia moralrdquo espeacutecie de precursora da antropologia e da psicologia modernas Tudo se passa como se nesta obra algo de normativo se apresentasse No presente texto procuraremos abordar esta questatildeo a saber em que medida eacute possiacutevel encontrar dispersos pelos Ensaios (e sobretudo nos uacuteltimos) os elementos de uma moral praacutetica com propoacutesito normativo Trata-se de resgatar para aleacutem da criacutetica montaigniana da perfeita indiferenccedila do saacutebio estoacuteico (paradigma eacutetico que herdado do periacuteodo heleniacutestico ainda orientava as ideias morais do renascimento tardio) a defesa igualmente empreendida pelo ensaiacutesta de um outro modelo moral a

2 ldquoVoicy mes leccedilons Celuy-lagrave y a mieux proffiteacute qui les fait que qui les sccedilait () Jagrave agrave Dieu ne plaise dit quelquun en Platon que philosopher ce soit apprendre plusieurs choses et traicter les arts (hellip) Il ne dira pas tant sa leccedilon comme il la ferardquo (I 26 pps 167-168) 3 ldquoje suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo (I Note au lecteur p 03) ldquoles autres forment lhomme je le reciterdquo (III 2 p 804) 4 Friedrich Hugo Montaigne (trad Robert Rovini) Paris Gallimard

1992 p 13

Viver como Soacutecrates 181

conduta ordenada ideal moral ao alcance do homem comum mediacuteocre Para iniciar a busca desta moral praacutetica tomaremos como fio condutor a leitura de algumas passagens de um ensaio em particular o deacutecimo segundo do terceiro livro intitulado Da fisionomia acrescentando quando necessaacuterio a anaacutelise de trechos de outros capiacutetulos dos Ensaios

Em Da fisionomia Montaigne opotildee duas formas de conduta aquela segundo a ciecircncia e a conduta conforme agrave natureza No horizonte desta empresa estaacute nada mais nada menos do que a vida boa possiacutevel a saber a tranquilidade da alma erguida ndash muitos ensaios o testemunham ndash como referecircncia do pensamento moral do ensaiacutesta Em Da fisionomia Montaigne insiste em afirmar que o uacutenico caminho para a serenidade eacute a conduta conforme a natureza e que aquela segundo a ciecircncia leva ao oposto do que ela promete agrave perturbaccedilatildeo Percorramos entatildeo a criacutetica de Montaigne agrave conduta segundo a ciecircncia para finalmente chegarmos ao percurso proposto pelo autor Teremos de nos perguntar entatildeo o que eacute esta lsquonaturezarsquo que o ensaiacutesta reivindica e qual eacute exatamente o seu caminho

Dissemos que no horizonte desta empresa encontra-se a vida boa possiacutevel isto eacute a tranquilidade da alma De que maneira as diversas tradiccedilotildees do pensamento ocidental ateacute o seacuteculo XVI pretenderam atingi-la Ora a partir de diferentes estrateacutegias de conhecimento e controle das afecccedilotildees da alma quer dizer de moderaccedilatildeo ou contenccedilatildeo das paixotildees (estados de perturbaccedilatildeo da alma que se manifestam na busca das coisas costumeiramente consideradas bens ndash cupidez ambiccedilatildeo voluacutepia ndash ou na aversatildeo pelas coisas consideradas males ndash medo tristeza) Dentre essas diferentes estrateacutegias uma se destaca aos olhos de Montaigne que a toma como a estrateacutegia por excelecircncia da ldquociecircnciardquo isto eacute das doutrinas dogmaacuteticas legadas pelos filoacutesofos do passado dentre as quais se destaca o

182 Eacutetica e filosofia poliacutetica

estoicismo recuperado pelos neo-estoicos em voga na Franccedila do seacuteculo XVI (Justus Lipsius e Guillaume Du Vair sobretudo) Qual seria essa estrateacutegia A meditatio mortis dos estoicismos meacutedio e imperial sobretudo de Ciacutecero e Secircneca

Segundo os estoicos a causa da perturbaccedilatildeo da alma eacute um erro de juiacutezo considerar como bens coisas que em si mesmas satildeo indiferentes5 (a riqueza a honra a sauacutede etc) Ao julgaacute-las como bens (e seus opostos como males) o indiviacuteduo as toma como fins uacuteltimos (teacuteloi) de suas accedilotildees e passa a aspiraacute-las e a direcionar seus esforccedilos para alcanccedilaacute-las e mantecirc-las Daiacute seu sofrimento quando natildeo as alcanccedila ou as perde (quando natildeo estava previsto pela Providecircncia Divina que as atingisse ou as mantivesse) A uacutenica saiacuteda para este esquema perverso das paixotildees eacute a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem6 isto eacute a compreensatildeo de que o uacutenico e verdadeiro Bem (uacutenico fim que deve ser aspirado e buscado) eacute a Harmonia Universal que depende da realizaccedilatildeo da nossa natureza individual (isto eacute do cumprimento do nosso destino7 pessoal) Conformar a proacutepria vontade aos comandos da Razatildeo ou desiacutegnios da Natureza isto eacute agrave Vontade de Deus aceitar tudo o que ocorre consigo (ou mais do que isso desejaacute-lo buscaacute-lo) eis a fonte da tranquilidade da alma

Ocorre que o indiviacuteduo de sua perspectiva finita natildeo conhece os planos de Deus Ele natildeo sabe se estaacute nos desiacutegnios do Cosmos que vaacute se casar que siga uma carreira poliacutetica que tenha ou natildeo filhos Como entatildeo deve agir O que deve escolher buscar Ora dizem os estoicos ele deve prosseguir escolhendo o que sua educaccedilatildeo o ensinou a buscar (o que eacute conveniente o que os deveres recomendam a sauacutede a honra o

5 Para a doutrina da indiferenccedila dos bens e dos males segundo a opiniatildeo comum cf Secircneca Cartas a Luciacutelio 92 e 118 6 Idem cartas 16 e 41 7 Idem carta 96

Viver como Soacutecrates 183

conhecimento etc) mas sem buscar essas coisas como se fossem bens isto eacute sem tomaacute-las como os fins uacuteltimos de suas accedilotildees Ele deve consideraacute-las apenas como preferiacuteveis isto eacute fins necessaacuterios para que continue a agir mas que natildeo devem ser seus fins uacuteltimos (teacuteloi) e sim apenas fins intermediaacuterios (skoacutepoi) Em cada uma de suas escolhas seu fim uacuteltimo (o verdadeiro objeto de suas aspiraccedilotildees) deve ser aquilo que a Razatildeo e a Natureza (a Vontade de Deus) determinam que ocorra (o Bem) Assim se ele natildeo alcanccedilar o que buscava (o fim intermediaacuterio) natildeo se decepcionaraacute pois natildeo era isso o que ele efetivamente buscava e sim o que Deus queria para ele (o que de qualquer forma realizou-se) Da mesma forma se perder algo que havia alcanccedilado este homem natildeo sofre pois qualquer coisa que advenha ele sabe que eacute conforme agrave Razatildeo ou a Vontade de Deus sabe que tudo colabora para seu bem individual (a realizaccedilatildeo de sua natureza particular) e para o Bem Universal uacutenico fim que ele aspira Este homem que os estoicos chamam de saacutebio permanece tranquilo num estado de perfeita indiferenccedila8 diante de qualquer coisa que lhe aconteccedila Mas como ele adquiriu a ciecircncia do Bem Ora ingressando no caminho da filosofia isto eacute do exerciacutecio da dialeacutetica ndash a praacutetica repetida da distinccedilatildeo dos bens e dos males De tanto repetir este exerciacutecio e julgar o que eacute correto fazer em cada caso o aspirante agrave sabedoria deve dar uma espeacutecie de ldquosalto intelectualrdquo no qual subitamente eacute levado agrave apreensatildeo do Bem

Ao longo da histoacuteria do estoicismo no entanto outros ldquomeacutetodosrdquo com vistas ao desapego em relaccedilatildeo aos bens segundo a opiniatildeo foram desenvolvidos Eacute o caso da meditaccedilatildeo da vaidade e da contingecircncia9 dessas

8 Cf Secircneca De constantia sapientis 10 4 9 Falamos a propoacutesito de laquo contingecircncia raquo porque a Providecircncia Divina pode ser representada do ponto de vista do agente como a Fortuna jaacute que ele perceberia apenas uma forccedila determinando o resultado de

184 Eacutetica e filosofia poliacutetica

coisas laquomeacutetodoraquo desenvolvido pelos estoicismos meacutedio e imperial Esta meditaccedilatildeo ndash espeacutecie de projeccedilatildeo permanente da possibilidade de perdecirc-las a todo momento ndash deve (ao menos eacute o que se espera) ter como efeito um certo desprendimento em relaccedilatildeo aos laquofalsos bensraquo numa palavra a indiferenccedila ou impassibilidade

Se pudeacutessemos ateacute o fundo da alma nos penetrar desta verdade e representar para noacutes mesmos que todos os males que acontecem com os outros todos os dias e em nuacutemero tatildeo grande tem o caminho livre para chegar a noacutes estariacuteamos armados antes de sermos atacados10

Todavia haacute uma estrateacutegia pretensamente ainda

mais eficaz que conduziria ainda mais rapidamente a tal resultado Na medida em que nas representaccedilotildees da opiniatildeo comum a morte aparece como o pior dos males (ou a vida como o maior dos bens) bastaria que a meditaccedilatildeo se aplicasse a este objeto para que como por um efeito de cascata todo o resto se tornasse indiferente Assim a meditatio mortis adquire uma centralidade dentre as estrateacutegias que buscam a impassibilidade ela seraacute a estrateacutegia por excelecircncia do estoicismo imperial (ao menos o de Secircneca) com vistas agrave tranquilidade da alma Trata-se de meditar constantemente sobre a vaidade o aspecto efecircmero e a contingecircncia da vida de projetar a todo momento e para o proacuteximo instante a proacutepria morte

suas accedilotildees cujas causas lhe escapam De seu ponto de vista limitado ele natildeo sabe se esta forccedila eacute o acaso ou a Vontade de Deus 10 ldquoHoc si quis in medullas demiserit et omnia aliena mala quorum ingenscotidie copia est sic aspexerit tamquam liberum illis et ad se iter sit multo ante se armabit quam petatur Seroanimus ad periculorum patientiam post pericula instruiturrdquo (Secircneca De tranquilitate animi 11

8)

Viver como Soacutecrates 185

Vivemos mal quando natildeo sabemos morrer bem [hellip] aquele que sabe que no momento mesmo em que foi concebido sua sentenccedila foi proclamada saberaacute viver segundo a lei da natureza e encontraraacute assim a mesma forccedila de alma para opocircr aos eventos nenhum dos quais jamais lhe seraacute imprevisto11

Ora Montaigne natildeo poderia deixar de zombar

deste lsquoprojetorsquo elaborado pelos estoicos isto eacute de sua concepccedilatildeo de tranquilidade como impassibilidade (apathia) e do caminho proposto para alcanccedilaacute-la (a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem) Isto porque diz o ensaiacutesta nem um nem outro (nem a ciecircncia nem a impassibilidade) estatildeo ao alcance dos homens12 em sua maioria ordinaacuterios comuns mediacuteocres (intelectualmente e afetivamente fracos dotados de uma fraacutegil capacidade de julgar e de uma vontade fraca) Em numerosas passagens Montaigne aponta a fragilidade constitutiva do juiacutezo dos homens (sequer eacute necessaacuterio ir agrave Apologia de Raimond Sebond para mostraacute-lo)

11 ldquoMale uiuet quisquis nesciet bene mori () qui sciet hoc sibi cum conciperetur statim condictum uiuet ad formulam et simul illud quoque eodem animi robore praestabit ne quid ex iis quae eueniunt subitum sitrdquo (Idem 11 4-6) Cf tambeacutem Cartas a Luciacutelio 91 e 101 12 Montaigne tensiona explicitamente o paradigma proposto pelos estoacuteicos (o saacutebio) e certa concepccedilatildeo do homem Ele acusa a inutilidade do modelo agrave luz da impossibilidade da maioria dos homens realizarem-no (eacute um cume sobre o qual ldquonenhum ser humano pode se sentarrdquo) Outro termo ao qual ele recorre eacute o ldquonoacutesrdquo em que ele proacuteprio se inclui e que designa a coletividade humana (ldquoessas regras que excedem nossos costumes e nossa forccedilardquo) Entendemos que estas noccedilotildees natildeo implicam nenhuma referecircncia a uma natureza humana ou a uma universalidade Quando Montaigne fala dos lsquohomensrsquo ou deste lsquonoacutesrsquo (e que frequentemente aparece como lsquonoacutes homens fracosrsquo) pensamos tratar-se de uma noccedilatildeo obtida por experiecircncia que permanece portanto como generalidade frouxa aberta a exceccedilotildees natildeo sendo uma universalidade formulada teoricamente Da mesma forma entendemos que Montaigne se refere agraves inclinaccedilotildees humanas como fenocircmenos observaacuteveis sem poder dizer se eles exprimem uma lsquonaturezarsquo oculta

186 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quem se lembra de tantas e tantas vezes ter se descontentado de seu proacuteprio juiacutezo natildeo eacute um tolo por jamais desconfiar dele Quando me vejo convencido de uma opiniatildeo falsa pela razatildeo de outrem natildeo tanto aprendo o que ele me disse de novo e esta ignoracircncia particular (seria um ganho pequeno) como em geral aprendo minha debilidade e a traiccedilatildeo de meu entendimento (III 13 p 436)13

Para Montaigne o lsquosalto intelectualrsquo de apreensatildeo

do Bem imaginado pelos estoicos eacute irrealizaacutevel O mesmo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave perfeita indiferenccedila do saacutebio Ela supotildee um poder de neutralizaccedilatildeo ou de atenuaccedilatildeo dos estados afetivos (movimentos da alma) que natildeo estaacute ao alcance da maioria dos homens ldquonatildeo sigamos esses exemplos natildeo os alcanccedilariacuteamosrdquo (III 10 347)14 Uma vez que o indiviacuteduo tenha sido tocado pelos objetos que nele despertam paixotildees nem seu juiacutezo nem sua vontade seratildeo capazes de refreaacute-lo15 - o proacuteprio

13 ldquoQui se souvient de sestre tant et tant de fois mesconteacute de son propre jugement est-il pas un sot de nen entrer pour jamais en deffiance Quand je me trouve convaincu par la raison dautruy dune opinion fauce je napprens pas tant ce quil ma dict de nouveau et cette ignorance particuliere (ce seroit peu dacquest) comme en general japprens ma debiliteacute et la trahison de mon entendementrdquo (III 13 1074) 14 ldquoNataquons pas ces exemples nous ny arriverions pointrdquo (III 10 1015) 15 Nem o juiacutezo nem a forccedila da vontade Mais do que apenas aos estoicos Montaigne portanto opotildee-se agraves duas tradiccedilotildees que desde os gregos debatiam acerca dos meios de fazer frente agraves paixotildees os intelectualistas que fundam a virtude no conhecimento do bem (o jovem Platatildeo os estoicos) e os adeptos da enkrateia isto eacute da forccedila de caraacuteter conquistada pelo exerciacutecio (Xenofonte os ciacutenicos) O Platatildeo dos diaacutelogos de maturidade (a partir da Repuacuteblica) e Aristoacuteteles

entenderatildeo que ambos o conhecimento do bem e a forccedila de caraacuteter satildeo necessaacuterios agrave virtude No opuacutesculo De constantia sapientis Secircneca daacute o nome de patientia agrave forccedila de caraacuteter diante das paixotildees e de constantia agrave ausecircncia de perturbaccedilatildeo fundada no juiacutezo reto

entendendo que a segunda virtude eacute superior agrave primeira

Viver como Soacutecrates 187

Montaigne se apresenta como exemplo de fraqueza da vontade

aqueles que devem cuidar de mim poderiam com facilidade subtrair de minha vista o que pensam ser-me nocivo pois em tais coisas jamais desejo nem tenho o que dizer sobre o que eu natildeo vejo mas daquelas que se me apresentam eles perdem seu tempo em pregar-me a abstinecircncia (III 13 p 478)16

Entre o homem comum e o paradigma do saacutebio

proposto pelos estoicos haacute uma distacircncia intransponiacutevel - o que faz deste uacuteltimo aos olhos de Montaigne um modelo inuacutetil

de que servem esses cumes elevados da filosofia sobre os quais nenhum ser humano pode se sentar e essas regras que excedem os nossos costumes e a nossa forccedila (III 9 p 307)17

Num contexto semelhante Montaigne vai ainda

mais longe na criacutetica acusando de ambiccedilatildeo os porta-vozes desta moral

Odeio esta sapiecircncia desumana que quer nos tornar indiferentes e inimigos da cultura do corpo Considero tomar a contragosto as voluacutepias naturais uma injusticcedila semelhante a gostar delas demais [] Haacute indiviacuteduos que com uma estupidez selvagem como diz Aristoacuteteles satildeo-lhes indiferentes [aos prazeres do corpo] Conheccedilo alguns que o satildeo por ambiccedilatildeo []

16 ldquoceux qui doivent avoir soing de moy pourroyent agrave bon marcheacute me desrober ce quils pensent mestre nuisible car en telles choses je ne desire jamais ny ne trouve agrave dire ce que je ne vois pas mais aussi de celles qui se presentent ils perdent leur temps de men prescher labstinencerdquo (III 13 1101) 17 ldquoA quoy faire ces poinctes esleveacutees de la philosophie sur lesquelles aucun estre humain ne se peut rassoir et ces regles qui excedent nostre usage et nostre forcerdquo (III 9 989)

188 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo (III 13 p 485-487 grifos nossos)18

Aqui Montaigne remete a uma longa tradiccedilatildeo cujos rastros se encontram na poesia grega (de Homero agraves trageacutedias) em Horaacutecio e em certos autores cristatildeos O ponto em comum entre essas diferentes fontes eacute a liccedilatildeo moral derivada da ecircnfase nos limites humanos particularmente contrastados pelos poetas gregos e autores cristatildeos19 com a perfeiccedilatildeo e a potecircncia divinas para marcar aquilo que o homem natildeo pode ambicionar Montaigne se insere nesta longa tradiccedilatildeo quando acusa na moral praacutetica dos estoicos algo como a aspiraccedilatildeo a uma condiccedilatildeo divina visto que a ciecircncia e a impassibilidade seriam atributos apenas de Deus

eles querem se colocar fora de si mesmos e escapar do homem Eacute loucura em vez de se transformarem em anjos transformam-se em bestas em vez de se elevarem precipitam-se (III 13 p 500)20

Montaigne adverte os que propotildeem esta moral

das consequecircncias nefastas de sua hyacutebris Natildeo se trata apenas de uma vatilde pretensatildeo de uma busca inuacutetil mas de um projeto nocivo Isto porque contrariamente ao que ela promete esta moral soacute produz a perturbaccedilatildeo a infelicidade Neste ponto a criacutetica endereccedila-se diretamente agrave meditatio mortis A meditaccedilatildeo permanente

18 [Je] hay cette inhumaine sapience qui nous veut rendre desdaigneux et ennemis de la culture du corps Jestime pareille injustice prendre agrave contre coeur les voluptez naturelles que de les prendre trop agrave coeur (hellip) Il en est qui dune farouche stupiditeacute comme dict Aristote en sont desgoutez Jen cognoy qui par ambition le font (hellip) Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps (III 13 1106-1107) 19 Cf tambeacutem Plutarco LE de Delfos in Dialogues Pythiques Paris Flammarion 2006 pps 112-115 (392a-393c) 20 ldquoIls veulent se mettre hors deux et eschapper agrave lhomme Cest folie au lieu de se transformer en anges ils se transforment en bestes au lieu de se hausser ils sabattentrdquo (III 13 p 1115)

Viver como Soacutecrates 189

da proacutepria morte projeccedilatildeo constante de um acontecimento fatal para o instante seguinte natildeo poderia ter outro efeito que pocircr o indiviacuteduo num estado de permanente terror A indignaccedilatildeo montaigniana com semelhante ldquomeacutetodordquo vai ao limite do escaacuternio

eacute certo que para a maior parte [dos homens] a preparaccedilatildeo para a morte provocou mais tormento do que o fez seu sofrimento [hellip] Natildeo somente o golpe mas o vento e o peido nos atingem (III 12 p 399-400)21

A meditatio acrescenta ao sofrimento sensiacutevel

real inevitaacutevel (a dor a morte) ou simplesmente possiacutevel (a pobreza a desonra) o medo ndash sofrimento criado pela imaginaccedilatildeo Ela antecipa prolonga no tempo e aprofunda (pois eacute recomendada a projeccedilatildeo dos mais terriacuteveis males uma vez que se trata de preparar-se para sua eventualidade) um sofrimento que soacute afetaria o sujeito no futuro e de modo mais leve ou mais breve no momento em que se apresentasse aos seus sentidos

Lanccedilai-vos agrave experiecircncia dos males que vos podem ocorrer sobretudo dos mais extremos testai-vos aiacute dizem eles ganhai seguranccedila [hellip] eacute preciso que nosso espiacuterito os estenda e alongue e que antecipadamente os incorpore em si e se entretenha com eles como se natildeo pesassem razoavelmente para os nossos sentidos [hellip] [ora] eacute febre submeter-se desde agora ao chicote porque pode ocorrer da fortuna vos fazer sofrer isso um dia (Ibidem)22

21 ldquoIl est certain quagrave la plus part la preparation agrave la mort a donneacute plus de tourment que na faict la souffrance (hellip) Non seulement le coup mais le vent et le pet nous frapperdquo (III 12 1050-1051) 22 ldquoJettez vous en lexperience des maux qui vous peuvent arriver nommeacutement des plus extremes esprouvez vous lagrave disent-ils asseurez vous lagrave (hellip) il faut que nostre esprit les estende et alonge et quavant la main il les incorpore en soy et sen entretienne comme sils ne poisoient pas raisonnablement agrave nos sens (hellip) [Or] cest fieacutevre aller

190 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Imaginaccedilatildeo e sentidos estes satildeo os dois poacutelos

que se opotildeem na criacutetica de Montaigne agrave meditatio mortis ou mais amplamente agrave laquociecircnciaraquo Que sejamos afetados por alguns infortuacutenios atraveacutes dos sentidos eacute algo incontornaacutevel Eacute possiacutevel evitar no entanto o trabalho nocivo da imaginaccedilatildeo que produz a perturbaccedilatildeo

Por aiacute jaacute se antevecirc o caminho que Montaigne vai contrapor agrave via da ciecircncia no que diz respeito ao enfrentamento dos infortuacutenios a via dos sentidos isto eacute da restriccedilatildeo do trabalho da imaginaccedilatildeo Trata-se do caminho percorrido espontaneamente pelo homem simples natildeo cultivado que evita pensar nos infortuacutenios antes que ocorram sofrendo-os apenas quando se apresentam aos seus sentidos ldquoO [homem] comum natildeo tem necessidade nem de remeacutedio nem de consolo a natildeo ser no momento do golpe e natildeo o considera senatildeo tanto quanto o senterdquo (III 12 p 403)23 Este homem natildeo entristece o presente por causa de uma eventual ou necessaacuteria infelicidade futura natildeo prolonga no tempo nem aumenta a gravidade dos sofrimentos por meio de projeccedilotildees imaginaacuterias Ao contraacuterio ele fixa sua consciecircncia no presente e na fruiccedilatildeo dos prazeres e pequenas felicidades do instante afastando as representaccedilotildees que provocam medo e tristeza

[] jamais vi camponecircs vizinho meu pocircr-se a cogitar sobre a continecircncia e a seguranccedila com que passaria por esta hora derradeira A natureza o ensina a soacute pensar na morte quando estiver morrendo (III 12 402)24

des agrave cette heure vous faire donner le fouet par ce quil peut advenir que fortune vous le fera souffrir un jourrdquo (idem) 23 laquoLe commun na besoing ny de remede ny de consolation quau coup et nen considere quautant justement quil en sentraquo (III 12 1052) 24 laquoJe ne vy jamais paysan de mes voisins entrer en cogitation de quelle contenance et asseurance il passeroit cette heure derniere

Viver como Soacutecrates 191

Ao deixar ao maacuteximo os infortuacutenios para os

sentidos utilizando ao miacutenimo a faculdade de representaccedilatildeo este homem eacute ateacute mesmo mais capaz de captaacute-los na sua dimensatildeo real que escapa ao homem de ldquociecircnciardquo que lhes acrescenta representaccedilotildees imaginaacuterias laquocomo os perfumistas [fazem] com o oacuteleo eles [os homens de laquociecircnciaraquo] a sofisticaram [a natureza] com tantas argumentaccedilotildees e discursos trazidos de fora [hellip]raquo (III 12 p 399)25 Enquanto o homem de ciecircncia se afasta da verdade das coisas o homem comum dela se aproxima

Eis portanto o modelo de conduta a seguir algueacutem como o camponecircs o ruacutestico Em duas palavras o homem ignorante que natildeo passou pelo processo de educaccedilatildeo (laquoesta turba ruacutestica de homens impolidosraquo - III 12 p 398)26 e que se orienta pelos costumes (as opiniotildees comuns) e pela experiecircncia imediata Sobretudo este homem sofre pouco porque toma como criteacuterio de conduta o que se apresenta aos sentidos Ele busca o prazer e foge da dor Por isso evita acrescentar agrave dor que haacute de afetaacute-lo sensivelmente (a doenccedila a velhice a morte) o sofrimento que poderiam provocar as representaccedilotildees imaginaacuterias (a tristeza o medo) Da mesma forma busca os prazeres sensiacuteveis e os frui intensamente sem misturaacute-los a representaccedilotildees desagradaacuteveis27 Mas ele tambeacutem evita os excessos pois

Nature luy apprend agrave ne songer agrave la mort que quand il se meurtraquo (idem) 25 laquocomme les parfumiers de lhuile ils [les hommes de science] lont sophistiqueacutee [la nature] de tant dargumentations et de discours appellez du dehorshellip raquo (III 12 1049) 26 laquoCette tourbe rustique dhommes impolisraquo (III 12 p 1049) 27 A conduta ldquonaturalrdquo que no ensaio Da experiecircncia Montaigne reivindica em relaccedilatildeo aos prazeres do corpo natildeo eacute a outra face da conduta natural que no Da fisionomia ele reivindica em relaccedilatildeo aos sofrimentos Pensamos que sim Mesmo que Montaigne natildeo atribua explicitamente ao ruacutestico o gozo salutar dos prazeres sensiacuteveis

192 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo deseja as dores futuras que estes poderiam acarretar28 (a ressaca depois da bebedeira a indigestatildeo apoacutes a comilanccedila) laquoa intemperanccedila eacute peste da voluacutepia e a temperanccedila natildeo eacute seu flagelo eacute seu temperoraquo (III 13 p 493)29 Enfim desta espeacutecie de sabedoria popular desta sapiecircncia quase instintiva (os animais tambeacutem buscam o prazer e evitam a dor30) adveacutem a tranquilidade da alma estado aniacutemico que coexiste com uma espeacutecie de gratidatildeo31 pelo vivido ndash fruto da praacutetica cotidiana e reiterada do desvio da consciecircncia das dores e de sua fixaccedilatildeo nos prazeres

(regrado unicamente pela necessidade de natildeo recair em dores futuras) fazecirc-lo parece-nos conforme agraves ideias do ensaiacutesta 28 Seriam suficientes o prazer e a dor como criteacuterios de conduta para evitarmos o viacutecio e instaurarmos a virtude moral Seria suficiente a aplicaccedilatildeo desses criteacuterios Essas questotildees devem ser examinadas 29 laquoLintemperance est peste de la volupteacute et la temperance nest pas son fleau cest son assaisonnementraquo (III 13 1110) 30 laquoA natureza imprimiu nos animais o cuidado consigo mesmos e com sua conservaccedilatildeo Eles vatildeo ateacute o ponto de temer sua piora chocar-se e ferir-se que noacutes os encabrestemos e batamos neles acidentes sujeitos a seus sentidos e experiecircncia Mas que noacutes os matemos eles natildeo podem temecirc-lo nem tem a faculdade de imaginar e concluir a morteraquo (III 12 p 407) rdquoNature a empreint aux bestes le soing delles et de leur conservation Elles vont jusques lagrave de craindre leur empirement de se heurter et blesser que nous les enchevestrons et battons accidents subjects agrave leurs sens et experience Mais que nous les tuons elles ne le peuvent craindre ny nont la faculteacute dimaginer et conclurre la mortrdquo (III 12 p 1055) 31 Novamente parece-nos de acordo com as ideias do autor estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a conduta paradigmaacutetica do camponecircs (conduta conforme a natureza) e o tema da gratidatildeo que aparece no ensaio seguinte Da experiecircncia Isto porque a gratidatildeo eacute uma espeacutecie de corolaacuterio da vida conforme a natureza que restringe as dores agrave sua accedilatildeo (inevitaacutevel) sobre os sentidos e estende os prazeres sensiacuteveis com o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo (a faculdade de representaccedilatildeo) ldquoOs outros sentem a doccedilura de um contentamento e da prosperidade sinto-a assim como eles mas natildeo de passagem e escapando Eacute preciso estudaacute-la saboreaacute-la e ruminaacute-la para dar graccedilas condignas agravequele que no-la outorga () Quanto a mim portanto amo a vida e a cultivo tal como aprouve a Deus no-la outorgarrdquo (III 13 pps 494-496)

Viver como Soacutecrates 193

Mas o que significa tomar o ruacutestico (essa espeacutecie de homem quase em ldquoestado de naturezardquo) como modelo de conduta O que isso pode significar para homens que como Montaigne jaacute passaram pelo processo de educaccedilatildeo e natildeo podem simplesmente retornar para esse estado primitivo de ignoracircncia Como jaacute tendo sido educado aproximar-se deste modelo Em resposta a essas perguntas Montaigne encontra na histoacuteria da filosofia um modelo de saacutebio que teria realizado este lsquoprojetorsquo Soacutecrates O mestre de Platatildeo e de Xenofonte segundo o ensaiacutesta teria justamente alcanccedilado por meio de sua praacutetica filosoacutefica um estado similar ao do ruacutestico Ele reproduziria refletidamente sua tranquilidade fundada na ignoracircncia ldquonatildeo teremos falta de bons regentes inteacuterpretes da simplicidade natural Soacutecrates seraacute um delesrdquo (III 12 p 403)32 Isto porque o principal fruto do seu ensinamento teria sido conduzir seus interlocutores ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia (reconhecimento que ele Soacutecrates teria sido o primeiro a fazer) O essencial neste ponto eacute a praacutetica socraacutetica do elenchos a criacutetica dos discursos dogmaacuteticos (de seu pretenso saber) a conduccedilatildeo de seus interlocutores ao reconhecimento de sua falta de ciecircncia (de que estatildeo em posse apenas de opiniotildees) Em Da fisionomia Montaigne examina o discurso que Soacutecrates teria proferido na ocasiatildeo do seu julgamento e deteacutem-se na anaacutelise das razotildees de sua tranquilidade diante de sua condenaccedilatildeo agrave morte Em face deste horizonte Soacutecrates mostra-se sereno E ele argumenta que permanece calmo afirma Montaigne porque natildeo sabe o que eacute a morte Todas as opiniotildees acerca da natureza desta (se haacute ou natildeo imortalidade da alma se a morte eacute ou natildeo a nossa completa aniquilaccedilatildeo) revelam-se quando submetidas a exame apenas isto opiniotildees isto eacute juiacutezos cuja correspondecircncia com o objeto (a morte) natildeo se pode

32 ldquoNous naurons pas faute de bons regens interpretes de la simpliciteacute naturelle Socrates en sera lunrdquo (III 12 p 1052)

194 Eacutetica e filosofia poliacutetica

comprovar Portanto temer o quecirc Natildeo haacute o que justifique o temor ldquosei [diz Soacutecrates] que nem frequentei nem conheci a morte nem vi ningueacutem que tenha experimentado suas qualidades para me instruir sobre elas Aqueles que a temem pressupotildeem conhececirc-la Quanto a mim natildeo sei nem o que ela eacute nem o que se faz no outro mundordquo (III 12 p 403-404)33 O juiacutezo de Montaigne sobre o pronunciamento socraacutetico coloca o mestre de Platatildeo na mesma posiccedilatildeo do ruacutestico ldquoeacute um discurso [] [que] representa [] a pura e primeira impressatildeo e ignoracircncia naturalrdquo (III 12 p 407)34

Assim como o ruacutestico portanto o Soacutecrates montaigniano (mas agora por efeito da criacutetica ceacutetica e natildeo por inclinaccedilatildeo ldquonaturalrdquo) natildeo acrescenta agrave dor sensiacutevel e inevitaacutevel o sofrimento evitaacutevel criado pelas representaccedilotildees Mas ele tambeacutem se assemelha ao homem simples em sua dedicaccedilatildeo aos prazeres sensiacuteveis Tambeacutem daiacute deriva sua tranquilidade fruto da satisfaccedilatildeo das carecircncias naturais Natildeo satildeo poucas as passagens em que Montaigne pinta um Soacutecrates afeito aos pequenos prazeres e alegrias do instante o homem que danccedila toca instrumentos brinca com as crianccedilas bebe com os companheiros e ateacute mesmo permite-se cometer excessos ocasionais afirmando que eles pertencem (se eventuais e adequados agraves circunstacircncias) agraves regras da conveniecircncia

[natildeo haacute] coisa mais notaacutevel em Soacutecrates do que muito velho ele encontrar tempo para aprender a danccedilar e a tocar instrumentos e tecirc-lo por bem empregado [hellip] este homem se fosse convidado a beber agrave porfia por

33 ldquoJe sccedilay [dit Socrate] que je nay ny frequenteacute ny recogneu la mort ny nay veu personne qui ayt essayeacute ses qualitez pour men instruire Ceux qui la craingnent presupposent la cognoistre Quant agrave moy je ne sccedilay ny quelle elle est ny quel il faict en lautre monderdquo (III 12 pps 1052-1053) 34 ldquocest un discours (hellip) [qui] repreacutesente (hellip) la pure et premiere impression et ignorance de naturerdquo (1054-1055)

Viver como Soacutecrates 195

dever de civilidade de todo o exeacutercito era ele que levava a vantagem e natildeo se recusava nem a brincar de bolinhas com as crianccedilas nem a correr com elas sobre um cavalo de madeira e o fazia com graccedila (III 13 p 491-492)35

Por aiacute jaacute se percebe que o modelo de Soacutecrates eacute

relevante natildeo apenas por sua potecircncia criacutetica isto eacute por levar os pretensos saacutebios ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia O interesse do modelo socraacutetico natildeo se resume ao momento negativo do elenchos A partir da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia um novo programa surge e Montaigne reconhece em Soacutecrates seu mais ilustre representante Isto porque o ruacutestico natildeo eacute apenas um homem ignorante Ele eacute um homem ordenado espontaneamente ordenado um homem que se conduz conforme uma ldquoordenaccedilatildeo naturalrdquo Ora o programa que se inaugura depois do momento da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia eacute o resgate desta ordem que foi perdida por efeito de uma certa educaccedilatildeo de uma certa cultura ldquoNatildeo encaro a espeacutecie e o indiviacuteduo como uma pedra em que eu tenha tropeccedilado aprendo a temer meus passos em tudo e empenho-me em regraacute-losrdquo (III 13 p 436)36 ldquoCompor nossos costumes eacute nosso ofiacutecio natildeo compor livros e ganhar natildeo batalhas e proviacutencias mas a ordem e a tranquilidade em nossa condutardquo (III 13 pps 488-489)37

35 ldquo[il nest] chose plus remercable en Socrates que ce que tout vieil il trouve le temps de se faire instruire agrave baller et jouer des instrumens et le tient pour bien employeacute () cet homme lagrave estoit-il convieacute de boire agrave lut par devoir de civiliteacute cestoit () celuy de larmeacutee agrave qui en demeuroit lavantage et ne refusoit ny agrave jouer aux noysettes avec les enfans ny agrave courir avec eux sur un cheval de bois et y avoit bonne gracerdquo (III 13 1109-1110) 36 ldquoJe ne regarde pas lespece et lindividu comme une pierre ougrave jaye broncheacute japprens agrave craindre mon alleure par tout et mattens agrave la reiglerrdquo (III 13 1074) 37 ldquoComposer nos meurs est nostre office non pas composer des livres et gaigner non pas des batailles et provinces mais lordre et tranquilliteacute agrave nostre conduiterdquo (III 13 1108 ndash idem)

196 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Em termos socraacuteticos eacute como se passaacutessemos

agora para o momento da maiecircutica isto eacute do esforccedilo para dar ordem agraves opiniotildees e daiacute extrair o conhecimento Em termos montaignianos trata-se de recuperar a ordenaccedilatildeo de si isto eacute de suas proacuteprias opiniotildees e da relaccedilatildeo entre as partes constitutivas do eu38 a saber o corpo e a alma Eacute desta ordenaccedilatildeo que adveacutem a tranquilitas

Falemos um pouco mais do ruacutestico Sua fala e sua conduta satildeo espontaneamente ordenadas Seu discurso tem ordem ainda que suas palavras natildeo o tenham No mais das vezes ele se faz entender comunica-se com

38 Ora natildeo eacute exatamente este o ldquoprograma moralrdquo que Platatildeo elabora em diversos diaacutelogos Qual seja restabelecer a partir do conhecimento de si (isto eacute de nossa natureza) a ordem natural entre nossas partes constitutivas (no caso platocircnico a devida hierarquia entre o corpo e a alma o devido comando desta sobre aquele) ldquoa excelecircncia de cada coisa consiste em uma ordem (taacutexei) e uma disposiccedilatildeo feliz (kekosmemeacutenon) resultante da ordem () Eacute preciso que cada um aplique todas as suas forccedilas todas as da cidade na direccedilatildeo deste fim () que natildeo se permita aos apetites (epithymiacuteas) reinar sem medidardquo (Goacutergias 506d-507e) Como veremos Montaigne repropotildee o programa platocircnico da ordenaccedilatildeo de si mas em termos diversos Natildeo se trataraacute de estabelecer uma relaccedilatildeo vertical de comando e obediecircncia entre as ldquopartesrdquo mas uma relaccedilatildeo horizontal de auxiacutelio reciacuteproco de ldquomutuels officesrdquo (III 13 p 1114) Sem duacutevida Montaigne concorda com Platatildeo quanto agrave necessidade da temperanccedila Mas esta natildeo deve ser o efeito do comando da alma

sobre o corpo mas do muacutetuo auxiacutelio entre essas partes (as paixotildees da alma tambeacutem precisam ser regradas temperadas ndash aliaacutes elas satildeo as mais perigosas) Nem Montaigne pretende que busquemos a temperanccedila por se tratar de um fim uacuteltimo mas sim porque o prazer

depende dela ldquoque ela [a alma] o assista e favoreccedila [o corpo] e natildeo se recuse a participar de seus prazeres naturais e de se comprazer conjugalmente com eles acrescentando-lhes se for mais saacutebia a moderaccedilatildeo temendo que por indiscriccedilatildeo eles se confundam com o desprazerrdquo (III 13 p 494-493) O fim uacuteltimo eacute outro natildeo a virtude (para a qual deve se dirigir o prazer) mas o prazer (para o qual deve se dirigir a virtude) Mas tambeacutem eacute outro o que nos move em direccedilatildeo a tal fim natildeo mais uma vontade racional soberana mas um desejo orientado (favorecido) pelo juiacutezo

Viver como Soacutecrates 197

sucesso o espiacuterito do que diz eacute compreensiacutevel ainda que possa haver certo desarranjo na letra

Ele natildeo sabe ablativo conjuntivo substantivo nem a gramaacutetica tampouco o sabem seu lacaio ou uma peixeira de Petit Pont e no entanto vos entreteratildeo a natildeo mais poder se o desejares e possivelmente se embaraccedilaratildeo tatildeo pouco com as regras de sua linguagem quanto o melhor bacharel da Franccedila (I 26 253)39

O mesmo ocorre com sua conduta no mais das

vezes ele age de maneira reta e permanece tranquilo pois toma como criteacuterios de conduta os costumes e os sentidos (o prazer e a dor) Ele permanece tranquilo porque suas ldquopartes constitutivasrdquo (seu corpo e sua alma) estatildeo espontaneamente ordenadas uma em relaccedilatildeo agrave outra Ele eacute o homem que manteacutem uma relaccedilatildeo saudaacutevel com o proacuteprio corpo que atende agraves demandas de seus impulsos naturais (desejo de prazer e aversatildeo agrave dor) Ele natildeo busca uma impassibilidade antinatural como fazem os filoacutesofos (os homens de ldquociecircnciardquo) nem o controle de sua alma sobre seu corpo Estes (alma e corpo) auxiliam-se reciprocamente Sua alma natildeo acrescenta agraves dores do corpo o sofrimento decorrente de representaccedilotildees imaginaacuterias ao contraacuterio busca distraccedilotildees (diversotildees lembranccedilas de prazeres passados etc) para aliviar as dores inevitaacuteveis do corpo Esta conduta serve de modelo para o proacuteprio Montaigne como ele nos mostra nesta passagem

Eis que desde recentemente os mais leves movimentos expelem puro sangue de meus rins Ora nem por isso

39 ldquoIl ne sccedilait pas ablatif conjunctif substantif ny la grammaire ne faict pas son laquais ou une harangiere du petit pont et si vous entretiendront tout vostre soul si vous en avez envie et se desferreront aussi peu agrave ladventure aux regles de leur langage que le meilleur maistre eacutes arts de Francerdquo (I 26 169)

198 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eu deixo de me mover como dantes e galopar atraacutes de meus catildees com um ardor juvenil e insolente [] Sinto alguma coisa que desmorona Natildeo espereis que fique me ocupando em examinar meu pulso e minha urina para daiacute extrair alguma previsatildeo desagradaacutevel passarei bastante tempo sentindo o mal sem prolongaacute-lo com o mal do medo Quem teme sofrer jaacute sofre porque teme (III 13 p 468-469)40

Por outro lado os prazeres sensiacuteveis servem de

baacutelsamo para as paixotildees tristes da alma ndash a tristeza e o medo face agrave velhice a doenccedila e a morte Novamente eacute a conduta que Montaigne potildee em praacutetica ldquojovem eu cobria de prudecircncia minhas paixotildees alegres velho disperso as tristes com o desregramentordquo (III 9 p 288)41 Enfim por meio do muacutetuo acordo de suas lsquopartes constitutivasrsquo o homem comum consegue regrar os excessos de uma e de outra 42

E quanto a Soacutecrates Ou melhor e quanto ao Soacutecrates montaigniano Ora ele eacute o homem que se opotildee a uma certa cultura a uma determinada educaccedilatildeo a saber aquela que rompe com esta ordem ldquonaturalrdquo que desfaz a adesatildeo espontacircnea dos homens agraves opiniotildees

40 ldquoVoicy depuis de nouveau que les plus legers mouvements espreignent le pur sang de mes reins Quoy pour cela je ne laisse de me mouvoir comme devant et picquer apres mes chiens dune juvenile ardeur et insolente () Or sens je quelque chose qui crosle Ne vous attendez pas que jaille mamusant agrave recognoistre mon pous et mes urines pour y prendre quelque prevoyance ennuyeuse je seray assez agrave temps agrave sentir le mal sans lalonger par le mal de la peur Qui craint de souffrir il souffre desjagrave de ce quil craintrdquo (III 13 p 1095) 41 ldquoJeune je couvrois mes passions enjoueacutees de prudence vieil je demesle les tristes de deacutebaucherdquo (III 9 p 977) 42 Mais uma vez projetamos intencionalmente sobre o modelo do ruacutestico uma conduta que natildeo eacute explicitamente associada a ele por Montaigne a saber o muacutetuo auxiacutelio entre o corpo e a alma Acreditamos poreacutem que tal projeccedilatildeo eacute perfeitamente conforme agraves ideias do autor na medida em que associa a ordenaccedilatildeo natural entre as ldquopartes constitutivas do eurdquo agrave conduta conforme agrave natureza cujo

modelo Montaigne encontra no ruacutestico

Viver como Soacutecrates 199

comuns e aos sentidos colocando no lugar destes como criteacuterios de conduta os comandos da razatildeo (uma doutrina moral pretensamente fundada numa fiacutesica) O Soacutecrates montaigniano eacute aquele que submete agrave criacutetica o pretenso conhecimento de si (o suposto saber dos filoacutesofos dogmaacuteticos acerca da nossa essecircncia) que exibe nossa ignoracircncia a respeito de noacutes mesmos que reduz enfim as doutrinas acerca da natureza humana ao niacutevel de opiniotildees e restitui agrave experiecircncia (ao exame dos fenocircmenos) o lugar privilegiado de fonte do conhecimento de si

Os filoacutesofos com grande razatildeo remetem-nos agraves regras da Natureza mas elas natildeo tecircm o que fazer com tatildeo sublime conhecimento eles as falseiam e nos apresentam seu rosto pintado com cores que o elevam demais e sofisticam demais [] Quem rememora o excesso de sua coacutelera passada e ateacute onde essa febre o arrastou vecirc a feiura desta paixatildeo melhor do que em Aristoacuteteles e concebe por ela um oacutedio mais justo [] A vida de Ceacutesar natildeo fornece mais exemplo do que a nossa para noacutes tanto imperatriz como popular eacute sempre uma vida agrave qual todos os acidentes humanos concernem Escutemo-la somente noacutes nos dizemos tudo aquilo de que temos principalmente necessidade [] A advertecircncia para cada um se conhecer deve ser de um importante efeito visto que este Deus de ciecircncia e de luz a fez plantar no frontatildeo do seu templo como compreendendo tudo o que ele tinha para nos aconselhar Platatildeo tambeacutem diz que a prudecircncia natildeo eacute outra coisa que a execuccedilatildeo desta prescriccedilatildeo e Soacutecrates prova-o detalhadamente em Xenofonte (III 13 p 435-437)43

43 ldquoLes philosophes avec grand raison nous renvoyent aux regles de Nature mais elles nont que faire de si sublime cognoissance ils les falsifient et nous presentent son visage peint trop haut en couleur et trop sophistiqueacute (hellip) Qui remet en sa memoire lexcez de sa cholere passeacutee et jusques ougrave cette fieacutevre lemporta voit la laideur de cette

200 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir entatildeo da experiecircncia de si (e natildeo mais

de doutrinas dogmaacuteticas acerca da natureza humana) o velho programa da ordenaccedilatildeo de si pode ser recolocado nos seus devidos termos Isto porque a ausculta de si eacute a experiecircncia de uma condiccedilatildeo mista de uma vivecircncia simultaneamente aniacutemica e corpoacuterea espiritual e carnal

Os prazeres puros da imaginaccedilatildeo assim como os desprazeres dizem alguns satildeo os maiores [] Deles vejo todos os dias exemplos insignes e talvez desejaacuteveis Mas eu de condiccedilatildeo mista grosseiro natildeo posso me apegar tatildeo inteiramente a esse uacutenico objeto [] Aristipo defendia apenas o corpo como se natildeo tiveacutessemos alma Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo Ambos viciosamente (III 13 p 486-487)44

Daiacute o novo programa ordenar-se a si mesmo no

niacutevel da conduta eacute estabelecer o auxiacutelio reciacuteproco entre o corpo e a alma

para que desmembramos em divoacutercio um edifiacutecio tecido com tatildeo estreita e fraternal correspondecircncia Ao

passion mieux que dans Aristote et en conccediloit une haine plus juste (hellip) La vie de Caesar na poinct plus dexemple que la nostre pour nous et emperiegravere et populaire cest tousjours une vie que tous accidents humains regardent Escoutons y seulement nous nous disons tout ce de quoy nous avons principalement besoing (hellip) Ladvertissement agrave chacun de se cognoistre doibt estre dun important effect puisque ce Dieu de science et de lumiere le fit planter au front de son temple comme comprenant tout ce quil avoit agrave nous conseiller Platon dict aussi que prudence nest autre chose que lexecution de cette ordonnance et Socrates le verifie par le menu en Xenophonrdquo (III 13 1073-1075) 44 ldquoLes plaisirs purs de limagination ainsi que les desplaisirs disent aucuns sont les plus grands (hellip) Jen voy tous les jours des exemples insignes et agrave ladventure desirables Mais moy dune condition mixte grossier ne puis mordre si agrave faict agrave ce seul object () Aristippus ne defendoit que le corps comme si nous navions pas dame Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps Tous deux vicieusementrdquo (III 13 p 1107)

Viver como Soacutecrates 201

contraacuterio renovemo-lo por deveres muacutetuos Que o espiacuterito desperte e vivifique o peso do corpo o corpo detenha a leveza do espiacuterito e a fixe (III 13 p 498)45 Deste novo ldquoprogramardquo formulado por Montaigne

com base nos exemplos de Soacutecrates e do ruacutestico haacute de emergir uma conduta e uma vida ordenadas Agrave ordem ou agrave coerecircncia da conduta e da vida do saacutebio idealizado pelo estoicismo efeito da repeticcedilatildeo da impassibilidade (sempre conveniente sempre adequada) Montaigne opotildee uma nova figura da ordem ou da coerecircncia aquela muito mais humana que eacute efeito da reiteraccedilatildeo do desvio da consciecircncia dos objetos que despertam as paixotildees (desvio sempre conveniente sempre ldquoagrave proposrdquo) Enfim Montaigne opotildee agrave constantia estoica uma conduta que parece inconstante mas que escapa da criacutetica da inconstacircncia na medida em que eacute constituiacuteda por desvios conscientes voluntaacuterios (uma ldquomaneirardquo que natildeo tem nada de passiva ao contraacuterio eacute uma estrateacutegia para escapar da servidatildeo agraves paixotildees)

Soacutecrates natildeo diz Natildeo vos rendais aos atrativos da beleza sustentai vossa posiccedilatildeo diante dela esforccedilai-vos ao contraacuterio Fugi diz ele correi para longe de sua visatildeo e de seu encontro como de um veneno poderoso que se atira e atinge de longe (III 10 p 348)46

Finalmente chega-se a uma conduta

perfeitamente laquoordenadaraquo a uma vida unificada e uniforme totalmente coerente (laquoEle [Soacutecrates] foi

45 ldquoA quoy faire desmembrons nous en divorce un bastiment tissu dune si joincte et fraternelle correspondance Au rebours renouons le par mutuels offices Que lesprit esveille et vivifie la pesanteur du corps le corps arreste la legereteacute de lesprit et la fixerdquo (III 13 p 1114) 46 ldquoSocrates ne dit point Ne vous rendez pas aux attraicts de la beauteacute soustenez la efforcez vous au contraire Fuyez la faict-il courez hors de sa veue et de son rencontre comme dune poison puissante qui seslance et frappe de loingrdquo (III 10 1015-1016)

202 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tambeacutem sempre uno e semelhanteraquo - III 12 p 380)47 a vida do homem ordinaacuterio de bem sucessatildeo de desvios Ora natildeo eacute exatamente uma perfeita harmonia que encontramos na imagem acabada da tranquilidade da alma que Montaigne funda sobre este modelo de conduta

Ela [minha alma] mede o quanto deve a Deus por estar em paz com sua consciecircncia e com outras paixotildees intestinas por ter o corpo em sua disposiccedilatildeo natural fruindo ordenada e competentemente as funccedilotildees moles e aduladoras com as quais lhe apraz compensar com sua graccedila as dores com que sua justiccedila por sua vez nos golpeia o quanto lhe vale estar alojada em tal ponto que para onde quer que ela lance o olhar o ceacuteu estaacute calmo ao seu redor nenhum desejo nenhum temor ou duacutevida que lhe perturbe o ar nenhuma dificuldade passada presente futura por cima da qual sua imaginaccedilatildeo natildeo passe sem ofensa (III 13 p 495)48

REFEREcircNCIAS FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduit par Robert Rovini Paris Gallimard 1992 (coll ldquoTelrdquo)

LONG Anthony La Filosofia Heleniacutestica - Estoicos Epicuacutereos Esceacutepticos trad P Jordan de Urries Madrid Alianza Editorial 1977

47 laquoIl [Socrate] fut aussi tousjours un et pareilraquo (III 12 p 1037) 48 ldquoElle [mon ame] mesure combien cest quelle doibt agrave Dieu destre en repos de sa conscience et dautres passions intestines davoir le corps en sa disposition naturelle jouyssant ordonneacuteement et competemmant des functions molles et flateuses par lesquelles il luy plait compenser de sa grace les douleurs de quoy sa justice nous bat agrave son tour combien luy vaut destre logeacutee en tel point que ougrave quelle jette sa veue le ciel est calme autour delle nul desir nulle crainte ou doubte qui luy trouble lair aucune difficulteacute passeacutee presente future par dessus laquelle son imagination ne passe sans offencerdquo (III 13 p 1112)

Viver como Soacutecrates 203

MONTAIGNE Michel de Les Essais Eacutedition de Pierre Villey reeacutediteacutee par V L Saulnier Col Quadrige Paris PUF 1999

_____ Os Ensaios (traduccedilatildeo de Rosemary Costek) Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 3 vols

PLATAtildeO Gorgias Texte eacutetabli et traduit par Alfred Croiset avec la collaboration de Louis Bodin Collection des universiteacutes de France Paris Les Belles Lettres 2003

SENECA De constantia sapientis in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ De tranquilitate animi in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ Lettres a Lucilius Texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot Eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne Paris Robert Laffont 1993

204 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VIII =

NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE

Stefano Busellato

1 Desde o seu primeiriacutessimo escrito juvenil de

caraacuteter filosoacutefico Fatum und Geschichte de 1862 na perspectiva da precoce negaccedilatildeo do ldquointeiro cristianismordquo Nietzsche refletindo sobre si mesmo escreve ldquoEu procurei negar tudo ai de mim destruir eacute faacutecil mas construirrdquo

Tal frase ressalta-se como o eneacutesimo exemplo da extraordinaacuteria clarividecircncia que caracteriza Nietzsche jaacute que tal frase pode ser considerada uma suacutemula do inteiro quadro do seu pensamento

Todos aqueles que passaram alguns anos estudando as paacuteginas nietzschianas com certeza encontraram e tiveram que resolver uma peculiaridade que eacute tambeacutem um dos principais problemas exegeacuteticos diante do qual o inteacuterprete precisa elaborar uma resposta quer dizer uma evidente desproporccedilatildeo entre a pars destruens e a pars construens Se de fato os objetivos polecircmicos os alvos criacuteticos as teorias que Nietzsche confuta e rejeita satildeo extremamente claros e precisos eacute pelo contraacuterio muito mais difiacutecil individuar com tanta exatidatildeo as propostas positivas e as alternativas que ele quer propor

Graduado em Filosofia pela Universitagrave di Pisa (2001) doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave Degli Studi di Macerata (2009) poacutes-doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave di Siena (2011-2013) pela USP (2014-2016) e pela UNIOESTE (2016) Publicou entre outros os livros Nietzsche e Lo Scetticismo (2012) e Schopenhauer lettore di Spinoza (2015)

206 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Esse desniacutevel entre o contradizer e o propor

adquire em Nietzsche uma forma particular a da autocontradiccedilatildeo ndash e em uma medida tatildeo forte ao ponto de superar a normalidade das contradiccedilotildees presentes em outros pensadores (e eacute isso que leva a uma espeacutecie de licenccedila exegeacutetica na leitura do pensamento de Nietzsche que recebeu as mais variadas e contraacuterias interpretaccedilotildees como nenhum outro pensador na histoacuteria da filosofia)

Diante dessa peculiaridade da obra nietzschiana existem duas principais estrateacutegias para tentar explicaacute-la 1) negar que Nietzsche eacute um filoacutesofo stricto sensu e 2) ver exatamente na potecircncia da sua parte negativa a verdadeira (e praticamente uacutenica) essecircncia do pensamento nietzschiano De acordo com tal perspectiva o seu precioso valor emancipatoacuterio consistiria na capacidade de abater as verdades consideradas como tais e isso constituiria jaacute um resultado digno de reconhecimento e gratidatildeo da nossa parte Exigir que ele nos mostre tambeacutem uma capacidade construtiva seria dessa forma uma demonstraccedilatildeo de insatisfaccedilatildeo com o seu pensamento que seria injusta

1) Agrave primeira dessas duas opccedilotildees pertencem todos os leitores que veem em Nietzsche mais um artista do que um filoacutesofo estrito E natildeo devemos esquecer que a recepccedilatildeo criacutetica de Nietzsche antes da I Guerra Mundial assim como uma parte importante daquela que chega ateacute o limiar do segundo conflito mundial nasceu e cresceu mais graccedilas a artistas do que agrave filosofia institucional (por exemplo Mahler R Strauss DrsquoAnnunzio Gorge Hesse Thomas Mann Hofmannsthal Rilke Musil Benn Zweig etc) Mas tambeacutem pertencem a essa linha interpretativa aqueles que por mais que vejam Nietzsche como um filoacutesofo e natildeo tanto como um artista reconduzem de qualquer forma a razatildeo da sua escassez propositiva e da sua natureza contraditoacuteria a uma carecircncia teacutecnico-filosoacutefica

Nietzsche e o ceticismo 207

Entre alguns desses inteacuterpretes podemos citar Ferdinand Toumlnnies que define o pensamento de Nietzsche uma Paradoxsophie ldquoum voacutertice de pensamentos de exclamaccedilotildees e declamaccedilotildees de acessos de ira e afirmaccedilotildees contraditoacuterias em meio a muitos relacircmpagos que iluminam e ofuscamrdquo1

[] vocecircs podem sentir prazer lendo os escritos de Nietzsche [] podem aprender algumas coisas neles mas apenas se vocecircs decidiram aprender com outros as coisas mais fundamentais sobre os mesmos assuntos2

Ou ateacute mesmo inteacuterpretes de peso como Karl

Jaspers segundo o qual as contradiccedilotildees de Nietzsche nascem de uma ldquoinadequada preparaccedilatildeo filosoacutefica no manejo dos grandes pensadoresrdquo de uma ldquofalta de formaccedilatildeo profissionalrdquo que constitui tambeacutem a sua extraordinaacuteria capacidade de se relacionar ldquocom um imenso impulsordquo com a verdade mas eacute tambeacutem o que explicaria a frequente recaiacuteda em antinomias das quais por puro amadorismo ldquoele natildeo tem consciecircnciardquo3

2) A segunda opccedilatildeo exegeacutetica aquela que vecirc no aspecto negativo na excepcional forccedila do seu radicalismo criacutetico a verdadeira essecircncia da filosofia nietzschiana que explicaria tanto a diferenccedila entre a pars destruens e a construens quanto a sua autocontradiccedilatildeo eacute aquela que hoje parece prevalecer e que conta entre seus seguidores com inteacuterpretes do mais alto niacutevel Ainda que com diferenccedilas oacutebvias eacute possiacutevel traccedilar uma linha

1 F Toumlnnies Der Nietzsches-Kults Eine Kritik [1897] Akademie-Verlag Berlin 1990 pp 99-104 trad it Il culto di Nietzsche Una critica E Donaggio [Org] Editori Riuniti Roma 1998 p 131 2 Ivi p 41 3 K Jaspers Nietzsche Einfuumlhrung in das Verstaumlndnis seines Philosophierens de Gruyter Berlin-New York 1974 trad it L Rustichelli [Org] Nietzsche Introduzione alla comprensione del suo filosofare Mursia Milano 1996 pp 376-377

208 Eacutetica e filosofia poliacutetica

de continuidade entre o ldquoprinciacutepio da possibilidaderdquo de Musil a ldquoSelbstuumlberwindungrdquo de Mann ldquoo infinito transformar-serdquo de Bertram E tambeacutem na Franccedila encontramos por exemplo Bataille que fala de ldquouma exigecircncia sem referecircnciasrdquo4 que daria vida ao filosofar nietzschiano e isso o leva a observar como

[] as doutrinas de Nietzsche possuem uma caracteriacutestica estranha isto eacute que natildeo eacute possiacutevel segui-las Elas nos potildeem de frente a iluminaccedilotildees imprecisas que geralmente produzem cegueira nenhuma estrada conduz agrave meta indicada5

Nietzsche criticaria ldquoem nome de um valor moacutevel

do qual natildeo pocircde evidentemente capturar a origem e a finalidaderdquo6 Ou entatildeo Deleuze segundo o qual

Nietzsche natildeo tenta codificar [] Escrevendo e pensando da proacutepria forma Nietzsche desenvolve uma obra de decodificaccedilatildeo [] de decodificaccedilatildeo uacutenica [] [que] quer estragar todos os coacutedigos7

E resume a filosofia nietzschiana com a foacutermula

marcadamente francesa ldquojamais rien de connu mais une grande destruction de reconnu pour une creacuteation drsquoinconnurdquo8 Um passo adiante e chegamos ao ldquomestre da grande duacutevidardquo de Ricoeur e na Itaacutelia a transformar Nietzsche em um dos fundadores do ldquopensamento fracordquo um pensamento que critica as verdades fortes estabelecidas e que exatamente por isso rejeita-se

4 G Bataille Sur Nietzsche Gallimard Paris 1973 trad it A Zanzotto Su Nietzsche SE Milano 1994 p 16p 69 5 Idem p 113 6 Idem p 125 7 G Deleuze Le penseacute nomade trad it in Id Nietzsche e la filosofia a cura di F Polidori Einaudi Torino 2002 p 312 8 Id Sur Nietzsche et lrsquoimage de la penseacutee ora in Id Lrsquoicircle deacuteserte et autres textes a cura di D Lapoujade Eacuted de Minuit Paris 2002 p

189

Nietzsche e o ceticismo 209

voluntariamente a oferecer alternativas agravequilo que ele mesmo rejeitou

Pessoalmente eu natildeo acredito que esses dois modelos interpretativos sejam capazes de compreender completamente a complexidade que a filosofia de Nietzsche entreteacutem com o elemento da verdade e da criacutetica agrave verdade A primeira ao resolver o problema mencionado acima escolhendo ver em Nietzsche um artista e natildeo um filoacutesofo ou um filoacutesofo ldquopela metaderdquo eacute negada por uma evidecircncia histoacuterica uma vez que o pensamento de Nietzsche entrou nolens volens com total reconhecimento na histoacuteria da filosofia Mas tambeacutem a segunda abordagem exegeacutetica vendo quase exaustivamente a essecircncia do pensamento nietzschiano na criacutetica agrave verdade e na sua pars destruens colide com a intenccedilatildeo explicitamente declarada por Nietzsche com grande insistecircncia de uma exigecircncia fortemente propositiva que o anima e o guia Nietzsche repete assim que concede grande espaccedilo agrave negaccedilatildeo exclusivamente enquanto ela eacute o passo propedecircutico a novas construccedilotildees (pensemos por exemplo no Versuch einer Umwertung aller Werte) e que ele natildeo quer se contentar com o lado niilista e criacutetico que eacute julgado pelo contraacuterio como sintoma de cansaccedilo e de deacutecadence Dito isso poreacutem eacute sempre verdade que o fulcro da prevalecircncia do momento de negaccedilatildeo agraves custas do momento de afirmaccedilatildeo assim como a forccedila com a qual Nietzsche realiza a proacutepria criacutetica radical agrave verdade que frequentemente o leva a criticar ateacute mesmo as proacuteprias ldquoverdadesrdquo continua sendo um problema exegeacutetico de importacircncia primordial

2 Um caminho no qual eacute possiacutevel encontrar elementos uacuteteis agrave questatildeo pode ser por isso enfrentar tal noacute conceitual realizando uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo que Nietzsche teve com a filosofia que mais do que nenhuma outra abraccedilou a contraposiccedilatildeo a toda

210 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma de dogmatismo e ao conceito de verdade ou seja o ceticismo

A relaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o ceticismo o que Nietzsche sabia da filosofia ceacutetica e como ele a considerou e como a utilizou Essas satildeo trecircs questotildees que os especialistas claramente deixaram de lado mas eacute somente atraveacutes de uma pesquisa especificamente direcionada nesse sentido que podem emergir dados de grande relevacircncia interpretativa que de outra forma permaneceriam subterracircneos

Se considerarmos a questatildeo apenas a niacutevel de Quellenforschung eacute possiacutevel descobrir que Nietzsche tinha um conhecimento extremamente refinado e detalhado do ceticismo a tal ponto que eacute possiacutevel afirmar que nenhum outro filoacutesofo do seu calibre teve uma competecircncia tatildeo especializada sobre o assunto como a sua Tal caracteriacutestica lhe deriva do seu iniacutecio como filoacutelogo claacutessico e em particular dos seus estudos sobre Dioacutegenes Laeacutercio mas natildeo soacute desses estudos uma vez que a bagagem cultural de Nietzsche sobre o ceticismo antigo vai muito aleacutem daquilo que concerne a simples obrigaccedilatildeo acadecircmica

Eacute possiacutevel de fato demonstrar com exatidatildeo que ele teve um conhecimento aprofundado do inteiro panorama das principais figuras da histoacuteria do ceticismo grego (Pirro de Eacutelis Brisatildeo de Heracleacuteia Tiacutemon de Fliunte principal aluno de Pirro que ele demonstra conhecer bem Hecateu de Mileto Aristipo de Cirene Laacutecides de Cirene Arcesilau Fiacuteon de Alexandria Antiacuteoco Carneacuteades Enesidemo) e tambeacutem que ele estudou e utilizou os mais importantes textos antigos sobre o pensamento ceacutetico aleacutem de Dioacutegenes Laeacutercio e antes mesmo de se confrontar com a sua obra Nietzsche se ocupou do leacutexico bizantino Suida teve uma evidente familiaridade com os escritos de Sexto Empiacuterico citados e usados em muitas obras encontramos competecircncias especiacuteficas e diversas citaccedilotildees de fontes como Aacuteulio

Nietzsche e o ceticismo 211

Geacutelio Euseacutebio de Cesaacuterea ou Favorino de Arelate ele conheceu muito bem a Academica de Ciacutecero Em outras palavras Nietzsche possuiacutea uma preparaccedilatildeo profunda tanto no acircmbito historiograacutefico quanto teoreacutetico do fenocircmeno do ceticismo grego

O uacuteltimo texto citado enfim os Academica de Ciacutecero estaacute particularmente envolvido na questatildeo Eacute um dos documentos mais preciosos que chegaram ateacute noacutes sobre a histoacuteria do ceticismo antigo jaacute que o contexto da uacuteltima grande crise no centro da Academia platocircnica depois do embate entre Filon de Larissa e Antiacuteoco de Ascalatildeo sobre a natureza dogmaacutetica ou antidogmaacutetica do conceito de verdade na tradiccedilatildeo acadecircmica ndash que deu margem a uma longa anaacutelise sobre o inteiro passado do ceticismo antigo O estudo dos Academica mostra um interesse especial de Nietzsche pelo assunto jaacute que quando ele assumiu a caacutetedra de Basileia ele ministrou dois semestres consecutivos sobre a obra ndash as aulas do veratildeo de 1870 e do inverno de 1871 e 1872 E natildeo por acaso exatamente no Natal de 1870 Cosima lhe deu de presente os Essais de Montaigne que se tornaram outra das suas principais fontes sobre o ceticismo enriquecendo dessa forma tambeacutem no vieacutes da eacutepoca moderna o seu conhecimento sobre a filosofia ceacutetica Tudo isso deixa entrever como ateacute mesmo na casa de Wagner deveria ser conhecido o interesse especiacutefico de Nietzsche pelo tema

Portanto o primeiro dado que encontramos eacute que todas as vezes em que Nietzsche cita o ceticismo precisamos considerar que ele natildeo o usa como instrumento retoacuterico ou com um sentido geneacuterico mas sim porque deteacutem um conhecimento real e profundo sobre a mateacuteria E em particular eacute necessaacuterio considerar como durante a crucial passagem do periacuteodo filoloacutegico agravequele do verdadeiro iniacutecio da sua filosofia Nietzsche carregue consigo essa competecircncia particular no acircmbito do pensamento ceacutetico

212 Eacutetica e filosofia poliacutetica

3 Natildeo eacute surpreendente perceber portanto que o

primeiro periacuteodo da sua filosofia seja um dos arcos temporais da sua obra em que o elemento do ceticismo aparece com maior evidecircncia E isso natildeo apenas no que concerne agraves citaccedilotildees ou agrave utilizaccedilatildeo das proacuteprias leituras filoloacutegicas Em toda a primeira parte da sua produccedilatildeo eacute evidente ndash do ponto de vista gnosioloacutegico ndash uma atmosfera de grande pessimismo que encobre os principais personagens da filosofia que ele frequenta por exemplo o Demoacutecrito anti-teleoloacutegico no qual ldquoencontram-se os primoacuterdios do Pirronismo [] [e que] deriva da sua tese sobre o conhecimentordquo9 e que pode ser resumida na interpretaccedilatildeo ceacutetica de origem ciceroniana ldquoo seu princiacutepio fundamental continua sendo ldquoa coisa em si eacute incognosciacutevelrdquo10 ou entatildeo o Heraacuteclito lido sobretudo em chave anti-ontoloacutegica e relativista o filoacutesofo que nega a estabilidade do ser a favor de uma transformaccedilatildeo sempre em ato e que por isso natildeo pode ser reclusa em categorias loacutegicas e epistecircmicas Ou ainda Kant que indiretamente permanece sendo uma fonte decisiva para a teoria do conhecimento da primeira fase de Nietzsche Um Kant lido atraveacutes das interpretaccedilotildees contrastantes de Lange de um lado e de Schopenhauer do outro que acaba se tornando nas matildeos de Nietzsche o siacutembolo do ldquoconhecimento traacutegicordquo que representa a tentativa natildeo realizada de superar o ceticismo de Hume uma falha que inevitavelmente arrasta os limites do conhecimento contra o seu desejo ao grau mais elevado eacute o Kant lido em consonacircncia com o ldquosuspiro de Kleist sobre a incognoscibilidade finalrdquo como emerge em uma carta muito estimada por Nietzsche em que Kleist resume ldquoo efeito Kantrdquo ldquonoacutes natildeo podemos

9 OFN I 2 p 200 Todas as referecircncias das obras de Nietzsche satildeo de Opere Friedrich Nietzsche (OFN) Colli-Montinari (org) Milano Adelphi 1964ss 10 Idem p 185

Nietzsche e o ceticismo 213

decidir se o que chamamos verdade eacute realmente a verdade ou se apenas parece secirc-lordquo11

Mas esse pessimismo gnosioloacutegico natildeo nos autoriza poreacutem a simplificar a questatildeo convertendo o ceticismo antigo conhecido atraveacutes dos estudos filoloacutegicos como uma simples fonte no radicalismo criacutetico que a filosofia de Nietzsche em seguida iraacute desenvolver e na qual em teoria iria se exaurir Ao contraacuterio observando o papel que o ceticismo teve nessa primeira fase eacute possiacutevel mostrar como as coisas se colocam de outra forma Nietzsche na realidade permitiu que esse pessimismo gnosioloacutegico crescesse em todas as direccedilotildees porque examinando bem ele possuiu (ou acreditou possuir) um fator positivo que poderia ser o seu antiacutedoto a filosofia de Schopenhauer

E tambeacutem aqui natildeo a teoria do conhecimento schopenhauriano ou a metafiacutesica centrada no Wille este tambeacutem dissolvido desde o iniacutecio em uma visatildeo ceacutetica de ldquodesconfianccedila em relaccedilatildeo a qualquer sistema desde o princiacutepiordquo12 que julga a Vontade uma ldquopalavra de cunho grosseirordquo13 uma tentativa de superar o impasse post-kantiano mas ldquoa tentativa falhourdquo14 ldquoSchopenhauer queria encontrar o x de uma equaccedilatildeo e pelo seu caacutelculo resulta que a questatildeo eacute igual a x ou seja que ele natildeo o encontrourdquo15

O Schopenhauer afirmativo que o primeiro Nietzsche segura com forccedila nas matildeos como uma proacutepria certeza eacute na verdade aquele do III libro da Welt ldquoo mundo da arterdquo isto eacute o Schopenhauer wagneriano Esse Schopenhauer (em muitos aspectos anti-schopenhauriano) nos permite compreender porque apesar do proacuteprio pessimismo gnosio-epistecircmico

11 H von Kleist a Wilhemine e Ulrike 22-23 marccedilo de 1801 12 FP [30] 10 veratildeo de 1878 OFN IV 3II p 300 13 OFN I 2 pp 220-221 14 Idem p 220 15 Idem p 228

214 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche possa afirmar ldquoavaliar o que pode ser Schopenhauer para noacutes depois de Kant o guia [] que conduziu fora da caverna do abatimento ceacuteticordquo16 Ou o significado de anotaccedilotildees como ldquoA posiccedilatildeo transformada da filosofia depois de Kant A impossibilidade da metafiacutesica Auto-eviraccedilatildeo Submissatildeo traacutegica o fim da filosofia Apenas a arte pode nos salvarrdquo17 ldquoNatildeo haacute sequer uma causalidade da qual noacutes conheccedilamos a verdadeira essecircncia Ceticismo absoluto a necessidade da arte e da ilusatildeordquo18

No renascimento da trageacutedia a partir do drama musical wagneriano Nietzsche viu a concretizaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo em que verdade e beleza atingem o uacutenico ponto de equiliacutebrio possiacutevel uma verdade que uma vez autocompreendida como impossibilidade epistecircmica transfigura-se em esteacutetica isto eacute na necessidade da ilusatildeo ou mais precisamente segundo a foacutermula de Nietzsche na necessidade da ldquobela ilusatildeordquo

Por isso aquilo que inicialmente podia parecer a aceitaccedilatildeo teoreacutetica dos resultados corrosivos do ceticismo enquanto resultados conclusivos revela-se como sendo na verdade apenas um passo funcional para fundar com maior solidez um terreno absolutamente afirmativo como aquele que oferecia ao Nietzsche da eacutepoca a esteacutetica wagneriana que tem como texto culminante a Geburt ldquoPrecisamos superar o ceticismo precisamos esquececirc-lo A nossa salvaccedilatildeo natildeo estaacute no conhecer mas no criarrdquo19

Apenas quando comeccedilou a definhar a convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo wagneriana depois do fim da convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo de Schopenhauer o radicalismo criacutetico de Nietzsche se viu sem margens sem

16 SE sect 3 17 FP 19 [319] veratildeo de 1872-1873 OFN III 3II p 102 18 FP 19 [121] veratildeo de 1872-1873 idem p 44 19 FP 19 [125] veratildeo de 1872-1873 idem p 45

Nietzsche e o ceticismo 215

direccedilatildeo nem objetivo Em torno de 1873 durante a tempestuosa gestaccedilatildeo de Wagner a Bayreuth antes mesmo da abertura do Festival Nietzsche atingiu dessa forma o ponto maacuteximo do ceticismo que podemos encontrar nos seus escritos O documento que nos resta como eloquente testemunho desse periacuteodo eacute o breve texto Uumlber Wahrheit und Luumlge im auszligermoralischen Sinne

Eacute notoacuterio que nesse escrito encontramos a definiccedilatildeo da verdade como metaacutefora da qual perdeu-se a memoacuteria da sua natureza metafoacuterica a verdade torna-se assim mera ilusatildeo natildeo mais bela ilusatildeo

E atraveacutes do instrumento da metaacutefora o conceito de verdade eacute rejeitado em todos os pontos de vista que o constituem loacutegico antropoloacutegico e histoacuterico ldquoA verdade eacute incognosciacutevel Tudo aquilo que eacute incognosciacutevel eacute uma ilusatildeordquo20

Mas eacute preciso prestar atenccedilatildeo porque tal coincidecircncia entre o ceticismo e o resultado filosoacutefico do percurso de Nietzsche natildeo eacute vivido por ele com o regozijo que esperariacuteamos de algueacutem que tem como objetivo teoacuterico destruir as certezas porque ao contraacuterio ele declara em uma anotaccedilatildeo agrave eacutepoca ldquoo filoacutesofo traacutegico [] natildeo eacute ceacutetico [] o ceticismo de fato natildeo pode ser um fim em si mesmordquo21 E podemos encontrar um testemunho de como um tal resultado fosse contraacuterio agraves intenccedilotildees de Nietzsche em um fato geralmente negligenciado ndash quer dizer que ele decidiu natildeo publicar esse escrito

Eu estava em relaccedilatildeo agrave minha pessoa jaacute no caminho do ceticismo e da dissoluccedilatildeo moralista quer dizer empenhado tanto na criacutetica quanto no aprofundamento de todo pessimismo preacute-existente ndash e jaacute natildeo acreditava ldquomais em nadardquo como diz o povo [] e justo naquele periacuteodo nasceu um pequeno ensaio em seguida

20 FP 29 [20] veratildeo-outono de1873 idem p 233 21 FP 19 [35] veratildeo de 1872 ndash comeccedilo de 73 ivi p 13

216 Eacutetica e filosofia poliacutetica

mantido em segredo ldquoSobre a verdade e a mentira em sentido extra-moralrdquo22

Da anaacutelise da primeira fase de Nietzsche emerge

portanto um resultado importante ele deu grande espaccedilo aos instrumentos criacuteticos do ceticismo ateacute o momento em que teve em matildeos uma alternativa a ele e exatamente para fundamentar melhor essa alternativa Quando poreacutem ela falhou e ele se encontrou unicamente no ceticismo acabou por recusaacute-lo como conclusatildeo e comeccedilou a trabalhar para desenhar um novo plano afirmativo em relaccedilatildeo agravequele schopenhauriano e wagneriano julgado como natildeo mais sustentaacutevel Eacute o programa que comeccedila com Humano demasiado humano e que iraacute mantecirc-lo ocupado ateacute a metade dos anos oitenta

4 No periacuteodo central o assim chamado periacuteodo iluminista os objetivos polecircmicos tornam-se a cada passo sempre mais precisos e direcionados dois dentre todos satildeo a metafiacutesica e a moral Nesse arco cronoloacutegico a presenccedila do ceticismo perde visibilidade faz-se mais subterracircnea e pode ser encontrada com maior facilidade nos fragmentos poacutestumos do que nas obras impressas Os exoacuterdios satildeo marcados por uma certa cautela inicial que deriva da desilusatildeo das esperanccedilas nutridas no seu primeiro percurso filosoacutefico ldquonatildeo queremos construir prematuramente natildeo sabemos nem sequer se poderemos construir algo algum dia e se a melhor alternativa natildeo possa ser talvez natildeo construirrdquo23 Mas o que permanece constante eacute a consideraccedilatildeo do ceticismo unicamente como instrumento teoreacutetico de demoliccedilatildeo finalizado a uma nova construccedilatildeo

22 FP 6 [4] veratildeo de 1886 ndash primavera de 1887 OFN VIII 1 p 220 A escolha de natildeo publicar Sobre a verdade e a mentira tambeacutem eacute lembrada em uma anotaccedilatildeo de 1884 FP 26 [372] veratildeo-outono de 1884 OFN VII 2 p 226 23 FP 5 [30] primavera-veratildeo de 1875 OFN IV1 p 117

Nietzsche e o ceticismo 217

O ceticismo eacute ainda apreciado pela capacidade de limpar o caminho das ldquolsquoverdades absolutasrsquo [] instrumento de nivelamentordquo Isso eacute particularmente niacutetido por exemplo no que concerne agrave moral Em relaccedilatildeo a ela o ceticismo ainda eacute saudado como liberador ldquoA eacutepoca do grande ceticismo chegou Natildeo haacute nada de lsquomoral em si mesmorsquordquo24 Ou entatildeo no tatildeo celebrado espiacuterito cientifico ao qual Nietzsche se aproximaria desde Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia obra que tambeacutem compartilha a utilizaccedilatildeo programaacutetica e natildeo autocircnoma do ceticismo Daqui a necessidade de ldquoevocar o espiacuterito da ciecircncia que torna em geral muito mais frios e ceacuteticos e em particular modo resfria a ardente feacute em verdades uacuteltimas e definitivasrdquo25

Natildeo prestar atenccedilatildeo no nexo que Nietzsche instituiu entre o ceticismo no que concerne agraves verdades e uma permanente necessidade construtiva a primeira subordinada agrave segunda reduzir Nietzsche transformando-o exclusivamente no criacutetico radical ao qual importa exclusivamente a rejeiccedilatildeo natildeo nos permite perceber o nascimento de uma criacutetica ao ceticismo que nos anos sucessivos se revelaraacute como decisiva o ceticismo entendido como fruto da exaustatildeo niilista referindo-se ao qual Nietzsche fala ateacute mesmo de ldquooacutedio [contra] qualquer forma de fraqueza e de ceticismordquo26 e tampouco nos permite reconhecer a correta relevacircncia das poucas mas claras e inequiacutevocas indicaccedilotildees que ele deixou nas obras publicadas

Eacute significativa a conclusatildeo do diaacutelogo do aforisma 477 de Aurora intitulado Von der Skepsis erloumlst ldquo ndash B Vocecirc mesmo deixou de ser ceacutetico Vocecirc de fato nega ndash A E assim eu aprendi novamente a dizer simrdquo27 Ou entatildeo o aforisma 51 de A Gaia ciecircncia ldquoWahrheitssinnrdquo

24 FP 7 [231] final de 1880 OFN V 1 p 563 25 MA I sect 244 26 Nietzsche a Heinrich Romundt 15 de abril de 1876 E III p 141 27 M sect 477

218 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquoeu louvo todo ceticismo ao qual eu posso dizer lsquoVamos tentarrsquo E natildeo quero saber mais nada de todas as coisas e de todos os problemas que natildeo permitem seu experimentordquo28 No material poacutestumo da eacutepoca tal subordinaccedilatildeo do ceticismo agrave necessidade de uma pars construens ocupa numerosas anotaccedilotildees

Eu natildeo preciso acreditar em nada As coisas satildeo incognosciacuteveis [] O desespero eliminado a partir do ceticismo Eu conquistei o direito de criar29

Que se quebre tudo aquilo que pode se quebrar pelas nossas verdades Existem ainda muitos mundos que devem ser construiacutedos30

Admitido que algueacutem tenha uma forte vontade proacutepria uma filosofia ceacutetica eacute a melhor alternativa para colocar em ato a sua vontade da melhor forma possiacutevel31

Aleacutem disso apenas se seguirmos o efetivo papel

do ceticismo no periacuteodo central podemos entatildeo compreender o que acontece no uacuteltimo periacuteodo da obra nietzschiana em que o elemento do ceticismo volta a ocupar novamente uma posiccedilatildeo central exatamente como nos primeiros anos Um retorno que agrave primeira vista poderia parecer surpreendente De Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia assistimos de fato a um crescendo de certeza de assertividade que atinge o seu aacutepice com o Zaratustra O proacuteprio Zaratustra eacute o anunciador das duas grandes afirmaccedilotildees do eterno retorno e do Uumlbermensch

Mas inesperadamente em uma paacutegina do Anti-Cristo encontramos a seguinte frase

28 FW sect 51 29 FP 6 [2] inverno de 1882-83 OFN VII 1I p 220 30 FP 11 [16] junho-julho de 1883 OFN VII 1II p 39 31 FP 15 [50] veratildeo-outono de 1883 VII 1II p 153

Nietzsche e o ceticismo 219

Natildeo nos deixemos induzir ao erro os grandes espiacuteritos satildeo ceacuteticos Zaratustra eacute um ceacutetico Um espiacuterito que almeja algo de grandioso e que quer tambeacutem os meios para obtecirc-lo eacute necessariamente um ceacutetico32

Terminado o Zaratustra parecia ter chegado o ldquoperiacuteodo da minha grande colheitardquo isto eacute noacutes esperariacuteamos um resumo dos resultados alcanccedilados e que Nietzsche pudesse continuar sua trajetoacuteria escrevendo uma accedilatildeo de reforccedilo e de aprofundamento do que conquistara mas ao contraacuterio assistimos a um retorno a temas e a problemas do passado muitos dos quais satildeo inerentes a Humano demasiado humano e ateacute mesmo a O nascimento da trageacutedia O ceticismo pertence a esses temas que se reapresentam sob as faacutecies que pareciam ter sido deixadas para traacutes

5 Nesse desdobramento dois elementos satildeo decisivos em geral o peso de uma circunstacircncia que a criacutetica ainda natildeo reconheceu como fundamental no percurso nietzschiano Nietzsche devido aos contrastes com seu editor Schmeitzner foi obrigado a retomar todos os escritos precedentes fato que o levou entre o veratildeo de 1885 ao outono de 1886 a escrever novos prefaacutecios para o primeiro e para o segundo volume de Humano demasiado humano para Aurora e A Gaia ciecircncia acrescentando a essa uacuteltima uma quinta parte e a escrever o Tentativo de auto-criacutetica para O nascimento da trageacutedia

No que concerne por sua vez ao especiacutefico retorno em primeiro plano do elemento ceacutetico acrescenta-se a isso o papel exercido por uma fonte precisa o estudo da obra Les sceptiques grecs de Victor Brochard (1887) que Nietzsche leu poucos meses depois da sua publicaccedilatildeo (ele comenta o fato em Ecce Homo33) estimulado inicialmente pelo fato de que Brochard citava os seus escritos da juventude Dessa leitura possuiacutemos

32 AC sect 54 33 EH ldquoPorque sou tatildeo esclarecidordquo sect 3

220 Eacutetica e filosofia poliacutetica

muitas anotaccedilotildees que se concentram de forma particular na figura do pai do ceticismo antigo Pirro de Eacutelis

Nesta sede natildeo podemos realizar uma anaacutelise pontual dessas anotaccedilotildees mas para exemplificar a sua relevacircncia note-se a constante ligaccedilatildeo que Nietzsche institui entre o fenocircmeno de Pirro e dois filosofemas absolutamente centrais na uacuteltima fase da sua produccedilatildeo o conceito de deacutecadence e sobretudo o de niilismo Para Nietzsche o ceticismo antigo foi o resultado de uma especiacutefica eacutepoca de deacutecadence que subseguiu agrave morte de Alexandre em que a verdade se viu desmembrada nas disputas entre as filosofias helecircnicas ldquoA filosofia antiga de Soacutecrates em diante tem as estigmas da deacutecadence moralismo e felicidade Veacutertice Pirrordquo34

Pirro e o ceticismo fazem parte portanto da decadecircncia mas ao mesmo tempo satildeo tambeacutem exceccedilotildees dela frutos da deacutecadence mas tambeacutem oposiccedilatildeo a ela

O saacutebio cansaccedilo Pirro [] Um budista para a Greacutecia que cresceu no tumulto das escolas ele chegou tarde cansado protesto do cansado contra o zelo dos dialeacuteticos o natildeo acreditar de quem estaacute cansado na importacircncia das coisas35

Os verdadeiros filoacutesofos gregos satildeo aqueles que vecircm antes de Soacutecrates com Soacutecrates algo muda [] Em seguida eu vejo uma uacutenica figura original um retardataacuterio mas necessariamente o uacuteltimo o niilista Pirro ele aguccedilou seu instinto contra tudo aquilo que estava em voga os socraacuteticos Platatildeo36

A insistecircncia com a qual Nietzsche diz que Pirro eacute

um niilista nos permite formular a seguinte hipoacutetese que possui por sua vez algumas consequecircncias isto eacute que o

34 FP 14 [87] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 55 35 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 36 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

Nietzsche e o ceticismo 221

ceticismo pode ser uma fonte peculiar da conceitualizaccedilatildeo nietzschiana do niilismo Sabemos que esse termo comeccedila a ser utilizado com insistecircncia a partir de 1887 e ainda mais no decorrer de 1888 contemporaneamente isto eacute ao retorno em primeiro plano do ceticismo Aleacutem disso se o niilismo entrou no vocabulaacuterio nietzschiano tardiamente e principalmente graccedilas a Bourget vimos tambeacutem que o ceticismo pelo contraacuterio pertence agrave bagagem filosoacutefica de Nietzsche desde os tempos dos seus estudos de filologia

Mas satildeo tambeacutem caracterizaccedilotildees semelhantes que sustentam essa hipoacutetese como ldquoO ceticismo eacute uma consequecircncia da deacutecadence [] O niilismo natildeo eacute a causa mas apenas a consequecircncia loacutegica da deacutecadencerdquo37 como o ceticismo tambeacutem o ldquoperfeito niilismo eacute a consequecircncia necessaacuteria dos ideais ateacute agora cultivadosrdquo38 E ainda outro dado ainda mais importante para a presente anaacutelise tanto o ceticismo quanto o niilismo satildeo suscetiacuteveis contemporaneamente de avaliaccedilotildees especularmente opostas O niilismo pode ser o sinal de fato tanto de um exaurimento existencial como tambeacutem pelo contraacuterio pode ser sinal de forccedila e de sauacutede sinal isto eacute da capacidade conquistada de renunciar aos tradicionais dispositivos garantidores de sentido No primeiro caso Nietzsche fala de ldquoniilismo passivordquo dos ldquofracosrdquo ou ldquoincompletosrdquo no segundo caso ele fala de niilismo ldquoda completuderdquo ou ldquodos fortesrdquo

Sob a mesma duacuteplice perspectiva ele vecirc o ceticismo Existe um ceticismo do ldquocansaccedilordquo do ldquoexaurimentordquo e um ceticismo que nasce ao contraacuterio da ldquoforccedilardquo um

ceticismo viril [] uma espeacutecie diferente e mais vigorosa de ceticismo [] esse ceticismo despreza e natildeo menos por isso atrai a si mesmo escava e toma

37 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 38 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

222 Eacutetica e filosofia poliacutetica

posse natildeo acredita em nada mas natildeo se perde nisso oferece ao espiacuterito uma liberdade perigosa39

Mais uma vez o que marca a diferenccedila entre os

dois tipos de niilismo e de ceticismo eacute exatamente o fato de consideraacute-los como fins em si mesmos como resultados teoreacuteticos conclusivos ou entatildeo apenas como simples meios para construir uma positividade alternativa em relaccedilatildeo agravequilo que mediante o niilismo e o ceticismo eacute negado e para este segundo tipo Nietzsche deu o nome de ldquotentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo

6 Eacute possiacutevel discutir se essa tentativa foi bem-sucedida ou se ao contraacuterio faliu O proacuteprio Nietzsche na verdade deixa uma indicaccedilatildeo que natildeo deve ser subestimada quando em uma das suas uacuteltimas anotaccedilotildees escreveu ldquonaufragium feci bene navigavirdquo40 E sem duacutevidas eacute possiacutevel nos questionar sobre o que Nietzsche deixou depois da implacaacutevel campanha contra a verdade inaugurada em Para aleacutem do bem e do mal e que nos anos finais provocou um verdadeiro dominoacute ceacutetico em que caiacuteram um depois do outro os conceitos de metafiacutesica de loacutegica de causa e efeito de mateacuteria de sujeitoobjeto de sujeito conhecedor ndash isto eacute todos os criteacuterios tradicionais da verdade Ainda mais eacute liacutecito nos questionar se as alternativas agraves quais ele acena como a Vontade de potecircncia o binocircmio forccedilafraqueza a Rangordnung o Zuumlchtung satildeo realmente alternativas capazes de gerar frutos na igual medida daquilo que foi extirpado Montinari por exemplo responde negativamente

Se procurarmos as razotildees do falimento do conjunto da tentativa filosoacutefica de Nietzsche parece-nos que podemos apontar o seu principal e decisivo motivo Para Nietzsche a existecircncia da filosofia enquanto

39 JGB sect 209 40 FP 16 [44] primavera-veratildeo de 1888 OFN VIII 3

Nietzsche e o ceticismo 223

atividade teoreacutetica natildeo se sustentava mais de nenhuma forma pois a histoacuteria tomou o seu lugar como ele mesmo diz O sucessor do filoacutesofo deveria ter sido um legislador e a ambiccedilatildeo de Nietzsche o objetivo da sua ldquotransvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo eacute dar agrave humanidade uma lei nova A filosofia como histoacuteria eacute a pars destruens do pensamento do uacuteltimo Nietzsche (anaacutelise do niilismo europeu destruiccedilatildeo da foacutermula metafiacutesica ldquomundo verdadeirordquo anticristianismo) Na passagem agrave construccedilatildeo Nietzsche vecirc-se emaranhado na contradiccedilatildeo insoluacutevel entre o seu ceticismo extremo a sua luta contra qualquer convicccedilatildeo e a necessidade de ldquolegiferarrdquo41

Mas querendo ou natildeo concordar com uma

semelhante anaacutelise e devendo sempre de qualquer forma considerar que a filosofia de Nietzsche eacute uma filosofia incompleta ou seja interrompida subitamente durante uma frase de criaccedilatildeo plena ateacute os primeiros dias de janeiro de 1889 o ponto central que emerge da anaacutelise da presenccedila do ceticismo na filosofia de Nietzsche eacute que por mais que ele tenha aberto espaccedilo agrave negaccedilatildeo da duacutevida filosoacutefica e ao radicalismo criacutetico ele sempre rejeitou explicitamente e com grande forccedila conceder ao ceticismo a uacuteltima palavra Eacute a partir desse ponto de vista que devemos ler a sua tentativa tardia de frente ao alargamento do ceticismo que lhe resultou sempre mais incontrolaacutevel de recuperar aquilo que durante a juventude tinha sido o seu plano alternativo capaz de criar uma afirmaccedilatildeo que se tornou impossiacutevel ao contraacuterio por um caminho gnosioloacutegico isto eacute o plano esteacutetico a arte

Ainda que ele se encontrasse em um panorama diferente em relaccedilatildeo aos anos da juventude um panorama antirromacircntico e antiwagneriano o uacuteltimo Nietzsche voltaraacute a dizer como durante a juventude

41 M Montinari Che cosa ha detto Nietzsche [1975] (org) G

Campioni Adelphi Milano 1999 pp 150-151

224 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquouma justificaccedilatildeo do mundo eacute possiacutevel apenas esteticamenterdquo42 ldquosoacute a consciecircncia artiacutestica [concede] a liberdade do que eacute lsquoverdadeirorsquo e do que eacute lsquofalsorsquordquo43 e ldquoa arte tem mais valor do que a verdaderdquo44 uma vez que ldquoa verdade natildeo eacute algo que existe e que precisa ser descoberta mas algo que deve ser criadordquo45

Natildeo poderiacuteamos compreender de outra forma porque o projeto do Wille zur Macht devia iniciar com ldquoa vontade de potecircncia como arterdquo nem tampouco por que a uacuteltima fase de Nietzsche insista de forma tatildeo dura contra um Wagner que agrave essa altura jaacute natildeo estava mais vivo assim como por que dois dos seus uacuteltimos textos satildeo O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner Procurar na arte e na esteacutetica um plano alternativo ao ceticismo teoreacutetico o ldquocontra-movimentordquo ao niilismo foi o uacuteltimo experimento intelectual com o qual a filosofia de Nietzsche se interrompeu E falando de experimento devem ser relembradas as palavras que ele escreveu em Para aleacutem do bem e do mal

Admitindo portanto que na imagem dos filoacutesofos do futuro uma caracteriacutestica qualquer nos permita adivinhar que eles deveratildeo talvez ser ceacuteticos [] dessa forma natildeo teriacuteamos designado senatildeo um determinado aspecto desses filoacutesofos ndash e natildeo eles mesmos Com o mesmo direito eles poderiam ser chamados criacuteticos e sem duacutevidas seratildeo homens experimentadores46

Pela anaacutelise da relaccedilatildeo que Nietzsche

desenvolveu com a filosofia ceacutetica pelo uso que ele fez dela pela interpretaccedilatildeo que ele nos forneceu dos seus

42 FP 2 [110] outono de 1885 ndash outono de 1886 OFN VIII 1 p 104 43 FP 2 [67] outono de 1885 ndash outono de 1886 idem p 80 44 FP 14 [21] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 19 FP 17 [3] maio ndash junho 1888 OFN VII 3 p 312 45 FP 9 [91] outono de 1887 OFN VIII p 43 46 JGB sect 210

Nietzsche e o ceticismo 225

conceitos emerge o seguinte dado se o radicalismo criacutetico eacute certamente uma componente preponderante e central do pensamento nietzschiano ele natildeo encerra em si a sua essecircncia a qual ao contraacuterio continua presente ndash com maior forccedila e muito mais difiacutecil de ser compreendida hermeneuticamente ndash mais na sua pars construens do que na pars destruens

Refletindo sobre a relaccedilatildeo entre ambas Giorgio Colli escreveu

Aquilo que Nietzsche profetizou tornou-se realidade ateacute raacutepido demais O cristianismo eacute hoje ndash como religiatildeo ndash um entulho que natildeo incomoda mais ningueacutem A idade das grandes violecircncias chegou talvez ateacute jaacute ficou para traacutes O imoralismo crescente na poliacutetica e na cultura foi assimilado em massa tornou-se um sinal distintivo da plebe O que diria Nietzsche Ele responderia que natildeo foi isso que desejou Disso noacutes podemos ter plena convicccedilatildeo47

Eis que para o inteacuterprete nietzschiano permanece

ainda hoje aberta a pergunta o que Nietzsche entatildeo queria E procurar encontrar respostas a essa questatildeo eacute talvez um dos caminhos que prometem mais frutos para continuar dando vida ao seu pensamento

47 G Colli La ragione errabonda (org) E Colli Adelphi Milano 1982

pp 121-122

226 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 227

OS ORGANIZADORES Ceacutelia Machado Benvenho eacute Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (2008) financiado pelo CNPQ na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento Possui graduaccedilatildeo em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (1994) Especialista em Administraccedilatildeo e Planejamento de Sistemas Educacionais pela UNIPAR - Universidade Paranaense (1997) e especialista em Computaccedilatildeo Aplicada ao Ensino pela Universidade estadual de Maringaacute (1998) Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia Filosofia da Educaccedilatildeo Ensino de Filosofia e Filosofia para crianccedilas Atualmente eacute professor Assistente da UNIOESTE - campus de Toledo onde atua como Coordenador de aacuterea do CCHS leciona para o curso de graduaccedilatildeo em Filosofia orienta Trabalho de Conclusatildeo de Curso e Estaacutegio Supervisionado

228 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo eacute poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico

Nietzsche e o ceticismo 229

Joseacute Francisco de Assis Dias eacute Professor Adjunto da UNIOESTE Toledo-PR professor do Mestrado em Gestatildeo do Conhecimento nas Organizaccedilotildees na UNICESUMAR pesquisador do Grupo de Pesquisa ldquoEducaccedilatildeo e Gestatildeordquo e do Grupo de Pesquisa ldquoEacutetica e Poliacuteticardquo da UNIOESTE CCHS Toledo-PR Doutor em Direito Canocircnico pela Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Cidade do Vaticano Roma Itaacutelia Doutor em Filosofia tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Mestre em Direito Canocircnico tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Mestre em Filosofia pela mesma Pontifiacutecia Universidade Especialista em Docecircncia no Ensino Superior pela UNICESUMAR Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo ndash RS Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciecircncia Tecnologia e Inovaccedilatildeo (ICETI) E-mail jfad_brhotmailcom

230 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Joseacute Luiz Giombelli Mariani eacute acadecircmico do terceiro

ano do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade

Estadual do Oeste do Paranaacute bolsista do Programa

Institucional de Bolsa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)

vinculado a CAPESMEC Cursou trecircs semestres do

curso de Filosofia da Faculdade Palotina (FAPAS) de

Santa Maria ndash RS Participou como organizador da XIX

Semana Acadecircmica de Filosofia evento organizado pelo

Centro Acadecircmico de Filosofia Atualmente desenvolve

pesquisa na aacuterea de Eacutetica e Filosofia Poliacutetica com o

tema ceticismo na Reforma Protestante com o pensador

Montaigne orientado pelo Professor Dr Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo (UNIOESTE) Participa como membro do

Diretoacuterio do Centro Acadecircmico de Filosofia da

Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute ocupando o

cargo de Coordenador Geral

Nietzsche e o ceticismo 231

Wilson Antonio Frezzatti Jr eacute professor associado dos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo (mestradodoutorado) em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) Professor colaborador do Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute (UEM) Coordenador do GT-Nietzsche (ANPOF) Membro do Groupe Internationale de Recherche sur Nietzsche (GIRN) do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN-USP) e do Grupo de Pesquisa Filosofia Ciecircncia e Natureza na Alemanha do seacuteculo XIX (UNIOESTE) Autor dos livros Nietzsche contra Darwin (2001 1ordf ed 2014 2ordf ed) e A Fisiologia de Nietzsche a Superaccedilatildeo da Dualidade CulturaBiologia (2006)

232 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 233

234 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Page 2: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento

EacuteTICA E FILOSOFIA POLIacuteTICA

Ceticismo em Movimento

4 Eacutetica e filosofia poliacutetica

IMAGEM DA CAPA httpscafilunioestedotcomfileswordpresscom201605banner-60x120-1pngw=775

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr Ceacutelia Machado Benvenho

Joseacute Francisco de Assis Dias Joseacute Luiz Giombelli Mariani

(Organizadores)

EacuteTICA E FILOSOFIA POLIacuteTICA

Ceticismo em Movimento

Primeira Ediccedilatildeo E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Toledo ndash PR

2016

6 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Copyright 2016 by

Organizadores EDITORA

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL

Ademir Menin ndash UNIOESTE ndash PR Joseacute Aparecido Pereira ndash PUC-PR Joseacute Beluci Caporalini ndash UEM Lorella Congiunti ndash PUU ndash Roma

COMITEcirc CIENTIacuteFICO Dr Ceacutesar Augusto Battisti ndash UNIOESTE ndash PR Dr Clademir Luis Araldi ndash UFPel ndash Pelotas ndash RS Dr Claudinei Aparecido de Freitas da Silva ndash UNIOESTE ndash PR Dr Ivo da Silva Jr ndash UNIFESP ndash SP Dr Joatildeo Virgiacutelio Tagliavini ndash UFSCar ndash SP Dr Joseacute Luiz Ames ndash UNIOESTE ndash PR Dr Roberto Saraiva Kahlmeyer Mertens ndash UNIOESTE ndash PR Drordf Ester Maria Dreher Heuser ndash UNIOESTE - PR

REVISAtildeO ORTOGRAacuteFICA Prof Ademir Menin

DIAGRAMACcedilAtildeO E DESIGN Editora Vivens Ltda

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo-na-Publicaccedilatildeo (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecaacuteria CRB9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o territoacuterio na-cional Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmi-tida por qualquer forma eou quaisquer meios ou arquivada em qual-quer sistema ou banco de dados sem permissatildeo escrita da Editora

Os textos satildeo de responsabilidade exclusiva de seus autores Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Rua Pedro Lodi nordm 566 ndash Jardim Coopagro Toledo ndash PR ndash CEP 85903-510 Fone (45) 3056-5596

httpwwwvivenscombr e-mail contatovivenscombr

Eacutetica e filosofia poliacutetica ceticismo em

E84 movimento organizadores Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo[et al]ndash1 ed e-book ndash Toledo

PR Vivens 2016 232 p

Modo de Acesso World Wide Web

lthttpwwwvivenscombrgt

ISBN 978-85-92670-20-7

1 Ceticismo 2 Conhecimento e verdade 3

Filosofia francesa 3 Montaigne Michel de 1533-

1592 I Tiacutetulo

CDD 22 ed 194

SUMAacuteRIO APRESENTACcedilAtildeO I = O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE Henrique Zanelato II = MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo III = AMIZADE EM MONTAIGNE Junior Cesar Luna IV = O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O CAMINHO DA FILOSOFIA Elissa Gabriela Fernandes Sanches V = A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo Anderson Lucas dos Santos Pereira VI = O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE Joseacute Luiz Giombelli Mariani VII = VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMO ENSAIOS DE MONTAIGNE Andre Scoralick

09

13

33

71

107

137

161

179

8 Eacutetica e filosofia poliacutetica

VIII = NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE Stefano Busellato 205

APRESENTACcedilAtildeO Este livro resultou das conferecircncias proferidas

durante as Jornadas de Eacutetica amp Filosofia Poliacutetica e Metafiacutesica amp Conhecimento que realizaram em 2016 a sua 9ordf ediccedilatildeo O evento conjugado teve como principal caracteriacutestica reunir especialistas de diferentes regiotildees do Brasil que pesquisem determinado assunto autor ou problema A cada ano um docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia organiza o evento como forma de propiciar a cada nova ediccedilatildeo a discussatildeo de diferentes temas filosoacuteficos relacionados a ambas as Linhas de Pesquisa como uma forma de articulaccedilatildeo de diferentes grupos de pesquisa em atividade (Eacutetica e Filosofia Poliacutetica Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Metafiacutesica e Conhecimento Wilson Antonio Frezzatti Jr e Stefano Busellato)

Por sua vez anualmente o colegiado do curso de graduaccedilatildeo em filosofia designa um professor como coordenador da Semana Acadecircmica (Joseacute Francisco de Assis Dias) As ediccedilotildees anteriores reuniram pesquisadores de diversos Estados brasileiros e ateacute mesmo alguns do exterior Nessa oportunidade os especialistas puderam debater sobre temas bastante pontuais

Para 2016 visando pois a promover o debate em torno da questatildeo da fundamentaccedilatildeo do ceticismo a Jornada em Eacutetica e Filosofia Poliacutetica almejou estudar o legado ceacutetico em particular a leitura de Sexto Empiacuterico feita por Montaigne principal divulgador do ceticismo no iniacutecio da Idade Moderna Recorre-se a argumentos que levam agrave incerteza sobre a apreensatildeo de um conhecimento verdadeiro O procedimento de Montaigne eacute o de opor a toda razatildeo uma razatildeo igual objetivando negar o Dogmatismo e estabelecer a duacutevida radical em relaccedilatildeo agraves doutrinas que afirmam ter a verdade Como

10 Eacutetica e filosofia poliacutetica

base da sua criacutetica recorre agrave tradiccedilatildeo ceacutetica antiga advinda de Pirro e de modo particular agraves Hipotiposes Pirrocircnicas O estudo dos Ensaios constitui uma fonte inesgotaacutevel de problemas A apropriaccedilatildeo e inovaccedilatildeo montaigniana do ceticismo eacute um deles

O ceticismo eacute uma forma de pensar que nos livraria das amarras de uma racionalidade comprometida em revelar um conhecimento indubitaacutevel Mas como isso aparece nos Ensaios Por que a diaphonia ateacute agora na histoacuteria do pensamento tem se revelado invenciacutevel

Na realidade em torno do ceticismo os textos desta obra apontam trecircs pensadores que de alguma forma se articulam Santo Agostinho que passou pelo ceticismo acadecircmico e foi lido pelo pirrocircnico Montaigne Este por sua vez foi lido por Nietzsche quando ganhou de presente um exemplar dos Essais

O tema da Jornada em Metafiacutesica e Conhecimento eacute ldquoZaratustra Arte e Vidardquo De certa maneira eacute sequecircncia do tema da II Jornada (2009) ldquoZaratustra Filosofia e Vidardquo A jornada deste ano debateu com pesquisadores poacutes-graduandos graduandos e professores de filosofia do Ensino Meacutedio a relaccedilatildeo entre filosofia arte e vida partindo do eixo teoacuterico do filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche no qual a filosofia eacute expressatildeo de modos de vida

Diferentes modos de vida produzem diferentes filosofias ou seja uma determinada filosofia expressa uma determinada experiecircncia Esse tema aleacutem da importacircncia de apresentar uma perspectiva acerca da proacutepria filosofia eacute relevante para os trabalhos de pesquisa que vecircm sendo desenvolvidos no Doutorado Mestrado e Graduaccedilatildeo da UNIOESTE

Os organizadores desta obra tecircm a grata satisfaccedilatildeo de apresentar textos de estudiosos de dois autores tatildeo importantes para o pensamento filosoacutefico como eacute o caso de Montaigne e de Nietzsche Por questotildees de ordem metodoloacutegica os textos estatildeo sendo

Apresentaccedilatildeo 11

publicados em dois livros conforme a proposta das duas Jornadas

Boa leitura a todos

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr

12 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= I =

O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE

Henrique Zanelato

11 INTRODUCcedilAtildeO

Pretendemos com a presente comunicaccedilatildeo

discutir certa leitura de Michel de Montaigne1 que sugere uma ldquoevoluccedilatildeordquo em seu pensamento passando de estoico a epicurista com uma chamada ldquocrise ceacuteticardquo entre elas Tal leitura eacute proposta por Pierre Villey a quem os leitores de Montaigne devem muito devido a organizaccedilatildeo feita sobre a cronologia da obra do ensaiacutesta bem como a indicaccedilatildeo das fontes utilizadas durante os anos de composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios Montaigne teria

Mestrando e graduado em filosofia pela UNIOESTE E-mail henriquezanelatoIIhotmailcom 1 ldquoMichel Eyquem seigneur de Montaigne nasceu em 1533 filho e herdeiro de Pierre Seigneur de Montaigne (dois filhos anteriores morreram apoacutes o nascimento) Foi educado falando latim como a primeira liacutengua e sempre conservou uma disposiccedilatildeo de espiacuterito latina embora conhecesse o grego preferia usar traduccedilotildees Depois de estudar direito finalmente tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux Casou-se em 1565 Em 1569 publicou a sua versatildeo francesa de Theologia naturalis de Raymond Sebond o seu Apologie eacute apenas em parte uma defesa de Sebond em que estabelece limites ceacuteticos para o raciociacutenio humano sobre Deus o homem e a natureza Em 1571 mudou-se para suas terras em Montaigne dedicando-se agrave leitura agrave reflexatildeo e agrave composiccedilatildeo de seus Ensaios (primeira versatildeo 1580) Montaigne tinha aversatildeo ao fanatismo e agraves crueldades do periacuteodo das guerras religiosas mas apoiava a ortodoxia catoacutelica e a instituiccedilatildeo monaacuterquica Duas vezes foi eleito prefeito de Bordeaux (1581 e 1583) cargo que ocupou por quatro anos Morreu em Montaigne em 1592 enquanto preparava a ediccedilatildeo final e a mais rica de seus Ensaiosrdquo (MONTAIGNE 2010)

14 Eacutetica e filosofia poliacutetica

iniciado a composiccedilatildeo de sua obra aproximadamente em 1571 escrevendo ateacute sua morte em 1592

Um esclarecimento preacutevio eacute necessaacuterio os Ensaios se dividem em trecircs livros com capiacutetulos sobre diversos temas Aleacutem disso a obra natildeo foi publicada toda de uma vez dividindo-se em trecircs ediccedilotildees e essa distinccedilatildeo nos eacute essencial aqui a primeira ediccedilatildeo surgiu em 1580 na qual os dois primeiros livros foram publicados em 1588 a obra ganhou mais um livro aleacutem de acrescentar vaacuterios acreacutescimos aos dois primeiros posteriormente a 1588 uma nova publicaccedilatildeo surge com novos acreacutescimos Essa distinccedilatildeo eacute feita nas publicaccedilotildees atuais com algumas indicaccedilotildees [A] corresponde agrave primeira ediccedilatildeo de 1580 [B] agrave segunda e [C] agrave terceira

Nosso intento ao discutir essa proposta evolutiva teraacute como foco a primeira ediccedilatildeo da obra ou seja com os textos de 1572 segundo os quais se diz que Montaigne teria adotado uma postura estoica Para isso faremos a comparaccedilatildeo desses primeiros textos com textos mais tardios bem como a comparaccedilatildeo com a literatura ceacutetica a fim de procurar elementos que confirmem ou rejeitem essa hipoacutetese de Villey de que Montaigne teria abandonado o estoicismo depois do contato com as obras ceacuteticas receacutem descobertas no Renascimento

A pesquisa sobre Montaigne deve muito ao estudo de Villey As fontes e a evoluccedilatildeo dos Ensaios de Montaigne publicado em 1908 lanccedilou uma importante luz sobre a obra do ensaiacutesta

[] vasto estudo que investiga fontes referecircncias e citaccedilotildees contextualiza historicamente os temas e propotildee uma cronologia para a composiccedilatildeo da obra de Montaigne Com este estudo Villey consolidou uma nova e fecunda leitura dos Ensaios em que se desenha sua coerecircncia Durante alguns seacuteculos aceitou-se a foacutermula de que os Ensaios eram obra fragmentaacuteria coleccedilatildeo de citaccedilotildees uma conversa

O problema do ceticismo 15

despretensiosa com o leitor na qual o acaso construiacutea o discurso (VASCONCELLOS 2000 p XI)

Aleacutem disso Montaigne natildeo organizou os capiacutetulos

segundo a ordem de composiccedilatildeo deles nos deixando no escuro ateacute Villey sobre a data da escrita de cada um deles Todas as datas que aparecem no iniacutecio dos capiacutetulos satildeo sugeridas por Villey de acordo com os temas sobre os quais Montaigne escrevia ou sobre as referecircncias feitas pelo ensaiacutesta a determinada obra ou sobre algum evento histoacuterico citado por ele Assim devemos salientar que a precisatildeo nas datas eacute apenas aproximada jaacute que sugeridas mais de 300 anos depois

Durante seu trabalho de investigaccedilatildeo Villey encontrou certa coerecircncia numa leitura que sugere uma evoluccedilatildeo no pensamento de Montaigne de acordo com as influecircncias que sofrera em suas leituras Assim propotildee que

[] Montaigne nos vinte anos em que se dedicou agrave composiccedilatildeo dos Ensaios fez um percurso filosoacutefico Em linhas gerais sua hipoacutetese eacute a de que a princiacutepio estreitamente marcado pelo estoicismo de Secircneca Montaigne teria exercitado o gecircnero literaacuterio conhecido como leccedilons (compilaccedilatildeo da filosofia dos antigos coletacircnea de exemplos e maacuteximas morais) Seus primeiros ensaios portanto na esteira das leccedilons seriam bastante impessoais O rigor deste gecircnero segundo Villey foi abrandado com a leitura das Obras morais de Plutarco que lhe permitiu uma moralidade mais amena introduzindo ao texto juiacutezos pessoais Contudo o ensaio como gecircnero literaacuterio soacute surgiria apoacutes a leitura de Sexto Empiacuterico cujo ceticismo possibilitou ao ensaiacutesta ponderar sobre a vaidade da razatildeo humana e as dificuldades de qualquer conhecimento que se aventure aleacutem dos limites do proacuteprio sujeito Viria daiacute a ecircnfase dada agrave expressatildeo de si mesmo os ensaios caracterizando-se por constituiacuterem a realizaccedilatildeo de um auto-retrato De modo

16 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que inicialmente estoico Montaigne apoacutes a crise ceacutetica teria finalmente aderido ao epicurismo ou filosofia da natureza filosofia ldquoque se contenta em regular em vez de combatecirc-los os instintos naturais a que ela abandona o homemrdquo (VASCONCELLOS 2000 p XII)

A partir dessa proposta de Villey e de alguns

trabalhos que vecircm questionando tal leitura nos propomos a investigar em que medida essa tese evolutiva se sustenta jaacute que julgamos encontrar elementos que colocam em xeque tanto um apelo totalmente estoico no iniacutecio da obra quanto um totalmente epicurista no fim dela Para isso faremos a anaacutelise de alguns capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 comparando-os com a Apologia de Raymond Sebond capiacutetulo no qual Montaigne trabalha o ceticismo de modo mais expliacutecito Faremos algumas indicaccedilotildees tambeacutem sobre alguns capiacutetulos do terceiro livro tidos como epicuristas a fim de questionar o abandono do ceticismo por Montaigne depois da ldquocrise ceacuteticardquo

Entre os capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 dois deles nos parecem fornecer alguns elementos para pontuar certa fragilidade na tese de que Montaigne teria adotado o estoicismo nesse periacuteodo Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32) e Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37) Mesmo que seja possiacutevel identificar alguns capiacutetulos com temas estoicos bem como vaacuterias citaccedilotildees e referecircncias agrave essa escola Secircneca principalmente natildeo podemos deixar de notar em outros capiacutetulos uma visiacutevel inconsistecircncia entre a confianccedila na razatildeo aspecto marcante do estoicismo e certos juiacutezos de Montaigne

Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32)

Este ensaio estaacute ao que parece relacionado estritamente com um tema contemporacircneo a Montaigne

O problema do ceticismo 17

a Reforma Protestante Tal tema eacute debatido em diversos momentos da obra montaigniana obtendo grande destaque naquele que eacute talvez o mais ceacutelebre de seus ensaios a Apologia de Raymond Sebond A Apologia eacute um dos textos mais discutidos pelos estudiosos do autor francecircs principalmente no que se refere ao ceticismo o deixaremos de lado aqui por se tratar de um ensaio posterior ao contato de Montaigne com a obra de Sexto Empiacuterico principal fonte para os estudos ceacuteticos O que nos interessa agora eacute uma anaacutelise do trigeacutesimo segundo ensaio do Livro I que segundo a nota introdutoacuteria de Villey estaria situado no comeccedilo da composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios

Este capiacutetulo foi composto poucos meses apoacutes a vitoacuteria de Dom Joatildeo da Aacuteustria em Lepanto (outubro de 1571) Um empreacutestimo tomado dos Annales drsquoAquitaine de Jean Bouchet tambeacutem atesta que ele eacute de aproximadamente 1572 (VILLEY 2000 p 321)

Outro aspecto digno de nota sobre este ensaio eacute

que a maior parte do texto compotildee a camada A ou seja a camada da primeira ediccedilatildeo do livro de 1580 Cremos portanto que I 32 contenha algo sobre o modo de pensar de Montaigne do iniacutecio de sua obra Dito isso passemos pois ao texto

Notamos desde as primeiras palavras de Montaigne o assunto do ensaio a facilidade de se falar das coisas desconhecidas Tal facilidade se deve em grande medida ao fato de que tais assuntos por natildeo serem comuns agrave experiecircncia ou agrave reflexatildeo popular natildeo sejam facilmente contrariados e muito menos refutados

[C] Por causa disso diz Platatildeo eacute muito mais faacutecil satisfazer ao falar da natureza dos deuses do que da natureza dos homens porque a ignoracircncia dos ouvintes abre um belo e amplo caminho e toda a

18 Eacutetica e filosofia poliacutetica

liberdade para o manejo de uma mateacuteria secreta (I 32 322)

O desconhecido eacute segundo ele ldquoo verdadeiro

campo e assunto da imposturardquo e todos os que se ocupam dele satildeo contadores de faacutebulas ldquocomo alquimistas prognosticadores astroacutelogos quiromantes meacutedicosrdquo Montaigne entatildeo soma a esses aqueles que parecem ser o alvo de sua criacutetica apesar de se mostrar receoso quanto a isso

A ele eu acrescentaria de bom grado se ousasse um bando de pessoas inteacuterpretes e controladores habituais dos desiacutegnios de Deus que tecircm a pretensatildeo de descobrir as causas de cada acontecimento e ver nos segredos da vontade divina os incompreensiacuteveis motivos de suas obras (I 32 322)

Notamos aqui uma comparaccedilatildeo entre

ldquoimpostores e contadores de faacutebulasrdquo com ldquoos inteacuterpretes da vontade de Deusrdquo e entre ldquoas coisas desconhecidasrdquo com ldquoas causas de cada acontecimento e os segredos da vontade divinardquo Apesar de se afirmar como catoacutelico em diversos ensaios (mesmo que isso seja motivo de discussatildeo entre os inteacuterpretes) Montaigne se posiciona contra alguns haacutebitos comuns agrave cristandade da eacutepoca ldquoMas considero mau o que vejo em uso de procurar firmar e apoiar nossa religiatildeo no sucesso e prosperidade de nossos empreendimentosrdquo (I 32 323) Sua criacutetica eacute entatildeo direcionada agravequeles cristatildeos sejam eles catoacutelicos ou protestantes que tentam justificar a legitimidade de suas reinvindicaccedilotildees pelos acontecimentos

[] nas guerras em que estamos pela religiatildeo os que levaram vantagem no confronto de Rochelabeille festejando muito a ocorrecircncia e servindo-se dessa boa fortuna para garantir a aprovaccedilatildeo de seu partido quando depois vecircm a desculpar seus infortuacutenios de

O problema do ceticismo 19

Mont-Contour e de Jarnac como sendo varas e castigos paternos (I 32 323)

O confronto de Rochelabeille segundo a nota

ocorreu em maio de 1569 e deu vantagem aos protestantes As outras duas Mont-Contour e Jarnac ocorridas em outubro e marccedilo de 1569 respectivamente favoreceram os catoacutelicos Assim Montaigne chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de justificar a escolha pelo partido catoacutelico ou protestante a partir da argumentaccedilatildeo baseada nas vitoacuterias das batalhas empreendidas de um contra o outro

Outro exemplo oferecido por Montaigne para mostrar a dificuldade de ajustar os eventos histoacutericos se refere agraves mortes semelhantes de algumas personalidades que tiveram relaccedilotildees diferentes com Deus

E quem quisesse justificar que Aacuterio e Leatildeo seu papa principais chefes daquela heresia em eacutepocas diversas tenham morrido de mortes tatildeo parecidas e tatildeo estranhas (pois afastando-se do debate por dor de barriga para ir agrave privada laacute ambos entregaram subitamente a alma) e exagerar essa vinganccedila divina pela circunstacircncia do lugar ainda poderia bem acrescentar-lhe a morte de Heliogaacutebalo que tambeacutem foi morto em uma retreta Mas ora Ireneu viu-se envolvido pela mesma fortuna (I 32 323-324)

A heresia a que Montaigne se refere

aproximando dos dois primeiros nomes eacute o arianismo2 Heliogaacutebalo foi um ldquoimperador romano de origem siacuteria cujo reinado se caracterizou pelos excessos de todo tipo introduziu em Roma o culto a Baal de que era sacerdote na Siacuteriardquo3 O outro foi ldquoSanto Ireneu padre e doutor da

2 O arianismo foi uma linha de pensamento que negava a consubstanciaccedilatildeo de Cristo Para ela Cristo natildeo seria eterno como o Pai mas uma criatura dele 3 Cf nota 10 deste capiacutetulo dos Ensaios na paacutegina 324

20 Eacutetica e filosofia poliacutetica

igreja bispo de Lyon morto no iniacutecio do seacutec IIIrdquo4 A intenccedilatildeo eacute a mesma dos exemplos anteriores Como poderia algueacutem conciliar exemplos de figuras tatildeo opostas Dizer que Deus teria se utilizado de castigo tatildeo peculiar para punir os primeiros seria ateacute aceitaacutevel mas por que um homem santo teria destino semelhante Ou para os primeiros exemplos Deus seria ora protestante ora catoacutelico Seria ele arbitraacuterio em suas decisotildees

Apesar de tantos acontecimentos apontarem contra o que argumentam ldquonatildeo deixam entretanto de perseguir sua bola e com o mesmo laacutepis pintar o preto e o brancordquo ldquovendem duas vezes o mesmo trigo e com a mesma boca sopram o quente e o friordquo Eacute faacutecil ao leitor perceber o quanto tudo isso eacute fraacutegil e Montaigne alerta para o perigo de que na falta de sucessos o povo acabe por ter sua feacute abalada ou por perdecirc-la

Em um acreacutescimo da uacuteltima ediccedilatildeo drsquoOs Ensaios ele afirma

[C] Deus querendo ensinar-nos que os bons tecircm outra coisa a esperar e os maus outra coisa a temer aleacutem das venturas ou desventuras deste mundo maneja-as e aplica-as de acordo com seu comando secreto e priva-nos dos meios de nos aproveitarmos tolamente delas E satildeo logrados os que querem se prevalecer disso segundo a razatildeo humana Nunca datildeo uma estocada sem receberem duas Santo Agostinho daacute uma bela prova disso contra seus adversaacuterios Eacute um conflito que se decide pelas armas da memoacuteria mais do que pelas da razatildeo (I 32 324)

Seria o vencedor da disputa aquele que

conhecesse mais exemplos ou que fosse mais capaz de moldaacute-los de acordo com sua causa para convencer os ouvintes Pois pelo que parece ou as coisas natildeo acontecem com base em um criteacuterio uacutenico e imutaacutevel ou ele nos eacute totalmente desconhecido Assim se uma

4 Cf nota seguinte na mesma paacutegina

O problema do ceticismo 21

batalha eacute vencida por um ou outro partido natildeo eacute porque Deus apoie a sua causa ou se algueacutem morre de modo natildeo tatildeo convencional natildeo seria isso motivo para julgar essa morte como um castigo

O que podemos notar eacute que Montaigne tem consciecircncia da facilidade com a qual eacute possiacutevel distorcer os fatos adequando-os bem ou mal com a nossa causa principalmente quando se trata de um assunto pouco comum Certa maleabilidade da razatildeo eacute reconhecida por ele A religiatildeo natildeo podendo ser fundamentada pela razatildeo deve procurar outra base sobre a qual se assentar A sugestatildeo de Montaigne para os assuntos de religiatildeo eacute que cada um tenha feacute evitando justificaacute-la com bases que natildeo satildeo capazes de tanto

[A] A um cristatildeo basta acreditar que todas as coisas vecircm de Deus recebecirc-las reconhecendo sua divina e inescrutaacutevel sabedoria e por conseguinte aceitaacute-las de bom grado sob qualquer feiccedilatildeo que lhe sejam enviadas [] Nossa crenccedila tem muitos outros fundamentos sem a legitimar pelos acontecimentos (I 32 322-323)

Natildeo queremos adentrar na questatildeo da defesa da

religiatildeo catoacutelica por Montaigne ou na conciliaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o ceticismo discutida na Apologia e motivo de controveacutersias entre os comentadores O que nos interessa eacute destacar a fragilidade e impotecircncia da razatildeo quando tentada a justificar os misteacuterios divinos preferindo confiar agrave sabedoria de Deus a razatildeo de todos os acontecimentos pois ldquoeacute difiacutecil ajustar as coisas divinas agrave nossa balanccedila sem que elas sofram diminuiccedilatildeordquo (I 32 323)

Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37)

Este ensaio apesar de Villey natildeo concluir com certeza eacute considerado por ele como datado aproximadamente de 1572 com base em outros textos

22 Eacutetica e filosofia poliacutetica

em que Montaigne insere exemplos retirados das mesmas fontes5 Eacute curto assim como o analisado anteriormente e embora apresente mais acreacutescimos das ediccedilotildees posteriores acreditamos ter uma quantidade razoaacutevel de elementos da primeira camada para nos basearmos

Ele inicia-se com uma reflexatildeo sobre trecircs exemplos nos quais o vencedor de uma batalha chora a morte de seu inimigo

[A] [] Antiacutegono ficou muito desgostoso com seu filho por lhe ter apresentado a cabeccedila do rei Pirro seu inimigo que naquele mesmo momento acabara de ser morto em combate contra ele e que tendo-a visto pocircs-se a chorar fortemente e que o duque Reneacute de Lorena tambeacutem lamentou a morte do duque Carlos de Borgonha que acabara de derrotar e acompanhou enlutado seu enterro e que na batalha de Auray que o conde de Montfort venceu contra Charles de Blois seu adversaacuterio para o ducado de Bretanha o vitorioso ao encontrar o corpo de seu inimigo morto demonstrou grande pesar (I 38 348-349)

Montaigne posiciona-se com isso contrariamente

aos versos de Petrarca e Lucano que insere logo a seguir6 Apesar de considerar verdadeira a motivaccedilatildeo e a

5 ldquoSomos tentados a admitir aliaacutes sem razotildees decisivas que este capiacutetulo foi composto por volta de 1572 De fato podemos supor que os capiacutetulos XXXVIII XLI XLIV XLV XLVII satildeo contemporacircneos pois todos eles colocados a pouca distacircncia uns dos outros foram sugeridos por exemplos extraiacutedos da mesma obra ndash as Vidas de

Plutarco ndash e apresentam notaacuteveis analogias de estrutura Ora como os capiacutetulos XLI e XLVII satildeo de 1572 eacute possiacutevel que todo o grupo seja da mesma eacutepocardquo (VILLEY 2000 p 348) 6 ldquoE assim a alma encobre suas paixotildees sob uma aparecircncia contraacuteria sob um semblante ora jubiloso ora sombriordquo (Petrarca soneto LXXXI ediccedilatildeo de 1550 soneto CXXXII) ldquoEle pensou assim que podia sem risco manifestar sentimentos de sogro derramou laacutegrimas forccediladas e extraiu gemido de um coraccedilatildeo jubilosordquo (Lucano IX 1037) Notas 2 e 3 do ensaio paacutegina 349

O problema do ceticismo 23

vontade de vencer a batalha o autor francecircs natildeo vecirc contradiccedilatildeo nem falsidade como sugere o poeta citado na atitude de pranto e pesar dos vencedores Soma entatildeo aos trecircs primeiros o exemplo de Ceacutesar que apesar de estar em guerra contra Pompeu ldquodesviou os olhos como de um espetaacuteculo vil e desagradaacutevelrdquo quando lhe apresentaram a cabeccedila deste E assim como de Petrarca discorda de Lucano que cita em seguida pois natildeo entende como fingidas as laacutegrimas de Ceacutesar tendo em vista que aleacutem de sogro de Pompeu ambos durante muito tempo haviam vivido em harmonia fazendo vaacuterias alianccedilas ldquono manejo dos assuntos puacuteblicosrdquo

O que Montaigne chama a atenccedilatildeo eacute para o fato de que natildeo somos constantes em nosso agir tema este que estaacute presente em alguns outros ensaios Por mais que sejamos conhecidos por uma qualidade ela seja qual for natildeo pode ser a uacuteltima palavra a nosso respeito pois nada impede que o mais corajoso dos homens seja invadido pela covardia em algum caso Pois

Assim como em nossos corpos dizem que haacute uma reuniatildeo de diferentes humores cujo senhor eacute o que comanda mais habitualmente em noacutes segundo nosso temperamento tambeacutem em nossas almas embora haja diversos movimentos que a agitam no entanto eacute preciso que haja um que domine o campo Mas natildeo com uma superioridade tatildeo absoluta que devido agrave volubilidade e maleabilidade da nossa alma os mais fracos ocasionalmente natildeo retomem a praccedila e por sua vez natildeo faccedilam um breve ataque (I 38 350)

Em adiccedilotildees posteriores Montaigne oferece o

proacuteprio exemplo para reforccedilar a ideia Censurar seu criado com palavras duras natildeo o impede de ldquopassada essa explosatildeordquo ajudaacute-lo quando precise mesmo que seja logo em seguida ldquono mesmo instante viro a paacuteginardquo Tambeacutem afirma que ningueacutem poderia julgar falso seu

24 Eacutetica e filosofia poliacutetica

semblante em relaccedilatildeo agrave sua mulher ldquoora frio ora amorosordquo (I 38 351)

A paacutegina seguinte depois de mais alguns exemplos (Nero e Xerxes) leva-nos para a conclusatildeo ponto que queremos destacar qual o motivo de termos sentimentos e atitudes diferentes perante a mesma coisa ou fato se natildeo eacute falsidade O que Montaigne percebe eacute que nada tem apenas um ponto de vista e que mesmo noacutes olhamos a mesma coisa de modos diferentes

[A] Embora tenhamos perseguido com vontade resoluta a vinganccedila de uma ofensa e sentido um extraordinaacuterio contentamento pela vitoacuteria entretanto choramos Natildeo eacute por isso que choramos nada mudou mas nossa alma encara a coisa com outros olhos e representa-a com outra feiccedilatildeo pois cada coisa tem vaacuterias perspectivas e vaacuterios aspectos (I 38 352)

A inconstacircncia aparece deste modo como algo

presente no homem por mais que se queira defini-lo de modo definitivo Natildeo somente que os homens sejam afetados de modos diferentes (ateacute o mesmo homem neste caso) pela mesma coisa mas que a mesma atitude tenha consequecircncias diferentes satildeo temas discutidos pelo ensaiacutesta em outros lugares7 Para Montaigne ldquoao querermos fazer de toda esta sequecircncia um corpo uno enganamo-nosrdquo

Notamos aqui como no outro ensaio8 que eacute possiacutevel discursar de modos diferentes acerca de alguma coisa ndash mesmo que natildeo seja essa a principal preocupaccedilatildeo de Montaigne em I 38 ndash conduzindo a discussatildeo para a conclusatildeo desejada Antes era possiacutevel mesmo que um exame mais acurado apontasse suas falhas argumentar de modo a transformar algum

7 Ver tambeacutem ainda no livro I Por meios diversos chega-se ao mesmo fim O lucro de um eacute prejuiacutezo do outro Diversas decorrecircncias da mesma atitude entre outros 8 I 32

O problema do ceticismo 25

acontecimento em aviso de Deus como posicionamento a favor ou contra um partido ou atitude Agora eacute possiacutevel acusar de falsidade ou mascaramento uma accedilatildeo contraacuteria ao que empreendemos no momento ou contraacuteria ao que se julga ser nossa caracteriacutestica essencial Os versos de Petrarca e Lucano citados no texto do autor francecircs atestam isso

A partir da anaacutelise desses dois capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios partimos agora para uma comparaccedilatildeo deles com o ceticismo partindo de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero com discussotildees ceacuteticas antigas e tambeacutem do proacuteprio Montaigne em textos posteriores principalmente a Apologia

De acordo com a argumentaccedilatildeo de Richard Popkin (2000) o ceticismo sofreu um esquecimento na tradiccedilatildeo filosoacutefica ficando soterrado durante todo o periacuteodo medieval onde predominou principalmente o desenvolvimento da filosofia aristoteacutelica voltada ao cristianismo No entanto no Renascimento durante as discussotildees da Reforma Protestante foram aparecendo lentamente alguns textos ceacuteticos acalorando ainda mais a discussatildeo acerca do chamado ldquocriteacuterio de feacuterdquo As fontes ceacuteticas nesse periacuteodo foram aleacutem de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero jaacute citados tambeacutem Dioacutegenes Laeacutercio que expocircs alguns elementos centrais do ceticismo aleacutem de algumas anedotas

Sexto Empiacuterico apesar de natildeo ter adicionado quase nada de original agrave doutrina ceacutetica eacute o uacutenico pirrocircnico cuja obra sobreviveu Dedicou-se principalmente em traccedilar os caminhos de seus antecessores explicando termos e argumentos de ceacuteticos mais antigos e em discutir as doutrinas dos dogmaacuteticos questionando os criteacuterios e premissas sobre as quais se construiacuteam tais escolas De acordo com Popkin Sexto ficou praticamente desconhecido durante a idade meacutedia e poucos leitores tiveram contato com seus manuscritos antes da primeira publicaccedilatildeo das

26 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Hipotiposes Pirrocircnicas uma traduccedilatildeo latina datada de 1562 Essa eacute talvez a principal obra de Sexto na qual expotildee o ceticismo pirrocircnico diferenciando-o do ceticismo acadecircmico e das demais doutrinas filosoacuteficas

Percebemos que Montaigne muito provavelmente teve acesso agrave obra de Sexto Empiacuterico visto que descreve alguns termos ceacuteticos com grande semelhanccedila no modo como o fez o meacutedico grego Aleacutem disso sabemos que Montaigne mandou gravar nas vigas de sua biblioteca algumas sentenccedilas de Sexto Segundo Villey foi aproximadamente em 1576 que a obra de Sexto teria sido conhecida pelo ensaiacutesta francecircs causando grande impacto em seu pensamento A Apologia de Raymond Sebond apesar de certa reserva de Villey teria sido escrita segundo ele entre 1576 e 1578 natildeo sendo composto todo de uma vez Eacute neste capiacutetulo tambeacutem que se encontram algumas das referecircncias mais claras ao ceticismo no qual a argumentaccedilatildeo de Montaigne eacute mais dura e nitidamente ceacutetica

Um dos aspectos principais para o qual queremos chamar a atenccedilatildeo eacute uma das consideraccedilotildees que Sexto faz acerca do ceticismo

O ceticismo eacute a capacidade de estabelecer antinomias nos fenocircmenos e nas consideraccedilotildees teoacutericas segundo qualquer um dos tropos graccedilas agraves quais nos encaminhamos ndash em virtude da equivalecircncia entre as coisas e proposiccedilotildees contrapostas ndash primeiro ateacute a suspensatildeo do juiacutezo e depois ateacute a ataraxia (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54 Itaacutelico nosso)

A ldquocapacidade de estabelecer antinomiasrdquo

aparece constantemente na obra de Sexto que as usa para contestar determinadas teses que procura contrariar Ao expor algum argumento de uma corrente filosoacutefica de sua eacutepoca o ceacutetico busca meios de por argumentos contraacuterios de antinomias refutaacute-lo

O problema do ceticismo 27

Tambeacutem encontramos esse ldquomeacutetodordquo presente na argumentaccedilatildeo do ceticismo denominado acadecircmico que aparece em alguns textos de Ciacutecero Um deles eacute notaacutevel Sobre a natureza dos deuses Nesse texto vemos uma discussatildeo como o tiacutetulo indica sobre os deuses Nela se inserem trecircs personagens Caio Veleio representante do epicurismo Luciacutelio Balbo estoico e Cota ceacutetico acadecircmico Os dois primeiros expotildeem a doutrina de cada uma de suas escolas positivamente ao passo que o ceacutetico se limita a criticar os argumentos de cada um deles

Na obra o primeiro a expor seus pensamentos eacute Veleio Apoacutes fazer uma seacuterie de consideraccedilotildees acerca do que o povo e os filoacutesofos antigos ndash preacute-socraacuteticos Platatildeo e Aristoacuteteles ndash pensavam sobre os deuses passa a argumentar sobre a teoria das divindades epicuristas De acordo com ele devemos acreditar na existecircncia dos deuses pelo fato de todos os homens terem certas ldquonoccedilotildees implantadas ou antes inatasrdquo (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 31) Tambeacutem afirma que os deuses tecircm formas humanas por ser esta a mais bela que haacute e por ser impossiacutevel que a mente que os deuses tambeacutem possuem habitasse outra forma que natildeo a humana (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 32) entre outras afirmaccedilotildees

Apoacutes a longa exposiccedilatildeo do epicurista Veleio Cota inicia seu discurso Nele depois de vaacuterias acusaccedilotildees contra Epicuro o acadecircmico passa a pontuar todos os elementos do discurso de Veleio Citemos apenas alguns segundo ele natildeo haacute como saber sobre a crenccedila de todos os povos levantando a hipoacutetese de que pode haver povos tatildeo selvagens que natildeo tenha tido nunca a ideia de qualquer deus ou mesmo os proacuteprios ateus (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 36) Algueacutem que tem a ideia de um deus natildeo poderia negaacute-lo de forma nenhuma Mostra com isso que o argumento epicurista das noccedilotildees inatas natildeo se sustenta Aleacutem disso cita outras formas tatildeo belas

28 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quanto a humana e aponta vaacuterios defeitos nela que natildeo poderiam ser admitidos para o divino Faz alusatildeo aos egiacutepcios para quem os deuses tecircm formas mistas de homens e animais (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 42)

Contra Luciacutelio Balbo que desenvolve o discurso estoico sobre o tema a argumentaccedilatildeo de Cota se desenvolve de maneira semelhante pontuando todas as afirmaccedilotildees de modo a mostrar que eacute possiacutevel qualquer que seja o argumento refutaacute-lo ou ao menos construir um oposto que o anule E essa eacute a importacircncia da criaccedilatildeo de antinomias das quais fala Sexto Empiacuterico Os argumentos opostos buscados na experiecircncia ou na dialeacutetica fazem com que o interlocutor fique sem saiacuteda pois uma vez que admita a invalidade dos argumentos ceacuteticos teraacute que confessar o mesmo para os seus por serem compostos sobre as mesmas bases

Natildeo devemos pensar no entanto que o ceacutetico admita positivamente os argumentos que formula O mesmo Cota afirma algumas vezes que por considerar o assunto difiacutecil de ser tratado natildeo pode dizer o que ou como os deuses satildeo Tambeacutem diz ter mais habilidade em reconhecer os argumentos falsos do que em formular os verdadeiros E mesmo assim o ceacutetico deve forccedilosamente reconhecer que seu argumento natildeo pode ser admitido positivamente visto que o argumento oposto do dogmaacutetico o anula tambeacutem

De todas as expressotildees ceacuteticas com efeito haacute que pressupor que natildeo nos obcecamos de que elas sejam verdadeiras posto que jaacute dissemos que podem ser refutadas por si mesmas ao estarem incluiacutedas entre aquelas que satildeo enunciadas como os purgantes entre os medicamentos natildeo apenas eliminam do corpo a doenccedila mas que tambeacutem satildeo eliminados (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 119)

O problema do ceticismo 29

Notamos que os ceacuteticos eram cientes das consequecircncias de seu modo de argumentar e entendiam que natildeo havia saiacuteda desde que essa saiacuteda significasse a adoccedilatildeo de uma das teses defendidas A uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel defendida pelos pirrocircnicos era a suspensatildeo do juiacutezo ou epocheacute De acordo com eles qualquer um que se pusesse a investigar seriamente sobre a filosofia e natildeo se deixasse levar pela precipitaccedilatildeo impressionado por alguma escola dogmaacutetica acabaria por entender que natildeo haacute criteacuterios para a adoccedilatildeo de uma ou outra tese Todas as premissas que justificariam um criteacuterio satildeo falsas ou injustificaacuteveis

Montaigne sabia disso o capiacutetulo doze do segundo livro dos Ensaios causa controveacutersias ateacute hoje sobre o sentido que o ensaiacutesta deu agrave expressatildeo Apologia de Raymond Sebond Ateacute hoje se discute os motivos de Montaigne na tentativa de defender Sebond como o tiacutetulo sugere acaba por invalidar seus argumentos9 Natildeo pensamos que esse resultado tenha sido acidental como pode parecer mas que foi resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica empreendida por ele Natildeo entraremos poreacutem nessa discussatildeo interminaacutevel

A Apologia se refere ao teoacutelogo catalatildeo Raymond Sebond escritor da obra Theacuteologie Naturelle traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Nela o teoacutelogo se propotildee a fundamentar os artigos da feacute atraveacutes da razatildeo afirmando entre outras coisas que o homem ocupa o topo da escala dos seres acima de todos os outros animais e que eacute o fim e propoacutesito da criaccedilatildeo razatildeo da existecircncia de toda a criaccedilatildeo O objetivo de Montaigne com a Apologia eacute ldquoaliviar seu livro de duas objeccedilotildees principais que lhe satildeo feitasrdquo (II 12 163) A primeira delas eacute que os cristatildeos natildeo devem tentar apoiar a sua religiatildeo atraveacutes de razotildees humanas pois soacute pode ser concebida pela feacute e pela graccedila divina A segunda se

9 Cf nota 14 EVA 2004

30 Eacutetica e filosofia poliacutetica

refere aos que dizem que os argumentos de Sebond satildeo ldquofracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e dispotildeem-se a atacaacute-los facilmenterdquo (II 12 175)

Aos que combatem por meio de pressuposiccedilatildeo eacute preciso pressupor lhes ao contraacuterio o mesmo axioma sobre o qual se estiver debatendo Pois qualquer pressuposiccedilatildeo humana e qualquer enunciaccedilatildeo tem tanta autoridade quanto outra se a razatildeo natildeo fizer diferenccedila entre elas Assim precisamos colocaacute-las todas na balanccedila (II 12 277)

As vaacuterias referecircncias de Montaigne aos ceacuteticos

gregos suas passagens quase literais seu modo de argumentar natildeo nos deixa duacutevidas de que agrave altura da Apologia ele jaacute tivera contato com os textos de Sexto e Ciacutecero e de que o ceticismo havia deixado marcas profundas em seu pensamento O mais extenso e talvez o mais estritamente filosoacutefico dos ensaios ou seja a Apologia ldquoensaio ceacutetico por excelecircncia (EVA 2004 p 11)rdquo demonstra bem isso Voltemos agora poreacutem aos ensaios analisados por noacutes anteriormente Acreditamos ter encontrado na antinomia um ponto comum entre a Apologia e eles

Eacute claro que natildeo haacute a mesma riqueza de exemplos ou de argumentos nos textos de 1572 nem referecircncias tatildeo claras ao ceticismo como aqui As foacutermulas e tropos ceacuteticos tambeacutem provavelmente natildeo lhe eram conhecidas Percebemos no entanto que Montaigne jaacute criticava a pressuposiccedilatildeo vaidosa pela qual se considerava a razatildeo como instrumento suficiente para julgar natildeo apenas os assuntos divinos como em I 32 mas tambeacutem para os assuntos humanos como se viu com o outro ensaio Maleaacutevel como uma massa de modelar a partir da qual se forma as mais diversas figuras com a razatildeo se prova o que quiser desde que os fundamentos sejam aceitos pelo interlocutor

O problema do ceticismo 31

Montaigne procede como prescreve Sexto estabelecendo antinomias de diversas maneira ldquocontrapondo fenocircmenos a fenocircmenos consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas ou uns agraves outrasrdquo (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54) Fenocircmenos a fenocircmenos quando colocados lado a lado as diversas consequecircncias de uma mesma accedilatildeo ou consequecircncias iguais de accedilotildees diferentes consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas quando argumenta dialeticamente criando argumentos para invalidar os do oponente uns agraves outras quando alude a fenocircmenos para refutar argumentos ou vice-versa O nuacutecleo basilar de nossa argumentaccedilatildeo neste estudo e que aponta para um Montaigne com inclinaccedilotildees para o ceticismo desde seus primeiros escritos eacute exatamente essa encontramos exemplos assim natildeo soacute na Apologia mas tambeacutem em ensaios anteriores Se devemos concordar com Villey que aqueles ensaios foram escritos em 1572 antes do contato de Montaigne com o ceticismo pensamos haver razotildees para duvidar de que ele tenha adotado a filosofia estoica durante esse periacuteodo A desconfianccedila nos poderes da razatildeo jaacute nesses ensaios nos parece contraditoacuteria com as opiniotildees do estoicismo quanto a esse tema

REFEREcircNCIAS SEXTO EMPIacuteRICO Esbozos pirrocircnicos Madrid Gredos 1993

MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 2001

CONCEICcedilAtildeO Gilmar Henrique da Montaigne e a poliacutetica Cascavel Edunioeste 2014

EVA Luiz A A A figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007

32 Eacutetica e filosofia poliacutetica

____ Montaigne contra a vaidade um estudo sobre o ceticismo na Apologia de Raimond Sebond Satildeo Paulo HumanitasFFLCHUSP 2004

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

VASCONCELLOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo In MONTAIGNE Os ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

VENDEMIATTI Leandro Abel Sobre a natureza dos deuses de Ciacutecero Dissertaccedilatildeo (mestrado em linguiacutestica) ndash Instituto de estudos da linguagem UNICAMP Campinas 2003

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne In MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

= II =

MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo

Este trabalho eacute parte de minha pesquisa em

desenvolvimento como doutorando em filosofia que objetiva estudar a originalidade ou antes a audaacutecia do pensamento de Montaigne cujo debate e questionamentos se iniciaram no acircmbito da religiatildeo e se estenderam para a filosofia e para a ciecircncia

Montaigne segundo Birchal (2007) relata o eu como fluxo natildeo como lsquosubstacircnciarsquo nem como lsquovaziorsquo No espiacuterito montaigniano quero comeccedilar este texto confessando junto com Porchat que tambeacutem sou um homem desesperado da filosofia e de seus problemas pois para mim os discursos da filosofia natildeo satildeo mais que prodigiosos e sublimes jogos de palavras muitas vezes distante da vida Ou como disse Porchat ldquoUm brinquedo dos

Poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico Email gilmarhenriqueconceicaohotmailcom

34 Eacutetica e filosofia poliacutetica

filoacutesofos com as palavras do Logos com os filoacutesofosrdquo (PORCHAT 2000 p 122) Montaigne chega a dizer que a razatildeo eacute uma espeacutecie de massinha com a qual podemos modelar o que quisermos Montaigne leva ao limite a capacidade da razatildeo Haacute em mim a vivecircncia da duacutevida ceacutetica pirrocircnica como uma profunda inquietaccedilatildeo Fico inquieto com os dogmaacuteticos de todos os tipos Evidentemente as questotildees loacutegicas envolvem um vocabulaacuterio teacutecnico Portanto natildeo estou pensando em loacutegica propriamente mas em filosofia Tal como os pirrocircnicos tambeacutem desconfio dos que falam difiacutecil em filosofia ldquoExprimir-se de modo difiacutecil eacute na verdade deixar transparecer certa falta de rigor intelectualrdquo (PORCHAT 2000 p 125) Eacute este o sentido pelo qual Montaigne conclui que as filosofias difiacuteceis constituem um pirronismo sob a forma resolutiva porque frequentemente a inextrincaacutevel obscuridade de seus textos natildeo nos permite saber nem mesmo qual eacute sua opiniatildeo Ou entatildeo apresentam tantas interpretaccedilotildees divergentes que obnubilam a opiniatildeo Obscurecemos e enclausuramos a compreensatildeo com tantas interpretaccedilotildees10

Pirro natildeo deixou nada escrito pois para ele filosofia natildeo eacute uma doutrina uma teoria ou um saber sistemaacutetico mas principalmente uma praacutetica uma atitude um modus vivendi (MARCONDES

10 [B] Quem natildeo afirmaria que as glosas aumentam as duacutevidas e ignoracircncia visto que natildeo se vecirc livro algum seja humano ou divino no qual o mundo se empenhe cuja dificuldade a interpretaccedilatildeo faccedila sumir O centeacutesimo comentaacuterio remete-o a seu seguinte mais espinhoso e mais escarpado do que o primeiro o achara Quando concordamos entre noacutes lsquoeste livro jaacute teve o suficiente doravante natildeo haacute mais o que dizerrsquo Isso se vecirc melhor na chicanarsquo (III 13 p 427)

Montaigne e o legado ceacutetico 35

2007 p 95) Montaigne seguindo os passos de Pirro e Sexto Empiacuterico foi decisivo na histoacuteria da filosofia sob trecircs aspectos a) ao plantar a semente da duacutevida pirrocircnica que foi desenvolvida por ele e que ficou como heranccedila para filoacutesofos posteriores b) ao argumentar que se explicaccedilatildeo haacute natildeo busca almejar o estatuto de conhecimento mas limita-se agrave constataccedilatildeo de que somos parte de uma natureza que transcende indefinidamente nossa capacidade de conhececirc-la c) Ao demolir nossas certezas visto que natildeo podemos identificar com seguranccedila nossas afecccedilotildees e disposiccedilotildees e natildeo podemos determinar nossos movimentos internos portanto devido agrave complexidade e indeterminaccedilatildeo de nossas afecccedilotildees somente podemos ver uma parte do todo ou um traccedilo entre tantos traccedilos possiacuteveis

Na realidade nos Ensaios temos a apresentaccedilatildeo de conceitos importantes para a compreensatildeo do pensamento montaigniano epokheacute zeteacutesis diaphonia isosthenia epokheacute ataraxia e eudaimonia Tais termos constituem o cerne de todo pensamento ceacutetico e satildeo familiares a Montaigne que com eles trabalha Em Montaigne temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do instante da passagem Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero que eacute tudo o que temos por esta razatildeo Montaigne eacute lsquoo filoacutesofo da aparecircnciarsquo

O ensaiacutesta compreendeu profundamente como poucos o pirronismo Montaigne eacute um pirrocircnico porque questiona ateacute mesmo o pirronismo Em outras palavras eacute isto mesmo que constitui a

36 Eacutetica e filosofia poliacutetica

atitude pirrocircnica Aprecio os inteacuterpretes do pensamento montaigniano quando destoando da exposiccedilatildeo sisuda da vida acadecircmica relatam suas exposiccedilotildees em primeira pessoa Portanto tambeacutem engatinharei do mesmo modo acompanhando de longe os passos de estudiosos que tanto admiro particularmente Oswald Porchat

Constato no ceticismo minha identidade filosoacutefica e minha chave de libertaccedilatildeo natildeo tenho verdade natildeo tenho deus natildeo tenho amigos natildeo tenho irmatildeo natildeo tenho pai e natildeo tenho matildee Se natildeo for exatamente isso eacute quase isto Ou como cantou Bob Dylan lsquoLike a rolling stonersquo Como ultima ratio entendo que estamos completamente soacutes no universo mas isso parece natildeo me entristecer Ao contraacuterio me daacute uma espeacutecie de alegria pois implica em aceitar o traacutegico e a solidatildeo da condiccedilatildeo humana lsquoalone and togetherrsquo Estamos sozinhos juntos Claro a presenccedila de um verdadeiro amigo pode nos acompanhar Aliaacutes as relaccedilotildees sociais e os projetos coletivos possibilitam tecer fios de compartilhamento Como a verdadeira amizade (I 28) eacute rara podemos ter amizades por um ponto soacute Aleacutem disso o amor nos tira da solidatildeo de ser um Por isso mesmo afinal eacute necessaacuterio viver plenamente a vida e a filosofia natildeo pode ser uma rejeiccedilatildeo da vida das vicissitudes e contingecircncias da vida comum A filosofia natildeo pode rejeitar as paixotildees humanas em nome do pensamento Como registra Sexto Empiacuterico ratificado por Montaigne se o ceacutetico condena os dogmas em nenhum momento entretanto entra em conflito com a vida comum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Com o ensaiacutesta temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do

Montaigne e o legado ceacutetico 37

instante da passagem Precisamente pelo fato de que Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero soacute temos para decidir o instante que passa

Neste trabalho elementar o nosso ponto de partida consiste em encetar esforccedilos no sentido de mostrar que Montaigne como leitor de Sexto Empiacuterico visceralmente ceacutetico suspende o juiacutezo sobre as verdades dogmaacuteticas de qualquer natureza em razatildeo disso como o ensaiacutesta natildeo tem um dogma epistemoloacutegico nem metafiacutesico natildeo apresenta um dogma moral ou um dogma poliacutetico Julga que em uacuteltima instacircncia as correntes filosoacuteficas satildeo meramente exerciacutecios de pensamento do homem no mundo Para isso nosso autor se vale em seus escritos de paradoxos de desordem e de supostas incongruecircncias A respeito disso Eva (2007) escreve que eacute certo que um traccedilo importante da reflexatildeo nos Ensaios reside em seu caraacuteter assumidamente provisoacuterio decorrente da liberdade que o autor encontra para voltar atraacutes em relaccedilatildeo ao que dissera anteriormente mesmo ao preccedilo de se contradizer Montaigne por exemplo alterna o elogio e o escaacuternio da philosophie Assim se por um lado a filosofia eacute enaltecida pela sua capacidade de tornar a alma e o corpo sadios por outro lado ela eacute criticada como palco de um conflito de razotildees (II 12)

Meu estudo estaacute focado no ceticismo como concepccedilatildeo filosoacutefica e natildeo como uma seacuterie de duacutevidas (POPKIN2000) Assim o ceticismo teve sua origem no pensamento grego antigo Como eacute

38 Eacutetica e filosofia poliacutetica

sabido durante o helenismo formou-se um conjunto de argumentos ceacuteticos estabelecendo que a nenhuma forma de conhecimento eacute possiacutevel (Ceticismo acadecircmico) b) natildeo haacute evidecircncia adequada ou suficiente para determinar se alguma forma de conhecimento eacute ou natildeo possiacutevel (Ceticismo pirrocircnico)

Como registra Popkin (2000) e Brochard (2009) o ceticismo acadecircmico surgiu na Academia de Platatildeo e sua formulaccedilatildeo teoacuterica eacute atribuiacuteda a Arcesilau e a Caacuterneacuteade que elaboraram uma seacuterie de argumentos voltados sobretudo contra as pretensotildees a conhecimento dos filoacutesofos estoicos procurando mostrar que nada se pode conhecer com certeza Estes argumentos foram transmitidos ateacute noacutes especialmente pelas obras de Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio e Santo Agostinho Os Acadecircmicos formularam uma seacuterie de dificuldades visando mostrar que os dados que obtemos por meio de nossos sentidos satildeo pouco confiaacuteveis que natildeo podemos ter certeza se nosso raciociacutenio eacute seguro e que natildeo possuiacutemos nenhum criteacuterio ou padratildeo garantido para determinar quais de nossos juiacutezos satildeo verdadeiros e quais satildeo falsos De acordo com Popkin

O problema baacutesico em questatildeo aqui eacute que qualquer proposiccedilatildeo pretendendo afirmar algum tipo de conhecimento sobre o mundo conteacutem pretensotildees que vatildeo aleacutem dos relatos meramente empiacutericos sobre como nos parecem ser os fatos (POPKIN 2000 p 2)

Luiz Eva (2007) em seu estudo sobre Montaigne indaga se dada a proeminecircncia que

Montaigne e o legado ceacutetico 39

ganha nos Ensaios o projeto de um exame da condiccedilatildeo humana e da produccedilatildeo de um retrato de si mesmo natildeo estariacuteamos diante de uma figura talvez embrionaacuteria do viacutenculo teoacuterico entre criacutetica epistemoloacutegica e tematizaccedilatildeo da subjetividade temas frequentes na posteridade filosoacutefica e mesmo diretamente associados em diversos filoacutesofos como Descartes Eva ainda sugere que o seu trajeto de estudos parece delinear uma nova imagem do proacuteprio ceticismo de Montaigne um ceticismo de linhagem lsquoradicalrsquo Acrescenta que o ceticismo montaigniano possui uma configuraccedilatildeo conceitual proacutepria e eacute ao mesmo tempo uma filosofia articulada com o pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas corporais e espirituais na medida em que isso se faz ao nosso alcance ldquouma filosofia voltada ao mundo da vida e da accedilatildeo e ao contato do homem com sua efetiva condiccedilatildeordquo (EVA 2007 p 12) Assim torna-se possiacutevel recuperar os contornos proacuteprios de um gecircnero filosoacutefico que em boa medida foram apagados pela maneira como a posteridade acolheu o ceticismo em sua versatildeo cartesiana Aliaacutes de modo geral a versatildeo difundida do ceticismo parece ser aquela advinda de Ciacutecero e Santo Agostinho (portanto na versatildeo Acadecircmica) Descartes Hume e Kant (soacute para citar alguns) enfrentaram a questatildeo da duacutevida ceacutetica Segundo Porchat (2000) Hume eacute um peacutessimo leitor do ceticismo pirrocircnico mas esta eacute outra histoacuteria natildeo iremos tratar disso neste momento

Popkin (2000) como historiador da filosofia moderna em seu estudo sobre os ceacuteticos contraria um padratildeo otimista de representaccedilatildeo dessa mesma

40 Eacutetica e filosofia poliacutetica

histoacuteria como uma aventura em direccedilatildeo ao esclarecimento e a certezas cada vez mais consistentes Como eacute sabido o ceticismo surgiu na Antiguidade Claacutessica como reaccedilatildeo agrave proliferaccedilatildeo de sistemas filosoacuteficos todos eles orientados para a detecccedilatildeo da verdade Em termos mais precisos a atitude ceacutetica emerge da descoberta de que a filosofia eacute um campo de disputa entre sistemas que sustentam que haacute uma profunda distinccedilatildeo entre o que eacute e o que aparece Enquanto homens comuns movidos por apetites e crenccedilas vivem segundo o que lhes parece ser o mundo caberia ao filoacutesofo dizer a verdade com base em sua capacidade extraordinaacuteria de ver o que natildeo se vecirc ordinariamente

A palavra ceticismo deriva de skeacutepsis que significa em grego investigaccedilatildeo O ceacutetico ao investigar os diferentes sistemas filosoacuteficos descobre que todos eles tecircm em comum a pretensatildeo de dizer o que a verdade eacute mas que por supocirc-la pertencendo agrave um mundo aleacutem de nossa percepccedilatildeo comum (o Motor Imoacutevel de Aristoacuteteles ou o Mundo das Ideias de Platatildeo por exemplo) natildeo entram em acordo com relaccedilatildeo ao que ela significa Cada um a descreve de forma particular sem apresentar evidecircncias criacuteveis para sustentar suas hipoacuteteses Trata-se pois de uma querela sobre a qual ateacute agora natildeo se pode decidir Como escreve Porchat os ceacuteticos revelam a existecircncia de um ldquoconflito das filosofiasrdquo Nesse conflito cada novo pensador pretende solucionar os impasses produzidos por seus predecessores oferecendo a possibilidade de uma nova e mais perita definiccedilatildeo da verdade Porchat sugere que ateacute mesmo a tentativa de ver

Montaigne e o legado ceacutetico 41

nas filosofias uma lsquosinfoniarsquo na realidade eacute mais um elemento da lsquodiaphoniarsquo Ou seja parece que o que acaba por acontecer eacute que essas ldquosoluccedilotildeesrdquo tatildeo somente alargam o acircmbito do dissenso Pensando resolver o problema da verdade o filoacutesofo obcecado por essa busca contribui para o aumento da incerteza

O ceticismo pirrocircnico portanto desde suas primeiras formulaccedilotildees com Pirro de Eacutelis ateacute os textos remanescentes de Sexto Empiacuterico (e Montaigne e Francisco Sanchez durante o Renascimento) sustenta a falibilidade humana em termos cognitivos e a ausecircncia de criteacuterios para definir o que eacute a verdade para aleacutem do mundo comum dos fenocircmenos que todos experimentamos

Com efeito Popkin (2000) narra os efeitos e a recepccedilatildeo que os argumentos organizados por Sexto Empiacuterico tiveram nos seacuteculos XVI e XVII Depois de considerar o impacto dos textos e argumentos ceacuteticos nos debates suscitados pela Reforma Protestante Popkin nos conduz ao universo de Michel de Montaigne leitor da primeira traduccedilatildeo latina de Sexto Empiacuterico Jaacute chamamos a atenccedilatildeo para o fato de que Montaigne tambeacutem eacute leitor de diversas obras atinentes ao ceticismo (Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio Santo Agostinho Plutarco Agrippa e Francisco Sanchez) Todavia destas leituras a que mais deixa traccedilos evidentes nos Ensaios eacute a de Sexto Empiacuterico mesmo que Montaigne natildeo cite o seu nome

Montaigne foi muito lido por Descartes Pascal Malebranche Nietzsche Rousseau Hume entre muitos outros Em Montaigne estatildeo

42 Eacutetica e filosofia poliacutetica

magnificamente presentes os temas claacutessicos do ceticismo a falibilidade do conhecimento por meios humanos uma visatildeo da vida social constituiacuteda pelas crenccedilas ordinaacuterias e uma sensibilidade iacutempar para a existecircncia de uma vasta variedade cultural e civilizatoacuteria irredutiacutevel a criteacuterios universais Essa uacuteltima perspectiva estaacute presente em um de seus ensaios a respeito dos iacutendios brasileiros Dos Canibais Nele encontramos o primeiro registro europeu que os percebe como personagens de uma experiecircncia distinta da europeia vale dizer como outra forma de sociedade Essa sensibilidade para com a diferenccedila cultural eacute uma heranccedila expliacutecita do antigo ceticismo que em um dos argumentos legados por Sexto Empiacuterico e alargado no seacuteculo XX por Claude Leacutevi-Strauss percebia a diferenccedila civilizatoacuteria como irredutiacutevel a criteacuterios universais de juiacutezo e avaliaccedilatildeo Mas condenamos o que nos parece estranho aos nossos costumes

Popkin (2000) a partir de Montaigne resgata pensadores ateacute quase desconhecidos Pierre Charron por exemplo herdeiro intelectual de Montaigne escreveraacute um dos livros mais lidos no seacuteculo XVII francecircs o De la Sagesse no qual a sabedoria eacute apresentada como fruto da utilizaccedilatildeo do ceticismo (ou pirronismo) contra as diferentes filosofias dogmaacuteticas (LESSA 2008)

Conforme Sexto e Montaigne as coisas existem poreacutem somente o que podemos saber e dizer delas satildeo de que maneira nos afetam - natildeo o que satildeo em si mesmas Natildeo obstante como iremos argumentar a epokheacute de Sexto natildeo eacute tatildeo radical como a de Pirro Montaigne por seu lado defende tambeacutem uma eacutetica do sentido comum e ainda como

Montaigne e o legado ceacutetico 43

pirrocircnico aceita a indiferenccedila (adiaphora) com respeito a todas as soluccedilotildees morais reivindica tambeacutem a importacircncia do empiacuterico

Montaigne eacute o filoacutesofo do paradoxo e da contradiccedilatildeo quando fala das coisas mas a contradiccedilatildeo estaacute nas proacuteprias coisas em suas muacuteltiplas perspectivas (II 12) Eacute claro que com isso natildeo queremos dizer que Montaigne nunca se contradiga Poreacutem a questatildeo central eacute que eacute exatamente a aceitaccedilatildeo de suas contradiccedilotildees que permite a Montaigne a articulaccedilatildeo de uma postura filosoacutefica que consiste em assumir a proacutepria incoerecircncia como labor filosoacutefico Ele parece fazer as contradiccedilotildees e incoerecircncias aparentes e efetivas trabalharem no exerciacutecio de seu pensamento na investigaccedilatildeo daquilo que lhe aparece

Essa postura arrasta consigo uma consequecircncia metodoloacutegica importante que consiste em identificar a particularidade de sua filosofia ceacutetica Montaigne como um filoacutesofo lsquode nova figurarsquo eacute inteiro Como registra Eva (2007) uma generalizaccedilatildeo aligeirada acerca da contradiccedilatildeo ambiguidade e incoerecircncia de Montaigne pode nos cegar para aquilo que compreendemos como coerecircncia filosoacutefica de Montaigne Ou seja em razatildeo da ditadura do Logos ficamos impossibilitados de observar a possibilidade de as eventuais oscilaccedilotildees opinativas Entretanto acertadamente Eva argumenta que ceticismo natildeo eacute sinocircnimo de irracionalismo ao contraacuterio a posiccedilatildeo ceacutetica estaacute conforme ao emprego da razatildeo Desse modo a constataccedilatildeo da equipolecircncia e da isostenia dos argumentos contraacuterios natildeo significa em Montaigne

44 Eacutetica e filosofia poliacutetica

a impossibilidade de uma investigaccedilatildeo racional visto que para o nosso autor os ceacuteticos se servem da razatildeo para investigar poreacutem natildeo para sentenciar

Montaigne salienta que adere ao phainoacutemenon e que conduz sua vida praacutetica da lsquomaneira comumrsquo como escreve Sexto nas Hipotiposes I 24

Aderindo assim ao aparecer das coisas [phainoacutemena] noacutes vivemos de acordo com as regras normais da vida de modo natildeo dogmaacutetico vendo que natildeo podemos permanecer inativos E parece-nos que essa regulaccedilatildeo da vida possui quatro aspectos O guia da natureza eacute aquele pelo qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo e pensamento a exigecircncia das paixotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva a comer e a sede a beber a tradiccedilatildeo dos costumes e das leis aquela pela qual noacutes consideramos a piedade nas accedilotildees da vida um bem e a impiedade um mal e a instruccedilatildeo das artes aquela pela qual natildeo somos insativos nas artes [teacutechnai] que empreendemos (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

O problema que surge para mim eacute se o ceticismo rejeita todas as filosofias Montaigne rejeita tambeacutem o ceticismo Colegas doutorandos do PPGFil da unioeste ateacute brincaram comigo recentemente quando me falaram lsquovocecirc tem certeza do ceticismorsquo Deixando de lado a brincadeira haacute aiacute algo de real Como posso ter certeza no ceticismo uma vez que isso constitui uma contradiccedilatildeo com a perspectiva ceacutetica Por que o ceticismo natildeo pode se assumir como um posicionamento consistentemente radical Claro a questatildeo estaacute mal colocada Jaacute adiantamos o

Montaigne e o legado ceacutetico 45

pirronismo eacute mais uma atitude do que um sistema de pensamento

O pirronismo acontece no acircmbito mais amplo da diaphonia filosoacutefica Portanto duvidar do proacuteprio ceticismo como Montaigne agraves vezes parece fazer eacute uma atitude pirrocircnica Portanto com isso ele natildeo rompe com o pirronismo ao contraacuterio reforccedila o pirronismo Entretanto Montaigne inova o ceticismo trazendo agrave baila temas que ateacute entatildeo natildeo ventilados no debate ceacutetico De acordo com Smith (2012) poreacutem enquanto Sexto relata as opiniotildees dos outros filoacutesofos Montaigne fala de sua proacutepria vida Quando relata o que lhe aparece Sexto relata somente oposiccedilatildeo de teses e argumentos quando relata o que lhe aparece Montaigne fala de sua vida Sexto nunca pretendeu que relatar a proacutepria vida tivesse relevacircncia filosoacutefica Os Ensaios surgem portanto como uma nova fonte para a diaphoniacuteapirrocircnica

Na tentativa de responder aos meus colegas o que posso dizer eacute que natildeo eacute bem uma certeza que tenho no ceticismo mas eacute isto exatamente que me aparece como ceticismo Talvez seja algo como a forma como vejo o mundo Eu natildeo sabia que eu era profundamente ceacutetico ateacute o dia em que li Montaigne e Sexto Empiacuterico Descobri com eles minha identidade filosoacutefica Na realidade sem ser conscientemente ceacutetico bem cedo passei a desconfiar das explicaccedilotildees que presunccedilosamente pretendem afirmar o que as coisas satildeo efetivamente em sua estrutura interna Sejam elas de acircmbito filosoacutefico poliacutetico ou religioso Jaacute salientei que o ceacutetico desconfia daquilo que chamamos lsquorealidadersquo

46 Eacutetica e filosofia poliacutetica

e sugere que se trata apenas de lsquoconsensorsquo e que muita coisa nos escapa Eacute graccedilas a esse sentido preciso de sua criacutetica tatildeo avassaladora que Montaigne acompanhando Sexto afirma que os philosophes que evocam os fenocircmenos sensiacuteveis como resposta agravequele que os potildee em duacutevida satildeo indignos desse nome

[A] Eles natildeo precisam me dizer eacute verdadeiro pois vecircs e sentes assim eacute preciso que me digam se o que eu penso sentir eu o sinto portanto de fato e se eu o sinto que eles me digam depois por que eu o sinto e como e o quecirc que eles me digam o nome a origem os componentes e os produtos do calor do frio das qualidades daquele que age e daquele que padece ou entatildeo que eles abandonem sua profissatildeo que eacute a de natildeo receber nem aprovar nada senatildeo pela via da razatildeo eacute a sua pedra de toque em toda a espeacutecie de investigaccedilotildees mas certamente eacute uma pedra de toque plena de falsidade de erro de fraqueza e de falha (II 12)

Haacute uma questatildeo muito debatida entre os inteacuterpretes que se referem agraves apropriaccedilotildees compilaccedilotildees e lsquopilhagensrsquo que Montaigne realiza advindas de autores antigos Trata-se de lsquoplaacutegiorsquo tal como entendemos hoje Quer me parecer que natildeo Acompanhemos a escrita de Montaigne quando se refere aos seus lsquoplaacutegiosrsquo

[] No entanto bem sei com quanta ousadia eu mesmo tento a todo momento igualar-me a meus plaacutegios ir par a par com eles natildeo sem uma temeraacuteria esperanccedila de conseguir

Montaigne e o legado ceacutetico 47

enganar os olhos dos juiacutezes ao discerni-los (I 26 p 220) O ensaiacutesta critica o plaacutegio e assume o plaacutegio

Examinemos isto A sua criacutetica ao plaacutegio eacute devastadora classificando-a em primeiro lugar de lsquoinjusticcedila e covardiarsquo de quem natildeo tendo em seu patrimocircnio pessoal coisa alguma com que se promover procura apresentar-se com um valor alheio E em segundo lugar chama o plaacutegio de lsquogrande tolicersquo pois se contenta por embuste em obter aprovaccedilatildeo Afinal a que tipo de plaacutegio Montaigne se refere nesta criacutetica Natildeo agravequele que leva agrave produccedilatildeo do proacuteprio mel ou da autonomia da obra mas aos que apresentam lsquoremendosrsquo lsquodessemelhanccedilasrsquo como seus e que na realidade natildeo soube lsquoassimilaacute-losrsquo como as abelhas e ele proacuteprio o fez Portanto as referecircncias ficam ao modo Frankenstein diriacuteamos recorrendo a uma posterior imagem de um livro que surgiu em 1818 Em Frankenstein aparecem as costuras e natildeo haacute plena consciecircncia Que eacute exatamente a criacutetica aos plaacutegios que Montaigne elabora

Como Montaigne busquei fazer do conhecimento afeto potente porque a inteligecircncia eacute que vecirc e que ouve a inteligecircncia eacute que tudo aproveita que dispotildee que age que domina e que reina todas as outras coisas satildeo cegas surdas e sem alma Mas Montaigne ressalva que eacute bem verdade que a tornamos servil e covarde e em certos momentos lhe recusamos a liberdade de fazer coisa alguma por si mesma (I 26 p 227) Assim com o plaacutegio a gente perde potecircncia produzindo em

48 Eacutetica e filosofia poliacutetica

si afeto triste Refiro-me aqui agrave ideia de conatus e de paralelismo que estatildeo presentes em Spinoza e Montaigne (ldquoO que se instrui natildeo eacute uma alma natildeo eacute um corpo eacute um homem natildeo se deve separaacute-lo em doisrdquoI 26 p 247) O leitor atento provavelmente estaacute percebendo que estou fazendo uma relaccedilatildeo ligeira entre estes dois filoacutesofos mas esta relaccedilatildeo natildeo eacute improacutepria Ilustres leitores de Montaigne divergem sobre o seu pensamento Alguns como por exemplo Pascal e Kant procuram descobrir nele um cristatildeo outros como Emerson veem nele um protoacutetipo do ceacutetico outros um precursor de Voltaire Mas a leitura que comungo eacute a de Sainte-Beuve Sainte-Beuve chega a julgar os Ensaios uma espeacutecie de preparaccedilatildeo de antecacircmara para a Eacutetica de Spinoza Aleacutem disso Justo-Liacutepsio traduziu para o latim a palavra essais com o tiacutetulo de gustare Os Ensaios de Montaigne foram citados em latim pelos seus contemporacircneos com o tiacutetulo geral de conatus significando a tensatildeo da pessoa que opera uma ofensiva contra as coisas Os Ensaios satildeo uma escola de tensatildeo e de liberdade sempre fraacutegil e precaacuteria

Desse modo o recurso do plaacutegio tira da gente e nos impede de perseverar em ser-movimento A paixatildeo do plaacutegio em seu caminho mais curto eacute inflado e mentiroso natildeo importa os atenuantes Se a razatildeo-corpo revela que nosso desejo de ser se realiza fundamentalmente como desejo de conhecer o plaacutegio quer enganar a razatildeo Que loucura Pois Montaigne afirma que na solidatildeo uacuteltima do pensamento sabemos que mentimos Entatildeo a criacutetica e o desmascaramento arranca a cauda plumosa de filoacutesofo grudada com sabatildeo e nos restitui ao fogo

Montaigne e o legado ceacutetico 49

da filosofia No primeiro momento o impacto eacute de desdeacutem e de vergonha poreacutem isto eacute verdadeiramente salutar Quando somos dominados por afetos contraacuterios vemos o melhor e fazemos o pior Montaigne falou que o que diminui a vaidade do pavatildeo satildeo os seus peacutes Entatildeo natildeo haacute plaacutegio em Montaigne pois quando ele mesmo descreve o seu ato de apropriaccedilatildeo de autores se compara agraves abelhas que vatildeo de flor em flor sugando poreacutem o produto final o mel eacute pessoal Do mesmo modo os Ensaios - em que pese a diversidade de autores compilados - eacute produto seu eacute o seu mel Em Montaigne natildeo aparecem as lsquocosturasrsquo

A verdade e a razatildeo satildeo comuns a todos e natildeo pertencem a quem as disse primeiramente mais do que a quem as diz depois [C] Natildeo eacute segundo Platatildeo mais do que segundo eu mesmo jaacute que ele e eu o entendemos e vemos da mesma forma [A] As abelhas sugam das flores aqui e ali mas depois fazem o mel que eacute todo delas jaacute natildeo eacute tomilho nem manjerona Assim tambeacutem as peccedilas emprestadas de outrem ele iraacute transformar e misturar para construir uma obra toda sua ou seja seu julgamento Sua educaccedilatildeo seu trabalho e estudo visam tatildeo-somente a formaacute-lo (I 26 p227)

As Hipotiposes de Sexto nos Ensaiosde Montaigne

O ceticismo objetiva opor objetos sensiacuteveis e objetos do pensamento de maneira que nenhuma das explicaccedilotildees em conflito seja mais criacutevel do que outra Satildeo ceacuteticos aqueles que em uma investigaccedilatildeo

50 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo encontram resultado e persistem na busca Os que encontram o que procuram satildeo chamados de dogmaacuteticos e aqueles que confessam ser inapreensiacutevel satildeo chamados acadecircmicos Dois tipos de argumentaccedilatildeo satildeo usados pelos ceacuteticos a argumentaccedilatildeo geral que leva agrave suspensatildeo do juiacutezo e a especiacutefica que faz objeccedilotildees contra as diversas filosofias O princiacutepio baacutesico do ceticismo eacute de se opor cada explicaccedilatildeo com outra equivalente levando a um estado de repouso abandonando a atitude dogmaacutetica (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Uma noccedilatildeo importante eacute a de suspensatildeo do juiacutezo que permeia toda filosofia ceacutetica e constitui um fim pois eacute o resultado final da investigaccedilatildeo O estado de suspensatildeo do juiacutezo que em grego eacute epokhe eacute a impossibilidade de se afirmar ou de negar a explicaccedilatildeo da aparecircncia em razatildeo da argumentaccedilatildeo geral que opotildee a cada argumento com outro pelo princiacutepio baacutesico do ceticismo O ceacutetico diz o que lhe parece e relata o que sente de forma natildeo dogmaacutetica sem afirmar nada de positivo sobre o que existe na realidade externa O ceacutetico natildeo rejeita o aparente que satildeo as impressotildees sensiacuteveis mas a explicaccedilatildeo do aparente

O criteacuterio de accedilatildeo para o ceacutetico eacute a aparecircncia ou seja as impressotildees sensiacuteveis pois estas natildeo satildeo sujeitas ao questionamento pois satildeo sensaccedilotildees e afecccedilotildees involuntaacuterias As impressotildees sensiacuteveis satildeo o princiacutepio de nosso relacionamento com o mundo As ciecircncias naturais satildeo estudadas A loacutegica e a eacutetica satildeo auxiliares na medida em que aumentam a habilidade de fazer oposiccedilatildeo a qualquer explicaccedilatildeo Aderindo ao que aparece vivemos de acordo com as normas da vida

Montaigne e o legado ceacutetico 51

comum de modo natildeo dogmaacutetico Poreacutem natildeo podendo decidir diante da equumlipolecircncia das controveacutersias acerca da verdade ou falsidade das impressotildees o ceacutetico adota a suspensatildeo Isso pode nos remeter a analogia com o equiliacutebrio de forccedilas de um sistema em equiliacutebrio onde a cada forccedila existe outra de igual intensidade e direccedilatildeo poreacutem de sentido contraacuterio O resultado eacute a ineacutercia O argumento que daacute vantagem ao ceacutetico sobre o dogmaacutetico eacute ldquoaqueles que mantecircm a opiniatildeo de que uma coisa eacute naturalmente boa sentem-se aflitos quando natildeo a encontram e quando a tem apresentam um contentamento irracional e recear perdecirc-lardquo O ceacutetico natildeo determina serem as coisas naturalmente boas ou maacutes natildeo as evitam nem as buscam e por isso natildeo se perturbam (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

Observaremos que Montaigne nos Ensaios

retoma a tradiccedilatildeo ceacutetica da Antiguidade preservando-a ao mesmo tempo em que a reconstroacutei e lhe confere novo sentido dando origem a um ceticismo de ldquolinhagem radicalrdquo (EVA 2007 p 389) a partir de interrogaccedilotildees que natildeo cessam A visatildeo interrogativa de Montaigne eacute pirrocircnica ldquo[B] Essa visatildeo eacute expressa com mais clareza pela interrogaccedilatildeo lsquoQue sei eu rsquo tal como a trago de divisa numa balanccedilardquo (II 12 p 292) Haacute diferentes respostas para o problema da viabilidade do pirronismo mas concordamos com a ideia de relativa continuidade do pirronismo destacando a noccedilatildeo de fenocircmeno como eixo que marca essa continuidade (GAZINELLI 2009) Observa-se que Dioacutegenes Laeacutercio (2009) continua exercendo consideraacutevel influecircncia sobre a interpretaccedilatildeo do

52 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo com sua obra A vida de Pirro Ao discorrer sobre o pirronismo Laeacutercio considera-o o mais nobre filosofar por ter inventado em seu modo de vida os estados de akatalepsiacutea (inapreensibilidade das coisas) e de epokheacute(suspensatildeo de juiacutezo)

Sendo assim nada dizia ser nem belo nem feio nem justo nem injusto mas igualmente sobre todas as coisas afirmava nada ser em verdade mas todos os homens agirem segundo a convenccedilatildeo e o costume pois cada coisa natildeo eacute mais isso que aquilo (LAEacuteRCIO 2009 p 161)

Como viemos chamando a atenccedilatildeo Montaigne eacute leitor rigoroso de Sexto Empiacuterico um dos expoentes maacuteximos do ceticismo Do mesmo modo como afirmamos anteriormente lembremos que este diz ser princiacutepio pirrocircnico fundamental criar antinomias opondo razotildees contraacuterias para renovar o estado de epokheacute decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a verdade nas filosofias conflitantes (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Temos entatildeo a natildeo resoluccedilatildeo da diaphonia e por essa razatildeo o ceacutetico eacute lsquodo contrarsquo O tiacutetulo das obras de Sexto Empiacuterico daacute-nos uma ideia do caraacuteter destrutivo1 e ao mesmo tempo construtivo dessa filosofia

Observemos desse modo a centralidade que tem a palavra lsquocontrarsquo no legado de Sexto Contra os dogmaacuteticos (dividido em cinco livros Contra os loacutegicos I e II Contra os fiacutesicos I e II e Contra os eacuteticos) e Contra os professores (dividido em seis livros Contra os gramaacuteticos Contra os retoacutericos Contra os geocircmetras Contra os aritmeacuteticos Contra os astroacutelogos e Contra os muacutesicos) Acrescente-se

Montaigne e o legado ceacutetico 53

todavia que o escrito mais conhecido do lsquodivinorsquo Sexto satildeo as Hipotiposes Pirrocircnicas Esse livro comeccedila distinguindo a principal diferenccedila entre os sistemas filosoacuteficos em seguida o capiacutetulo III aborda a denominaccedilatildeo do ceticismo Sexto nesta obra posiciona-se contra o dogmatismo recorrendo aos argumentos das proacuteprias doutrinas contrapondo-os de maneira que se refutem uns aos outros e anulem-se O objetivo de tal esforccedilo eacute questionar a presunccedilatildeo da sabedoria e do conhecimento apontar as aporias controveacutersias e disputas em torno do que seria a verdade demolir pretensotildees acerca de criteacuterios para se alcanccedilar a verdade e em consequecircncia a sabedoria Inversamente ele tambeacutem ataca a posiccedilatildeo dos acadecircmicos no que tange agrave negaccedilatildeo radical da possibilidade do conhecimento visto que julga que isso constitui uma espeacutecie de dogmatismo negativo (SEXTO EMPIacuteRICO 2013)

De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores (MARCONDES 2007) Como natildeo eacute possiacutevel aqui nos adentrarmos em todos os conceitos ceacuteticos devido agrave sua centralidade fixemo-nos apenas na epokheacute A epokheacute eacute uma consequecircncia da incapacidade de decisatildeo racional a favor de um lado ou outro da

54 Eacutetica e filosofia poliacutetica

questatildeo Eacute uma atitude de natildeo aceitar nem negar determinada tese em virtude do igual peso das razotildees opostas Natildeo eacute a aplicaccedilatildeo da epokheacute que mostra a universal contradiccedilatildeo antes eacute a constataccedilatildeo da diaphonia das opiniotildees que leva agrave suspensatildeo ceacutetica do juiacutezo A suspensatildeo do juiacutezo por sua vez traz consigo a ataraxia ou a imperturbabilidade da alma A epokheacute ceacutetica leva-nos a um profundo respeito por tudo aquilo que eacute variaacutevel nas partes Esta valorizaccedilatildeo do variaacutevel e do diverso tem consequecircncias no domiacutenio poliacutetico

Na realidade o ceticismo penetrou especialmente no Renascimento a partir da disputa sobre o ldquopadratildeo corretordquo do conhecimento religioso o que era chamado de lsquoa regra da feacutersquo como reconhecer o verdadeiro criteacuterio Os protestantes negam a regra de feacute da Igreja e apresentam um criteacuterio de conhecimento religioso muito diferente Busca-se assim um criteacuterio de verdade e adentra-se nas dificuldades filosoacuteficas geradas por esse conflito como mostra Montaigne no mencionado texto Apologia a Raymond Sebond (II 12) Nesse ensaio o ponto culminante eacute a duacutevida total2 O valor da evidecircncia depende do criteacuterio e natildeo o contraacuterio Assim a anaacutelise da experiecircncia sensiacutevel base de todo conhecimento coloca o problema do criteacuterio Natildeo haacute criteacuterio com certeza ou fundamento confiaacutevel Desse modo na luta para estabelecer o verdadeiro criteacuterio da feacute uma postura ceacutetica surge dentre alguns pensadores porque o problema em questatildeo fora examinado por Sexto em Hipotiposes pirrocircnicas

Montaigne e o legado ceacutetico 55

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilatildeo enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes o forccedilamos a um regresso ad infinitum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a p 163-165)

Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Lidamos apenas com o parecer e o que natildeo nos parece eacute ainda parecer Natildeo eacute possiacutevel ao ser humano ir aleacutem da aparecircncia em direccedilatildeo ao ser ldquoSegundo Pirro tem-se o puro parecer sem fundo segundo o ceticismo fenomecircnico tem-se o parecer contra o fundo de ser incognosciacutevel com a cisatildeo (natildeo pirroniana) do parecer e do ser segundo Montaigne tem-se o puro parecer aparentemente sem fundordquo (HUISMAN 2001 p 697) Natildeo se trata da verdade do ente como se algum sentido houvesse em expor o ente em sua verdade independentemente de um olhar A uacutenica verdade que o ser humano atinge natildeo eacute a de um sujeito ou de um objeto que se incline para um lado ou para o outro mas a verdade de um aspecto

56 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que natildeo eacute indissociaacutevel da apreensatildeo ou seja a verdade da aparecircncia verdade concreta visto que ele natildeo separa o olhar e o olhado o julgante e o julgado a verdade da aparecircncia os une correlaciona-os com um nexo interno A observaccedilatildeo de Montaigne se volta para o mundo e para a vida e seu juiacutezo pronuncia suas convicccedilotildees seguras marcadas por seu selo pessoal

Os filoacutesofos e moralistas doutrinais pretendem dizer o que eacute e mostrar como se deve viver para se conformar agraves leis de Deus ou da Natureza supostamente conhecidas ou ainda agrave vocaccedilatildeo do homem tal como a determinaria sua essecircncia ou seu lugar no universo Montaigne consciente da contingecircncia de seu pensamento expotildee convicccedilotildees a tiacutetulo pessoal por vezes com um vigor extremo ele natildeo daacute por cauccedilatildeo senatildeo a atitude que nesta exposiccedilatildeo se decifra como a marca de um selo e nela se confirma por reflexatildeo (TOURNON 2004 p 116)

O ensaiacutesta se opotildee ao mundo e adere ao mundo critica a poliacutetica e se insere na poliacutetica critica a razatildeo e recorre agrave razatildeo Starobinski (1992) refere-se ao movimento de oposiccedilatildeo ao mundo como recusa da mentira e da dissimulaccedilatildeo em Montaigne e talvez isso componha na verdade sua adesatildeo ao mundo como veracidade e plenitude satildeo faces do mesmo homem Ao denunciar os prestiacutegios do parecer Montaigne toma partido implicitamente pela plenitude sem equiacutevoco do ser verdadeiro Mas ele soacute o conhece pela forccedila da recusa que o faz considerar inaceitaacuteveis a mentira e a maacutescara Montaigne no instante em que se opotildee ao mundo

Montaigne e o legado ceacutetico 57

natildeo pode valer-se de nenhuma verdade possuiacuteda proclama apenas o seu oacutedio da lsquosimulaccedilatildeorsquo O verdadeiro eacute o positivo ainda desconhecido implicado pela negaccedilatildeo dirigida contra o mal pululante o verdadeiro natildeo tem fisionomia determinada eacute apenas a energia natildeo aplacada que anima e que arma o ato da recusa (STAROBINSKI 1992 p 15-16)

As Hipotiposes Pirrocircnicas reapresentam os principais argumentos do ceticismo antigo com toda a sua heranccedila demolidora em sua dimensatildeo epistemoloacutegica Como mostra Montaigne em vaacuterios de seus ensaios a impossibilidade de se estabelecer um criteacuterio de verdade indiscutiacutevel e para todos eacute fundamental na criacutetica ceacutetica aos partidos dos filoacutesofos Nesta direccedilatildeo retomemos os quatro primeiros tropos de Enesidemo que satildeo aqueles que nos dizem respeito a quem julga ou seja o sujeito que apreende o mundo mostrando dessa forma que nos precipitamos ao formular juiacutezos acerca da realidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000b) De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da

58 Eacutetica e filosofia poliacutetica

relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Saliente-se que a afinidade teoacuterica de Montaigne estaacute no fato de que os escritos de Sexto Empiacuterico satildeo dirigidos contra a defesa dogmaacutetica da pretensatildeo de conhecer a verdade absoluta tanto na moral como nas ciencias No autor natildeo haacute um fim absoluto a ser buscado Ainda que no capiacutetulo XII de Hipotiposes Sexto Empiacuterico diga que a finalidade do ceacutetico eacute a tranquilidade (ataraxia) em questotildees de opiniatildeo e a metriopathia (afecccedilotildees moderadas relativamente aos acontecimentos) (SEXTO EMPIgraveRICO) a rigor a busca da ataraxia mediante a aquisiccedilatildeo da verdade estaacute na sua preacute-histoacuteria dogmaacutetica ndash que se infiltra na sua natureza de ceacutetico enquanto ele eacute zeteacutetico isto eacute indagador buscador da verdade Poreacutem jaacute como ceacutetico que encontra a ataraxia ou seja que experimentou a tranquilidade pela equipolecircncia (isotheacuteneia) dos argumentos jaacute que ao produzir isostheacuteneia eacute levado agrave suspensatildeo do juiacutezo e vecirc acontecer a tranquilidade O ceacutetico constata o que se vecirc o que acontece constata as contradiccedilotildees das coisas constata que os argumentos contraacuterios satildeo equivalentes igualmente criacuteveis (isostheacuteneia) constata que natildeo pode decidir entre eles (epokheacute) constata que ao suspender a opiniatildeo sente-se tranquilo (ataraxia) E reitera esse caminho realista como uma espeacutecie de escada que depois eacute abandonada ou como um purgante que elimina tudo inclusive a si mesmo Se natildeo podemos acessar a verdade podemos evitar o erro suspendendo o juiacutezo (MAIA NETO 2012)

Montaigne e o legado ceacutetico 59

Conforme a traduccedilatildeo conhecida e muito utilizada de Danilo Marcondes (1997) nas Hipotiposes Pirrocircnicas (HP) I 8 encontramos

o ceticismo eacute a capacidade de colocar frente a frente [ou opor] umas com as outras da maneira que seja tanto as coisas que aparecem quanto as coisas inteligiacuteveis capacidade estaacute que devido agrave forccedila igual que haacute nas coisas e nos pensamentos opostos nos faz ter agrave suspensatildeo (epockeacute) e em seguida agrave tranquilidade (ataraxia)

Conforme o diagnoacutestico ceacutetico da diaphonia em que as diferentes filosofias se opotildeem e se equivalem na certeza da posse da verdade Tal como Montaigne reproduz na Apologia Sexto distingue os filoacutesofos dogmaacuteticos que tem a certeza da posse da verdade os filoacutesofos acadecircmicos que estatildeo certos da impossibilidade da verdade e os verdadeiramente ceacuteticos que natildeo se cansaram da busca Frente agrave equipolecircncia das filosofias o ceacutetico atinge o estado de epockeacute Nesta condiccedilatildeo soacute diz o que aparece mas natildeo como substacircncia ou essecircncia

No entanto natildeo haacute um ceticismo mas vaacuterias concepccedilotildees diferentes

Mesmo o que podemos considerar a lsquotradiccedilatildeo ceacuteticarsquo natildeo se constitui linearmente a partir de um momento inaugural ou da figura de um grande mestre tratando-se muito mais de uma tradiccedilatildeo reconstruiacuteda (MARCONDES 2007)

Sexto Empiacuterico nas Hipotiposes (I 1)

escreve

60 Eacutetica e filosofia poliacutetica

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra o objeto de sua busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser ele inapreensiacutevel ou ainda persiste na sua busca O mesmo ocorre com os objetos investigados pela filosofia e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os lsquodogmaacuteticosrsquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel sustentar que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica

As diferenciaccedilotildees entre acadecircmicos e pirrocircnicos satildeo muito controversas poreacutem natildeo esmiuccedilaremos este debate Poreacutem neste trabalho consideramos que quem de fato merece o nome de ceacuteticos satildeo os pirrocircnicos Os acadecircmicos tecircm uma posiccedilatildeo de dogmatismo negativo A posiccedilatildeo ceacutetica se caracteriza pela suspensatildeo do juiacutezo quanto agrave possiblidade ou natildeo de algo ser verdadeiro ou falso A epokheacute desse modo natildeo eacute uma decisatildeo preacutevia e sim uma consequecircncia que surge em oposiccedilatildeo aos dogmaacuteticos que enaltecem nossa capacidade racional De seu lado o pirrocircnico formula seu pensamento para enfraquecer as certezas dogmaacuteticas poreacutem natildeo almeja impor o seu pensamento natildeo elabora uma teoria indiscutiacutevel e afirmativa a respeito de algo nem pretende uma substancializaccedilatildeo Eacute este o sentido pelo qual o

Montaigne e o legado ceacutetico 61

ceticismo busca a cura para essa doenccedila que eacute a precipitaccedilatildeo dogmaacutetica o ceacutetico conforme Sexto Empiacuterico (HP I 16) natildeo assente a coisas natildeo-evidentes natildeo adota dogmas Mais a frente escreve (HP I 17) ldquopois noacutes seguimos um raciociacutenio determinado que nos mostra de acordo com a aparecircncia como viver segundo os costumes tradicionais as leis os modos de vida e nossas afecccedilotildees proacutepriasrdquo Como se pode concluir Sexto Empiacuterico resgata a vida a experiecircncia e o fenocircmeno natildeo pretendendo dogmatizar nossas impressotildees no momento em que formulamos juiacutezos visto que haacute profundas razotildees para duvidar de formulaccedilotildees deste tipo

Acompanhando a letra de Inague Juacutenior (2009)11 trataremos dos quatro primeiros tropos ou modos de Enesidemo Salienta-se aiacute a duacutevida de que as coisas natildeo se diferenciam entre si pois satildeo igualmente incertas e indiscerniacuteveis isto induz-nos epockeacute uma vez que a todo discurso pode se opor outro discurso igual de mesma forccedila persuasiva Estamos assim frente agrave manifestaccedilatildeo da equipolecircncia (isostheacuteneia) no que se refere agrave credibilidade dos argumentos conflitantes que sempre podem ser apresentados de um lado ou de outro da questatildeo (Sexto Empiacuterico HP I 10) sendo que ndash em razatildeo da equipolecircncia - nenhum deles revela-se indiscutiacutevel O ceacutetico natildeo nega a existecircncia do fenocircmeno e sim do que dizem dele Em HP I 40 temos o iniacutecio dessa exposiccedilatildeo

11 httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Cfr MARCONDES 2007

62 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o primeiro argumento (ou tropo) como dissemos eacute aquele que mostra que devido agraves diferenccedilas entre os animais as mesmas impressotildees natildeo satildeo produzidas pelas mesmas coisas Isto inferimos tanto das diferenccedilas quanto agrave geraccedilatildeo dos animais quanto da variedade de composiccedilatildeo de seus corpos

Do mesmo modo discursariacuteamos sobre o prazer e o desprazer pois o que nos agrada enquanto animais com certa constituiccedilatildeo poderia natildeo nos agradar se tiveacutessemos outra

Avanccedilando com Sexto acerca do segundo modo observemos a seguinte citaccedilatildeo de Sexto

O segundo modo eacute como haviacuteamos dito aquele baseado nas diferenccedilas entre os homens pois mesmo se admitimos por hipoacutetese que os homens satildeo mais dignos de creacutedito do que os animais irracionais verificaremos que mesmo nossas proacuteprias diferenccedilas por si mesmas levam agrave suspensatildeo Pois diz-se que o ser humano eacute composto de duas coisas alma e corpo [] Assim no que diz respeito ao corpo diferimos no que diz respeito ao nosso aspecto e no que diz respeito agraves nossas peculiaridades constitutivas (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 79)

Ocorre que tambeacutem na questatildeo da alma temos inuacutemeras teorias que se contradizem e se aniquilam ora se divergimos na nossa capacidade de formular juiacutezos natildeo eacute possiacutevel dizer a verdade Eacute esta a razatildeo pela qual o ceacutetico afirma que apenas podemos dizer aquilo que nos aparece e jamais a coisa em si Buscar a substancializaccedilatildeo eacute o mesmo que incorrer em precipitaccedilotildees e contradiccedilotildees

Montaigne e o legado ceacutetico 63

constantes (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 85) Assim a epokheacute eacute o resultado a que chega o ceacutetico

Na sequecircncia o terceiro modo de Enesidemo centra-se no individual considerando-se a constituiccedilatildeo corporal humana haacute contradiccedilotildees naquilo que os sentidos apreendem Logo soacute podemos falar daquilo que aparece e natildeo daquilo que eacute Jaacute o quarto modo da epockeacute volta-se para qualquer dos sentidos humanos O divino Sexto eacute descreve do seguinte modo

Este modo baseia-se como dizemos nas ldquocircunstacircnciasrdquo e com este termo queremos indicar condiccedilotildees ou disposiccedilotildees Este modo dizemos lida com estados que satildeo ou naturais ou natildeo-naturais tais como estar acordado ou estar dormindo com condicionamentos devido agrave idade ao movimento ou ao repouso ao amor ou ao oacutedio ao vazio ou ao preenchimento agrave embriaguez ou agrave sobriedade com predisposiccedilotildees tais como confianccedila ou medo sofrimento ou alegria (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 100)

Por conseguinte diminui bastante as possibilidades de estabelecer um indiscutiacutevel criteacuterio de verdade seja em razatildeo das oposiccedilotildees entre as apreensotildees entre as distintas espeacutecies seja em razatildeo das contradiccedilotildees das apreensotildees entre os seres humanos e o conflito entre as apreensotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Daiacute temos as contradiccedilotildees das apreensotildees visto que as coisas nos atingem de muacuteltiplas formas a depender das diferenccedilas subjetivas que impossibilita a imparcialidade

64 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os julgamentos satildeo sempre fraacutegeis As circunstacircncias mencionadas acima remetem agrave necessidade de se ter uma preferecircncia por uma determinada circunstacircncia esta tomada como paracircmetro dos julgamentos Podemos pois tomar uma circunstacircncia ou impressatildeo como preferencial percorrendo dois caminhos (HP I 114-117)

Conforme Huisman (2002) eacute fundamental chamar a atenccedilatildeo para o fato de que a epockeacutepirrocircnica eacute mais radical que a epockeacutede Sexto Empiacuterico por uma pequena diferenccedila enquanto o criador do ceticismo recusou-se a definir os graus dos comportamentos dos homens visto que as existecircncias satildeo equivalentes e satildeo dirigidas pela experiecircncia Assim sendo haacute uma distacircncia que parece insuperaacutevel que acontece entre o ser e o parecer tal como entendia Pirro Montaigne escreve que o pensamento de Pirro

[] apresenta o homem nu e vazio reconhecendo sua fraqueza natural apropriado para receber do alto uma forccedila externa desguarnecido de ciecircncia humana e portanto mais apto para alojar em si a divina anulando seu proacuteprio julgamento a fim de dar mais espaccedilo para a feacute [C] nem descrendo [A] nem estabelecendo nenhum dogma contra as observacircncias comuns humilde obediente disciplinaacutevel zeloso inimigo jurado da heresia e consequentemente isentando-se das ideacuteias irreligiosas e vatildes introduzidas pelas falsas seitas (II 12 p 260)

Parece que o fenomenismo de Sexto se mostra formulado em termos bem dualiacutesticos o

Montaigne e o legado ceacutetico 65

fenocircmeno torna-se a impressatildeo ou alteraccedilatildeo sensiacutevel do sujeito e como tal eacute contraposto ao objeto agrave ldquocoisa externardquo ou seja agrave coisa que eacute diferente do sujeito sendo pressuposta como causa da alteraccedilatildeo sensiacutevel do proacuteprio sujeito Como mera alteraccedilatildeo do sujeito o fenocircmeno natildeo resume em si toda a realidade deixando fora de si o ldquoobjeto externordquo o que eacute declarado senatildeo como incognosciacutevel de direito pelo menos como natildeo conhecido de fato (REALE G amp ANTISERI 1990)

A proacutepria conduta do ceacutetico eacute de flutuaccedilatildeo no sentido de que natildeo haacute da parte dele uma verdade inquestionaacutevel a ser defendida como eacute caso dos dogmaacuteticos que com isso se precipitam e sofrem Claro que o ceacutetico estaacute tatildeo vulneraacutevel agraves necessidades quanto o dogmaacutetico todavia com a epokheacute e da posterior ataraxia ele natildeo sofre duas vezes numa mesma circunstacircncia e ao mesmo tempo como eacute o caso dos dogmaacuteticos ou seja pela necessidade mesma e pelos juiacutezos que formulam acerca dela (INAGUE JUacuteNIOR 2009) CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Sergio Cardoso escreveu que a produccedilatildeo acadecircmica atualmente no que se refere aos Ensaios de Montaigne eacute muito grande e que ela o consagra como filoacutesofo estudando suas abordagens em todas as disciplinas da filosofia da epistemologia agrave poliacutetica (CARDOSO 2017) especialmente no Brasil que eacute um dos paiacuteses que mais produziram dissertaccedilotildees e teses acerca do Ensaiacutesta Cardoso recomenda frequentar os Ensaios cujos contornos abissais natildeo

66 Eacutetica e filosofia poliacutetica

se datildeo agrave primeira vista numa visatildeo aparentemente placida ldquoEacute verdade que na superfiacutecie tranquila dos Ensaios natildeo se notam os abalos siacutesmicos sobre os quais deslizam suas aacuteguas claras Eacute preciso conviver com eles para alcanccedilar a dimensatildeo extraordinaacuteria destas rupturas promovidas pelo filoacutesofo (CARDOSO 2017 p 19)

Conforme Eva em lsquoMontaigne ceacuteticorsquo (2017) a libertaccedilatildeo dos princiacutepios universais dogmaacuteticos da religiatildeo e da metafiacutesica encontra fundamento nos argumentos dos ceacuteticos Mas este inteacuterprete apresenta em Montaigne um ceticismo existencial mais que epistemoloacutegico ou argumentativo bem como uma moralidade mais ativa e afirmativa que aquela da submissatildeo agraves sensaccedilotildees inclinaccedilotildees e costumes tal como sugere Pirro

Montaigne natildeo somente confere aos Ensaios a dimensatildeo subjetiva e provisoacuteria como tambeacutem se contrapotildee agraves noccedilotildees abstratas e geneacutericas e aponta a experiecircncia de si como o uacutenico saber capaz de orientar de alguma maneira nossas accedilotildees sempre singulares circunstanciadas e referidas a situaccedilotildees particulares Montaigne substitui a erudiccedilatildeo inflada as certezas pela experiecircncia buscando a observaccedilatildeo direta a anaacutelise e a criacutetica dos fatos Quando a razatildeo nos falta empregamos a experiecircncia De fato como vimos ao longo de nossa exposiccedilatildeo os escritos montaignianos abrem-se para vaacuterias possibilidades de articulaccedilatildeo porque natildeo se fecham a uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Eacute por essa razatildeo que Montaigne acompanhando Sexto opta pelo partido dos ceacuteticos para quem o julgador e o julgado estatildeo em contiacutenua mutaccedilatildeo e movimento (II 12)

Montaigne e o legado ceacutetico 67

Como assinalamos no transcorrer do texto Sexto se apresenta como um ceacutetico pirrocircnico e com este procedimento busca diferenciar sua filosofia do ceticismo acadecircmico Este ceticismo foi praticado pelos herdeiros de uma tradiccedilatildeo natildeo dogmaacutetica da Academia de Platatildeo do qual Ciacutecero foi testemunha Tambeacutem Santo Agostinho em sua fase ceacutetica passou pelo ceticismo acadecircmico e nos legou uma criacutetica a esta escola em sua obra Contra os Acadecircmicos Nesta obra a questatildeo debatida eacute a conexatildeo entre verdade e felicidade e divergindo dos acadecircmicos Santo Agostinho argumenta que a verdade pode ser conhecida e que inclusive a encontrou Montaigne incorpora a divisatildeo oferecida por Sexto Empiacuterico ndash e mencionada anteriormente - entre trecircs gecircneros baacutesicos de escolas de pensamento os dogmaacuteticos que argumentam saber algo com certeza e apresentam doutrinas explicaccedilotildees filosoacuteficas acerca do real os acadecircmicos que concluiacuteram que estatildeo seguros que a verdade natildeo pode ser encontrada efetivamente e por fim os verdadeiramente ceacuteticos skeptikon os que investigam porque julgam natildeo terem ainda chegado a uma conclusatildeo acerca do conhecimento da verdade Estamos nos referindo aos pirrocircnicos obviamente Os pirrocircnicos avaliam que todos os filoacutesofos tecircm limites sendo difiacutecil decidir qual eacute a verdadeira Desse modo eles permanecem em epokheacute mas perseveram incansavelmente em sua busca

Em seus estudos sempre argutos sobre Montaigne e o ceticismo Eva registra que os argumentos expostos por Sexto Empiacuterico ressurgem

68 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quase todos nos Ensaios Em seguida este inteacuterprete daacute como exemplo o fato de que Sexto compara as percepccedilotildees humanas com aquelas que supostamente encontrariacuteamos nos animais com o intuito de argumentar que se pode tratar as representaccedilotildees humanas como verdadeiras uma vez que natildeo temos acesso a um criteacuterio para comparaacute-las Esta comparaccedilatildeo encontra-se na base daquela que Montaigne realiza na famosa Apologia a Raymond Sebond Outro exemplo dado pelo inteacuterprete Sexto Empiacuterico confronta a diversidade de costumes leis e normas de conduta entre os diferentes povos com o mesmo objetivo de impedir nossa presunccedilatildeo de acesso agrave verdade isto se aproxima bastante do debate que Montaigne elabora em II 12 no problema do acesso agraves leis naturais na moral REFEREcircNCIAS BIRCHAL Telma O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte UFMG 2007 BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009 CARDOSO Seacutergio (org) Dossiecirc Ensaiar a proacutepria vida Montaigne filoacutesofo Revista Cult marccedilo de 2017) COMTE Jaimir O iniacutecio Sexto Empiacuterico e o ceticismo pirrocircnico Revista Cult 2015 EMPIacuteRICO Sexto Contra os retoacutericos Satildeo Paulo Unesp 2013 _______ Outlines of Pyrrhonism Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

Montaigne e o legado ceacutetico 69

_______ Against the logicians Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000b _______ Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronica sn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010) EVA Luiz A A Figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007 LAEacuteRCIO Dioacutegenes A vida de Pirro Trad Gabriela G Gazinelli Satildeo Paulo Loyola 2009 LESSA Renato Uma histoacuteria da duacutevida uma resenha de A Histoacuteria do Ceticismo de Richard Popkin Rio de Janeiro Ediccedilatildeo Laboratoacuterio de Estudos Hum(e)anos ndash Online Setembro 2008) MAIA NETO Joseacute Raimundo Ceticismo e Poliacutetica em Montaignerevistaestudoshumeanoscomceticismo-e-politica-em-montaigne-por-jose-raimundo-12 de dez de 2012 MARCONDES Danilo Iniciaccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia Rio de Janeiro Zahar 2007 MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 2002 2006 (Coleccedilatildeo Paideacuteia) 3 v NOBRE Marcos REGO Joseacute Marcio Conversas com filoacutesofos brasileiros Satildeo Paulo Ed 34 2000 NAKAM Geacuteralde Montaigne et son temps Les eacuteveacutenements et les Essais lhistoire la vie le livre Paris Gallimard 1993

70 Eacutetica e filosofia poliacutetica

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000 PORCHAT Oswald Sobre o que aparece Skeacutepsis Satildeo Paulo n 1 p 17 2007 _______ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1994 REALE G ANTISERI D Histoacuteria da Filosofia Antiguidade e Idade Meacutedia Vol I 3ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo Paulus 1990 SMITH Pliacutenio Junqueira O meacutetodo ceacutetico da oposiccedilatildeo e as fantasias de Montaigne Kriterion vol53 no126 Belo Horizonte Dec 2012 STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia da Letras 1992 VILLEY Pierre Les sources et lrsquoevolution des Essais de Montaigne Paris Hechette 1908 INAGUE JUacuteNIOR Marcelo Disponiacutevel em In httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Acesso 14072009

= III =

AMIZADE EM MONTAIGNE

Junior Cesar Luna

31 INTRODUCcedilAtildeO

De iniacutecio eacute preciso lembrar que amizade surgiu

como questatildeo filosoacutefica desde a Antiguidade na ocasiatildeo em que o nuacutecleo da discussatildeo filosoacutefica abandona a reflexatildeo sobre o cosmos e adota o homem como objeto num ambiente cultural e poliacutetico que envolve seacuterios problemas12 e questionamentos morais na filosofia antiga Nesta conjuntura de discussatildeo das relaccedilotildees humanas no meio social insere-se a reflexatildeo sobre a amizade tema este discutido natildeo soacute por Aristoacuteteles na Greacutecia antiga13

Mestre em filosofia moderna e contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute 12 A leitura dos Diaacutelogos de Platatildeo Mecircnon Banquete e Fedro satildeo

relevantes para compreendermos o contexto histoacuterico em que se insere o problema e a relaccedilatildeo entre a filosofia de Platatildeo e Aristoacuteteles pois tratam de pontos essenciais da filosofia deste pensador e cruzam-se problemas fundamentais da existecircncia humana Em Fedro e Banquete Platatildeo estuda nos dois diaacutelogos a noccedilatildeo do amor onde se origina qual seu verdadeiro objeto como se situa e qual a funccedilatildeo Em Mecircnon notamos a formaccedilatildeo embrionaacuteria do sistema platocircnico Trata-se de saber se a virtude pode ou natildeo ser ensinada se existe ou natildeo ldquociecircnciardquo da virtude ou eacute um dom da natureza Identificamos a influecircncia sofista bem viva neste diaacutelogo Os sofistas antigos ensinaram que as ideias satildeo para os homens e natildeo os homens para as ideias Isso ocasionou uma grande crise na filosofia antiga envolvendo seacuterias questotildees morais e eacuteticas que se confundem na filosofia grega 13 Soacutecrates deu iniacutecio agraves discussotildees sobre a justiccedila a virtude e o amor entre os sofistas e Platatildeo e tambeacutem com Soacutecrates teve iniacutecio a reflexatildeo filosoacutefica sobre a amizade

72 Eacutetica e filosofia poliacutetica

como tambeacutem por outros contemporacircneos a ele com bastante representatividade na era heleniacutestica

No Renascimento Michel de Montaigne ao escrever sobre a amizade daacute ares de ter encontrado uma verdadeira amizade Em Da Amizade capiacutetulo 28 do primeiro livro dos Ensaios relatou toda a importacircncia de seu viacutenculo de amizade com Eacutetienne de La Boeacutetie Mas ao descrevecirc-lo diferiu dos conceitos jaacute estabelecidos pelos filoacutesofos claacutessicos e tambeacutem da maneira que os pensadores do seu tempo entendiam a amizade em seu conceito e extensatildeo aleacutem de trabalhar a questatildeo tambeacutem no acircmbito privado estritamente particular Isto fica evidente quando escreve acerca das possiblidades de utilizaccedilatildeo do termo amizade na sociedade Neste trabalho foram buscadas as questotildees eminentemente eacuteticas e filosoacuteficas em relaccedilatildeo agrave amizade perseguindo a sua possiacutevel definiccedilatildeo a instituiccedilatildeo de um caraacuteter normativo bem como a sua elevaccedilatildeo a uma possiacutevel universalidade Como se pode observar questotildees como estas trazem em seu bojo inextinguiacuteveis polecircmicas Inevitavelmente nossa apresentaccedilatildeo se insere no conjunto deste debate filosoacutefico Na realidade insere-se na constataccedilatildeo deste tema na histoacuteria da filosofia neste repique que parece natildeo ter fim isto acabou se constituindo em uma motivaccedilatildeo para continuarmos pensando a amizade como um problema filosoacutefico em Montaigne

Portanto este trabalho objetiva discutir nuclearmente a relaccedilatildeo de amizade entre Montaigne e La Boeacutetie o seu ldquoirmatildeo de alianccedilardquo A leitura dos Ensaios provoca uma indagaccedilatildeo Qual eacute o estatuto filosoacutefico da amizade Afinal este tema perpassa toda a histoacuteria da filosofia Observamos que o homem por si soacute eacute um ser social isso torna o assunto da amizade bastante pertinente e uma reflexatildeo sobre o mesmo eacute extremamente relevante

Amizade em Montaigne 73

Em Da amizade Montaigne interroga a natureza de diferentes laccedilos diversos que ligam os seres humanos entre si Basicamente para ser amigo eacute preciso ser amigo de si mesmo conforme iremos argumentar O ensaiacutesta acompanha a interpretaccedilatildeo dos antigos ateacute um certo ponto depois ele os abandona Na questatildeo da amizade Montaigne eacute leitor e criacutetico de Aristoacuteteles Ciacutecero e Epicuro porque a definiccedilatildeo de amizade dos antigos necessita de uma reinterpretaccedilatildeo para compreender a de Montaigne e La Boeacutetie Mas concorda que a amizade eacute o sentimento mais perfeito que pode existir nas relaccedilotildees humanas e argumenta que se trata de uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar A amizade tem com isso a dimensatildeo da sociabilizaccedilatildeo uma vez que olhar para o outro eacute ter a consciecircncia de que o homem eacute um ser social Em decorrecircncia este trabalho justifica-se na medida em que a investigaccedilatildeo revela a importacircncia de La Boeacutetie para o iniacutecio da empreitada de redaccedilatildeo dos Ensaios De fato a morte de La Boeacutetie causou um impacto profundo na alma de Montaigne que o levou a cair numa recordaccedilatildeo penosa que lhe fez muito mal como registra em seu Journal de voyage (MONTAIGNE 1962) Podemos especular os Ensaios teriam sido escritos se La Boeacutetie natildeo tivesse morrido Os Ensaios foram a forma de tornar presente o amigo ausente como escreve Silva (2014 p 24) Para esta investigaccedilatildeo recorremos aos inteacuterpretes dos Ensaios e a proacutepria obra evidentemente Como mostra o tiacutetulo desta apresentaccedilatildeo o assunto central eacute a questatildeo da amizade que se apresenta para Montaigne como um relevante problema filosoacutefico Iremos argumentar que em Montaigne a amizade eacute o lugar de um encontro de si pois a identidade do eu eacute afirmada por meio dela Assim a amizade eacute o lugar da experiecircncia de si ou seja natildeo eacute na solidatildeo ou na pura volta a si que Montaigne encontra a solidez de

74 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uma vida verdadeira a real existecircncia de si mesmo mas numa relaccedilatildeo singular e paradigmaacutetica com o outro

Trataremos das formas de amizade que eacute encontrada no ensaio Da Amizade Nesse sentido tem especial importacircncia a visatildeo de Aristoacuteteles sobre a justiccedila equidade e amizade tentaremos mostrar a leitura de Montaigne acerca do pensamento aristoteacutelico especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco que foi usada por Montaigne para fundamentar a questatildeo da equidade Apoiado em Aristoacuteteles Montaigne escreve que os bons legisladores se ocuparam mais da amizade que da justiccedila O problema da amizade eacute fundamental para o ensaiacutesta porque avalia que das relaccedilotildees humanas eacute a das mais lsquobelas e nobresrsquo

Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma14

Montaigne distingue a amizade da relaccedilatildeo entre

irmatildeos pois os familiares natildeo satildeo livres escolhas de afeiccedilatildeo como o eacute uma verdadeira amizade O amor pelos pais tambeacutem natildeo eacute amizade uma vez que natildeo eacute uma relaccedilatildeo horizontal E com as mulheres que amamos eacute possiacutevel amizade desse tipo Montaigne salienta que se fosse possiacutevel a amizade desse tipo com quem gozamos as deliacutecias do corpo essa seria perfeita e total Do mesmo modo tratar-se-aacute da questatildeo asseverada por Ciacutecero acerca do valor da amizade de modo particular quando este afirma que haacute amizades profundas e refinadas amizades comuns e superficiais

Observamos que de Epicuro Montaigne retomaraacute a discussatildeo da utilidade da amizade Apresentar-se-aacute as

14 I 28 p 275

Amizade em Montaigne 75

exigecircncias e condiccedilotildees apresentadas por Montaigne para o desenvolvimento de uma verdadeira amizade Argumentaremos que a amizade eacute para Montaigne uma relaccedilatildeo consigo mesmo na qual o outro nos revela a noacutes mesmos como uma espeacutecie de espelhamento Trataremos da gecircnese da amizade de Montaigne com La Boeacutetie porque para Montaigne isso tem implicaccedilotildees filosoacuteficas da mais alta importacircncia mostraremos assim que os desapontamentos com a magistratura soacute natildeo satildeo maiores devido as ocorrecircncias particulares que o levaram ao encontro de Eacutetienne de La Boeacutetie em um evento festivo da cidade de Bordeaux quando este pertencia ao parlamento desde 1554 O Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria de La Boeacutetie ldquoserviu de intermediaacuterio para o nosso primeiro contatordquo15 entre os amigos e de pronto abriu caminho para uma beliacutessima e intensa amizade pois era notoacuteria uma afinidade de pensamento que teve grande contribuiccedilatildeo para a singularidade deste viacutenculo Desse modo abrindo espaccedilo para o contraditoacuterio trataremos de mostrar a diversidade de definiccedilotildees no que tange ao problema da amizade refletida por numerosos pensadores poreacutem aqui abordaremos apenas os que consideramos mais relevantes para esta apresentaccedilatildeo

32 TEMA DA AMIZADE EM MONTAIGNE

Starobinski (1993) mostra o desenvolvimento do

conceito de amizade em Montaigne explicando que este conceito o acompanha e o motiva no iniacutecio de seu retiro (que natildeo eacute o de um ermitatildeo mas sim o de um observador atento da sociedade) para a redaccedilatildeo dos Ensaios obra da vida de Montaigne que se dedicou a ela por cerca de vinte anos Essa obra expressa uma tentativa de conhecimento do fluxo do instante que passa e de se

15 I 28 p 232

76 Eacutetica e filosofia poliacutetica

deixar conhecer por seus parentes e amigos (ou lsquoao leitorrsquo conforme afirma) mostrando todavia que o uacutenico que lhe conhecia por completo Eacutetienne de La Boeacutetie (o fiel amigo ausente desde sua morte em 1563) o acompanha sempre em seus pensamentos como um guardiatildeo da sua mais pura imagem

Ele (La Boeacutetie) era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1993 p 45)

Em seguida Starobinski indica o movimento

montaigniano para construccedilatildeo de uma amizade equitativa virtuosa e indivisiacutevel que foi experimentada pelo proacuteprio ensaiacutesta em uma vivecircncia intensa com La Boeacutetie Nessa direccedilatildeo Starobinski escreve sobre a importante contribuiccedilatildeo da leitura dos claacutessicos antigos para definiccedilatildeo de amizade em Montaigne uma vez que o ensaiacutesta se utiliza dos antigos para abrilhantar o aspecto exemplar e inigualaacutevel de sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie descrevendo caracteriacutesticas de sua amizade que soacute pode ser vivida por homens como ldquoraridaderdquo e que saibam viver com reciprocidade como escolha profunda Aleacutem disso esse tipo de amizade implica numa alienaccedilatildeo16 voluntaacuteria da vontade de ambas as partes ao ponto de suas almas unirem-se de tal forma que natildeo haja mais uma linha divisoacuteria entre elas torna-se uma alma em dois corpos

Uma breve anaacutelise do Da Amizade aponta algumas destas caracteriacutesticas descritas por Montaigne salientando a importacircncia de um amigo que aparece como ponto central da apresentaccedilatildeo do capiacutetulo sobretudo pelo fato de que eacute dedicado agrave memoacuteria de

16 Registre-se poreacutem que a palavra lsquoalienaccedilatildeorsquo natildeo eacute usada por Montaigne (CONCEICAtildeO 2014 p 163)

Amizade em Montaigne 77

Eacutetienne de La Boeacutetie Na realidade trata-se de uma curta poreacutem intensa amizade que se estabeleceu entre ambos A falta deste amigo deixa um grande vazio visto que estaacute ausente agora aquele que lhe revelava a sua imagem Provavelmente eacute a ausecircncia do amigo que o impele a escrever na tentativa de recuperar a sua imagem que a morte do amigo levou consigo

A amizade ocupa um lugar central tanto na obra quanto na vida de Montaigne A concepccedilatildeo montaigniana da amizade eacute inseparaacutevel da memoacuteria da existecircncia de La Boeacutetie por isso estaacutevamos argumentando que ele se afasta da concepccedilatildeo claacutessico-renascentista pois para ele escrever sobre a amizade era escrever sobre si mesmo era um autoconhecimento da singularidade

Na amizade que de fato falo elas se mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniu se me pressionarem para dizer por que o amava sinto que isso soacute pode ser expresso [C] respondendo ldquoporque era ele porque era eurdquo (I 28 p 281)

O fato de todo o capitulo 28 ser uma homenagem

e uma reflexatildeo sobre La Boeacutetie jaacute sugere o quanto eacute difiacutecil a tarefa de precisar conceitualmente algo como lsquouma concepccedilatildeo montaignianarsquo acerca da amizade Todavia uma coisa eacute clara a amizade em que Montaigne e La Boeacutetie haviam compartilhado caracteriza-se pela fusatildeo perfeita com que se interligam os amigos Haacute algo de miacutestico na amizade ideal uma espeacutecie de transcendecircncia muacutetua por meio da qual se perdem e se confundem as almas dos companheiros

Pois essa amizade perfeita de que falo eacute indivisiacutevel cada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhe resta para distribuir alhures ao contraacuterio ele se aborrece por natildeo ser duplo triplo ou quaacutedruplo e por

78 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo ter vaacuterias almas e vaacuterias vontades para entregaacute-las todas a esse objeto (I28 p 285)

Claramente nota-se que a amizade para

Montaigne tem um aspecto interessante ela aponta para o amor equitativo vinculado agrave justiccedila e agrave igualdade inspirado em Aristoacuteteles De fato esta ideia eacute apontada no pensamento do Estagirita17 especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco para fundamentar a noccedilatildeo de equidade Quando somadas igualdade e justiccedila ao sentimento de amizade como resultado temos a amizade equitativa Esta amizade eacute fruto da reciprocidade dos amigos pois tem em vista a igualdade em porccedilotildees idecircnticas de um para com o outro Dessa maneira esta reflexatildeo aristoteacutelica eacute contemporacircnea a Montaigne de maneira que se apoia na noccedilatildeo de teacuteleia philia para que ocorra segundo Seacutergio Cardoso uma decifraccedilatildeo laboriosa da alianccedila que unira [Montaigne] a La Boeacutetie (CARDOSO 1987) Quando Montaigne se refere ao amigo La Boeacutetie afirma que ele e seu amigo se procuravam antes mesmo de se terem visto de modo que nascia neles uma afeiccedilatildeo com raiacutezes profundas E mais uma amizade desproporcional agravequilo que eacute relatado porque tem algo de indiziacutevel Assim ele compara a afeiccedilatildeo por seu amigo com um decreto de Providecircncia

procuraacutevamos antes mesmo de termos conhecido e por informaccedilotildees que ouviacuteamos um sobre o outro e que faziam em nossa afeiccedilatildeo mais efeito do que a razatildeo atribui agrave informaccedilatildeo creio que por alguma ordem do ceacuteu abraccedilaacutevamo-nos por nossos nomes18 (I28 p 281)

17 Aristoacuteteles eacute frequentemente referido como lsquoo Estagiritarsquo (ou ldquoo Filoacutesoforsquo) Isso se daacute pelo fato de que Estagira eacute o nome da cidade conhecida por ser onde nasceu Aristoacuteteles 18 Na traduccedilatildeo da Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo de 1984 ldquoNoacutes nos procuraacutevamos antes de nos termos visto e nascia em noacutes uma

Amizade em Montaigne 79

Com efeito a amizade eacute uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar O decreto da providecircncia se equipara agrave amizade agrave medida que considera as disposiccedilotildees ou medidas proacuteprias para alcanccedilar um fim no caso o nascimento desproporcional da afeiccedilatildeo Pode-se afirmar ainda que a Providecircncia ou ordem do ceacuteu corresponde a um acontecimento feliz ldquoSe as accedilotildees de ambos se desencontrassem eles natildeo seriam nem amigos um do outro segundo minha medida nem amigos de si mesmordquo (I 28 p 283)

Montaigne observa na obra de Ciacutecero uma narrativa do pensamento de Quiacutelon a respeito de amar como se pudesse vir a odiar Estes sentimentos extremos satildeo o que de fato compotildeem a vida Assim o filoacutesofo percebe pertinecircncia nos escritos de Ciacutecero o qual aponta que cautela e prudecircncia satildeo imprescindiacuteveis na escolha dos amigos para que natildeo se ame algueacutem que mais tarde venha a odiar Para tanto alerta para natildeo as confundir as amizades corriqueiras com a sua e a de La Boeacutetie

[B] mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p 283)

Para Montaigne na alma se encontra o desejo de

se unir ao outro para que encontre sua plena realizaccedilatildeo Sobretudo com os acontecimentos de sua vida tais como a morte do pai e do amigo o ensaiacutesta eacute levado a pensar em uma descontinuidade entre alma e corpo No bojo de sua reflexatildeo e nessa descontinuidade entre alma e corpo o autor faz o exerciacutecio da epocheacute suspensatildeo do juiacutezo Refletir significa um retorno aos acontecimentos e

afeiccedilatildeo em verdade fora de proporccedilotildees com o que nos era relatado no que vejo como que um decreto da Providecircnciardquo (I 28 p 94)

80 Eacutetica e filosofia poliacutetica

experiecircncias marcantes que natildeo podem ser apagados da memoacuteria de Montaigne Escrever representa deixar viva na histoacuteria sua experiecircncia de vida marcada pelos sentimentos de dor e de alegria Aleacutem do mais significa ainda presentificar a amizade de maneira que a entrega ao outro eacute assinalada pelos ensaios para natildeo se perder a parte que ainda resta da imagem de La Boeacutetie visto que como assinalamos ele escreve para que a imagem do amigo natildeo se perca neste fluxo constante que tudo arrasta

Na amizade se unem as vontades porque ambos buscam a mesma finalidade o bem ao outro numa fusatildeo verdadeiramente perfeita Assim forma-se uma amizade indivisiacutevel Por essa razatildeo natildeo eacute possiacutevel uma multiplicidade de amigos conforme aponta Seacutergio Cardoso

Se o amigo deseja o que seu amigo deseja se eacute tatildeo seguro da vontade do amigo como da sua proacutepria a hipoacutetese da multiplicidade dos amigos compromete a unidade da proacutepria vontade justamente a grande daacutediva da amizade (CARDOSO 1987 p 184)

Montaigne e La Boeacutetie adotam a mesma postura e

detestam a servidatildeo dos cidadatildeos ao tirano inclusive La Boeacutetie vecirc a amizade como uma saiacuteda possiacutevel de oposiccedilatildeo agrave tirania Poreacutem Montaigne quando apresenta a possibilidade de utilizar o termo amizade na sociedade natildeo sugere associaacute-la agrave lsquoamizade perfeitarsquo Prefere com isso denominar amizade verdadeiramente apenas sua forma perfeita relativa ao nome

A partir disso o ensaiacutesta pensa o conceito da amizade indivisiacutevel para apontar a uniatildeo das vontades bem como a distinccedilatildeo para com as amizades corriqueiras e opacas que acentuam o bem particular ou privado o utilitarismo e o bem familiar Epicuro registra em suas Sentenccedilas Principais que de todas as coisas que a sabedoria nos oferece para a felicidade da vida a maior eacute

Amizade em Montaigne 81

a amizade De acordo com ele a amizade ainda que natildeo nos livre das dores do corpo e da alma nos auxilia a suportaacute-las Como eacute sabido Epicuro julga que o mais alto prazer reside no que chama de sauacutede Entre os prazeres elege a amizade Por isso o conviacutevio entre os estudiosos de sua doutrina era tatildeo importante a ponto de viverem em uma comunidade nominada de ldquoO Jardimrdquo Portanto de todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida a maior eacute a aquisiccedilatildeo da amizade

Constatamos em nossa pesquisa que Montaigne diverge de Aristoacuteteles quanto agrave origem da amizade poreacutem recorre ao Estagirita para fundamentar a ideia de amizade como amor equitativo ligado agrave concepccedilatildeo de justiccedila19 e igualdade Como vimos anteriormente em tais definiccedilotildees no pensamento de Aristoacuteteles o igual eacute definido pelo termo grego isoacutetes igualdade que eacute correspondente agrave justa medida Mas a principal divergecircncia com Aristoacuteteles eacute expressa por Montaigne quando se refere agrave ldquoorigemrdquo da relaccedilatildeo entre amigos Montaigne afirma que a origem da amizade natildeo se encontra na bondade ou na virtude dos sujeitos mas sim em si mesmo ou seja eacute imanente agrave proacutepria relaccedilatildeo20

Se Montaigne parte como indicamos anteriormente da acepccedilatildeo mais abrangente da palavra amizade ndash cujo contexto acabamos de assinalar ndash eacute no entanto apenas com uma intenccedilatildeo purgativa e criacutetica Pois na verdade a primeira parte de seu texto examinando a tipologia tradicional das formas associativas opera uma reduccedilatildeo tatildeo draacutestica na extensatildeo do conceito que solapa profundamente natildeo soacute as elaboraccedilotildees

19 Vale lembrar que segundo Aristoacuteteles o dikaion justo eacute definido como o isos igual isto eacute uma posiccedilatildeo que recomenda a si mesma a todos sem necessidade de evidecircncia Haja vista que o igual eacute uma mediania de modo que o justo tambeacutem eacute uma espeacutecie de mediania (SILVA 2014 p 99) 20 CARDOSO 1986 p 172

82 Eacutetica e filosofia poliacutetica

humanistas de seu tempo mas tambeacutem a ldquoopiniatildeo dos antigosrdquo (CARDOSO 1986 p 169)

Portanto a posiccedilatildeo de Montaigne eacute divergente do

que afirma Aristoacuteteles

[] A amizade perfeita eacute a existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de excelecircncia moral neste caso cada uma das pessoas quer bem agrave outra de maneira idecircntica porque a outra pessoa eacute boa e elas satildeo boas em si mesmas Entatildeo as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles satildeo amigas no sentido mais amplo pois querem bem por causa da proacutepria natureza dos amigos e natildeo por acidente [] (EN VIII 3 p 176)

Podemos entender entatildeo que ao se referir agrave

amizade Montaigne restringe radicalmente seu significado quanto as outras formas de amizade existentes diferentemente daquelas que os antigos fazem referecircncias tradicionais O ensaiacutesta julga que elas apenas se assemelham com a amizade mas de fato natildeo satildeo Diante desta anaacutelise cabe expor algumas formas de amizade que Montaigne analisa e comenta ora tecendo duras criacuteticas ora concordando parcialmente

Em primeiro lugar vejamos a amizade que tem por motivaccedilatildeo o viacutenculo familiar Existe limitaccedilotildees que impedem familiares de se tornarem amigos A criacutetica montaigniana tem como objetivo atingir e destruir a noccedilatildeo de amizade utilizada para identificar relaccedilotildees de viacutenculo comum devido a sua semelhanccedila entre as relaccedilotildees de viacutenculo natural matrimonial camaradagem e social Ao mostrar essas divergecircncias dentro do conceito de amizade ele natildeo pretende criar um novo designo mas sim reservar o termo para nominar apenas o mais puro viacutenculo entre os homens dentro de uma sociedade Da mesma forma natildeo eacute de seu interesse criar um tratado sobre o tema objetivando sanar as divergecircncias entre as

Amizade em Montaigne 83

definiccedilotildees tatildeo pouco apresentar o caraacuteter normativo da amizade bem como a possibilidade de sua universalizaccedilatildeo Isto natildeo compotildee qualquer pretensatildeo de Montaigne

Ora Montaigne seguindo os passos de Aristoacuteteles natildeo discorda que o homem seja um animal social ao contraacuterio nesta mesma direccedilatildeo reforccedila escrevendo nos ensaios

Natildeo haacute algo a que a natureza pareccedila nos ter encaminhado tanto como para a sociedade E diz Aristoacuteteles que os bons legisladores ocuparam-se mais da amizade que da justiccedila Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma (I 28 275)

Para Montaigne se o homem deseja viver

adequadamente precisa ter amigos pois isto estaacute de acordo com as leis da natureza Assim afirma Sergio Cardoso dizendo que

O amigo nos espelha e nos identifica Por isso talvez Aristoacuteteles ndash que Montaigne acompanha de perto ndash tenha dito na abertura de sua grande dissertaccedilatildeo sobre a amizade que ela ldquoeacute o que haacute de mais necessaacuterio para viver (CARDOSO 1986 p 162)

A amizade seria entatildeo o ldquoviacutenculo social por

excelecircncia pois ela faz do viver em comum uma escolha e natildeo uma necessidaderdquo como apontou Labarriegravere (2003)21 Ainda no mesmo sentido o ensaiacutesta visa extrair

21 LABARRIEgraveRE Jean-Louis Aristoacuteteles verbete inserto In Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral organizado por CANTO-

SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral trad Ana

84 Eacutetica e filosofia poliacutetica

elementos que permitem um entendimento maior dos viacutenculos naturais de relaccedilatildeo do homem Poreacutem diferente de Aristoacuteteles que pontua a amizade no terreno da natureza (ou seja a amizade eacute natural ao ser humano) Montaigne observa que a amizade estaacute no campo da eacutetica das escolhas portanto natildeo estaacute determinado e esclarece sua diferenccedila frente aos laccedilos familiares

Na questatildeo da amizade Montaigne concorda com os filoacutesofos Aristipo22 e Plutarco23 (que o ensaiacutesta tanto admira) quando desconsideram as relaccedilotildees familiares Montaigne eacute fulminante quando afirma que a famiacutelia natildeo promove a amizade tal como ele a concebe Principalmente pela hipoacutetese da plenitude da virtude hiacuteperocheacute24 ou seja a famiacutelia natildeo permite as relaccedilotildees de amizade devida a diferenccedila existente entre seus membros A exemplo disto toma a relaccedilatildeo entre pai e filho afirmando que jamais um pai poderia ser amigo de seu filho a reciacuteproca tambeacutem eacute verdadeira jamais um filho poderia ser amigo de seu pai O que impossibilitaria o desenvolvimento desta relaccedilatildeo De acordo com Montaigne eacute em razatildeo do lsquorespeitorsquo que pais e filhos natildeo podem ser amigos visto que devido a sua posiccedilatildeo de desigualdade os filhos natildeo podem dirigir duras advertecircncias a seu pai como devem sempre fazer ao amigo Assim tendo que as suprimir falharia com a fidelidade a seu amigo Portanto amizade se restringe a este tipo de viacutenculo de modo que entre pais e filhos natildeo existe amizade de que fala nosso autor

Maria Ribeiro-Althoff et alii vol 1 Rio Grande do Sul Editora Unisinos 2003 p 123 22 435 a 356 aC filoacutesofo grego fundador da escola cirenaica que defende o controle sobre o prazer afirmando que o prazer eacute o que daacute sentido agrave vida 23 46 a 126 dC filoacutesofo e historiador grego do periacuteodo greco-romano foi muito influente na cultura ocidental 24 Superioridade respeito consideraccedilatildeo e estima que constituem a famiacutelia

Amizade em Montaigne 85

O princiacutepio do respeito impede a relaccedilatildeo amical entre pai e filho devido ao niacutevel hieraacuterquico dentro da famiacutelia Assim o filho deve se espelhar em seu pai tendo como orientaccedilatildeo a noccedilatildeo de mimesis25 Sobre a questatildeo da relaccedilatildeo de amizade entre pais e filhos Montaigne segue Aristoacuteteles de perto (CARDOSO 1986 p 176) no que diz respeito ao problema da voluntariedade pois os familiares tecircm o mesmo sangue como se fosse um outro ldquoeurdquo desta forma natildeo existe a possiblidade da escolha nestas relaccedilotildees Isto implica em outra limitaccedilatildeo para a amizade entre famiacutelia Natildeo existe amizade de caraacuteter involuntaacuterio ou seja um amigo escolhe o outro e vice-versa voluntariamente livre de obrigaccedilotildees preacute-concebidas

Vale a pena lembrar que foi a pedido de seu pai que Montaigne traduziu a Theacuteologie naturelle de Raymond Sebond publicada em 1487 assim fez para natildeo o desagradar deixando perceptiacutevel seu afeto respeitoso Em que pese o carinho a admiraccedilatildeo e o respeito pela figura paterna o pai de Montaigne natildeo era seu amigo porque natildeo poderia secirc-lo Exatamente porque como jaacute chamamos a atenccedilatildeo a amizade ao contraacuterio do ambiente familiar tem uma conotaccedilatildeo espontacircnea que compreende as duas vontades que se fundem numa soacute Por maior que fosse a afeiccedilatildeo para com seu pai natildeo existiam elementos fundamentais do viacutenculo de amizade Esta eacute arquitetada pela abertura muacutetua sem nenhum tipo de ressentimento ou receio que englobe uma relaccedilatildeo de verticalidade como eacute o caso do respeito de filho Horizontalidade na amizade implica em que um confie no outro de maneira reciacuteproca e juntos onde por meio do diaacutelogo constituam os elementos que compotildeem os seus deveres muacutetuos da amizade tais como os da correccedilatildeo e da troca de experiecircncias Ou numa palavra amor muacutetuo

25 A arte de imitar termo grego

86 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Desse modo eacute o diaacutelogo que sustenta a amizade

e permite a consciecircncia da vontade do outro a comunicaccedilatildeo eacute fundamental para a composiccedilatildeo do viacutenculo de amizade26 pois ela eacute quem alimenta e fornece subsiacutedios para o fortalecimento deste viacutenculo amical sendo que ao dialogar discute-se ideias apresenta-se ao outro aquilo que sente em seu interior sem reservas ou receio livre de constrangimento tendo por objetivo ser entendido pelo outro Dentro da famiacutelia isso seria impossiacutevel aliaacutes quantas vezes pais se tornam opressores de ideias natildeo permitindo que os filhos expressem o que pensam dos atos por eles cometidos O respeito na verticalidade impede uma intimidade acentuada entre os membros da famiacutelia e os torna inconveniente Obviamente nos referimos agrave verticalidade e agrave horizontalidade de relaccedilotildees no sentido de procurar distinguir de que tipo de respeito estamos falando Quando Montaigne refere-se ao lsquorespeito pelo pairsquo como uma dificuldade para a amizade natildeo eacute que natildeo deva haver respeito em todas as relaccedilotildees humanas Ocorre apenas que Montaigne chama a nossa atenccedilatildeo pelo fato de que o respeito que se tem pelo pai eacute diferente daquele que se tem pelo amigo

A comunicaccedilatildeo sincera eacute uma das primeiras incumbecircncias da amizade o aconselhamento eacute o caminho aberto entre as pessoas para se advertir dar avisos formular censuras visando sempre o crescimento muacutetuo bem como o estreitamento do viacutenculo Como o amigo eacute aquele capaz de advertir Montaigne chama a atenccedilatildeo para as relaccedilotildees que alguns chamam de amizade poreacutem satildeo carregadas de palavras suaves superficiais elogios exagerados e benevolecircncias banais Montaigne estaacute afinado com Ciacutecero quando este escreve

Portanto advertir e ser advertido eacute proacuteprio da amizade verdadeira desde que isso seja feito com franqueza e

26 A amizade alimenta-se de comunicaccedilatildeo (I 28 276)

Amizade em Montaigne 87

afabilidade e recebido com paciecircncia e sem ressentimento Estejamos persuadidos de que na amizade nada eacute pior que a adulaccedilatildeo a lisonja a bajulaccedilatildeo sim podemos multiplicar os nomes como quisermos mas eacute preciso condenar o viacutecio dessas criaturas friacutevolas e falazes que sempre falam para agradar nunca para dizer a verdade (CIacuteCERO 2012 p 75)

As pessoas incapazes de dizer a verdade natildeo

estatildeo propensas a bons relacionamentos estas tecircm como objetivo o interesse pessoal e o proacuteprio prazer vivem camufladas pautadas na individualidade de seus interesses Ciacutecero adverte ainda formulando a primeira lei da amizade afirmando que o amigo deve ser prudente usar francamente sua opiniatildeo repreender com severidade quando necessaacuterio e que seja capaz de obedecer agraves orientaccedilotildees do outro com paciecircncia e sem ressentimento

Retomemos que haacute uma outra criacutetica montaigniana a respeito da amizade entre familiares a que tem por foco os irmatildeos Tambeacutem nesta situaccedilatildeo o obstaacuteculo eacute o mesmo que a dos pais para com os filhos a condiccedilatildeo de desigualdade e a falta de escolha entre os sujeitos Ningueacutem escolhe os proacuteprios irmatildeos Para tanto faz como se fossem suas as palavras de Aristipo e Plutarco quando

ldquopressionado sobre a afeiccedilatildeo que devia a seus filhos por terem saiacutedo dele pocircs-se a cuspir dizendo que aquilo tambeacutem saiacutera delerdquo e Plutarco que queria induzir a entender-se bem com o irmatildeo respondeu que lsquonatildeo tinha maior consideraccedilatildeo por ele soacute porque saiu do mesmo buracorsquo (I 28 276)

Montaigne argumenta que aquilo ao qual se daacute o

nome de lsquoamizadersquo e de lsquoamigorsquo verdadeiramente natildeo merece tal nome quando se trata de ligaccedilotildees familiares O ensaiacutesta parece entender que existe uma divergecircncia

88 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na concepccedilatildeo de viacutenculo familiar e de amizade pois amizade desempenha um papel diferente da famiacutelia na sociedade Afinal procuramos mostrar que conforme Montaigne a desigualdade entre os familiares bem como o respeito e a impossibilidade de escolha inviabilizam a amizade com viacutenculo familiar visto que impotildee limites aos quais a amizade natildeo suporta Acrescenta Birchal

Em relaccedilatildeo aos viacutenculos naturais como os laccedilos de paternidade e filiaccedilatildeo a amizade eacute superior pois escolhida (e natildeo determinada pela natureza) e fundada numa igualdade (ao contraacuterio da hierarquia entre pai e filho que impede a plena comunicaccedilatildeo) (BIRCHAL 2000 p 292)

Em prosseguimento Michel de Montaigne natildeo

deixa de observar que tambeacutem se associa a amizade no casamento ou na relaccedilatildeo existente entre um homem e uma mulher Disso Montaigne discorda uma vez que para ele o amor conjugal de um casal natildeo pode ser entendido como relaccedilatildeo de amizade Conclui que o marido natildeo eacute amigo de sua mulher Acompanhando Aristoacuteteles Montaigne faz questatildeo de distinguir a amizade daquele sentimento passional que existe para com as mulheres Ainda que reconheccedila que a escolha por uma mulher e natildeo por outra seja proveniente do livre arbiacutetrio (diferente do caso de irmatildeos) a paixatildeo eacute um sentimento arriscado inconstante e fraacutegil Se o marido se tornar um amigo da esposa a relaccedilatildeo corporal apaixonada esfria Nesta questatildeo continuemos a seguir Montaigne em sua escrita sobre o valor da amizade

Na amizade eacute um calor geral e universal temperado e uniforme em tudo um calor constante e sereno todo doccedilura e gentileza que nada tem de rude e pungente Tatildeo logo entra nos termos da amizade isto eacute na concordacircncia das vontades o amor se dissipa ou se enfraquece A fruiccedilatildeo arruiacutena-o pois sua meta eacute corporal e sujeita agrave saciedade A amizade ao contraacuterio

Amizade em Montaigne 89

eacute desfrutada na medida em que eacute desejada e apenas na fruiccedilatildeo se cria se alimenta e cresce porque eacute espiritual e a alma se aprimora com o uso (I 28 277278)

Acrescenta Montaigne que sobre a amizade no

relacionamento conjugal vale a pena observar que o caraacuteter voluntaacuterio se extingue apenas em sua adesatildeo de maneira que passando isto a liberdade se esvai Nosso autor chama a atenccedilatildeo ainda na questatildeo conjugal que esta pode adquirir ateacute uma caracteriacutestica comercial sobretudo o caso daqueles matrimocircnios engendrados para aumentar o patrimocircnio e a riqueza Acrescente ainda que na eacutepoca de Montaigne era muito difiacutecil a separaccedilatildeo dos cocircnjuges Ele brinca dizendo que o casamento somente tem lsquoporta de entradarsquo Claro tais fatos satildeo adversos aos interesses da amizade que soacute pode ter por fim ela mesma e por isso nela haacute liberdade tanto para adesatildeo quanto para rescisatildeo desse relacionamento (diferente do casamento)

Desta forma acabamos de ver que o ensaiacutesta reforccedila que a finalidade da amizade deve ser ela mesma contrapondo-se ao casamento pois neste podemos notar objetivos adversos agrave sua finalidade O lsquobom casamentorsquo seria aquele que se aproxima da amizade Entatildeo e se nossa amante pudesse ser nossa amiga Respondendo a esta indagaccedilatildeo o ensaiacutesta considera que se por acaso pudeacutessemos ter este relacionamento de maneira livre e voluntaacuteria com nosso cocircnjuge seria sem duacutevida a mais plena e completa amizade jaacute experimentada pela humanidade Eacute interessante a afirmaccedilatildeo do ensaiacutesta quando diz o bom casamento eacute aquele que se assemelha com a amizade27 No entanto segundo Montaigne natildeo existem registros de que isso possa ter acontecido e pelo consenso dos antigos isto estaacute longe de acontecer

27 III 5 99

90 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Logo em seguida a esta passagem dos Ensaios

Montaigne discute se eacute possiacutevel uma relaccedilatildeo de amizade no caso da pederastia antiga grega Comeccedila dizendo que a pederastia eacute lsquoabominada pelos costumes de sua eacutepocarsquo Como ceacutetico ele acata os costumes mas nem sempre Montaigne concorda na vida privada com os costumes Note-se que ele se refere ao fato de que a pederastia eacute lsquoabominado por nossos costumesrsquo poreacutem natildeo diz que ele pessoalmente a condena Natildeo eacute nosso propoacutesito aprofundar este tema mas Montaigne parece rechaccedilar a pederastia grega natildeo por uma questatildeo moral mas por natildeo ser uma relaccedilatildeo entre iguais (diferenccedila de idade de classe de ofiacutecio) Mas no tocante agrave pederastia entre iguais Montaigne natildeo se deteacutem a examinar Assim sendo neste caso Montaigne critica o viacutenculo estabelecido entre pessoas com disparidade de idade e diferenccedila de objetivos Portanto podemos entender porque para Montaigne tambeacutem temos obstaacuteculos na consecuccedilatildeo da amizade no caso da pederastia antiga grega e mesmo no relacionamento entre pessoas do mesmo gecircnero porque o fim da amizade natildeo estaacute nela mesma mas sim em um sentimento avassalador de paixatildeo Eacute uma relaccedilatildeo humana mas natildeo cumpre as exigecircncias estabelecidas pela amizade a que Montaigne se refere

E aquela outra licenciosidade grega eacute legitimamente abominada por nossos costumes Entretanto como segundo o uso ela comportava uma tatildeo necessaacuteria disparidade de idades e diferenccedila de benefiacutecios entre os amantes tampouco atendia suficientemente agrave perfeita uniatildeo e concordacircncia que aqui exigimos (I 28 279)

Logo em seguida Montaigne debatendo sempre

acerca da amizade usa os questionamentos de Ciacutecero agrave praacutetica da pederastia problematizando sobre a possibilidade de neste tipo de relaccedilatildeo amorosa haver

Amizade em Montaigne 91

amizade Pergunta ldquoo que seria de fato este amor de amizade De onde viria que ele natildeo se ligue nem a um jovem feio nem a um anciatildeo belordquo Respondendo parcialmente agrave questatildeo conclui que ldquotudo o que se pode apresentar em favor da academia eacute dizer que se tratava de um amor que terminava em amizaderdquo (I 28 280) Sugere assim que tanto o casamento quanto a pederastia podem terminar em amizade Ocorre que Montaigne suscita perguntas ateacute mesmo quando procura respondecirc-las Isto posto cabe agora analisar a diferenccedila da amizade para com os viacutenculos comuns na sociedade

Nesta ideia de amizade frouxa novamente a leitura de Montaigne aproxima-se de Aristoacuteteles visto que para o Estagirita as amizades comuns equivalem a relaccedilotildees de camaradagem Nestas relaccedilotildees ldquoas amizades deste tipo satildeo apenas acidentais pois natildeo eacute por ser quem ela eacute que a pessoa eacute amada mas por proporcionar agrave outra algum proveito ou prazerrdquo (EN VII 4 p 177) Sendo assim amizade comum eacute aquela em que o interesse estaacute nas vantagens e as accedilotildees praticadas de um para com o outro fundamentam-se no dever soacute em si mesmo e natildeo satildeo motivadas pelo bem que proporcionam ao outro Portanto natildeo eacute uma relaccedilatildeo de igualdade pois o dever leva ao sentimento de obrigaccedilatildeo com o outro em busca de um favor do reconhecimento ou seja trazendo para a nossa expressatildeo popular ldquoo que eu vou ganhar em troca distordquo accedilotildees que visam ao lucro ou favorecimento

Neste mesmo rumo Montaigne clama para que sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie natildeo seja colocada na mesma linha das relaccedilotildees de camaradagem pois nestas temos que andar sempre atentos cautelosos devido a desconfianccedila nas intenccedilotildees do outro deste modo natildeo devemos deixar de ter prudecircncia Se na amizade verdadeira haacute uma entrega ao amigo por ela mesma jaacute

92 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na amizade comum eacute preciso preservar-se porque natildeo eacute por ela mesma

Que natildeo me coloquem na mesma linha essas outras amizades comuns tenho tanto conhecimento delas como qualquer outro e das mais perfeitas em seu gecircnero mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p283)

Em outras palavras as amizades comuns tecircm

como finalidade o prazer ou a utilidade elementos que natildeo deixam de existir em nenhuma espeacutecie de amizade A diferenccedila eacute que no viacutenculo de amizade que Montaigne descreve este natildeo eacute o fim uacuteltimo da amizade De qualquer forma amizade soacute existe entre pessoas boas e ser uacutetil e agradaacutevel satildeo caracteriacutesticas de bons cidadatildeos Embora sejam elas fundamentais a amizade pura natildeo se esgota quando recebe favor do outro pois este deseja o bem para si tanto para com o outro Neste sentido compreende Aristoacuteteles (ao qual Montaigne de perto como empreacutestimo para sua proacutepria concepccedilatildeo) que

a amizade por prazer tem alguma semelhanccedila com esta espeacutecie pois pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente agradaacuteveis Acontece o mesmo em relaccedilatildeo agrave amizade por interesse pois as pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente uacuteteis (EN VIII 6 p 179)

A questatildeo que distingue os tipos de amizade

como se vecirc eacute o fim almejado Na perspectiva do ensaiacutesta a definiccedilatildeo

aristoteacutelica de uma alma em dois corpos eacute a justificativa para uma fusatildeo das vontades Por esta razatildeo Montaigne descreve sua experiecircncia de amizade com La Boeacutetie como sendo onde este princiacutepio estaacute presente onde ldquotudo eacute verdadeiramente comum entre elesrdquo Nesta

Amizade em Montaigne 93

amizade existe uma harmonia uma uniatildeo completa e sem reservas em uma palavra perfeita

Nesse nobre comeacutercio os serviccedilos e benefiacutecios que alimentam as outras amizades nem sequer merecem ser levados em conta a causa eacute essa fusatildeo plena de nossas vontades Pois assim como a amizade que tenho para comigo natildeo recebe aumento pelo socorro que me presto na necessidade natildeo importa o que digam os estoacuteicos e como natildeo me sou grato pelo serviccedilo que faccedilo assim tambeacutem a uniatildeo de tais amigos sendo realmente perfeita faz que eles percam a percepccedilatildeo desses deveres e odeiem e eliminem dentre eles estas palavras de divisatildeo e diferenccedila benefiacutecio obrigaccedilatildeo reconhecimento pedido agradecimento e suas semelhanccedilas Como tudo verdadeiramente comum entre eles ndash vontades pensamentos julgamentos bens mulheres filhos honra e vida ndash e sua harmonia eacute de uma uacutenica alma em dois corpos segundo a muito adequada definiccedilatildeo de Aristoacuteteles (I 28 p 284)

Na amizade perfeita tudo eacute conhecido pelo

amigo seus pensamentos suas intenccedilotildees e julgamentos Montaigne afirma que sua alma e a de La Boeacutetie andavam tatildeo juntas quanto possiacutevel por este motivo a comunhatildeo de ideias e experiecircncias era concebida com a mesma convicccedilatildeo da afeiccedilatildeo que sentiam um pelo outro De modo que a admiraccedilatildeo reciproca eacute complementada pela correspondecircncia do gosto e compartilhada pelo diaacutelogo que alimenta a amizade De modo que lsquocom certezarsquo as intenccedilotildees do amigo de Montaigne eram conhecidas por ele bem como seus julgamentos por isso ele escreve que de bom grado confiaria mais no amigo do que em si mesmo

A amizade verdadeira eacute uma experiecircncia de singularidade por isso Montaigne considera uma raridade a amizade que teve com La Boeacutetie Montaigne julga que esta amizade eacute incomparaacutevel devido a sua integridade e

94 Eacutetica e filosofia poliacutetica

dedicaccedilatildeo extrema sobre a qual natildeo se encontra registros de uma amizade tatildeo perfeita na histoacuteria e muito menos entre os contemporacircneos Reforccedila e a eleva ao mais alto grau da perfeiccedilatildeo humana pois a virtude da amizade eacute bela e perfeita quando sua finalidade eacute ela mesma Desta forma existe um caraacuteter de completude neste tipo de amizade onde um completa o outro numa harmonia incomparaacutevel Vejamos isso nas proacuteprias palavras do ensaiacutesta ao escrever sobre os primeiros encontros com o Amigo

Encaminhando assim essa amizade que enquanto Deus quis alimentamos entre noacutes tatildeo integra e tatildeo perfeita que sem a menor duacutevida natildeo se lecirc sobre outras iguais e entre nossos contemporacircneos natildeo se vecirc o menor indicio de sua praacutetica Para construiacute-la satildeo necessaacuterias tantas circunstancias que eacute muito se afortuna o conseguir uma vez a cada trecircs seacuteculos (I 28 p 275)

Aleacutem disso a uniatildeo dos amigos eacute de grande

intensidade ao ponto de consolidar esta bela alianccedila com um nobre tratamento chamando-o de irmatildeo ldquoNa verdade o nome irmatildeo eacute um nome belo e cheio de deleccedilatildeo e por esse motivo noacutes dois ele e eu usamo-lo em nossa alianccedilardquo (I 28 276) Starobinski lembra que La Boeacutetie ao deixar sua biblioteca e seus papeacuteis de heranccedila para Montaigne escreve uma carta onde expressa ao amigo seu desejo e chama-o de irmatildeo

E depois voltando seu discurso para mim Meu irmatildeo disse ele que amo tatildeo afetuosamente e que escolhera entre tantos homens para renovar convosco essa virtuosa e sincera amizade cujo uso estaacute pelos viacutecios haacute tanto tempo afastado de noacutes que dele natildeo restam senatildeo alguns velhos vestiacutegios na memoacuteria da Antiguidade Suplico-vos como sinal de minha afeiccedilatildeo por voacutes que aceiteis ser o sucessor de minha biblioteca e de meus livros que vos dou (apud STAROBINSKI 1992 p 60)

Amizade em Montaigne 95

Sem duacutevidas esta atitude de La Boeacutetie eacute uma

marca concreta da amizade intensa e verdadeira para com Montaigne Deixar a biblioteca como heranccedila tem um valor que vai muito aleacutem dos bens materiais pois estava ali em seus papeacuteis parte de Montaigne bem como de suas ideias compartilhadas com o amigo Eacute um ato que expressa confianccedila imensuraacutevel e para retribuir agrave altura esta mesma Montaigne insere nos ensaios a figura de seu amigo de forma indireta na redaccedilatildeo dos textos aleacutem de dedicar o escrito da Amizade onde se esforccedila para mostrar a constituiccedilatildeo desta amizade perfeita e a diferenciaacute-la das demais Observa Cardoso

Montaigne esquadrinha toda a gama dos viacutenculos associativos e interroga a natureza destes laccedilos diversos que atamos homens entre si (o estatuto das diversas philiai portanto jaacute que para os antigos esta palavra designa tambeacutem mais amplamente todas as formas de afinidade entre os seres e de suas associaccedilotildees) Ao mesmo tempo ele como que hierarquiza esses viacutenculos pelo grau da alianccedila que propiciam pela sua consistecircncia e solidez e instala no topo da classificaccedilatildeo reinando soberana a verdadeira amizade a amizade acabada ndash teacuteleacuteia philia dissera Aristoacuteteles ndash ldquouniatildeo perfeitardquo sem brechas ou fissuras ldquoDivina ligaccedilatildeordquo ldquoa coisa mais uma e unidardquo atada pelos ldquonoacutes serrados e duraacuteveisrdquo de uma ldquocostura santardquo fusatildeo das almas satildeo as expressotildees de Montaigne para essa amizade Amizade que ele afirma ser o estofo da alianccedila que o associara a Etienne de La Boeacutetie (CARDOSO 1987 p 165)

Uma expressatildeo marcante neste ensaio da

Amizade eacute a de ldquofusatildeo das almasrdquo que provem de uma forccedila28 arrebatadora ldquoinexplicaacutevel e fatalrdquo que segundo Montaigne foi ldquomediadora dessa uniatildeordquo (I 28 281) ndash

28 Na nota 22 da p 281 esta forccedila eacute chamada de lsquodestinorsquo

96 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uniatildeo entre Montaigne e La Boeacutetie Avalia que mesmo sem saber como explicar sabe-se que esta forccedila domina as vontades de maneira a mesclar a tal ponto que natildeo existe maneiras de identificaacute-las separadamente as almas ldquose mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniurdquo (I 28 281) Todavia esta fusatildeo natildeo a anula pessoas esta amizade soacute pode existir porque era Montaigne e porque era La Boeacutetie Natildeo se perde a individualidade na amizade perfeita pois um eacute o complemento do outro

A lsquoamizade perfeitarsquo eacute indivisiacutevel e de completude ldquoCada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhes resta para distribuir alhuresrdquo (I 28 285) diferente das lsquoamizades superficiaisrsquo e das amizades comuns Na amizade perfeita soacute existe espaccedilo para dois iguais (equivalente a uma alma) Assim aquele que pretende ampliar a experiecircncia da amizade perfeita entra em um dilema paradoxal Seguindo as questotildees postas no texto por Montaigne exatamente porque a amizade eacute indivisiacutevel e de completude torna-se clara a dificuldade em se ter muitos amigos ldquose dois pedissem para ser socorridos qual acudiriacuteeis Se solicitassem de voacutes serviccedilos opostos que ordem encontrariacuteeis nisso29 Se um confiasse ao vosso silecircncio algo que ao outro fosse uacutetil saber como vos desenredariacuteeis dissordquo (I 28 p 285286) Portanto quanto agrave amizade perfeita eacute impossiacutevel que seja dupla Aleacutem disto duplicar-se jaacute eacute uma daacutediva inigualaacutevel e aqueles que dizem querer estendecirc-la para mais um ainda natildeo conhecem a grandeza da amizade perfeita

Montaigne usa os exemplos antigos e suas experiecircncias para fundar suas opiniotildees assinalando que

29 Qual deles atenderiacuteeis em primeiro lugar Ou talvez como resolveriacuteeis essa dificuldade

Amizade em Montaigne 97

natildeo tem por objetivo ensinar o que se deve fazer30 Este tipo de amizade natildeo tem preccedilo A propoacutesito disto o ensaiacutesta comenta um exemplo de Eudacircmidas

Em suma satildeo fatos inimaginaacuteveis para quem natildeo experimentou e que me faz elogiar extremamente a resposta daquele jovem soldado a Ciro que lhe perguntava por quanto ele queria dar um cavalo com o qual acabara de ganhar o precircmio da corrida e se queria trocaacute-lo por um reino ldquoPor certo que natildeo meu senhor mas de muito bom grado o entregaria para obter um amigo se encontrasse homem digno de tal alianccedilardquo (I 28 p 286)

Segundo Starobinski com a morte de La Boeacutetie a

vivecircncia dele seraacute suprida pela atitude de Montaigne de maneira que ele mesmo torna-se objeto de uma representaccedilatildeo no ato da escrita ou seja doravante Montaigne seraacute o objeto de sua investigaccedilatildeo Assim

o ato de observar e de representar constitui ele proacuteprio o objeto de uma representaccedilatildeo O registro nos mostraratildeo pintor no trabalho diante do speculum e da tela em que figura um autorretrato em vias de execuccedilatildeo (STAROBINSKI 1992 p 36) Desta forma a morte do Amigo e a escrita tecircm

conjunturas fundamentais pois existe a possibilidade de eternizar por meio da escrita a experiecircncia vivida e ao mesmo tempo revivecirc-las ao passo que as registra trazendo na memoacuteria a presenccedila daquele que se foi

E por uacuteltimo analisamos que a amizade enquanto experiecircncia de si eacute marcada pela alteridade o que implica supor que o outro eacute constitutivo da identidade do eu De acordo com Starobinski La Boeacutetie era o uacutenico que conhecia Montaigne por completo Por isso ele eacute o

30 ldquoNatildeo me ocupo de dizer ao mundo o que ele deve fazer ndash outros ocupam suficientemente - e sim o que faccedilo nelerdquo (I 28 287)

98 Eacutetica e filosofia poliacutetica

guardiatildeo da sua mais pura imagem do filoacutesofo uma vez que

[] Ele era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1992 p 45)

Em Da Vanidade Montaigne discorre acerca da

amizade com La Boeacutetie Escreve que Na verdadeira amizade em que sou experimentado dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim Natildeo soacute prefiro fazer-lhe bem a que ele me faccedila mas ainda que ele o faccedila a si proacuteprio a que me faccedila faz-me ele entatildeo o maior bem possiacutevel quando a si o faz E se a sua ausecircncia lhe for quer prazenteira quer uacutetil torna-se-me ela bem mais agradaacutevel que a sua presenccedila e de resto natildeo eacute propriamente ausecircncia se haacute meios de comunicarmos um com o outro Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento Em nos separando para mim e eu para ele mais plenamente que se ele estivesse presente Uma parte de cada um de noacutes permanecia desocupada quando estaacutevamos juntos fundiacuteamo-nos num soacute A separaccedilatildeo espacial tornava mais rica a uniatildeo das nossas vontades A insaciaacutevel fome da presenccedila fiacutesica denuncia uma certa fraqueza na fruiccedilatildeo muacutetua das almas (III 9 p 272)

A escrita de Montaigne tem uma dimensatildeo muito

pessoal Busca nos haacutebitos e costumes questotildees referentes agrave humanidade como um todo Quando a razatildeo lhe falta Montaigne se apoia na experiecircncia Eacute verdade que tais bases satildeo fraacutegeis (razatildeo costume experiecircncia) poreacutem tudo o que temos eacute lsquoo que aparecersquo Desse modo ele utiliza como base de seu estudo acerca da amizade a relaccedilatildeo que manteve com La Boeacutetie Inerente agrave temaacutetica da amizade haacute uma perspectiva poliacutetica visto que para Montaigne a inspeccedilatildeo que respalda o juiacutezo relativo deve

Amizade em Montaigne 99

ultrapassar a experiecircncia de si e alcanccedilar a experiecircncia do coletivo e da opiniatildeo puacuteblica31 Ou seja para ele a ideia de humanidade se coloca acima da ideia de paacutetria e isso implica em que a amizade desempenha papel central nisso na medida em que declara a amizade mais alta aquela que dedica ao gecircnero humano Por todas estas razotildees nosso autor descreve a amizade pura e desinteressada como o fundamento de toda a sabedoria

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Satildeo estas as razotildees de toda a argumentaccedilatildeo que

enfim se depreende da leitura de Montaigne natildeo pode existir uma amizade imposta A amizade compreende um amor equitativo em outras palavras justo e igual Na amizade nada eacute privado do amigo principalmente a vontade que eacute comum desde sua origem e inclusive a proacutepria forma de enxergar a vida O desiacutegnio eacute o mesmo ser apenas uma alma em dois corpos Este pensamento se refere agrave uniatildeo das almas num soacute corpo como diziacuteamos Uma uniatildeo na qual se perde o privado todavia natildeo se perde a individualidade Esta eacute reconhecida pelo exerciacutecio da descoberta de si mesmo no outro Uma descoberta ininterrupta que inclusive vai aleacutem da morte pelo fato de que Montaigne a registra em sua escrita tornando sempre viva a experiecircncia

Viver verdadeiramente eacute realizar uma experiecircncia de amizade que na verdade eacute a descoberta da consciecircncia e da humanidade do proacuteprio lsquoeu como escreve Birchal (2000) Quem nunca teve um amigo teraacute vivido verdadeiramente Por isso a metaacutefora do espelho trazida por Starobinski eacute muito adequada visto que aquilo que o homem eacute consiste na sua proacutepria existecircncia Os atos refletem o que cada ser humano traz de tal sorte

31 CONCEICcedilAtildeO 2014

100 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que o amigo eacute capaz de enxergar-nos nesse espelho e nos decifrar Conforme Seacutergio Cardoso

desejando pois pela sua virtude a proacutepria vida e fazendo-se a vida do amigo igualmente pela virtude semelhante agrave sua o saacutebio a deseja tambeacutem Os amigos se aproximam portanto por meio da unidade da virtude e do Bem (CARDOSO 1987 p 186)

Uma vez que o proacuteprio Montaigne parece nos

querer deixar questotildees em aberto em forma de problema para refletirmos ndash como faz com frequecircncia nos Ensaios ndash talvez seja melhor que tenhamos em matildeos a contextualizaccedilatildeo de sua maneira de pensar e percebermos que o filoacutesofo estaacute aleacutem de seu tempo Eacute importante que natildeo busquemos restringir a leitura de um texto tatildeo rico e tatildeo denso dentro de um esquema que se apresente como mais coerente ou sistemaacutetico pois Os Ensaios satildeo registro de uma tensatildeo e de movimento portanto assistemaacutetico e fluido O problema do ceticismo bem como o da Amizade satildeo de grande importacircncia para a histoacuteria da filosofia e ateacute mesmo para nossos proacuteprios modos particulares de ver o mundo pode ser mais bem aproveitado se natildeo o limitarmos e respeitarmos sua complexidade pois falar sobre a escrita de Montaigne envolve muitos paradoxos Tentar aprisionaacute-lo numa explicaccedilatildeo para uma questatildeo de tamanha abrangecircncia e que talvez seja irrespondiacutevel (no sentido de ser uma questatildeo permanentemente aberta) pode natildeo ser o melhor modo de se tratar o tema da amizade e do ceticismo em um autor que de modo geral tanto adverte contra julgamentos absolutos precipitados e contra a estreiteza de pensamento

A amizade assegura portanto a existecircncia de si mesmo visto que o outro no caso La Boeacutetie eacute uma parte de Montaigne Desse modo a amizade adquire um ideal humanista uma vez que o outro revela o ldquoeurdquo de forma a garantir a sua presenccedila no mundo Com a morte do

Amizade em Montaigne 101

Amigo resta ao autor apenas o ato de redigir para que natildeo morra o restante de si mesmo No entanto aquilo que era a garantia de si mesmo antes da morte do amigo agora com a perda dele torna um ldquoeurdquo em movimento que busca constantemente a si mesmo Acontecendo a sobrevivecircncia do ldquoeurdquo por meio da escrita

Vale dizer que Montaigne tem como base de pesquisa o seu viver e tem como referecircncia ele mesmo bem como a leitura dos textos antigos Portanto trata-se de um autor que natildeo se propotildee escrever um manual a respeito da amizade ou do comportamento humano mas quer apenas apresentar reflexotildees resultantes de sua experiecircncia Segundo Cardoso

soacute aqui chegamos pois propriamente ao essai registro do proacuteprio autor autorretrato expressatildeo de si mesmo ndash gestos gostos opiniotildees reflexotildees ndash ensaios de uma vida (CARDOSO 1992 p 13)

Por fim

eacute indispensaacutevel a amizade para que haja a felicidade Natildeo obstante a morte do amigo essa natildeo seraacute apenas motivo de melancolia mas momento de honra por intermeacutedio da memoacuteria viva da uniatildeo entre eles visto que dividiam e partilhavam tudo (SILVA 2010 p 131)

A dinacircmica da relaccedilatildeo de amizade perfeita natildeo

tem fim com a morte de La Boeacutetie pois recorrendo agrave escrita a fluidez de seu pensamento toma outra dimensatildeo na medida em que a escrita revela uma vivecircncia diferente da amizade vivida

E finalmente vale ressaltar ainda que em Montaigne ldquoencontramos mais o paradoxo e menos o repousordquo (CONCEICcedilAtildeO 2015 p 27) ou seja a leitura dos Ensaios nos provoca mais indagaccedilotildees do que nos daacute respostas prontas

102 Eacutetica e filosofia poliacutetica

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Livro IX Coleccedilatildeo Os Pensadores Editora Nova Cultural Ltda Satildeo Paulo 1996

______ Eacutetica a Nicocircmacos Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

______ Eacutetica a Nicocircmaco Trad Leonel Vallandro e Gerd Bornhein da versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica Trad br Eudoro de Souza Coleccedilatildeo Os Pensadores Volume II Satildeo Paulo Abril Cultural 1979

______ Poliacutetica Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1997

BIGNOTTO N Montaigne Renascentista Kriterion n 86 p 41 1992

BIRCHAL T Montaigne e seus duplos Elementos para uma histoacuteria da subjetividade 2000 Tese (Doutorado) - Universidade de Satildeo Paulo 2000

CARDOSO Seacutergio Villey e Starobinski duas interpretaccedilotildees exemplares sobre a Gecircnese dos Ensaios Kriterion Belo Horizonte v 33 n 86 p 9-28 1992

______ Os sentidos da Paixatildeo Texto ldquoPaixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaignerdquo Companhia das Letras Satildeo Paulo 1986

______ [et al] Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987 p 159-194

COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo de Eduardo Brandatildeo 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2011

Amizade em Montaigne 103

______ Uma feacute um Rei uma Lei Anexo ao Relatoacuterio sd

______ O homem um homem do humanismo renascentista a Michel de Montaigne In Perturbador Mundo Novo Ed Escuta Satildeo Paulo 1992

______ Paixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaigne In NOVAES A (Org) Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1995 p 159-194

______ A crise da razatildeo poliacutetica na Franccedila das guerras de religiatildeo In A Crise da Razatildeo Org Adauto Novaes Satildeo Paulo Cia das letras 1996 p 173

CONCEICcedilAtildeO Gilmar H Montaigne e a Poliacutetica EDUNIOESTE Cascavel 2014

COSTA LIMA L Limites da Voz (Montaigne Schlegel Kafka) 2ordf ed revisada Rio de Janeiro Topbooks 2005

CIacuteCERO Marcos Tulio Da Amizade Trad Gilson Cesar Cardoso De Souza Wmf Martinsfontes Satildeo Paulo 2012

EVA Luiz Antonio Alves Montaigne e o Ceticismo na Apologia de Raymond Sebond a Natureza Dialeacutetica da Criacutetica agrave Vaidade In O que nos faz pensar Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio novembro de 1994 n 8

______ O Ensaio como Ceticismo Manuscrito Unicamp 2001

______ O Fideismo ceacutetico de Montaigne 1947 Kriterion Revista de filosofia v I Belo Horizonte

EMPIacuteRICO Sexto Outlines of Pyrrhonism (HP) In BURY R G (Ed) Sextus Empiricus Cambridge

104 Eacutetica e filosofia poliacutetica

London Harvard University Press William Heinemann 1987 v I (Loeb Classical Library ndeg 273)

______ Outlines of Pyrrhonism Trad Para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

______ Esbozos Pirrocircnicos Madrid Editorial Gredos 1993

JAPIASSUacute Hilton MARCONDES Danilo Dicionaacuterio Baacutesico de Filosofia 5ed Rio de Janeiro Zahar 2008

LA BOEacuteTIE E Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria Trad Laymert Garcia dos Santos Ed Marilena Chauiacute 2 ed Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1982 (Col Elogio da Filosofia)

LACOUTURE Jean Montaigne a cavalo Trad F Rangel Rio de Janeiro Record 1998

MILLIET Sergio Prefaacutecio aos Ensaios de Montaigne Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Ed Globo 1961

MONTAIGNE Journal de voyage en Italie par La Suisse amp lrsquoAllemagne In Œuvres complegraveetes Paris Gallimard 1962 (Bibliothegraveque de La Pleacuteiade)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro II Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek AbiacutelioSatildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro III Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

Amizade em Montaigne 105

MONTAIGNE Michel de Apologie de Raimond Sebond introduction de Samuel Sylvestre de Sacy Collection Ideacutees NRF France Eacuteditions Gallimard 1967

EPICURO Maacuteximas e Sentenccedilas Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

SILVA Nelson Maria Brechoacute da A Amizade em Montaigne Dissertaccedilatildeo de Mestrado- Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciecircncias 2010

STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Traduccedilatildeo de Maria Luacutecia Machado SatildeoPaulo Cia da Letras 1992

TOURNON Andreacute Montaigne Satildeo Paulo Discurso 2004

THEOBALDO Maria Cristina Sobre o ldquoDa educaccedilatildeo das crianccedilasrdquo a nova maneira De Montaigne Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2008

VASCONCELOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 (Paideacuteia)

VILLEY Pierre Os Ensaios de Montaigne Montaigne Ensaios Livro I Traduccedilatildeo Prefaacutecio e notas de Sergio Milliet Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Editora Globo 1961

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

POPKIN Richard H The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza Berkeley Los Angeles London University of California Press 1979

106 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= IV =

O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O

CAMINHO DA FILOSOFIA

Elissa Gabriela Fernandes Sanches 41 INTRODUCcedilAtildeO

De seu primeiro contato e leitura dos escritos de

Ciacutecero ndash especificamente da obra ldquoHortecircnsiordquo ndash Agostinho despertou para a vida filosoacutefica enquanto busca da sabedoria em si proacuteprio Em uma trajetoacuteria de vida marcada por grandes descontinuidades ele era constantemente perturbado pela duacutevida vivida como anguacutestia Tais indagaccedilotildees o motivaram a uma interminaacutevel busca por respostas e diferentes foram os resultados a que chegou Natildeo obstante o pensador patriacutestico se inseriu em diversos paradoxos e foi atormentado pelas proacuteprias tensotildees que encontrava na diaphonia (διαφονία) dos fenocircmenos Em um primeiro momento seus questionamentos o obrigaram a abandonar a seita maniqueiacutesta agrave qual era afiliado e o inseriram em um percurso ceacutetico de caraacuteter acadecircmico que afirmava a impossibilidade de se conhecer a verdade Tal caminhada levou Agostinho agrave conversatildeo ao Cristianismo pouco antes de 386 dC ano em que escreve sua primeira obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo com o objetivo de argumentar que a verdade natildeo soacute estaacute acessiacutevel a todos como tambeacutem pode ser conhecida por nossa razatildeo Uma mudanccedila brusca que diante de seu

Bacharel em Teologia pela Faculdade Nazarena do Brasil e mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE-PR) Contato elissagabrielafshotmailcom

108 Eacutetica e filosofia poliacutetica

contexto de vida eacute compreensiacutevel Sua atitude demonstra que as vaacuterias contradiccedilotildees agraves quais fora incitado o motivaram a ir mais aleacutem em sua jornada na intenccedilatildeo de superaacute-las embora natildeo possamos negar que muitas pontas permaneceram soltas em sua filosofia

Consideramos um risco querer reunir as vaacuterias reflexotildees do Doutor Hiponense segundo um esquema preestabelecido numa espeacutecie de ldquosistemardquo de filosofia agostiniana Agostinho natildeo se deixa aprisionar nestes quadros riacutegidos e doutrinaacuterios por isso discordamos da ideia de buscar um manual da filosofia agostiniana Fazer isso eacute arriscar-se a perder o que haacute de melhor nele e de mais caracteriacutestico suas antiacuteteses Agostinho natildeo avanccedila em linha reta e podemos afirmar que o seu espiacuterito sempre vivo e pujante empenhado em concitar o ser humano a decisotildees eacuteticas e teoreacuteticas sempre novas natildeo possibilita sequer a ideia de um sistema Claro que isso natildeo eacute um limite ao contraacuterio mostra a fertilidade de um pensador considerado um mestre do Ocidente Todo o pensamento de Agostinho gravita em torno de Deus por outro lado nosso foco aqui estaacute direcionado aos aspectos filosoacuteficos de sua reflexatildeo Pretendemos evidenciar o argumento do autor acerca da busca da verdade orientada pelo amor como uma atitude propriamente filosoacutefica

Eacute importante relembrarmos que o termo lsquoFilosofiarsquo foi elaborado por Pitaacutegoras de Samos (571-496 aC) para se referir a um amoramizade pela sabedoria (Philos φιλος amoramizade e Sophia σοφία sabedoria) Mas natildeo se trata de um amor estaacutetico e sim um sentimento que move a filoacutesofa e o filoacutesofo em direccedilatildeo agravequilo que anseia por conhecer que introduz o(a) amante no caminhar que tambeacutem foi trilhado por Agostinho

Assim apesar de ter passado por diferentes fases inclusive por uma fase ceacutetica Agostinho natildeo deixou nenhum escrito que revelasse suas reflexotildees

O amor na busca pela verdade 109

neste momento de sua vida No entanto em diversas de suas obras percebe-se o quanto ele se sentia assombrado por suas proacuteprias indagaccedilotildees Elas lhe serviram como guias orientando-o atraveacutes de sua proacutepria interioridade e visando o encontro da verdade que lhe era velada Em ldquoContra os Acadecircmicosrdquo o filoacutesofo de Cartago questiona eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade Eis a questatildeo central de nosso estudo

Para os membros da antiga Academia de Platatildeo em sua fase ceacutetica o saacutebio deveria se empenhar na busca pelo que eacute verossiacutemil ou provaacutevel natildeo pelo que eacute verdadeiro Esta posiccedilatildeo foi defendida sobretudo por Arcesilau (3165-2410 aC) responsaacutevel pela virada ceacutetica na Academia Em oposiccedilatildeo agrave Zenatildeo ele defendia uma forma rigorosa de ceticismo na qual a verdade natildeo pode ser conhecida e nesta condiccedilatildeo o saacutebio natildeo deve concordar com nenhum parecer que seja favoraacutevel a ela Resta entatildeo ceder agrave epocheacute (ἐποχή) ou suspensatildeo do juiacutezo do assentimento Esta forma de ceticismo foi aprimorada por Carneacuteades (214-129 aC) que se dedicou agrave retoacuterica e argumentaccedilatildeo para melhor defendecirc-lo nos vaacuterios debates em que participava Dessa maneira embora ambos tenham contribuiacutedo fortemente com uma variante radical de ceticismo na Academia ela foi atenuada devido ao surgimento de uma postura mais branda que avaliava a existecircncia de crenccedilas proacuteximas da verdade apesar de natildeo poderem ser julgadas como verdadeiras ou falsas posto que natildeo se pode conhecer o que eacute efetivamente verdadeiro

Entatildeo se na reflexatildeo agostiniana a verdade pode ser encontrada qual o caminho deve ser percorrido para alcanccedilaacute-la Afinal mesmo os ceacuteticos acadecircmicos tambeacutem natildeo duvidavam da existecircncia de uma verdade apenas avaliavam que ela natildeo poderia ser conhecida Agostinho propotildee portanto uma estrutura de

110 Eacutetica e filosofia poliacutetica

argumentaccedilatildeo que vincula a busca da sabedoria com a vontade o desejo em compreendecirc-la

De modo geral o amor eacute o cerne da vontade que pode levar o indiviacuteduo agrave felicidade ou natildeo Nesta condiccedilatildeo sendo a busca um movimento em direccedilatildeo a algo ela natildeo existe sem que o indiviacuteduo deseje aquilo que quer encontrar Portanto se ele quiser a verdade deveraacute antes amaacute-la pois somente o amor permite o deslocamento no sentido da coisa a que se deseja

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute explorar essa ligaccedilatildeo entre amor e verdade que natildeo estaacute expliacutecita no pensamento agostiniano para fins de demonstrar que nele o amor eacute a forccedila que instiga o indiviacuteduo agrave caminhada no encontro da verdade Na tentativa de se distanciar de qualquer forma de ignoracircncia e se aproximar de uma ataraxia (αταραξία) resultante do encontro da verdade Agostinho avalia que o engajar-se neste caminhar eacute o fator de relevacircncia e natildeo a verdade em si para aquele que busca a sabedoria e portanto ser feliz

A divergecircncia com o maniqueiacutesmo na qual o filoacutesofo de Tagaste se introduziu expressa mais uma vez que ele continuava a sofrer desesperado por alcanccedilar aquilo que tanto almejava Ao aproximar-se do ceticismo a questatildeo que o perturbava neste momento era como eacute possiacutevel alcanccedilar uma verdade certa e incontestaacutevel a respeito das coisas invisiacuteveis (natildeo-evidentes) Pergunta esta que acabou levando-o a uma nova caminhada que culminou em sua conversatildeo e consequente crenccedila de que mesmo sendo a verdade singularmente diferenciada da realidade mundana ela pode ser encontrada Ateacute porque eacute na procura da verdade que o indiviacuteduo encontra a Deus a quem almeja conhecer de fato

O amor na busca pela verdade 111

42 ENTRE O CETICISMO E O DOGMATISMO Eacute de senso comum afirmar que uma pessoa eacute

ceacutetica quando ela suspeita acerca da certeza das coisas No entanto essa expressatildeo assumiu tamanha amplitude nos dias atuais que criamos uma grande dificuldade em conceber sequer a possibilidade de um religioso ser ceacutetico Afinal como algueacutem pode acreditar em um ser divino e desconfiar da realidade Parece ser um incriacutevel paradoxo No entanto o ceticismo estaacute aleacutem do que a nossa simples linguagem cotidiana transmite Por exemplo quando olho para o ceacuteu quem me garante que ele eacute azul Mais do que isso como posso afirmar que sua tonalidade eacute de um azul claro Hoje podemos levar em consideraccedilatildeo as explicaccedilotildees cientiacuteficas para conhecermos a realidade Natildeo que elas expressem a absoluta verdade no entanto algumas contribuem para a delimitaccedilatildeo de certas percepccedilotildees Assim como podemos comprovar que a cor do ceacuteu eacute azul Experimentalmente podemos captar os raios ultravioletas que a luz do sol emite e averiguar seu comprimento de onda Cada comprimento eacute percebido pelos nossos olhos atraveacutes de uma cor especiacutefica graccedilas agrave atividade de um tipo celular presente no olho denominado bastonete Ainda devemos inserir nesse processo o aacuterduo trabalho de nossos neurocircnios em enviar as sinapses de forma correta ateacute os nervos conectados agrave nossa visatildeo Se tudo der certo poderemos enxergar o ceacuteu na cor azul Mas o fato de o enxergarmos azul significa que ele eacute azul Ou ele eacute azul para noacutes que possuiacutemos um complexo arcabouccedilo bioloacutegico que nos permite percebecirc-lo dessa maneira

Temos aiacute um conflito Uns podem afirmar que se o ceacuteu emite raios ultravioletas com determinado comprimento de onda entatildeo eacute porque ele eacute azul Outros defendem que ao contraacuterio o ceacuteu natildeo possui cor nenhuma e tudo natildeo passa de uma percepccedilatildeo nossa individual da realidade Alguns ainda podem ser um

112 Eacutetica e filosofia poliacutetica

pouco mais ousados e declarar que nem mesmo podemos garantir a existecircncia dos raios ultravioletas dado que natildeo os enxergamos Neste raciociacutenio seraacute que as maacutequinas que medem o comprimento de onda inventam seus valores Por outro lado o fato de a ciecircncia esclarecer o processo pelo qual percebemos as cores significa entatildeo que eacute uma sequecircncia que ocorre com todos da mesma maneira Seraacute que existem pessoas que percebem as cores de forma diferente No final das contas o ato de duvidar de nossas percepccedilotildees e ateacute mesmo daquelas definidas cientificamente natildeo significa que estamos sendo ceacuteticos

A palavra ldquoceticismordquo veio do termo grego skeptomai (σκέπτομαι) que significa ldquoolhar atentamenterdquo ldquoperscrutarrdquo ldquoexaminarrdquo32 Este vocaacutebulo por sua vez tem origem na palavra skepsis (σκέψις) que pode ser traduzida como ldquoexamerdquo ldquoindagaccedilatildeordquo ldquoconsideraccedilatildeordquo e remete portanto agrave proacutepria postura ceacutetica Pela etimologia podemos considerar que o ceticismo eacute em si a praacutetica de avaliar cuidadosamente acerca daquilo que se busca entender O seu movimento foi introduzido oficialmente por Pirro de Eacutelis filoacutesofo grego que viveu entre os anos de 365 a 275 aC33 Pirro natildeo nos deixou nada por escrito e alguns de seus inteacuterpretes consideram ser este um

32 Para uma anaacutelise mais acurada do ceticismo vinculada agrave criacutetica de Agostinho cf PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012 33 Eacute interessante perceber que mesmo assim podemos detectar certas posturas ceacuteticas em filoacutesofos anteriores como Soacutecrates e Platatildeo Como exemplo temos a maacutexima socraacutetica ldquoSoacute sei que nada seirdquo atitude esta que se assemelha bastante agrave epocheacute ceacutetica na qual

entre a equipolecircncia de duas afirmativas nada pode ser dito quanto ao juiacutezo de ambas Jaacute em Platatildeo seus estudiosos avaliam a presenccedila tanto de uma postura dogmaacutetica como ceacutetica o que demonstra o conflito em tentar localizar o pensador grego diante de correntes filosoacuteficas que se apresentaram bem depois de sua morte

O amor na busca pela verdade 113

procedimento bastante coerente ao seu pensamento visto que ateacute mesmo a escrita implicaria em uma forma de posicionamento Como praticante fiel de sua proacutepria teoria Pirro eacute conhecido como o uacutenico que assumiu verdadeiramente a postura ceacutetica (skepsis) em sua forma mais radical34

Timatildeo de Fliunte (325-235 aC) o mais devoto disciacutepulo de Pirro tomou para si a responsabilidade de escrever natildeo somente aquilo que aprendeu de seu mestre como tambeacutem suas proacuteprias consideraccedilotildees a respeito do ceticismo Contudo de todas as suas obras apenas alguns fragmentos de duas delas sobreviveram agraves cataacutestrofes do tempo e da histoacuteria Silos e Imagens O movimento ceacutetico que Pirro de Eacutelis iniciou foi denominado ceticismo pirrocircnico (Πυρρωνισμός) e sua radicalidade se fundamentava na postura de completa indiferenccedila diante de todas as coisas Aristocles de Messecircnia filoacutesofo peripateacutetico esclarece essa atitude

Alguns haviam naquela eacutepoca entre os antigos que falavam esta linguagem e aos quais Aristoacuteteles se opocircs O proacuteprio Pirro de Eacutelis falou fortemente neste sentido mas ele natildeo deixou nada por escrito Poreacutem seu disciacutepulo Timatildeo diz que o homem que busca ser feliz deve olhar para estas trecircs coisas primeiro quais satildeo as qualidades naturais das coisas segundo de que forma devemos nos posicionar perante elas e por uacuteltimo que vantagem haveraacute para aqueles que assim se posicionarem As coisas por si proacuteprias ele declara demonstrar satildeo igualmente indiferentes instaacuteveis indeterminadas e portanto nem nossos sentidos ou

34 PEREIRA JR 2012 p 30 Richard Popkin (2000 p 15) um conhecido estudioso do ceticismo em sua obra ldquoA Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo tambeacutem comentou acerca da exemplaridade de Pirro de Eacutelis diante de sua teoria ldquoAs histoacuterias acerca de Pirro que chegaram ateacute noacutes revelam que ele natildeo era um teoacuterico mas ao contraacuterio o exemplo vivo e completo de algueacutem que punha tudo em duacutevida um homem que natildeo aceitava se comprometer com nenhum juiacutezo que fosse aleacutem de como as coisas pareciam serrdquo

114 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nossas opiniotildees satildeo verdadeiras ou falsas Por este motivo noacutes natildeo devemos confiar nelas mas sermos sem opiniotildees sem inclinaccedilotildees e sem hesitaccedilotildees afirmando de cada coisa que ela natildeo mais eacute do que natildeo eacute ou que eacute e natildeo eacute ou que nem eacute nem natildeo eacute Para aqueles que estatildeo assim dispostos o resultado Timatildeo afirma seraacute primeiro o silecircncio [afasia ἀφασία] e entatildeo a imperturbabilidade [ataraxia αταραξία] mas Enesidemos diz [que o resultado eacute] prazer (CESAREA Preparation for the Gospel XIV 18 traduccedilatildeo nossa)35

Nesse fragmento ndash que Euseacutebio de Cesareia

expotildee em sua obra ldquoPreparaccedilatildeo para o Evangelhordquo (Εὑαγγελικὴ Προπαρασκευή) escrita entre os anos de 314 e 324 dC ndash Aristocles demonstra ser a atitude ceacutetica uma busca pela felicidade Nesta jornada o indiviacuteduo deve avaliar se realmente vale a pena se dispor diante das caracteriacutesticas naturais das coisas de modo a lanccedilar seus juiacutezos de opiniotildees sobre elas O filoacutesofo de Messecircnia considera que independentemente de como satildeo percebidas as coisas que observamos satildeo sempre indiferentes de tal modo que natildeo podem ser definidas de uma ou de outra forma Neste sentido nossas

35 ldquoSome then there were even of the ancients who spoke this language and who have been opposed by Aristotle Pyrrho indeed of Elis spoke strongly in this sense but has not himself left anything in writing But his disciple Timon says that the man who means to be happy must look to these three things first what are the natural qualities of things secondly in what way we should be disposed towards them and lastly what advantage there will be to those who are so disposed The things themselves then he professes to show are equally indifferent and unstable and indeterminate and therefore neither our senses nor our opinions are either true or false For this reason then we must not trust them but be without opinions and without bias and without wavering saying of every single thing that it no more is than is not or both is and is not or neither is nor is not To those indeed who are thus disposed the result Timon says will be first speechlessness and then imperturbability but Aenesidemus says pleasurerdquo (CAESAREA Preparation for the Gospel XIV 18)

O amor na busca pela verdade 115

impressotildees sobre elas de nada valem portanto natildeo podemos afirmaacute-las mais do que negaacute-las

Mesmo os ceacuteticos radicais como Pirro acreditavam que a felicidade devia ser alcanccedilada Poreacutem o percurso para ser feliz divergia consideravelmente dos dogmaacuteticos os quais definiam a busca pela verdade como a procura pela felicidade Para o ceticismo pirrocircnico e acadecircmico a busca pela felicidade consistia em assumir que a verdade natildeo pode ser alcanccedilada o que levava agrave ataraxia isto eacute agrave imperturbabilidade da alma Esta eacute traduzida como a tranquilidade do intelecto que diante da impossibilidade de conhecer a verdade reorienta o caminho para a sabedoria em direccedilatildeo agrave novas rotas Contudo existe uma leve diferenccedila entre ambas as formas de ceticismo que veremos um pouco mais tarde

Retornando ao exemplo do ceacuteu azul um ceacutetico natildeo duvidaria que esteja enxergando a cor azul do ceacuteu pois

natildeo eacute contra as aparecircncias ou φαινόμενων (phainomenon) que o ceacutetico vai se opor mas contra a possibilidade de conhecimento da natureza ou essecircncia dos fenocircmenos (PEREIRA JR 2012 p 25)

Nesse caso ele duvidaria de nossa capacidade

em descobrir a verdade acerca da cor do ceacuteu isto eacute se ele eacute azul ou natildeo Mesmo com toda a teacutecnica cientiacutefica natildeo soacute natildeo conseguimos avaliar a cor do ceacuteu propriamente dita (pois o fato de percebermos as cores se daacute devido ao nosso ceacuterebro ser capaz de traduzir determinados comprimentos de ondas natildeo porque a cor realmente exista) como elaboramos diversos paracircmetros que nos permitem reconhecer as cores (raios ultravioletas neurocircnios sinapses linguagem) Dessa forma com a ciecircncia apenas demonstramos a impossibilidade de conhecer a verdadeira cor do ceacuteu ou definir se ele eacute azul ou natildeo Isto significa que mesmo o conhecimento cientiacutefico natildeo pode ser utilizado como

116 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma segura para alcanccedilarmos a verdade visto que ele em si avalia como percebemos e interpretamos as coisas e natildeo como as coisas satildeo em sua natureza

Em contraposiccedilatildeo ao ceticismo temos o dogmatismo outra corrente teoacuterica que defende nossa capacidade de natildeo soacute buscar a verdade como tambeacutem de conhececirc-la A palavra dogmatismo vem da raiz grega dogma (δόγμα) que significa ldquoopiniatildeordquo ldquodoutrinardquo Tal substantivo tem origem no verbo dokeo (δοκέω) traduzido como ldquoparecerrdquo ldquoter a aparecircncia derdquo O dogmatismo estaacute intrinsecamente relacionado agrave tese de que por meio das aparecircncias podemos conhecer a verdade e portanto conferirmos juiacutezos de opiniatildeo sobre as coisas Assim a busca por ela natildeo eacute insensata mas faz jus ao nosso proacuteprio desejo humano de sermos felizes Desse modo o que eacute realmente importante eacute a jornada em si que reuacutene natildeo apenas o anseio mas a intenccedilatildeo sincera de que o indiviacuteduo somente encontraraacute a felicidade quando colocaacute-la como o uacutenico fim de sua investigaccedilatildeo O meio que se utiliza para atingir esse fim se torna assim a proacutepria busca pela verdade Mas em que consiste essa busca E seraacute que a verdade pode ser encontrada E o que eacute a verdade Ao longo da tradiccedilatildeo filosoacutefica foram elaboradas diversas respostas para tais perguntas assim como tambeacutem houveram vaacuterias refutaccedilotildees por parte dos ceacuteticos36 Neste estudo a ecircnfase

36 Uma das tentativas foi realizada por Reneacute Descartes O autor francecircs em sua obra ldquoMeditaccedilotildees Metafiacutesicasrdquo escrita em 1641 inicia sua argumentaccedilatildeo com a suspensatildeo de todos os juiacutezos ou seja se inserindo em uma condiccedilatildeo de duacutevida absoluta para identificar nesta condiccedilatildeo o que permaneceria indubitaacutevel Para Descartes a experiecircncia criteacuterio de obtenccedilatildeo da verdade por ser variada em suas muacuteltiplas formas e representada pela dimensatildeo sensiacutevel natildeo poderia fornecer os devidos subsiacutedios para encontrar a verdade o que justificaria a inutilidade da busca O filoacutesofo francecircs utiliza do mesmo raciociacutenio ceacutetico para concluir que neste sentido nem mesmo a proacutepria existecircncia eacute algo certo afinal nenhuma percepccedilatildeo sensiacutevel no mundo poderia conferir consistecircncia ao fato do ser Nisto consiste a primeira meditaccedilatildeo na qual Descartes (Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT

O amor na busca pela verdade 117

incidiraacute sobre as respostas que Agostinho concedeu a tais e outros questionamentos que veremos acerca do assunto

Costumamos associar a postura dogmaacutetica agrave religiatildeo agrave feacute Mais do que buscar precisamos confiar que a verdade existe mesmo que passemos a vida inteira procurando-a e natildeo a encontremos Faz sentido vinculaacute-la ao pensamento religioso que se pauta em diversas doutrinas e postulados promotores de significado agrave crenccedila do indiviacuteduo Mas devemos destacar aqui uma diferenccedila profundamente discreta crenccedila natildeo eacute sinocircnimo de feacute Acreditar em algo natildeo significa que temos feacute naquilo A palavra ldquocrenccedilardquo vem do substantivo latino credentiae que tem origem no verbo tambeacutem latino credo Credo significa ldquoter feacute emrdquo ldquoconfiarrdquo ldquoassumir a realidade ou a existecircncia derdquo ldquopossuir certa opiniatildeordquo ldquonatildeo duvidarrdquo logo estaacute muito mais vinculado ao ato de confiar na verdade de uma proposiccedilatildeo por meio da forccedila de persuasatildeo que este argumento possui A feacute por sua vez remonta ao substantivo latino fides pode ser traduzida como ldquopromessardquo ldquoa condiccedilatildeo de ter a

IX 9) apresenta ldquoas razotildees pelas quais podemos duvidar em geral de todas as coisas e em particular das coisas materiais ao menos enquanto natildeo tivermos outros fundamentos nas ciecircncias senatildeo aqueles que tivemos ateacute o presenterdquo No entanto o que Descartes observa eacute que o criteacuterio ceacutetico de invalidaccedilatildeo da busca pela verdade eacute em si mesmo falho A realidade sensiacutevel eacute de fato variada podendo se apresentar aos indiviacuteduos de diversas formas O ser humano como parte dessa realidade tambeacutem eacute capaz de interpretaacute-la de acordo com o seu ponto de vista Por conseguinte seraacute que a percepccedilatildeo sensiacutevel deve ser considerada o ponto focal na jornada do(a) filoacutesofo(a) Apesar do indiviacuteduo estar em um mundo que se encontra em constante mudanccedila existe um elemento que permanece constante instigado pela duacutevida pela ficccedilatildeo e pela incoerecircncia das coisas o pensamento Este eacute o fundamento a partir do qual se deve avaliar a existecircncia individual e portanto as coisas contidas na dimensatildeo sensiacutevel Isto porque apesar da duacutevida ldquoeacute propriamente o que em mim se chama sentir e isso tomado precisamente assim nada mais eacute do que pensarrdquo (DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT IX 23)

118 Eacutetica e filosofia poliacutetica

confianccedila depositada em umrdquo ldquolealdaderdquo e estaacute bastante proacutexima do sentimento de crer em algo que natildeo se conhece A crenccedila exige a feacute muitas vezes e ambas estatildeo interconectadas poreacutem natildeo podemos afirmar que as duas satildeo a mesma coisa

Nesse sentido podemos acreditar que o ceacuteu eacute azul mesmo que ele natildeo o seja Mas se conseguimos ver a sua cor azul isso eacute o suficiente para convencer a alguns de que ele eacute azul No entanto natildeo temos feacute na cor azul do ceacuteu justamente porque podemos vecirc-lo e afirmarmos o que eacute o ceacuteu e apontarmos para a cor que vemos identificando-a como azul No entanto podemos ter feacute naquele que criou o ceacuteu precisamente porque natildeo o conhecemos e por isso natildeo somos capazes de afirmar a veracidade ou falsidade de sua existecircncia Ainda assim a feacute persiste de forma bastante natural uma vez que somos assaltados pela indagaccedilatildeo e de onde veio o ceacuteu Ningueacutem sabe nem mesmo a ciecircncia eacute capaz de avaliar sua origem a partir do nada

O dogmatismo estaacute portanto muito mais vinculado agrave crenccedila do que agrave feacute em si o que confere abertura suficiente para a existecircncia de fieacuteis ceacuteticos Qualquer um pode acreditar em coisas que desconhece e ao mesmo tempo natildeo acreditar na possibilidade de conhecermos a verdade atraveacutes das aparecircncias37 Natildeo se trata aqui de ser ceacutetico e dogmaacutetico ao mesmo tempo mas de assumir um determinado grau de ceticismo que permite a suspensatildeo do juiacutezo acerca das coisas Este eacute um posicionamento uacutetil e necessaacuterio sobretudo nas diversas ocasiotildees em que precisamos assumir que as

37 Richard Popkins (2000 p 20) comenta ldquorsquoceacuteticorsquo e lsquocrentersquo natildeo satildeo classificaccedilotildees que se opotildeem O ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias das justificaccedilotildees que se apresentam para uma crenccedila duvida que razotildees necessaacuterias e suficientes tenham sido ou possam ser encontradas para mostrar que qualquer crenccedila em particular deva ser verdadeira e natildeo possa ser falsa Mas o ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo

O amor na busca pela verdade 119

nossas crenccedilas natildeo satildeo superiores ou mais verdadeiras que as crenccedilas de outrem Realizemos a epocheacute e natildeo nos deixemos afetar pela aparecircncia de verdade que nossas convicccedilotildees possuem Assim evitemos ser prejudicados por qualquer dificuldade de aceitaccedilatildeo dos diferentes posicionamentos e pontos de vista apresentados pelos outros Se o ceacuteu eacute azul ou verde tanto faz mas natildeo deixemos de aproveitar a oportunidade para apreciar a capacidade que o outro possui para enxergar as coisas de forma diversa da nossa

43 ldquoCONTRA OS ACADEcircMICOSrdquo NA BUSCA PELA VERDADE

A primeira pergunta que nos surge apoacutes a leitura

de ldquoContra os acadecircmicosrdquo (Contra academicos) eacute quem satildeo os acadecircmicos Em um momento inicial muitos podem pensar que todo o ceticismo estaacute inserido no contexto da Academia Entatildeo para entendermos a criacutetica agostiniana precisamos analisar a conjuntura filosoacutefica e histoacuterica no qual estaacute inserida

Um ponto importante que necessitamos ter em mente eacute natildeo podemos falar em ceticismo mas em ceticismos Natildeo existiu apenas um movimento ceacutetico na histoacuteria da filosofia mas vaacuterios Desse modo historiadores e filoacutesofos demarcam quatro fases do ceticismo no Periacuteodo Antigo o ceticismo antigo fundado por Pirro de Eacutelis e que se desenvolveu entre os seacuteculos IV e III aC o ceticismo acadecircmico alvo da criacutetica do bispo de Hipona e estabelecido no interior da Academia de Platatildeo por Arcesilau e Carneacuteades demarcando sua entrada na fase meacutedia da Academia (seacuteculos III e II aC) o ceticismo dialeacutetico representado por Enesidemo e Agripa entre os seacuteculos II e I aC e por fim o ceticismo empiacuterico iniciado por Sexto Empiacuterico no seacuteculo III dC

120 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Jaacute vimos que o ceticismo pirrocircnico ou ceticismo

antigo realizava a defesa de uma postura (skepsis) radical frente agrave possibilidade de natildeo se saber o que eacute a verdade Devido a isso o ceacutetico pirrocircnico se empenhava em ausentar-se totalmente de opiniotildees (afasia) Se a busca pela verdade resulta no conflito em definir entre duas proposiccedilotildees que uma eacute verdadeira e a outra eacute falsa ou que uma seja mais verdadeira que a outra entatildeo natildeo podemos emitir qualquer opiniatildeo acerca das coisas Nossa experiecircncia no mundo nos comprova que todos percebemos a realidade de diferentes maneiras Entatildeo quem percebe como o mundo eacute de verdade Quem conhece a verdade Para evitar ser atormentado por tais indagaccedilotildees impossiacuteveis de serem respondidas o ceacutetico pirrocircnico se afastava da duacutevida ao considerar que nada pode ser afirmado a respeito da natureza das coisas Somente assim era possiacutevel alcanccedilar a tatildeo desejada serenidade do intelecto (ataraxia) atraveacutes da indiferenccedila (adiaphora ἀδιάφορα)

Os ceacuteticos pirrocircnicos procuravam evitar assumir qualquer compromisso acerca de qualquer questatildeo mesmo em relaccedilatildeo agrave validade de seus proacuteprios argumentos O ceticismo para eles era uma habilidade ou atitude mental que permitia opor evidecircncias a favor e contra qualquer questatildeo relativa ao natildeo-evidente [adelo ἄδήλον] de modo a levar agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca desta questatildeo Este estado mental levaria entatildeo agrave ataraxia agrave quietude ou imperturbabilidade quando o ceacutetico entatildeo natildeo mais se preocuparia com questotildees que transcendem as aparecircncias O ceticismo seria a cura para a doenccedila do dogmatismo (POPKIN 2000 p 16)

O conceito de evidente (prodela πρόδηλα) e natildeo-

evidente (adelo) satildeo centrais no pensamento ceacutetico Popkin esclarece que o comportamento do ceacutetico pirrocircnico se direcionava a partir das coisas evidentes agraves natildeo-evidentes isto eacute agravequilo que eacute oculto a noacutes No

O amor na busca pela verdade 121

cotidiano deparamo-nos com diversos fenocircmenos os quais percebemos atraveacutes de nossos sentidos aliados agrave nossa interpretaccedilatildeo realizada por toda a nossa estrutura bioloacutegica mental Sabemos quando estaacute de dia e quando estaacute de noite sentimos o sabor doce salgado amargo dos alimentos que comemos temos contato com diversas texturas atraveacutes da nossa pele e todas essas constataccedilotildees satildeo evidentes manifestam-se a noacutes No entanto a epocheacute eacute aplicada agraves coisas que natildeo satildeo tatildeo claras a noacutes38 Aliaacutes justamente porque natildeo satildeo visiacuteveis que natildeo podemos lanccedilar qualquer forma de juiacutezo sobre elas A opiniatildeo neste momento natildeo contribuiraacute em nada pois natildeo poderemos averiguar sua veracidade

O ceticismo acadecircmico se assemelha ao pirrocircnico pela atitude (skepsis) perante agraves coisas natildeo-evidentes Contudo ele eacute considerado como sendo uma forma mais branda posto que assume a existecircncia de coisas provaacuteveis isto eacute proacuteximas da verdade Por outro lado sua radicalidade se baseava na defesa de que a verdade natildeo pode ser conhecida ponto este que promoveu a criacutetica agostiniana Afinal se afirmamos que a verdade natildeo pode ser conhecida como podemos dizer que existem coisas proacuteximas da verdade O argumento ceacutetico acadecircmico parece conter em si uma contradiccedilatildeo a de que como saberemos que estamos nos aproximando da verdade se natildeo podemos conhececirc-la

Esta forma de ceticismo ao qual se dirige a refutaccedilatildeo do bispo de Hipona foi introduzido na Academia de Platatildeo por Arcesilau (315-240 aC) e mantido nos anos subsequentes por Carneacuteades (214-129 aC) Esta

38 Eacute preciso atentar que a forma de ceticismo assumida por Pirro de Eacutelis abrangia tanto as coisas evidentes como natildeo-evidentes para as quais aplicava a suspensatildeo de seu juiacutezo Contudo ldquoSeus sucessores logo trataram de dar nova roupagem a essa postura adotando a ἐποχή natildeo para todas as coisas mas apenas para aquelas que seriam a seu modo de ver natildeo evidentes (ἄδήλον) Assim as coisas de caraacuteter mais obscuro necessitariam de uma anaacutelise mais acurada antes de qualquer pronunciamentordquo (PEREIRA JR 2012 p 24)

122 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nova etapa da Academia ficou sendo conhecida como fase meacutedia ou segunda ndash tambeacutem denominada Nova Academia ndash na qual vigorou por aproximadamente dois seacuteculos a afirmaccedilatildeo de um novo modelo de ceticismo Uma das fontes que temos para conhecer o ceticismo acadecircmico eacute a obra ldquoOs Acadecircmicosrdquo (Academica) de Ciacutecero escrita em 45 dC e com a qual Agostinho como tradicional leitor das reflexotildees ciceronianas muito provavelmente entrou em contato para realizar sua investida39 Contudo o filoacutesofo patriacutestico natildeo eacute o uacutenico a questionar o ceticismo acadecircmico Sexto Empiacuterico (I 1) meacutedico e filoacutesofo grego em sua obra ldquoHipotiposes Pirrocircnicasrdquo (Πυῤῥώνειοι ὑποτύπωσεις) escrita no seacuteculo II dC logo no comeccedilo de seu primeiro livro afirma

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra aquilo que busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser isto inapreensiacutevel ou ainda persiste em sua busca O mesmo ocorre com as investigaccedilotildees filosoacuteficas e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode

39 ldquoO destaque para essa obra de Ciacutecero justifica-se primeiramente pelo seu caraacuteter eminentemente epistemoloacutegico pois se constitui um verdadeiro tratado sobre a natureza do conhecimento Eacute nessa obra que o autor em questatildeo iraacute apresentar ao mundo romano a filosofia vigente na Academia deixada por Platatildeo Sobretudo foi uma obra amplamente citada por Santo Agostinho em Contra Academicos e certamente a fonte desse filoacutesofo na construccedilatildeo de sua criacutetica ao ceticismo acadecircmico Esse tratado epistemoloacutegico foi editado em duas versotildees ambas com alteraccedilotildees em seus tiacutetulos originais [] Desse modo a primeira ediccedilatildeo denominada de Academica Priora era composta por dois livros Catulus hoje perdido e Lucullus que ficou conhecido como Academica II por se tratar do segundo livro da primeira ediccedilatildeo A segunda ediccedilatildeo denominada de Academica Posteriora foi dividida em quatros livros dos quais apenas a metade do primeiro sobreviveu e ficou conhecida como Academica I por ser o primeiro livro da segunda ediccedilatildeo Santo Agostinho parece conhecer apenas a segunda ediccedilatildeo referindo-se a ela como Academici Librirdquo

(PEREIRA JR 2012 p 60)

O amor na busca pela verdade 123

ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os ldquodogmaacuteticosrdquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoacuteicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel manter que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica40

Podemos notar que o antigo filoacutesofo tampouco

reconhecia o ceticismo dos acadecircmicos e preferiu denominaacute-los simplesmente de ldquoacadecircmicosrdquo Para ele os ceacuteticos estatildeo em contiacutenua busca da verdade diferente dos acadecircmicos que defendem que ela natildeo pode ser apreendida Sabendo que a criacutetica de Agostinho se dirigia ao ceticismo acadecircmico e natildeo agrave sua variante original o ceticismo pirrocircnico devemos levar em consideraccedilatildeo a argumentaccedilatildeo do autor frente ao posicionamento dos membros da Meacutedia Academia (ou Nova Academia) sem orientarmos sua contestaccedilatildeo ao ceticismo como um todo

Quando Agostinho tomou conhecimento do ceticismo logo apoacutes ter abandonado a seita maniqueiacutesta ele decidiu aderir-se ao movimento ceacutetico Essa decisatildeo demonstra a relevacircncia que o autor concedia aos seus questionamentos Desde seus primeiros estudos a busca pelo conhecimento e mais ainda pela verdade orientou seu trajeto Ao ler a obra de Ciacutecero ldquoHortecircnsiordquo (Hortensius) Agostinho (Confissotildees III 4 grifo nosso) eacute arrebatado por um forte anseio pela sabedoria e comenta em sua obra ldquoConfissotildeesrdquo (Confessiones)

Esse livro conteacutem uma exortaccedilatildeo ao estudo da filosofia Chama-se Hortecircnsio Ele mudou o alvo das minhas afeiccedilotildees e encaminhou para Voacutes Senhor as minhas preces transformando as minhas aspiraccedilotildees e desejos [] Natildeo era o estilo mas sim o assunto

40 Traduccedilatildeo de Danilo Marcondes

124 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tratado que me persuadia a lecirc-lo [] o amor agrave sabedoria pelo qual aqueles estudos literaacuterios me apaixonavam tem o nome grego de filosofia [] Apenas me deleitava naquela exortaccedilatildeo o fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim o desejo de amar buscar conquistar reter e abraccedilar natildeo esta ou aquela seita mas sim a proacutepria sabedoria qualquer que ela fosse

Entretanto o autor afirma logo depois que o seu

desejo soacute natildeo era completo devido agrave ausecircncia do nome de Cristo na obra Isso significava que tal sabedoria defendida pela filosofia ainda natildeo correspondia agrave verdade agrave qual buscava jornada esta que o inflamaria de expectativas e esperanccedilas apoacutes a conversatildeo

44 A BUSCA PELA SABEDORIA EXIGE AMOR POR ELA

Existem diversos elementos que constituem a

jornada daquele que almeja alcanccedilar a sabedoria Natildeo podemos de forma alguma acreditar que tal caminhar nos exige apenas a leitura de obras de caraacuteter filosoacutefico A philosophia (φιλοσοφία) reuacutene um conjunto de requisitos para que possa ser praticada Dentre eles temos o pensar reflexivo um contato com o eu que perpasse todas as situaccedilotildees as quais necessitamos individualmente entender melhor temos a discussatildeo o debate um movimento dialeacutetico que torna visiacutevel meus pensamentos ao outro de modo a permitir que eles sejam trabalhados por um ponto de vista diferente do meu temos a aceitaccedilatildeo de certas afinidades em que reconhecemos apreciar determinados conteuacutedos em detrimento de outros o que nos facilita a elaboraccedilatildeo de nossos proacuteprios problemas temos a aprendizagem que localiza pontos de partida que datildeo origem ao nosso caminhar temos a coragem de que em determinado momento precisaremos refletir sozinhos ndash sem nos

O amor na busca pela verdade 125

escondermos por traacutes da identidade de algum autor ndash natildeo porque estaremos diante de um problema novo mas porque cada indiviacuteduo eacute totalmente diferente do outro e portanto percebe a realidade de uma forma diferente Poreacutem o que nos insere nesta busca Porquecirc estudar philosophia

Para Agostinho tudo perpassava o amor Natildeo um sentimento romacircntico ou banal igual encontramos muitas vezes nos dias atuais mas algo promotor de movimento O amor como vontade estimula-nos a sair de nosso lugar em direccedilatildeo agravequilo que desejamos Devemos considerar entatildeo que o amor agostiniano possui trecircs constituintes aquele que ama o amor e aquilo que eacute amado Eacute uma triacuteade em que o amor intermedia a relaccedilatildeo entre o amante e seu objeto de desejo

O bispo de Hipona compreende que a existecircncia depende do amor Sem o amor noacutes nem sequer desejariacuteamos natildeo haveria nada que nos estimulasse a sair de noacutes mesmos Este eacute digamos o benefiacutecio de amar e antes dele o indiviacuteduo estaacute isolado em seu ego distante de tudo de todos do mundo41 Mas esta

41 ldquo[] santo Agostinho natildeo considera realmente seacuteria a ideacuteia de solipsismo Afirma ele em Contra os acadecircmicos que se chamo lsquoo mundorsquo ao que me parece ser o mundo entatildeo posso saber que o mundo existe Mas ter dito isso eacute apenas parte de seu esforccedilo continuado para mostrar que em vez do ceticismo acadecircmico haacute pelo menos algumas coisas que podem ser conhecidas Agostinho natildeo tenta perguntar agrave maneira de Descartes se e no caso afirmativo como posso saber que aleacutem do meu mundo fenomenal haacute um mundo fiacutesico que existe independentemente de mim e das minhas impressotildees acerca desse mundo Expresso no jargatildeo da filosofia do seacuteculo XX ele natildeo reconhece o Problema do Mundo Externo e muito menos tentou solucionaacute-lo Existe poreacutem um aspecto em que Agostinho encara muito a seacuterio o isolamento do ego Ele imagina como isso era para ele quando bebecirc antes de ter aprendido as palavras de qualquer liacutengua natural [] De acordo com esse lsquoquadro agostiniano da linguagemrsquo cada um de noacutes quebra o isolamento do seu ego epistemoloacutegico ao ter os nomes das coisas assinalados para noacutes de tal modo que acabamos por estar aptos a expressar os nossos

126 Eacutetica e filosofia poliacutetica

condiccedilatildeo natildeo perdura por muito tempo pois logo na infacircncia Agostinho entende que comeccedilamos a nos aproximar das coisas das pessoas e assim comeccedilamos a desejar Este desejo eacute expresso pela forma ainda primaacuteria de comunicaccedilatildeo atraveacutes de gestos sons e sinais que evoluem para o pronunciamento de palavras que expressam determinados sentidos Eacute dessa forma que Agostinho (Confissotildees I 6) descreve os momentos iniciais de sua proacutepria infacircncia

A pouco e pouco ia reconhecendo onde me encontrava Queria exprimir os meus desejos agraves pessoas que os deviam satisfazer e natildeo podia porque os desejos estavam dentro e elas fora sem poderem penetrar-me na alma com nenhum dos sentidos Estendia os braccedilos soltava vagidos fazia sinais semelhantes aos meus desejos os poucos que me era possiacutevel esboccedilar e que eu exprimia como podia Mas eram inexpressivos Como ningueacutem me obedecia ou porque natildeo entendiam ou porque receavam fazer-me mal indignava-me com essas pessoas grandes e insubmissas que sendo livres recusavam servir-me Vingava-me delas chorando Reconheci que assim eram as crianccedilas como depois pude observar

Destacamos nessa passagem o fato de que

Agostinho concede aos receacutem-nascidos uma faculdade do desejo como se desde entatildeo fossem capazes de distinguir aquilo que eles querem Contudo ele descreve tambeacutem a dependecircncia destes de outras pessoas para que pudessem conseguir alcanccedilar aquilo que desejam Os bebecircs apesar de jaacute conseguirem se movimentar para apontar em direccedilatildeo agraves coisas que os atraem ndash seja pela emissatildeo de sons ou gesticulaccedilotildees ndash ainda natildeo possuem uma estrutura bioloacutegica bem desenvolvida para sozinhos atingirem tais objetos Com o tempo eles natildeo

proacuteprios desejos usando as palavras que aprendemos []rdquo (MATTHEWS 2007 p 41 e 44)

O amor na busca pela verdade 127

apenas aprendem a ser autocircnomos como a equilibrar seus desejos e manipular a vontade

Contudo o amor natildeo eacute somente a chave para fugir do isolamento como tambeacutem para alcanccedilar uma determinada autonomia O termo ldquodeterminadardquo eacute utilizado para se referir a uma autonomia especiacutefica fruto do anseio do amante O livre-arbiacutetrio a noacutes concedido nos ilude e nos faz acreditar que podemos possuir uma total independecircncia diante do mundo Ao nos tornarmos responsaacuteveis por nossas escolhas e decisotildees tambeacutem nos tornamos responsaacuteveis pelas consequecircncias que elas acarretam Nesse raciociacutenio necessitamos distinguir o amor de vontade no pensamento agostiniano

Afirmamos mais cedo o ldquoamor como vontaderdquo Seraacute entatildeo que podemos pensar em outra forma de amor Natildeo foi bem assim que Agostinho avaliou a questatildeo Karl Jaspers (1962 p 95 traduccedilatildeo nossa) filoacutesofo alematildeo e estudioso da filosofia agostiniana escreveu

Na vida humana Agostinho natildeo encontra nada em que natildeo haacute amor Em tudo o que eacute o homem eacute fundamentalmente vontade e o cerne mais profundo da vontade eacute o amor Amar eacute um lutar por alguma coisa que eu natildeo tenho (appetitus) Como o peso move corpos o amor move almas Elas [as almas] natildeo satildeo outra coisa aleacutem de forccedilas da vontade [] Tudo o que o homem faz ateacute mesmo o mal eacute causado pelo amor [] E parar de amar natildeo eacute a soluccedilatildeo pois isto significa lsquoestar inerte morto abjeto miseraacutevelrsquo A saiacuteda natildeo eacute extinguir um amor perigoso mas purificaacute-lo [] lsquoAme o que eacute digno do amorrsquo42

42 ldquoIn human life Augustine finds nothing in which there is no love In everything that he is man is ultimately will and the innermost core of will is love Love is a striving for something I have not (appetitus) As weight moves bodies so love moves souls They are nothing other than forces of the will [hellip] Everything a man does even evil is caused by love [hellip] And to cease loving is no solution For that is to lsquobe inert dead contemptible

128 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quando amamos acreditamos sermos autocircnomos

por sermos capazes de amar ou melhor de termos liberdade para escolhermos o nosso objeto de amor Poreacutem tal desejo de posse nos torna dependentes daquilo que amamos Precisamente porque queremos estar proacuteximos de tais objetos sofremos com qualquer possibilidade de perda O tempo no mundo nos transforma em amantes ambiciosos posto que buscamos a todo momento novos objetos de amor natildeo apenas devido ao prazer que sentimos ao alcanccedilaacute-los como tambeacutem para suprirmos o vazio da perda gerado pelas coisas que foram tomadas de noacutes pelo proacuteprio tempo Entatildeo o amor natildeo apenas causa alegria mas tambeacutem pode causar tristeza infelicidade dependecircncia Para isso natildeo acontecer eacute preciso direcionar corretamente o amor A vontade eacute aquilo que estimula o movimento da alma Ao querer algo o indiviacuteduo se insere em um conflito entre obedecer ou natildeo agrave sua vontade Se obedececirc-la a alma poderaacute ordenar a accedilatildeo caso contraacuterio o indiviacuteduo permanece inerte parado No entanto a vontade eacute apenas propulsora e quando o indiviacuteduo se torna amante ao decidir agir ele deixa de querer e passa a ser controlado pelo puro desejo que o leva agravequilo que anseia Ao alcanccedilar aquilo que motivou sua accedilatildeo algo necessita mantecirc-lo estaacutevel proacuteximo ao objeto Esta eacute a funccedilatildeo do amor conferir estabilidade para que o sujeito possa enfim descansar naquilo que buscava deleitar-se

A relaccedilatildeo entre o amor e o ceticismo em Agostinho se expressa quando o autor afirma ser necessaacuterio investigar aquilo que eacute digno de ser amado Essa racionalizaccedilatildeo da busca faz com que tomemos cuidado para natildeo amar qualquer coisa que natildeo valha a pena Mas o que natildeo merece ser amado para Agostinho O filoacutesofo patriacutestico (Confissotildees IV 10 grifo nosso) nos concede uma pista para responder a esta questatildeo

wretchedrsquo The way out is not to extinguish a dangerous love but to purify it [hellip] lsquoLove what is worthy of loversquordquo (JASPERS 1962 p 95)

O amor na busca pela verdade 129

Que minha alma Vos louve por tudo isto oacute meu Deus Criador de todas as coisas Que natildeo se agarre a elas pelo visco do amor que entra pelos sentidos do corpo Tambeacutem as coisas caminham para natildeo existirem e dilaceram a alma com desejos pestilenciais porque ela quer existir e gosta de descansar no que ama Mas natildeo tem onde porque as coisas natildeo satildeo estaacuteveis fogem

Se as coisas satildeo instaacuteveis e portanto fogem de

noacutes natildeo porque natildeo querem ser amadas mas porque estatildeo sujeitas ao tempo entatildeo devemos direcionar nossa busca para aquilo que eacute estaacutevel No entanto o que eacute estaacutevel no mundo se ele estaacute tomado pelo tempo Surge aiacute a necessidade de se buscar algo que esteja fora do mundo a Sabedoria Desse modo a philosophia como sendo amor agrave sabedoria eacute para Agostinho uma forma de encontrar a verdade Entretanto nosso autor natildeo faz referecircncia a qualquer verdade proveniente de qualquer conhecimento ou conteuacutedo de caraacuteter reflexivo Para ele existe a verdadeira Sabedoria aquela de onde surgiu todas as outras coisas no mundo43 Dessa forma Agostinho natildeo eacute apenas um dogmaacutetico como acredita fielmente que a verdade eacute uma soacute manifesta pela Sabedoria Sua conversatildeo ao Cristianismo fez com que abandonasse o ceticismo pois mesmo este natildeo o aliviou de suas indagaccedilotildees A busca era contiacutenua como ele (Confissotildees X 40) mesmo revela

43 Plotino (2000 p 121 grifo nosso) pai do neoplatonismo comenta acerca dessa essecircncia originaacuteria o Bem (ou Uno) a partir do qual existem os outros bens Agostinho foi fortemente influenciado pelo pensamento neoplatocircnico nas leituras que realizou ao longo da vida e desse modo Plotino se torna um grande aliado na compreensatildeo de sua filosofia ldquoEacute pelo Uno que todos os seres satildeo seres tanto os seres que satildeo seres no sentido primeiro do termo quanto tudo o que se diz fazer parte dos seres de qualquer maneira que seja O que entatildeo poderia realmente ser senatildeo o Uno se eacute verdade que privados do Uno que eacute seu predicado tais seres deixam de secirc-lordquo

130 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Percorri o melhor possiacutevel com os sentidos o mundo exterior Observei em mim a vida do corpo e os proacuteprios sentidos Passei depois agraves profundezas da memoacuteria a essas amplidotildees sucessivas Observei-as estupefacto Mas sem Voacutes nada pude distinguir Contudo reconheci que Voacutes nada disto eacutereis

Eacutetienne Gilson (2006 p 17) comenta que a busca

de Agostinho se direciona a algo que ldquosatisfaz todo desejo e por consequecircncia confere a pazrdquo Natildeo muito diferente dos ceacuteticos o bispo de Hipona tambeacutem acreditava que o que o ser humano quer na verdade eacute ser feliz Da mesma maneira essa felicidade consistia na paz da alma (beatitude) em que finalmente possui todas as condiccedilotildees necessaacuterias para repousar sobre o que ama fruindo-o Existe um caminho que conduz a essa felicidade segundo Agostinho e neste sentido natildeo podemos fugir de sua teologia pois para ele a Sabedoria consiste em apenas uma coisa Deus Natildeo somente o conhecimento de Deus mas alcanccedilaacute-lo e estar proacuteximo dele Natildeo obstante o pensador nos lanccedila em mais um conflito como estar proacuteximo de Deus se ele estaacute aleacutem do tempo mundano e eacute exatamente por isso que ele deve ser buscado

Bem se os ceacuteticos natildeo acreditam que a verdade pode ser encontrada como por exemplo os acadecircmicos como estes poderatildeo se aproximar de Deus Este eacute o ponto eles natildeo podem Segundo Agostinho os ceacuteticos nunca seratildeo felizes pois sua proacutepria teoria os impedem de alcanccedilarem a beatitude Podemos afirmar que mesmo aqueles que natildeo satildeo acadecircmicos como argumentou Sexto Empiacuterico isto eacute aqueles que buscam continuamente a verdade (os ceacuteticos pirrocircnicos) natildeo satildeo capazes de enxergaacute-la visto que com a suspensatildeo do juiacutezo natildeo distinguem entre o que eacute verdadeiro e o que natildeo o eacute Mesmo se eles optarem por natildeo se manifestarem apenas diante das coisas natildeo-evidentes Deus permaneceria uma incoacutegnita pois frente aos seus

O amor na busca pela verdade 131

criteacuterios ceacuteticos ele eacute algo natildeo-evidente Todos estes indiviacuteduos que escolhem natildeo se empenhar em definir a verdade e buscaacute-la satildeo infelizes pois ldquose a sabedoria implica a beatitude e se a beatitude implica Deus o ceacutetico natildeo poderia possuir nem Deus nem a beatitude nem a sabedoriardquo (GILSON 2006 p 20)

Contudo a duacutevida ainda permanece como buscar a Deus Noacutes possuiacutemos alguma faculdade que nos permite estar em contato com o que natildeo conhecemos diretamente O caraacuteter neoplatocircnico da filosofia de Agostinho se revela quando este argumenta que nada existe sem Deus Portanto como entes somos partes de um Ser que na realidade eacute o todo Se de alguma forma participamos do Ser possuiacutemos entatildeo a capacidade para encontraacute-lo E eacute assim que deve ser compreendido o conceito agostiniano de homem interior pois o Ser estaacute em cada um de noacutes conferindo-nos existecircncia Buscar o Ser ou a Deus eacute realizar um movimento de retorno a si uma introspecccedilatildeo no proacuteprio eu que ao se reconhecer como ente eacute guiado pela proacutepria essecircncia que estaacute em seu interior O Ser nos conduz neste instante de encontro a ele que se revela como o Bem Supremo a verdadeira Sabedoria Deus eacute apreendido pelo pensamento pelo ato reflexivo e introspectivo de identificar-se como parte como ente por conseguinte como dependente em sua existecircncia de uma totalidade que estaacute aleacutem de si Aliaacutes eacute nisso que consiste a caridade agostiniana e portanto buscar verdadeiramente a Sabedoria

45 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Recordemos a pergunta levantada por Agostinho

em sua obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade44 Para o filoacutesofo a

44 A pergunta na realidade estaacute impliacutecita em todo o debate realizado na obra No entanto eacute interessante observar que na parte do texto em

132 Eacutetica e filosofia poliacutetica

felicidade depende da busca pela verdade e natildeo basta procuraacute-la apenas eacute preciso empenhar-se em encontraacute-la Para isso eacute necessaacuterio delimitar o que eacute a verdade afinal sabemos que ela existe e que pode ser encontrada Entatildeo para que direccedilatildeo deveremos caminhar nesta jornada O bispo de Hipona correspondendo agrave sua reflexatildeo de cunho teoloacutegico avalia ser Deus a verdadeira Sabedoria o que implica que sem Deus natildeo eacute possiacutevel sermos felizes Isso talvez soe pouco filosoacutefico para noacutes mas devemos atentar que Deus eacute por si soacute um grande problema para a filosofia Natildeo basta apenas assumir que devemos buscar a Deus mas entender de que se trata esse ldquoDeusrdquo na filosofia agostiniana

O autor entende a Deus como sendo aquilo de quem tudo procede Uma das passagens mais famosas de suas ldquoConfissotildeesrdquo se denomina ldquoQuem eacute Deusrdquo (Quid amatur cum Deus amatur) e nela Agostinho relata sua aacuterdua busca no interior da criaccedilatildeo para descobrir de onde vieram todas as coisas por quem tais seres foram criados Ao final a natureza proclama ldquorepara que a mateacuteria eacute menor na parte que no todordquo e entatildeo o autor (Confissotildees X 6) declara

Por isso te digo oacute minha alma que eacute superior ao corpo porque vivificas a mateacuteria do teu corpo dando-lhe vida o que nenhum corpo pode fazer a outro corpo Aleacutem disso teu Deus eacute tambeacutem para ti vida da tua vida

que Agostinho (Contra os Acadecircmicos I 25) expotildee a questatildeo que seraacute tratada ele inicia a conversa da seguinte forma ldquoE uma vez tendo-nos reunido por conselho meu num lugar que me pareceu oportuno para tal eu disse Por acaso duvidais que devemos saber o que eacute verdadeirordquo Em seguida o autor questiona ldquoSe pudeacutessemos ser felizes mesmo natildeo tendo compreendido o que eacute verdadeiro julgais ainda ser necessaacuteria a compreensatildeo do mesmo [] O que vos parece disse eu Julgais podermos ser felizes mesmo natildeo tendo encontrado a verdaderdquo

O amor na busca pela verdade 133

Temos duas informaccedilotildees acerca de Deus nestes

trechos ele eacute a mateacuteria do todo e por isso eacute o que confere vida agrave nossa vida e Deus eacute tambeacutem a substacircncia assim como as partes os entes Na ontologia agostiniana existe a substacircncia e o que natildeo eacute substacircncia ou seja o nada45 Sendo Deus a substacircncia originaacuteria todas as coisas e sobretudo noacutes mesmos revelamos cotidianamente a sua existecircncia Dessa forma natildeo eacute difiacutecil para Agostinho distinguir a verdadeira Sabedoria uma vez que ela estaacute presente em tudo

Por ser o todo tambeacutem natildeo eacute uma tarefa complicada descobrir onde buscaacute-la ou qual o caminho deve ser percorrido para encontraacute-la Como partes podemos afirmar que a Sabedoria estaacute em noacutes tambeacutem assim como ela se mostra em toda a natureza E como acessar essa Sabedoria que estaacute tatildeo disponiacutevel a noacutes De acordo com Agostinho esse eacute o empreendimento humano que perpassa o se sentir parte de uma parte (o mundo) e acreditar que esta parte eacute o todo ateacute descobrir que na realidade o todo eacute outra coisa inimaginaacutevel eterno e absolutamente infinito

Precisamos relembrar que antes de Agostinho aderir agrave feacute cristatilde ele seguia o movimento do ceticismo

45 O nada ou o vazio natildeo eacute Eacute neste argumento que se fundamenta a ideia de mal em Agostinho O mal em si natildeo existe porque se existisse seria substacircncia E assim sendo ou ele seria Deus ou teria sido criado por ele Agostinho recusa estas duas possibilidades Deus natildeo eacute o mal porque ele eacute o Sumo Bem e tampouco ele conteacutem o mal ou o criou pois todas as coisas criadas satildeo boas Tambeacutem natildeo existe um deus mal pois isto implicaria dizer que existem dois deuses e Agostinho em correspondecircncia agrave sua influecircncia neoplatocircnica defendia a ideia do Uno Deus eacute o Ser o Uno e nenhum outro Ser existe aleacutem dele E devido a isso eacute apenas dele que vieram todas as coisas Desse modo o mal natildeo existe ele eacute o nada O mal que encontramos no mundo eacute resultado de nossas accedilotildees derivadas de nossas escolhas as quais provecircm de nosso conflito entre as vontades No entanto natildeo eacute uma disputa entre vontade boa e maacute mas uma briga entre o querer e o natildeo-querer

134 Eacutetica e filosofia poliacutetica

acadecircmico sendo ele proacuteprio alvo de suas criacuteticas posteriores Contudo ao que parece o ceticismo acabou se tornando uma ponte para a sua conversatildeo ao cristianismo o qual permitiu-lhe encontrar e se ancorar naquilo que considerava ser por fim a verdadeira Sabedoria

REFEREcircNCIAS AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos A Ambroacutesio de Pina 21 ed Braganccedila Paulista Universitaacuteria Satildeo Francisco 2006 (Col Pensamento Humano)

______ Contra os acadecircmicos Trad Enio Paulo Giachini Petroacutepolis Vozes 2014

CESAREA Eusebius Preparation for the Gospel Trad E H Gifford Disponiacutevel em lthttpwwwtertullianorgfathersindexhtmPraeparatio_Evangelica_(The_Preparation_of_the_Gospel)gt Acesso em 26 jun 2016

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Metafiacutesicas Trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Folha de S Paulo 2015 (Col Folha Grandes Nomes do Pensamento v 5)

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes Pirrocircnicas Livro I Trad Danilo Marcondes Rev o que nos faz pensar n 12 set 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 27 jun 2016

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2006

O amor na busca pela verdade 135

JASPERS Karl Plato and Augustine Nova York Harcourt Brace amp Company 1962 (Col The Great Philosophers v 1)

MATTHEWS Gareth B Santo Agostinho a vida e as ideacuteias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007

PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012

PLOTINO Tratado das Eneacuteadas Trad Ameacuterico Sommerman Satildeo Paulo Polar Editorial 2000

POPKIN Richard A Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

136 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= V =

A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo

Anderson Lucas dos Santos Pereira

51 INTRODUCcedilAtildeO

O presente trabalho tem como intuito analisar a

questatildeo da verdade em Santo Agostinho Como eacute sabido esse ser mutante chamado Santo Agostinho teve uma fase ceacutetica que posteriormente seraacute por ele criticada em sua busca incessante pela verdade Todavia o aguilhatildeo ceacutetico acompanharaacute Santo Agostinho por toda sua vida mesmo convertido Tal trabalho tem a pretensatildeo de dar luz ao problema ceacutetico que haacute no presente autor percorrendo e averiguando por algumas de suas principais obras a questatildeo da Verdade analisando ateacute que medida o problema ceacutetico se daacute como resolvido

52 A REDENCcedilAtildeO E O AGUILHAtildeO CEacuteTICO EM SANTO AGOSTINHO

Confessar Eis o instante da ressurreiccedilatildeo O

inclinar-se a contemplar o caminho da redenccedilatildeo depois de uma estadia na corrupccedilatildeo em prol da transgressatildeo Render-se eacute sentir-se viacutevido suspender-se de todas as ldquonuvens de metalrdquo negar todo o mal e com isso elevar-se em destino a vereda pueril da emancipaccedilatildeo Quando Agostinho confessa concomitantemente liberta-se de alguns dos mais friacutevolos grilhotildees que enclausura seu espiacuterito longe do ser divino pois libertar-se se torna o

Graduando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute

138 Eacutetica e filosofia poliacutetica

caminho para a salvaccedilatildeo sossegar no divino se torna uma suacuteplica para a emancipaccedilatildeo de si Perante isso o viver ganha uma nova finalidade um dia natildeo eacute vivido apenas para esse dia a verdade evoca sua grandeza no proacuteprio caminho da redenccedilatildeo A verdade torna-se pretexto para o caminho da liberdade pois ser livre eacute praticar a verdade na factualidade e ser verdadeiro eacute ter como paradigma o caminho do Ser no qual enquanto estiver percorrendo timidamente contemplaraacute a autenticidade

Alguns perguntariam qual entatildeo eacute o caminho correto para a ressurreiccedilatildeo A liberdade com seu tom teacutetrico nos responderia natildeo haacute caminho pronto o trabalho do peregrino eacute aacuterduo ao mesmo tempo que teraacute de percorrer o caminho o teraacute tambeacutem para construiacute-lo pois inquieto eacute o coraccedilatildeo de um homem ateacute encontrar a verdade repousando nos braccedilos de Deus A finalidade teoloacutegica estaacute dada coube a Agostinho traccedilar o caminho ateacute a integridade Contudo ao confessar Agostinho natildeo tem o intuito apenas de expurgar suas laacutestimas anguacutestias que atordoam sua alma deixando-a inquieta mas sim tambeacutem mostrar a todos que lerem seu livro o Verdadeiro caminho para a redenccedilatildeo baseando-se em uma vida confessada ao lado de seu Pai

Mas a quem narro eu estes fatos Natildeo eacute a voacutes meu Deus Na vossa presenccedila dirijo-me ao gecircnero humano aquele a que eu pertenccedilo ainda que essas paacuteginas possam chegar apenas a uma minoria Entatildeo para que escrevo isto Para que eu e todos que lerem essas palavras pensemos de que abismo profundo se deve clamar por Voacutes (Conf 23 p 53-54)

Encontraraacute muitas pedras no caminho o saacutebio que

decidir percorrer esta trilha Agostinho virtuoso tu eacutes A ferro e fogo entre o erro e a voluacutepia tu vivestes livrou-se ainda em tempo do sensualismo do corruptiacutevel emancipou-se tambeacutem da duacutevida generalizada que antes

A busca da verdade em Santo Agostinho 139

fluiacutea em seu sangue rendeu-se ao maniqueiacutesmo em sua juventude mas logo conseguiu ver salvaccedilatildeo para o pereciacutevel confessou-se e teve a caridade de nos presentear com seu livro (Confissotildees) como uma forma de libertaccedilatildeo do ser para que outras pessoas sigam o caminho do pequeno cordeiro que levaraacute agrave verdade irrefutaacutevel Deus Quem percorrer essa vereda com acircnsia agrave libertaccedilatildeo de si primeiramente teraacute que morrer para assim alcanccedilar a liberdade pois o acircmago da existecircncia soacute eacute concebiacutevel quando deixamos tudo e aceitamos o que os olhos natildeo podem ver

Assim Agostinho invoca sua uacutenica verdade ao compasso do soliloacutequio contempla a luz da salvaccedilatildeo uma verdade irrevogaacutevel jaacute impressa em sua alma o Verbo transparece de uma forma inata Todos fomos feitos por Deus medite que O encontraraacute Mas a certeza do caminho natildeo possui clareza devemos primeiramente o louvar ou o invocar

Mas quem o invoca sem antes natildeo o conhecer Ou por ventura natildeo sois antes invocados para depois serdes conhecido Mas como evocaratildeo em que natildeo acreditaratildeo (Confissotildees p 27)

Entatildeo mostra-se penumbra em meio agrave busca da

salvaccedilatildeo A duacutevida natildeo estaacute cessada mesmo que o caminho fora jaacute projetado agrave luz Mesmo em meio ao horizonte em direccedilatildeo agrave luz do sol a penumbra criada pelas aacutervores rochas em meio agrave jornada obstruiraacute seu caminho Vemos entatildeo que a duacutevida natildeo estaacute introjetada no conhecimento de si para Deus mas sim adversamente na ldquoquestatildeo que Deus fez dele ndash a questatildeo dentro da questatildeordquo (WAZTEL 2015 p 97) Deus estaacute concebido mas a obscuridade rodeia sua legiacutetima face transcende os escombros limitados que datildeo forma agrave nossa razatildeo O corromper da carne natildeo concebe o todo da Eternidade mas mesmo assim

140 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eacute pela feacute que comeccedilamos a ser curados mas nossa salvaccedilatildeo seraacute perfeita quando este corpo corruptiacutevel for revestido da incorruptibilidade e quando este corpo mortal for revestido de imortalidade Essa eacute esperanccedila natildeo ainda realidade

Eis a anguacutestia percorrida pelas suas Verdades

indagando de uma forma sutil e inocente o natildeo comensuraacutevel com sua crenccedila pelo breve futuro

Traccedilar o caminho eis a consequecircncia de ser jogado ao mundo da imundiacutecie do pecado e da voluacutepia Agostinho com suas Confissotildees leva-nos a esta inexoraacutevel caminhada em direccedilatildeo ao futuro na qual com os passos vagarosos caminhamos para a salvaccedilatildeo tendo como pano de fundo a formaccedilatildeo moral do homem perante Deus O caminho explanado nas Confissotildees nos mostra que desde quando nascemos a partir de nossos primeiros segundos em plano terreno nascemos imperfeitos e seres pecadores Agostinho nos salienta

em que podia pecar neste tempo Em desejar ardentemente os peitos de minha matildee Se agora suspirasse com a mesma avidez natildeo pelos seios maternos mas pelo alimento que eacute proacuteprio de minha idade seria escarnecido e justamente censurado (Confissotildees p 33)

Vemos entatildeo que a noccedilatildeo de pecado se daacute

desde o alvorecer de nossa vida desde a amamentaccedilatildeo as laacutegrimas de uma crianccedila satildeo a vinganccedila pelo leite natildeo concebido na hora desejada Seraacute isso a reminiscecircncia de um dos primeiros pecados ldquoOu seria justo mesmo para aquela idade exigir com choros o que talvez o que seria concebidordquo (Confissotildees p 34) Eis a duacutevida novamente fomentando o ardor da alma em direccedilatildeo agrave clemecircncia divina Vemos a transgreccedilatildeo como uma caracteriacutestica jaacute impliacutecita no homem desde sua nascenccedila e que o caminho em prol da redenccedilatildeo torna-se aacuterduo em

A busca da verdade em Santo Agostinho 141

meio ao viacutecio do pecado pois tudo que vislumbramos e vivemos no cotidiano perverte-se em benefiacutecio agrave culpa nos desvirtua do caminho divino rumo a redenccedilatildeo

Agostinho nas Confissotildees nos relata os pecados que cometeu em sua adolescecircncia em benefiacutecio ao ldquocalorrdquo da transgressatildeo Quando ele se debruccedila em seu passado constata nele a beleza materialista que o rodeia vendo isso nas minuacutecias cotidianas como por exemplo nos prazeres sensuais da carne nos jogos de poderes no deleite sobre a inveja perante outros Com esses poucos exemplos vemos o quatildeo distante Agostinho estaacute do caminho postulado em direccedilatildeo agrave veracidade divina pois tais bens se tornam decompositores das virtudes negando ldquoTu Deus Tua Verdade Tua leirdquo (Salmos 40) ldquoeu escapuli de ti em minha adolescecircncia e me extraviei meu Deus ndash foi um grande desvio de tua constacircncia e me tornei para mim mesmo um lugar de desolaccedilatildeordquo O viacutecio leva o ser agrave desolaccedilatildeo no sentido de estar longe do caminho postergado pela luz divina a desolaccedilatildeo se daacute no desassossego da alma em natildeo conter Deus em seu coraccedilatildeo preferindo o tormento e a anguacutestia na desertidatildeo da alma

Quando ousamos corromper a ordem em prol do pecado estamos efetuando um modo de alienaccedilatildeo da transgressatildeo Contudo vemos que tal ldquofealdaderdquo perante os dogmas divinos natildeo satildeo uma negaccedilatildeo de si e de Deus (pois isso seria partir de um adendo maniqueiacutesta) mas sim a negaccedilatildeo de si e de Deus seria a proacutepria noccedilatildeo de suiciacutedio Com isso vemos que para Agostinho os prazeres materiais nada satildeo do que objetos obstinados para a perdiccedilatildeo e com isso para a decomposiccedilatildeo da alma pois eles natildeo deixam uma impressatildeo duradoura como uma Verdade Eterna por maior que for o prazer de tal ente Jaacute o prazer perante a divindade (Aacutegape) se daacute na infinidade da ideia pois como vemos a proacutepria noccedilatildeo de graccedila eacute infinita

142 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Mas diferentemente quando morremos para o

mundo pereciacutevel (em prol da redenccedilatildeo) repercutiremos os passos do Messias ldquoJesus de Nazareacuterdquo Tal morte para Santo Agostinho se daacute como uma representaccedilatildeo da ldquomorte realrdquo pois em meio ao padecimento Jesus se dava como um ser apaacutetico ao medo aceitando seu destino em prol do incorruptiacutevel Eis a figura da morte original Jesus desmaterializou-se com um intuito maior para que pudesse retornar a nossos coraccedilotildees e com isso nos propiciar uma morte particular e legiacutetima Negar o caminho que Jesus de Nazareacute percorreu eacute o mesmo que negar Deus e morrer para Ele A vida sem Deus se daacute na perdiccedilatildeo de ser levando-nos agraves piores dores sendo assim o ideal de vida eacute voltado agrave contemplaccedilatildeo divina concomitante a uma vida confessada Quando nos desvirtuamos do caminho da Verdade negamos tambeacutem o amor de Deus Fomos feitos para sermos estimados por Ele somos sua Suma importacircncia pois ldquoO que faraacutes tu Deus se eu perecer Eu sou teu vaso e se me quebro Eu sou tua aacutegua e se apodreccedilo Sou tua roupa e teu trabalho Sem mim perdes tu e teu sentidordquo (RILKE Rainer Novos poemas p 62) Somos feitos para almejar a Deus Ele eacute inato agrave alma humana nossa harmonia estaacute intriacutenseca ao Verbo ldquoTu nos comoves e nos comprazemos em glorificar a ti que nos fizestes teus ndash e assim o coraccedilatildeo dentro de noacutes eacute desassossegado ateacute sossegar em tirdquo

Com isso vemos que Deus estaacute em tudo e que noacutes devemos O almejar de corpo e alma Sem Deus a alma se daacute como um lugar confinado aacutevido pelos pecados carnais cabe ao Rei adentrar agrave alma e a reparar E se acaso a morada de meu ser for muito pequena entatildeo ldquodeixe que seja expandida por tirdquo Eis o caminho seguido por Jesus de Nazareacute no qual devemos nos aliar para com isso nos santificar

Como seria uma vida sem Deus onde os ornamentos do futuro enfeitam sua existecircncia com seus

A busca da verdade em Santo Agostinho 143

tons obscuros Como seria viver uma vida proacutediga percorrendo os caminhos do absurdo Agostinho retrata a partir de uma reflexatildeo da paraacutebola de Lucas 15 sobre o ser aduacuteltero do caminho de Deus seguindo a infidelidade morrendo para seu Pai Esta paraacutebola conta a histoacuteria de um pai e dois filhos na qual o filho mais novo um dia pediu parte de sua heranccedila ao pai O pai com sua condolecircncia daacute a seu filho tal parte de seus bens como resultado vecirc seu filho partir pelo mundo afora A vida proacutediga e desordenada do filho mais novo faz com que em poucos meses ele gaste todo seu dinheiro com momentos dissoluacuteveis tornando-se pobre Com sua vida em xeque vecirc-se obrigado a trabalhar em terras de um carrasco tornando-se seu escravo alimentando-se escondido do resto da comida dos porcos para natildeo morrer de fome Ficando evidente natildeo apenas sua miseacuteria material mas tambeacutem miseacuteria propriamente existencial de um coraccedilatildeo que natildeo possui Deus Com a consciecircncia pesada de ter transgredido voltou agraves terras de seu pai e abraccedilando-o e beijando-o implorou para que seu pai o deixasse trabalhar para ele como carteiro (oficio de seu pai) O filho mais velho chega em cena diante do que vecirc seu pai abraccedilando o filho proacutedigo e o presenteando com uma grande festa por sua volta irrita-se e rebela-se contra o pai pois ele nunca havia ganhado nada de seu pai mesmo natildeo o traindo e seu irmatildeo por ter traiacutedo havia ganho uma festa por sua volta O pai com toda sua serenidade entatildeo responde ao filho que todos seus bens pertencem tambeacutem a ele mas que era justo alegrar-se naquele dia pois seu irmatildeo estava morto e reviveu tinha se perdido mas achou-se

Em uma adaptaccedilatildeo da paraacutebola do filho proacutedigo Agostinho nos apresenta seu eu da juventude como um eu corrompedor dos valores que ele agora pregava Agostinho nos conta que em sua juventude com a companhia de seus amigos roubara a propriedade de outrem uma porccedilatildeo de frutas natildeo cometeu tal delito pela

144 Eacutetica e filosofia poliacutetica

fome que sentira mas apenas pela adrenalina da transgressatildeo das regras Tanto na paraacutebola do filho proacutedigo quanto na adaptaccedilatildeo confessional os elementos incisivos na proacutepria noccedilatildeo de pecado original Um deles eacute a pobreza motivacional perante o fato de roubar que apenas tinha como intuito ilusoacuterio a delimitaccedilatildeo das normas e ser concebido em um grupo de amigos e tambeacutem uma disposiccedilatildeo de substituir o consenso racional implantado por uma ausecircncia da razatildeo

Com isso a partir de uma analogia entre a paraacutebola biacuteblica e a confissatildeo de Santo Agostinho alguns nuances que se assemelham e se negam Vemos a partir de uma explanaccedilatildeo de James Watzel tais similaridades e dissonacircncias

Jaacute existem umas divergecircncias oacutebvias da paraacutebola de Lucas Agostinho natildeo estaacute desperdiccedilando uma heranccedila que lhe foi concedida voluntariamente estaacute desperdiccedilando um fruto que a lei o proiacutebe de colher E natildeo apenas ele ele natildeo ousaria infringir a lei caso estivesse sozinho e menos consciente de sua necessidade de ser aceito no grupo Agostinho tece em sua faacutebula do proacutedigo dois elementos que associa com o pecado original pobreza de motivo (natildeo existe uma boa razatildeo para enfrentar as leis de Deus e perder o Eacuteden) e uma disposiccedilatildeo para substituir o consenso por uma ausecircncia de razatildeo (ningueacutem perde o Eacuteden sozinho) Com resultado muda seu foco para a natureza proacutediga do pecado ndash uma forma de pobreza obstinada velado como um movimento para a auto expressatildeo licenciosa (WATZEL James Compreender Santo Agostinho p 76)

Vemos entatildeo um retrocesso ao mito adacircmico e

segundo Agostinho a primeira causa das transgressotildees futuras Deus dentre os sete dias natildeo criou o pecado o homem que se possibilitou a ele a partir de seu livre-arbiacutetrio Todos os pecados em si possuem consigo a caracteriacutestica do pecado primordial concebido na gecircnese

A busca da verdade em Santo Agostinho 145

da criaccedilatildeo a transgressatildeo a desordem o desvirtuamento eacute o fundamento do pecado em si O mal natildeo eacute nada mais que essa transgressatildeo de ordem uma negaccedilatildeo em prol da ilusatildeo da liberdade que se fundamentou na corrupccedilatildeo desvinculando-se do eterno Deste modo a infecccedilatildeo postulada pelo pecado original e toda sua culpabilidade condenando desde as crianccedilas no ventre de suas matildees ateacute as mentes mais perversas e contagiosas Eis o contaacutegio hereditaacuterio que perpassa por todas as culturas e tempos que afeta e alastra-se como uma praga por toda a humanidade

Tal pecado original se daacute como uma obra da liberdade humana sendo destituiacuteda da Natureza de Deus e concomitantemente concebida como uma negaccedilatildeo do Mesmo Tudo que natildeo se constitui a partir da benccedilatildeo divina rui em meio as trevas Adatildeo o terroso perde com isso Assim como o resto do mundo a proximidade com o Ser divino sendo retirado da gleba deteriorando-se em meio ao poacute A poeira caoacutetica eacute a heranccedila postergada pelos primeiros humanos que se espalha e perpetua transmitida a todo gecircnero humano pelo primeiro homem o ancestral iniciador da perdiccedilatildeo Vemos entatildeo a histoacuteria do universo segmentada em duas partes uma anterior ao pecado e uma poacutestuma a ele consistido na perdiccedilatildeo humana na desuniatildeo e no desassossego longe de Deus

Em Satildeo Paulo temos Adatildeo como ldquoa figura daquele que devia virrdquo e por mais que natildeo conceba uma visatildeo primordial do pecado Como um contaacutegio hereditaacuterio assim como em Santo Agostinho podemos jaacute salientar a evidecircncia de tal concepccedilatildeo ou seja do que posteriormente tornou-se a noccedilatildeo de pecado primordial

12O pecado entrou no mundo por um soacute homem Atraveacutes do pecado entrou a morte E a morte passou para todos os homens porque todos pecaram 13Na realidade antes de ser dada a Lei jaacute havia pecado no mundo Mas o pecado natildeo pode ser imputado quando

146 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo haacute lei 14No entanto a morte reinou desde Adatildeo ateacute Moiseacutes mesmo sobre os que natildeo pecaram como Adatildeo - o qual ndash era a figura provisoacuteria daquele que devia vir 15Mas isso natildeo quer dizer que o dom da graccedila de Deus seja comparaacutevel agrave falta de Adatildeo A transgressatildeo de um soacute levou a multidatildeo humana agrave morte mas foi de modo bem mais superior que a graccedila de Deus ou seja o dom gratuito concedido atraveacutes de um soacute homem Jesus Cristo se derramou em abundacircncia sobre todos Palavra do Senhor (Satildeo Paulo aos Romanos 512-15)

Com este fragmento da epiacutestola de Satildeo Paulo aos

romanos percebe-se que diferentemente de Santo Agostinho e o mal original Paulo salienta que ldquoAtraveacutes do pecado entrou a morte e a morte passou para todos os homens porque todos pecaramrdquo A morte neste sentido ganha um indicativo do conceito do mais puro mal tornando o mal algo concebido criado diferindo-se da posiccedilatildeo agostiniana do mal como o livre-arbiacutetrio escolhido pelo homem O pecado em Paulo natildeo foi inventado pelo homem eacute por conseguinte uma forccedila interior ao proacuteprio homem instituiacuteda por uma forccedila maior

Mas o que levou Adatildeo ou qualquer outro humano a cometer pecados negando o que haacute de mais Belo Justo e Bom Qual eacute a maior motivaccedilatildeo para ser um transgressor de acordo com Agostinho

Agrave preguiccedila parece apetecer apenas o descanso mas que repouso seguro haacute fora do senhor A luxuacuteria deseja apelidar-se saciedade e abundacircncia Voacutes poreacutem sois a plenitude e abundacircncia interminaacutevel da suavidade incorruptiacutevel A prodigalidade cobre-se com a sombra da liberalidade mas o mais magnacircnimo dispensador de bens sois Voacutes A avareza quer possuir muito e Voacutes possuis tudo a inveja litiga a partir da ldquoexcelecircnciardquo mas haveraacute algum Ser mais excelente que voacutes A ira procura a vinganccedila e quem se vinga mais justamente que voacutes (Confissotildees p 60)

A busca da verdade em Santo Agostinho 147

No entanto os bens corruptiacuteveis tecircm sua beleza que se resume na aptidatildeo pelo seu fim Independente do fim seja pela mera inclinaccedilatildeo a pecar ou pelas riquezas e soberba visceral o pecado procura a partir de sua beleza enganadora impulsionar o homem ao decliacutenio da alma com isso deleitando-se em meio agrave luxuacuteria o pecado mais avassalador e imundo Neste momento o homem agrada-se aos braccedilos de Asmodeus sucumbindo-se em meio ao caos levando o mesmo fim que Sodoma

Diante dessas constataccedilotildees surge uma outra questatildeo Porque a preferecircncia por esses prazeres corruptiacuteveis sendo que Deus posto a noacutes se daacute como um ser insaciaacutevel A resposta para isso encontra-se no conceito ldquodesejordquo (desidĕrĭvm) Etimologicamente veremos que tal conceito tem origem latina onde o radical ldquoderdquo indica um movimento de declive ou seja um movimento de cima para baixo Enquanto o prefixo do conceito (sidĕrĭvm) significa ldquoestrelardquo ldquoastrordquo ldquocorpo celesterdquo Com tal especificaccedilatildeo lembramos sobre a estrela caiacuteda dos ceacuteus (Luacutecifer a estrela da manhatilde) que a partir de seu desejo de se igualizar a Deus por seu orgulho foi exilado dos ceacuteus em declive ao inferno No paraiacuteso adacircmico tambeacutem o desejo foi o progenitor do pecado resultando na expulsatildeo do paraiacuteso A transgressatildeo nada mais eacute que o desejo pelo natildeo concebido pelo proibido

Vemos em Santo Agostinho que tal fonte de desejo por natildeo apenas conceber Deus como seu objeto mas variados entes o desejo se daacute como segundo Hannah Arendt expotildee

Santo Agostinho define o amor como uma forma de desejo que dentro da temporalidade se coloca como anseio de se apropriar deste algo bom seja por recuperaccedilatildeo do que jaacute se teve ou alcanccedilando o que ainda natildeo se tem Mas o problema eacute que este desejo de posse implica o medo medo de perder medo de natildeo alcanccedilar que remete de novo o homem agrave

148 Eacutetica e filosofia poliacutetica

instabilidade que por sua vez gera o movimento Santo Agostinho se volta para a questatildeo uacuteltima do amor como anseio de superaccedilatildeo do medo do isolamento e da instabilidade o que implica a superaccedilatildeo da proacutepria temporalidade A vida na temporalidade eacute um entre entre o natildeo mais e o ainda natildeo Desse modo Santo Agostinho afirma que o homem eacute aquilo que ama e para ele quem natildeo ama natildeo eacute nada E portanto adverte eacute necessaacuterio ter cuidado em relaccedilatildeo ao que se ama no sentido de estar atento ao que se ama O que o homem ama onde potildee a atenccedilatildeo ali estaacute o seu destino (ARENDT Hannah O conceito de amor em Santo Agostinho)

Na realidade para Santo Agostinho haacute uma

expansividade o desejo Ou seja a lsquoestrutura fundamental do entersquo (o desejo) eacute a forma de um apetite que instala o querente na solidatildeo expotildee-no a todas as anguacutestias e a todas as audaacutecias mas atraiccediloa uma dinacircmica irrecusaacutevel a vontade de ser feliz Felicidade alegria ou qualquer outro nome que se lhe chame o objeto do desejo revela o fim uacuteltimo do ser criado ser feliz O desejo eacute ontoloacutegico eacute um movimento um anseio em direccedilatildeo a algo bom o que jaacute implica a ideia da instabilidade do ser humano que eacute assim um ser em tracircnsito O homem eacute aquilo que se esforccedila por atingir Ficamos parecidos com o que amamos O amor eacute a mediaccedilatildeo entre o que ama e aquilo que ama o que ama nunca estaacute isolado daquilo que ama isso lhe pertence A realizaccedilatildeo eacute a beatitude que natildeo consiste em amar mas em fruir daquilo que eacute amado e desejado Todo o amor eacute tensatildeo dirigida para esta fruiccedilatildeo No entanto ningueacutem eacute feliz se natildeo fruir do que ama Fruir eacute estar perto do objeto desejado O que pode impedir o homem neste trajeto eacute a sua proacutepria vontade o livre-arbiacutetrio Cabe aos homens elegerem o objeto de seu amor aquilo que pensa que os faraacute felizes O mal natildeo estaacute no mundo ou nos objetos do mundo mas onde se coloca o coraccedilatildeo A morte como o fim da vida lanccedila a proacutepria vida para o retorno ao seu

A busca da verdade em Santo Agostinho 149

ser O amor tem a forccedila da morte porque o poder de subtrair o homem ao mundo reenvia agrave eleiccedilatildeo no seio do mundo Em outras palavras o sentimento de que natildeo haacute o que perder eacute o objetivo maior do amor lsquoTorna-te o que eacutesrsquo ndash isto eacute reconhece com gratidatildeo o que o fato de ter nascido te proporciona

Agostinho nas confissotildees lembra de um amigo falecido pela febre chorou lamuriou-se sobre a vida de seu amigo visando uma tristeza mais teatral quanto intensa Teatral natildeo no sentido de sentir uma tristeza falsa perante seu amigo mas sim uma tristeza anaacuteloga agraves trageacutedias gregas algo que encanta e ilude ao mesmo tempo Agostinho nas confissotildees nos diz que a morte de seu amigo se dava de um modo entristecedor para ele pois o amigo fazia parte dele quando ele via seu amigo via ao mesmo tempo o seu eu estampado na figura do amigo

Meu coraccedilatildeo estava inteiramente na sombra da tristeza e a morte era o que eu via em tudo Minha terra natal era uma puniccedilatildeo para mim a casa do meu pai um lugar estranho e desafortunado As coisas que eu partilhava com meu amigo voltavam e me torturavam cruelmente em sua ausecircncia Meus olhos se mantinham procurando por ele em todo lugar e ele havia partido

Em outra passagem das Confissotildees Agostinho

retrata o quanto seu eu transgressor contemplava e pranteava por figuras que natildeo eram seu Deus colocando seu amor nos seres corruptiacuteveis negando o eterno Por exemplo quando Agostinho defronta-se em sua juventude com a obra traacutegica de Virgiacutelio denominada Eneida sente-se frustrado por ter chorado naquela eacutepoca por uma ficccedilatildeo traacutegica na qual Dido mulher de Eneacuteas mata-se por seu amor pois ele queria fundar Troacuteia em Roma em vez de ficar ao lado de sua esposa Agostinho frustra-se pois estava chorando por um ser que aleacutem de

150 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ficcional tambeacutem se lamuriava por Eneacuteas natildeo ter auto-piedade de si negando a Deus em favor de uma guerra Quando Agostinho refere-se aos atos traacutegicos o mesmo diz que a mimeses da vida no teatro se daacute em um fundo falso no qual apenas o que conta eacute a aparecircncia da tristeza negando o real sofrer Agostinho nega a importacircncia da catarse aristoteacutelica dos sentimentos pois o homem que sofre por medo da perca de um ente querido ou de sua proacutepria vida estaacute com a alma perturbada (perturbatio animi) negando a felicidade virtuosa possui o medo do devir aos braccedilos de Deus Vemos com isso que o amor por mais que seja sincero pode desvirtuar-se ao caminho da morte perante Deus

Mas voltando agrave questatildeo ao cerne do problema proposto sobre o caminho da redenccedilatildeo Agostinho por mais que tenha se rendido agrave graccedila da salvaccedilatildeo obtecircm uma soluccedilatildeo para com sua duacutevida perante o conhecimento de Deus Em outras palavras sua experiecircncia fruitiva perante o Absoluto se daacute de forma clara e distinta Segundo o comentaacuterio de Jacques Maritain filoacutesofo da religiatildeo especialista em Santo Agostinho

A experiecircncia miacutestica consiste essencialmente numa ldquoexperiecircncia fruitiva do Absolutordquo Como experiecircncia fruitiva ela se exerce atraveacutes de um tipo de conhecimento de seu objeto e de adesatildeo afetivo-volitiva que transcendem o modo usual de operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer e visa em sua intencionalidade objetiva o Absoluto ultrapassando a contingecircncia e relatividade dos objetos que se aparecem agrave nossa experiecircncia ordinaacuteria (MARITAIN 1930)

Se observar possibilidade da ldquoaberturardquo perante o

divino de uma forma transcendental que supera a forma loacutegicaformal de conhecimento experienciativo delimitando o conhecimento perante a possibilidade

A busca da verdade em Santo Agostinho 151

intramundana concebida pelo sensualismo concomitante agrave experiecircncia casual Conceber o divino eacute ir aleacutem do conhecimento funcional e utilitaacuterio posto no cotidiano eacute transgredir a sensibilidade corriqueira diluir-se em um ecircxtase em sintonia com a Luz gravada na alma onde mesmo fechando os olhos poderei Te ver mesmo trancando os ouvidos poderei Te ouvir no qual mesmo sem minha proacutepria boca poderei Te invocar pois como suportar a sensibilidade se natildeo tornar ela uma definiccedilatildeo do ausente Uma suposiccedilatildeo do indiziacutevel Eis o sentimento extaacutetico lanccedilando-se aos braccedilos do inconcebiacutevel cegado pela luz que vela o impossiacutevel sendo apenas o que eacute todo o absurdo ldquoeis o misteacuterio da feacuterdquo (Oraccedilatildeo Eucariacutestica III) Sobre o misteacuterio cita Agostinho

[] A quem confessaria a minha ignoracircncia com mais proveito do que a ti que natildeo se desapraz com o forte zelo que me inflamas por tuas Escrituras Concede-me o que amo pois este amor eacute um dom teu Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios Eu suplico por Cristo em nome do Santo dos santos que ningueacutem perturbe minha investigaccedilatildeo Acreditei e por isso falo Minha esperanccedila a esperanccedila pela qual vivo eacute contemplar as deliacutecias do senhor [] (Confissotildees p 123)

Percebemos o caraacuteter afetivo-volitivo na suacuteplica

de Agostinho pela ldquocontemplaccedilatildeo das deliacutecias do senhorrdquo a intencionalidade objetiva relacionada com a superaccedilatildeo da contingecircncia e da relatividade em busca de um porto no qual se encerra a dissoluccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na luz absoluta Assim Santo Agostinho exerce a experiecircncia fruitiva na busca de sua experiecircncia miacutestica agrave guisa da determinaccedilatildeo do conhecimento do enigma ou

152 Eacutetica e filosofia poliacutetica

seja do proacuteprio misteacuterio que faz mister salientar que eacute o proacuteprio Absoluto

Nota-se que a ideia de transformaccedilatildeo da vida estaacute imbricada no contexto do fascinium daiacute podemos deliberar sobre o que Santo Agostinho busca atraveacutes da experiecircncia miacutestica ou seja confessando a sua ignoracircncia a Deus ele espera natildeo somente uma aproximaccedilatildeo com o absoluto mas tambeacutem uma quase-identidade com este revelando a ele a luz em consonacircncia com a experiecircncia miacutestica O sujeito Agostinho visa a comunhatildeo com o objeto intencionado ou seja com o misteacuterio do Absoluto O Livro XI das Confissotildees se encontra sob o influxo da miacutestica especulativa ou seja das fontes claacutessicas e neoplatocircnicas o eixo subjetivo em consonacircncia com a objetividade a harmonia sujeitoobjeto pela via do conhecimento embora este conhecimento esteja em grau iacutenfimo em relaccedilatildeo ao Sagrado que eacute incognosciacutevel

[] Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios [] (Confissotildees p 123)

Vemos com isso natildeo apenas uma harmonia com a teologia cristatilde sobre o misteacuterio da feacute mas tambeacutem uma posiccedilatildeo filosoacutefica denominada pirronismo um desassossego causado pelo misteacuterio ainda natildeo resolvido O problema epistemoloacutegico sobre o conhecimento ldquoperante aquele que Eacuterdquo natildeo se resolve apenas pelo consentimento da redenccedilatildeo pois assim como um ceacutetico pirrocircnico Agostinho nega o assentimento a preposiccedilotildees que podem ser duacutebias sobre o indiziacutevel pois nos falta evidecircncias sobre o Ser caindo sempre na vatilde aparecircncia

Mas quem realmente foi Pirro Como se dava a ldquometodologiardquo pirrocircnica para com a episteme E o mais

A busca da verdade em Santo Agostinho 153

importante como pode vincular tal noccedilatildeo pirrocircnica sobre o conhecimento com o misteacuterio divino

Pirro foi um filoacutesofo antigo nascido em Eacutelida entre 365 e 360 aC Foi um pensador muito influenciado pela escola socraacutetica na qual inclinou-se sobre e radicalizou a ignoracircncia saacutebia de Soacutecrates dando gecircnese a um importante ensinamento que se repercute ateacute os dias de hoje Falo da renuacutencia epistemoloacutegica sobre a Verdade uacuteltima sobre o fundamento (archeacute) da natureza (physis) que nega a essecircncia informando que a mesma ainda natildeo foi concebida denegando qualquer consentimento sobre a Verdade mas que ainda como um peregrino busca a mesma tendo sempre em vista o conceber de tal entidade assim como comenta Giovanni Reale

Enquanto o caminho da ontologia vai das aparecircncias ao ser (seja para os fiacutesicos seja para os metafiacutesicos) ao contraacuterio Pirro volta do ser agraves aparecircncias negando qualquer juiacutezo sobre o ser e reconhecendo consequumlentemente apenas o aparecer (REALE p 144)

A partir de tal perspectiva vemos a renuacutencia do

ser a abdicaccedilatildeo do inclinar-se a uma substacircncia que talvez natildeo possa estar contida no homem nem no mundo e que portanto devemos nos suspender perante tais juiacutezos epistemoloacutegicos sobre a existecircncia pois apenas assim que podemos alcanccedilar segundo Tiacutemon disciacutepulo imediato de Pirro ldquoa afasia e depois a ataraxiardquo (Aristoacutecles test 53)

A partir de tal epocheacute pirrocircnica natildeo podemos julgar ajuizar o mundo a partir de uma verdade fulcral pois nada por essecircncia eacute belo ou feio justo ou injusto bom ou mal assim como nos afirma Dioacutegenes Laeacutecio sobre Pirro ldquopois o que os homens fazem acontece por convenccedilatildeo e por haacutebito e nada eacute mais que aquilordquo (LAEacuteRCIO p 234) Com isso vemos que tais valores natildeo possuem uma estatura ontoloacutegica assim como

154 Eacutetica e filosofia poliacutetica

queriam os dogmaacuteticos mas apenas o puro fenocircmeno do mundo assim como nos aparece pois o valor da coisa-em-si eacute inconcebiacutevel fazendo-nos sempre nos suspender sobre tal Giovanni Reale nos mostra a incomensurabilidade do ser enquanto ser em tal fragmento a partir de um exemplo trivial ldquoIsso significa que em si o mel sendo como qualquer outra coisa indeterminado e inqualificaacutevel enquanto soacute o aparecer eacute qualificaacutevelrdquo (REALE p 148)

Mas contudo Pirro natildeo chegou a dissolver o mundo todo em uma simples aparecircncia pura e universal pois tal renuacutencia total seria o mesmo que cair em um dogmatismo negativo ou seja a uma absoluta certeza desviando-se da duacutevida hiperboacutelica Para a comprovaccedilatildeo de tal argumento segue-se uma passagem de Tiacutemon em uma conversa com um terceiro sobre como Pirro leva sua vida pacata sem grandes idealizaccedilotildees laborativas

Oacute Pirro esse meu coraccedilatildeo deseja aprender de ti como e que tu mesmo sendo homem tatildeo facilmente levas a vida tranquumlila tu que eacutes apenas guia para os homens semelhante a um Deus

Pirro com isso responde Dir-te-ei na verdade como me parece que seja tomando como reto cacircnon essa palavra de verdade uma natureza do divino e do bem viver eternamente do qual deriva para o homem a vida igualiacutessima

Como entender tal resposta de Pirro Segundo Giovanni Reale o Deus e o Bem pirrocircnico natildeo se daacute no mundano nem no transcendente mas sim satildeo apenas aspectos que se desvanecem e que com isso fogem da sensibilidade A afasia concomitante agrave apatia eacute tal ldquosupremaciardquo virtuosa ceacutetica que se sustenta na privaccedilatildeo de toda a faculdade de escolha quando natildeo haacute um sustento aonde possa apoiar-se Vemos com isso as

A busca da verdade em Santo Agostinho 155

escolhas se esvaiacuterem do terreno uma vez soacutelido para os filoacutesofos dogmaacuteticos eis o fundamento da virtude ceacutetica Tal virtude se daacute no movimento de negaccedilatildeo de qualquer juiacutezo cognitivo permanecendo sem qualquer inclinaccedilatildeo sendo indiferente a entidade julgada

eacute preciso natildeo ter opiniatildeo [] afirmando de cada coisa que eacute natildeo mais do que natildeo eacute ou que eacute e que natildeo eacute ou que ainda nem eacute ou nem natildeo eacute Os que se potildeem nesta posiccedilatildeo conseguiratildeo em primeiro lugar a afasia (ARISTOacuteCLES p 18)

Mas como devemos entender essa afasia ceacutetica

Talvez natildeo viver para este mundo Negar a exterioridade Natildeo mais poder de maneira nenhuma se expressar Viver em um mero solipsismo passivo de maneira nenhuma ajuizando o mundo Natildeo segundo Sexto Empiacuterico nas Hipotipoacuteses Pirrocircnicas comenta

Sobre a afasia digamos o seguinte [] Em sentido geneacuterico ldquofasirdquo eacute uma palavra que significa afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo como ldquoeacute diardquo ldquonatildeo eacute diardquo [] Portanto afasia equivale a renunciar agrave fasi no seu significado comum no qual dizemos que estatildeo contidas a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo de modo que afasia eacute uma afecccedilatildeo interna a noacutes na qual nem afirmamos nem negamos (ARISTOCLES)

Eis o caminho do ser virtuoso alcanccedilar neste

ecircxtase redutivo a ataraxia a ldquovida igualiacutessimardquo em suma redenccedilatildeo consigo mesmo Eis a forma pirrocircnica de viver

Enquanto os seus companheiros de viagem no navio apavoravam-se por causa da tempestade ele permanecia tranquumlilo e retomava acircnimo apontando um leitatildeozinho que continuava a comer e acrescentando que tal imperturbabilidade era exemplar para o comportamento do saacutebio (EMPIacuteRICO I 192)

156 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Vemos com isso o fim de todo pirrocircnico a total apatia do saacutebio as pupilas vazias de anima mas que ainda em seu interior cabendo consigo o sorriso de um homem sereno perante o mundo (um saacutebio)

Com isso chegando ao intuito final de tal trabalho nos perguntamos Qual eacute a consonacircncia existente entre um ceacutetico abnegador de qualquer verdade uacuteltima e um cordeiro da luz Qual eacute a semelhanccedila entre o meacutetodo ceacutetico e a redenccedilatildeo agostiniana pela feacute Como podemos conciliar a crenccedila divina em frente a ataraxia Veremos que o aguilhatildeo ceacutetico ainda estaacute incumbido na alma do Santo a anguacutestia ainda atordoa a alma o devir ainda eacute obscuro e Deus ainda natildeo foi concebido A verdade ainda estaacute velada obscurecida pela ignoracircncia do homem A necessidade de Agostinho de clamar a Deus convocaacute-lo em seus ritos justifica sua busca insaciada pela Verdade na qual cessaraacute apenas post mortem

Como salientado antes Agostinho ao contemplar-se com sua divindade adentra em um caminho em direccedilatildeo agrave travessia para a verdade da libertaccedilatildeo da emancipaccedilatildeo de sua alma Mas tal caminho por conter a ldquoqueda agrave carnerdquo torna-se nocivo pedregoso tornando a clareza da verdade uma incoacutegnita Salienta a biacuteblia sagrada ldquoAtenta para a obra de Deus Quem poderaacute endireitar o que ele fez tortordquo (Eclesiastes 7 13) A verdade pode estar dentro de nossos coraccedilotildees a partir da ressurreiccedilatildeo do Messias (o prometido) encarnado mas a figura real de Deus em sua mais esplecircndida Forma delimitada de qualquer compreensatildeo humana apenas pode ser concebida post mortem

Depois de tudo vemos que Santo Agostinho se associa agrave miacutestica revelando que a experiecircncia com o Sagrado implica a supressatildeo do tempo percebemos que no Cap XI sobre ldquoO tempo e eternidaderdquo Santo Agostinho exprime que os espiacuteritos buscam o Absoluto pois ainda se encontram presos nas correntes do tempo

A busca da verdade em Santo Agostinho 157

sendo eles cativos do passado e do futuro assim expotildee o Bispo de Hipona

Os que assim falam natildeo te compreendem ainda oacute sabedoria de Deus luz das inteligecircncias natildeo compreendem ainda como eacute criado o que eacute criado por ti e em ti Esforccedilam-se por saborear as coisas eternas mas seu espiacuterito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras

Santo Agostinho aclara que o momento presente

pode ser experienciado em Deus ou seja na eternidade irrompendo com as malhas do passado e do futuro e ponderando a partir do enlevo do que ldquosempre eacuterdquo ou seja da presenccedila constante do Absoluto sem os grilhotildees do passado e do futuro que encerram o devir o espaccedilo e o tempo e tudo mais que atrela o homem nas algemas do movimento Agostinho ressalta que o homem apenas carece deste porto do Absoluto pois natildeo o identifica como ldquonatildeo serrdquo

Desde que a alma plaine sobre os fatos passados e futuros o homem natildeo experiencia a ultravida na que eacute o feitio proacuteprio de Deus pois o tempo eacute a forma essencial da proacutepria alma esta se desdobra por seccedilotildees se possui por partes e por capiacutetulos havendo um desdobramento e esta abertura eacute o tempo portanto soacute eacute possiacutevel alcanccedilar a experiecircncia emblemaacutetica quando se abole o tempo

Com isso natildeo podemos dar evidecircncia a um certo pirronismo na filosofia miacutestica de Agostinho A procura pelo saciar nos braccedilos de Deus se daacute em uma longa caminhada pelos caminhos obscuros tendo uma impressatildeo apenas sobre a existecircncia de Deus mas natildeo uma clarividecircncia sobre a face divina A luz que cintila dos ceacuteus cega o homem que olha para o alto clamando nunca colocando sua verdadeira face agrave mostra sempre velado por sua camada de luminescecircncia divina Eis o

158 Eacutetica e filosofia poliacutetica

momento de suspender colocar entre parecircnteses sua real forma e viver a vida em meio a este enigma

Agostinho natildeo eacute um ceacutetico pirrocircnico mas perante a incognoscibilidade de Deus ele o coloca como um misteacuterio que nem a feacute ou os ritos poderatildeo explicar Mas Agostinho lamuria-se com isso Natildeo o bispo de Hipona nada mais faz do que esperar a sua hora chegar seguindo os ensinamentos de Soacutecrates e talvez de Pirro Agostinho aprendeu a morrer serenamente aguardando em paz sua hora chegar para conceber a Verdade assim como um ideal pirrocircnico Claramente Pirro e Agostinho traccedilaram caminhos distintos para se alavancar agrave ataraxia um por ter se rendido agrave duacutevida generalizada outro por ter se rendido ao Inconcebiacutevel mas nada impede de terem se encontrado em qualquer encruzilhada saudando o espiacuterito um do outro diluindo-se na plena ataraxia

REFEREcircNCIAS BIacuteBLIA Biacuteblia sagrada Traduccedilatildeo de Padre Antocircnio Pereira de Figueredo Rio de Janeiro Encyclopaedia Britannica 1980 Ediccedilatildeo Ecumecircnica

AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

______ Confissotildees 24 ed Trad de J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Petroacutepolis Vozes 2009 376p

BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009

WATZEL James Compreender Agostinho Trad Caesar Souza Petroacutepoles RJ Vozes 2011

REALE Giovanni Estoicismo Ceticismo e Ecletismo Satildeo Paulo SP Loyola 2011

A busca da verdade em Santo Agostinho 159

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010)

160 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VI =

O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE

Joseacute Luiz Giombelli Mariani 61 INTRODUCcedilAtildeO

O periacuteodo histoacuterico da Reforma Protestante eacute

considerado conturbado e de muitas revoluccedilotildees que culminou na mudanccedila do pensamento ocidental muitos pensadores surgiram nessa eacutepoca cada um defendendo sua feacute e questionando os adversaacuterios ldquoTanto os inovadores quanto os defensores da tradiccedilatildeo viram-se diante do mesmo problema Geralmente tentaram resolvecirc-lo atacando o criteacuterio do adversaacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29)

A problemaacutetica desse periacuteodo da reforma protestante circula em torno de um criteacuterio de verdade este problema foi central na disputa da Reforma acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso chamado de ldquoregra de feacuterdquo Assim escreve Popkin sobre as questotildees levantadas na Reforma que mais tarde se espalhou para a filosofia

O problema de se encontrar um criteacuterio de verdade primeiro levantado em disputas teoloacutegicas foi posteriormente levantado tambeacutem em relaccedilatildeo natural levando agrave crise pyrrhoniemne do iniacutecio do seacuteculo XVII (POPKIN 2000 p 25)

Acadecircmico de graduaccedilatildeo do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute UNIOESTE campus de Toledo Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID) e-mail joseluizmarianigmailcom

162 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Algumas questotildees levantadas nesse periacuteodo satildeo

as seguintes Qual o padratildeo atraveacutes do qual reconhecemos a feacute e como podemos determinar com certeza o que as Escrituras dizem Por meio de que criteacuterio pode dizer que as Escrituras consistem na Palavra de Deus Quais as evidecircncias desta Verdade Revelada Para responder tais questotildees existiram diversas correntes sendo as duas principais o catolicismo versus os seguidores de Lutero conhecidos como protestantes Existiram tambeacutem aqueles que tomaram a atitude ceacutetica como forma de resolver essa problemaacutetica ou seja em linhas gerais para estes natildeo podemos determinar o criteacuterio de verdade apresentado por ambos os lados da discussatildeo da feacute

O presente trabalha apresenta de forma geral os criteacuterios de verdade dos catoacutelicos e dos protestantes e o embate entre ambas e por fim apresenta a saiacuteda apresentada pelos ceacuteticos desse periacuteodo

62 O CETICISMO E O CRISTIANISMO

Primeiramente eacute necessaacuterio fazer uma breve

abordagem acerca desses dois conceitos a saber ceticismo e cristianismo A partir do Dicionaacuterio filosoacutefico de Andreacute Comte-Sponville podemos entender o ceticismo como

O contraacuterio do dogmatismo no sentido teacutecnico do termo Ser ceacutetico eacute pensar que todo pensamento eacute duvidoso - que natildeo temos acesso agrave certeza absoluta Note-se que o ceticismo a natildeo ser que se destrua deve ser incluiacutedo na duacutevida geral que ele instaura tudo eacute incerto inclusive que tudo seja incerto Agrave gloacuteria do pirronismo dizia Pascal Isso natildeo impede de pensar aliaacutes eacute o que obriga a pensar sempre Os ceacuteticos buscam a verdade como todo o filoacutesofo (eacute o que os distingue dos sofistas) mas nunca estatildeo certos de tecirc-la encontrado nem mesmo que seja possiacutevel encontraacute-la

O ceticismo na reforma protestante 163

(eacute o que os distingue dos dogmaacuteticos) Isso natildeo os aborrece Natildeo eacute a certeza que eles amam mas o pensamento e a verdade Por isso gostam do pensamento em ato e da verdade em potecircncia ndash o que eacute a proacutepria filosofia e eacute nisso que dizia Lagneau o ceticismo eacute o verdadeiro Decorre daiacute que ningueacutem eacute obrigado a ser ceacutetico nem autorizado a secirc-lo dogmaticamente (COMTE-SPONVILLE 2003 p 99)

O ceticismo eacute uma corrente filosoacutefica que teve

iniacutecio na antiguidade com Pirro de Eacutelis mais tarde Sexto Empiacuterico e outros tantos seguidores foram importantes na construccedilatildeo desta corrente filosoacutefica grega Portanto o ceticismo antigo foi uma grande corrente de pensamento e de grande importacircncia no pensamento grego muitas questotildees foram levantadas pelos ceacuteticos antigos Sabemos que estes escreveram inuacutemeros textos poreacutem poucos resistiram ao tempo se hoje conhecemos esta corrente do pensamento eacute graccedilas agraves obras tardias de Dioacutegenes Laeacutercio Ciacutecero e especialmente Sexto Empiacuterico

O Cristianismo tem sua base na vida e histoacuteria de Jesus Cristo que viveu em meio agrave cultura judaica Os cristatildeos possuem um livro considerado sagrado pelos seus seguidores que eacute a Biacuteblia tal conjunto de obras tecircm duas divisotildees o Antigo Testamento que satildeo livros que contam a histoacuteria antes da vinda de Jesus e o Novo Testamento que conteacutem os quatro evangelhos chamados de canocircnicos ou seja reconhecidos pela Igreja a saber Matheus Marcos Lucas e Joatildeo aleacutem de cartas e de livros que narram agrave vida das primeiras comunidades de feacute Segundo os Catoacutelicos este livro eacute a Palavra de Deus e eacute inspirado pelo Espiacuterito Santo

Desde a organizaccedilatildeo que ocorreu durante o primeiro seacuteculo da era cristatilde ateacute a Reforma este livro ficou no poder da Igreja por diversos motivos entre eles a falta de alfabetizaccedilatildeo a pobreza e a liacutengua em que eles estavam escritos o latim claacutessico

164 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os catoacutelicos tambeacutem satildeo norteados pela tradiccedilatildeo

da Igreja pelos documentos e pelos conciacutelios que durante toda a sua histoacuteria fizeram e fazem parte mostrando as diretrizes do caminho da Igreja no mundo No Catecismo da Igreja Catoacutelica um dos documentos mais importante da Igreja no que diz respeito a questotildees de feacute no artigo 2 chamado ldquoA transmissatildeo da Revelaccedilatildeo Divinardquo parte 1 nuacutemero 78 encontramos a seguinte explicaccedilatildeo sobre a transmissatildeo da feacute pela Tradiccedilatildeo

Essa transmissatildeo viva realizada no Espiacuterito Santo eacute chamada de Tradiccedilatildeo enquanto distinta da Sagrada Escritura embora intimamente ligada a ela Por meio da Tradiccedilatildeo ldquoa Igreja em sua doutrina vida e culto perpetua e transmite a todas as geraccedilotildees tudo o que ela eacute tudo o que crecircrdquo O ensinamento dos Santos Padres testemunha a presenccedila vivificante desta Tradiccedilatildeo cujas riquezas se transfundem na praxe e na vida da Igreja crente e orante (N 34)

Portanto segundo a Igreja ela possui em suas

matildeos a verdade da feacute iluminada pelo Espiacuterito Santo Eacute confiado aos sucessores dos Apoacutestolos o chamado ldquodepoacutesito da feacuterdquo o catecismo na parte trecircs deste mesmo artigo intitulado ldquoA interpretaccedilatildeo do depoacutesito da feacuterdquo escreve

O ldquoPatrimocircnio Sagradordquo da feacute (ldquodepositum fideirdquo) contido na Sagrada Tradiccedilatildeo e na Sagrada Escritura foi confiado pelos apoacutestolos agrave totalidade da Igreja Apegando-se firmemente ao mesmo o povo santo todo unido a seus Pastores perseveram continuamente na doutrina dos apoacutestolos e na comunhatildeo na fraccedilatildeo do patildeo e nas oraccedilotildees de sorte que na conservaccedilatildeo no exerciacutecio e na profissatildeo da feacute transmitida se crie uma singular unidade de espiacuterito entre os bispos e os fieacuteis (N 35)

O ceticismo na reforma protestante 165

A Igreja Catoacutelica durante seacuteculos foi detentora dessas ldquoverdades absolutasrdquo no que diz respeito agraves questotildees de feacute com a Reforma e com o passar dos anos principalmente nos uacuteltimos seacuteculos com a nossa sociedade globalizada a mesma passou por diversas reformulaccedilotildees ateacute chegarmos ao modelo que hoje vigora mesmo natildeo mudando a hierarquia da Igreja percebe-se que os leigos nos dias de hoje possuem formaccedilatildeo bastante avanccedilada natildeo sendo necessaacuteria total aceitaccedilatildeo daquilo que o clero diz mas haacute uma total compreensatildeo dos dogmas de feacute dos documentos e da Tradiccedilatildeo da Igreja

O texto em questatildeo trabalha com o periacuteodo histoacuterico determinado que eacute o da Reforma Protestante e iniacutecio da modernidade sendo assim nota-se que a Igreja naquela eacutepoca era detentora da ldquoverdaderdquo e que os cristatildeos necessariamente tinham que depositar sua total confianccedila sem ao menos entender e compreender aquilo que estavam ouvindo dos seus ldquopastoresrdquo natildeo havia compreensatildeo por parte dos leigos e sim aceitaccedilatildeo a feacute sem limites

Portanto aparentemente percebe-se aqui uma divergecircncia entre a feacute e o ceticismo Na introduccedilatildeo do artigo intitulado ldquoAlgumas outras palavras sobre ceticismo e cristianismordquo de autoria de Rodrigo Pinto de Brito da Universidade Federal do Sergipe nota-se alguns apontamentos que descrevem claramente esta distinccedilatildeo de conceitos

Nesses caraacutecteres multifacetados se embutem conceitos atribuiccedilotildees ou asserccedilotildees que fazem com que seus campos semacircnticos sejam aparentemente mutuamente excludentes e mesmo radicalmente opostos Por exemplo no caso de ceticismo a duacutevida e a descrenccedila propedecircutica ao ateiacutesmo no caso do cristianismo a feacute e o dogma propedecircuticos ao fanatismo (BRITO 2014)

166 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir desta breve anaacutelise do ceticismo e do

cristianismo compreende-se o motivo do ceticismo ser soacute resgatado no periacuteodo da reforma protestante no iniacutecio da era moderna Na Idade Meacutedia com o auge do catolicismo percebe-se que o proacuteprio ato de questionar os dogmas de feacute natildeo era tolerado quanto mais negar tais ldquoverdadesrdquo nesse sentido muitas pessoas foram agrave fogueira e tiveram condenaccedilotildees baacuterbaras

Alguns estudiosos se detecircm na demonstraccedilatildeo de quem natildeo haacute uma fronteira niacutetida entre ceticismo e cristianismo que essa fronteira eacute somente aparente O meu estudo nesse texto inicial natildeo tem como objetivo investigar tal questatildeo mas tem seu recorte estrito no periacuteodo compreendido como reforma protestante tambeacutem chamada ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo

63 REFORMA PROTESTANTE E O PROBLEMA DO CRITEacuteRIO

Este periacuteodo foi bastante intenso de debates e

discussotildees acerca do criteacuterio de verdade que haacute no catolicismo e depois nas Igrejas criadas a partir da Reforma Protestante tais discussotildees ficaram conhecidas como Reforma Intelectual momento em que antecedeu a modernidade e toda a discussatildeo da teoria do conhecimento e da forma como esse conhecimento acontece Na obra ldquoHistoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo de Richard Popkin no primeiro capiacutetulo intitulado ldquoA crise Intelectual na Reformardquo percebemos que o problema central nesse periacuteodo eacute o criteacuterio de verdade acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso tambeacutem conhecido como ldquoregra de feacuterdquo

Neste sentido Lutero foi o primeiro a criticar publicamente este criteacuterio de verdade da Igreja Catoacutelica principalmente a tradiccedilatildeo e o magisteacuterio do Papa A partir

O ceticismo na reforma protestante 167

disto Lutero desenvolve o seu criteacuterio Assim escreve Popkin

Lutero deu o passo criacutetico que foi negar a regra de feacute da Igreja apresentando um criteacuterio de conhecimento religioso radicalmente diferente Foi neste periacuteodo que ele deixou de ser apenas um reformador atacando os abusos e a corrupccedilatildeo de uma burocracia decadente para tornar-se o liacuteder de uma revolta intelectual que viria a abalar os proacuteprios fundamentos da civilizaccedilatildeo ocidental (POPKIN 2000 p 26)

Os grandes problemas vistos por Lutero na Igreja

Catoacutelica foram a autoridade papal e a Tradiccedilatildeo da Igreja jaacute apresentada no capiacutetulo anterior e que apoacutes esse periacuteodo foi reformulado pela Igreja atraveacutes de diversos documentos e conciacutelios poacutes reforma entre eles estaacute o Conciacutelio Vaticano II que acima de tudo afirmou o conteuacutedo de feacute ou seja os dogmas poreacutem modificou a forma desse conteuacutedo ser anunciado abrindo a Igreja para a evangelizaccedilatildeo fazendo com que todos os leigos conhecessem a Biacuteblia e fossem importantes no processo de evangelizaccedilatildeo e anuacutencio da Palavra de Deus modificando uma das criacuteticas de Lutero

Popkin escreve em seu livro sobre a negaccedilatildeo do Papa por parte de Lutero

Lutero chegou mesmo a negar completamente a autoridade do Papa e dos Conciacutelios mantendo que doutrinas condenadas pelos conciacutelios poderiam ser verdadeiras e que os conciacutelios podem errar jaacute que satildeo compostos apenas por homens (POPKIN 2000 p 26)

A consciecircncia de cada um dos escolhidos jaacute eacute

criteacuterio de verdade jaacute eacute regra de feacute atraveacutes de Iluminaccedilatildeo Divina este foi o criteacuterio de feacute que Lutero desenvolveu e defendeu Popkin escreve assim sobre este novo criteacuterio

168 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nesta declaraccedilatildeo de liberdade cristatilde Lutero estabeleceu seu novo criteacuterio de conhecimento religioso ou seja que aquilo que a consciecircncia eacute compelida a aceitar ao ler as Escrituras eacute verdadeiro (POPKIN 2000 p 27)

Diversas pessoas comeccedilaram a seguir Lutero

apoacutes ele traduzir o livro Sagrado para o alematildeo A resposta dos catoacutelicos a este novo criteacuterio de feacute foi de que nenhum criteacuterio de feacute pode ser compreendido como verdadeiro se este natildeo passar pelo coleacutegio cardinaliacutecio pelos conciacutelios e pela autoridade do Papa

Eis que surge entatildeo outra problemaacutetica desta vez bem mais filosoacutefica que teoloacutegica assim descrita por Popkin

Uma vez que um criteacuterio fundamental foi questionado como se podem decidir quais as possibilidades alternativas a serem aceitas Com base no que podemos defender ou refutar as pretensotildees de Lutero (POPKIN 2000 p 28)

Portanto determinar algum criteacuterio como

verdadeiro se as bases do criteacuterio anterior foram refutadas nesse sentido percebe-se um resgate do ceticismo antigo na religiatildeo e mais tarde este ceticismo resgatado nesse periacuteodo iraacute atingir as demais aacutereas do conhecimento Popkin assim comenta

A caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter consequecircncias extremamente amplas natildeo soacute na teologia mais em todos os domiacutenios intelectuais do ser humano (POPKIN 2000 p 29) O problema desse periacuteodo histoacuterico da Reforma

Protestante tambeacutem pode ser considerado como problema da evidecircncia e do criteacuterio assim Popkin demonstra a problemaacutetica ldquoPara ser capaz de reconhecer a verdadeira feacute era preciso um criteacuterio Mas

O ceticismo na reforma protestante 169

como se poderia reconhecer o verdadeiro criteacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29) Percebe-se que ambos os defensores da Tradiccedilatildeo e os inovadores tentaram resolver o problema da mesma forma atacando o adversaacuterio Os ataques mais comuns que aconteciam segundo Popkin eram

Lutero atacou a autoridade da Igreja mostrando suas inconsistecircncias Os catoacutelicos procuraram mostrar que a consciecircncia de cada um natildeo era confiaacutevel bem como a dificuldade de se discernir o verdadeiro sentido das Escrituras sem a orientaccedilatildeo da Igreja Ambos os lados advertiram sobre a cataacutestrofe ndash intelectual moral e religiosa ndash que ocorreria em consequecircncia de se adotar o criteacuterio do outro (POPKIN 2000 p 29)

Nesse periacuteodo alguns textos do Sexto Empiacuterico

foram trazidos agrave tona e acabaram corroborando na discussatildeo sobre o criteacuterio de verdade como natildeo havia mais criteacuterio aceito o problema ali instaurado era grave pois se perdeu a garantia objetiva restando somente a crenccedila em determinado criteacuterio e ldquoverdaderdquo Popkin reproduz o trecho de Sexto Empiacuterico

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilotildees enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes os forccedilamos a um regresso lsquoad infinitumrsquo (POPKIN 2000 p 28)

A partir do momento em que alguns fragmentos

de Sexto Empiacuterico e de alguns ceacuteticos foram retomados surgiram alguns pensadores que comeccedilaram a usar o

170 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo como postura para defender o catolicismo um desses foi Erasmo de Rotterdam conhecido por sua obra ldquoO elogio da Loucurardquo poreacutem foi na sua obra ldquoDe Libero Arbitriordquo que ele defende uma postura ceacutetica em diversos meios assim afirma Erasmo

os assuntos humanos satildeo tatildeo obscuros e diversos que nada se pode saber com clareza Esta foi a satilde conclusatildeo dos acadecircmicos [os ceacuteticos acadecircmicos] que foram os menos ariscos dentre os filoacutesofos (POPKIN 2000 p 30)

Esta postura ou atitude ceacutetica segundo Erasmo eacute

o que realmente importa e interessa para a salvaccedilatildeo de cada um aceitando os dogmas e as ldquoverdadesrdquo que a Igreja e aqueles que tecircm competecircncia para tal determinam como sendo correto e justo assim escreve Popkin sobre esta postura de Erasmo

Para Erasmo o importante eacute uma forma de piedade cristatilde simples baacutesica o espiacuterito do cristianismo O restante a superestrutura da crenccedila essencial eacute demasiado complexa para o homem julgaacute-la Portanto eacute mais faacutecil permanecer em uma atitude ceacutetica e aceitar a antiquiacutessima sabedoria da Igreja nestes assuntos do que tentar entender e julgar por si proacuteprio (POPKIN 2000 p 31)

Segundo Erasmo toda a estrutura escolaacutestica

instaurada na Igreja com grandes bibliotecas e grandes discussotildees teoloacutegicas entre diversas correntes com grandes teoacutelogos da Igreja eram inuacuteteis pois o que realmente importa eacute a atitude cristatilde de modo geral seguir e realizar os ensinamentos de Jesus Cristo ou seja ldquoTodo o mecanismo dessas mentes escolaacutesticas tinha perdido de vista o ponto essencial a simples atitude cristatilderdquo (POPKIN 2000 p 32) Popkin continua e comenta que o cristatildeo ldquotolordquo para Erasmo eacute mais saacutebio do que um teoacutelogo de Paris

O ceticismo na reforma protestante 171

O cristatildeo tolo estaria em melhor situaccedilatildeo do que o teoacutelogo pretensioso de Paris enredado em um labirinto criado por ele mesmo E assim se algueacutem permanecesse um cristatildeo tolo viveria uma autecircntica via cristatilde e poderia evitar todo o mundo da teologia aceitando sem tentar compreendecirc-las as posiccedilotildees religiosas promulgadas pela igreja (POPKIN 2000 p 32)

Esta teoria de que o cristatildeo tolo estaacute em uma

melhor condiccedilatildeo pois este viveria uma autecircntica vida de feacute cristatilde foi fortemente combatida por Lutero para ele a feacute natildeo deve simplesmente ser aceitaccedilatildeo mas fruto de sua proacutepria consciecircncia por isso ele defendia a universalizaccedilatildeo da Biacuteblia e que toda a consciecircncia tem a capacidade atraveacutes da Iluminaccedilatildeo do Espiacuterito Santo de acolher meditar e saborear a Palavra de Deus para Lutero ldquoEacute como se algueacutem carregasse detritos e excrementos em vasos de ouro e pratardquo (POPKIN 2000 p 32) E ainda Lutero afirma ldquoUm cristatildeo deve [] ter certeza do que afirma ou entatildeo natildeo eacute um cristatildeordquo (POPKIN 2000 p 32)

Portanto para Lutero estes conteuacutedos de feacute satildeo importantes na vida do homem e natildeo podem simplesmente serem aceitos mas devem ser certos e irrefutaacuteveis atraveacutes da experiecircncia de feacute e da certeza oriunda da consciecircncia de cada um Segundo Lutero devemos estar absolutamente certos de sua verdade assim sendo o cristianismo eacute a absoluta negaccedilatildeo do ceticismo

Para o fundador do luteranismo existe um conjunto de verdades de feacute que como o sol natildeo se escurecem apenas porque eu posso fechar os meus olhos e recusar-me a vecirc-lo A analogia mostra que haacute diversas verdades que iluminam poreacutem existem pessoas que querem fechar os olhos a estas verdades ou porque satildeo ceacuteticas ou porque insistem em acreditar na vulneraacutevel Tradiccedilatildeo da Igreja Catoacutelica e natildeo olham

172 Eacutetica e filosofia poliacutetica

para dentro de si em suas proacuteprias consciecircncias ainda para Lutero esta tentativa de Erasmo de uma atitude ceacutetica natildeo passa de um caminho arriscado e com inuacutemeras possibilidades de erro Popkin comenta a resposta de Lutero a Erasmo

E portanto Lutero respondeu a Erasmo que sua perspectiva ceacutetica na verdade natildeo levava agrave crenccedila em Deus mas era uma maneira de escarnecermos Dele Erasmo podia se quisesse aferrar-se a seu ceticismo ateacute ser chamado por Cristo Mas advertiu Lutero ldquoO Espiacuterito Santo natildeo eacute ceacuteticordquo e natildeo inscreveu em nossos coraccedilotildees opiniotildees incertas mas sim afirmaccedilotildees de maior firmezardquo (POPKIN 2000 p 33)

A disputa entre Lutero um reformista e Erasmo

um catoacutelico natildeo muito praticante estava envolta mais uma vez na questatildeo do criteacuterio de verdade onde o primeiro insistia na certeza de que cada um poderia ler as Escrituras como sendo criteacuterio e natildeo delegar isto a outros A verdade se impotildee a noacutes ldquoe o verdadeiro conhecimento religioso natildeo conteacutem contradiccedilotildeesrdquo (POPKIN 2000 p 34) O segundo tinha uma atitude cautelosa de aceitar as decisotildees da Igreja pois sabia ser incapaz de distinguir o verdadeiro do falso Percebe-se que ambos possuiacuteam como regra de feacute ou criteacuterio de verdade algo subjetivo sendo difiacutecil objetivar estes criteacuterios Portanto se tal criteacuterio natildeo pode ser objetivado eles natildeo podem ser considerados criteacuterios de verdade

Outro grande expoente nesse periacuteodo histoacuterico foi Joatildeo Calvino disciacutepulo de Lutero liacuteder dos calvinistas uma corrente dos seguidores de Lutero que tem como regra de feacute a Biacuteblia livro sagrado aleacutem disso a iluminaccedilatildeo Divina Popkin comenta sobre Calvino

Inicialmente Calvino argumentou que a Igreja natildeo pode ser a regra das Escrituras uma vez que a autoridade da Igreja depende ela proacutepria de alguns versiacuteculos das

O ceticismo na reforma protestante 173

Escrituras Portanto as Escrituras satildeo a fonte baacutesica das verdades da religiatildeo (POPKIN 2000 p 35)

Uma grande questatildeo que surgiu a partir da teoria

de Calvino eacute o que nos garante que as Escrituras satildeo Palavra de Deus e como interpretaacute-las de maneira correta Assim nos explica Popkin sobre a teoria de Calvino

Esta persuasatildeo interior natildeo soacute nos assegura que as Escrituras contecircm a Palavra de Deus mas nos compele a ler as Escrituras atentamente para compreender o seu sentido e acreditar nelas (POPKIN 2000 p 35)

Os seguidores de Calvino se intitularam como os

eleitos pessoas escolhidas iluminadas por Deus e atraveacutes desta persuasatildeo interior elas interpretam as Escrituras e satildeo como pastores para aqueles que os seguem (ovelhas) Esta iluminaccedilatildeo dos eleitos acontece atraveacutes do Espiacuterito Santo Popkin escreve sobre a Iluminaccedilatildeo Divina

Haacute portanto uma dupla iluminaccedilatildeo para os eleitos dando-lhes primeiro a regra de feacute as Escrituras e em seguida lugar agrave regra das Escrituras ou seja os meios para discernir sua verdade e crer em sua mensagem Esta dupla iluminaccedilatildeo da regra da feacute e sua aplicaccedilatildeo satildeo capazes de nos dar certeza total (POPKIN 2000 p 35)

Portanto para os primeiros calvinistas a regra de

feacute era a persuasatildeo interior a questatildeo levantada eacute como podemos decidir se esta persuasatildeo eacute autecircntica e natildeo apenas uma certeza subjetiva que pode facilmente ser ilusoacuteria A partir dessa questatildeo percebemos que temos um problema um ciacuterculo de problemas infinitos assim escreve Popkin

174 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o criteacuterio do conhecimento religioso eacute a persuasatildeo interior a garantia da autenticidade da persuasatildeo interior eacute sua origem divina e temos a garantia dela pela persuasatildeo interior (POPKIN 2000 p 37)

Ou seja natildeo podemos considerar a persuasatildeo

interior como regra de feacute ou criteacuterio de verdade pois tambeacutem eacute subjetiva e nunca objetiva

Outro expoente que defendeu uma atitude ceacutetica no que diz respeito agrave feacute foi Sebastiatildeo Castellio de Basileacuteia protestante e que foi o uacutenico a defender Servetus Servetus foi condenado agrave morte como herege por Calvino e seus seguidores Servetus era convencido da persuasatildeo interior de que natildeo haacute base nas escrituras para a doutrina da santiacutessima Trindade convencido portanto de que esta doutrina era falsa

Popkin explica sobre a metodologia usada por Castellio ldquoAtitude moderada e ceacutetica onde ningueacutem pode estar tatildeo certo da verdade em questotildees religiosas de modo que se justifique queimar algueacutem por issordquo (POPKIN 2000 p 38) Ele escreveu uma obra mas natildeo publicou onde respondeu aos calvinistas intitulada ldquoDe Arte Dubitandirdquo uma abordagem cientiacutefica liberal e cautelosa para os problemas intelectuais em contraste com o dogmatismo de seus opositores calvinistas

Podemos entatildeo dizer que dentre estes expoentes ceacuteticos Erasmo eacute bem mais ceacutetico que Castellio pois este se questiona Como duvidar do que eacute certo como Deus sua Bondade Mas como acreditar no que eacute duvidoso como o argumento teleoloacutegico das Escrituras

O ceticismo parcial levantado por Castellio representa outra faceta do problema do conhecimento levantado pelo renascimento se eacute necessaacuterio encontrar uma regra de feacute um criteacuterio para se distinguir a feacute verdadeira da falsa como conseguirmos isto Ele abandona uma busca da certeza na feacute por uma busca razoaacutevel influenciando as formas mais liberais do protestantismo

O ceticismo na reforma protestante 175

64 RELACcedilAtildeO DO CETICISMO COM O FIDEIacuteSMO POSSIacuteVEL LEITURA DO CRITEacuteRIO DE VERDADE

Ambos catoacutelicos e protestantes natildeo possuem a

regra de feacute ou o criteacuterio de verdade pois para algo ser criteacuterio de verdade precisa ser objetivado e aquilo que concerne agrave feacute eacute subjetivo e pessoal natildeo pode ser uma verdade epistemoloacutegica Neste ponto faz-se necessaacuterio abordar mais profundamente dois conceitos o ceticismo e o fideiacutesmo para chegarmos a uma possiacutevel leitura deste criteacuterio de verdade na religiatildeo

Para tanto precisamos compreender o papel do ceacutetico nas tradiccedilotildees antigas sendo elas pirrocircnica e acadecircmica Popkin demostra o papel do ceacutetico quanto agraves crenccedilas

O ceacutetico seja na tradiccedilatildeo pirrocircnica seja na acadecircmica desenvolvia argumentos para mostrar ou sugerir que as evidecircncias razotildees ou provas utilizadas como fundamentos de nossos vaacuterios tipos de crenccedilas natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterios (POPKIN 2000 p 23)

Em momento algum eacute determinado que o ceacutetico e

o crente satildeo classificaccedilotildees opostas e excludentes uma da outra pelo contraacuterio o ceacutetico tem como papel desenvolver argumentos que demonstrem que os vaacuterios tipos de crenccedilas tambeacutem satildeo faliacuteveis e natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterias no ponto de vista objetivo pois natildeo haacute verdades absolutas e natildeo haacute criteacuterios universais e objetivos Em outras palavras o ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias de uma crenccedila mas segundo Popkin ldquoo ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo (POPKIN 2000 p 24)

Portanto o ceacutetico pode ser fideiacutesta sem problema algum pois uma coisa eacute duvidar questionar evidecircncias racionais objetivas e criteacuterios de verdade que tendem a ser universais e absolutos e outra coisa eacute ser crente de

176 Eacutetica e filosofia poliacutetica

alguma crenccedila sendo ela religiosa ou natildeo pois o crer estaacute no campo subjetivo e natildeo objetivo

A partir desta leitura de que o crente e o ceacutetico neste sentido podem andar juntos comeccedila-se a compreender Erasmo Castellio e ateacute mesmo Montaigne o uacuteltimo foi o expoente principal que trouxe agrave tona o ceticismo antigo para a realidade da reforma intelectual e levou tais duacutevidas para as demais aacutereas do conhecimento

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Portanto esta postura ceacutetica de Montaigne tem

suas bases nesse periacuteodo histoacuterico em que ele estaacute vivenciando com a reforma protestante as questotildees acerca do problema do criteacuterio e o iniacutecio do renascimento eacute sem duacutevida um momento muito frutuoso onde inuacutemeras questotildees satildeo levantadas e ocorre de fato uma revoluccedilatildeo no pensamento

Percebe-se no presente trabalho atraveacutes desta leitura histoacuterica e dos problemas levantados por diversos autores como se tentou objetivar algo que eacute subjetivo como se tentou criar criteacuterios de verdade acerca da feacute fazendo com que a verdade se restringisse a sua ldquoverdade religiosardquo o que clareou todo este discurso usado foi o ceticismo que alguns autores resgataram dos antigos

De modo simples esse eacute o iniacutecio da minha pesquisa acerca desse periacuteodo e de questotildees que cercaram este momento importante na transformaccedilatildeo cultural histoacuterica e intelectual do ocidente

REFEREcircNCIAS COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo Eduardo Brandatildeo ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

O ceticismo na reforma protestante 177

JOAtildeO PAULO PP II Catecismo da Igreja Catoacutelica 11 de outubro de 1992 Disponiacutevel emhttpwwwvaticanvaarchivecathechism_poindex_newprima-pagina-cic_pohtml POPKIN Richard H Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza [1923] Traduzido por Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

178 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VII =

VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMOS

ENSAIOS DE MONTAIGNE

Andre Scoralick Eacute bastante banal dizer que a mateacuteria dos Ensaios1

pertence ao campo da moral Basta percorrer os tiacutetulos dos capiacutetulos para encontrar paixotildees viacutecios virtudes questotildees referentes agrave accedilatildeo e ao agente enfim toda uma miriacuteade de problemas referentes agrave moralidade Menos banal no entanto eacute indicar o sentido da reflexatildeo moral que Montaigne conduz em seus Ensaios Natildeo eacute evidente por exemplo que as questotildees eacuteticas natildeo sejam meros objetos de reflexatildeo de uma especulaccedilatildeo desinteressada de um tratamento puramente teoacuterico natildeo eacute evidente que elas possam ter uma finalidade eminentemente praacutetica E no entanto eacute o que o proacuteprio Montaigne sugere em uma seacuterie de passagens do seu livro dentre as quais se encontra aquela do ensaio Da educaccedilatildeo das crianccedilas em que ele aponta as liccedilotildees (morais sobretudo) que o menino deve seguir

Doutorado em Filosofia (2013) pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP instituiccedilatildeo na qual adquiriu o tiacutetulo de Mestre em Filosofia (2008) Bacharel em Filosofia (2002) 1 Utilizaremos aqui a ediccedilatildeo Villey-Saulnier (Les Essais Ed P Villey reeditada por V L Saulnier Paris PUF 1999) que traduzimos livremente no corpo do texto acrescentando o texto francecircs nas notas de rodapeacute (indicando em algarismos romanos o livro e em araacutebicos o capiacutetulo dos Ensaios) Nas citaccedilotildees do corpo do texto indicaremos a paacutegina da traduccedilatildeo para o portuguecircs feita por Rosemary Costek (Satildeo Paulo Martins Fontes 2001) cujas soluccedilotildees por vezes adotamos Nas citaccedilotildees em francecircs a paginaccedilatildeo eacute a da ediccedilatildeo Villey-Saulnier

180 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Eis aqui minhas liccedilotildees Aproveitou-as melhor quem as executa do que quem as sabe A Deus natildeo agrada diz algueacutem em Platatildeo que filosofar seja aprender muitas coisas e tratar das artes () Ele [o aluno] natildeo tanto diraacute sua liccedilatildeo como a executaraacute (I 26 pps 250-251 grifos nossos)2

Da mesma forma natildeo eacute nada evidente a

consequecircncia desta maneira de ver as coisas a saber que os Ensaios tenham uma dimensatildeo normativa para aleacutem da dimensatildeo descritiva que a Nota ao Leitor e o ensaio Do arrependimento parecem indicar ldquosou eu mesmo a mateacuteria do meu livrordquo (I Nota ao leitor p 03) ldquoos outros formam o homem eu o relatordquo (III 2 p 27)3 Segundo esta maneira de ver as coisas (a nossa maneira) tudo se passa como se Montaigne em seus Ensaios natildeo se limitasse ao autorretrato nem fizesse apenas como um dia quis Hugo Friedrich4 uma ldquociecircncia moralrdquo espeacutecie de precursora da antropologia e da psicologia modernas Tudo se passa como se nesta obra algo de normativo se apresentasse No presente texto procuraremos abordar esta questatildeo a saber em que medida eacute possiacutevel encontrar dispersos pelos Ensaios (e sobretudo nos uacuteltimos) os elementos de uma moral praacutetica com propoacutesito normativo Trata-se de resgatar para aleacutem da criacutetica montaigniana da perfeita indiferenccedila do saacutebio estoacuteico (paradigma eacutetico que herdado do periacuteodo heleniacutestico ainda orientava as ideias morais do renascimento tardio) a defesa igualmente empreendida pelo ensaiacutesta de um outro modelo moral a

2 ldquoVoicy mes leccedilons Celuy-lagrave y a mieux proffiteacute qui les fait que qui les sccedilait () Jagrave agrave Dieu ne plaise dit quelquun en Platon que philosopher ce soit apprendre plusieurs choses et traicter les arts (hellip) Il ne dira pas tant sa leccedilon comme il la ferardquo (I 26 pps 167-168) 3 ldquoje suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo (I Note au lecteur p 03) ldquoles autres forment lhomme je le reciterdquo (III 2 p 804) 4 Friedrich Hugo Montaigne (trad Robert Rovini) Paris Gallimard

1992 p 13

Viver como Soacutecrates 181

conduta ordenada ideal moral ao alcance do homem comum mediacuteocre Para iniciar a busca desta moral praacutetica tomaremos como fio condutor a leitura de algumas passagens de um ensaio em particular o deacutecimo segundo do terceiro livro intitulado Da fisionomia acrescentando quando necessaacuterio a anaacutelise de trechos de outros capiacutetulos dos Ensaios

Em Da fisionomia Montaigne opotildee duas formas de conduta aquela segundo a ciecircncia e a conduta conforme agrave natureza No horizonte desta empresa estaacute nada mais nada menos do que a vida boa possiacutevel a saber a tranquilidade da alma erguida ndash muitos ensaios o testemunham ndash como referecircncia do pensamento moral do ensaiacutesta Em Da fisionomia Montaigne insiste em afirmar que o uacutenico caminho para a serenidade eacute a conduta conforme a natureza e que aquela segundo a ciecircncia leva ao oposto do que ela promete agrave perturbaccedilatildeo Percorramos entatildeo a criacutetica de Montaigne agrave conduta segundo a ciecircncia para finalmente chegarmos ao percurso proposto pelo autor Teremos de nos perguntar entatildeo o que eacute esta lsquonaturezarsquo que o ensaiacutesta reivindica e qual eacute exatamente o seu caminho

Dissemos que no horizonte desta empresa encontra-se a vida boa possiacutevel isto eacute a tranquilidade da alma De que maneira as diversas tradiccedilotildees do pensamento ocidental ateacute o seacuteculo XVI pretenderam atingi-la Ora a partir de diferentes estrateacutegias de conhecimento e controle das afecccedilotildees da alma quer dizer de moderaccedilatildeo ou contenccedilatildeo das paixotildees (estados de perturbaccedilatildeo da alma que se manifestam na busca das coisas costumeiramente consideradas bens ndash cupidez ambiccedilatildeo voluacutepia ndash ou na aversatildeo pelas coisas consideradas males ndash medo tristeza) Dentre essas diferentes estrateacutegias uma se destaca aos olhos de Montaigne que a toma como a estrateacutegia por excelecircncia da ldquociecircnciardquo isto eacute das doutrinas dogmaacuteticas legadas pelos filoacutesofos do passado dentre as quais se destaca o

182 Eacutetica e filosofia poliacutetica

estoicismo recuperado pelos neo-estoicos em voga na Franccedila do seacuteculo XVI (Justus Lipsius e Guillaume Du Vair sobretudo) Qual seria essa estrateacutegia A meditatio mortis dos estoicismos meacutedio e imperial sobretudo de Ciacutecero e Secircneca

Segundo os estoicos a causa da perturbaccedilatildeo da alma eacute um erro de juiacutezo considerar como bens coisas que em si mesmas satildeo indiferentes5 (a riqueza a honra a sauacutede etc) Ao julgaacute-las como bens (e seus opostos como males) o indiviacuteduo as toma como fins uacuteltimos (teacuteloi) de suas accedilotildees e passa a aspiraacute-las e a direcionar seus esforccedilos para alcanccedilaacute-las e mantecirc-las Daiacute seu sofrimento quando natildeo as alcanccedila ou as perde (quando natildeo estava previsto pela Providecircncia Divina que as atingisse ou as mantivesse) A uacutenica saiacuteda para este esquema perverso das paixotildees eacute a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem6 isto eacute a compreensatildeo de que o uacutenico e verdadeiro Bem (uacutenico fim que deve ser aspirado e buscado) eacute a Harmonia Universal que depende da realizaccedilatildeo da nossa natureza individual (isto eacute do cumprimento do nosso destino7 pessoal) Conformar a proacutepria vontade aos comandos da Razatildeo ou desiacutegnios da Natureza isto eacute agrave Vontade de Deus aceitar tudo o que ocorre consigo (ou mais do que isso desejaacute-lo buscaacute-lo) eis a fonte da tranquilidade da alma

Ocorre que o indiviacuteduo de sua perspectiva finita natildeo conhece os planos de Deus Ele natildeo sabe se estaacute nos desiacutegnios do Cosmos que vaacute se casar que siga uma carreira poliacutetica que tenha ou natildeo filhos Como entatildeo deve agir O que deve escolher buscar Ora dizem os estoicos ele deve prosseguir escolhendo o que sua educaccedilatildeo o ensinou a buscar (o que eacute conveniente o que os deveres recomendam a sauacutede a honra o

5 Para a doutrina da indiferenccedila dos bens e dos males segundo a opiniatildeo comum cf Secircneca Cartas a Luciacutelio 92 e 118 6 Idem cartas 16 e 41 7 Idem carta 96

Viver como Soacutecrates 183

conhecimento etc) mas sem buscar essas coisas como se fossem bens isto eacute sem tomaacute-las como os fins uacuteltimos de suas accedilotildees Ele deve consideraacute-las apenas como preferiacuteveis isto eacute fins necessaacuterios para que continue a agir mas que natildeo devem ser seus fins uacuteltimos (teacuteloi) e sim apenas fins intermediaacuterios (skoacutepoi) Em cada uma de suas escolhas seu fim uacuteltimo (o verdadeiro objeto de suas aspiraccedilotildees) deve ser aquilo que a Razatildeo e a Natureza (a Vontade de Deus) determinam que ocorra (o Bem) Assim se ele natildeo alcanccedilar o que buscava (o fim intermediaacuterio) natildeo se decepcionaraacute pois natildeo era isso o que ele efetivamente buscava e sim o que Deus queria para ele (o que de qualquer forma realizou-se) Da mesma forma se perder algo que havia alcanccedilado este homem natildeo sofre pois qualquer coisa que advenha ele sabe que eacute conforme agrave Razatildeo ou a Vontade de Deus sabe que tudo colabora para seu bem individual (a realizaccedilatildeo de sua natureza particular) e para o Bem Universal uacutenico fim que ele aspira Este homem que os estoicos chamam de saacutebio permanece tranquilo num estado de perfeita indiferenccedila8 diante de qualquer coisa que lhe aconteccedila Mas como ele adquiriu a ciecircncia do Bem Ora ingressando no caminho da filosofia isto eacute do exerciacutecio da dialeacutetica ndash a praacutetica repetida da distinccedilatildeo dos bens e dos males De tanto repetir este exerciacutecio e julgar o que eacute correto fazer em cada caso o aspirante agrave sabedoria deve dar uma espeacutecie de ldquosalto intelectualrdquo no qual subitamente eacute levado agrave apreensatildeo do Bem

Ao longo da histoacuteria do estoicismo no entanto outros ldquomeacutetodosrdquo com vistas ao desapego em relaccedilatildeo aos bens segundo a opiniatildeo foram desenvolvidos Eacute o caso da meditaccedilatildeo da vaidade e da contingecircncia9 dessas

8 Cf Secircneca De constantia sapientis 10 4 9 Falamos a propoacutesito de laquo contingecircncia raquo porque a Providecircncia Divina pode ser representada do ponto de vista do agente como a Fortuna jaacute que ele perceberia apenas uma forccedila determinando o resultado de

184 Eacutetica e filosofia poliacutetica

coisas laquomeacutetodoraquo desenvolvido pelos estoicismos meacutedio e imperial Esta meditaccedilatildeo ndash espeacutecie de projeccedilatildeo permanente da possibilidade de perdecirc-las a todo momento ndash deve (ao menos eacute o que se espera) ter como efeito um certo desprendimento em relaccedilatildeo aos laquofalsos bensraquo numa palavra a indiferenccedila ou impassibilidade

Se pudeacutessemos ateacute o fundo da alma nos penetrar desta verdade e representar para noacutes mesmos que todos os males que acontecem com os outros todos os dias e em nuacutemero tatildeo grande tem o caminho livre para chegar a noacutes estariacuteamos armados antes de sermos atacados10

Todavia haacute uma estrateacutegia pretensamente ainda

mais eficaz que conduziria ainda mais rapidamente a tal resultado Na medida em que nas representaccedilotildees da opiniatildeo comum a morte aparece como o pior dos males (ou a vida como o maior dos bens) bastaria que a meditaccedilatildeo se aplicasse a este objeto para que como por um efeito de cascata todo o resto se tornasse indiferente Assim a meditatio mortis adquire uma centralidade dentre as estrateacutegias que buscam a impassibilidade ela seraacute a estrateacutegia por excelecircncia do estoicismo imperial (ao menos o de Secircneca) com vistas agrave tranquilidade da alma Trata-se de meditar constantemente sobre a vaidade o aspecto efecircmero e a contingecircncia da vida de projetar a todo momento e para o proacuteximo instante a proacutepria morte

suas accedilotildees cujas causas lhe escapam De seu ponto de vista limitado ele natildeo sabe se esta forccedila eacute o acaso ou a Vontade de Deus 10 ldquoHoc si quis in medullas demiserit et omnia aliena mala quorum ingenscotidie copia est sic aspexerit tamquam liberum illis et ad se iter sit multo ante se armabit quam petatur Seroanimus ad periculorum patientiam post pericula instruiturrdquo (Secircneca De tranquilitate animi 11

8)

Viver como Soacutecrates 185

Vivemos mal quando natildeo sabemos morrer bem [hellip] aquele que sabe que no momento mesmo em que foi concebido sua sentenccedila foi proclamada saberaacute viver segundo a lei da natureza e encontraraacute assim a mesma forccedila de alma para opocircr aos eventos nenhum dos quais jamais lhe seraacute imprevisto11

Ora Montaigne natildeo poderia deixar de zombar

deste lsquoprojetorsquo elaborado pelos estoicos isto eacute de sua concepccedilatildeo de tranquilidade como impassibilidade (apathia) e do caminho proposto para alcanccedilaacute-la (a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem) Isto porque diz o ensaiacutesta nem um nem outro (nem a ciecircncia nem a impassibilidade) estatildeo ao alcance dos homens12 em sua maioria ordinaacuterios comuns mediacuteocres (intelectualmente e afetivamente fracos dotados de uma fraacutegil capacidade de julgar e de uma vontade fraca) Em numerosas passagens Montaigne aponta a fragilidade constitutiva do juiacutezo dos homens (sequer eacute necessaacuterio ir agrave Apologia de Raimond Sebond para mostraacute-lo)

11 ldquoMale uiuet quisquis nesciet bene mori () qui sciet hoc sibi cum conciperetur statim condictum uiuet ad formulam et simul illud quoque eodem animi robore praestabit ne quid ex iis quae eueniunt subitum sitrdquo (Idem 11 4-6) Cf tambeacutem Cartas a Luciacutelio 91 e 101 12 Montaigne tensiona explicitamente o paradigma proposto pelos estoacuteicos (o saacutebio) e certa concepccedilatildeo do homem Ele acusa a inutilidade do modelo agrave luz da impossibilidade da maioria dos homens realizarem-no (eacute um cume sobre o qual ldquonenhum ser humano pode se sentarrdquo) Outro termo ao qual ele recorre eacute o ldquonoacutesrdquo em que ele proacuteprio se inclui e que designa a coletividade humana (ldquoessas regras que excedem nossos costumes e nossa forccedilardquo) Entendemos que estas noccedilotildees natildeo implicam nenhuma referecircncia a uma natureza humana ou a uma universalidade Quando Montaigne fala dos lsquohomensrsquo ou deste lsquonoacutesrsquo (e que frequentemente aparece como lsquonoacutes homens fracosrsquo) pensamos tratar-se de uma noccedilatildeo obtida por experiecircncia que permanece portanto como generalidade frouxa aberta a exceccedilotildees natildeo sendo uma universalidade formulada teoricamente Da mesma forma entendemos que Montaigne se refere agraves inclinaccedilotildees humanas como fenocircmenos observaacuteveis sem poder dizer se eles exprimem uma lsquonaturezarsquo oculta

186 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quem se lembra de tantas e tantas vezes ter se descontentado de seu proacuteprio juiacutezo natildeo eacute um tolo por jamais desconfiar dele Quando me vejo convencido de uma opiniatildeo falsa pela razatildeo de outrem natildeo tanto aprendo o que ele me disse de novo e esta ignoracircncia particular (seria um ganho pequeno) como em geral aprendo minha debilidade e a traiccedilatildeo de meu entendimento (III 13 p 436)13

Para Montaigne o lsquosalto intelectualrsquo de apreensatildeo

do Bem imaginado pelos estoicos eacute irrealizaacutevel O mesmo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave perfeita indiferenccedila do saacutebio Ela supotildee um poder de neutralizaccedilatildeo ou de atenuaccedilatildeo dos estados afetivos (movimentos da alma) que natildeo estaacute ao alcance da maioria dos homens ldquonatildeo sigamos esses exemplos natildeo os alcanccedilariacuteamosrdquo (III 10 347)14 Uma vez que o indiviacuteduo tenha sido tocado pelos objetos que nele despertam paixotildees nem seu juiacutezo nem sua vontade seratildeo capazes de refreaacute-lo15 - o proacuteprio

13 ldquoQui se souvient de sestre tant et tant de fois mesconteacute de son propre jugement est-il pas un sot de nen entrer pour jamais en deffiance Quand je me trouve convaincu par la raison dautruy dune opinion fauce je napprens pas tant ce quil ma dict de nouveau et cette ignorance particuliere (ce seroit peu dacquest) comme en general japprens ma debiliteacute et la trahison de mon entendementrdquo (III 13 1074) 14 ldquoNataquons pas ces exemples nous ny arriverions pointrdquo (III 10 1015) 15 Nem o juiacutezo nem a forccedila da vontade Mais do que apenas aos estoicos Montaigne portanto opotildee-se agraves duas tradiccedilotildees que desde os gregos debatiam acerca dos meios de fazer frente agraves paixotildees os intelectualistas que fundam a virtude no conhecimento do bem (o jovem Platatildeo os estoicos) e os adeptos da enkrateia isto eacute da forccedila de caraacuteter conquistada pelo exerciacutecio (Xenofonte os ciacutenicos) O Platatildeo dos diaacutelogos de maturidade (a partir da Repuacuteblica) e Aristoacuteteles

entenderatildeo que ambos o conhecimento do bem e a forccedila de caraacuteter satildeo necessaacuterios agrave virtude No opuacutesculo De constantia sapientis Secircneca daacute o nome de patientia agrave forccedila de caraacuteter diante das paixotildees e de constantia agrave ausecircncia de perturbaccedilatildeo fundada no juiacutezo reto

entendendo que a segunda virtude eacute superior agrave primeira

Viver como Soacutecrates 187

Montaigne se apresenta como exemplo de fraqueza da vontade

aqueles que devem cuidar de mim poderiam com facilidade subtrair de minha vista o que pensam ser-me nocivo pois em tais coisas jamais desejo nem tenho o que dizer sobre o que eu natildeo vejo mas daquelas que se me apresentam eles perdem seu tempo em pregar-me a abstinecircncia (III 13 p 478)16

Entre o homem comum e o paradigma do saacutebio

proposto pelos estoicos haacute uma distacircncia intransponiacutevel - o que faz deste uacuteltimo aos olhos de Montaigne um modelo inuacutetil

de que servem esses cumes elevados da filosofia sobre os quais nenhum ser humano pode se sentar e essas regras que excedem os nossos costumes e a nossa forccedila (III 9 p 307)17

Num contexto semelhante Montaigne vai ainda

mais longe na criacutetica acusando de ambiccedilatildeo os porta-vozes desta moral

Odeio esta sapiecircncia desumana que quer nos tornar indiferentes e inimigos da cultura do corpo Considero tomar a contragosto as voluacutepias naturais uma injusticcedila semelhante a gostar delas demais [] Haacute indiviacuteduos que com uma estupidez selvagem como diz Aristoacuteteles satildeo-lhes indiferentes [aos prazeres do corpo] Conheccedilo alguns que o satildeo por ambiccedilatildeo []

16 ldquoceux qui doivent avoir soing de moy pourroyent agrave bon marcheacute me desrober ce quils pensent mestre nuisible car en telles choses je ne desire jamais ny ne trouve agrave dire ce que je ne vois pas mais aussi de celles qui se presentent ils perdent leur temps de men prescher labstinencerdquo (III 13 1101) 17 ldquoA quoy faire ces poinctes esleveacutees de la philosophie sur lesquelles aucun estre humain ne se peut rassoir et ces regles qui excedent nostre usage et nostre forcerdquo (III 9 989)

188 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo (III 13 p 485-487 grifos nossos)18

Aqui Montaigne remete a uma longa tradiccedilatildeo cujos rastros se encontram na poesia grega (de Homero agraves trageacutedias) em Horaacutecio e em certos autores cristatildeos O ponto em comum entre essas diferentes fontes eacute a liccedilatildeo moral derivada da ecircnfase nos limites humanos particularmente contrastados pelos poetas gregos e autores cristatildeos19 com a perfeiccedilatildeo e a potecircncia divinas para marcar aquilo que o homem natildeo pode ambicionar Montaigne se insere nesta longa tradiccedilatildeo quando acusa na moral praacutetica dos estoicos algo como a aspiraccedilatildeo a uma condiccedilatildeo divina visto que a ciecircncia e a impassibilidade seriam atributos apenas de Deus

eles querem se colocar fora de si mesmos e escapar do homem Eacute loucura em vez de se transformarem em anjos transformam-se em bestas em vez de se elevarem precipitam-se (III 13 p 500)20

Montaigne adverte os que propotildeem esta moral

das consequecircncias nefastas de sua hyacutebris Natildeo se trata apenas de uma vatilde pretensatildeo de uma busca inuacutetil mas de um projeto nocivo Isto porque contrariamente ao que ela promete esta moral soacute produz a perturbaccedilatildeo a infelicidade Neste ponto a criacutetica endereccedila-se diretamente agrave meditatio mortis A meditaccedilatildeo permanente

18 [Je] hay cette inhumaine sapience qui nous veut rendre desdaigneux et ennemis de la culture du corps Jestime pareille injustice prendre agrave contre coeur les voluptez naturelles que de les prendre trop agrave coeur (hellip) Il en est qui dune farouche stupiditeacute comme dict Aristote en sont desgoutez Jen cognoy qui par ambition le font (hellip) Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps (III 13 1106-1107) 19 Cf tambeacutem Plutarco LE de Delfos in Dialogues Pythiques Paris Flammarion 2006 pps 112-115 (392a-393c) 20 ldquoIls veulent se mettre hors deux et eschapper agrave lhomme Cest folie au lieu de se transformer en anges ils se transforment en bestes au lieu de se hausser ils sabattentrdquo (III 13 p 1115)

Viver como Soacutecrates 189

da proacutepria morte projeccedilatildeo constante de um acontecimento fatal para o instante seguinte natildeo poderia ter outro efeito que pocircr o indiviacuteduo num estado de permanente terror A indignaccedilatildeo montaigniana com semelhante ldquomeacutetodordquo vai ao limite do escaacuternio

eacute certo que para a maior parte [dos homens] a preparaccedilatildeo para a morte provocou mais tormento do que o fez seu sofrimento [hellip] Natildeo somente o golpe mas o vento e o peido nos atingem (III 12 p 399-400)21

A meditatio acrescenta ao sofrimento sensiacutevel

real inevitaacutevel (a dor a morte) ou simplesmente possiacutevel (a pobreza a desonra) o medo ndash sofrimento criado pela imaginaccedilatildeo Ela antecipa prolonga no tempo e aprofunda (pois eacute recomendada a projeccedilatildeo dos mais terriacuteveis males uma vez que se trata de preparar-se para sua eventualidade) um sofrimento que soacute afetaria o sujeito no futuro e de modo mais leve ou mais breve no momento em que se apresentasse aos seus sentidos

Lanccedilai-vos agrave experiecircncia dos males que vos podem ocorrer sobretudo dos mais extremos testai-vos aiacute dizem eles ganhai seguranccedila [hellip] eacute preciso que nosso espiacuterito os estenda e alongue e que antecipadamente os incorpore em si e se entretenha com eles como se natildeo pesassem razoavelmente para os nossos sentidos [hellip] [ora] eacute febre submeter-se desde agora ao chicote porque pode ocorrer da fortuna vos fazer sofrer isso um dia (Ibidem)22

21 ldquoIl est certain quagrave la plus part la preparation agrave la mort a donneacute plus de tourment que na faict la souffrance (hellip) Non seulement le coup mais le vent et le pet nous frapperdquo (III 12 1050-1051) 22 ldquoJettez vous en lexperience des maux qui vous peuvent arriver nommeacutement des plus extremes esprouvez vous lagrave disent-ils asseurez vous lagrave (hellip) il faut que nostre esprit les estende et alonge et quavant la main il les incorpore en soy et sen entretienne comme sils ne poisoient pas raisonnablement agrave nos sens (hellip) [Or] cest fieacutevre aller

190 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Imaginaccedilatildeo e sentidos estes satildeo os dois poacutelos

que se opotildeem na criacutetica de Montaigne agrave meditatio mortis ou mais amplamente agrave laquociecircnciaraquo Que sejamos afetados por alguns infortuacutenios atraveacutes dos sentidos eacute algo incontornaacutevel Eacute possiacutevel evitar no entanto o trabalho nocivo da imaginaccedilatildeo que produz a perturbaccedilatildeo

Por aiacute jaacute se antevecirc o caminho que Montaigne vai contrapor agrave via da ciecircncia no que diz respeito ao enfrentamento dos infortuacutenios a via dos sentidos isto eacute da restriccedilatildeo do trabalho da imaginaccedilatildeo Trata-se do caminho percorrido espontaneamente pelo homem simples natildeo cultivado que evita pensar nos infortuacutenios antes que ocorram sofrendo-os apenas quando se apresentam aos seus sentidos ldquoO [homem] comum natildeo tem necessidade nem de remeacutedio nem de consolo a natildeo ser no momento do golpe e natildeo o considera senatildeo tanto quanto o senterdquo (III 12 p 403)23 Este homem natildeo entristece o presente por causa de uma eventual ou necessaacuteria infelicidade futura natildeo prolonga no tempo nem aumenta a gravidade dos sofrimentos por meio de projeccedilotildees imaginaacuterias Ao contraacuterio ele fixa sua consciecircncia no presente e na fruiccedilatildeo dos prazeres e pequenas felicidades do instante afastando as representaccedilotildees que provocam medo e tristeza

[] jamais vi camponecircs vizinho meu pocircr-se a cogitar sobre a continecircncia e a seguranccedila com que passaria por esta hora derradeira A natureza o ensina a soacute pensar na morte quando estiver morrendo (III 12 402)24

des agrave cette heure vous faire donner le fouet par ce quil peut advenir que fortune vous le fera souffrir un jourrdquo (idem) 23 laquoLe commun na besoing ny de remede ny de consolation quau coup et nen considere quautant justement quil en sentraquo (III 12 1052) 24 laquoJe ne vy jamais paysan de mes voisins entrer en cogitation de quelle contenance et asseurance il passeroit cette heure derniere

Viver como Soacutecrates 191

Ao deixar ao maacuteximo os infortuacutenios para os

sentidos utilizando ao miacutenimo a faculdade de representaccedilatildeo este homem eacute ateacute mesmo mais capaz de captaacute-los na sua dimensatildeo real que escapa ao homem de ldquociecircnciardquo que lhes acrescenta representaccedilotildees imaginaacuterias laquocomo os perfumistas [fazem] com o oacuteleo eles [os homens de laquociecircnciaraquo] a sofisticaram [a natureza] com tantas argumentaccedilotildees e discursos trazidos de fora [hellip]raquo (III 12 p 399)25 Enquanto o homem de ciecircncia se afasta da verdade das coisas o homem comum dela se aproxima

Eis portanto o modelo de conduta a seguir algueacutem como o camponecircs o ruacutestico Em duas palavras o homem ignorante que natildeo passou pelo processo de educaccedilatildeo (laquoesta turba ruacutestica de homens impolidosraquo - III 12 p 398)26 e que se orienta pelos costumes (as opiniotildees comuns) e pela experiecircncia imediata Sobretudo este homem sofre pouco porque toma como criteacuterio de conduta o que se apresenta aos sentidos Ele busca o prazer e foge da dor Por isso evita acrescentar agrave dor que haacute de afetaacute-lo sensivelmente (a doenccedila a velhice a morte) o sofrimento que poderiam provocar as representaccedilotildees imaginaacuterias (a tristeza o medo) Da mesma forma busca os prazeres sensiacuteveis e os frui intensamente sem misturaacute-los a representaccedilotildees desagradaacuteveis27 Mas ele tambeacutem evita os excessos pois

Nature luy apprend agrave ne songer agrave la mort que quand il se meurtraquo (idem) 25 laquocomme les parfumiers de lhuile ils [les hommes de science] lont sophistiqueacutee [la nature] de tant dargumentations et de discours appellez du dehorshellip raquo (III 12 1049) 26 laquoCette tourbe rustique dhommes impolisraquo (III 12 p 1049) 27 A conduta ldquonaturalrdquo que no ensaio Da experiecircncia Montaigne reivindica em relaccedilatildeo aos prazeres do corpo natildeo eacute a outra face da conduta natural que no Da fisionomia ele reivindica em relaccedilatildeo aos sofrimentos Pensamos que sim Mesmo que Montaigne natildeo atribua explicitamente ao ruacutestico o gozo salutar dos prazeres sensiacuteveis

192 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo deseja as dores futuras que estes poderiam acarretar28 (a ressaca depois da bebedeira a indigestatildeo apoacutes a comilanccedila) laquoa intemperanccedila eacute peste da voluacutepia e a temperanccedila natildeo eacute seu flagelo eacute seu temperoraquo (III 13 p 493)29 Enfim desta espeacutecie de sabedoria popular desta sapiecircncia quase instintiva (os animais tambeacutem buscam o prazer e evitam a dor30) adveacutem a tranquilidade da alma estado aniacutemico que coexiste com uma espeacutecie de gratidatildeo31 pelo vivido ndash fruto da praacutetica cotidiana e reiterada do desvio da consciecircncia das dores e de sua fixaccedilatildeo nos prazeres

(regrado unicamente pela necessidade de natildeo recair em dores futuras) fazecirc-lo parece-nos conforme agraves ideias do ensaiacutesta 28 Seriam suficientes o prazer e a dor como criteacuterios de conduta para evitarmos o viacutecio e instaurarmos a virtude moral Seria suficiente a aplicaccedilatildeo desses criteacuterios Essas questotildees devem ser examinadas 29 laquoLintemperance est peste de la volupteacute et la temperance nest pas son fleau cest son assaisonnementraquo (III 13 1110) 30 laquoA natureza imprimiu nos animais o cuidado consigo mesmos e com sua conservaccedilatildeo Eles vatildeo ateacute o ponto de temer sua piora chocar-se e ferir-se que noacutes os encabrestemos e batamos neles acidentes sujeitos a seus sentidos e experiecircncia Mas que noacutes os matemos eles natildeo podem temecirc-lo nem tem a faculdade de imaginar e concluir a morteraquo (III 12 p 407) rdquoNature a empreint aux bestes le soing delles et de leur conservation Elles vont jusques lagrave de craindre leur empirement de se heurter et blesser que nous les enchevestrons et battons accidents subjects agrave leurs sens et experience Mais que nous les tuons elles ne le peuvent craindre ny nont la faculteacute dimaginer et conclurre la mortrdquo (III 12 p 1055) 31 Novamente parece-nos de acordo com as ideias do autor estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a conduta paradigmaacutetica do camponecircs (conduta conforme a natureza) e o tema da gratidatildeo que aparece no ensaio seguinte Da experiecircncia Isto porque a gratidatildeo eacute uma espeacutecie de corolaacuterio da vida conforme a natureza que restringe as dores agrave sua accedilatildeo (inevitaacutevel) sobre os sentidos e estende os prazeres sensiacuteveis com o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo (a faculdade de representaccedilatildeo) ldquoOs outros sentem a doccedilura de um contentamento e da prosperidade sinto-a assim como eles mas natildeo de passagem e escapando Eacute preciso estudaacute-la saboreaacute-la e ruminaacute-la para dar graccedilas condignas agravequele que no-la outorga () Quanto a mim portanto amo a vida e a cultivo tal como aprouve a Deus no-la outorgarrdquo (III 13 pps 494-496)

Viver como Soacutecrates 193

Mas o que significa tomar o ruacutestico (essa espeacutecie de homem quase em ldquoestado de naturezardquo) como modelo de conduta O que isso pode significar para homens que como Montaigne jaacute passaram pelo processo de educaccedilatildeo e natildeo podem simplesmente retornar para esse estado primitivo de ignoracircncia Como jaacute tendo sido educado aproximar-se deste modelo Em resposta a essas perguntas Montaigne encontra na histoacuteria da filosofia um modelo de saacutebio que teria realizado este lsquoprojetorsquo Soacutecrates O mestre de Platatildeo e de Xenofonte segundo o ensaiacutesta teria justamente alcanccedilado por meio de sua praacutetica filosoacutefica um estado similar ao do ruacutestico Ele reproduziria refletidamente sua tranquilidade fundada na ignoracircncia ldquonatildeo teremos falta de bons regentes inteacuterpretes da simplicidade natural Soacutecrates seraacute um delesrdquo (III 12 p 403)32 Isto porque o principal fruto do seu ensinamento teria sido conduzir seus interlocutores ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia (reconhecimento que ele Soacutecrates teria sido o primeiro a fazer) O essencial neste ponto eacute a praacutetica socraacutetica do elenchos a criacutetica dos discursos dogmaacuteticos (de seu pretenso saber) a conduccedilatildeo de seus interlocutores ao reconhecimento de sua falta de ciecircncia (de que estatildeo em posse apenas de opiniotildees) Em Da fisionomia Montaigne examina o discurso que Soacutecrates teria proferido na ocasiatildeo do seu julgamento e deteacutem-se na anaacutelise das razotildees de sua tranquilidade diante de sua condenaccedilatildeo agrave morte Em face deste horizonte Soacutecrates mostra-se sereno E ele argumenta que permanece calmo afirma Montaigne porque natildeo sabe o que eacute a morte Todas as opiniotildees acerca da natureza desta (se haacute ou natildeo imortalidade da alma se a morte eacute ou natildeo a nossa completa aniquilaccedilatildeo) revelam-se quando submetidas a exame apenas isto opiniotildees isto eacute juiacutezos cuja correspondecircncia com o objeto (a morte) natildeo se pode

32 ldquoNous naurons pas faute de bons regens interpretes de la simpliciteacute naturelle Socrates en sera lunrdquo (III 12 p 1052)

194 Eacutetica e filosofia poliacutetica

comprovar Portanto temer o quecirc Natildeo haacute o que justifique o temor ldquosei [diz Soacutecrates] que nem frequentei nem conheci a morte nem vi ningueacutem que tenha experimentado suas qualidades para me instruir sobre elas Aqueles que a temem pressupotildeem conhececirc-la Quanto a mim natildeo sei nem o que ela eacute nem o que se faz no outro mundordquo (III 12 p 403-404)33 O juiacutezo de Montaigne sobre o pronunciamento socraacutetico coloca o mestre de Platatildeo na mesma posiccedilatildeo do ruacutestico ldquoeacute um discurso [] [que] representa [] a pura e primeira impressatildeo e ignoracircncia naturalrdquo (III 12 p 407)34

Assim como o ruacutestico portanto o Soacutecrates montaigniano (mas agora por efeito da criacutetica ceacutetica e natildeo por inclinaccedilatildeo ldquonaturalrdquo) natildeo acrescenta agrave dor sensiacutevel e inevitaacutevel o sofrimento evitaacutevel criado pelas representaccedilotildees Mas ele tambeacutem se assemelha ao homem simples em sua dedicaccedilatildeo aos prazeres sensiacuteveis Tambeacutem daiacute deriva sua tranquilidade fruto da satisfaccedilatildeo das carecircncias naturais Natildeo satildeo poucas as passagens em que Montaigne pinta um Soacutecrates afeito aos pequenos prazeres e alegrias do instante o homem que danccedila toca instrumentos brinca com as crianccedilas bebe com os companheiros e ateacute mesmo permite-se cometer excessos ocasionais afirmando que eles pertencem (se eventuais e adequados agraves circunstacircncias) agraves regras da conveniecircncia

[natildeo haacute] coisa mais notaacutevel em Soacutecrates do que muito velho ele encontrar tempo para aprender a danccedilar e a tocar instrumentos e tecirc-lo por bem empregado [hellip] este homem se fosse convidado a beber agrave porfia por

33 ldquoJe sccedilay [dit Socrate] que je nay ny frequenteacute ny recogneu la mort ny nay veu personne qui ayt essayeacute ses qualitez pour men instruire Ceux qui la craingnent presupposent la cognoistre Quant agrave moy je ne sccedilay ny quelle elle est ny quel il faict en lautre monderdquo (III 12 pps 1052-1053) 34 ldquocest un discours (hellip) [qui] repreacutesente (hellip) la pure et premiere impression et ignorance de naturerdquo (1054-1055)

Viver como Soacutecrates 195

dever de civilidade de todo o exeacutercito era ele que levava a vantagem e natildeo se recusava nem a brincar de bolinhas com as crianccedilas nem a correr com elas sobre um cavalo de madeira e o fazia com graccedila (III 13 p 491-492)35

Por aiacute jaacute se percebe que o modelo de Soacutecrates eacute

relevante natildeo apenas por sua potecircncia criacutetica isto eacute por levar os pretensos saacutebios ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia O interesse do modelo socraacutetico natildeo se resume ao momento negativo do elenchos A partir da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia um novo programa surge e Montaigne reconhece em Soacutecrates seu mais ilustre representante Isto porque o ruacutestico natildeo eacute apenas um homem ignorante Ele eacute um homem ordenado espontaneamente ordenado um homem que se conduz conforme uma ldquoordenaccedilatildeo naturalrdquo Ora o programa que se inaugura depois do momento da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia eacute o resgate desta ordem que foi perdida por efeito de uma certa educaccedilatildeo de uma certa cultura ldquoNatildeo encaro a espeacutecie e o indiviacuteduo como uma pedra em que eu tenha tropeccedilado aprendo a temer meus passos em tudo e empenho-me em regraacute-losrdquo (III 13 p 436)36 ldquoCompor nossos costumes eacute nosso ofiacutecio natildeo compor livros e ganhar natildeo batalhas e proviacutencias mas a ordem e a tranquilidade em nossa condutardquo (III 13 pps 488-489)37

35 ldquo[il nest] chose plus remercable en Socrates que ce que tout vieil il trouve le temps de se faire instruire agrave baller et jouer des instrumens et le tient pour bien employeacute () cet homme lagrave estoit-il convieacute de boire agrave lut par devoir de civiliteacute cestoit () celuy de larmeacutee agrave qui en demeuroit lavantage et ne refusoit ny agrave jouer aux noysettes avec les enfans ny agrave courir avec eux sur un cheval de bois et y avoit bonne gracerdquo (III 13 1109-1110) 36 ldquoJe ne regarde pas lespece et lindividu comme une pierre ougrave jaye broncheacute japprens agrave craindre mon alleure par tout et mattens agrave la reiglerrdquo (III 13 1074) 37 ldquoComposer nos meurs est nostre office non pas composer des livres et gaigner non pas des batailles et provinces mais lordre et tranquilliteacute agrave nostre conduiterdquo (III 13 1108 ndash idem)

196 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Em termos socraacuteticos eacute como se passaacutessemos

agora para o momento da maiecircutica isto eacute do esforccedilo para dar ordem agraves opiniotildees e daiacute extrair o conhecimento Em termos montaignianos trata-se de recuperar a ordenaccedilatildeo de si isto eacute de suas proacuteprias opiniotildees e da relaccedilatildeo entre as partes constitutivas do eu38 a saber o corpo e a alma Eacute desta ordenaccedilatildeo que adveacutem a tranquilitas

Falemos um pouco mais do ruacutestico Sua fala e sua conduta satildeo espontaneamente ordenadas Seu discurso tem ordem ainda que suas palavras natildeo o tenham No mais das vezes ele se faz entender comunica-se com

38 Ora natildeo eacute exatamente este o ldquoprograma moralrdquo que Platatildeo elabora em diversos diaacutelogos Qual seja restabelecer a partir do conhecimento de si (isto eacute de nossa natureza) a ordem natural entre nossas partes constitutivas (no caso platocircnico a devida hierarquia entre o corpo e a alma o devido comando desta sobre aquele) ldquoa excelecircncia de cada coisa consiste em uma ordem (taacutexei) e uma disposiccedilatildeo feliz (kekosmemeacutenon) resultante da ordem () Eacute preciso que cada um aplique todas as suas forccedilas todas as da cidade na direccedilatildeo deste fim () que natildeo se permita aos apetites (epithymiacuteas) reinar sem medidardquo (Goacutergias 506d-507e) Como veremos Montaigne repropotildee o programa platocircnico da ordenaccedilatildeo de si mas em termos diversos Natildeo se trataraacute de estabelecer uma relaccedilatildeo vertical de comando e obediecircncia entre as ldquopartesrdquo mas uma relaccedilatildeo horizontal de auxiacutelio reciacuteproco de ldquomutuels officesrdquo (III 13 p 1114) Sem duacutevida Montaigne concorda com Platatildeo quanto agrave necessidade da temperanccedila Mas esta natildeo deve ser o efeito do comando da alma

sobre o corpo mas do muacutetuo auxiacutelio entre essas partes (as paixotildees da alma tambeacutem precisam ser regradas temperadas ndash aliaacutes elas satildeo as mais perigosas) Nem Montaigne pretende que busquemos a temperanccedila por se tratar de um fim uacuteltimo mas sim porque o prazer

depende dela ldquoque ela [a alma] o assista e favoreccedila [o corpo] e natildeo se recuse a participar de seus prazeres naturais e de se comprazer conjugalmente com eles acrescentando-lhes se for mais saacutebia a moderaccedilatildeo temendo que por indiscriccedilatildeo eles se confundam com o desprazerrdquo (III 13 p 494-493) O fim uacuteltimo eacute outro natildeo a virtude (para a qual deve se dirigir o prazer) mas o prazer (para o qual deve se dirigir a virtude) Mas tambeacutem eacute outro o que nos move em direccedilatildeo a tal fim natildeo mais uma vontade racional soberana mas um desejo orientado (favorecido) pelo juiacutezo

Viver como Soacutecrates 197

sucesso o espiacuterito do que diz eacute compreensiacutevel ainda que possa haver certo desarranjo na letra

Ele natildeo sabe ablativo conjuntivo substantivo nem a gramaacutetica tampouco o sabem seu lacaio ou uma peixeira de Petit Pont e no entanto vos entreteratildeo a natildeo mais poder se o desejares e possivelmente se embaraccedilaratildeo tatildeo pouco com as regras de sua linguagem quanto o melhor bacharel da Franccedila (I 26 253)39

O mesmo ocorre com sua conduta no mais das

vezes ele age de maneira reta e permanece tranquilo pois toma como criteacuterios de conduta os costumes e os sentidos (o prazer e a dor) Ele permanece tranquilo porque suas ldquopartes constitutivasrdquo (seu corpo e sua alma) estatildeo espontaneamente ordenadas uma em relaccedilatildeo agrave outra Ele eacute o homem que manteacutem uma relaccedilatildeo saudaacutevel com o proacuteprio corpo que atende agraves demandas de seus impulsos naturais (desejo de prazer e aversatildeo agrave dor) Ele natildeo busca uma impassibilidade antinatural como fazem os filoacutesofos (os homens de ldquociecircnciardquo) nem o controle de sua alma sobre seu corpo Estes (alma e corpo) auxiliam-se reciprocamente Sua alma natildeo acrescenta agraves dores do corpo o sofrimento decorrente de representaccedilotildees imaginaacuterias ao contraacuterio busca distraccedilotildees (diversotildees lembranccedilas de prazeres passados etc) para aliviar as dores inevitaacuteveis do corpo Esta conduta serve de modelo para o proacuteprio Montaigne como ele nos mostra nesta passagem

Eis que desde recentemente os mais leves movimentos expelem puro sangue de meus rins Ora nem por isso

39 ldquoIl ne sccedilait pas ablatif conjunctif substantif ny la grammaire ne faict pas son laquais ou une harangiere du petit pont et si vous entretiendront tout vostre soul si vous en avez envie et se desferreront aussi peu agrave ladventure aux regles de leur langage que le meilleur maistre eacutes arts de Francerdquo (I 26 169)

198 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eu deixo de me mover como dantes e galopar atraacutes de meus catildees com um ardor juvenil e insolente [] Sinto alguma coisa que desmorona Natildeo espereis que fique me ocupando em examinar meu pulso e minha urina para daiacute extrair alguma previsatildeo desagradaacutevel passarei bastante tempo sentindo o mal sem prolongaacute-lo com o mal do medo Quem teme sofrer jaacute sofre porque teme (III 13 p 468-469)40

Por outro lado os prazeres sensiacuteveis servem de

baacutelsamo para as paixotildees tristes da alma ndash a tristeza e o medo face agrave velhice a doenccedila e a morte Novamente eacute a conduta que Montaigne potildee em praacutetica ldquojovem eu cobria de prudecircncia minhas paixotildees alegres velho disperso as tristes com o desregramentordquo (III 9 p 288)41 Enfim por meio do muacutetuo acordo de suas lsquopartes constitutivasrsquo o homem comum consegue regrar os excessos de uma e de outra 42

E quanto a Soacutecrates Ou melhor e quanto ao Soacutecrates montaigniano Ora ele eacute o homem que se opotildee a uma certa cultura a uma determinada educaccedilatildeo a saber aquela que rompe com esta ordem ldquonaturalrdquo que desfaz a adesatildeo espontacircnea dos homens agraves opiniotildees

40 ldquoVoicy depuis de nouveau que les plus legers mouvements espreignent le pur sang de mes reins Quoy pour cela je ne laisse de me mouvoir comme devant et picquer apres mes chiens dune juvenile ardeur et insolente () Or sens je quelque chose qui crosle Ne vous attendez pas que jaille mamusant agrave recognoistre mon pous et mes urines pour y prendre quelque prevoyance ennuyeuse je seray assez agrave temps agrave sentir le mal sans lalonger par le mal de la peur Qui craint de souffrir il souffre desjagrave de ce quil craintrdquo (III 13 p 1095) 41 ldquoJeune je couvrois mes passions enjoueacutees de prudence vieil je demesle les tristes de deacutebaucherdquo (III 9 p 977) 42 Mais uma vez projetamos intencionalmente sobre o modelo do ruacutestico uma conduta que natildeo eacute explicitamente associada a ele por Montaigne a saber o muacutetuo auxiacutelio entre o corpo e a alma Acreditamos poreacutem que tal projeccedilatildeo eacute perfeitamente conforme agraves ideias do autor na medida em que associa a ordenaccedilatildeo natural entre as ldquopartes constitutivas do eurdquo agrave conduta conforme agrave natureza cujo

modelo Montaigne encontra no ruacutestico

Viver como Soacutecrates 199

comuns e aos sentidos colocando no lugar destes como criteacuterios de conduta os comandos da razatildeo (uma doutrina moral pretensamente fundada numa fiacutesica) O Soacutecrates montaigniano eacute aquele que submete agrave criacutetica o pretenso conhecimento de si (o suposto saber dos filoacutesofos dogmaacuteticos acerca da nossa essecircncia) que exibe nossa ignoracircncia a respeito de noacutes mesmos que reduz enfim as doutrinas acerca da natureza humana ao niacutevel de opiniotildees e restitui agrave experiecircncia (ao exame dos fenocircmenos) o lugar privilegiado de fonte do conhecimento de si

Os filoacutesofos com grande razatildeo remetem-nos agraves regras da Natureza mas elas natildeo tecircm o que fazer com tatildeo sublime conhecimento eles as falseiam e nos apresentam seu rosto pintado com cores que o elevam demais e sofisticam demais [] Quem rememora o excesso de sua coacutelera passada e ateacute onde essa febre o arrastou vecirc a feiura desta paixatildeo melhor do que em Aristoacuteteles e concebe por ela um oacutedio mais justo [] A vida de Ceacutesar natildeo fornece mais exemplo do que a nossa para noacutes tanto imperatriz como popular eacute sempre uma vida agrave qual todos os acidentes humanos concernem Escutemo-la somente noacutes nos dizemos tudo aquilo de que temos principalmente necessidade [] A advertecircncia para cada um se conhecer deve ser de um importante efeito visto que este Deus de ciecircncia e de luz a fez plantar no frontatildeo do seu templo como compreendendo tudo o que ele tinha para nos aconselhar Platatildeo tambeacutem diz que a prudecircncia natildeo eacute outra coisa que a execuccedilatildeo desta prescriccedilatildeo e Soacutecrates prova-o detalhadamente em Xenofonte (III 13 p 435-437)43

43 ldquoLes philosophes avec grand raison nous renvoyent aux regles de Nature mais elles nont que faire de si sublime cognoissance ils les falsifient et nous presentent son visage peint trop haut en couleur et trop sophistiqueacute (hellip) Qui remet en sa memoire lexcez de sa cholere passeacutee et jusques ougrave cette fieacutevre lemporta voit la laideur de cette

200 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir entatildeo da experiecircncia de si (e natildeo mais

de doutrinas dogmaacuteticas acerca da natureza humana) o velho programa da ordenaccedilatildeo de si pode ser recolocado nos seus devidos termos Isto porque a ausculta de si eacute a experiecircncia de uma condiccedilatildeo mista de uma vivecircncia simultaneamente aniacutemica e corpoacuterea espiritual e carnal

Os prazeres puros da imaginaccedilatildeo assim como os desprazeres dizem alguns satildeo os maiores [] Deles vejo todos os dias exemplos insignes e talvez desejaacuteveis Mas eu de condiccedilatildeo mista grosseiro natildeo posso me apegar tatildeo inteiramente a esse uacutenico objeto [] Aristipo defendia apenas o corpo como se natildeo tiveacutessemos alma Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo Ambos viciosamente (III 13 p 486-487)44

Daiacute o novo programa ordenar-se a si mesmo no

niacutevel da conduta eacute estabelecer o auxiacutelio reciacuteproco entre o corpo e a alma

para que desmembramos em divoacutercio um edifiacutecio tecido com tatildeo estreita e fraternal correspondecircncia Ao

passion mieux que dans Aristote et en conccediloit une haine plus juste (hellip) La vie de Caesar na poinct plus dexemple que la nostre pour nous et emperiegravere et populaire cest tousjours une vie que tous accidents humains regardent Escoutons y seulement nous nous disons tout ce de quoy nous avons principalement besoing (hellip) Ladvertissement agrave chacun de se cognoistre doibt estre dun important effect puisque ce Dieu de science et de lumiere le fit planter au front de son temple comme comprenant tout ce quil avoit agrave nous conseiller Platon dict aussi que prudence nest autre chose que lexecution de cette ordonnance et Socrates le verifie par le menu en Xenophonrdquo (III 13 1073-1075) 44 ldquoLes plaisirs purs de limagination ainsi que les desplaisirs disent aucuns sont les plus grands (hellip) Jen voy tous les jours des exemples insignes et agrave ladventure desirables Mais moy dune condition mixte grossier ne puis mordre si agrave faict agrave ce seul object () Aristippus ne defendoit que le corps comme si nous navions pas dame Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps Tous deux vicieusementrdquo (III 13 p 1107)

Viver como Soacutecrates 201

contraacuterio renovemo-lo por deveres muacutetuos Que o espiacuterito desperte e vivifique o peso do corpo o corpo detenha a leveza do espiacuterito e a fixe (III 13 p 498)45 Deste novo ldquoprogramardquo formulado por Montaigne

com base nos exemplos de Soacutecrates e do ruacutestico haacute de emergir uma conduta e uma vida ordenadas Agrave ordem ou agrave coerecircncia da conduta e da vida do saacutebio idealizado pelo estoicismo efeito da repeticcedilatildeo da impassibilidade (sempre conveniente sempre adequada) Montaigne opotildee uma nova figura da ordem ou da coerecircncia aquela muito mais humana que eacute efeito da reiteraccedilatildeo do desvio da consciecircncia dos objetos que despertam as paixotildees (desvio sempre conveniente sempre ldquoagrave proposrdquo) Enfim Montaigne opotildee agrave constantia estoica uma conduta que parece inconstante mas que escapa da criacutetica da inconstacircncia na medida em que eacute constituiacuteda por desvios conscientes voluntaacuterios (uma ldquomaneirardquo que natildeo tem nada de passiva ao contraacuterio eacute uma estrateacutegia para escapar da servidatildeo agraves paixotildees)

Soacutecrates natildeo diz Natildeo vos rendais aos atrativos da beleza sustentai vossa posiccedilatildeo diante dela esforccedilai-vos ao contraacuterio Fugi diz ele correi para longe de sua visatildeo e de seu encontro como de um veneno poderoso que se atira e atinge de longe (III 10 p 348)46

Finalmente chega-se a uma conduta

perfeitamente laquoordenadaraquo a uma vida unificada e uniforme totalmente coerente (laquoEle [Soacutecrates] foi

45 ldquoA quoy faire desmembrons nous en divorce un bastiment tissu dune si joincte et fraternelle correspondance Au rebours renouons le par mutuels offices Que lesprit esveille et vivifie la pesanteur du corps le corps arreste la legereteacute de lesprit et la fixerdquo (III 13 p 1114) 46 ldquoSocrates ne dit point Ne vous rendez pas aux attraicts de la beauteacute soustenez la efforcez vous au contraire Fuyez la faict-il courez hors de sa veue et de son rencontre comme dune poison puissante qui seslance et frappe de loingrdquo (III 10 1015-1016)

202 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tambeacutem sempre uno e semelhanteraquo - III 12 p 380)47 a vida do homem ordinaacuterio de bem sucessatildeo de desvios Ora natildeo eacute exatamente uma perfeita harmonia que encontramos na imagem acabada da tranquilidade da alma que Montaigne funda sobre este modelo de conduta

Ela [minha alma] mede o quanto deve a Deus por estar em paz com sua consciecircncia e com outras paixotildees intestinas por ter o corpo em sua disposiccedilatildeo natural fruindo ordenada e competentemente as funccedilotildees moles e aduladoras com as quais lhe apraz compensar com sua graccedila as dores com que sua justiccedila por sua vez nos golpeia o quanto lhe vale estar alojada em tal ponto que para onde quer que ela lance o olhar o ceacuteu estaacute calmo ao seu redor nenhum desejo nenhum temor ou duacutevida que lhe perturbe o ar nenhuma dificuldade passada presente futura por cima da qual sua imaginaccedilatildeo natildeo passe sem ofensa (III 13 p 495)48

REFEREcircNCIAS FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduit par Robert Rovini Paris Gallimard 1992 (coll ldquoTelrdquo)

LONG Anthony La Filosofia Heleniacutestica - Estoicos Epicuacutereos Esceacutepticos trad P Jordan de Urries Madrid Alianza Editorial 1977

47 laquoIl [Socrate] fut aussi tousjours un et pareilraquo (III 12 p 1037) 48 ldquoElle [mon ame] mesure combien cest quelle doibt agrave Dieu destre en repos de sa conscience et dautres passions intestines davoir le corps en sa disposition naturelle jouyssant ordonneacuteement et competemmant des functions molles et flateuses par lesquelles il luy plait compenser de sa grace les douleurs de quoy sa justice nous bat agrave son tour combien luy vaut destre logeacutee en tel point que ougrave quelle jette sa veue le ciel est calme autour delle nul desir nulle crainte ou doubte qui luy trouble lair aucune difficulteacute passeacutee presente future par dessus laquelle son imagination ne passe sans offencerdquo (III 13 p 1112)

Viver como Soacutecrates 203

MONTAIGNE Michel de Les Essais Eacutedition de Pierre Villey reeacutediteacutee par V L Saulnier Col Quadrige Paris PUF 1999

_____ Os Ensaios (traduccedilatildeo de Rosemary Costek) Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 3 vols

PLATAtildeO Gorgias Texte eacutetabli et traduit par Alfred Croiset avec la collaboration de Louis Bodin Collection des universiteacutes de France Paris Les Belles Lettres 2003

SENECA De constantia sapientis in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ De tranquilitate animi in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ Lettres a Lucilius Texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot Eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne Paris Robert Laffont 1993

204 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VIII =

NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE

Stefano Busellato

1 Desde o seu primeiriacutessimo escrito juvenil de

caraacuteter filosoacutefico Fatum und Geschichte de 1862 na perspectiva da precoce negaccedilatildeo do ldquointeiro cristianismordquo Nietzsche refletindo sobre si mesmo escreve ldquoEu procurei negar tudo ai de mim destruir eacute faacutecil mas construirrdquo

Tal frase ressalta-se como o eneacutesimo exemplo da extraordinaacuteria clarividecircncia que caracteriza Nietzsche jaacute que tal frase pode ser considerada uma suacutemula do inteiro quadro do seu pensamento

Todos aqueles que passaram alguns anos estudando as paacuteginas nietzschianas com certeza encontraram e tiveram que resolver uma peculiaridade que eacute tambeacutem um dos principais problemas exegeacuteticos diante do qual o inteacuterprete precisa elaborar uma resposta quer dizer uma evidente desproporccedilatildeo entre a pars destruens e a pars construens Se de fato os objetivos polecircmicos os alvos criacuteticos as teorias que Nietzsche confuta e rejeita satildeo extremamente claros e precisos eacute pelo contraacuterio muito mais difiacutecil individuar com tanta exatidatildeo as propostas positivas e as alternativas que ele quer propor

Graduado em Filosofia pela Universitagrave di Pisa (2001) doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave Degli Studi di Macerata (2009) poacutes-doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave di Siena (2011-2013) pela USP (2014-2016) e pela UNIOESTE (2016) Publicou entre outros os livros Nietzsche e Lo Scetticismo (2012) e Schopenhauer lettore di Spinoza (2015)

206 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Esse desniacutevel entre o contradizer e o propor

adquire em Nietzsche uma forma particular a da autocontradiccedilatildeo ndash e em uma medida tatildeo forte ao ponto de superar a normalidade das contradiccedilotildees presentes em outros pensadores (e eacute isso que leva a uma espeacutecie de licenccedila exegeacutetica na leitura do pensamento de Nietzsche que recebeu as mais variadas e contraacuterias interpretaccedilotildees como nenhum outro pensador na histoacuteria da filosofia)

Diante dessa peculiaridade da obra nietzschiana existem duas principais estrateacutegias para tentar explicaacute-la 1) negar que Nietzsche eacute um filoacutesofo stricto sensu e 2) ver exatamente na potecircncia da sua parte negativa a verdadeira (e praticamente uacutenica) essecircncia do pensamento nietzschiano De acordo com tal perspectiva o seu precioso valor emancipatoacuterio consistiria na capacidade de abater as verdades consideradas como tais e isso constituiria jaacute um resultado digno de reconhecimento e gratidatildeo da nossa parte Exigir que ele nos mostre tambeacutem uma capacidade construtiva seria dessa forma uma demonstraccedilatildeo de insatisfaccedilatildeo com o seu pensamento que seria injusta

1) Agrave primeira dessas duas opccedilotildees pertencem todos os leitores que veem em Nietzsche mais um artista do que um filoacutesofo estrito E natildeo devemos esquecer que a recepccedilatildeo criacutetica de Nietzsche antes da I Guerra Mundial assim como uma parte importante daquela que chega ateacute o limiar do segundo conflito mundial nasceu e cresceu mais graccedilas a artistas do que agrave filosofia institucional (por exemplo Mahler R Strauss DrsquoAnnunzio Gorge Hesse Thomas Mann Hofmannsthal Rilke Musil Benn Zweig etc) Mas tambeacutem pertencem a essa linha interpretativa aqueles que por mais que vejam Nietzsche como um filoacutesofo e natildeo tanto como um artista reconduzem de qualquer forma a razatildeo da sua escassez propositiva e da sua natureza contraditoacuteria a uma carecircncia teacutecnico-filosoacutefica

Nietzsche e o ceticismo 207

Entre alguns desses inteacuterpretes podemos citar Ferdinand Toumlnnies que define o pensamento de Nietzsche uma Paradoxsophie ldquoum voacutertice de pensamentos de exclamaccedilotildees e declamaccedilotildees de acessos de ira e afirmaccedilotildees contraditoacuterias em meio a muitos relacircmpagos que iluminam e ofuscamrdquo1

[] vocecircs podem sentir prazer lendo os escritos de Nietzsche [] podem aprender algumas coisas neles mas apenas se vocecircs decidiram aprender com outros as coisas mais fundamentais sobre os mesmos assuntos2

Ou ateacute mesmo inteacuterpretes de peso como Karl

Jaspers segundo o qual as contradiccedilotildees de Nietzsche nascem de uma ldquoinadequada preparaccedilatildeo filosoacutefica no manejo dos grandes pensadoresrdquo de uma ldquofalta de formaccedilatildeo profissionalrdquo que constitui tambeacutem a sua extraordinaacuteria capacidade de se relacionar ldquocom um imenso impulsordquo com a verdade mas eacute tambeacutem o que explicaria a frequente recaiacuteda em antinomias das quais por puro amadorismo ldquoele natildeo tem consciecircnciardquo3

2) A segunda opccedilatildeo exegeacutetica aquela que vecirc no aspecto negativo na excepcional forccedila do seu radicalismo criacutetico a verdadeira essecircncia da filosofia nietzschiana que explicaria tanto a diferenccedila entre a pars destruens e a construens quanto a sua autocontradiccedilatildeo eacute aquela que hoje parece prevalecer e que conta entre seus seguidores com inteacuterpretes do mais alto niacutevel Ainda que com diferenccedilas oacutebvias eacute possiacutevel traccedilar uma linha

1 F Toumlnnies Der Nietzsches-Kults Eine Kritik [1897] Akademie-Verlag Berlin 1990 pp 99-104 trad it Il culto di Nietzsche Una critica E Donaggio [Org] Editori Riuniti Roma 1998 p 131 2 Ivi p 41 3 K Jaspers Nietzsche Einfuumlhrung in das Verstaumlndnis seines Philosophierens de Gruyter Berlin-New York 1974 trad it L Rustichelli [Org] Nietzsche Introduzione alla comprensione del suo filosofare Mursia Milano 1996 pp 376-377

208 Eacutetica e filosofia poliacutetica

de continuidade entre o ldquoprinciacutepio da possibilidaderdquo de Musil a ldquoSelbstuumlberwindungrdquo de Mann ldquoo infinito transformar-serdquo de Bertram E tambeacutem na Franccedila encontramos por exemplo Bataille que fala de ldquouma exigecircncia sem referecircnciasrdquo4 que daria vida ao filosofar nietzschiano e isso o leva a observar como

[] as doutrinas de Nietzsche possuem uma caracteriacutestica estranha isto eacute que natildeo eacute possiacutevel segui-las Elas nos potildeem de frente a iluminaccedilotildees imprecisas que geralmente produzem cegueira nenhuma estrada conduz agrave meta indicada5

Nietzsche criticaria ldquoem nome de um valor moacutevel

do qual natildeo pocircde evidentemente capturar a origem e a finalidaderdquo6 Ou entatildeo Deleuze segundo o qual

Nietzsche natildeo tenta codificar [] Escrevendo e pensando da proacutepria forma Nietzsche desenvolve uma obra de decodificaccedilatildeo [] de decodificaccedilatildeo uacutenica [] [que] quer estragar todos os coacutedigos7

E resume a filosofia nietzschiana com a foacutermula

marcadamente francesa ldquojamais rien de connu mais une grande destruction de reconnu pour une creacuteation drsquoinconnurdquo8 Um passo adiante e chegamos ao ldquomestre da grande duacutevidardquo de Ricoeur e na Itaacutelia a transformar Nietzsche em um dos fundadores do ldquopensamento fracordquo um pensamento que critica as verdades fortes estabelecidas e que exatamente por isso rejeita-se

4 G Bataille Sur Nietzsche Gallimard Paris 1973 trad it A Zanzotto Su Nietzsche SE Milano 1994 p 16p 69 5 Idem p 113 6 Idem p 125 7 G Deleuze Le penseacute nomade trad it in Id Nietzsche e la filosofia a cura di F Polidori Einaudi Torino 2002 p 312 8 Id Sur Nietzsche et lrsquoimage de la penseacutee ora in Id Lrsquoicircle deacuteserte et autres textes a cura di D Lapoujade Eacuted de Minuit Paris 2002 p

189

Nietzsche e o ceticismo 209

voluntariamente a oferecer alternativas agravequilo que ele mesmo rejeitou

Pessoalmente eu natildeo acredito que esses dois modelos interpretativos sejam capazes de compreender completamente a complexidade que a filosofia de Nietzsche entreteacutem com o elemento da verdade e da criacutetica agrave verdade A primeira ao resolver o problema mencionado acima escolhendo ver em Nietzsche um artista e natildeo um filoacutesofo ou um filoacutesofo ldquopela metaderdquo eacute negada por uma evidecircncia histoacuterica uma vez que o pensamento de Nietzsche entrou nolens volens com total reconhecimento na histoacuteria da filosofia Mas tambeacutem a segunda abordagem exegeacutetica vendo quase exaustivamente a essecircncia do pensamento nietzschiano na criacutetica agrave verdade e na sua pars destruens colide com a intenccedilatildeo explicitamente declarada por Nietzsche com grande insistecircncia de uma exigecircncia fortemente propositiva que o anima e o guia Nietzsche repete assim que concede grande espaccedilo agrave negaccedilatildeo exclusivamente enquanto ela eacute o passo propedecircutico a novas construccedilotildees (pensemos por exemplo no Versuch einer Umwertung aller Werte) e que ele natildeo quer se contentar com o lado niilista e criacutetico que eacute julgado pelo contraacuterio como sintoma de cansaccedilo e de deacutecadence Dito isso poreacutem eacute sempre verdade que o fulcro da prevalecircncia do momento de negaccedilatildeo agraves custas do momento de afirmaccedilatildeo assim como a forccedila com a qual Nietzsche realiza a proacutepria criacutetica radical agrave verdade que frequentemente o leva a criticar ateacute mesmo as proacuteprias ldquoverdadesrdquo continua sendo um problema exegeacutetico de importacircncia primordial

2 Um caminho no qual eacute possiacutevel encontrar elementos uacuteteis agrave questatildeo pode ser por isso enfrentar tal noacute conceitual realizando uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo que Nietzsche teve com a filosofia que mais do que nenhuma outra abraccedilou a contraposiccedilatildeo a toda

210 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma de dogmatismo e ao conceito de verdade ou seja o ceticismo

A relaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o ceticismo o que Nietzsche sabia da filosofia ceacutetica e como ele a considerou e como a utilizou Essas satildeo trecircs questotildees que os especialistas claramente deixaram de lado mas eacute somente atraveacutes de uma pesquisa especificamente direcionada nesse sentido que podem emergir dados de grande relevacircncia interpretativa que de outra forma permaneceriam subterracircneos

Se considerarmos a questatildeo apenas a niacutevel de Quellenforschung eacute possiacutevel descobrir que Nietzsche tinha um conhecimento extremamente refinado e detalhado do ceticismo a tal ponto que eacute possiacutevel afirmar que nenhum outro filoacutesofo do seu calibre teve uma competecircncia tatildeo especializada sobre o assunto como a sua Tal caracteriacutestica lhe deriva do seu iniacutecio como filoacutelogo claacutessico e em particular dos seus estudos sobre Dioacutegenes Laeacutercio mas natildeo soacute desses estudos uma vez que a bagagem cultural de Nietzsche sobre o ceticismo antigo vai muito aleacutem daquilo que concerne a simples obrigaccedilatildeo acadecircmica

Eacute possiacutevel de fato demonstrar com exatidatildeo que ele teve um conhecimento aprofundado do inteiro panorama das principais figuras da histoacuteria do ceticismo grego (Pirro de Eacutelis Brisatildeo de Heracleacuteia Tiacutemon de Fliunte principal aluno de Pirro que ele demonstra conhecer bem Hecateu de Mileto Aristipo de Cirene Laacutecides de Cirene Arcesilau Fiacuteon de Alexandria Antiacuteoco Carneacuteades Enesidemo) e tambeacutem que ele estudou e utilizou os mais importantes textos antigos sobre o pensamento ceacutetico aleacutem de Dioacutegenes Laeacutercio e antes mesmo de se confrontar com a sua obra Nietzsche se ocupou do leacutexico bizantino Suida teve uma evidente familiaridade com os escritos de Sexto Empiacuterico citados e usados em muitas obras encontramos competecircncias especiacuteficas e diversas citaccedilotildees de fontes como Aacuteulio

Nietzsche e o ceticismo 211

Geacutelio Euseacutebio de Cesaacuterea ou Favorino de Arelate ele conheceu muito bem a Academica de Ciacutecero Em outras palavras Nietzsche possuiacutea uma preparaccedilatildeo profunda tanto no acircmbito historiograacutefico quanto teoreacutetico do fenocircmeno do ceticismo grego

O uacuteltimo texto citado enfim os Academica de Ciacutecero estaacute particularmente envolvido na questatildeo Eacute um dos documentos mais preciosos que chegaram ateacute noacutes sobre a histoacuteria do ceticismo antigo jaacute que o contexto da uacuteltima grande crise no centro da Academia platocircnica depois do embate entre Filon de Larissa e Antiacuteoco de Ascalatildeo sobre a natureza dogmaacutetica ou antidogmaacutetica do conceito de verdade na tradiccedilatildeo acadecircmica ndash que deu margem a uma longa anaacutelise sobre o inteiro passado do ceticismo antigo O estudo dos Academica mostra um interesse especial de Nietzsche pelo assunto jaacute que quando ele assumiu a caacutetedra de Basileia ele ministrou dois semestres consecutivos sobre a obra ndash as aulas do veratildeo de 1870 e do inverno de 1871 e 1872 E natildeo por acaso exatamente no Natal de 1870 Cosima lhe deu de presente os Essais de Montaigne que se tornaram outra das suas principais fontes sobre o ceticismo enriquecendo dessa forma tambeacutem no vieacutes da eacutepoca moderna o seu conhecimento sobre a filosofia ceacutetica Tudo isso deixa entrever como ateacute mesmo na casa de Wagner deveria ser conhecido o interesse especiacutefico de Nietzsche pelo tema

Portanto o primeiro dado que encontramos eacute que todas as vezes em que Nietzsche cita o ceticismo precisamos considerar que ele natildeo o usa como instrumento retoacuterico ou com um sentido geneacuterico mas sim porque deteacutem um conhecimento real e profundo sobre a mateacuteria E em particular eacute necessaacuterio considerar como durante a crucial passagem do periacuteodo filoloacutegico agravequele do verdadeiro iniacutecio da sua filosofia Nietzsche carregue consigo essa competecircncia particular no acircmbito do pensamento ceacutetico

212 Eacutetica e filosofia poliacutetica

3 Natildeo eacute surpreendente perceber portanto que o

primeiro periacuteodo da sua filosofia seja um dos arcos temporais da sua obra em que o elemento do ceticismo aparece com maior evidecircncia E isso natildeo apenas no que concerne agraves citaccedilotildees ou agrave utilizaccedilatildeo das proacuteprias leituras filoloacutegicas Em toda a primeira parte da sua produccedilatildeo eacute evidente ndash do ponto de vista gnosioloacutegico ndash uma atmosfera de grande pessimismo que encobre os principais personagens da filosofia que ele frequenta por exemplo o Demoacutecrito anti-teleoloacutegico no qual ldquoencontram-se os primoacuterdios do Pirronismo [] [e que] deriva da sua tese sobre o conhecimentordquo9 e que pode ser resumida na interpretaccedilatildeo ceacutetica de origem ciceroniana ldquoo seu princiacutepio fundamental continua sendo ldquoa coisa em si eacute incognosciacutevelrdquo10 ou entatildeo o Heraacuteclito lido sobretudo em chave anti-ontoloacutegica e relativista o filoacutesofo que nega a estabilidade do ser a favor de uma transformaccedilatildeo sempre em ato e que por isso natildeo pode ser reclusa em categorias loacutegicas e epistecircmicas Ou ainda Kant que indiretamente permanece sendo uma fonte decisiva para a teoria do conhecimento da primeira fase de Nietzsche Um Kant lido atraveacutes das interpretaccedilotildees contrastantes de Lange de um lado e de Schopenhauer do outro que acaba se tornando nas matildeos de Nietzsche o siacutembolo do ldquoconhecimento traacutegicordquo que representa a tentativa natildeo realizada de superar o ceticismo de Hume uma falha que inevitavelmente arrasta os limites do conhecimento contra o seu desejo ao grau mais elevado eacute o Kant lido em consonacircncia com o ldquosuspiro de Kleist sobre a incognoscibilidade finalrdquo como emerge em uma carta muito estimada por Nietzsche em que Kleist resume ldquoo efeito Kantrdquo ldquonoacutes natildeo podemos

9 OFN I 2 p 200 Todas as referecircncias das obras de Nietzsche satildeo de Opere Friedrich Nietzsche (OFN) Colli-Montinari (org) Milano Adelphi 1964ss 10 Idem p 185

Nietzsche e o ceticismo 213

decidir se o que chamamos verdade eacute realmente a verdade ou se apenas parece secirc-lordquo11

Mas esse pessimismo gnosioloacutegico natildeo nos autoriza poreacutem a simplificar a questatildeo convertendo o ceticismo antigo conhecido atraveacutes dos estudos filoloacutegicos como uma simples fonte no radicalismo criacutetico que a filosofia de Nietzsche em seguida iraacute desenvolver e na qual em teoria iria se exaurir Ao contraacuterio observando o papel que o ceticismo teve nessa primeira fase eacute possiacutevel mostrar como as coisas se colocam de outra forma Nietzsche na realidade permitiu que esse pessimismo gnosioloacutegico crescesse em todas as direccedilotildees porque examinando bem ele possuiu (ou acreditou possuir) um fator positivo que poderia ser o seu antiacutedoto a filosofia de Schopenhauer

E tambeacutem aqui natildeo a teoria do conhecimento schopenhauriano ou a metafiacutesica centrada no Wille este tambeacutem dissolvido desde o iniacutecio em uma visatildeo ceacutetica de ldquodesconfianccedila em relaccedilatildeo a qualquer sistema desde o princiacutepiordquo12 que julga a Vontade uma ldquopalavra de cunho grosseirordquo13 uma tentativa de superar o impasse post-kantiano mas ldquoa tentativa falhourdquo14 ldquoSchopenhauer queria encontrar o x de uma equaccedilatildeo e pelo seu caacutelculo resulta que a questatildeo eacute igual a x ou seja que ele natildeo o encontrourdquo15

O Schopenhauer afirmativo que o primeiro Nietzsche segura com forccedila nas matildeos como uma proacutepria certeza eacute na verdade aquele do III libro da Welt ldquoo mundo da arterdquo isto eacute o Schopenhauer wagneriano Esse Schopenhauer (em muitos aspectos anti-schopenhauriano) nos permite compreender porque apesar do proacuteprio pessimismo gnosio-epistecircmico

11 H von Kleist a Wilhemine e Ulrike 22-23 marccedilo de 1801 12 FP [30] 10 veratildeo de 1878 OFN IV 3II p 300 13 OFN I 2 pp 220-221 14 Idem p 220 15 Idem p 228

214 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche possa afirmar ldquoavaliar o que pode ser Schopenhauer para noacutes depois de Kant o guia [] que conduziu fora da caverna do abatimento ceacuteticordquo16 Ou o significado de anotaccedilotildees como ldquoA posiccedilatildeo transformada da filosofia depois de Kant A impossibilidade da metafiacutesica Auto-eviraccedilatildeo Submissatildeo traacutegica o fim da filosofia Apenas a arte pode nos salvarrdquo17 ldquoNatildeo haacute sequer uma causalidade da qual noacutes conheccedilamos a verdadeira essecircncia Ceticismo absoluto a necessidade da arte e da ilusatildeordquo18

No renascimento da trageacutedia a partir do drama musical wagneriano Nietzsche viu a concretizaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo em que verdade e beleza atingem o uacutenico ponto de equiliacutebrio possiacutevel uma verdade que uma vez autocompreendida como impossibilidade epistecircmica transfigura-se em esteacutetica isto eacute na necessidade da ilusatildeo ou mais precisamente segundo a foacutermula de Nietzsche na necessidade da ldquobela ilusatildeordquo

Por isso aquilo que inicialmente podia parecer a aceitaccedilatildeo teoreacutetica dos resultados corrosivos do ceticismo enquanto resultados conclusivos revela-se como sendo na verdade apenas um passo funcional para fundar com maior solidez um terreno absolutamente afirmativo como aquele que oferecia ao Nietzsche da eacutepoca a esteacutetica wagneriana que tem como texto culminante a Geburt ldquoPrecisamos superar o ceticismo precisamos esquececirc-lo A nossa salvaccedilatildeo natildeo estaacute no conhecer mas no criarrdquo19

Apenas quando comeccedilou a definhar a convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo wagneriana depois do fim da convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo de Schopenhauer o radicalismo criacutetico de Nietzsche se viu sem margens sem

16 SE sect 3 17 FP 19 [319] veratildeo de 1872-1873 OFN III 3II p 102 18 FP 19 [121] veratildeo de 1872-1873 idem p 44 19 FP 19 [125] veratildeo de 1872-1873 idem p 45

Nietzsche e o ceticismo 215

direccedilatildeo nem objetivo Em torno de 1873 durante a tempestuosa gestaccedilatildeo de Wagner a Bayreuth antes mesmo da abertura do Festival Nietzsche atingiu dessa forma o ponto maacuteximo do ceticismo que podemos encontrar nos seus escritos O documento que nos resta como eloquente testemunho desse periacuteodo eacute o breve texto Uumlber Wahrheit und Luumlge im auszligermoralischen Sinne

Eacute notoacuterio que nesse escrito encontramos a definiccedilatildeo da verdade como metaacutefora da qual perdeu-se a memoacuteria da sua natureza metafoacuterica a verdade torna-se assim mera ilusatildeo natildeo mais bela ilusatildeo

E atraveacutes do instrumento da metaacutefora o conceito de verdade eacute rejeitado em todos os pontos de vista que o constituem loacutegico antropoloacutegico e histoacuterico ldquoA verdade eacute incognosciacutevel Tudo aquilo que eacute incognosciacutevel eacute uma ilusatildeordquo20

Mas eacute preciso prestar atenccedilatildeo porque tal coincidecircncia entre o ceticismo e o resultado filosoacutefico do percurso de Nietzsche natildeo eacute vivido por ele com o regozijo que esperariacuteamos de algueacutem que tem como objetivo teoacuterico destruir as certezas porque ao contraacuterio ele declara em uma anotaccedilatildeo agrave eacutepoca ldquoo filoacutesofo traacutegico [] natildeo eacute ceacutetico [] o ceticismo de fato natildeo pode ser um fim em si mesmordquo21 E podemos encontrar um testemunho de como um tal resultado fosse contraacuterio agraves intenccedilotildees de Nietzsche em um fato geralmente negligenciado ndash quer dizer que ele decidiu natildeo publicar esse escrito

Eu estava em relaccedilatildeo agrave minha pessoa jaacute no caminho do ceticismo e da dissoluccedilatildeo moralista quer dizer empenhado tanto na criacutetica quanto no aprofundamento de todo pessimismo preacute-existente ndash e jaacute natildeo acreditava ldquomais em nadardquo como diz o povo [] e justo naquele periacuteodo nasceu um pequeno ensaio em seguida

20 FP 29 [20] veratildeo-outono de1873 idem p 233 21 FP 19 [35] veratildeo de 1872 ndash comeccedilo de 73 ivi p 13

216 Eacutetica e filosofia poliacutetica

mantido em segredo ldquoSobre a verdade e a mentira em sentido extra-moralrdquo22

Da anaacutelise da primeira fase de Nietzsche emerge

portanto um resultado importante ele deu grande espaccedilo aos instrumentos criacuteticos do ceticismo ateacute o momento em que teve em matildeos uma alternativa a ele e exatamente para fundamentar melhor essa alternativa Quando poreacutem ela falhou e ele se encontrou unicamente no ceticismo acabou por recusaacute-lo como conclusatildeo e comeccedilou a trabalhar para desenhar um novo plano afirmativo em relaccedilatildeo agravequele schopenhauriano e wagneriano julgado como natildeo mais sustentaacutevel Eacute o programa que comeccedila com Humano demasiado humano e que iraacute mantecirc-lo ocupado ateacute a metade dos anos oitenta

4 No periacuteodo central o assim chamado periacuteodo iluminista os objetivos polecircmicos tornam-se a cada passo sempre mais precisos e direcionados dois dentre todos satildeo a metafiacutesica e a moral Nesse arco cronoloacutegico a presenccedila do ceticismo perde visibilidade faz-se mais subterracircnea e pode ser encontrada com maior facilidade nos fragmentos poacutestumos do que nas obras impressas Os exoacuterdios satildeo marcados por uma certa cautela inicial que deriva da desilusatildeo das esperanccedilas nutridas no seu primeiro percurso filosoacutefico ldquonatildeo queremos construir prematuramente natildeo sabemos nem sequer se poderemos construir algo algum dia e se a melhor alternativa natildeo possa ser talvez natildeo construirrdquo23 Mas o que permanece constante eacute a consideraccedilatildeo do ceticismo unicamente como instrumento teoreacutetico de demoliccedilatildeo finalizado a uma nova construccedilatildeo

22 FP 6 [4] veratildeo de 1886 ndash primavera de 1887 OFN VIII 1 p 220 A escolha de natildeo publicar Sobre a verdade e a mentira tambeacutem eacute lembrada em uma anotaccedilatildeo de 1884 FP 26 [372] veratildeo-outono de 1884 OFN VII 2 p 226 23 FP 5 [30] primavera-veratildeo de 1875 OFN IV1 p 117

Nietzsche e o ceticismo 217

O ceticismo eacute ainda apreciado pela capacidade de limpar o caminho das ldquolsquoverdades absolutasrsquo [] instrumento de nivelamentordquo Isso eacute particularmente niacutetido por exemplo no que concerne agrave moral Em relaccedilatildeo a ela o ceticismo ainda eacute saudado como liberador ldquoA eacutepoca do grande ceticismo chegou Natildeo haacute nada de lsquomoral em si mesmorsquordquo24 Ou entatildeo no tatildeo celebrado espiacuterito cientifico ao qual Nietzsche se aproximaria desde Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia obra que tambeacutem compartilha a utilizaccedilatildeo programaacutetica e natildeo autocircnoma do ceticismo Daqui a necessidade de ldquoevocar o espiacuterito da ciecircncia que torna em geral muito mais frios e ceacuteticos e em particular modo resfria a ardente feacute em verdades uacuteltimas e definitivasrdquo25

Natildeo prestar atenccedilatildeo no nexo que Nietzsche instituiu entre o ceticismo no que concerne agraves verdades e uma permanente necessidade construtiva a primeira subordinada agrave segunda reduzir Nietzsche transformando-o exclusivamente no criacutetico radical ao qual importa exclusivamente a rejeiccedilatildeo natildeo nos permite perceber o nascimento de uma criacutetica ao ceticismo que nos anos sucessivos se revelaraacute como decisiva o ceticismo entendido como fruto da exaustatildeo niilista referindo-se ao qual Nietzsche fala ateacute mesmo de ldquooacutedio [contra] qualquer forma de fraqueza e de ceticismordquo26 e tampouco nos permite reconhecer a correta relevacircncia das poucas mas claras e inequiacutevocas indicaccedilotildees que ele deixou nas obras publicadas

Eacute significativa a conclusatildeo do diaacutelogo do aforisma 477 de Aurora intitulado Von der Skepsis erloumlst ldquo ndash B Vocecirc mesmo deixou de ser ceacutetico Vocecirc de fato nega ndash A E assim eu aprendi novamente a dizer simrdquo27 Ou entatildeo o aforisma 51 de A Gaia ciecircncia ldquoWahrheitssinnrdquo

24 FP 7 [231] final de 1880 OFN V 1 p 563 25 MA I sect 244 26 Nietzsche a Heinrich Romundt 15 de abril de 1876 E III p 141 27 M sect 477

218 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquoeu louvo todo ceticismo ao qual eu posso dizer lsquoVamos tentarrsquo E natildeo quero saber mais nada de todas as coisas e de todos os problemas que natildeo permitem seu experimentordquo28 No material poacutestumo da eacutepoca tal subordinaccedilatildeo do ceticismo agrave necessidade de uma pars construens ocupa numerosas anotaccedilotildees

Eu natildeo preciso acreditar em nada As coisas satildeo incognosciacuteveis [] O desespero eliminado a partir do ceticismo Eu conquistei o direito de criar29

Que se quebre tudo aquilo que pode se quebrar pelas nossas verdades Existem ainda muitos mundos que devem ser construiacutedos30

Admitido que algueacutem tenha uma forte vontade proacutepria uma filosofia ceacutetica eacute a melhor alternativa para colocar em ato a sua vontade da melhor forma possiacutevel31

Aleacutem disso apenas se seguirmos o efetivo papel

do ceticismo no periacuteodo central podemos entatildeo compreender o que acontece no uacuteltimo periacuteodo da obra nietzschiana em que o elemento do ceticismo volta a ocupar novamente uma posiccedilatildeo central exatamente como nos primeiros anos Um retorno que agrave primeira vista poderia parecer surpreendente De Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia assistimos de fato a um crescendo de certeza de assertividade que atinge o seu aacutepice com o Zaratustra O proacuteprio Zaratustra eacute o anunciador das duas grandes afirmaccedilotildees do eterno retorno e do Uumlbermensch

Mas inesperadamente em uma paacutegina do Anti-Cristo encontramos a seguinte frase

28 FW sect 51 29 FP 6 [2] inverno de 1882-83 OFN VII 1I p 220 30 FP 11 [16] junho-julho de 1883 OFN VII 1II p 39 31 FP 15 [50] veratildeo-outono de 1883 VII 1II p 153

Nietzsche e o ceticismo 219

Natildeo nos deixemos induzir ao erro os grandes espiacuteritos satildeo ceacuteticos Zaratustra eacute um ceacutetico Um espiacuterito que almeja algo de grandioso e que quer tambeacutem os meios para obtecirc-lo eacute necessariamente um ceacutetico32

Terminado o Zaratustra parecia ter chegado o ldquoperiacuteodo da minha grande colheitardquo isto eacute noacutes esperariacuteamos um resumo dos resultados alcanccedilados e que Nietzsche pudesse continuar sua trajetoacuteria escrevendo uma accedilatildeo de reforccedilo e de aprofundamento do que conquistara mas ao contraacuterio assistimos a um retorno a temas e a problemas do passado muitos dos quais satildeo inerentes a Humano demasiado humano e ateacute mesmo a O nascimento da trageacutedia O ceticismo pertence a esses temas que se reapresentam sob as faacutecies que pareciam ter sido deixadas para traacutes

5 Nesse desdobramento dois elementos satildeo decisivos em geral o peso de uma circunstacircncia que a criacutetica ainda natildeo reconheceu como fundamental no percurso nietzschiano Nietzsche devido aos contrastes com seu editor Schmeitzner foi obrigado a retomar todos os escritos precedentes fato que o levou entre o veratildeo de 1885 ao outono de 1886 a escrever novos prefaacutecios para o primeiro e para o segundo volume de Humano demasiado humano para Aurora e A Gaia ciecircncia acrescentando a essa uacuteltima uma quinta parte e a escrever o Tentativo de auto-criacutetica para O nascimento da trageacutedia

No que concerne por sua vez ao especiacutefico retorno em primeiro plano do elemento ceacutetico acrescenta-se a isso o papel exercido por uma fonte precisa o estudo da obra Les sceptiques grecs de Victor Brochard (1887) que Nietzsche leu poucos meses depois da sua publicaccedilatildeo (ele comenta o fato em Ecce Homo33) estimulado inicialmente pelo fato de que Brochard citava os seus escritos da juventude Dessa leitura possuiacutemos

32 AC sect 54 33 EH ldquoPorque sou tatildeo esclarecidordquo sect 3

220 Eacutetica e filosofia poliacutetica

muitas anotaccedilotildees que se concentram de forma particular na figura do pai do ceticismo antigo Pirro de Eacutelis

Nesta sede natildeo podemos realizar uma anaacutelise pontual dessas anotaccedilotildees mas para exemplificar a sua relevacircncia note-se a constante ligaccedilatildeo que Nietzsche institui entre o fenocircmeno de Pirro e dois filosofemas absolutamente centrais na uacuteltima fase da sua produccedilatildeo o conceito de deacutecadence e sobretudo o de niilismo Para Nietzsche o ceticismo antigo foi o resultado de uma especiacutefica eacutepoca de deacutecadence que subseguiu agrave morte de Alexandre em que a verdade se viu desmembrada nas disputas entre as filosofias helecircnicas ldquoA filosofia antiga de Soacutecrates em diante tem as estigmas da deacutecadence moralismo e felicidade Veacutertice Pirrordquo34

Pirro e o ceticismo fazem parte portanto da decadecircncia mas ao mesmo tempo satildeo tambeacutem exceccedilotildees dela frutos da deacutecadence mas tambeacutem oposiccedilatildeo a ela

O saacutebio cansaccedilo Pirro [] Um budista para a Greacutecia que cresceu no tumulto das escolas ele chegou tarde cansado protesto do cansado contra o zelo dos dialeacuteticos o natildeo acreditar de quem estaacute cansado na importacircncia das coisas35

Os verdadeiros filoacutesofos gregos satildeo aqueles que vecircm antes de Soacutecrates com Soacutecrates algo muda [] Em seguida eu vejo uma uacutenica figura original um retardataacuterio mas necessariamente o uacuteltimo o niilista Pirro ele aguccedilou seu instinto contra tudo aquilo que estava em voga os socraacuteticos Platatildeo36

A insistecircncia com a qual Nietzsche diz que Pirro eacute

um niilista nos permite formular a seguinte hipoacutetese que possui por sua vez algumas consequecircncias isto eacute que o

34 FP 14 [87] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 55 35 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 36 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

Nietzsche e o ceticismo 221

ceticismo pode ser uma fonte peculiar da conceitualizaccedilatildeo nietzschiana do niilismo Sabemos que esse termo comeccedila a ser utilizado com insistecircncia a partir de 1887 e ainda mais no decorrer de 1888 contemporaneamente isto eacute ao retorno em primeiro plano do ceticismo Aleacutem disso se o niilismo entrou no vocabulaacuterio nietzschiano tardiamente e principalmente graccedilas a Bourget vimos tambeacutem que o ceticismo pelo contraacuterio pertence agrave bagagem filosoacutefica de Nietzsche desde os tempos dos seus estudos de filologia

Mas satildeo tambeacutem caracterizaccedilotildees semelhantes que sustentam essa hipoacutetese como ldquoO ceticismo eacute uma consequecircncia da deacutecadence [] O niilismo natildeo eacute a causa mas apenas a consequecircncia loacutegica da deacutecadencerdquo37 como o ceticismo tambeacutem o ldquoperfeito niilismo eacute a consequecircncia necessaacuteria dos ideais ateacute agora cultivadosrdquo38 E ainda outro dado ainda mais importante para a presente anaacutelise tanto o ceticismo quanto o niilismo satildeo suscetiacuteveis contemporaneamente de avaliaccedilotildees especularmente opostas O niilismo pode ser o sinal de fato tanto de um exaurimento existencial como tambeacutem pelo contraacuterio pode ser sinal de forccedila e de sauacutede sinal isto eacute da capacidade conquistada de renunciar aos tradicionais dispositivos garantidores de sentido No primeiro caso Nietzsche fala de ldquoniilismo passivordquo dos ldquofracosrdquo ou ldquoincompletosrdquo no segundo caso ele fala de niilismo ldquoda completuderdquo ou ldquodos fortesrdquo

Sob a mesma duacuteplice perspectiva ele vecirc o ceticismo Existe um ceticismo do ldquocansaccedilordquo do ldquoexaurimentordquo e um ceticismo que nasce ao contraacuterio da ldquoforccedilardquo um

ceticismo viril [] uma espeacutecie diferente e mais vigorosa de ceticismo [] esse ceticismo despreza e natildeo menos por isso atrai a si mesmo escava e toma

37 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 38 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

222 Eacutetica e filosofia poliacutetica

posse natildeo acredita em nada mas natildeo se perde nisso oferece ao espiacuterito uma liberdade perigosa39

Mais uma vez o que marca a diferenccedila entre os

dois tipos de niilismo e de ceticismo eacute exatamente o fato de consideraacute-los como fins em si mesmos como resultados teoreacuteticos conclusivos ou entatildeo apenas como simples meios para construir uma positividade alternativa em relaccedilatildeo agravequilo que mediante o niilismo e o ceticismo eacute negado e para este segundo tipo Nietzsche deu o nome de ldquotentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo

6 Eacute possiacutevel discutir se essa tentativa foi bem-sucedida ou se ao contraacuterio faliu O proacuteprio Nietzsche na verdade deixa uma indicaccedilatildeo que natildeo deve ser subestimada quando em uma das suas uacuteltimas anotaccedilotildees escreveu ldquonaufragium feci bene navigavirdquo40 E sem duacutevidas eacute possiacutevel nos questionar sobre o que Nietzsche deixou depois da implacaacutevel campanha contra a verdade inaugurada em Para aleacutem do bem e do mal e que nos anos finais provocou um verdadeiro dominoacute ceacutetico em que caiacuteram um depois do outro os conceitos de metafiacutesica de loacutegica de causa e efeito de mateacuteria de sujeitoobjeto de sujeito conhecedor ndash isto eacute todos os criteacuterios tradicionais da verdade Ainda mais eacute liacutecito nos questionar se as alternativas agraves quais ele acena como a Vontade de potecircncia o binocircmio forccedilafraqueza a Rangordnung o Zuumlchtung satildeo realmente alternativas capazes de gerar frutos na igual medida daquilo que foi extirpado Montinari por exemplo responde negativamente

Se procurarmos as razotildees do falimento do conjunto da tentativa filosoacutefica de Nietzsche parece-nos que podemos apontar o seu principal e decisivo motivo Para Nietzsche a existecircncia da filosofia enquanto

39 JGB sect 209 40 FP 16 [44] primavera-veratildeo de 1888 OFN VIII 3

Nietzsche e o ceticismo 223

atividade teoreacutetica natildeo se sustentava mais de nenhuma forma pois a histoacuteria tomou o seu lugar como ele mesmo diz O sucessor do filoacutesofo deveria ter sido um legislador e a ambiccedilatildeo de Nietzsche o objetivo da sua ldquotransvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo eacute dar agrave humanidade uma lei nova A filosofia como histoacuteria eacute a pars destruens do pensamento do uacuteltimo Nietzsche (anaacutelise do niilismo europeu destruiccedilatildeo da foacutermula metafiacutesica ldquomundo verdadeirordquo anticristianismo) Na passagem agrave construccedilatildeo Nietzsche vecirc-se emaranhado na contradiccedilatildeo insoluacutevel entre o seu ceticismo extremo a sua luta contra qualquer convicccedilatildeo e a necessidade de ldquolegiferarrdquo41

Mas querendo ou natildeo concordar com uma

semelhante anaacutelise e devendo sempre de qualquer forma considerar que a filosofia de Nietzsche eacute uma filosofia incompleta ou seja interrompida subitamente durante uma frase de criaccedilatildeo plena ateacute os primeiros dias de janeiro de 1889 o ponto central que emerge da anaacutelise da presenccedila do ceticismo na filosofia de Nietzsche eacute que por mais que ele tenha aberto espaccedilo agrave negaccedilatildeo da duacutevida filosoacutefica e ao radicalismo criacutetico ele sempre rejeitou explicitamente e com grande forccedila conceder ao ceticismo a uacuteltima palavra Eacute a partir desse ponto de vista que devemos ler a sua tentativa tardia de frente ao alargamento do ceticismo que lhe resultou sempre mais incontrolaacutevel de recuperar aquilo que durante a juventude tinha sido o seu plano alternativo capaz de criar uma afirmaccedilatildeo que se tornou impossiacutevel ao contraacuterio por um caminho gnosioloacutegico isto eacute o plano esteacutetico a arte

Ainda que ele se encontrasse em um panorama diferente em relaccedilatildeo aos anos da juventude um panorama antirromacircntico e antiwagneriano o uacuteltimo Nietzsche voltaraacute a dizer como durante a juventude

41 M Montinari Che cosa ha detto Nietzsche [1975] (org) G

Campioni Adelphi Milano 1999 pp 150-151

224 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquouma justificaccedilatildeo do mundo eacute possiacutevel apenas esteticamenterdquo42 ldquosoacute a consciecircncia artiacutestica [concede] a liberdade do que eacute lsquoverdadeirorsquo e do que eacute lsquofalsorsquordquo43 e ldquoa arte tem mais valor do que a verdaderdquo44 uma vez que ldquoa verdade natildeo eacute algo que existe e que precisa ser descoberta mas algo que deve ser criadordquo45

Natildeo poderiacuteamos compreender de outra forma porque o projeto do Wille zur Macht devia iniciar com ldquoa vontade de potecircncia como arterdquo nem tampouco por que a uacuteltima fase de Nietzsche insista de forma tatildeo dura contra um Wagner que agrave essa altura jaacute natildeo estava mais vivo assim como por que dois dos seus uacuteltimos textos satildeo O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner Procurar na arte e na esteacutetica um plano alternativo ao ceticismo teoreacutetico o ldquocontra-movimentordquo ao niilismo foi o uacuteltimo experimento intelectual com o qual a filosofia de Nietzsche se interrompeu E falando de experimento devem ser relembradas as palavras que ele escreveu em Para aleacutem do bem e do mal

Admitindo portanto que na imagem dos filoacutesofos do futuro uma caracteriacutestica qualquer nos permita adivinhar que eles deveratildeo talvez ser ceacuteticos [] dessa forma natildeo teriacuteamos designado senatildeo um determinado aspecto desses filoacutesofos ndash e natildeo eles mesmos Com o mesmo direito eles poderiam ser chamados criacuteticos e sem duacutevidas seratildeo homens experimentadores46

Pela anaacutelise da relaccedilatildeo que Nietzsche

desenvolveu com a filosofia ceacutetica pelo uso que ele fez dela pela interpretaccedilatildeo que ele nos forneceu dos seus

42 FP 2 [110] outono de 1885 ndash outono de 1886 OFN VIII 1 p 104 43 FP 2 [67] outono de 1885 ndash outono de 1886 idem p 80 44 FP 14 [21] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 19 FP 17 [3] maio ndash junho 1888 OFN VII 3 p 312 45 FP 9 [91] outono de 1887 OFN VIII p 43 46 JGB sect 210

Nietzsche e o ceticismo 225

conceitos emerge o seguinte dado se o radicalismo criacutetico eacute certamente uma componente preponderante e central do pensamento nietzschiano ele natildeo encerra em si a sua essecircncia a qual ao contraacuterio continua presente ndash com maior forccedila e muito mais difiacutecil de ser compreendida hermeneuticamente ndash mais na sua pars construens do que na pars destruens

Refletindo sobre a relaccedilatildeo entre ambas Giorgio Colli escreveu

Aquilo que Nietzsche profetizou tornou-se realidade ateacute raacutepido demais O cristianismo eacute hoje ndash como religiatildeo ndash um entulho que natildeo incomoda mais ningueacutem A idade das grandes violecircncias chegou talvez ateacute jaacute ficou para traacutes O imoralismo crescente na poliacutetica e na cultura foi assimilado em massa tornou-se um sinal distintivo da plebe O que diria Nietzsche Ele responderia que natildeo foi isso que desejou Disso noacutes podemos ter plena convicccedilatildeo47

Eis que para o inteacuterprete nietzschiano permanece

ainda hoje aberta a pergunta o que Nietzsche entatildeo queria E procurar encontrar respostas a essa questatildeo eacute talvez um dos caminhos que prometem mais frutos para continuar dando vida ao seu pensamento

47 G Colli La ragione errabonda (org) E Colli Adelphi Milano 1982

pp 121-122

226 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 227

OS ORGANIZADORES Ceacutelia Machado Benvenho eacute Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (2008) financiado pelo CNPQ na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento Possui graduaccedilatildeo em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (1994) Especialista em Administraccedilatildeo e Planejamento de Sistemas Educacionais pela UNIPAR - Universidade Paranaense (1997) e especialista em Computaccedilatildeo Aplicada ao Ensino pela Universidade estadual de Maringaacute (1998) Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia Filosofia da Educaccedilatildeo Ensino de Filosofia e Filosofia para crianccedilas Atualmente eacute professor Assistente da UNIOESTE - campus de Toledo onde atua como Coordenador de aacuterea do CCHS leciona para o curso de graduaccedilatildeo em Filosofia orienta Trabalho de Conclusatildeo de Curso e Estaacutegio Supervisionado

228 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo eacute poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico

Nietzsche e o ceticismo 229

Joseacute Francisco de Assis Dias eacute Professor Adjunto da UNIOESTE Toledo-PR professor do Mestrado em Gestatildeo do Conhecimento nas Organizaccedilotildees na UNICESUMAR pesquisador do Grupo de Pesquisa ldquoEducaccedilatildeo e Gestatildeordquo e do Grupo de Pesquisa ldquoEacutetica e Poliacuteticardquo da UNIOESTE CCHS Toledo-PR Doutor em Direito Canocircnico pela Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Cidade do Vaticano Roma Itaacutelia Doutor em Filosofia tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Mestre em Direito Canocircnico tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Mestre em Filosofia pela mesma Pontifiacutecia Universidade Especialista em Docecircncia no Ensino Superior pela UNICESUMAR Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo ndash RS Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciecircncia Tecnologia e Inovaccedilatildeo (ICETI) E-mail jfad_brhotmailcom

230 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Joseacute Luiz Giombelli Mariani eacute acadecircmico do terceiro

ano do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade

Estadual do Oeste do Paranaacute bolsista do Programa

Institucional de Bolsa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)

vinculado a CAPESMEC Cursou trecircs semestres do

curso de Filosofia da Faculdade Palotina (FAPAS) de

Santa Maria ndash RS Participou como organizador da XIX

Semana Acadecircmica de Filosofia evento organizado pelo

Centro Acadecircmico de Filosofia Atualmente desenvolve

pesquisa na aacuterea de Eacutetica e Filosofia Poliacutetica com o

tema ceticismo na Reforma Protestante com o pensador

Montaigne orientado pelo Professor Dr Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo (UNIOESTE) Participa como membro do

Diretoacuterio do Centro Acadecircmico de Filosofia da

Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute ocupando o

cargo de Coordenador Geral

Nietzsche e o ceticismo 231

Wilson Antonio Frezzatti Jr eacute professor associado dos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo (mestradodoutorado) em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) Professor colaborador do Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute (UEM) Coordenador do GT-Nietzsche (ANPOF) Membro do Groupe Internationale de Recherche sur Nietzsche (GIRN) do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN-USP) e do Grupo de Pesquisa Filosofia Ciecircncia e Natureza na Alemanha do seacuteculo XIX (UNIOESTE) Autor dos livros Nietzsche contra Darwin (2001 1ordf ed 2014 2ordf ed) e A Fisiologia de Nietzsche a Superaccedilatildeo da Dualidade CulturaBiologia (2006)

232 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 233

234 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Page 3: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento

4 Eacutetica e filosofia poliacutetica

IMAGEM DA CAPA httpscafilunioestedotcomfileswordpresscom201605banner-60x120-1pngw=775

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr Ceacutelia Machado Benvenho

Joseacute Francisco de Assis Dias Joseacute Luiz Giombelli Mariani

(Organizadores)

EacuteTICA E FILOSOFIA POLIacuteTICA

Ceticismo em Movimento

Primeira Ediccedilatildeo E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Toledo ndash PR

2016

6 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Copyright 2016 by

Organizadores EDITORA

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL

Ademir Menin ndash UNIOESTE ndash PR Joseacute Aparecido Pereira ndash PUC-PR Joseacute Beluci Caporalini ndash UEM Lorella Congiunti ndash PUU ndash Roma

COMITEcirc CIENTIacuteFICO Dr Ceacutesar Augusto Battisti ndash UNIOESTE ndash PR Dr Clademir Luis Araldi ndash UFPel ndash Pelotas ndash RS Dr Claudinei Aparecido de Freitas da Silva ndash UNIOESTE ndash PR Dr Ivo da Silva Jr ndash UNIFESP ndash SP Dr Joatildeo Virgiacutelio Tagliavini ndash UFSCar ndash SP Dr Joseacute Luiz Ames ndash UNIOESTE ndash PR Dr Roberto Saraiva Kahlmeyer Mertens ndash UNIOESTE ndash PR Drordf Ester Maria Dreher Heuser ndash UNIOESTE - PR

REVISAtildeO ORTOGRAacuteFICA Prof Ademir Menin

DIAGRAMACcedilAtildeO E DESIGN Editora Vivens Ltda

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo-na-Publicaccedilatildeo (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecaacuteria CRB9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o territoacuterio na-cional Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmi-tida por qualquer forma eou quaisquer meios ou arquivada em qual-quer sistema ou banco de dados sem permissatildeo escrita da Editora

Os textos satildeo de responsabilidade exclusiva de seus autores Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Rua Pedro Lodi nordm 566 ndash Jardim Coopagro Toledo ndash PR ndash CEP 85903-510 Fone (45) 3056-5596

httpwwwvivenscombr e-mail contatovivenscombr

Eacutetica e filosofia poliacutetica ceticismo em

E84 movimento organizadores Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo[et al]ndash1 ed e-book ndash Toledo

PR Vivens 2016 232 p

Modo de Acesso World Wide Web

lthttpwwwvivenscombrgt

ISBN 978-85-92670-20-7

1 Ceticismo 2 Conhecimento e verdade 3

Filosofia francesa 3 Montaigne Michel de 1533-

1592 I Tiacutetulo

CDD 22 ed 194

SUMAacuteRIO APRESENTACcedilAtildeO I = O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE Henrique Zanelato II = MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo III = AMIZADE EM MONTAIGNE Junior Cesar Luna IV = O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O CAMINHO DA FILOSOFIA Elissa Gabriela Fernandes Sanches V = A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo Anderson Lucas dos Santos Pereira VI = O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE Joseacute Luiz Giombelli Mariani VII = VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMO ENSAIOS DE MONTAIGNE Andre Scoralick

09

13

33

71

107

137

161

179

8 Eacutetica e filosofia poliacutetica

VIII = NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE Stefano Busellato 205

APRESENTACcedilAtildeO Este livro resultou das conferecircncias proferidas

durante as Jornadas de Eacutetica amp Filosofia Poliacutetica e Metafiacutesica amp Conhecimento que realizaram em 2016 a sua 9ordf ediccedilatildeo O evento conjugado teve como principal caracteriacutestica reunir especialistas de diferentes regiotildees do Brasil que pesquisem determinado assunto autor ou problema A cada ano um docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia organiza o evento como forma de propiciar a cada nova ediccedilatildeo a discussatildeo de diferentes temas filosoacuteficos relacionados a ambas as Linhas de Pesquisa como uma forma de articulaccedilatildeo de diferentes grupos de pesquisa em atividade (Eacutetica e Filosofia Poliacutetica Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Metafiacutesica e Conhecimento Wilson Antonio Frezzatti Jr e Stefano Busellato)

Por sua vez anualmente o colegiado do curso de graduaccedilatildeo em filosofia designa um professor como coordenador da Semana Acadecircmica (Joseacute Francisco de Assis Dias) As ediccedilotildees anteriores reuniram pesquisadores de diversos Estados brasileiros e ateacute mesmo alguns do exterior Nessa oportunidade os especialistas puderam debater sobre temas bastante pontuais

Para 2016 visando pois a promover o debate em torno da questatildeo da fundamentaccedilatildeo do ceticismo a Jornada em Eacutetica e Filosofia Poliacutetica almejou estudar o legado ceacutetico em particular a leitura de Sexto Empiacuterico feita por Montaigne principal divulgador do ceticismo no iniacutecio da Idade Moderna Recorre-se a argumentos que levam agrave incerteza sobre a apreensatildeo de um conhecimento verdadeiro O procedimento de Montaigne eacute o de opor a toda razatildeo uma razatildeo igual objetivando negar o Dogmatismo e estabelecer a duacutevida radical em relaccedilatildeo agraves doutrinas que afirmam ter a verdade Como

10 Eacutetica e filosofia poliacutetica

base da sua criacutetica recorre agrave tradiccedilatildeo ceacutetica antiga advinda de Pirro e de modo particular agraves Hipotiposes Pirrocircnicas O estudo dos Ensaios constitui uma fonte inesgotaacutevel de problemas A apropriaccedilatildeo e inovaccedilatildeo montaigniana do ceticismo eacute um deles

O ceticismo eacute uma forma de pensar que nos livraria das amarras de uma racionalidade comprometida em revelar um conhecimento indubitaacutevel Mas como isso aparece nos Ensaios Por que a diaphonia ateacute agora na histoacuteria do pensamento tem se revelado invenciacutevel

Na realidade em torno do ceticismo os textos desta obra apontam trecircs pensadores que de alguma forma se articulam Santo Agostinho que passou pelo ceticismo acadecircmico e foi lido pelo pirrocircnico Montaigne Este por sua vez foi lido por Nietzsche quando ganhou de presente um exemplar dos Essais

O tema da Jornada em Metafiacutesica e Conhecimento eacute ldquoZaratustra Arte e Vidardquo De certa maneira eacute sequecircncia do tema da II Jornada (2009) ldquoZaratustra Filosofia e Vidardquo A jornada deste ano debateu com pesquisadores poacutes-graduandos graduandos e professores de filosofia do Ensino Meacutedio a relaccedilatildeo entre filosofia arte e vida partindo do eixo teoacuterico do filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche no qual a filosofia eacute expressatildeo de modos de vida

Diferentes modos de vida produzem diferentes filosofias ou seja uma determinada filosofia expressa uma determinada experiecircncia Esse tema aleacutem da importacircncia de apresentar uma perspectiva acerca da proacutepria filosofia eacute relevante para os trabalhos de pesquisa que vecircm sendo desenvolvidos no Doutorado Mestrado e Graduaccedilatildeo da UNIOESTE

Os organizadores desta obra tecircm a grata satisfaccedilatildeo de apresentar textos de estudiosos de dois autores tatildeo importantes para o pensamento filosoacutefico como eacute o caso de Montaigne e de Nietzsche Por questotildees de ordem metodoloacutegica os textos estatildeo sendo

Apresentaccedilatildeo 11

publicados em dois livros conforme a proposta das duas Jornadas

Boa leitura a todos

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr

12 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= I =

O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE

Henrique Zanelato

11 INTRODUCcedilAtildeO

Pretendemos com a presente comunicaccedilatildeo

discutir certa leitura de Michel de Montaigne1 que sugere uma ldquoevoluccedilatildeordquo em seu pensamento passando de estoico a epicurista com uma chamada ldquocrise ceacuteticardquo entre elas Tal leitura eacute proposta por Pierre Villey a quem os leitores de Montaigne devem muito devido a organizaccedilatildeo feita sobre a cronologia da obra do ensaiacutesta bem como a indicaccedilatildeo das fontes utilizadas durante os anos de composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios Montaigne teria

Mestrando e graduado em filosofia pela UNIOESTE E-mail henriquezanelatoIIhotmailcom 1 ldquoMichel Eyquem seigneur de Montaigne nasceu em 1533 filho e herdeiro de Pierre Seigneur de Montaigne (dois filhos anteriores morreram apoacutes o nascimento) Foi educado falando latim como a primeira liacutengua e sempre conservou uma disposiccedilatildeo de espiacuterito latina embora conhecesse o grego preferia usar traduccedilotildees Depois de estudar direito finalmente tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux Casou-se em 1565 Em 1569 publicou a sua versatildeo francesa de Theologia naturalis de Raymond Sebond o seu Apologie eacute apenas em parte uma defesa de Sebond em que estabelece limites ceacuteticos para o raciociacutenio humano sobre Deus o homem e a natureza Em 1571 mudou-se para suas terras em Montaigne dedicando-se agrave leitura agrave reflexatildeo e agrave composiccedilatildeo de seus Ensaios (primeira versatildeo 1580) Montaigne tinha aversatildeo ao fanatismo e agraves crueldades do periacuteodo das guerras religiosas mas apoiava a ortodoxia catoacutelica e a instituiccedilatildeo monaacuterquica Duas vezes foi eleito prefeito de Bordeaux (1581 e 1583) cargo que ocupou por quatro anos Morreu em Montaigne em 1592 enquanto preparava a ediccedilatildeo final e a mais rica de seus Ensaiosrdquo (MONTAIGNE 2010)

14 Eacutetica e filosofia poliacutetica

iniciado a composiccedilatildeo de sua obra aproximadamente em 1571 escrevendo ateacute sua morte em 1592

Um esclarecimento preacutevio eacute necessaacuterio os Ensaios se dividem em trecircs livros com capiacutetulos sobre diversos temas Aleacutem disso a obra natildeo foi publicada toda de uma vez dividindo-se em trecircs ediccedilotildees e essa distinccedilatildeo nos eacute essencial aqui a primeira ediccedilatildeo surgiu em 1580 na qual os dois primeiros livros foram publicados em 1588 a obra ganhou mais um livro aleacutem de acrescentar vaacuterios acreacutescimos aos dois primeiros posteriormente a 1588 uma nova publicaccedilatildeo surge com novos acreacutescimos Essa distinccedilatildeo eacute feita nas publicaccedilotildees atuais com algumas indicaccedilotildees [A] corresponde agrave primeira ediccedilatildeo de 1580 [B] agrave segunda e [C] agrave terceira

Nosso intento ao discutir essa proposta evolutiva teraacute como foco a primeira ediccedilatildeo da obra ou seja com os textos de 1572 segundo os quais se diz que Montaigne teria adotado uma postura estoica Para isso faremos a comparaccedilatildeo desses primeiros textos com textos mais tardios bem como a comparaccedilatildeo com a literatura ceacutetica a fim de procurar elementos que confirmem ou rejeitem essa hipoacutetese de Villey de que Montaigne teria abandonado o estoicismo depois do contato com as obras ceacuteticas receacutem descobertas no Renascimento

A pesquisa sobre Montaigne deve muito ao estudo de Villey As fontes e a evoluccedilatildeo dos Ensaios de Montaigne publicado em 1908 lanccedilou uma importante luz sobre a obra do ensaiacutesta

[] vasto estudo que investiga fontes referecircncias e citaccedilotildees contextualiza historicamente os temas e propotildee uma cronologia para a composiccedilatildeo da obra de Montaigne Com este estudo Villey consolidou uma nova e fecunda leitura dos Ensaios em que se desenha sua coerecircncia Durante alguns seacuteculos aceitou-se a foacutermula de que os Ensaios eram obra fragmentaacuteria coleccedilatildeo de citaccedilotildees uma conversa

O problema do ceticismo 15

despretensiosa com o leitor na qual o acaso construiacutea o discurso (VASCONCELLOS 2000 p XI)

Aleacutem disso Montaigne natildeo organizou os capiacutetulos

segundo a ordem de composiccedilatildeo deles nos deixando no escuro ateacute Villey sobre a data da escrita de cada um deles Todas as datas que aparecem no iniacutecio dos capiacutetulos satildeo sugeridas por Villey de acordo com os temas sobre os quais Montaigne escrevia ou sobre as referecircncias feitas pelo ensaiacutesta a determinada obra ou sobre algum evento histoacuterico citado por ele Assim devemos salientar que a precisatildeo nas datas eacute apenas aproximada jaacute que sugeridas mais de 300 anos depois

Durante seu trabalho de investigaccedilatildeo Villey encontrou certa coerecircncia numa leitura que sugere uma evoluccedilatildeo no pensamento de Montaigne de acordo com as influecircncias que sofrera em suas leituras Assim propotildee que

[] Montaigne nos vinte anos em que se dedicou agrave composiccedilatildeo dos Ensaios fez um percurso filosoacutefico Em linhas gerais sua hipoacutetese eacute a de que a princiacutepio estreitamente marcado pelo estoicismo de Secircneca Montaigne teria exercitado o gecircnero literaacuterio conhecido como leccedilons (compilaccedilatildeo da filosofia dos antigos coletacircnea de exemplos e maacuteximas morais) Seus primeiros ensaios portanto na esteira das leccedilons seriam bastante impessoais O rigor deste gecircnero segundo Villey foi abrandado com a leitura das Obras morais de Plutarco que lhe permitiu uma moralidade mais amena introduzindo ao texto juiacutezos pessoais Contudo o ensaio como gecircnero literaacuterio soacute surgiria apoacutes a leitura de Sexto Empiacuterico cujo ceticismo possibilitou ao ensaiacutesta ponderar sobre a vaidade da razatildeo humana e as dificuldades de qualquer conhecimento que se aventure aleacutem dos limites do proacuteprio sujeito Viria daiacute a ecircnfase dada agrave expressatildeo de si mesmo os ensaios caracterizando-se por constituiacuterem a realizaccedilatildeo de um auto-retrato De modo

16 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que inicialmente estoico Montaigne apoacutes a crise ceacutetica teria finalmente aderido ao epicurismo ou filosofia da natureza filosofia ldquoque se contenta em regular em vez de combatecirc-los os instintos naturais a que ela abandona o homemrdquo (VASCONCELLOS 2000 p XII)

A partir dessa proposta de Villey e de alguns

trabalhos que vecircm questionando tal leitura nos propomos a investigar em que medida essa tese evolutiva se sustenta jaacute que julgamos encontrar elementos que colocam em xeque tanto um apelo totalmente estoico no iniacutecio da obra quanto um totalmente epicurista no fim dela Para isso faremos a anaacutelise de alguns capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 comparando-os com a Apologia de Raymond Sebond capiacutetulo no qual Montaigne trabalha o ceticismo de modo mais expliacutecito Faremos algumas indicaccedilotildees tambeacutem sobre alguns capiacutetulos do terceiro livro tidos como epicuristas a fim de questionar o abandono do ceticismo por Montaigne depois da ldquocrise ceacuteticardquo

Entre os capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 dois deles nos parecem fornecer alguns elementos para pontuar certa fragilidade na tese de que Montaigne teria adotado o estoicismo nesse periacuteodo Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32) e Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37) Mesmo que seja possiacutevel identificar alguns capiacutetulos com temas estoicos bem como vaacuterias citaccedilotildees e referecircncias agrave essa escola Secircneca principalmente natildeo podemos deixar de notar em outros capiacutetulos uma visiacutevel inconsistecircncia entre a confianccedila na razatildeo aspecto marcante do estoicismo e certos juiacutezos de Montaigne

Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32)

Este ensaio estaacute ao que parece relacionado estritamente com um tema contemporacircneo a Montaigne

O problema do ceticismo 17

a Reforma Protestante Tal tema eacute debatido em diversos momentos da obra montaigniana obtendo grande destaque naquele que eacute talvez o mais ceacutelebre de seus ensaios a Apologia de Raymond Sebond A Apologia eacute um dos textos mais discutidos pelos estudiosos do autor francecircs principalmente no que se refere ao ceticismo o deixaremos de lado aqui por se tratar de um ensaio posterior ao contato de Montaigne com a obra de Sexto Empiacuterico principal fonte para os estudos ceacuteticos O que nos interessa agora eacute uma anaacutelise do trigeacutesimo segundo ensaio do Livro I que segundo a nota introdutoacuteria de Villey estaria situado no comeccedilo da composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios

Este capiacutetulo foi composto poucos meses apoacutes a vitoacuteria de Dom Joatildeo da Aacuteustria em Lepanto (outubro de 1571) Um empreacutestimo tomado dos Annales drsquoAquitaine de Jean Bouchet tambeacutem atesta que ele eacute de aproximadamente 1572 (VILLEY 2000 p 321)

Outro aspecto digno de nota sobre este ensaio eacute

que a maior parte do texto compotildee a camada A ou seja a camada da primeira ediccedilatildeo do livro de 1580 Cremos portanto que I 32 contenha algo sobre o modo de pensar de Montaigne do iniacutecio de sua obra Dito isso passemos pois ao texto

Notamos desde as primeiras palavras de Montaigne o assunto do ensaio a facilidade de se falar das coisas desconhecidas Tal facilidade se deve em grande medida ao fato de que tais assuntos por natildeo serem comuns agrave experiecircncia ou agrave reflexatildeo popular natildeo sejam facilmente contrariados e muito menos refutados

[C] Por causa disso diz Platatildeo eacute muito mais faacutecil satisfazer ao falar da natureza dos deuses do que da natureza dos homens porque a ignoracircncia dos ouvintes abre um belo e amplo caminho e toda a

18 Eacutetica e filosofia poliacutetica

liberdade para o manejo de uma mateacuteria secreta (I 32 322)

O desconhecido eacute segundo ele ldquoo verdadeiro

campo e assunto da imposturardquo e todos os que se ocupam dele satildeo contadores de faacutebulas ldquocomo alquimistas prognosticadores astroacutelogos quiromantes meacutedicosrdquo Montaigne entatildeo soma a esses aqueles que parecem ser o alvo de sua criacutetica apesar de se mostrar receoso quanto a isso

A ele eu acrescentaria de bom grado se ousasse um bando de pessoas inteacuterpretes e controladores habituais dos desiacutegnios de Deus que tecircm a pretensatildeo de descobrir as causas de cada acontecimento e ver nos segredos da vontade divina os incompreensiacuteveis motivos de suas obras (I 32 322)

Notamos aqui uma comparaccedilatildeo entre

ldquoimpostores e contadores de faacutebulasrdquo com ldquoos inteacuterpretes da vontade de Deusrdquo e entre ldquoas coisas desconhecidasrdquo com ldquoas causas de cada acontecimento e os segredos da vontade divinardquo Apesar de se afirmar como catoacutelico em diversos ensaios (mesmo que isso seja motivo de discussatildeo entre os inteacuterpretes) Montaigne se posiciona contra alguns haacutebitos comuns agrave cristandade da eacutepoca ldquoMas considero mau o que vejo em uso de procurar firmar e apoiar nossa religiatildeo no sucesso e prosperidade de nossos empreendimentosrdquo (I 32 323) Sua criacutetica eacute entatildeo direcionada agravequeles cristatildeos sejam eles catoacutelicos ou protestantes que tentam justificar a legitimidade de suas reinvindicaccedilotildees pelos acontecimentos

[] nas guerras em que estamos pela religiatildeo os que levaram vantagem no confronto de Rochelabeille festejando muito a ocorrecircncia e servindo-se dessa boa fortuna para garantir a aprovaccedilatildeo de seu partido quando depois vecircm a desculpar seus infortuacutenios de

O problema do ceticismo 19

Mont-Contour e de Jarnac como sendo varas e castigos paternos (I 32 323)

O confronto de Rochelabeille segundo a nota

ocorreu em maio de 1569 e deu vantagem aos protestantes As outras duas Mont-Contour e Jarnac ocorridas em outubro e marccedilo de 1569 respectivamente favoreceram os catoacutelicos Assim Montaigne chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de justificar a escolha pelo partido catoacutelico ou protestante a partir da argumentaccedilatildeo baseada nas vitoacuterias das batalhas empreendidas de um contra o outro

Outro exemplo oferecido por Montaigne para mostrar a dificuldade de ajustar os eventos histoacutericos se refere agraves mortes semelhantes de algumas personalidades que tiveram relaccedilotildees diferentes com Deus

E quem quisesse justificar que Aacuterio e Leatildeo seu papa principais chefes daquela heresia em eacutepocas diversas tenham morrido de mortes tatildeo parecidas e tatildeo estranhas (pois afastando-se do debate por dor de barriga para ir agrave privada laacute ambos entregaram subitamente a alma) e exagerar essa vinganccedila divina pela circunstacircncia do lugar ainda poderia bem acrescentar-lhe a morte de Heliogaacutebalo que tambeacutem foi morto em uma retreta Mas ora Ireneu viu-se envolvido pela mesma fortuna (I 32 323-324)

A heresia a que Montaigne se refere

aproximando dos dois primeiros nomes eacute o arianismo2 Heliogaacutebalo foi um ldquoimperador romano de origem siacuteria cujo reinado se caracterizou pelos excessos de todo tipo introduziu em Roma o culto a Baal de que era sacerdote na Siacuteriardquo3 O outro foi ldquoSanto Ireneu padre e doutor da

2 O arianismo foi uma linha de pensamento que negava a consubstanciaccedilatildeo de Cristo Para ela Cristo natildeo seria eterno como o Pai mas uma criatura dele 3 Cf nota 10 deste capiacutetulo dos Ensaios na paacutegina 324

20 Eacutetica e filosofia poliacutetica

igreja bispo de Lyon morto no iniacutecio do seacutec IIIrdquo4 A intenccedilatildeo eacute a mesma dos exemplos anteriores Como poderia algueacutem conciliar exemplos de figuras tatildeo opostas Dizer que Deus teria se utilizado de castigo tatildeo peculiar para punir os primeiros seria ateacute aceitaacutevel mas por que um homem santo teria destino semelhante Ou para os primeiros exemplos Deus seria ora protestante ora catoacutelico Seria ele arbitraacuterio em suas decisotildees

Apesar de tantos acontecimentos apontarem contra o que argumentam ldquonatildeo deixam entretanto de perseguir sua bola e com o mesmo laacutepis pintar o preto e o brancordquo ldquovendem duas vezes o mesmo trigo e com a mesma boca sopram o quente e o friordquo Eacute faacutecil ao leitor perceber o quanto tudo isso eacute fraacutegil e Montaigne alerta para o perigo de que na falta de sucessos o povo acabe por ter sua feacute abalada ou por perdecirc-la

Em um acreacutescimo da uacuteltima ediccedilatildeo drsquoOs Ensaios ele afirma

[C] Deus querendo ensinar-nos que os bons tecircm outra coisa a esperar e os maus outra coisa a temer aleacutem das venturas ou desventuras deste mundo maneja-as e aplica-as de acordo com seu comando secreto e priva-nos dos meios de nos aproveitarmos tolamente delas E satildeo logrados os que querem se prevalecer disso segundo a razatildeo humana Nunca datildeo uma estocada sem receberem duas Santo Agostinho daacute uma bela prova disso contra seus adversaacuterios Eacute um conflito que se decide pelas armas da memoacuteria mais do que pelas da razatildeo (I 32 324)

Seria o vencedor da disputa aquele que

conhecesse mais exemplos ou que fosse mais capaz de moldaacute-los de acordo com sua causa para convencer os ouvintes Pois pelo que parece ou as coisas natildeo acontecem com base em um criteacuterio uacutenico e imutaacutevel ou ele nos eacute totalmente desconhecido Assim se uma

4 Cf nota seguinte na mesma paacutegina

O problema do ceticismo 21

batalha eacute vencida por um ou outro partido natildeo eacute porque Deus apoie a sua causa ou se algueacutem morre de modo natildeo tatildeo convencional natildeo seria isso motivo para julgar essa morte como um castigo

O que podemos notar eacute que Montaigne tem consciecircncia da facilidade com a qual eacute possiacutevel distorcer os fatos adequando-os bem ou mal com a nossa causa principalmente quando se trata de um assunto pouco comum Certa maleabilidade da razatildeo eacute reconhecida por ele A religiatildeo natildeo podendo ser fundamentada pela razatildeo deve procurar outra base sobre a qual se assentar A sugestatildeo de Montaigne para os assuntos de religiatildeo eacute que cada um tenha feacute evitando justificaacute-la com bases que natildeo satildeo capazes de tanto

[A] A um cristatildeo basta acreditar que todas as coisas vecircm de Deus recebecirc-las reconhecendo sua divina e inescrutaacutevel sabedoria e por conseguinte aceitaacute-las de bom grado sob qualquer feiccedilatildeo que lhe sejam enviadas [] Nossa crenccedila tem muitos outros fundamentos sem a legitimar pelos acontecimentos (I 32 322-323)

Natildeo queremos adentrar na questatildeo da defesa da

religiatildeo catoacutelica por Montaigne ou na conciliaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o ceticismo discutida na Apologia e motivo de controveacutersias entre os comentadores O que nos interessa eacute destacar a fragilidade e impotecircncia da razatildeo quando tentada a justificar os misteacuterios divinos preferindo confiar agrave sabedoria de Deus a razatildeo de todos os acontecimentos pois ldquoeacute difiacutecil ajustar as coisas divinas agrave nossa balanccedila sem que elas sofram diminuiccedilatildeordquo (I 32 323)

Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37)

Este ensaio apesar de Villey natildeo concluir com certeza eacute considerado por ele como datado aproximadamente de 1572 com base em outros textos

22 Eacutetica e filosofia poliacutetica

em que Montaigne insere exemplos retirados das mesmas fontes5 Eacute curto assim como o analisado anteriormente e embora apresente mais acreacutescimos das ediccedilotildees posteriores acreditamos ter uma quantidade razoaacutevel de elementos da primeira camada para nos basearmos

Ele inicia-se com uma reflexatildeo sobre trecircs exemplos nos quais o vencedor de uma batalha chora a morte de seu inimigo

[A] [] Antiacutegono ficou muito desgostoso com seu filho por lhe ter apresentado a cabeccedila do rei Pirro seu inimigo que naquele mesmo momento acabara de ser morto em combate contra ele e que tendo-a visto pocircs-se a chorar fortemente e que o duque Reneacute de Lorena tambeacutem lamentou a morte do duque Carlos de Borgonha que acabara de derrotar e acompanhou enlutado seu enterro e que na batalha de Auray que o conde de Montfort venceu contra Charles de Blois seu adversaacuterio para o ducado de Bretanha o vitorioso ao encontrar o corpo de seu inimigo morto demonstrou grande pesar (I 38 348-349)

Montaigne posiciona-se com isso contrariamente

aos versos de Petrarca e Lucano que insere logo a seguir6 Apesar de considerar verdadeira a motivaccedilatildeo e a

5 ldquoSomos tentados a admitir aliaacutes sem razotildees decisivas que este capiacutetulo foi composto por volta de 1572 De fato podemos supor que os capiacutetulos XXXVIII XLI XLIV XLV XLVII satildeo contemporacircneos pois todos eles colocados a pouca distacircncia uns dos outros foram sugeridos por exemplos extraiacutedos da mesma obra ndash as Vidas de

Plutarco ndash e apresentam notaacuteveis analogias de estrutura Ora como os capiacutetulos XLI e XLVII satildeo de 1572 eacute possiacutevel que todo o grupo seja da mesma eacutepocardquo (VILLEY 2000 p 348) 6 ldquoE assim a alma encobre suas paixotildees sob uma aparecircncia contraacuteria sob um semblante ora jubiloso ora sombriordquo (Petrarca soneto LXXXI ediccedilatildeo de 1550 soneto CXXXII) ldquoEle pensou assim que podia sem risco manifestar sentimentos de sogro derramou laacutegrimas forccediladas e extraiu gemido de um coraccedilatildeo jubilosordquo (Lucano IX 1037) Notas 2 e 3 do ensaio paacutegina 349

O problema do ceticismo 23

vontade de vencer a batalha o autor francecircs natildeo vecirc contradiccedilatildeo nem falsidade como sugere o poeta citado na atitude de pranto e pesar dos vencedores Soma entatildeo aos trecircs primeiros o exemplo de Ceacutesar que apesar de estar em guerra contra Pompeu ldquodesviou os olhos como de um espetaacuteculo vil e desagradaacutevelrdquo quando lhe apresentaram a cabeccedila deste E assim como de Petrarca discorda de Lucano que cita em seguida pois natildeo entende como fingidas as laacutegrimas de Ceacutesar tendo em vista que aleacutem de sogro de Pompeu ambos durante muito tempo haviam vivido em harmonia fazendo vaacuterias alianccedilas ldquono manejo dos assuntos puacuteblicosrdquo

O que Montaigne chama a atenccedilatildeo eacute para o fato de que natildeo somos constantes em nosso agir tema este que estaacute presente em alguns outros ensaios Por mais que sejamos conhecidos por uma qualidade ela seja qual for natildeo pode ser a uacuteltima palavra a nosso respeito pois nada impede que o mais corajoso dos homens seja invadido pela covardia em algum caso Pois

Assim como em nossos corpos dizem que haacute uma reuniatildeo de diferentes humores cujo senhor eacute o que comanda mais habitualmente em noacutes segundo nosso temperamento tambeacutem em nossas almas embora haja diversos movimentos que a agitam no entanto eacute preciso que haja um que domine o campo Mas natildeo com uma superioridade tatildeo absoluta que devido agrave volubilidade e maleabilidade da nossa alma os mais fracos ocasionalmente natildeo retomem a praccedila e por sua vez natildeo faccedilam um breve ataque (I 38 350)

Em adiccedilotildees posteriores Montaigne oferece o

proacuteprio exemplo para reforccedilar a ideia Censurar seu criado com palavras duras natildeo o impede de ldquopassada essa explosatildeordquo ajudaacute-lo quando precise mesmo que seja logo em seguida ldquono mesmo instante viro a paacuteginardquo Tambeacutem afirma que ningueacutem poderia julgar falso seu

24 Eacutetica e filosofia poliacutetica

semblante em relaccedilatildeo agrave sua mulher ldquoora frio ora amorosordquo (I 38 351)

A paacutegina seguinte depois de mais alguns exemplos (Nero e Xerxes) leva-nos para a conclusatildeo ponto que queremos destacar qual o motivo de termos sentimentos e atitudes diferentes perante a mesma coisa ou fato se natildeo eacute falsidade O que Montaigne percebe eacute que nada tem apenas um ponto de vista e que mesmo noacutes olhamos a mesma coisa de modos diferentes

[A] Embora tenhamos perseguido com vontade resoluta a vinganccedila de uma ofensa e sentido um extraordinaacuterio contentamento pela vitoacuteria entretanto choramos Natildeo eacute por isso que choramos nada mudou mas nossa alma encara a coisa com outros olhos e representa-a com outra feiccedilatildeo pois cada coisa tem vaacuterias perspectivas e vaacuterios aspectos (I 38 352)

A inconstacircncia aparece deste modo como algo

presente no homem por mais que se queira defini-lo de modo definitivo Natildeo somente que os homens sejam afetados de modos diferentes (ateacute o mesmo homem neste caso) pela mesma coisa mas que a mesma atitude tenha consequecircncias diferentes satildeo temas discutidos pelo ensaiacutesta em outros lugares7 Para Montaigne ldquoao querermos fazer de toda esta sequecircncia um corpo uno enganamo-nosrdquo

Notamos aqui como no outro ensaio8 que eacute possiacutevel discursar de modos diferentes acerca de alguma coisa ndash mesmo que natildeo seja essa a principal preocupaccedilatildeo de Montaigne em I 38 ndash conduzindo a discussatildeo para a conclusatildeo desejada Antes era possiacutevel mesmo que um exame mais acurado apontasse suas falhas argumentar de modo a transformar algum

7 Ver tambeacutem ainda no livro I Por meios diversos chega-se ao mesmo fim O lucro de um eacute prejuiacutezo do outro Diversas decorrecircncias da mesma atitude entre outros 8 I 32

O problema do ceticismo 25

acontecimento em aviso de Deus como posicionamento a favor ou contra um partido ou atitude Agora eacute possiacutevel acusar de falsidade ou mascaramento uma accedilatildeo contraacuteria ao que empreendemos no momento ou contraacuteria ao que se julga ser nossa caracteriacutestica essencial Os versos de Petrarca e Lucano citados no texto do autor francecircs atestam isso

A partir da anaacutelise desses dois capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios partimos agora para uma comparaccedilatildeo deles com o ceticismo partindo de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero com discussotildees ceacuteticas antigas e tambeacutem do proacuteprio Montaigne em textos posteriores principalmente a Apologia

De acordo com a argumentaccedilatildeo de Richard Popkin (2000) o ceticismo sofreu um esquecimento na tradiccedilatildeo filosoacutefica ficando soterrado durante todo o periacuteodo medieval onde predominou principalmente o desenvolvimento da filosofia aristoteacutelica voltada ao cristianismo No entanto no Renascimento durante as discussotildees da Reforma Protestante foram aparecendo lentamente alguns textos ceacuteticos acalorando ainda mais a discussatildeo acerca do chamado ldquocriteacuterio de feacuterdquo As fontes ceacuteticas nesse periacuteodo foram aleacutem de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero jaacute citados tambeacutem Dioacutegenes Laeacutercio que expocircs alguns elementos centrais do ceticismo aleacutem de algumas anedotas

Sexto Empiacuterico apesar de natildeo ter adicionado quase nada de original agrave doutrina ceacutetica eacute o uacutenico pirrocircnico cuja obra sobreviveu Dedicou-se principalmente em traccedilar os caminhos de seus antecessores explicando termos e argumentos de ceacuteticos mais antigos e em discutir as doutrinas dos dogmaacuteticos questionando os criteacuterios e premissas sobre as quais se construiacuteam tais escolas De acordo com Popkin Sexto ficou praticamente desconhecido durante a idade meacutedia e poucos leitores tiveram contato com seus manuscritos antes da primeira publicaccedilatildeo das

26 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Hipotiposes Pirrocircnicas uma traduccedilatildeo latina datada de 1562 Essa eacute talvez a principal obra de Sexto na qual expotildee o ceticismo pirrocircnico diferenciando-o do ceticismo acadecircmico e das demais doutrinas filosoacuteficas

Percebemos que Montaigne muito provavelmente teve acesso agrave obra de Sexto Empiacuterico visto que descreve alguns termos ceacuteticos com grande semelhanccedila no modo como o fez o meacutedico grego Aleacutem disso sabemos que Montaigne mandou gravar nas vigas de sua biblioteca algumas sentenccedilas de Sexto Segundo Villey foi aproximadamente em 1576 que a obra de Sexto teria sido conhecida pelo ensaiacutesta francecircs causando grande impacto em seu pensamento A Apologia de Raymond Sebond apesar de certa reserva de Villey teria sido escrita segundo ele entre 1576 e 1578 natildeo sendo composto todo de uma vez Eacute neste capiacutetulo tambeacutem que se encontram algumas das referecircncias mais claras ao ceticismo no qual a argumentaccedilatildeo de Montaigne eacute mais dura e nitidamente ceacutetica

Um dos aspectos principais para o qual queremos chamar a atenccedilatildeo eacute uma das consideraccedilotildees que Sexto faz acerca do ceticismo

O ceticismo eacute a capacidade de estabelecer antinomias nos fenocircmenos e nas consideraccedilotildees teoacutericas segundo qualquer um dos tropos graccedilas agraves quais nos encaminhamos ndash em virtude da equivalecircncia entre as coisas e proposiccedilotildees contrapostas ndash primeiro ateacute a suspensatildeo do juiacutezo e depois ateacute a ataraxia (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54 Itaacutelico nosso)

A ldquocapacidade de estabelecer antinomiasrdquo

aparece constantemente na obra de Sexto que as usa para contestar determinadas teses que procura contrariar Ao expor algum argumento de uma corrente filosoacutefica de sua eacutepoca o ceacutetico busca meios de por argumentos contraacuterios de antinomias refutaacute-lo

O problema do ceticismo 27

Tambeacutem encontramos esse ldquomeacutetodordquo presente na argumentaccedilatildeo do ceticismo denominado acadecircmico que aparece em alguns textos de Ciacutecero Um deles eacute notaacutevel Sobre a natureza dos deuses Nesse texto vemos uma discussatildeo como o tiacutetulo indica sobre os deuses Nela se inserem trecircs personagens Caio Veleio representante do epicurismo Luciacutelio Balbo estoico e Cota ceacutetico acadecircmico Os dois primeiros expotildeem a doutrina de cada uma de suas escolas positivamente ao passo que o ceacutetico se limita a criticar os argumentos de cada um deles

Na obra o primeiro a expor seus pensamentos eacute Veleio Apoacutes fazer uma seacuterie de consideraccedilotildees acerca do que o povo e os filoacutesofos antigos ndash preacute-socraacuteticos Platatildeo e Aristoacuteteles ndash pensavam sobre os deuses passa a argumentar sobre a teoria das divindades epicuristas De acordo com ele devemos acreditar na existecircncia dos deuses pelo fato de todos os homens terem certas ldquonoccedilotildees implantadas ou antes inatasrdquo (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 31) Tambeacutem afirma que os deuses tecircm formas humanas por ser esta a mais bela que haacute e por ser impossiacutevel que a mente que os deuses tambeacutem possuem habitasse outra forma que natildeo a humana (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 32) entre outras afirmaccedilotildees

Apoacutes a longa exposiccedilatildeo do epicurista Veleio Cota inicia seu discurso Nele depois de vaacuterias acusaccedilotildees contra Epicuro o acadecircmico passa a pontuar todos os elementos do discurso de Veleio Citemos apenas alguns segundo ele natildeo haacute como saber sobre a crenccedila de todos os povos levantando a hipoacutetese de que pode haver povos tatildeo selvagens que natildeo tenha tido nunca a ideia de qualquer deus ou mesmo os proacuteprios ateus (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 36) Algueacutem que tem a ideia de um deus natildeo poderia negaacute-lo de forma nenhuma Mostra com isso que o argumento epicurista das noccedilotildees inatas natildeo se sustenta Aleacutem disso cita outras formas tatildeo belas

28 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quanto a humana e aponta vaacuterios defeitos nela que natildeo poderiam ser admitidos para o divino Faz alusatildeo aos egiacutepcios para quem os deuses tecircm formas mistas de homens e animais (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 42)

Contra Luciacutelio Balbo que desenvolve o discurso estoico sobre o tema a argumentaccedilatildeo de Cota se desenvolve de maneira semelhante pontuando todas as afirmaccedilotildees de modo a mostrar que eacute possiacutevel qualquer que seja o argumento refutaacute-lo ou ao menos construir um oposto que o anule E essa eacute a importacircncia da criaccedilatildeo de antinomias das quais fala Sexto Empiacuterico Os argumentos opostos buscados na experiecircncia ou na dialeacutetica fazem com que o interlocutor fique sem saiacuteda pois uma vez que admita a invalidade dos argumentos ceacuteticos teraacute que confessar o mesmo para os seus por serem compostos sobre as mesmas bases

Natildeo devemos pensar no entanto que o ceacutetico admita positivamente os argumentos que formula O mesmo Cota afirma algumas vezes que por considerar o assunto difiacutecil de ser tratado natildeo pode dizer o que ou como os deuses satildeo Tambeacutem diz ter mais habilidade em reconhecer os argumentos falsos do que em formular os verdadeiros E mesmo assim o ceacutetico deve forccedilosamente reconhecer que seu argumento natildeo pode ser admitido positivamente visto que o argumento oposto do dogmaacutetico o anula tambeacutem

De todas as expressotildees ceacuteticas com efeito haacute que pressupor que natildeo nos obcecamos de que elas sejam verdadeiras posto que jaacute dissemos que podem ser refutadas por si mesmas ao estarem incluiacutedas entre aquelas que satildeo enunciadas como os purgantes entre os medicamentos natildeo apenas eliminam do corpo a doenccedila mas que tambeacutem satildeo eliminados (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 119)

O problema do ceticismo 29

Notamos que os ceacuteticos eram cientes das consequecircncias de seu modo de argumentar e entendiam que natildeo havia saiacuteda desde que essa saiacuteda significasse a adoccedilatildeo de uma das teses defendidas A uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel defendida pelos pirrocircnicos era a suspensatildeo do juiacutezo ou epocheacute De acordo com eles qualquer um que se pusesse a investigar seriamente sobre a filosofia e natildeo se deixasse levar pela precipitaccedilatildeo impressionado por alguma escola dogmaacutetica acabaria por entender que natildeo haacute criteacuterios para a adoccedilatildeo de uma ou outra tese Todas as premissas que justificariam um criteacuterio satildeo falsas ou injustificaacuteveis

Montaigne sabia disso o capiacutetulo doze do segundo livro dos Ensaios causa controveacutersias ateacute hoje sobre o sentido que o ensaiacutesta deu agrave expressatildeo Apologia de Raymond Sebond Ateacute hoje se discute os motivos de Montaigne na tentativa de defender Sebond como o tiacutetulo sugere acaba por invalidar seus argumentos9 Natildeo pensamos que esse resultado tenha sido acidental como pode parecer mas que foi resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica empreendida por ele Natildeo entraremos poreacutem nessa discussatildeo interminaacutevel

A Apologia se refere ao teoacutelogo catalatildeo Raymond Sebond escritor da obra Theacuteologie Naturelle traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Nela o teoacutelogo se propotildee a fundamentar os artigos da feacute atraveacutes da razatildeo afirmando entre outras coisas que o homem ocupa o topo da escala dos seres acima de todos os outros animais e que eacute o fim e propoacutesito da criaccedilatildeo razatildeo da existecircncia de toda a criaccedilatildeo O objetivo de Montaigne com a Apologia eacute ldquoaliviar seu livro de duas objeccedilotildees principais que lhe satildeo feitasrdquo (II 12 163) A primeira delas eacute que os cristatildeos natildeo devem tentar apoiar a sua religiatildeo atraveacutes de razotildees humanas pois soacute pode ser concebida pela feacute e pela graccedila divina A segunda se

9 Cf nota 14 EVA 2004

30 Eacutetica e filosofia poliacutetica

refere aos que dizem que os argumentos de Sebond satildeo ldquofracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e dispotildeem-se a atacaacute-los facilmenterdquo (II 12 175)

Aos que combatem por meio de pressuposiccedilatildeo eacute preciso pressupor lhes ao contraacuterio o mesmo axioma sobre o qual se estiver debatendo Pois qualquer pressuposiccedilatildeo humana e qualquer enunciaccedilatildeo tem tanta autoridade quanto outra se a razatildeo natildeo fizer diferenccedila entre elas Assim precisamos colocaacute-las todas na balanccedila (II 12 277)

As vaacuterias referecircncias de Montaigne aos ceacuteticos

gregos suas passagens quase literais seu modo de argumentar natildeo nos deixa duacutevidas de que agrave altura da Apologia ele jaacute tivera contato com os textos de Sexto e Ciacutecero e de que o ceticismo havia deixado marcas profundas em seu pensamento O mais extenso e talvez o mais estritamente filosoacutefico dos ensaios ou seja a Apologia ldquoensaio ceacutetico por excelecircncia (EVA 2004 p 11)rdquo demonstra bem isso Voltemos agora poreacutem aos ensaios analisados por noacutes anteriormente Acreditamos ter encontrado na antinomia um ponto comum entre a Apologia e eles

Eacute claro que natildeo haacute a mesma riqueza de exemplos ou de argumentos nos textos de 1572 nem referecircncias tatildeo claras ao ceticismo como aqui As foacutermulas e tropos ceacuteticos tambeacutem provavelmente natildeo lhe eram conhecidas Percebemos no entanto que Montaigne jaacute criticava a pressuposiccedilatildeo vaidosa pela qual se considerava a razatildeo como instrumento suficiente para julgar natildeo apenas os assuntos divinos como em I 32 mas tambeacutem para os assuntos humanos como se viu com o outro ensaio Maleaacutevel como uma massa de modelar a partir da qual se forma as mais diversas figuras com a razatildeo se prova o que quiser desde que os fundamentos sejam aceitos pelo interlocutor

O problema do ceticismo 31

Montaigne procede como prescreve Sexto estabelecendo antinomias de diversas maneira ldquocontrapondo fenocircmenos a fenocircmenos consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas ou uns agraves outrasrdquo (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54) Fenocircmenos a fenocircmenos quando colocados lado a lado as diversas consequecircncias de uma mesma accedilatildeo ou consequecircncias iguais de accedilotildees diferentes consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas quando argumenta dialeticamente criando argumentos para invalidar os do oponente uns agraves outras quando alude a fenocircmenos para refutar argumentos ou vice-versa O nuacutecleo basilar de nossa argumentaccedilatildeo neste estudo e que aponta para um Montaigne com inclinaccedilotildees para o ceticismo desde seus primeiros escritos eacute exatamente essa encontramos exemplos assim natildeo soacute na Apologia mas tambeacutem em ensaios anteriores Se devemos concordar com Villey que aqueles ensaios foram escritos em 1572 antes do contato de Montaigne com o ceticismo pensamos haver razotildees para duvidar de que ele tenha adotado a filosofia estoica durante esse periacuteodo A desconfianccedila nos poderes da razatildeo jaacute nesses ensaios nos parece contraditoacuteria com as opiniotildees do estoicismo quanto a esse tema

REFEREcircNCIAS SEXTO EMPIacuteRICO Esbozos pirrocircnicos Madrid Gredos 1993

MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 2001

CONCEICcedilAtildeO Gilmar Henrique da Montaigne e a poliacutetica Cascavel Edunioeste 2014

EVA Luiz A A A figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007

32 Eacutetica e filosofia poliacutetica

____ Montaigne contra a vaidade um estudo sobre o ceticismo na Apologia de Raimond Sebond Satildeo Paulo HumanitasFFLCHUSP 2004

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

VASCONCELLOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo In MONTAIGNE Os ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

VENDEMIATTI Leandro Abel Sobre a natureza dos deuses de Ciacutecero Dissertaccedilatildeo (mestrado em linguiacutestica) ndash Instituto de estudos da linguagem UNICAMP Campinas 2003

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne In MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

= II =

MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo

Este trabalho eacute parte de minha pesquisa em

desenvolvimento como doutorando em filosofia que objetiva estudar a originalidade ou antes a audaacutecia do pensamento de Montaigne cujo debate e questionamentos se iniciaram no acircmbito da religiatildeo e se estenderam para a filosofia e para a ciecircncia

Montaigne segundo Birchal (2007) relata o eu como fluxo natildeo como lsquosubstacircnciarsquo nem como lsquovaziorsquo No espiacuterito montaigniano quero comeccedilar este texto confessando junto com Porchat que tambeacutem sou um homem desesperado da filosofia e de seus problemas pois para mim os discursos da filosofia natildeo satildeo mais que prodigiosos e sublimes jogos de palavras muitas vezes distante da vida Ou como disse Porchat ldquoUm brinquedo dos

Poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico Email gilmarhenriqueconceicaohotmailcom

34 Eacutetica e filosofia poliacutetica

filoacutesofos com as palavras do Logos com os filoacutesofosrdquo (PORCHAT 2000 p 122) Montaigne chega a dizer que a razatildeo eacute uma espeacutecie de massinha com a qual podemos modelar o que quisermos Montaigne leva ao limite a capacidade da razatildeo Haacute em mim a vivecircncia da duacutevida ceacutetica pirrocircnica como uma profunda inquietaccedilatildeo Fico inquieto com os dogmaacuteticos de todos os tipos Evidentemente as questotildees loacutegicas envolvem um vocabulaacuterio teacutecnico Portanto natildeo estou pensando em loacutegica propriamente mas em filosofia Tal como os pirrocircnicos tambeacutem desconfio dos que falam difiacutecil em filosofia ldquoExprimir-se de modo difiacutecil eacute na verdade deixar transparecer certa falta de rigor intelectualrdquo (PORCHAT 2000 p 125) Eacute este o sentido pelo qual Montaigne conclui que as filosofias difiacuteceis constituem um pirronismo sob a forma resolutiva porque frequentemente a inextrincaacutevel obscuridade de seus textos natildeo nos permite saber nem mesmo qual eacute sua opiniatildeo Ou entatildeo apresentam tantas interpretaccedilotildees divergentes que obnubilam a opiniatildeo Obscurecemos e enclausuramos a compreensatildeo com tantas interpretaccedilotildees10

Pirro natildeo deixou nada escrito pois para ele filosofia natildeo eacute uma doutrina uma teoria ou um saber sistemaacutetico mas principalmente uma praacutetica uma atitude um modus vivendi (MARCONDES

10 [B] Quem natildeo afirmaria que as glosas aumentam as duacutevidas e ignoracircncia visto que natildeo se vecirc livro algum seja humano ou divino no qual o mundo se empenhe cuja dificuldade a interpretaccedilatildeo faccedila sumir O centeacutesimo comentaacuterio remete-o a seu seguinte mais espinhoso e mais escarpado do que o primeiro o achara Quando concordamos entre noacutes lsquoeste livro jaacute teve o suficiente doravante natildeo haacute mais o que dizerrsquo Isso se vecirc melhor na chicanarsquo (III 13 p 427)

Montaigne e o legado ceacutetico 35

2007 p 95) Montaigne seguindo os passos de Pirro e Sexto Empiacuterico foi decisivo na histoacuteria da filosofia sob trecircs aspectos a) ao plantar a semente da duacutevida pirrocircnica que foi desenvolvida por ele e que ficou como heranccedila para filoacutesofos posteriores b) ao argumentar que se explicaccedilatildeo haacute natildeo busca almejar o estatuto de conhecimento mas limita-se agrave constataccedilatildeo de que somos parte de uma natureza que transcende indefinidamente nossa capacidade de conhececirc-la c) Ao demolir nossas certezas visto que natildeo podemos identificar com seguranccedila nossas afecccedilotildees e disposiccedilotildees e natildeo podemos determinar nossos movimentos internos portanto devido agrave complexidade e indeterminaccedilatildeo de nossas afecccedilotildees somente podemos ver uma parte do todo ou um traccedilo entre tantos traccedilos possiacuteveis

Na realidade nos Ensaios temos a apresentaccedilatildeo de conceitos importantes para a compreensatildeo do pensamento montaigniano epokheacute zeteacutesis diaphonia isosthenia epokheacute ataraxia e eudaimonia Tais termos constituem o cerne de todo pensamento ceacutetico e satildeo familiares a Montaigne que com eles trabalha Em Montaigne temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do instante da passagem Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero que eacute tudo o que temos por esta razatildeo Montaigne eacute lsquoo filoacutesofo da aparecircnciarsquo

O ensaiacutesta compreendeu profundamente como poucos o pirronismo Montaigne eacute um pirrocircnico porque questiona ateacute mesmo o pirronismo Em outras palavras eacute isto mesmo que constitui a

36 Eacutetica e filosofia poliacutetica

atitude pirrocircnica Aprecio os inteacuterpretes do pensamento montaigniano quando destoando da exposiccedilatildeo sisuda da vida acadecircmica relatam suas exposiccedilotildees em primeira pessoa Portanto tambeacutem engatinharei do mesmo modo acompanhando de longe os passos de estudiosos que tanto admiro particularmente Oswald Porchat

Constato no ceticismo minha identidade filosoacutefica e minha chave de libertaccedilatildeo natildeo tenho verdade natildeo tenho deus natildeo tenho amigos natildeo tenho irmatildeo natildeo tenho pai e natildeo tenho matildee Se natildeo for exatamente isso eacute quase isto Ou como cantou Bob Dylan lsquoLike a rolling stonersquo Como ultima ratio entendo que estamos completamente soacutes no universo mas isso parece natildeo me entristecer Ao contraacuterio me daacute uma espeacutecie de alegria pois implica em aceitar o traacutegico e a solidatildeo da condiccedilatildeo humana lsquoalone and togetherrsquo Estamos sozinhos juntos Claro a presenccedila de um verdadeiro amigo pode nos acompanhar Aliaacutes as relaccedilotildees sociais e os projetos coletivos possibilitam tecer fios de compartilhamento Como a verdadeira amizade (I 28) eacute rara podemos ter amizades por um ponto soacute Aleacutem disso o amor nos tira da solidatildeo de ser um Por isso mesmo afinal eacute necessaacuterio viver plenamente a vida e a filosofia natildeo pode ser uma rejeiccedilatildeo da vida das vicissitudes e contingecircncias da vida comum A filosofia natildeo pode rejeitar as paixotildees humanas em nome do pensamento Como registra Sexto Empiacuterico ratificado por Montaigne se o ceacutetico condena os dogmas em nenhum momento entretanto entra em conflito com a vida comum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Com o ensaiacutesta temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do

Montaigne e o legado ceacutetico 37

instante da passagem Precisamente pelo fato de que Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero soacute temos para decidir o instante que passa

Neste trabalho elementar o nosso ponto de partida consiste em encetar esforccedilos no sentido de mostrar que Montaigne como leitor de Sexto Empiacuterico visceralmente ceacutetico suspende o juiacutezo sobre as verdades dogmaacuteticas de qualquer natureza em razatildeo disso como o ensaiacutesta natildeo tem um dogma epistemoloacutegico nem metafiacutesico natildeo apresenta um dogma moral ou um dogma poliacutetico Julga que em uacuteltima instacircncia as correntes filosoacuteficas satildeo meramente exerciacutecios de pensamento do homem no mundo Para isso nosso autor se vale em seus escritos de paradoxos de desordem e de supostas incongruecircncias A respeito disso Eva (2007) escreve que eacute certo que um traccedilo importante da reflexatildeo nos Ensaios reside em seu caraacuteter assumidamente provisoacuterio decorrente da liberdade que o autor encontra para voltar atraacutes em relaccedilatildeo ao que dissera anteriormente mesmo ao preccedilo de se contradizer Montaigne por exemplo alterna o elogio e o escaacuternio da philosophie Assim se por um lado a filosofia eacute enaltecida pela sua capacidade de tornar a alma e o corpo sadios por outro lado ela eacute criticada como palco de um conflito de razotildees (II 12)

Meu estudo estaacute focado no ceticismo como concepccedilatildeo filosoacutefica e natildeo como uma seacuterie de duacutevidas (POPKIN2000) Assim o ceticismo teve sua origem no pensamento grego antigo Como eacute

38 Eacutetica e filosofia poliacutetica

sabido durante o helenismo formou-se um conjunto de argumentos ceacuteticos estabelecendo que a nenhuma forma de conhecimento eacute possiacutevel (Ceticismo acadecircmico) b) natildeo haacute evidecircncia adequada ou suficiente para determinar se alguma forma de conhecimento eacute ou natildeo possiacutevel (Ceticismo pirrocircnico)

Como registra Popkin (2000) e Brochard (2009) o ceticismo acadecircmico surgiu na Academia de Platatildeo e sua formulaccedilatildeo teoacuterica eacute atribuiacuteda a Arcesilau e a Caacuterneacuteade que elaboraram uma seacuterie de argumentos voltados sobretudo contra as pretensotildees a conhecimento dos filoacutesofos estoicos procurando mostrar que nada se pode conhecer com certeza Estes argumentos foram transmitidos ateacute noacutes especialmente pelas obras de Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio e Santo Agostinho Os Acadecircmicos formularam uma seacuterie de dificuldades visando mostrar que os dados que obtemos por meio de nossos sentidos satildeo pouco confiaacuteveis que natildeo podemos ter certeza se nosso raciociacutenio eacute seguro e que natildeo possuiacutemos nenhum criteacuterio ou padratildeo garantido para determinar quais de nossos juiacutezos satildeo verdadeiros e quais satildeo falsos De acordo com Popkin

O problema baacutesico em questatildeo aqui eacute que qualquer proposiccedilatildeo pretendendo afirmar algum tipo de conhecimento sobre o mundo conteacutem pretensotildees que vatildeo aleacutem dos relatos meramente empiacutericos sobre como nos parecem ser os fatos (POPKIN 2000 p 2)

Luiz Eva (2007) em seu estudo sobre Montaigne indaga se dada a proeminecircncia que

Montaigne e o legado ceacutetico 39

ganha nos Ensaios o projeto de um exame da condiccedilatildeo humana e da produccedilatildeo de um retrato de si mesmo natildeo estariacuteamos diante de uma figura talvez embrionaacuteria do viacutenculo teoacuterico entre criacutetica epistemoloacutegica e tematizaccedilatildeo da subjetividade temas frequentes na posteridade filosoacutefica e mesmo diretamente associados em diversos filoacutesofos como Descartes Eva ainda sugere que o seu trajeto de estudos parece delinear uma nova imagem do proacuteprio ceticismo de Montaigne um ceticismo de linhagem lsquoradicalrsquo Acrescenta que o ceticismo montaigniano possui uma configuraccedilatildeo conceitual proacutepria e eacute ao mesmo tempo uma filosofia articulada com o pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas corporais e espirituais na medida em que isso se faz ao nosso alcance ldquouma filosofia voltada ao mundo da vida e da accedilatildeo e ao contato do homem com sua efetiva condiccedilatildeordquo (EVA 2007 p 12) Assim torna-se possiacutevel recuperar os contornos proacuteprios de um gecircnero filosoacutefico que em boa medida foram apagados pela maneira como a posteridade acolheu o ceticismo em sua versatildeo cartesiana Aliaacutes de modo geral a versatildeo difundida do ceticismo parece ser aquela advinda de Ciacutecero e Santo Agostinho (portanto na versatildeo Acadecircmica) Descartes Hume e Kant (soacute para citar alguns) enfrentaram a questatildeo da duacutevida ceacutetica Segundo Porchat (2000) Hume eacute um peacutessimo leitor do ceticismo pirrocircnico mas esta eacute outra histoacuteria natildeo iremos tratar disso neste momento

Popkin (2000) como historiador da filosofia moderna em seu estudo sobre os ceacuteticos contraria um padratildeo otimista de representaccedilatildeo dessa mesma

40 Eacutetica e filosofia poliacutetica

histoacuteria como uma aventura em direccedilatildeo ao esclarecimento e a certezas cada vez mais consistentes Como eacute sabido o ceticismo surgiu na Antiguidade Claacutessica como reaccedilatildeo agrave proliferaccedilatildeo de sistemas filosoacuteficos todos eles orientados para a detecccedilatildeo da verdade Em termos mais precisos a atitude ceacutetica emerge da descoberta de que a filosofia eacute um campo de disputa entre sistemas que sustentam que haacute uma profunda distinccedilatildeo entre o que eacute e o que aparece Enquanto homens comuns movidos por apetites e crenccedilas vivem segundo o que lhes parece ser o mundo caberia ao filoacutesofo dizer a verdade com base em sua capacidade extraordinaacuteria de ver o que natildeo se vecirc ordinariamente

A palavra ceticismo deriva de skeacutepsis que significa em grego investigaccedilatildeo O ceacutetico ao investigar os diferentes sistemas filosoacuteficos descobre que todos eles tecircm em comum a pretensatildeo de dizer o que a verdade eacute mas que por supocirc-la pertencendo agrave um mundo aleacutem de nossa percepccedilatildeo comum (o Motor Imoacutevel de Aristoacuteteles ou o Mundo das Ideias de Platatildeo por exemplo) natildeo entram em acordo com relaccedilatildeo ao que ela significa Cada um a descreve de forma particular sem apresentar evidecircncias criacuteveis para sustentar suas hipoacuteteses Trata-se pois de uma querela sobre a qual ateacute agora natildeo se pode decidir Como escreve Porchat os ceacuteticos revelam a existecircncia de um ldquoconflito das filosofiasrdquo Nesse conflito cada novo pensador pretende solucionar os impasses produzidos por seus predecessores oferecendo a possibilidade de uma nova e mais perita definiccedilatildeo da verdade Porchat sugere que ateacute mesmo a tentativa de ver

Montaigne e o legado ceacutetico 41

nas filosofias uma lsquosinfoniarsquo na realidade eacute mais um elemento da lsquodiaphoniarsquo Ou seja parece que o que acaba por acontecer eacute que essas ldquosoluccedilotildeesrdquo tatildeo somente alargam o acircmbito do dissenso Pensando resolver o problema da verdade o filoacutesofo obcecado por essa busca contribui para o aumento da incerteza

O ceticismo pirrocircnico portanto desde suas primeiras formulaccedilotildees com Pirro de Eacutelis ateacute os textos remanescentes de Sexto Empiacuterico (e Montaigne e Francisco Sanchez durante o Renascimento) sustenta a falibilidade humana em termos cognitivos e a ausecircncia de criteacuterios para definir o que eacute a verdade para aleacutem do mundo comum dos fenocircmenos que todos experimentamos

Com efeito Popkin (2000) narra os efeitos e a recepccedilatildeo que os argumentos organizados por Sexto Empiacuterico tiveram nos seacuteculos XVI e XVII Depois de considerar o impacto dos textos e argumentos ceacuteticos nos debates suscitados pela Reforma Protestante Popkin nos conduz ao universo de Michel de Montaigne leitor da primeira traduccedilatildeo latina de Sexto Empiacuterico Jaacute chamamos a atenccedilatildeo para o fato de que Montaigne tambeacutem eacute leitor de diversas obras atinentes ao ceticismo (Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio Santo Agostinho Plutarco Agrippa e Francisco Sanchez) Todavia destas leituras a que mais deixa traccedilos evidentes nos Ensaios eacute a de Sexto Empiacuterico mesmo que Montaigne natildeo cite o seu nome

Montaigne foi muito lido por Descartes Pascal Malebranche Nietzsche Rousseau Hume entre muitos outros Em Montaigne estatildeo

42 Eacutetica e filosofia poliacutetica

magnificamente presentes os temas claacutessicos do ceticismo a falibilidade do conhecimento por meios humanos uma visatildeo da vida social constituiacuteda pelas crenccedilas ordinaacuterias e uma sensibilidade iacutempar para a existecircncia de uma vasta variedade cultural e civilizatoacuteria irredutiacutevel a criteacuterios universais Essa uacuteltima perspectiva estaacute presente em um de seus ensaios a respeito dos iacutendios brasileiros Dos Canibais Nele encontramos o primeiro registro europeu que os percebe como personagens de uma experiecircncia distinta da europeia vale dizer como outra forma de sociedade Essa sensibilidade para com a diferenccedila cultural eacute uma heranccedila expliacutecita do antigo ceticismo que em um dos argumentos legados por Sexto Empiacuterico e alargado no seacuteculo XX por Claude Leacutevi-Strauss percebia a diferenccedila civilizatoacuteria como irredutiacutevel a criteacuterios universais de juiacutezo e avaliaccedilatildeo Mas condenamos o que nos parece estranho aos nossos costumes

Popkin (2000) a partir de Montaigne resgata pensadores ateacute quase desconhecidos Pierre Charron por exemplo herdeiro intelectual de Montaigne escreveraacute um dos livros mais lidos no seacuteculo XVII francecircs o De la Sagesse no qual a sabedoria eacute apresentada como fruto da utilizaccedilatildeo do ceticismo (ou pirronismo) contra as diferentes filosofias dogmaacuteticas (LESSA 2008)

Conforme Sexto e Montaigne as coisas existem poreacutem somente o que podemos saber e dizer delas satildeo de que maneira nos afetam - natildeo o que satildeo em si mesmas Natildeo obstante como iremos argumentar a epokheacute de Sexto natildeo eacute tatildeo radical como a de Pirro Montaigne por seu lado defende tambeacutem uma eacutetica do sentido comum e ainda como

Montaigne e o legado ceacutetico 43

pirrocircnico aceita a indiferenccedila (adiaphora) com respeito a todas as soluccedilotildees morais reivindica tambeacutem a importacircncia do empiacuterico

Montaigne eacute o filoacutesofo do paradoxo e da contradiccedilatildeo quando fala das coisas mas a contradiccedilatildeo estaacute nas proacuteprias coisas em suas muacuteltiplas perspectivas (II 12) Eacute claro que com isso natildeo queremos dizer que Montaigne nunca se contradiga Poreacutem a questatildeo central eacute que eacute exatamente a aceitaccedilatildeo de suas contradiccedilotildees que permite a Montaigne a articulaccedilatildeo de uma postura filosoacutefica que consiste em assumir a proacutepria incoerecircncia como labor filosoacutefico Ele parece fazer as contradiccedilotildees e incoerecircncias aparentes e efetivas trabalharem no exerciacutecio de seu pensamento na investigaccedilatildeo daquilo que lhe aparece

Essa postura arrasta consigo uma consequecircncia metodoloacutegica importante que consiste em identificar a particularidade de sua filosofia ceacutetica Montaigne como um filoacutesofo lsquode nova figurarsquo eacute inteiro Como registra Eva (2007) uma generalizaccedilatildeo aligeirada acerca da contradiccedilatildeo ambiguidade e incoerecircncia de Montaigne pode nos cegar para aquilo que compreendemos como coerecircncia filosoacutefica de Montaigne Ou seja em razatildeo da ditadura do Logos ficamos impossibilitados de observar a possibilidade de as eventuais oscilaccedilotildees opinativas Entretanto acertadamente Eva argumenta que ceticismo natildeo eacute sinocircnimo de irracionalismo ao contraacuterio a posiccedilatildeo ceacutetica estaacute conforme ao emprego da razatildeo Desse modo a constataccedilatildeo da equipolecircncia e da isostenia dos argumentos contraacuterios natildeo significa em Montaigne

44 Eacutetica e filosofia poliacutetica

a impossibilidade de uma investigaccedilatildeo racional visto que para o nosso autor os ceacuteticos se servem da razatildeo para investigar poreacutem natildeo para sentenciar

Montaigne salienta que adere ao phainoacutemenon e que conduz sua vida praacutetica da lsquomaneira comumrsquo como escreve Sexto nas Hipotiposes I 24

Aderindo assim ao aparecer das coisas [phainoacutemena] noacutes vivemos de acordo com as regras normais da vida de modo natildeo dogmaacutetico vendo que natildeo podemos permanecer inativos E parece-nos que essa regulaccedilatildeo da vida possui quatro aspectos O guia da natureza eacute aquele pelo qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo e pensamento a exigecircncia das paixotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva a comer e a sede a beber a tradiccedilatildeo dos costumes e das leis aquela pela qual noacutes consideramos a piedade nas accedilotildees da vida um bem e a impiedade um mal e a instruccedilatildeo das artes aquela pela qual natildeo somos insativos nas artes [teacutechnai] que empreendemos (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

O problema que surge para mim eacute se o ceticismo rejeita todas as filosofias Montaigne rejeita tambeacutem o ceticismo Colegas doutorandos do PPGFil da unioeste ateacute brincaram comigo recentemente quando me falaram lsquovocecirc tem certeza do ceticismorsquo Deixando de lado a brincadeira haacute aiacute algo de real Como posso ter certeza no ceticismo uma vez que isso constitui uma contradiccedilatildeo com a perspectiva ceacutetica Por que o ceticismo natildeo pode se assumir como um posicionamento consistentemente radical Claro a questatildeo estaacute mal colocada Jaacute adiantamos o

Montaigne e o legado ceacutetico 45

pirronismo eacute mais uma atitude do que um sistema de pensamento

O pirronismo acontece no acircmbito mais amplo da diaphonia filosoacutefica Portanto duvidar do proacuteprio ceticismo como Montaigne agraves vezes parece fazer eacute uma atitude pirrocircnica Portanto com isso ele natildeo rompe com o pirronismo ao contraacuterio reforccedila o pirronismo Entretanto Montaigne inova o ceticismo trazendo agrave baila temas que ateacute entatildeo natildeo ventilados no debate ceacutetico De acordo com Smith (2012) poreacutem enquanto Sexto relata as opiniotildees dos outros filoacutesofos Montaigne fala de sua proacutepria vida Quando relata o que lhe aparece Sexto relata somente oposiccedilatildeo de teses e argumentos quando relata o que lhe aparece Montaigne fala de sua vida Sexto nunca pretendeu que relatar a proacutepria vida tivesse relevacircncia filosoacutefica Os Ensaios surgem portanto como uma nova fonte para a diaphoniacuteapirrocircnica

Na tentativa de responder aos meus colegas o que posso dizer eacute que natildeo eacute bem uma certeza que tenho no ceticismo mas eacute isto exatamente que me aparece como ceticismo Talvez seja algo como a forma como vejo o mundo Eu natildeo sabia que eu era profundamente ceacutetico ateacute o dia em que li Montaigne e Sexto Empiacuterico Descobri com eles minha identidade filosoacutefica Na realidade sem ser conscientemente ceacutetico bem cedo passei a desconfiar das explicaccedilotildees que presunccedilosamente pretendem afirmar o que as coisas satildeo efetivamente em sua estrutura interna Sejam elas de acircmbito filosoacutefico poliacutetico ou religioso Jaacute salientei que o ceacutetico desconfia daquilo que chamamos lsquorealidadersquo

46 Eacutetica e filosofia poliacutetica

e sugere que se trata apenas de lsquoconsensorsquo e que muita coisa nos escapa Eacute graccedilas a esse sentido preciso de sua criacutetica tatildeo avassaladora que Montaigne acompanhando Sexto afirma que os philosophes que evocam os fenocircmenos sensiacuteveis como resposta agravequele que os potildee em duacutevida satildeo indignos desse nome

[A] Eles natildeo precisam me dizer eacute verdadeiro pois vecircs e sentes assim eacute preciso que me digam se o que eu penso sentir eu o sinto portanto de fato e se eu o sinto que eles me digam depois por que eu o sinto e como e o quecirc que eles me digam o nome a origem os componentes e os produtos do calor do frio das qualidades daquele que age e daquele que padece ou entatildeo que eles abandonem sua profissatildeo que eacute a de natildeo receber nem aprovar nada senatildeo pela via da razatildeo eacute a sua pedra de toque em toda a espeacutecie de investigaccedilotildees mas certamente eacute uma pedra de toque plena de falsidade de erro de fraqueza e de falha (II 12)

Haacute uma questatildeo muito debatida entre os inteacuterpretes que se referem agraves apropriaccedilotildees compilaccedilotildees e lsquopilhagensrsquo que Montaigne realiza advindas de autores antigos Trata-se de lsquoplaacutegiorsquo tal como entendemos hoje Quer me parecer que natildeo Acompanhemos a escrita de Montaigne quando se refere aos seus lsquoplaacutegiosrsquo

[] No entanto bem sei com quanta ousadia eu mesmo tento a todo momento igualar-me a meus plaacutegios ir par a par com eles natildeo sem uma temeraacuteria esperanccedila de conseguir

Montaigne e o legado ceacutetico 47

enganar os olhos dos juiacutezes ao discerni-los (I 26 p 220) O ensaiacutesta critica o plaacutegio e assume o plaacutegio

Examinemos isto A sua criacutetica ao plaacutegio eacute devastadora classificando-a em primeiro lugar de lsquoinjusticcedila e covardiarsquo de quem natildeo tendo em seu patrimocircnio pessoal coisa alguma com que se promover procura apresentar-se com um valor alheio E em segundo lugar chama o plaacutegio de lsquogrande tolicersquo pois se contenta por embuste em obter aprovaccedilatildeo Afinal a que tipo de plaacutegio Montaigne se refere nesta criacutetica Natildeo agravequele que leva agrave produccedilatildeo do proacuteprio mel ou da autonomia da obra mas aos que apresentam lsquoremendosrsquo lsquodessemelhanccedilasrsquo como seus e que na realidade natildeo soube lsquoassimilaacute-losrsquo como as abelhas e ele proacuteprio o fez Portanto as referecircncias ficam ao modo Frankenstein diriacuteamos recorrendo a uma posterior imagem de um livro que surgiu em 1818 Em Frankenstein aparecem as costuras e natildeo haacute plena consciecircncia Que eacute exatamente a criacutetica aos plaacutegios que Montaigne elabora

Como Montaigne busquei fazer do conhecimento afeto potente porque a inteligecircncia eacute que vecirc e que ouve a inteligecircncia eacute que tudo aproveita que dispotildee que age que domina e que reina todas as outras coisas satildeo cegas surdas e sem alma Mas Montaigne ressalva que eacute bem verdade que a tornamos servil e covarde e em certos momentos lhe recusamos a liberdade de fazer coisa alguma por si mesma (I 26 p 227) Assim com o plaacutegio a gente perde potecircncia produzindo em

48 Eacutetica e filosofia poliacutetica

si afeto triste Refiro-me aqui agrave ideia de conatus e de paralelismo que estatildeo presentes em Spinoza e Montaigne (ldquoO que se instrui natildeo eacute uma alma natildeo eacute um corpo eacute um homem natildeo se deve separaacute-lo em doisrdquoI 26 p 247) O leitor atento provavelmente estaacute percebendo que estou fazendo uma relaccedilatildeo ligeira entre estes dois filoacutesofos mas esta relaccedilatildeo natildeo eacute improacutepria Ilustres leitores de Montaigne divergem sobre o seu pensamento Alguns como por exemplo Pascal e Kant procuram descobrir nele um cristatildeo outros como Emerson veem nele um protoacutetipo do ceacutetico outros um precursor de Voltaire Mas a leitura que comungo eacute a de Sainte-Beuve Sainte-Beuve chega a julgar os Ensaios uma espeacutecie de preparaccedilatildeo de antecacircmara para a Eacutetica de Spinoza Aleacutem disso Justo-Liacutepsio traduziu para o latim a palavra essais com o tiacutetulo de gustare Os Ensaios de Montaigne foram citados em latim pelos seus contemporacircneos com o tiacutetulo geral de conatus significando a tensatildeo da pessoa que opera uma ofensiva contra as coisas Os Ensaios satildeo uma escola de tensatildeo e de liberdade sempre fraacutegil e precaacuteria

Desse modo o recurso do plaacutegio tira da gente e nos impede de perseverar em ser-movimento A paixatildeo do plaacutegio em seu caminho mais curto eacute inflado e mentiroso natildeo importa os atenuantes Se a razatildeo-corpo revela que nosso desejo de ser se realiza fundamentalmente como desejo de conhecer o plaacutegio quer enganar a razatildeo Que loucura Pois Montaigne afirma que na solidatildeo uacuteltima do pensamento sabemos que mentimos Entatildeo a criacutetica e o desmascaramento arranca a cauda plumosa de filoacutesofo grudada com sabatildeo e nos restitui ao fogo

Montaigne e o legado ceacutetico 49

da filosofia No primeiro momento o impacto eacute de desdeacutem e de vergonha poreacutem isto eacute verdadeiramente salutar Quando somos dominados por afetos contraacuterios vemos o melhor e fazemos o pior Montaigne falou que o que diminui a vaidade do pavatildeo satildeo os seus peacutes Entatildeo natildeo haacute plaacutegio em Montaigne pois quando ele mesmo descreve o seu ato de apropriaccedilatildeo de autores se compara agraves abelhas que vatildeo de flor em flor sugando poreacutem o produto final o mel eacute pessoal Do mesmo modo os Ensaios - em que pese a diversidade de autores compilados - eacute produto seu eacute o seu mel Em Montaigne natildeo aparecem as lsquocosturasrsquo

A verdade e a razatildeo satildeo comuns a todos e natildeo pertencem a quem as disse primeiramente mais do que a quem as diz depois [C] Natildeo eacute segundo Platatildeo mais do que segundo eu mesmo jaacute que ele e eu o entendemos e vemos da mesma forma [A] As abelhas sugam das flores aqui e ali mas depois fazem o mel que eacute todo delas jaacute natildeo eacute tomilho nem manjerona Assim tambeacutem as peccedilas emprestadas de outrem ele iraacute transformar e misturar para construir uma obra toda sua ou seja seu julgamento Sua educaccedilatildeo seu trabalho e estudo visam tatildeo-somente a formaacute-lo (I 26 p227)

As Hipotiposes de Sexto nos Ensaiosde Montaigne

O ceticismo objetiva opor objetos sensiacuteveis e objetos do pensamento de maneira que nenhuma das explicaccedilotildees em conflito seja mais criacutevel do que outra Satildeo ceacuteticos aqueles que em uma investigaccedilatildeo

50 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo encontram resultado e persistem na busca Os que encontram o que procuram satildeo chamados de dogmaacuteticos e aqueles que confessam ser inapreensiacutevel satildeo chamados acadecircmicos Dois tipos de argumentaccedilatildeo satildeo usados pelos ceacuteticos a argumentaccedilatildeo geral que leva agrave suspensatildeo do juiacutezo e a especiacutefica que faz objeccedilotildees contra as diversas filosofias O princiacutepio baacutesico do ceticismo eacute de se opor cada explicaccedilatildeo com outra equivalente levando a um estado de repouso abandonando a atitude dogmaacutetica (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Uma noccedilatildeo importante eacute a de suspensatildeo do juiacutezo que permeia toda filosofia ceacutetica e constitui um fim pois eacute o resultado final da investigaccedilatildeo O estado de suspensatildeo do juiacutezo que em grego eacute epokhe eacute a impossibilidade de se afirmar ou de negar a explicaccedilatildeo da aparecircncia em razatildeo da argumentaccedilatildeo geral que opotildee a cada argumento com outro pelo princiacutepio baacutesico do ceticismo O ceacutetico diz o que lhe parece e relata o que sente de forma natildeo dogmaacutetica sem afirmar nada de positivo sobre o que existe na realidade externa O ceacutetico natildeo rejeita o aparente que satildeo as impressotildees sensiacuteveis mas a explicaccedilatildeo do aparente

O criteacuterio de accedilatildeo para o ceacutetico eacute a aparecircncia ou seja as impressotildees sensiacuteveis pois estas natildeo satildeo sujeitas ao questionamento pois satildeo sensaccedilotildees e afecccedilotildees involuntaacuterias As impressotildees sensiacuteveis satildeo o princiacutepio de nosso relacionamento com o mundo As ciecircncias naturais satildeo estudadas A loacutegica e a eacutetica satildeo auxiliares na medida em que aumentam a habilidade de fazer oposiccedilatildeo a qualquer explicaccedilatildeo Aderindo ao que aparece vivemos de acordo com as normas da vida

Montaigne e o legado ceacutetico 51

comum de modo natildeo dogmaacutetico Poreacutem natildeo podendo decidir diante da equumlipolecircncia das controveacutersias acerca da verdade ou falsidade das impressotildees o ceacutetico adota a suspensatildeo Isso pode nos remeter a analogia com o equiliacutebrio de forccedilas de um sistema em equiliacutebrio onde a cada forccedila existe outra de igual intensidade e direccedilatildeo poreacutem de sentido contraacuterio O resultado eacute a ineacutercia O argumento que daacute vantagem ao ceacutetico sobre o dogmaacutetico eacute ldquoaqueles que mantecircm a opiniatildeo de que uma coisa eacute naturalmente boa sentem-se aflitos quando natildeo a encontram e quando a tem apresentam um contentamento irracional e recear perdecirc-lardquo O ceacutetico natildeo determina serem as coisas naturalmente boas ou maacutes natildeo as evitam nem as buscam e por isso natildeo se perturbam (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

Observaremos que Montaigne nos Ensaios

retoma a tradiccedilatildeo ceacutetica da Antiguidade preservando-a ao mesmo tempo em que a reconstroacutei e lhe confere novo sentido dando origem a um ceticismo de ldquolinhagem radicalrdquo (EVA 2007 p 389) a partir de interrogaccedilotildees que natildeo cessam A visatildeo interrogativa de Montaigne eacute pirrocircnica ldquo[B] Essa visatildeo eacute expressa com mais clareza pela interrogaccedilatildeo lsquoQue sei eu rsquo tal como a trago de divisa numa balanccedilardquo (II 12 p 292) Haacute diferentes respostas para o problema da viabilidade do pirronismo mas concordamos com a ideia de relativa continuidade do pirronismo destacando a noccedilatildeo de fenocircmeno como eixo que marca essa continuidade (GAZINELLI 2009) Observa-se que Dioacutegenes Laeacutercio (2009) continua exercendo consideraacutevel influecircncia sobre a interpretaccedilatildeo do

52 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo com sua obra A vida de Pirro Ao discorrer sobre o pirronismo Laeacutercio considera-o o mais nobre filosofar por ter inventado em seu modo de vida os estados de akatalepsiacutea (inapreensibilidade das coisas) e de epokheacute(suspensatildeo de juiacutezo)

Sendo assim nada dizia ser nem belo nem feio nem justo nem injusto mas igualmente sobre todas as coisas afirmava nada ser em verdade mas todos os homens agirem segundo a convenccedilatildeo e o costume pois cada coisa natildeo eacute mais isso que aquilo (LAEacuteRCIO 2009 p 161)

Como viemos chamando a atenccedilatildeo Montaigne eacute leitor rigoroso de Sexto Empiacuterico um dos expoentes maacuteximos do ceticismo Do mesmo modo como afirmamos anteriormente lembremos que este diz ser princiacutepio pirrocircnico fundamental criar antinomias opondo razotildees contraacuterias para renovar o estado de epokheacute decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a verdade nas filosofias conflitantes (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Temos entatildeo a natildeo resoluccedilatildeo da diaphonia e por essa razatildeo o ceacutetico eacute lsquodo contrarsquo O tiacutetulo das obras de Sexto Empiacuterico daacute-nos uma ideia do caraacuteter destrutivo1 e ao mesmo tempo construtivo dessa filosofia

Observemos desse modo a centralidade que tem a palavra lsquocontrarsquo no legado de Sexto Contra os dogmaacuteticos (dividido em cinco livros Contra os loacutegicos I e II Contra os fiacutesicos I e II e Contra os eacuteticos) e Contra os professores (dividido em seis livros Contra os gramaacuteticos Contra os retoacutericos Contra os geocircmetras Contra os aritmeacuteticos Contra os astroacutelogos e Contra os muacutesicos) Acrescente-se

Montaigne e o legado ceacutetico 53

todavia que o escrito mais conhecido do lsquodivinorsquo Sexto satildeo as Hipotiposes Pirrocircnicas Esse livro comeccedila distinguindo a principal diferenccedila entre os sistemas filosoacuteficos em seguida o capiacutetulo III aborda a denominaccedilatildeo do ceticismo Sexto nesta obra posiciona-se contra o dogmatismo recorrendo aos argumentos das proacuteprias doutrinas contrapondo-os de maneira que se refutem uns aos outros e anulem-se O objetivo de tal esforccedilo eacute questionar a presunccedilatildeo da sabedoria e do conhecimento apontar as aporias controveacutersias e disputas em torno do que seria a verdade demolir pretensotildees acerca de criteacuterios para se alcanccedilar a verdade e em consequecircncia a sabedoria Inversamente ele tambeacutem ataca a posiccedilatildeo dos acadecircmicos no que tange agrave negaccedilatildeo radical da possibilidade do conhecimento visto que julga que isso constitui uma espeacutecie de dogmatismo negativo (SEXTO EMPIacuteRICO 2013)

De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores (MARCONDES 2007) Como natildeo eacute possiacutevel aqui nos adentrarmos em todos os conceitos ceacuteticos devido agrave sua centralidade fixemo-nos apenas na epokheacute A epokheacute eacute uma consequecircncia da incapacidade de decisatildeo racional a favor de um lado ou outro da

54 Eacutetica e filosofia poliacutetica

questatildeo Eacute uma atitude de natildeo aceitar nem negar determinada tese em virtude do igual peso das razotildees opostas Natildeo eacute a aplicaccedilatildeo da epokheacute que mostra a universal contradiccedilatildeo antes eacute a constataccedilatildeo da diaphonia das opiniotildees que leva agrave suspensatildeo ceacutetica do juiacutezo A suspensatildeo do juiacutezo por sua vez traz consigo a ataraxia ou a imperturbabilidade da alma A epokheacute ceacutetica leva-nos a um profundo respeito por tudo aquilo que eacute variaacutevel nas partes Esta valorizaccedilatildeo do variaacutevel e do diverso tem consequecircncias no domiacutenio poliacutetico

Na realidade o ceticismo penetrou especialmente no Renascimento a partir da disputa sobre o ldquopadratildeo corretordquo do conhecimento religioso o que era chamado de lsquoa regra da feacutersquo como reconhecer o verdadeiro criteacuterio Os protestantes negam a regra de feacute da Igreja e apresentam um criteacuterio de conhecimento religioso muito diferente Busca-se assim um criteacuterio de verdade e adentra-se nas dificuldades filosoacuteficas geradas por esse conflito como mostra Montaigne no mencionado texto Apologia a Raymond Sebond (II 12) Nesse ensaio o ponto culminante eacute a duacutevida total2 O valor da evidecircncia depende do criteacuterio e natildeo o contraacuterio Assim a anaacutelise da experiecircncia sensiacutevel base de todo conhecimento coloca o problema do criteacuterio Natildeo haacute criteacuterio com certeza ou fundamento confiaacutevel Desse modo na luta para estabelecer o verdadeiro criteacuterio da feacute uma postura ceacutetica surge dentre alguns pensadores porque o problema em questatildeo fora examinado por Sexto em Hipotiposes pirrocircnicas

Montaigne e o legado ceacutetico 55

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilatildeo enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes o forccedilamos a um regresso ad infinitum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a p 163-165)

Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Lidamos apenas com o parecer e o que natildeo nos parece eacute ainda parecer Natildeo eacute possiacutevel ao ser humano ir aleacutem da aparecircncia em direccedilatildeo ao ser ldquoSegundo Pirro tem-se o puro parecer sem fundo segundo o ceticismo fenomecircnico tem-se o parecer contra o fundo de ser incognosciacutevel com a cisatildeo (natildeo pirroniana) do parecer e do ser segundo Montaigne tem-se o puro parecer aparentemente sem fundordquo (HUISMAN 2001 p 697) Natildeo se trata da verdade do ente como se algum sentido houvesse em expor o ente em sua verdade independentemente de um olhar A uacutenica verdade que o ser humano atinge natildeo eacute a de um sujeito ou de um objeto que se incline para um lado ou para o outro mas a verdade de um aspecto

56 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que natildeo eacute indissociaacutevel da apreensatildeo ou seja a verdade da aparecircncia verdade concreta visto que ele natildeo separa o olhar e o olhado o julgante e o julgado a verdade da aparecircncia os une correlaciona-os com um nexo interno A observaccedilatildeo de Montaigne se volta para o mundo e para a vida e seu juiacutezo pronuncia suas convicccedilotildees seguras marcadas por seu selo pessoal

Os filoacutesofos e moralistas doutrinais pretendem dizer o que eacute e mostrar como se deve viver para se conformar agraves leis de Deus ou da Natureza supostamente conhecidas ou ainda agrave vocaccedilatildeo do homem tal como a determinaria sua essecircncia ou seu lugar no universo Montaigne consciente da contingecircncia de seu pensamento expotildee convicccedilotildees a tiacutetulo pessoal por vezes com um vigor extremo ele natildeo daacute por cauccedilatildeo senatildeo a atitude que nesta exposiccedilatildeo se decifra como a marca de um selo e nela se confirma por reflexatildeo (TOURNON 2004 p 116)

O ensaiacutesta se opotildee ao mundo e adere ao mundo critica a poliacutetica e se insere na poliacutetica critica a razatildeo e recorre agrave razatildeo Starobinski (1992) refere-se ao movimento de oposiccedilatildeo ao mundo como recusa da mentira e da dissimulaccedilatildeo em Montaigne e talvez isso componha na verdade sua adesatildeo ao mundo como veracidade e plenitude satildeo faces do mesmo homem Ao denunciar os prestiacutegios do parecer Montaigne toma partido implicitamente pela plenitude sem equiacutevoco do ser verdadeiro Mas ele soacute o conhece pela forccedila da recusa que o faz considerar inaceitaacuteveis a mentira e a maacutescara Montaigne no instante em que se opotildee ao mundo

Montaigne e o legado ceacutetico 57

natildeo pode valer-se de nenhuma verdade possuiacuteda proclama apenas o seu oacutedio da lsquosimulaccedilatildeorsquo O verdadeiro eacute o positivo ainda desconhecido implicado pela negaccedilatildeo dirigida contra o mal pululante o verdadeiro natildeo tem fisionomia determinada eacute apenas a energia natildeo aplacada que anima e que arma o ato da recusa (STAROBINSKI 1992 p 15-16)

As Hipotiposes Pirrocircnicas reapresentam os principais argumentos do ceticismo antigo com toda a sua heranccedila demolidora em sua dimensatildeo epistemoloacutegica Como mostra Montaigne em vaacuterios de seus ensaios a impossibilidade de se estabelecer um criteacuterio de verdade indiscutiacutevel e para todos eacute fundamental na criacutetica ceacutetica aos partidos dos filoacutesofos Nesta direccedilatildeo retomemos os quatro primeiros tropos de Enesidemo que satildeo aqueles que nos dizem respeito a quem julga ou seja o sujeito que apreende o mundo mostrando dessa forma que nos precipitamos ao formular juiacutezos acerca da realidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000b) De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da

58 Eacutetica e filosofia poliacutetica

relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Saliente-se que a afinidade teoacuterica de Montaigne estaacute no fato de que os escritos de Sexto Empiacuterico satildeo dirigidos contra a defesa dogmaacutetica da pretensatildeo de conhecer a verdade absoluta tanto na moral como nas ciencias No autor natildeo haacute um fim absoluto a ser buscado Ainda que no capiacutetulo XII de Hipotiposes Sexto Empiacuterico diga que a finalidade do ceacutetico eacute a tranquilidade (ataraxia) em questotildees de opiniatildeo e a metriopathia (afecccedilotildees moderadas relativamente aos acontecimentos) (SEXTO EMPIgraveRICO) a rigor a busca da ataraxia mediante a aquisiccedilatildeo da verdade estaacute na sua preacute-histoacuteria dogmaacutetica ndash que se infiltra na sua natureza de ceacutetico enquanto ele eacute zeteacutetico isto eacute indagador buscador da verdade Poreacutem jaacute como ceacutetico que encontra a ataraxia ou seja que experimentou a tranquilidade pela equipolecircncia (isotheacuteneia) dos argumentos jaacute que ao produzir isostheacuteneia eacute levado agrave suspensatildeo do juiacutezo e vecirc acontecer a tranquilidade O ceacutetico constata o que se vecirc o que acontece constata as contradiccedilotildees das coisas constata que os argumentos contraacuterios satildeo equivalentes igualmente criacuteveis (isostheacuteneia) constata que natildeo pode decidir entre eles (epokheacute) constata que ao suspender a opiniatildeo sente-se tranquilo (ataraxia) E reitera esse caminho realista como uma espeacutecie de escada que depois eacute abandonada ou como um purgante que elimina tudo inclusive a si mesmo Se natildeo podemos acessar a verdade podemos evitar o erro suspendendo o juiacutezo (MAIA NETO 2012)

Montaigne e o legado ceacutetico 59

Conforme a traduccedilatildeo conhecida e muito utilizada de Danilo Marcondes (1997) nas Hipotiposes Pirrocircnicas (HP) I 8 encontramos

o ceticismo eacute a capacidade de colocar frente a frente [ou opor] umas com as outras da maneira que seja tanto as coisas que aparecem quanto as coisas inteligiacuteveis capacidade estaacute que devido agrave forccedila igual que haacute nas coisas e nos pensamentos opostos nos faz ter agrave suspensatildeo (epockeacute) e em seguida agrave tranquilidade (ataraxia)

Conforme o diagnoacutestico ceacutetico da diaphonia em que as diferentes filosofias se opotildeem e se equivalem na certeza da posse da verdade Tal como Montaigne reproduz na Apologia Sexto distingue os filoacutesofos dogmaacuteticos que tem a certeza da posse da verdade os filoacutesofos acadecircmicos que estatildeo certos da impossibilidade da verdade e os verdadeiramente ceacuteticos que natildeo se cansaram da busca Frente agrave equipolecircncia das filosofias o ceacutetico atinge o estado de epockeacute Nesta condiccedilatildeo soacute diz o que aparece mas natildeo como substacircncia ou essecircncia

No entanto natildeo haacute um ceticismo mas vaacuterias concepccedilotildees diferentes

Mesmo o que podemos considerar a lsquotradiccedilatildeo ceacuteticarsquo natildeo se constitui linearmente a partir de um momento inaugural ou da figura de um grande mestre tratando-se muito mais de uma tradiccedilatildeo reconstruiacuteda (MARCONDES 2007)

Sexto Empiacuterico nas Hipotiposes (I 1)

escreve

60 Eacutetica e filosofia poliacutetica

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra o objeto de sua busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser ele inapreensiacutevel ou ainda persiste na sua busca O mesmo ocorre com os objetos investigados pela filosofia e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os lsquodogmaacuteticosrsquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel sustentar que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica

As diferenciaccedilotildees entre acadecircmicos e pirrocircnicos satildeo muito controversas poreacutem natildeo esmiuccedilaremos este debate Poreacutem neste trabalho consideramos que quem de fato merece o nome de ceacuteticos satildeo os pirrocircnicos Os acadecircmicos tecircm uma posiccedilatildeo de dogmatismo negativo A posiccedilatildeo ceacutetica se caracteriza pela suspensatildeo do juiacutezo quanto agrave possiblidade ou natildeo de algo ser verdadeiro ou falso A epokheacute desse modo natildeo eacute uma decisatildeo preacutevia e sim uma consequecircncia que surge em oposiccedilatildeo aos dogmaacuteticos que enaltecem nossa capacidade racional De seu lado o pirrocircnico formula seu pensamento para enfraquecer as certezas dogmaacuteticas poreacutem natildeo almeja impor o seu pensamento natildeo elabora uma teoria indiscutiacutevel e afirmativa a respeito de algo nem pretende uma substancializaccedilatildeo Eacute este o sentido pelo qual o

Montaigne e o legado ceacutetico 61

ceticismo busca a cura para essa doenccedila que eacute a precipitaccedilatildeo dogmaacutetica o ceacutetico conforme Sexto Empiacuterico (HP I 16) natildeo assente a coisas natildeo-evidentes natildeo adota dogmas Mais a frente escreve (HP I 17) ldquopois noacutes seguimos um raciociacutenio determinado que nos mostra de acordo com a aparecircncia como viver segundo os costumes tradicionais as leis os modos de vida e nossas afecccedilotildees proacutepriasrdquo Como se pode concluir Sexto Empiacuterico resgata a vida a experiecircncia e o fenocircmeno natildeo pretendendo dogmatizar nossas impressotildees no momento em que formulamos juiacutezos visto que haacute profundas razotildees para duvidar de formulaccedilotildees deste tipo

Acompanhando a letra de Inague Juacutenior (2009)11 trataremos dos quatro primeiros tropos ou modos de Enesidemo Salienta-se aiacute a duacutevida de que as coisas natildeo se diferenciam entre si pois satildeo igualmente incertas e indiscerniacuteveis isto induz-nos epockeacute uma vez que a todo discurso pode se opor outro discurso igual de mesma forccedila persuasiva Estamos assim frente agrave manifestaccedilatildeo da equipolecircncia (isostheacuteneia) no que se refere agrave credibilidade dos argumentos conflitantes que sempre podem ser apresentados de um lado ou de outro da questatildeo (Sexto Empiacuterico HP I 10) sendo que ndash em razatildeo da equipolecircncia - nenhum deles revela-se indiscutiacutevel O ceacutetico natildeo nega a existecircncia do fenocircmeno e sim do que dizem dele Em HP I 40 temos o iniacutecio dessa exposiccedilatildeo

11 httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Cfr MARCONDES 2007

62 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o primeiro argumento (ou tropo) como dissemos eacute aquele que mostra que devido agraves diferenccedilas entre os animais as mesmas impressotildees natildeo satildeo produzidas pelas mesmas coisas Isto inferimos tanto das diferenccedilas quanto agrave geraccedilatildeo dos animais quanto da variedade de composiccedilatildeo de seus corpos

Do mesmo modo discursariacuteamos sobre o prazer e o desprazer pois o que nos agrada enquanto animais com certa constituiccedilatildeo poderia natildeo nos agradar se tiveacutessemos outra

Avanccedilando com Sexto acerca do segundo modo observemos a seguinte citaccedilatildeo de Sexto

O segundo modo eacute como haviacuteamos dito aquele baseado nas diferenccedilas entre os homens pois mesmo se admitimos por hipoacutetese que os homens satildeo mais dignos de creacutedito do que os animais irracionais verificaremos que mesmo nossas proacuteprias diferenccedilas por si mesmas levam agrave suspensatildeo Pois diz-se que o ser humano eacute composto de duas coisas alma e corpo [] Assim no que diz respeito ao corpo diferimos no que diz respeito ao nosso aspecto e no que diz respeito agraves nossas peculiaridades constitutivas (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 79)

Ocorre que tambeacutem na questatildeo da alma temos inuacutemeras teorias que se contradizem e se aniquilam ora se divergimos na nossa capacidade de formular juiacutezos natildeo eacute possiacutevel dizer a verdade Eacute esta a razatildeo pela qual o ceacutetico afirma que apenas podemos dizer aquilo que nos aparece e jamais a coisa em si Buscar a substancializaccedilatildeo eacute o mesmo que incorrer em precipitaccedilotildees e contradiccedilotildees

Montaigne e o legado ceacutetico 63

constantes (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 85) Assim a epokheacute eacute o resultado a que chega o ceacutetico

Na sequecircncia o terceiro modo de Enesidemo centra-se no individual considerando-se a constituiccedilatildeo corporal humana haacute contradiccedilotildees naquilo que os sentidos apreendem Logo soacute podemos falar daquilo que aparece e natildeo daquilo que eacute Jaacute o quarto modo da epockeacute volta-se para qualquer dos sentidos humanos O divino Sexto eacute descreve do seguinte modo

Este modo baseia-se como dizemos nas ldquocircunstacircnciasrdquo e com este termo queremos indicar condiccedilotildees ou disposiccedilotildees Este modo dizemos lida com estados que satildeo ou naturais ou natildeo-naturais tais como estar acordado ou estar dormindo com condicionamentos devido agrave idade ao movimento ou ao repouso ao amor ou ao oacutedio ao vazio ou ao preenchimento agrave embriaguez ou agrave sobriedade com predisposiccedilotildees tais como confianccedila ou medo sofrimento ou alegria (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 100)

Por conseguinte diminui bastante as possibilidades de estabelecer um indiscutiacutevel criteacuterio de verdade seja em razatildeo das oposiccedilotildees entre as apreensotildees entre as distintas espeacutecies seja em razatildeo das contradiccedilotildees das apreensotildees entre os seres humanos e o conflito entre as apreensotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Daiacute temos as contradiccedilotildees das apreensotildees visto que as coisas nos atingem de muacuteltiplas formas a depender das diferenccedilas subjetivas que impossibilita a imparcialidade

64 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os julgamentos satildeo sempre fraacutegeis As circunstacircncias mencionadas acima remetem agrave necessidade de se ter uma preferecircncia por uma determinada circunstacircncia esta tomada como paracircmetro dos julgamentos Podemos pois tomar uma circunstacircncia ou impressatildeo como preferencial percorrendo dois caminhos (HP I 114-117)

Conforme Huisman (2002) eacute fundamental chamar a atenccedilatildeo para o fato de que a epockeacutepirrocircnica eacute mais radical que a epockeacutede Sexto Empiacuterico por uma pequena diferenccedila enquanto o criador do ceticismo recusou-se a definir os graus dos comportamentos dos homens visto que as existecircncias satildeo equivalentes e satildeo dirigidas pela experiecircncia Assim sendo haacute uma distacircncia que parece insuperaacutevel que acontece entre o ser e o parecer tal como entendia Pirro Montaigne escreve que o pensamento de Pirro

[] apresenta o homem nu e vazio reconhecendo sua fraqueza natural apropriado para receber do alto uma forccedila externa desguarnecido de ciecircncia humana e portanto mais apto para alojar em si a divina anulando seu proacuteprio julgamento a fim de dar mais espaccedilo para a feacute [C] nem descrendo [A] nem estabelecendo nenhum dogma contra as observacircncias comuns humilde obediente disciplinaacutevel zeloso inimigo jurado da heresia e consequentemente isentando-se das ideacuteias irreligiosas e vatildes introduzidas pelas falsas seitas (II 12 p 260)

Parece que o fenomenismo de Sexto se mostra formulado em termos bem dualiacutesticos o

Montaigne e o legado ceacutetico 65

fenocircmeno torna-se a impressatildeo ou alteraccedilatildeo sensiacutevel do sujeito e como tal eacute contraposto ao objeto agrave ldquocoisa externardquo ou seja agrave coisa que eacute diferente do sujeito sendo pressuposta como causa da alteraccedilatildeo sensiacutevel do proacuteprio sujeito Como mera alteraccedilatildeo do sujeito o fenocircmeno natildeo resume em si toda a realidade deixando fora de si o ldquoobjeto externordquo o que eacute declarado senatildeo como incognosciacutevel de direito pelo menos como natildeo conhecido de fato (REALE G amp ANTISERI 1990)

A proacutepria conduta do ceacutetico eacute de flutuaccedilatildeo no sentido de que natildeo haacute da parte dele uma verdade inquestionaacutevel a ser defendida como eacute caso dos dogmaacuteticos que com isso se precipitam e sofrem Claro que o ceacutetico estaacute tatildeo vulneraacutevel agraves necessidades quanto o dogmaacutetico todavia com a epokheacute e da posterior ataraxia ele natildeo sofre duas vezes numa mesma circunstacircncia e ao mesmo tempo como eacute o caso dos dogmaacuteticos ou seja pela necessidade mesma e pelos juiacutezos que formulam acerca dela (INAGUE JUacuteNIOR 2009) CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Sergio Cardoso escreveu que a produccedilatildeo acadecircmica atualmente no que se refere aos Ensaios de Montaigne eacute muito grande e que ela o consagra como filoacutesofo estudando suas abordagens em todas as disciplinas da filosofia da epistemologia agrave poliacutetica (CARDOSO 2017) especialmente no Brasil que eacute um dos paiacuteses que mais produziram dissertaccedilotildees e teses acerca do Ensaiacutesta Cardoso recomenda frequentar os Ensaios cujos contornos abissais natildeo

66 Eacutetica e filosofia poliacutetica

se datildeo agrave primeira vista numa visatildeo aparentemente placida ldquoEacute verdade que na superfiacutecie tranquila dos Ensaios natildeo se notam os abalos siacutesmicos sobre os quais deslizam suas aacuteguas claras Eacute preciso conviver com eles para alcanccedilar a dimensatildeo extraordinaacuteria destas rupturas promovidas pelo filoacutesofo (CARDOSO 2017 p 19)

Conforme Eva em lsquoMontaigne ceacuteticorsquo (2017) a libertaccedilatildeo dos princiacutepios universais dogmaacuteticos da religiatildeo e da metafiacutesica encontra fundamento nos argumentos dos ceacuteticos Mas este inteacuterprete apresenta em Montaigne um ceticismo existencial mais que epistemoloacutegico ou argumentativo bem como uma moralidade mais ativa e afirmativa que aquela da submissatildeo agraves sensaccedilotildees inclinaccedilotildees e costumes tal como sugere Pirro

Montaigne natildeo somente confere aos Ensaios a dimensatildeo subjetiva e provisoacuteria como tambeacutem se contrapotildee agraves noccedilotildees abstratas e geneacutericas e aponta a experiecircncia de si como o uacutenico saber capaz de orientar de alguma maneira nossas accedilotildees sempre singulares circunstanciadas e referidas a situaccedilotildees particulares Montaigne substitui a erudiccedilatildeo inflada as certezas pela experiecircncia buscando a observaccedilatildeo direta a anaacutelise e a criacutetica dos fatos Quando a razatildeo nos falta empregamos a experiecircncia De fato como vimos ao longo de nossa exposiccedilatildeo os escritos montaignianos abrem-se para vaacuterias possibilidades de articulaccedilatildeo porque natildeo se fecham a uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Eacute por essa razatildeo que Montaigne acompanhando Sexto opta pelo partido dos ceacuteticos para quem o julgador e o julgado estatildeo em contiacutenua mutaccedilatildeo e movimento (II 12)

Montaigne e o legado ceacutetico 67

Como assinalamos no transcorrer do texto Sexto se apresenta como um ceacutetico pirrocircnico e com este procedimento busca diferenciar sua filosofia do ceticismo acadecircmico Este ceticismo foi praticado pelos herdeiros de uma tradiccedilatildeo natildeo dogmaacutetica da Academia de Platatildeo do qual Ciacutecero foi testemunha Tambeacutem Santo Agostinho em sua fase ceacutetica passou pelo ceticismo acadecircmico e nos legou uma criacutetica a esta escola em sua obra Contra os Acadecircmicos Nesta obra a questatildeo debatida eacute a conexatildeo entre verdade e felicidade e divergindo dos acadecircmicos Santo Agostinho argumenta que a verdade pode ser conhecida e que inclusive a encontrou Montaigne incorpora a divisatildeo oferecida por Sexto Empiacuterico ndash e mencionada anteriormente - entre trecircs gecircneros baacutesicos de escolas de pensamento os dogmaacuteticos que argumentam saber algo com certeza e apresentam doutrinas explicaccedilotildees filosoacuteficas acerca do real os acadecircmicos que concluiacuteram que estatildeo seguros que a verdade natildeo pode ser encontrada efetivamente e por fim os verdadeiramente ceacuteticos skeptikon os que investigam porque julgam natildeo terem ainda chegado a uma conclusatildeo acerca do conhecimento da verdade Estamos nos referindo aos pirrocircnicos obviamente Os pirrocircnicos avaliam que todos os filoacutesofos tecircm limites sendo difiacutecil decidir qual eacute a verdadeira Desse modo eles permanecem em epokheacute mas perseveram incansavelmente em sua busca

Em seus estudos sempre argutos sobre Montaigne e o ceticismo Eva registra que os argumentos expostos por Sexto Empiacuterico ressurgem

68 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quase todos nos Ensaios Em seguida este inteacuterprete daacute como exemplo o fato de que Sexto compara as percepccedilotildees humanas com aquelas que supostamente encontrariacuteamos nos animais com o intuito de argumentar que se pode tratar as representaccedilotildees humanas como verdadeiras uma vez que natildeo temos acesso a um criteacuterio para comparaacute-las Esta comparaccedilatildeo encontra-se na base daquela que Montaigne realiza na famosa Apologia a Raymond Sebond Outro exemplo dado pelo inteacuterprete Sexto Empiacuterico confronta a diversidade de costumes leis e normas de conduta entre os diferentes povos com o mesmo objetivo de impedir nossa presunccedilatildeo de acesso agrave verdade isto se aproxima bastante do debate que Montaigne elabora em II 12 no problema do acesso agraves leis naturais na moral REFEREcircNCIAS BIRCHAL Telma O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte UFMG 2007 BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009 CARDOSO Seacutergio (org) Dossiecirc Ensaiar a proacutepria vida Montaigne filoacutesofo Revista Cult marccedilo de 2017) COMTE Jaimir O iniacutecio Sexto Empiacuterico e o ceticismo pirrocircnico Revista Cult 2015 EMPIacuteRICO Sexto Contra os retoacutericos Satildeo Paulo Unesp 2013 _______ Outlines of Pyrrhonism Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

Montaigne e o legado ceacutetico 69

_______ Against the logicians Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000b _______ Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronica sn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010) EVA Luiz A A Figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007 LAEacuteRCIO Dioacutegenes A vida de Pirro Trad Gabriela G Gazinelli Satildeo Paulo Loyola 2009 LESSA Renato Uma histoacuteria da duacutevida uma resenha de A Histoacuteria do Ceticismo de Richard Popkin Rio de Janeiro Ediccedilatildeo Laboratoacuterio de Estudos Hum(e)anos ndash Online Setembro 2008) MAIA NETO Joseacute Raimundo Ceticismo e Poliacutetica em Montaignerevistaestudoshumeanoscomceticismo-e-politica-em-montaigne-por-jose-raimundo-12 de dez de 2012 MARCONDES Danilo Iniciaccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia Rio de Janeiro Zahar 2007 MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 2002 2006 (Coleccedilatildeo Paideacuteia) 3 v NOBRE Marcos REGO Joseacute Marcio Conversas com filoacutesofos brasileiros Satildeo Paulo Ed 34 2000 NAKAM Geacuteralde Montaigne et son temps Les eacuteveacutenements et les Essais lhistoire la vie le livre Paris Gallimard 1993

70 Eacutetica e filosofia poliacutetica

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000 PORCHAT Oswald Sobre o que aparece Skeacutepsis Satildeo Paulo n 1 p 17 2007 _______ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1994 REALE G ANTISERI D Histoacuteria da Filosofia Antiguidade e Idade Meacutedia Vol I 3ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo Paulus 1990 SMITH Pliacutenio Junqueira O meacutetodo ceacutetico da oposiccedilatildeo e as fantasias de Montaigne Kriterion vol53 no126 Belo Horizonte Dec 2012 STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia da Letras 1992 VILLEY Pierre Les sources et lrsquoevolution des Essais de Montaigne Paris Hechette 1908 INAGUE JUacuteNIOR Marcelo Disponiacutevel em In httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Acesso 14072009

= III =

AMIZADE EM MONTAIGNE

Junior Cesar Luna

31 INTRODUCcedilAtildeO

De iniacutecio eacute preciso lembrar que amizade surgiu

como questatildeo filosoacutefica desde a Antiguidade na ocasiatildeo em que o nuacutecleo da discussatildeo filosoacutefica abandona a reflexatildeo sobre o cosmos e adota o homem como objeto num ambiente cultural e poliacutetico que envolve seacuterios problemas12 e questionamentos morais na filosofia antiga Nesta conjuntura de discussatildeo das relaccedilotildees humanas no meio social insere-se a reflexatildeo sobre a amizade tema este discutido natildeo soacute por Aristoacuteteles na Greacutecia antiga13

Mestre em filosofia moderna e contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute 12 A leitura dos Diaacutelogos de Platatildeo Mecircnon Banquete e Fedro satildeo

relevantes para compreendermos o contexto histoacuterico em que se insere o problema e a relaccedilatildeo entre a filosofia de Platatildeo e Aristoacuteteles pois tratam de pontos essenciais da filosofia deste pensador e cruzam-se problemas fundamentais da existecircncia humana Em Fedro e Banquete Platatildeo estuda nos dois diaacutelogos a noccedilatildeo do amor onde se origina qual seu verdadeiro objeto como se situa e qual a funccedilatildeo Em Mecircnon notamos a formaccedilatildeo embrionaacuteria do sistema platocircnico Trata-se de saber se a virtude pode ou natildeo ser ensinada se existe ou natildeo ldquociecircnciardquo da virtude ou eacute um dom da natureza Identificamos a influecircncia sofista bem viva neste diaacutelogo Os sofistas antigos ensinaram que as ideias satildeo para os homens e natildeo os homens para as ideias Isso ocasionou uma grande crise na filosofia antiga envolvendo seacuterias questotildees morais e eacuteticas que se confundem na filosofia grega 13 Soacutecrates deu iniacutecio agraves discussotildees sobre a justiccedila a virtude e o amor entre os sofistas e Platatildeo e tambeacutem com Soacutecrates teve iniacutecio a reflexatildeo filosoacutefica sobre a amizade

72 Eacutetica e filosofia poliacutetica

como tambeacutem por outros contemporacircneos a ele com bastante representatividade na era heleniacutestica

No Renascimento Michel de Montaigne ao escrever sobre a amizade daacute ares de ter encontrado uma verdadeira amizade Em Da Amizade capiacutetulo 28 do primeiro livro dos Ensaios relatou toda a importacircncia de seu viacutenculo de amizade com Eacutetienne de La Boeacutetie Mas ao descrevecirc-lo diferiu dos conceitos jaacute estabelecidos pelos filoacutesofos claacutessicos e tambeacutem da maneira que os pensadores do seu tempo entendiam a amizade em seu conceito e extensatildeo aleacutem de trabalhar a questatildeo tambeacutem no acircmbito privado estritamente particular Isto fica evidente quando escreve acerca das possiblidades de utilizaccedilatildeo do termo amizade na sociedade Neste trabalho foram buscadas as questotildees eminentemente eacuteticas e filosoacuteficas em relaccedilatildeo agrave amizade perseguindo a sua possiacutevel definiccedilatildeo a instituiccedilatildeo de um caraacuteter normativo bem como a sua elevaccedilatildeo a uma possiacutevel universalidade Como se pode observar questotildees como estas trazem em seu bojo inextinguiacuteveis polecircmicas Inevitavelmente nossa apresentaccedilatildeo se insere no conjunto deste debate filosoacutefico Na realidade insere-se na constataccedilatildeo deste tema na histoacuteria da filosofia neste repique que parece natildeo ter fim isto acabou se constituindo em uma motivaccedilatildeo para continuarmos pensando a amizade como um problema filosoacutefico em Montaigne

Portanto este trabalho objetiva discutir nuclearmente a relaccedilatildeo de amizade entre Montaigne e La Boeacutetie o seu ldquoirmatildeo de alianccedilardquo A leitura dos Ensaios provoca uma indagaccedilatildeo Qual eacute o estatuto filosoacutefico da amizade Afinal este tema perpassa toda a histoacuteria da filosofia Observamos que o homem por si soacute eacute um ser social isso torna o assunto da amizade bastante pertinente e uma reflexatildeo sobre o mesmo eacute extremamente relevante

Amizade em Montaigne 73

Em Da amizade Montaigne interroga a natureza de diferentes laccedilos diversos que ligam os seres humanos entre si Basicamente para ser amigo eacute preciso ser amigo de si mesmo conforme iremos argumentar O ensaiacutesta acompanha a interpretaccedilatildeo dos antigos ateacute um certo ponto depois ele os abandona Na questatildeo da amizade Montaigne eacute leitor e criacutetico de Aristoacuteteles Ciacutecero e Epicuro porque a definiccedilatildeo de amizade dos antigos necessita de uma reinterpretaccedilatildeo para compreender a de Montaigne e La Boeacutetie Mas concorda que a amizade eacute o sentimento mais perfeito que pode existir nas relaccedilotildees humanas e argumenta que se trata de uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar A amizade tem com isso a dimensatildeo da sociabilizaccedilatildeo uma vez que olhar para o outro eacute ter a consciecircncia de que o homem eacute um ser social Em decorrecircncia este trabalho justifica-se na medida em que a investigaccedilatildeo revela a importacircncia de La Boeacutetie para o iniacutecio da empreitada de redaccedilatildeo dos Ensaios De fato a morte de La Boeacutetie causou um impacto profundo na alma de Montaigne que o levou a cair numa recordaccedilatildeo penosa que lhe fez muito mal como registra em seu Journal de voyage (MONTAIGNE 1962) Podemos especular os Ensaios teriam sido escritos se La Boeacutetie natildeo tivesse morrido Os Ensaios foram a forma de tornar presente o amigo ausente como escreve Silva (2014 p 24) Para esta investigaccedilatildeo recorremos aos inteacuterpretes dos Ensaios e a proacutepria obra evidentemente Como mostra o tiacutetulo desta apresentaccedilatildeo o assunto central eacute a questatildeo da amizade que se apresenta para Montaigne como um relevante problema filosoacutefico Iremos argumentar que em Montaigne a amizade eacute o lugar de um encontro de si pois a identidade do eu eacute afirmada por meio dela Assim a amizade eacute o lugar da experiecircncia de si ou seja natildeo eacute na solidatildeo ou na pura volta a si que Montaigne encontra a solidez de

74 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uma vida verdadeira a real existecircncia de si mesmo mas numa relaccedilatildeo singular e paradigmaacutetica com o outro

Trataremos das formas de amizade que eacute encontrada no ensaio Da Amizade Nesse sentido tem especial importacircncia a visatildeo de Aristoacuteteles sobre a justiccedila equidade e amizade tentaremos mostrar a leitura de Montaigne acerca do pensamento aristoteacutelico especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco que foi usada por Montaigne para fundamentar a questatildeo da equidade Apoiado em Aristoacuteteles Montaigne escreve que os bons legisladores se ocuparam mais da amizade que da justiccedila O problema da amizade eacute fundamental para o ensaiacutesta porque avalia que das relaccedilotildees humanas eacute a das mais lsquobelas e nobresrsquo

Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma14

Montaigne distingue a amizade da relaccedilatildeo entre

irmatildeos pois os familiares natildeo satildeo livres escolhas de afeiccedilatildeo como o eacute uma verdadeira amizade O amor pelos pais tambeacutem natildeo eacute amizade uma vez que natildeo eacute uma relaccedilatildeo horizontal E com as mulheres que amamos eacute possiacutevel amizade desse tipo Montaigne salienta que se fosse possiacutevel a amizade desse tipo com quem gozamos as deliacutecias do corpo essa seria perfeita e total Do mesmo modo tratar-se-aacute da questatildeo asseverada por Ciacutecero acerca do valor da amizade de modo particular quando este afirma que haacute amizades profundas e refinadas amizades comuns e superficiais

Observamos que de Epicuro Montaigne retomaraacute a discussatildeo da utilidade da amizade Apresentar-se-aacute as

14 I 28 p 275

Amizade em Montaigne 75

exigecircncias e condiccedilotildees apresentadas por Montaigne para o desenvolvimento de uma verdadeira amizade Argumentaremos que a amizade eacute para Montaigne uma relaccedilatildeo consigo mesmo na qual o outro nos revela a noacutes mesmos como uma espeacutecie de espelhamento Trataremos da gecircnese da amizade de Montaigne com La Boeacutetie porque para Montaigne isso tem implicaccedilotildees filosoacuteficas da mais alta importacircncia mostraremos assim que os desapontamentos com a magistratura soacute natildeo satildeo maiores devido as ocorrecircncias particulares que o levaram ao encontro de Eacutetienne de La Boeacutetie em um evento festivo da cidade de Bordeaux quando este pertencia ao parlamento desde 1554 O Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria de La Boeacutetie ldquoserviu de intermediaacuterio para o nosso primeiro contatordquo15 entre os amigos e de pronto abriu caminho para uma beliacutessima e intensa amizade pois era notoacuteria uma afinidade de pensamento que teve grande contribuiccedilatildeo para a singularidade deste viacutenculo Desse modo abrindo espaccedilo para o contraditoacuterio trataremos de mostrar a diversidade de definiccedilotildees no que tange ao problema da amizade refletida por numerosos pensadores poreacutem aqui abordaremos apenas os que consideramos mais relevantes para esta apresentaccedilatildeo

32 TEMA DA AMIZADE EM MONTAIGNE

Starobinski (1993) mostra o desenvolvimento do

conceito de amizade em Montaigne explicando que este conceito o acompanha e o motiva no iniacutecio de seu retiro (que natildeo eacute o de um ermitatildeo mas sim o de um observador atento da sociedade) para a redaccedilatildeo dos Ensaios obra da vida de Montaigne que se dedicou a ela por cerca de vinte anos Essa obra expressa uma tentativa de conhecimento do fluxo do instante que passa e de se

15 I 28 p 232

76 Eacutetica e filosofia poliacutetica

deixar conhecer por seus parentes e amigos (ou lsquoao leitorrsquo conforme afirma) mostrando todavia que o uacutenico que lhe conhecia por completo Eacutetienne de La Boeacutetie (o fiel amigo ausente desde sua morte em 1563) o acompanha sempre em seus pensamentos como um guardiatildeo da sua mais pura imagem

Ele (La Boeacutetie) era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1993 p 45)

Em seguida Starobinski indica o movimento

montaigniano para construccedilatildeo de uma amizade equitativa virtuosa e indivisiacutevel que foi experimentada pelo proacuteprio ensaiacutesta em uma vivecircncia intensa com La Boeacutetie Nessa direccedilatildeo Starobinski escreve sobre a importante contribuiccedilatildeo da leitura dos claacutessicos antigos para definiccedilatildeo de amizade em Montaigne uma vez que o ensaiacutesta se utiliza dos antigos para abrilhantar o aspecto exemplar e inigualaacutevel de sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie descrevendo caracteriacutesticas de sua amizade que soacute pode ser vivida por homens como ldquoraridaderdquo e que saibam viver com reciprocidade como escolha profunda Aleacutem disso esse tipo de amizade implica numa alienaccedilatildeo16 voluntaacuteria da vontade de ambas as partes ao ponto de suas almas unirem-se de tal forma que natildeo haja mais uma linha divisoacuteria entre elas torna-se uma alma em dois corpos

Uma breve anaacutelise do Da Amizade aponta algumas destas caracteriacutesticas descritas por Montaigne salientando a importacircncia de um amigo que aparece como ponto central da apresentaccedilatildeo do capiacutetulo sobretudo pelo fato de que eacute dedicado agrave memoacuteria de

16 Registre-se poreacutem que a palavra lsquoalienaccedilatildeorsquo natildeo eacute usada por Montaigne (CONCEICAtildeO 2014 p 163)

Amizade em Montaigne 77

Eacutetienne de La Boeacutetie Na realidade trata-se de uma curta poreacutem intensa amizade que se estabeleceu entre ambos A falta deste amigo deixa um grande vazio visto que estaacute ausente agora aquele que lhe revelava a sua imagem Provavelmente eacute a ausecircncia do amigo que o impele a escrever na tentativa de recuperar a sua imagem que a morte do amigo levou consigo

A amizade ocupa um lugar central tanto na obra quanto na vida de Montaigne A concepccedilatildeo montaigniana da amizade eacute inseparaacutevel da memoacuteria da existecircncia de La Boeacutetie por isso estaacutevamos argumentando que ele se afasta da concepccedilatildeo claacutessico-renascentista pois para ele escrever sobre a amizade era escrever sobre si mesmo era um autoconhecimento da singularidade

Na amizade que de fato falo elas se mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniu se me pressionarem para dizer por que o amava sinto que isso soacute pode ser expresso [C] respondendo ldquoporque era ele porque era eurdquo (I 28 p 281)

O fato de todo o capitulo 28 ser uma homenagem

e uma reflexatildeo sobre La Boeacutetie jaacute sugere o quanto eacute difiacutecil a tarefa de precisar conceitualmente algo como lsquouma concepccedilatildeo montaignianarsquo acerca da amizade Todavia uma coisa eacute clara a amizade em que Montaigne e La Boeacutetie haviam compartilhado caracteriza-se pela fusatildeo perfeita com que se interligam os amigos Haacute algo de miacutestico na amizade ideal uma espeacutecie de transcendecircncia muacutetua por meio da qual se perdem e se confundem as almas dos companheiros

Pois essa amizade perfeita de que falo eacute indivisiacutevel cada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhe resta para distribuir alhures ao contraacuterio ele se aborrece por natildeo ser duplo triplo ou quaacutedruplo e por

78 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo ter vaacuterias almas e vaacuterias vontades para entregaacute-las todas a esse objeto (I28 p 285)

Claramente nota-se que a amizade para

Montaigne tem um aspecto interessante ela aponta para o amor equitativo vinculado agrave justiccedila e agrave igualdade inspirado em Aristoacuteteles De fato esta ideia eacute apontada no pensamento do Estagirita17 especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco para fundamentar a noccedilatildeo de equidade Quando somadas igualdade e justiccedila ao sentimento de amizade como resultado temos a amizade equitativa Esta amizade eacute fruto da reciprocidade dos amigos pois tem em vista a igualdade em porccedilotildees idecircnticas de um para com o outro Dessa maneira esta reflexatildeo aristoteacutelica eacute contemporacircnea a Montaigne de maneira que se apoia na noccedilatildeo de teacuteleia philia para que ocorra segundo Seacutergio Cardoso uma decifraccedilatildeo laboriosa da alianccedila que unira [Montaigne] a La Boeacutetie (CARDOSO 1987) Quando Montaigne se refere ao amigo La Boeacutetie afirma que ele e seu amigo se procuravam antes mesmo de se terem visto de modo que nascia neles uma afeiccedilatildeo com raiacutezes profundas E mais uma amizade desproporcional agravequilo que eacute relatado porque tem algo de indiziacutevel Assim ele compara a afeiccedilatildeo por seu amigo com um decreto de Providecircncia

procuraacutevamos antes mesmo de termos conhecido e por informaccedilotildees que ouviacuteamos um sobre o outro e que faziam em nossa afeiccedilatildeo mais efeito do que a razatildeo atribui agrave informaccedilatildeo creio que por alguma ordem do ceacuteu abraccedilaacutevamo-nos por nossos nomes18 (I28 p 281)

17 Aristoacuteteles eacute frequentemente referido como lsquoo Estagiritarsquo (ou ldquoo Filoacutesoforsquo) Isso se daacute pelo fato de que Estagira eacute o nome da cidade conhecida por ser onde nasceu Aristoacuteteles 18 Na traduccedilatildeo da Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo de 1984 ldquoNoacutes nos procuraacutevamos antes de nos termos visto e nascia em noacutes uma

Amizade em Montaigne 79

Com efeito a amizade eacute uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar O decreto da providecircncia se equipara agrave amizade agrave medida que considera as disposiccedilotildees ou medidas proacuteprias para alcanccedilar um fim no caso o nascimento desproporcional da afeiccedilatildeo Pode-se afirmar ainda que a Providecircncia ou ordem do ceacuteu corresponde a um acontecimento feliz ldquoSe as accedilotildees de ambos se desencontrassem eles natildeo seriam nem amigos um do outro segundo minha medida nem amigos de si mesmordquo (I 28 p 283)

Montaigne observa na obra de Ciacutecero uma narrativa do pensamento de Quiacutelon a respeito de amar como se pudesse vir a odiar Estes sentimentos extremos satildeo o que de fato compotildeem a vida Assim o filoacutesofo percebe pertinecircncia nos escritos de Ciacutecero o qual aponta que cautela e prudecircncia satildeo imprescindiacuteveis na escolha dos amigos para que natildeo se ame algueacutem que mais tarde venha a odiar Para tanto alerta para natildeo as confundir as amizades corriqueiras com a sua e a de La Boeacutetie

[B] mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p 283)

Para Montaigne na alma se encontra o desejo de

se unir ao outro para que encontre sua plena realizaccedilatildeo Sobretudo com os acontecimentos de sua vida tais como a morte do pai e do amigo o ensaiacutesta eacute levado a pensar em uma descontinuidade entre alma e corpo No bojo de sua reflexatildeo e nessa descontinuidade entre alma e corpo o autor faz o exerciacutecio da epocheacute suspensatildeo do juiacutezo Refletir significa um retorno aos acontecimentos e

afeiccedilatildeo em verdade fora de proporccedilotildees com o que nos era relatado no que vejo como que um decreto da Providecircnciardquo (I 28 p 94)

80 Eacutetica e filosofia poliacutetica

experiecircncias marcantes que natildeo podem ser apagados da memoacuteria de Montaigne Escrever representa deixar viva na histoacuteria sua experiecircncia de vida marcada pelos sentimentos de dor e de alegria Aleacutem do mais significa ainda presentificar a amizade de maneira que a entrega ao outro eacute assinalada pelos ensaios para natildeo se perder a parte que ainda resta da imagem de La Boeacutetie visto que como assinalamos ele escreve para que a imagem do amigo natildeo se perca neste fluxo constante que tudo arrasta

Na amizade se unem as vontades porque ambos buscam a mesma finalidade o bem ao outro numa fusatildeo verdadeiramente perfeita Assim forma-se uma amizade indivisiacutevel Por essa razatildeo natildeo eacute possiacutevel uma multiplicidade de amigos conforme aponta Seacutergio Cardoso

Se o amigo deseja o que seu amigo deseja se eacute tatildeo seguro da vontade do amigo como da sua proacutepria a hipoacutetese da multiplicidade dos amigos compromete a unidade da proacutepria vontade justamente a grande daacutediva da amizade (CARDOSO 1987 p 184)

Montaigne e La Boeacutetie adotam a mesma postura e

detestam a servidatildeo dos cidadatildeos ao tirano inclusive La Boeacutetie vecirc a amizade como uma saiacuteda possiacutevel de oposiccedilatildeo agrave tirania Poreacutem Montaigne quando apresenta a possibilidade de utilizar o termo amizade na sociedade natildeo sugere associaacute-la agrave lsquoamizade perfeitarsquo Prefere com isso denominar amizade verdadeiramente apenas sua forma perfeita relativa ao nome

A partir disso o ensaiacutesta pensa o conceito da amizade indivisiacutevel para apontar a uniatildeo das vontades bem como a distinccedilatildeo para com as amizades corriqueiras e opacas que acentuam o bem particular ou privado o utilitarismo e o bem familiar Epicuro registra em suas Sentenccedilas Principais que de todas as coisas que a sabedoria nos oferece para a felicidade da vida a maior eacute

Amizade em Montaigne 81

a amizade De acordo com ele a amizade ainda que natildeo nos livre das dores do corpo e da alma nos auxilia a suportaacute-las Como eacute sabido Epicuro julga que o mais alto prazer reside no que chama de sauacutede Entre os prazeres elege a amizade Por isso o conviacutevio entre os estudiosos de sua doutrina era tatildeo importante a ponto de viverem em uma comunidade nominada de ldquoO Jardimrdquo Portanto de todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida a maior eacute a aquisiccedilatildeo da amizade

Constatamos em nossa pesquisa que Montaigne diverge de Aristoacuteteles quanto agrave origem da amizade poreacutem recorre ao Estagirita para fundamentar a ideia de amizade como amor equitativo ligado agrave concepccedilatildeo de justiccedila19 e igualdade Como vimos anteriormente em tais definiccedilotildees no pensamento de Aristoacuteteles o igual eacute definido pelo termo grego isoacutetes igualdade que eacute correspondente agrave justa medida Mas a principal divergecircncia com Aristoacuteteles eacute expressa por Montaigne quando se refere agrave ldquoorigemrdquo da relaccedilatildeo entre amigos Montaigne afirma que a origem da amizade natildeo se encontra na bondade ou na virtude dos sujeitos mas sim em si mesmo ou seja eacute imanente agrave proacutepria relaccedilatildeo20

Se Montaigne parte como indicamos anteriormente da acepccedilatildeo mais abrangente da palavra amizade ndash cujo contexto acabamos de assinalar ndash eacute no entanto apenas com uma intenccedilatildeo purgativa e criacutetica Pois na verdade a primeira parte de seu texto examinando a tipologia tradicional das formas associativas opera uma reduccedilatildeo tatildeo draacutestica na extensatildeo do conceito que solapa profundamente natildeo soacute as elaboraccedilotildees

19 Vale lembrar que segundo Aristoacuteteles o dikaion justo eacute definido como o isos igual isto eacute uma posiccedilatildeo que recomenda a si mesma a todos sem necessidade de evidecircncia Haja vista que o igual eacute uma mediania de modo que o justo tambeacutem eacute uma espeacutecie de mediania (SILVA 2014 p 99) 20 CARDOSO 1986 p 172

82 Eacutetica e filosofia poliacutetica

humanistas de seu tempo mas tambeacutem a ldquoopiniatildeo dos antigosrdquo (CARDOSO 1986 p 169)

Portanto a posiccedilatildeo de Montaigne eacute divergente do

que afirma Aristoacuteteles

[] A amizade perfeita eacute a existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de excelecircncia moral neste caso cada uma das pessoas quer bem agrave outra de maneira idecircntica porque a outra pessoa eacute boa e elas satildeo boas em si mesmas Entatildeo as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles satildeo amigas no sentido mais amplo pois querem bem por causa da proacutepria natureza dos amigos e natildeo por acidente [] (EN VIII 3 p 176)

Podemos entender entatildeo que ao se referir agrave

amizade Montaigne restringe radicalmente seu significado quanto as outras formas de amizade existentes diferentemente daquelas que os antigos fazem referecircncias tradicionais O ensaiacutesta julga que elas apenas se assemelham com a amizade mas de fato natildeo satildeo Diante desta anaacutelise cabe expor algumas formas de amizade que Montaigne analisa e comenta ora tecendo duras criacuteticas ora concordando parcialmente

Em primeiro lugar vejamos a amizade que tem por motivaccedilatildeo o viacutenculo familiar Existe limitaccedilotildees que impedem familiares de se tornarem amigos A criacutetica montaigniana tem como objetivo atingir e destruir a noccedilatildeo de amizade utilizada para identificar relaccedilotildees de viacutenculo comum devido a sua semelhanccedila entre as relaccedilotildees de viacutenculo natural matrimonial camaradagem e social Ao mostrar essas divergecircncias dentro do conceito de amizade ele natildeo pretende criar um novo designo mas sim reservar o termo para nominar apenas o mais puro viacutenculo entre os homens dentro de uma sociedade Da mesma forma natildeo eacute de seu interesse criar um tratado sobre o tema objetivando sanar as divergecircncias entre as

Amizade em Montaigne 83

definiccedilotildees tatildeo pouco apresentar o caraacuteter normativo da amizade bem como a possibilidade de sua universalizaccedilatildeo Isto natildeo compotildee qualquer pretensatildeo de Montaigne

Ora Montaigne seguindo os passos de Aristoacuteteles natildeo discorda que o homem seja um animal social ao contraacuterio nesta mesma direccedilatildeo reforccedila escrevendo nos ensaios

Natildeo haacute algo a que a natureza pareccedila nos ter encaminhado tanto como para a sociedade E diz Aristoacuteteles que os bons legisladores ocuparam-se mais da amizade que da justiccedila Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma (I 28 275)

Para Montaigne se o homem deseja viver

adequadamente precisa ter amigos pois isto estaacute de acordo com as leis da natureza Assim afirma Sergio Cardoso dizendo que

O amigo nos espelha e nos identifica Por isso talvez Aristoacuteteles ndash que Montaigne acompanha de perto ndash tenha dito na abertura de sua grande dissertaccedilatildeo sobre a amizade que ela ldquoeacute o que haacute de mais necessaacuterio para viver (CARDOSO 1986 p 162)

A amizade seria entatildeo o ldquoviacutenculo social por

excelecircncia pois ela faz do viver em comum uma escolha e natildeo uma necessidaderdquo como apontou Labarriegravere (2003)21 Ainda no mesmo sentido o ensaiacutesta visa extrair

21 LABARRIEgraveRE Jean-Louis Aristoacuteteles verbete inserto In Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral organizado por CANTO-

SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral trad Ana

84 Eacutetica e filosofia poliacutetica

elementos que permitem um entendimento maior dos viacutenculos naturais de relaccedilatildeo do homem Poreacutem diferente de Aristoacuteteles que pontua a amizade no terreno da natureza (ou seja a amizade eacute natural ao ser humano) Montaigne observa que a amizade estaacute no campo da eacutetica das escolhas portanto natildeo estaacute determinado e esclarece sua diferenccedila frente aos laccedilos familiares

Na questatildeo da amizade Montaigne concorda com os filoacutesofos Aristipo22 e Plutarco23 (que o ensaiacutesta tanto admira) quando desconsideram as relaccedilotildees familiares Montaigne eacute fulminante quando afirma que a famiacutelia natildeo promove a amizade tal como ele a concebe Principalmente pela hipoacutetese da plenitude da virtude hiacuteperocheacute24 ou seja a famiacutelia natildeo permite as relaccedilotildees de amizade devida a diferenccedila existente entre seus membros A exemplo disto toma a relaccedilatildeo entre pai e filho afirmando que jamais um pai poderia ser amigo de seu filho a reciacuteproca tambeacutem eacute verdadeira jamais um filho poderia ser amigo de seu pai O que impossibilitaria o desenvolvimento desta relaccedilatildeo De acordo com Montaigne eacute em razatildeo do lsquorespeitorsquo que pais e filhos natildeo podem ser amigos visto que devido a sua posiccedilatildeo de desigualdade os filhos natildeo podem dirigir duras advertecircncias a seu pai como devem sempre fazer ao amigo Assim tendo que as suprimir falharia com a fidelidade a seu amigo Portanto amizade se restringe a este tipo de viacutenculo de modo que entre pais e filhos natildeo existe amizade de que fala nosso autor

Maria Ribeiro-Althoff et alii vol 1 Rio Grande do Sul Editora Unisinos 2003 p 123 22 435 a 356 aC filoacutesofo grego fundador da escola cirenaica que defende o controle sobre o prazer afirmando que o prazer eacute o que daacute sentido agrave vida 23 46 a 126 dC filoacutesofo e historiador grego do periacuteodo greco-romano foi muito influente na cultura ocidental 24 Superioridade respeito consideraccedilatildeo e estima que constituem a famiacutelia

Amizade em Montaigne 85

O princiacutepio do respeito impede a relaccedilatildeo amical entre pai e filho devido ao niacutevel hieraacuterquico dentro da famiacutelia Assim o filho deve se espelhar em seu pai tendo como orientaccedilatildeo a noccedilatildeo de mimesis25 Sobre a questatildeo da relaccedilatildeo de amizade entre pais e filhos Montaigne segue Aristoacuteteles de perto (CARDOSO 1986 p 176) no que diz respeito ao problema da voluntariedade pois os familiares tecircm o mesmo sangue como se fosse um outro ldquoeurdquo desta forma natildeo existe a possiblidade da escolha nestas relaccedilotildees Isto implica em outra limitaccedilatildeo para a amizade entre famiacutelia Natildeo existe amizade de caraacuteter involuntaacuterio ou seja um amigo escolhe o outro e vice-versa voluntariamente livre de obrigaccedilotildees preacute-concebidas

Vale a pena lembrar que foi a pedido de seu pai que Montaigne traduziu a Theacuteologie naturelle de Raymond Sebond publicada em 1487 assim fez para natildeo o desagradar deixando perceptiacutevel seu afeto respeitoso Em que pese o carinho a admiraccedilatildeo e o respeito pela figura paterna o pai de Montaigne natildeo era seu amigo porque natildeo poderia secirc-lo Exatamente porque como jaacute chamamos a atenccedilatildeo a amizade ao contraacuterio do ambiente familiar tem uma conotaccedilatildeo espontacircnea que compreende as duas vontades que se fundem numa soacute Por maior que fosse a afeiccedilatildeo para com seu pai natildeo existiam elementos fundamentais do viacutenculo de amizade Esta eacute arquitetada pela abertura muacutetua sem nenhum tipo de ressentimento ou receio que englobe uma relaccedilatildeo de verticalidade como eacute o caso do respeito de filho Horizontalidade na amizade implica em que um confie no outro de maneira reciacuteproca e juntos onde por meio do diaacutelogo constituam os elementos que compotildeem os seus deveres muacutetuos da amizade tais como os da correccedilatildeo e da troca de experiecircncias Ou numa palavra amor muacutetuo

25 A arte de imitar termo grego

86 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Desse modo eacute o diaacutelogo que sustenta a amizade

e permite a consciecircncia da vontade do outro a comunicaccedilatildeo eacute fundamental para a composiccedilatildeo do viacutenculo de amizade26 pois ela eacute quem alimenta e fornece subsiacutedios para o fortalecimento deste viacutenculo amical sendo que ao dialogar discute-se ideias apresenta-se ao outro aquilo que sente em seu interior sem reservas ou receio livre de constrangimento tendo por objetivo ser entendido pelo outro Dentro da famiacutelia isso seria impossiacutevel aliaacutes quantas vezes pais se tornam opressores de ideias natildeo permitindo que os filhos expressem o que pensam dos atos por eles cometidos O respeito na verticalidade impede uma intimidade acentuada entre os membros da famiacutelia e os torna inconveniente Obviamente nos referimos agrave verticalidade e agrave horizontalidade de relaccedilotildees no sentido de procurar distinguir de que tipo de respeito estamos falando Quando Montaigne refere-se ao lsquorespeito pelo pairsquo como uma dificuldade para a amizade natildeo eacute que natildeo deva haver respeito em todas as relaccedilotildees humanas Ocorre apenas que Montaigne chama a nossa atenccedilatildeo pelo fato de que o respeito que se tem pelo pai eacute diferente daquele que se tem pelo amigo

A comunicaccedilatildeo sincera eacute uma das primeiras incumbecircncias da amizade o aconselhamento eacute o caminho aberto entre as pessoas para se advertir dar avisos formular censuras visando sempre o crescimento muacutetuo bem como o estreitamento do viacutenculo Como o amigo eacute aquele capaz de advertir Montaigne chama a atenccedilatildeo para as relaccedilotildees que alguns chamam de amizade poreacutem satildeo carregadas de palavras suaves superficiais elogios exagerados e benevolecircncias banais Montaigne estaacute afinado com Ciacutecero quando este escreve

Portanto advertir e ser advertido eacute proacuteprio da amizade verdadeira desde que isso seja feito com franqueza e

26 A amizade alimenta-se de comunicaccedilatildeo (I 28 276)

Amizade em Montaigne 87

afabilidade e recebido com paciecircncia e sem ressentimento Estejamos persuadidos de que na amizade nada eacute pior que a adulaccedilatildeo a lisonja a bajulaccedilatildeo sim podemos multiplicar os nomes como quisermos mas eacute preciso condenar o viacutecio dessas criaturas friacutevolas e falazes que sempre falam para agradar nunca para dizer a verdade (CIacuteCERO 2012 p 75)

As pessoas incapazes de dizer a verdade natildeo

estatildeo propensas a bons relacionamentos estas tecircm como objetivo o interesse pessoal e o proacuteprio prazer vivem camufladas pautadas na individualidade de seus interesses Ciacutecero adverte ainda formulando a primeira lei da amizade afirmando que o amigo deve ser prudente usar francamente sua opiniatildeo repreender com severidade quando necessaacuterio e que seja capaz de obedecer agraves orientaccedilotildees do outro com paciecircncia e sem ressentimento

Retomemos que haacute uma outra criacutetica montaigniana a respeito da amizade entre familiares a que tem por foco os irmatildeos Tambeacutem nesta situaccedilatildeo o obstaacuteculo eacute o mesmo que a dos pais para com os filhos a condiccedilatildeo de desigualdade e a falta de escolha entre os sujeitos Ningueacutem escolhe os proacuteprios irmatildeos Para tanto faz como se fossem suas as palavras de Aristipo e Plutarco quando

ldquopressionado sobre a afeiccedilatildeo que devia a seus filhos por terem saiacutedo dele pocircs-se a cuspir dizendo que aquilo tambeacutem saiacutera delerdquo e Plutarco que queria induzir a entender-se bem com o irmatildeo respondeu que lsquonatildeo tinha maior consideraccedilatildeo por ele soacute porque saiu do mesmo buracorsquo (I 28 276)

Montaigne argumenta que aquilo ao qual se daacute o

nome de lsquoamizadersquo e de lsquoamigorsquo verdadeiramente natildeo merece tal nome quando se trata de ligaccedilotildees familiares O ensaiacutesta parece entender que existe uma divergecircncia

88 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na concepccedilatildeo de viacutenculo familiar e de amizade pois amizade desempenha um papel diferente da famiacutelia na sociedade Afinal procuramos mostrar que conforme Montaigne a desigualdade entre os familiares bem como o respeito e a impossibilidade de escolha inviabilizam a amizade com viacutenculo familiar visto que impotildee limites aos quais a amizade natildeo suporta Acrescenta Birchal

Em relaccedilatildeo aos viacutenculos naturais como os laccedilos de paternidade e filiaccedilatildeo a amizade eacute superior pois escolhida (e natildeo determinada pela natureza) e fundada numa igualdade (ao contraacuterio da hierarquia entre pai e filho que impede a plena comunicaccedilatildeo) (BIRCHAL 2000 p 292)

Em prosseguimento Michel de Montaigne natildeo

deixa de observar que tambeacutem se associa a amizade no casamento ou na relaccedilatildeo existente entre um homem e uma mulher Disso Montaigne discorda uma vez que para ele o amor conjugal de um casal natildeo pode ser entendido como relaccedilatildeo de amizade Conclui que o marido natildeo eacute amigo de sua mulher Acompanhando Aristoacuteteles Montaigne faz questatildeo de distinguir a amizade daquele sentimento passional que existe para com as mulheres Ainda que reconheccedila que a escolha por uma mulher e natildeo por outra seja proveniente do livre arbiacutetrio (diferente do caso de irmatildeos) a paixatildeo eacute um sentimento arriscado inconstante e fraacutegil Se o marido se tornar um amigo da esposa a relaccedilatildeo corporal apaixonada esfria Nesta questatildeo continuemos a seguir Montaigne em sua escrita sobre o valor da amizade

Na amizade eacute um calor geral e universal temperado e uniforme em tudo um calor constante e sereno todo doccedilura e gentileza que nada tem de rude e pungente Tatildeo logo entra nos termos da amizade isto eacute na concordacircncia das vontades o amor se dissipa ou se enfraquece A fruiccedilatildeo arruiacutena-o pois sua meta eacute corporal e sujeita agrave saciedade A amizade ao contraacuterio

Amizade em Montaigne 89

eacute desfrutada na medida em que eacute desejada e apenas na fruiccedilatildeo se cria se alimenta e cresce porque eacute espiritual e a alma se aprimora com o uso (I 28 277278)

Acrescenta Montaigne que sobre a amizade no

relacionamento conjugal vale a pena observar que o caraacuteter voluntaacuterio se extingue apenas em sua adesatildeo de maneira que passando isto a liberdade se esvai Nosso autor chama a atenccedilatildeo ainda na questatildeo conjugal que esta pode adquirir ateacute uma caracteriacutestica comercial sobretudo o caso daqueles matrimocircnios engendrados para aumentar o patrimocircnio e a riqueza Acrescente ainda que na eacutepoca de Montaigne era muito difiacutecil a separaccedilatildeo dos cocircnjuges Ele brinca dizendo que o casamento somente tem lsquoporta de entradarsquo Claro tais fatos satildeo adversos aos interesses da amizade que soacute pode ter por fim ela mesma e por isso nela haacute liberdade tanto para adesatildeo quanto para rescisatildeo desse relacionamento (diferente do casamento)

Desta forma acabamos de ver que o ensaiacutesta reforccedila que a finalidade da amizade deve ser ela mesma contrapondo-se ao casamento pois neste podemos notar objetivos adversos agrave sua finalidade O lsquobom casamentorsquo seria aquele que se aproxima da amizade Entatildeo e se nossa amante pudesse ser nossa amiga Respondendo a esta indagaccedilatildeo o ensaiacutesta considera que se por acaso pudeacutessemos ter este relacionamento de maneira livre e voluntaacuteria com nosso cocircnjuge seria sem duacutevida a mais plena e completa amizade jaacute experimentada pela humanidade Eacute interessante a afirmaccedilatildeo do ensaiacutesta quando diz o bom casamento eacute aquele que se assemelha com a amizade27 No entanto segundo Montaigne natildeo existem registros de que isso possa ter acontecido e pelo consenso dos antigos isto estaacute longe de acontecer

27 III 5 99

90 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Logo em seguida a esta passagem dos Ensaios

Montaigne discute se eacute possiacutevel uma relaccedilatildeo de amizade no caso da pederastia antiga grega Comeccedila dizendo que a pederastia eacute lsquoabominada pelos costumes de sua eacutepocarsquo Como ceacutetico ele acata os costumes mas nem sempre Montaigne concorda na vida privada com os costumes Note-se que ele se refere ao fato de que a pederastia eacute lsquoabominado por nossos costumesrsquo poreacutem natildeo diz que ele pessoalmente a condena Natildeo eacute nosso propoacutesito aprofundar este tema mas Montaigne parece rechaccedilar a pederastia grega natildeo por uma questatildeo moral mas por natildeo ser uma relaccedilatildeo entre iguais (diferenccedila de idade de classe de ofiacutecio) Mas no tocante agrave pederastia entre iguais Montaigne natildeo se deteacutem a examinar Assim sendo neste caso Montaigne critica o viacutenculo estabelecido entre pessoas com disparidade de idade e diferenccedila de objetivos Portanto podemos entender porque para Montaigne tambeacutem temos obstaacuteculos na consecuccedilatildeo da amizade no caso da pederastia antiga grega e mesmo no relacionamento entre pessoas do mesmo gecircnero porque o fim da amizade natildeo estaacute nela mesma mas sim em um sentimento avassalador de paixatildeo Eacute uma relaccedilatildeo humana mas natildeo cumpre as exigecircncias estabelecidas pela amizade a que Montaigne se refere

E aquela outra licenciosidade grega eacute legitimamente abominada por nossos costumes Entretanto como segundo o uso ela comportava uma tatildeo necessaacuteria disparidade de idades e diferenccedila de benefiacutecios entre os amantes tampouco atendia suficientemente agrave perfeita uniatildeo e concordacircncia que aqui exigimos (I 28 279)

Logo em seguida Montaigne debatendo sempre

acerca da amizade usa os questionamentos de Ciacutecero agrave praacutetica da pederastia problematizando sobre a possibilidade de neste tipo de relaccedilatildeo amorosa haver

Amizade em Montaigne 91

amizade Pergunta ldquoo que seria de fato este amor de amizade De onde viria que ele natildeo se ligue nem a um jovem feio nem a um anciatildeo belordquo Respondendo parcialmente agrave questatildeo conclui que ldquotudo o que se pode apresentar em favor da academia eacute dizer que se tratava de um amor que terminava em amizaderdquo (I 28 280) Sugere assim que tanto o casamento quanto a pederastia podem terminar em amizade Ocorre que Montaigne suscita perguntas ateacute mesmo quando procura respondecirc-las Isto posto cabe agora analisar a diferenccedila da amizade para com os viacutenculos comuns na sociedade

Nesta ideia de amizade frouxa novamente a leitura de Montaigne aproxima-se de Aristoacuteteles visto que para o Estagirita as amizades comuns equivalem a relaccedilotildees de camaradagem Nestas relaccedilotildees ldquoas amizades deste tipo satildeo apenas acidentais pois natildeo eacute por ser quem ela eacute que a pessoa eacute amada mas por proporcionar agrave outra algum proveito ou prazerrdquo (EN VII 4 p 177) Sendo assim amizade comum eacute aquela em que o interesse estaacute nas vantagens e as accedilotildees praticadas de um para com o outro fundamentam-se no dever soacute em si mesmo e natildeo satildeo motivadas pelo bem que proporcionam ao outro Portanto natildeo eacute uma relaccedilatildeo de igualdade pois o dever leva ao sentimento de obrigaccedilatildeo com o outro em busca de um favor do reconhecimento ou seja trazendo para a nossa expressatildeo popular ldquoo que eu vou ganhar em troca distordquo accedilotildees que visam ao lucro ou favorecimento

Neste mesmo rumo Montaigne clama para que sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie natildeo seja colocada na mesma linha das relaccedilotildees de camaradagem pois nestas temos que andar sempre atentos cautelosos devido a desconfianccedila nas intenccedilotildees do outro deste modo natildeo devemos deixar de ter prudecircncia Se na amizade verdadeira haacute uma entrega ao amigo por ela mesma jaacute

92 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na amizade comum eacute preciso preservar-se porque natildeo eacute por ela mesma

Que natildeo me coloquem na mesma linha essas outras amizades comuns tenho tanto conhecimento delas como qualquer outro e das mais perfeitas em seu gecircnero mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p283)

Em outras palavras as amizades comuns tecircm

como finalidade o prazer ou a utilidade elementos que natildeo deixam de existir em nenhuma espeacutecie de amizade A diferenccedila eacute que no viacutenculo de amizade que Montaigne descreve este natildeo eacute o fim uacuteltimo da amizade De qualquer forma amizade soacute existe entre pessoas boas e ser uacutetil e agradaacutevel satildeo caracteriacutesticas de bons cidadatildeos Embora sejam elas fundamentais a amizade pura natildeo se esgota quando recebe favor do outro pois este deseja o bem para si tanto para com o outro Neste sentido compreende Aristoacuteteles (ao qual Montaigne de perto como empreacutestimo para sua proacutepria concepccedilatildeo) que

a amizade por prazer tem alguma semelhanccedila com esta espeacutecie pois pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente agradaacuteveis Acontece o mesmo em relaccedilatildeo agrave amizade por interesse pois as pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente uacuteteis (EN VIII 6 p 179)

A questatildeo que distingue os tipos de amizade

como se vecirc eacute o fim almejado Na perspectiva do ensaiacutesta a definiccedilatildeo

aristoteacutelica de uma alma em dois corpos eacute a justificativa para uma fusatildeo das vontades Por esta razatildeo Montaigne descreve sua experiecircncia de amizade com La Boeacutetie como sendo onde este princiacutepio estaacute presente onde ldquotudo eacute verdadeiramente comum entre elesrdquo Nesta

Amizade em Montaigne 93

amizade existe uma harmonia uma uniatildeo completa e sem reservas em uma palavra perfeita

Nesse nobre comeacutercio os serviccedilos e benefiacutecios que alimentam as outras amizades nem sequer merecem ser levados em conta a causa eacute essa fusatildeo plena de nossas vontades Pois assim como a amizade que tenho para comigo natildeo recebe aumento pelo socorro que me presto na necessidade natildeo importa o que digam os estoacuteicos e como natildeo me sou grato pelo serviccedilo que faccedilo assim tambeacutem a uniatildeo de tais amigos sendo realmente perfeita faz que eles percam a percepccedilatildeo desses deveres e odeiem e eliminem dentre eles estas palavras de divisatildeo e diferenccedila benefiacutecio obrigaccedilatildeo reconhecimento pedido agradecimento e suas semelhanccedilas Como tudo verdadeiramente comum entre eles ndash vontades pensamentos julgamentos bens mulheres filhos honra e vida ndash e sua harmonia eacute de uma uacutenica alma em dois corpos segundo a muito adequada definiccedilatildeo de Aristoacuteteles (I 28 p 284)

Na amizade perfeita tudo eacute conhecido pelo

amigo seus pensamentos suas intenccedilotildees e julgamentos Montaigne afirma que sua alma e a de La Boeacutetie andavam tatildeo juntas quanto possiacutevel por este motivo a comunhatildeo de ideias e experiecircncias era concebida com a mesma convicccedilatildeo da afeiccedilatildeo que sentiam um pelo outro De modo que a admiraccedilatildeo reciproca eacute complementada pela correspondecircncia do gosto e compartilhada pelo diaacutelogo que alimenta a amizade De modo que lsquocom certezarsquo as intenccedilotildees do amigo de Montaigne eram conhecidas por ele bem como seus julgamentos por isso ele escreve que de bom grado confiaria mais no amigo do que em si mesmo

A amizade verdadeira eacute uma experiecircncia de singularidade por isso Montaigne considera uma raridade a amizade que teve com La Boeacutetie Montaigne julga que esta amizade eacute incomparaacutevel devido a sua integridade e

94 Eacutetica e filosofia poliacutetica

dedicaccedilatildeo extrema sobre a qual natildeo se encontra registros de uma amizade tatildeo perfeita na histoacuteria e muito menos entre os contemporacircneos Reforccedila e a eleva ao mais alto grau da perfeiccedilatildeo humana pois a virtude da amizade eacute bela e perfeita quando sua finalidade eacute ela mesma Desta forma existe um caraacuteter de completude neste tipo de amizade onde um completa o outro numa harmonia incomparaacutevel Vejamos isso nas proacuteprias palavras do ensaiacutesta ao escrever sobre os primeiros encontros com o Amigo

Encaminhando assim essa amizade que enquanto Deus quis alimentamos entre noacutes tatildeo integra e tatildeo perfeita que sem a menor duacutevida natildeo se lecirc sobre outras iguais e entre nossos contemporacircneos natildeo se vecirc o menor indicio de sua praacutetica Para construiacute-la satildeo necessaacuterias tantas circunstancias que eacute muito se afortuna o conseguir uma vez a cada trecircs seacuteculos (I 28 p 275)

Aleacutem disso a uniatildeo dos amigos eacute de grande

intensidade ao ponto de consolidar esta bela alianccedila com um nobre tratamento chamando-o de irmatildeo ldquoNa verdade o nome irmatildeo eacute um nome belo e cheio de deleccedilatildeo e por esse motivo noacutes dois ele e eu usamo-lo em nossa alianccedilardquo (I 28 276) Starobinski lembra que La Boeacutetie ao deixar sua biblioteca e seus papeacuteis de heranccedila para Montaigne escreve uma carta onde expressa ao amigo seu desejo e chama-o de irmatildeo

E depois voltando seu discurso para mim Meu irmatildeo disse ele que amo tatildeo afetuosamente e que escolhera entre tantos homens para renovar convosco essa virtuosa e sincera amizade cujo uso estaacute pelos viacutecios haacute tanto tempo afastado de noacutes que dele natildeo restam senatildeo alguns velhos vestiacutegios na memoacuteria da Antiguidade Suplico-vos como sinal de minha afeiccedilatildeo por voacutes que aceiteis ser o sucessor de minha biblioteca e de meus livros que vos dou (apud STAROBINSKI 1992 p 60)

Amizade em Montaigne 95

Sem duacutevidas esta atitude de La Boeacutetie eacute uma

marca concreta da amizade intensa e verdadeira para com Montaigne Deixar a biblioteca como heranccedila tem um valor que vai muito aleacutem dos bens materiais pois estava ali em seus papeacuteis parte de Montaigne bem como de suas ideias compartilhadas com o amigo Eacute um ato que expressa confianccedila imensuraacutevel e para retribuir agrave altura esta mesma Montaigne insere nos ensaios a figura de seu amigo de forma indireta na redaccedilatildeo dos textos aleacutem de dedicar o escrito da Amizade onde se esforccedila para mostrar a constituiccedilatildeo desta amizade perfeita e a diferenciaacute-la das demais Observa Cardoso

Montaigne esquadrinha toda a gama dos viacutenculos associativos e interroga a natureza destes laccedilos diversos que atamos homens entre si (o estatuto das diversas philiai portanto jaacute que para os antigos esta palavra designa tambeacutem mais amplamente todas as formas de afinidade entre os seres e de suas associaccedilotildees) Ao mesmo tempo ele como que hierarquiza esses viacutenculos pelo grau da alianccedila que propiciam pela sua consistecircncia e solidez e instala no topo da classificaccedilatildeo reinando soberana a verdadeira amizade a amizade acabada ndash teacuteleacuteia philia dissera Aristoacuteteles ndash ldquouniatildeo perfeitardquo sem brechas ou fissuras ldquoDivina ligaccedilatildeordquo ldquoa coisa mais uma e unidardquo atada pelos ldquonoacutes serrados e duraacuteveisrdquo de uma ldquocostura santardquo fusatildeo das almas satildeo as expressotildees de Montaigne para essa amizade Amizade que ele afirma ser o estofo da alianccedila que o associara a Etienne de La Boeacutetie (CARDOSO 1987 p 165)

Uma expressatildeo marcante neste ensaio da

Amizade eacute a de ldquofusatildeo das almasrdquo que provem de uma forccedila28 arrebatadora ldquoinexplicaacutevel e fatalrdquo que segundo Montaigne foi ldquomediadora dessa uniatildeordquo (I 28 281) ndash

28 Na nota 22 da p 281 esta forccedila eacute chamada de lsquodestinorsquo

96 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uniatildeo entre Montaigne e La Boeacutetie Avalia que mesmo sem saber como explicar sabe-se que esta forccedila domina as vontades de maneira a mesclar a tal ponto que natildeo existe maneiras de identificaacute-las separadamente as almas ldquose mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniurdquo (I 28 281) Todavia esta fusatildeo natildeo a anula pessoas esta amizade soacute pode existir porque era Montaigne e porque era La Boeacutetie Natildeo se perde a individualidade na amizade perfeita pois um eacute o complemento do outro

A lsquoamizade perfeitarsquo eacute indivisiacutevel e de completude ldquoCada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhes resta para distribuir alhuresrdquo (I 28 285) diferente das lsquoamizades superficiaisrsquo e das amizades comuns Na amizade perfeita soacute existe espaccedilo para dois iguais (equivalente a uma alma) Assim aquele que pretende ampliar a experiecircncia da amizade perfeita entra em um dilema paradoxal Seguindo as questotildees postas no texto por Montaigne exatamente porque a amizade eacute indivisiacutevel e de completude torna-se clara a dificuldade em se ter muitos amigos ldquose dois pedissem para ser socorridos qual acudiriacuteeis Se solicitassem de voacutes serviccedilos opostos que ordem encontrariacuteeis nisso29 Se um confiasse ao vosso silecircncio algo que ao outro fosse uacutetil saber como vos desenredariacuteeis dissordquo (I 28 p 285286) Portanto quanto agrave amizade perfeita eacute impossiacutevel que seja dupla Aleacutem disto duplicar-se jaacute eacute uma daacutediva inigualaacutevel e aqueles que dizem querer estendecirc-la para mais um ainda natildeo conhecem a grandeza da amizade perfeita

Montaigne usa os exemplos antigos e suas experiecircncias para fundar suas opiniotildees assinalando que

29 Qual deles atenderiacuteeis em primeiro lugar Ou talvez como resolveriacuteeis essa dificuldade

Amizade em Montaigne 97

natildeo tem por objetivo ensinar o que se deve fazer30 Este tipo de amizade natildeo tem preccedilo A propoacutesito disto o ensaiacutesta comenta um exemplo de Eudacircmidas

Em suma satildeo fatos inimaginaacuteveis para quem natildeo experimentou e que me faz elogiar extremamente a resposta daquele jovem soldado a Ciro que lhe perguntava por quanto ele queria dar um cavalo com o qual acabara de ganhar o precircmio da corrida e se queria trocaacute-lo por um reino ldquoPor certo que natildeo meu senhor mas de muito bom grado o entregaria para obter um amigo se encontrasse homem digno de tal alianccedilardquo (I 28 p 286)

Segundo Starobinski com a morte de La Boeacutetie a

vivecircncia dele seraacute suprida pela atitude de Montaigne de maneira que ele mesmo torna-se objeto de uma representaccedilatildeo no ato da escrita ou seja doravante Montaigne seraacute o objeto de sua investigaccedilatildeo Assim

o ato de observar e de representar constitui ele proacuteprio o objeto de uma representaccedilatildeo O registro nos mostraratildeo pintor no trabalho diante do speculum e da tela em que figura um autorretrato em vias de execuccedilatildeo (STAROBINSKI 1992 p 36) Desta forma a morte do Amigo e a escrita tecircm

conjunturas fundamentais pois existe a possibilidade de eternizar por meio da escrita a experiecircncia vivida e ao mesmo tempo revivecirc-las ao passo que as registra trazendo na memoacuteria a presenccedila daquele que se foi

E por uacuteltimo analisamos que a amizade enquanto experiecircncia de si eacute marcada pela alteridade o que implica supor que o outro eacute constitutivo da identidade do eu De acordo com Starobinski La Boeacutetie era o uacutenico que conhecia Montaigne por completo Por isso ele eacute o

30 ldquoNatildeo me ocupo de dizer ao mundo o que ele deve fazer ndash outros ocupam suficientemente - e sim o que faccedilo nelerdquo (I 28 287)

98 Eacutetica e filosofia poliacutetica

guardiatildeo da sua mais pura imagem do filoacutesofo uma vez que

[] Ele era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1992 p 45)

Em Da Vanidade Montaigne discorre acerca da

amizade com La Boeacutetie Escreve que Na verdadeira amizade em que sou experimentado dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim Natildeo soacute prefiro fazer-lhe bem a que ele me faccedila mas ainda que ele o faccedila a si proacuteprio a que me faccedila faz-me ele entatildeo o maior bem possiacutevel quando a si o faz E se a sua ausecircncia lhe for quer prazenteira quer uacutetil torna-se-me ela bem mais agradaacutevel que a sua presenccedila e de resto natildeo eacute propriamente ausecircncia se haacute meios de comunicarmos um com o outro Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento Em nos separando para mim e eu para ele mais plenamente que se ele estivesse presente Uma parte de cada um de noacutes permanecia desocupada quando estaacutevamos juntos fundiacuteamo-nos num soacute A separaccedilatildeo espacial tornava mais rica a uniatildeo das nossas vontades A insaciaacutevel fome da presenccedila fiacutesica denuncia uma certa fraqueza na fruiccedilatildeo muacutetua das almas (III 9 p 272)

A escrita de Montaigne tem uma dimensatildeo muito

pessoal Busca nos haacutebitos e costumes questotildees referentes agrave humanidade como um todo Quando a razatildeo lhe falta Montaigne se apoia na experiecircncia Eacute verdade que tais bases satildeo fraacutegeis (razatildeo costume experiecircncia) poreacutem tudo o que temos eacute lsquoo que aparecersquo Desse modo ele utiliza como base de seu estudo acerca da amizade a relaccedilatildeo que manteve com La Boeacutetie Inerente agrave temaacutetica da amizade haacute uma perspectiva poliacutetica visto que para Montaigne a inspeccedilatildeo que respalda o juiacutezo relativo deve

Amizade em Montaigne 99

ultrapassar a experiecircncia de si e alcanccedilar a experiecircncia do coletivo e da opiniatildeo puacuteblica31 Ou seja para ele a ideia de humanidade se coloca acima da ideia de paacutetria e isso implica em que a amizade desempenha papel central nisso na medida em que declara a amizade mais alta aquela que dedica ao gecircnero humano Por todas estas razotildees nosso autor descreve a amizade pura e desinteressada como o fundamento de toda a sabedoria

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Satildeo estas as razotildees de toda a argumentaccedilatildeo que

enfim se depreende da leitura de Montaigne natildeo pode existir uma amizade imposta A amizade compreende um amor equitativo em outras palavras justo e igual Na amizade nada eacute privado do amigo principalmente a vontade que eacute comum desde sua origem e inclusive a proacutepria forma de enxergar a vida O desiacutegnio eacute o mesmo ser apenas uma alma em dois corpos Este pensamento se refere agrave uniatildeo das almas num soacute corpo como diziacuteamos Uma uniatildeo na qual se perde o privado todavia natildeo se perde a individualidade Esta eacute reconhecida pelo exerciacutecio da descoberta de si mesmo no outro Uma descoberta ininterrupta que inclusive vai aleacutem da morte pelo fato de que Montaigne a registra em sua escrita tornando sempre viva a experiecircncia

Viver verdadeiramente eacute realizar uma experiecircncia de amizade que na verdade eacute a descoberta da consciecircncia e da humanidade do proacuteprio lsquoeu como escreve Birchal (2000) Quem nunca teve um amigo teraacute vivido verdadeiramente Por isso a metaacutefora do espelho trazida por Starobinski eacute muito adequada visto que aquilo que o homem eacute consiste na sua proacutepria existecircncia Os atos refletem o que cada ser humano traz de tal sorte

31 CONCEICcedilAtildeO 2014

100 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que o amigo eacute capaz de enxergar-nos nesse espelho e nos decifrar Conforme Seacutergio Cardoso

desejando pois pela sua virtude a proacutepria vida e fazendo-se a vida do amigo igualmente pela virtude semelhante agrave sua o saacutebio a deseja tambeacutem Os amigos se aproximam portanto por meio da unidade da virtude e do Bem (CARDOSO 1987 p 186)

Uma vez que o proacuteprio Montaigne parece nos

querer deixar questotildees em aberto em forma de problema para refletirmos ndash como faz com frequecircncia nos Ensaios ndash talvez seja melhor que tenhamos em matildeos a contextualizaccedilatildeo de sua maneira de pensar e percebermos que o filoacutesofo estaacute aleacutem de seu tempo Eacute importante que natildeo busquemos restringir a leitura de um texto tatildeo rico e tatildeo denso dentro de um esquema que se apresente como mais coerente ou sistemaacutetico pois Os Ensaios satildeo registro de uma tensatildeo e de movimento portanto assistemaacutetico e fluido O problema do ceticismo bem como o da Amizade satildeo de grande importacircncia para a histoacuteria da filosofia e ateacute mesmo para nossos proacuteprios modos particulares de ver o mundo pode ser mais bem aproveitado se natildeo o limitarmos e respeitarmos sua complexidade pois falar sobre a escrita de Montaigne envolve muitos paradoxos Tentar aprisionaacute-lo numa explicaccedilatildeo para uma questatildeo de tamanha abrangecircncia e que talvez seja irrespondiacutevel (no sentido de ser uma questatildeo permanentemente aberta) pode natildeo ser o melhor modo de se tratar o tema da amizade e do ceticismo em um autor que de modo geral tanto adverte contra julgamentos absolutos precipitados e contra a estreiteza de pensamento

A amizade assegura portanto a existecircncia de si mesmo visto que o outro no caso La Boeacutetie eacute uma parte de Montaigne Desse modo a amizade adquire um ideal humanista uma vez que o outro revela o ldquoeurdquo de forma a garantir a sua presenccedila no mundo Com a morte do

Amizade em Montaigne 101

Amigo resta ao autor apenas o ato de redigir para que natildeo morra o restante de si mesmo No entanto aquilo que era a garantia de si mesmo antes da morte do amigo agora com a perda dele torna um ldquoeurdquo em movimento que busca constantemente a si mesmo Acontecendo a sobrevivecircncia do ldquoeurdquo por meio da escrita

Vale dizer que Montaigne tem como base de pesquisa o seu viver e tem como referecircncia ele mesmo bem como a leitura dos textos antigos Portanto trata-se de um autor que natildeo se propotildee escrever um manual a respeito da amizade ou do comportamento humano mas quer apenas apresentar reflexotildees resultantes de sua experiecircncia Segundo Cardoso

soacute aqui chegamos pois propriamente ao essai registro do proacuteprio autor autorretrato expressatildeo de si mesmo ndash gestos gostos opiniotildees reflexotildees ndash ensaios de uma vida (CARDOSO 1992 p 13)

Por fim

eacute indispensaacutevel a amizade para que haja a felicidade Natildeo obstante a morte do amigo essa natildeo seraacute apenas motivo de melancolia mas momento de honra por intermeacutedio da memoacuteria viva da uniatildeo entre eles visto que dividiam e partilhavam tudo (SILVA 2010 p 131)

A dinacircmica da relaccedilatildeo de amizade perfeita natildeo

tem fim com a morte de La Boeacutetie pois recorrendo agrave escrita a fluidez de seu pensamento toma outra dimensatildeo na medida em que a escrita revela uma vivecircncia diferente da amizade vivida

E finalmente vale ressaltar ainda que em Montaigne ldquoencontramos mais o paradoxo e menos o repousordquo (CONCEICcedilAtildeO 2015 p 27) ou seja a leitura dos Ensaios nos provoca mais indagaccedilotildees do que nos daacute respostas prontas

102 Eacutetica e filosofia poliacutetica

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Livro IX Coleccedilatildeo Os Pensadores Editora Nova Cultural Ltda Satildeo Paulo 1996

______ Eacutetica a Nicocircmacos Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

______ Eacutetica a Nicocircmaco Trad Leonel Vallandro e Gerd Bornhein da versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica Trad br Eudoro de Souza Coleccedilatildeo Os Pensadores Volume II Satildeo Paulo Abril Cultural 1979

______ Poliacutetica Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1997

BIGNOTTO N Montaigne Renascentista Kriterion n 86 p 41 1992

BIRCHAL T Montaigne e seus duplos Elementos para uma histoacuteria da subjetividade 2000 Tese (Doutorado) - Universidade de Satildeo Paulo 2000

CARDOSO Seacutergio Villey e Starobinski duas interpretaccedilotildees exemplares sobre a Gecircnese dos Ensaios Kriterion Belo Horizonte v 33 n 86 p 9-28 1992

______ Os sentidos da Paixatildeo Texto ldquoPaixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaignerdquo Companhia das Letras Satildeo Paulo 1986

______ [et al] Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987 p 159-194

COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo de Eduardo Brandatildeo 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2011

Amizade em Montaigne 103

______ Uma feacute um Rei uma Lei Anexo ao Relatoacuterio sd

______ O homem um homem do humanismo renascentista a Michel de Montaigne In Perturbador Mundo Novo Ed Escuta Satildeo Paulo 1992

______ Paixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaigne In NOVAES A (Org) Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1995 p 159-194

______ A crise da razatildeo poliacutetica na Franccedila das guerras de religiatildeo In A Crise da Razatildeo Org Adauto Novaes Satildeo Paulo Cia das letras 1996 p 173

CONCEICcedilAtildeO Gilmar H Montaigne e a Poliacutetica EDUNIOESTE Cascavel 2014

COSTA LIMA L Limites da Voz (Montaigne Schlegel Kafka) 2ordf ed revisada Rio de Janeiro Topbooks 2005

CIacuteCERO Marcos Tulio Da Amizade Trad Gilson Cesar Cardoso De Souza Wmf Martinsfontes Satildeo Paulo 2012

EVA Luiz Antonio Alves Montaigne e o Ceticismo na Apologia de Raymond Sebond a Natureza Dialeacutetica da Criacutetica agrave Vaidade In O que nos faz pensar Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio novembro de 1994 n 8

______ O Ensaio como Ceticismo Manuscrito Unicamp 2001

______ O Fideismo ceacutetico de Montaigne 1947 Kriterion Revista de filosofia v I Belo Horizonte

EMPIacuteRICO Sexto Outlines of Pyrrhonism (HP) In BURY R G (Ed) Sextus Empiricus Cambridge

104 Eacutetica e filosofia poliacutetica

London Harvard University Press William Heinemann 1987 v I (Loeb Classical Library ndeg 273)

______ Outlines of Pyrrhonism Trad Para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

______ Esbozos Pirrocircnicos Madrid Editorial Gredos 1993

JAPIASSUacute Hilton MARCONDES Danilo Dicionaacuterio Baacutesico de Filosofia 5ed Rio de Janeiro Zahar 2008

LA BOEacuteTIE E Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria Trad Laymert Garcia dos Santos Ed Marilena Chauiacute 2 ed Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1982 (Col Elogio da Filosofia)

LACOUTURE Jean Montaigne a cavalo Trad F Rangel Rio de Janeiro Record 1998

MILLIET Sergio Prefaacutecio aos Ensaios de Montaigne Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Ed Globo 1961

MONTAIGNE Journal de voyage en Italie par La Suisse amp lrsquoAllemagne In Œuvres complegraveetes Paris Gallimard 1962 (Bibliothegraveque de La Pleacuteiade)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro II Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek AbiacutelioSatildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro III Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

Amizade em Montaigne 105

MONTAIGNE Michel de Apologie de Raimond Sebond introduction de Samuel Sylvestre de Sacy Collection Ideacutees NRF France Eacuteditions Gallimard 1967

EPICURO Maacuteximas e Sentenccedilas Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

SILVA Nelson Maria Brechoacute da A Amizade em Montaigne Dissertaccedilatildeo de Mestrado- Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciecircncias 2010

STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Traduccedilatildeo de Maria Luacutecia Machado SatildeoPaulo Cia da Letras 1992

TOURNON Andreacute Montaigne Satildeo Paulo Discurso 2004

THEOBALDO Maria Cristina Sobre o ldquoDa educaccedilatildeo das crianccedilasrdquo a nova maneira De Montaigne Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2008

VASCONCELOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 (Paideacuteia)

VILLEY Pierre Os Ensaios de Montaigne Montaigne Ensaios Livro I Traduccedilatildeo Prefaacutecio e notas de Sergio Milliet Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Editora Globo 1961

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

POPKIN Richard H The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza Berkeley Los Angeles London University of California Press 1979

106 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= IV =

O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O

CAMINHO DA FILOSOFIA

Elissa Gabriela Fernandes Sanches 41 INTRODUCcedilAtildeO

De seu primeiro contato e leitura dos escritos de

Ciacutecero ndash especificamente da obra ldquoHortecircnsiordquo ndash Agostinho despertou para a vida filosoacutefica enquanto busca da sabedoria em si proacuteprio Em uma trajetoacuteria de vida marcada por grandes descontinuidades ele era constantemente perturbado pela duacutevida vivida como anguacutestia Tais indagaccedilotildees o motivaram a uma interminaacutevel busca por respostas e diferentes foram os resultados a que chegou Natildeo obstante o pensador patriacutestico se inseriu em diversos paradoxos e foi atormentado pelas proacuteprias tensotildees que encontrava na diaphonia (διαφονία) dos fenocircmenos Em um primeiro momento seus questionamentos o obrigaram a abandonar a seita maniqueiacutesta agrave qual era afiliado e o inseriram em um percurso ceacutetico de caraacuteter acadecircmico que afirmava a impossibilidade de se conhecer a verdade Tal caminhada levou Agostinho agrave conversatildeo ao Cristianismo pouco antes de 386 dC ano em que escreve sua primeira obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo com o objetivo de argumentar que a verdade natildeo soacute estaacute acessiacutevel a todos como tambeacutem pode ser conhecida por nossa razatildeo Uma mudanccedila brusca que diante de seu

Bacharel em Teologia pela Faculdade Nazarena do Brasil e mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE-PR) Contato elissagabrielafshotmailcom

108 Eacutetica e filosofia poliacutetica

contexto de vida eacute compreensiacutevel Sua atitude demonstra que as vaacuterias contradiccedilotildees agraves quais fora incitado o motivaram a ir mais aleacutem em sua jornada na intenccedilatildeo de superaacute-las embora natildeo possamos negar que muitas pontas permaneceram soltas em sua filosofia

Consideramos um risco querer reunir as vaacuterias reflexotildees do Doutor Hiponense segundo um esquema preestabelecido numa espeacutecie de ldquosistemardquo de filosofia agostiniana Agostinho natildeo se deixa aprisionar nestes quadros riacutegidos e doutrinaacuterios por isso discordamos da ideia de buscar um manual da filosofia agostiniana Fazer isso eacute arriscar-se a perder o que haacute de melhor nele e de mais caracteriacutestico suas antiacuteteses Agostinho natildeo avanccedila em linha reta e podemos afirmar que o seu espiacuterito sempre vivo e pujante empenhado em concitar o ser humano a decisotildees eacuteticas e teoreacuteticas sempre novas natildeo possibilita sequer a ideia de um sistema Claro que isso natildeo eacute um limite ao contraacuterio mostra a fertilidade de um pensador considerado um mestre do Ocidente Todo o pensamento de Agostinho gravita em torno de Deus por outro lado nosso foco aqui estaacute direcionado aos aspectos filosoacuteficos de sua reflexatildeo Pretendemos evidenciar o argumento do autor acerca da busca da verdade orientada pelo amor como uma atitude propriamente filosoacutefica

Eacute importante relembrarmos que o termo lsquoFilosofiarsquo foi elaborado por Pitaacutegoras de Samos (571-496 aC) para se referir a um amoramizade pela sabedoria (Philos φιλος amoramizade e Sophia σοφία sabedoria) Mas natildeo se trata de um amor estaacutetico e sim um sentimento que move a filoacutesofa e o filoacutesofo em direccedilatildeo agravequilo que anseia por conhecer que introduz o(a) amante no caminhar que tambeacutem foi trilhado por Agostinho

Assim apesar de ter passado por diferentes fases inclusive por uma fase ceacutetica Agostinho natildeo deixou nenhum escrito que revelasse suas reflexotildees

O amor na busca pela verdade 109

neste momento de sua vida No entanto em diversas de suas obras percebe-se o quanto ele se sentia assombrado por suas proacuteprias indagaccedilotildees Elas lhe serviram como guias orientando-o atraveacutes de sua proacutepria interioridade e visando o encontro da verdade que lhe era velada Em ldquoContra os Acadecircmicosrdquo o filoacutesofo de Cartago questiona eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade Eis a questatildeo central de nosso estudo

Para os membros da antiga Academia de Platatildeo em sua fase ceacutetica o saacutebio deveria se empenhar na busca pelo que eacute verossiacutemil ou provaacutevel natildeo pelo que eacute verdadeiro Esta posiccedilatildeo foi defendida sobretudo por Arcesilau (3165-2410 aC) responsaacutevel pela virada ceacutetica na Academia Em oposiccedilatildeo agrave Zenatildeo ele defendia uma forma rigorosa de ceticismo na qual a verdade natildeo pode ser conhecida e nesta condiccedilatildeo o saacutebio natildeo deve concordar com nenhum parecer que seja favoraacutevel a ela Resta entatildeo ceder agrave epocheacute (ἐποχή) ou suspensatildeo do juiacutezo do assentimento Esta forma de ceticismo foi aprimorada por Carneacuteades (214-129 aC) que se dedicou agrave retoacuterica e argumentaccedilatildeo para melhor defendecirc-lo nos vaacuterios debates em que participava Dessa maneira embora ambos tenham contribuiacutedo fortemente com uma variante radical de ceticismo na Academia ela foi atenuada devido ao surgimento de uma postura mais branda que avaliava a existecircncia de crenccedilas proacuteximas da verdade apesar de natildeo poderem ser julgadas como verdadeiras ou falsas posto que natildeo se pode conhecer o que eacute efetivamente verdadeiro

Entatildeo se na reflexatildeo agostiniana a verdade pode ser encontrada qual o caminho deve ser percorrido para alcanccedilaacute-la Afinal mesmo os ceacuteticos acadecircmicos tambeacutem natildeo duvidavam da existecircncia de uma verdade apenas avaliavam que ela natildeo poderia ser conhecida Agostinho propotildee portanto uma estrutura de

110 Eacutetica e filosofia poliacutetica

argumentaccedilatildeo que vincula a busca da sabedoria com a vontade o desejo em compreendecirc-la

De modo geral o amor eacute o cerne da vontade que pode levar o indiviacuteduo agrave felicidade ou natildeo Nesta condiccedilatildeo sendo a busca um movimento em direccedilatildeo a algo ela natildeo existe sem que o indiviacuteduo deseje aquilo que quer encontrar Portanto se ele quiser a verdade deveraacute antes amaacute-la pois somente o amor permite o deslocamento no sentido da coisa a que se deseja

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute explorar essa ligaccedilatildeo entre amor e verdade que natildeo estaacute expliacutecita no pensamento agostiniano para fins de demonstrar que nele o amor eacute a forccedila que instiga o indiviacuteduo agrave caminhada no encontro da verdade Na tentativa de se distanciar de qualquer forma de ignoracircncia e se aproximar de uma ataraxia (αταραξία) resultante do encontro da verdade Agostinho avalia que o engajar-se neste caminhar eacute o fator de relevacircncia e natildeo a verdade em si para aquele que busca a sabedoria e portanto ser feliz

A divergecircncia com o maniqueiacutesmo na qual o filoacutesofo de Tagaste se introduziu expressa mais uma vez que ele continuava a sofrer desesperado por alcanccedilar aquilo que tanto almejava Ao aproximar-se do ceticismo a questatildeo que o perturbava neste momento era como eacute possiacutevel alcanccedilar uma verdade certa e incontestaacutevel a respeito das coisas invisiacuteveis (natildeo-evidentes) Pergunta esta que acabou levando-o a uma nova caminhada que culminou em sua conversatildeo e consequente crenccedila de que mesmo sendo a verdade singularmente diferenciada da realidade mundana ela pode ser encontrada Ateacute porque eacute na procura da verdade que o indiviacuteduo encontra a Deus a quem almeja conhecer de fato

O amor na busca pela verdade 111

42 ENTRE O CETICISMO E O DOGMATISMO Eacute de senso comum afirmar que uma pessoa eacute

ceacutetica quando ela suspeita acerca da certeza das coisas No entanto essa expressatildeo assumiu tamanha amplitude nos dias atuais que criamos uma grande dificuldade em conceber sequer a possibilidade de um religioso ser ceacutetico Afinal como algueacutem pode acreditar em um ser divino e desconfiar da realidade Parece ser um incriacutevel paradoxo No entanto o ceticismo estaacute aleacutem do que a nossa simples linguagem cotidiana transmite Por exemplo quando olho para o ceacuteu quem me garante que ele eacute azul Mais do que isso como posso afirmar que sua tonalidade eacute de um azul claro Hoje podemos levar em consideraccedilatildeo as explicaccedilotildees cientiacuteficas para conhecermos a realidade Natildeo que elas expressem a absoluta verdade no entanto algumas contribuem para a delimitaccedilatildeo de certas percepccedilotildees Assim como podemos comprovar que a cor do ceacuteu eacute azul Experimentalmente podemos captar os raios ultravioletas que a luz do sol emite e averiguar seu comprimento de onda Cada comprimento eacute percebido pelos nossos olhos atraveacutes de uma cor especiacutefica graccedilas agrave atividade de um tipo celular presente no olho denominado bastonete Ainda devemos inserir nesse processo o aacuterduo trabalho de nossos neurocircnios em enviar as sinapses de forma correta ateacute os nervos conectados agrave nossa visatildeo Se tudo der certo poderemos enxergar o ceacuteu na cor azul Mas o fato de o enxergarmos azul significa que ele eacute azul Ou ele eacute azul para noacutes que possuiacutemos um complexo arcabouccedilo bioloacutegico que nos permite percebecirc-lo dessa maneira

Temos aiacute um conflito Uns podem afirmar que se o ceacuteu emite raios ultravioletas com determinado comprimento de onda entatildeo eacute porque ele eacute azul Outros defendem que ao contraacuterio o ceacuteu natildeo possui cor nenhuma e tudo natildeo passa de uma percepccedilatildeo nossa individual da realidade Alguns ainda podem ser um

112 Eacutetica e filosofia poliacutetica

pouco mais ousados e declarar que nem mesmo podemos garantir a existecircncia dos raios ultravioletas dado que natildeo os enxergamos Neste raciociacutenio seraacute que as maacutequinas que medem o comprimento de onda inventam seus valores Por outro lado o fato de a ciecircncia esclarecer o processo pelo qual percebemos as cores significa entatildeo que eacute uma sequecircncia que ocorre com todos da mesma maneira Seraacute que existem pessoas que percebem as cores de forma diferente No final das contas o ato de duvidar de nossas percepccedilotildees e ateacute mesmo daquelas definidas cientificamente natildeo significa que estamos sendo ceacuteticos

A palavra ldquoceticismordquo veio do termo grego skeptomai (σκέπτομαι) que significa ldquoolhar atentamenterdquo ldquoperscrutarrdquo ldquoexaminarrdquo32 Este vocaacutebulo por sua vez tem origem na palavra skepsis (σκέψις) que pode ser traduzida como ldquoexamerdquo ldquoindagaccedilatildeordquo ldquoconsideraccedilatildeordquo e remete portanto agrave proacutepria postura ceacutetica Pela etimologia podemos considerar que o ceticismo eacute em si a praacutetica de avaliar cuidadosamente acerca daquilo que se busca entender O seu movimento foi introduzido oficialmente por Pirro de Eacutelis filoacutesofo grego que viveu entre os anos de 365 a 275 aC33 Pirro natildeo nos deixou nada por escrito e alguns de seus inteacuterpretes consideram ser este um

32 Para uma anaacutelise mais acurada do ceticismo vinculada agrave criacutetica de Agostinho cf PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012 33 Eacute interessante perceber que mesmo assim podemos detectar certas posturas ceacuteticas em filoacutesofos anteriores como Soacutecrates e Platatildeo Como exemplo temos a maacutexima socraacutetica ldquoSoacute sei que nada seirdquo atitude esta que se assemelha bastante agrave epocheacute ceacutetica na qual

entre a equipolecircncia de duas afirmativas nada pode ser dito quanto ao juiacutezo de ambas Jaacute em Platatildeo seus estudiosos avaliam a presenccedila tanto de uma postura dogmaacutetica como ceacutetica o que demonstra o conflito em tentar localizar o pensador grego diante de correntes filosoacuteficas que se apresentaram bem depois de sua morte

O amor na busca pela verdade 113

procedimento bastante coerente ao seu pensamento visto que ateacute mesmo a escrita implicaria em uma forma de posicionamento Como praticante fiel de sua proacutepria teoria Pirro eacute conhecido como o uacutenico que assumiu verdadeiramente a postura ceacutetica (skepsis) em sua forma mais radical34

Timatildeo de Fliunte (325-235 aC) o mais devoto disciacutepulo de Pirro tomou para si a responsabilidade de escrever natildeo somente aquilo que aprendeu de seu mestre como tambeacutem suas proacuteprias consideraccedilotildees a respeito do ceticismo Contudo de todas as suas obras apenas alguns fragmentos de duas delas sobreviveram agraves cataacutestrofes do tempo e da histoacuteria Silos e Imagens O movimento ceacutetico que Pirro de Eacutelis iniciou foi denominado ceticismo pirrocircnico (Πυρρωνισμός) e sua radicalidade se fundamentava na postura de completa indiferenccedila diante de todas as coisas Aristocles de Messecircnia filoacutesofo peripateacutetico esclarece essa atitude

Alguns haviam naquela eacutepoca entre os antigos que falavam esta linguagem e aos quais Aristoacuteteles se opocircs O proacuteprio Pirro de Eacutelis falou fortemente neste sentido mas ele natildeo deixou nada por escrito Poreacutem seu disciacutepulo Timatildeo diz que o homem que busca ser feliz deve olhar para estas trecircs coisas primeiro quais satildeo as qualidades naturais das coisas segundo de que forma devemos nos posicionar perante elas e por uacuteltimo que vantagem haveraacute para aqueles que assim se posicionarem As coisas por si proacuteprias ele declara demonstrar satildeo igualmente indiferentes instaacuteveis indeterminadas e portanto nem nossos sentidos ou

34 PEREIRA JR 2012 p 30 Richard Popkin (2000 p 15) um conhecido estudioso do ceticismo em sua obra ldquoA Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo tambeacutem comentou acerca da exemplaridade de Pirro de Eacutelis diante de sua teoria ldquoAs histoacuterias acerca de Pirro que chegaram ateacute noacutes revelam que ele natildeo era um teoacuterico mas ao contraacuterio o exemplo vivo e completo de algueacutem que punha tudo em duacutevida um homem que natildeo aceitava se comprometer com nenhum juiacutezo que fosse aleacutem de como as coisas pareciam serrdquo

114 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nossas opiniotildees satildeo verdadeiras ou falsas Por este motivo noacutes natildeo devemos confiar nelas mas sermos sem opiniotildees sem inclinaccedilotildees e sem hesitaccedilotildees afirmando de cada coisa que ela natildeo mais eacute do que natildeo eacute ou que eacute e natildeo eacute ou que nem eacute nem natildeo eacute Para aqueles que estatildeo assim dispostos o resultado Timatildeo afirma seraacute primeiro o silecircncio [afasia ἀφασία] e entatildeo a imperturbabilidade [ataraxia αταραξία] mas Enesidemos diz [que o resultado eacute] prazer (CESAREA Preparation for the Gospel XIV 18 traduccedilatildeo nossa)35

Nesse fragmento ndash que Euseacutebio de Cesareia

expotildee em sua obra ldquoPreparaccedilatildeo para o Evangelhordquo (Εὑαγγελικὴ Προπαρασκευή) escrita entre os anos de 314 e 324 dC ndash Aristocles demonstra ser a atitude ceacutetica uma busca pela felicidade Nesta jornada o indiviacuteduo deve avaliar se realmente vale a pena se dispor diante das caracteriacutesticas naturais das coisas de modo a lanccedilar seus juiacutezos de opiniotildees sobre elas O filoacutesofo de Messecircnia considera que independentemente de como satildeo percebidas as coisas que observamos satildeo sempre indiferentes de tal modo que natildeo podem ser definidas de uma ou de outra forma Neste sentido nossas

35 ldquoSome then there were even of the ancients who spoke this language and who have been opposed by Aristotle Pyrrho indeed of Elis spoke strongly in this sense but has not himself left anything in writing But his disciple Timon says that the man who means to be happy must look to these three things first what are the natural qualities of things secondly in what way we should be disposed towards them and lastly what advantage there will be to those who are so disposed The things themselves then he professes to show are equally indifferent and unstable and indeterminate and therefore neither our senses nor our opinions are either true or false For this reason then we must not trust them but be without opinions and without bias and without wavering saying of every single thing that it no more is than is not or both is and is not or neither is nor is not To those indeed who are thus disposed the result Timon says will be first speechlessness and then imperturbability but Aenesidemus says pleasurerdquo (CAESAREA Preparation for the Gospel XIV 18)

O amor na busca pela verdade 115

impressotildees sobre elas de nada valem portanto natildeo podemos afirmaacute-las mais do que negaacute-las

Mesmo os ceacuteticos radicais como Pirro acreditavam que a felicidade devia ser alcanccedilada Poreacutem o percurso para ser feliz divergia consideravelmente dos dogmaacuteticos os quais definiam a busca pela verdade como a procura pela felicidade Para o ceticismo pirrocircnico e acadecircmico a busca pela felicidade consistia em assumir que a verdade natildeo pode ser alcanccedilada o que levava agrave ataraxia isto eacute agrave imperturbabilidade da alma Esta eacute traduzida como a tranquilidade do intelecto que diante da impossibilidade de conhecer a verdade reorienta o caminho para a sabedoria em direccedilatildeo agrave novas rotas Contudo existe uma leve diferenccedila entre ambas as formas de ceticismo que veremos um pouco mais tarde

Retornando ao exemplo do ceacuteu azul um ceacutetico natildeo duvidaria que esteja enxergando a cor azul do ceacuteu pois

natildeo eacute contra as aparecircncias ou φαινόμενων (phainomenon) que o ceacutetico vai se opor mas contra a possibilidade de conhecimento da natureza ou essecircncia dos fenocircmenos (PEREIRA JR 2012 p 25)

Nesse caso ele duvidaria de nossa capacidade

em descobrir a verdade acerca da cor do ceacuteu isto eacute se ele eacute azul ou natildeo Mesmo com toda a teacutecnica cientiacutefica natildeo soacute natildeo conseguimos avaliar a cor do ceacuteu propriamente dita (pois o fato de percebermos as cores se daacute devido ao nosso ceacuterebro ser capaz de traduzir determinados comprimentos de ondas natildeo porque a cor realmente exista) como elaboramos diversos paracircmetros que nos permitem reconhecer as cores (raios ultravioletas neurocircnios sinapses linguagem) Dessa forma com a ciecircncia apenas demonstramos a impossibilidade de conhecer a verdadeira cor do ceacuteu ou definir se ele eacute azul ou natildeo Isto significa que mesmo o conhecimento cientiacutefico natildeo pode ser utilizado como

116 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma segura para alcanccedilarmos a verdade visto que ele em si avalia como percebemos e interpretamos as coisas e natildeo como as coisas satildeo em sua natureza

Em contraposiccedilatildeo ao ceticismo temos o dogmatismo outra corrente teoacuterica que defende nossa capacidade de natildeo soacute buscar a verdade como tambeacutem de conhececirc-la A palavra dogmatismo vem da raiz grega dogma (δόγμα) que significa ldquoopiniatildeordquo ldquodoutrinardquo Tal substantivo tem origem no verbo dokeo (δοκέω) traduzido como ldquoparecerrdquo ldquoter a aparecircncia derdquo O dogmatismo estaacute intrinsecamente relacionado agrave tese de que por meio das aparecircncias podemos conhecer a verdade e portanto conferirmos juiacutezos de opiniatildeo sobre as coisas Assim a busca por ela natildeo eacute insensata mas faz jus ao nosso proacuteprio desejo humano de sermos felizes Desse modo o que eacute realmente importante eacute a jornada em si que reuacutene natildeo apenas o anseio mas a intenccedilatildeo sincera de que o indiviacuteduo somente encontraraacute a felicidade quando colocaacute-la como o uacutenico fim de sua investigaccedilatildeo O meio que se utiliza para atingir esse fim se torna assim a proacutepria busca pela verdade Mas em que consiste essa busca E seraacute que a verdade pode ser encontrada E o que eacute a verdade Ao longo da tradiccedilatildeo filosoacutefica foram elaboradas diversas respostas para tais perguntas assim como tambeacutem houveram vaacuterias refutaccedilotildees por parte dos ceacuteticos36 Neste estudo a ecircnfase

36 Uma das tentativas foi realizada por Reneacute Descartes O autor francecircs em sua obra ldquoMeditaccedilotildees Metafiacutesicasrdquo escrita em 1641 inicia sua argumentaccedilatildeo com a suspensatildeo de todos os juiacutezos ou seja se inserindo em uma condiccedilatildeo de duacutevida absoluta para identificar nesta condiccedilatildeo o que permaneceria indubitaacutevel Para Descartes a experiecircncia criteacuterio de obtenccedilatildeo da verdade por ser variada em suas muacuteltiplas formas e representada pela dimensatildeo sensiacutevel natildeo poderia fornecer os devidos subsiacutedios para encontrar a verdade o que justificaria a inutilidade da busca O filoacutesofo francecircs utiliza do mesmo raciociacutenio ceacutetico para concluir que neste sentido nem mesmo a proacutepria existecircncia eacute algo certo afinal nenhuma percepccedilatildeo sensiacutevel no mundo poderia conferir consistecircncia ao fato do ser Nisto consiste a primeira meditaccedilatildeo na qual Descartes (Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT

O amor na busca pela verdade 117

incidiraacute sobre as respostas que Agostinho concedeu a tais e outros questionamentos que veremos acerca do assunto

Costumamos associar a postura dogmaacutetica agrave religiatildeo agrave feacute Mais do que buscar precisamos confiar que a verdade existe mesmo que passemos a vida inteira procurando-a e natildeo a encontremos Faz sentido vinculaacute-la ao pensamento religioso que se pauta em diversas doutrinas e postulados promotores de significado agrave crenccedila do indiviacuteduo Mas devemos destacar aqui uma diferenccedila profundamente discreta crenccedila natildeo eacute sinocircnimo de feacute Acreditar em algo natildeo significa que temos feacute naquilo A palavra ldquocrenccedilardquo vem do substantivo latino credentiae que tem origem no verbo tambeacutem latino credo Credo significa ldquoter feacute emrdquo ldquoconfiarrdquo ldquoassumir a realidade ou a existecircncia derdquo ldquopossuir certa opiniatildeordquo ldquonatildeo duvidarrdquo logo estaacute muito mais vinculado ao ato de confiar na verdade de uma proposiccedilatildeo por meio da forccedila de persuasatildeo que este argumento possui A feacute por sua vez remonta ao substantivo latino fides pode ser traduzida como ldquopromessardquo ldquoa condiccedilatildeo de ter a

IX 9) apresenta ldquoas razotildees pelas quais podemos duvidar em geral de todas as coisas e em particular das coisas materiais ao menos enquanto natildeo tivermos outros fundamentos nas ciecircncias senatildeo aqueles que tivemos ateacute o presenterdquo No entanto o que Descartes observa eacute que o criteacuterio ceacutetico de invalidaccedilatildeo da busca pela verdade eacute em si mesmo falho A realidade sensiacutevel eacute de fato variada podendo se apresentar aos indiviacuteduos de diversas formas O ser humano como parte dessa realidade tambeacutem eacute capaz de interpretaacute-la de acordo com o seu ponto de vista Por conseguinte seraacute que a percepccedilatildeo sensiacutevel deve ser considerada o ponto focal na jornada do(a) filoacutesofo(a) Apesar do indiviacuteduo estar em um mundo que se encontra em constante mudanccedila existe um elemento que permanece constante instigado pela duacutevida pela ficccedilatildeo e pela incoerecircncia das coisas o pensamento Este eacute o fundamento a partir do qual se deve avaliar a existecircncia individual e portanto as coisas contidas na dimensatildeo sensiacutevel Isto porque apesar da duacutevida ldquoeacute propriamente o que em mim se chama sentir e isso tomado precisamente assim nada mais eacute do que pensarrdquo (DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT IX 23)

118 Eacutetica e filosofia poliacutetica

confianccedila depositada em umrdquo ldquolealdaderdquo e estaacute bastante proacutexima do sentimento de crer em algo que natildeo se conhece A crenccedila exige a feacute muitas vezes e ambas estatildeo interconectadas poreacutem natildeo podemos afirmar que as duas satildeo a mesma coisa

Nesse sentido podemos acreditar que o ceacuteu eacute azul mesmo que ele natildeo o seja Mas se conseguimos ver a sua cor azul isso eacute o suficiente para convencer a alguns de que ele eacute azul No entanto natildeo temos feacute na cor azul do ceacuteu justamente porque podemos vecirc-lo e afirmarmos o que eacute o ceacuteu e apontarmos para a cor que vemos identificando-a como azul No entanto podemos ter feacute naquele que criou o ceacuteu precisamente porque natildeo o conhecemos e por isso natildeo somos capazes de afirmar a veracidade ou falsidade de sua existecircncia Ainda assim a feacute persiste de forma bastante natural uma vez que somos assaltados pela indagaccedilatildeo e de onde veio o ceacuteu Ningueacutem sabe nem mesmo a ciecircncia eacute capaz de avaliar sua origem a partir do nada

O dogmatismo estaacute portanto muito mais vinculado agrave crenccedila do que agrave feacute em si o que confere abertura suficiente para a existecircncia de fieacuteis ceacuteticos Qualquer um pode acreditar em coisas que desconhece e ao mesmo tempo natildeo acreditar na possibilidade de conhecermos a verdade atraveacutes das aparecircncias37 Natildeo se trata aqui de ser ceacutetico e dogmaacutetico ao mesmo tempo mas de assumir um determinado grau de ceticismo que permite a suspensatildeo do juiacutezo acerca das coisas Este eacute um posicionamento uacutetil e necessaacuterio sobretudo nas diversas ocasiotildees em que precisamos assumir que as

37 Richard Popkins (2000 p 20) comenta ldquorsquoceacuteticorsquo e lsquocrentersquo natildeo satildeo classificaccedilotildees que se opotildeem O ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias das justificaccedilotildees que se apresentam para uma crenccedila duvida que razotildees necessaacuterias e suficientes tenham sido ou possam ser encontradas para mostrar que qualquer crenccedila em particular deva ser verdadeira e natildeo possa ser falsa Mas o ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo

O amor na busca pela verdade 119

nossas crenccedilas natildeo satildeo superiores ou mais verdadeiras que as crenccedilas de outrem Realizemos a epocheacute e natildeo nos deixemos afetar pela aparecircncia de verdade que nossas convicccedilotildees possuem Assim evitemos ser prejudicados por qualquer dificuldade de aceitaccedilatildeo dos diferentes posicionamentos e pontos de vista apresentados pelos outros Se o ceacuteu eacute azul ou verde tanto faz mas natildeo deixemos de aproveitar a oportunidade para apreciar a capacidade que o outro possui para enxergar as coisas de forma diversa da nossa

43 ldquoCONTRA OS ACADEcircMICOSrdquo NA BUSCA PELA VERDADE

A primeira pergunta que nos surge apoacutes a leitura

de ldquoContra os acadecircmicosrdquo (Contra academicos) eacute quem satildeo os acadecircmicos Em um momento inicial muitos podem pensar que todo o ceticismo estaacute inserido no contexto da Academia Entatildeo para entendermos a criacutetica agostiniana precisamos analisar a conjuntura filosoacutefica e histoacuterica no qual estaacute inserida

Um ponto importante que necessitamos ter em mente eacute natildeo podemos falar em ceticismo mas em ceticismos Natildeo existiu apenas um movimento ceacutetico na histoacuteria da filosofia mas vaacuterios Desse modo historiadores e filoacutesofos demarcam quatro fases do ceticismo no Periacuteodo Antigo o ceticismo antigo fundado por Pirro de Eacutelis e que se desenvolveu entre os seacuteculos IV e III aC o ceticismo acadecircmico alvo da criacutetica do bispo de Hipona e estabelecido no interior da Academia de Platatildeo por Arcesilau e Carneacuteades demarcando sua entrada na fase meacutedia da Academia (seacuteculos III e II aC) o ceticismo dialeacutetico representado por Enesidemo e Agripa entre os seacuteculos II e I aC e por fim o ceticismo empiacuterico iniciado por Sexto Empiacuterico no seacuteculo III dC

120 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Jaacute vimos que o ceticismo pirrocircnico ou ceticismo

antigo realizava a defesa de uma postura (skepsis) radical frente agrave possibilidade de natildeo se saber o que eacute a verdade Devido a isso o ceacutetico pirrocircnico se empenhava em ausentar-se totalmente de opiniotildees (afasia) Se a busca pela verdade resulta no conflito em definir entre duas proposiccedilotildees que uma eacute verdadeira e a outra eacute falsa ou que uma seja mais verdadeira que a outra entatildeo natildeo podemos emitir qualquer opiniatildeo acerca das coisas Nossa experiecircncia no mundo nos comprova que todos percebemos a realidade de diferentes maneiras Entatildeo quem percebe como o mundo eacute de verdade Quem conhece a verdade Para evitar ser atormentado por tais indagaccedilotildees impossiacuteveis de serem respondidas o ceacutetico pirrocircnico se afastava da duacutevida ao considerar que nada pode ser afirmado a respeito da natureza das coisas Somente assim era possiacutevel alcanccedilar a tatildeo desejada serenidade do intelecto (ataraxia) atraveacutes da indiferenccedila (adiaphora ἀδιάφορα)

Os ceacuteticos pirrocircnicos procuravam evitar assumir qualquer compromisso acerca de qualquer questatildeo mesmo em relaccedilatildeo agrave validade de seus proacuteprios argumentos O ceticismo para eles era uma habilidade ou atitude mental que permitia opor evidecircncias a favor e contra qualquer questatildeo relativa ao natildeo-evidente [adelo ἄδήλον] de modo a levar agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca desta questatildeo Este estado mental levaria entatildeo agrave ataraxia agrave quietude ou imperturbabilidade quando o ceacutetico entatildeo natildeo mais se preocuparia com questotildees que transcendem as aparecircncias O ceticismo seria a cura para a doenccedila do dogmatismo (POPKIN 2000 p 16)

O conceito de evidente (prodela πρόδηλα) e natildeo-

evidente (adelo) satildeo centrais no pensamento ceacutetico Popkin esclarece que o comportamento do ceacutetico pirrocircnico se direcionava a partir das coisas evidentes agraves natildeo-evidentes isto eacute agravequilo que eacute oculto a noacutes No

O amor na busca pela verdade 121

cotidiano deparamo-nos com diversos fenocircmenos os quais percebemos atraveacutes de nossos sentidos aliados agrave nossa interpretaccedilatildeo realizada por toda a nossa estrutura bioloacutegica mental Sabemos quando estaacute de dia e quando estaacute de noite sentimos o sabor doce salgado amargo dos alimentos que comemos temos contato com diversas texturas atraveacutes da nossa pele e todas essas constataccedilotildees satildeo evidentes manifestam-se a noacutes No entanto a epocheacute eacute aplicada agraves coisas que natildeo satildeo tatildeo claras a noacutes38 Aliaacutes justamente porque natildeo satildeo visiacuteveis que natildeo podemos lanccedilar qualquer forma de juiacutezo sobre elas A opiniatildeo neste momento natildeo contribuiraacute em nada pois natildeo poderemos averiguar sua veracidade

O ceticismo acadecircmico se assemelha ao pirrocircnico pela atitude (skepsis) perante agraves coisas natildeo-evidentes Contudo ele eacute considerado como sendo uma forma mais branda posto que assume a existecircncia de coisas provaacuteveis isto eacute proacuteximas da verdade Por outro lado sua radicalidade se baseava na defesa de que a verdade natildeo pode ser conhecida ponto este que promoveu a criacutetica agostiniana Afinal se afirmamos que a verdade natildeo pode ser conhecida como podemos dizer que existem coisas proacuteximas da verdade O argumento ceacutetico acadecircmico parece conter em si uma contradiccedilatildeo a de que como saberemos que estamos nos aproximando da verdade se natildeo podemos conhececirc-la

Esta forma de ceticismo ao qual se dirige a refutaccedilatildeo do bispo de Hipona foi introduzido na Academia de Platatildeo por Arcesilau (315-240 aC) e mantido nos anos subsequentes por Carneacuteades (214-129 aC) Esta

38 Eacute preciso atentar que a forma de ceticismo assumida por Pirro de Eacutelis abrangia tanto as coisas evidentes como natildeo-evidentes para as quais aplicava a suspensatildeo de seu juiacutezo Contudo ldquoSeus sucessores logo trataram de dar nova roupagem a essa postura adotando a ἐποχή natildeo para todas as coisas mas apenas para aquelas que seriam a seu modo de ver natildeo evidentes (ἄδήλον) Assim as coisas de caraacuteter mais obscuro necessitariam de uma anaacutelise mais acurada antes de qualquer pronunciamentordquo (PEREIRA JR 2012 p 24)

122 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nova etapa da Academia ficou sendo conhecida como fase meacutedia ou segunda ndash tambeacutem denominada Nova Academia ndash na qual vigorou por aproximadamente dois seacuteculos a afirmaccedilatildeo de um novo modelo de ceticismo Uma das fontes que temos para conhecer o ceticismo acadecircmico eacute a obra ldquoOs Acadecircmicosrdquo (Academica) de Ciacutecero escrita em 45 dC e com a qual Agostinho como tradicional leitor das reflexotildees ciceronianas muito provavelmente entrou em contato para realizar sua investida39 Contudo o filoacutesofo patriacutestico natildeo eacute o uacutenico a questionar o ceticismo acadecircmico Sexto Empiacuterico (I 1) meacutedico e filoacutesofo grego em sua obra ldquoHipotiposes Pirrocircnicasrdquo (Πυῤῥώνειοι ὑποτύπωσεις) escrita no seacuteculo II dC logo no comeccedilo de seu primeiro livro afirma

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra aquilo que busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser isto inapreensiacutevel ou ainda persiste em sua busca O mesmo ocorre com as investigaccedilotildees filosoacuteficas e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode

39 ldquoO destaque para essa obra de Ciacutecero justifica-se primeiramente pelo seu caraacuteter eminentemente epistemoloacutegico pois se constitui um verdadeiro tratado sobre a natureza do conhecimento Eacute nessa obra que o autor em questatildeo iraacute apresentar ao mundo romano a filosofia vigente na Academia deixada por Platatildeo Sobretudo foi uma obra amplamente citada por Santo Agostinho em Contra Academicos e certamente a fonte desse filoacutesofo na construccedilatildeo de sua criacutetica ao ceticismo acadecircmico Esse tratado epistemoloacutegico foi editado em duas versotildees ambas com alteraccedilotildees em seus tiacutetulos originais [] Desse modo a primeira ediccedilatildeo denominada de Academica Priora era composta por dois livros Catulus hoje perdido e Lucullus que ficou conhecido como Academica II por se tratar do segundo livro da primeira ediccedilatildeo A segunda ediccedilatildeo denominada de Academica Posteriora foi dividida em quatros livros dos quais apenas a metade do primeiro sobreviveu e ficou conhecida como Academica I por ser o primeiro livro da segunda ediccedilatildeo Santo Agostinho parece conhecer apenas a segunda ediccedilatildeo referindo-se a ela como Academici Librirdquo

(PEREIRA JR 2012 p 60)

O amor na busca pela verdade 123

ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os ldquodogmaacuteticosrdquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoacuteicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel manter que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica40

Podemos notar que o antigo filoacutesofo tampouco

reconhecia o ceticismo dos acadecircmicos e preferiu denominaacute-los simplesmente de ldquoacadecircmicosrdquo Para ele os ceacuteticos estatildeo em contiacutenua busca da verdade diferente dos acadecircmicos que defendem que ela natildeo pode ser apreendida Sabendo que a criacutetica de Agostinho se dirigia ao ceticismo acadecircmico e natildeo agrave sua variante original o ceticismo pirrocircnico devemos levar em consideraccedilatildeo a argumentaccedilatildeo do autor frente ao posicionamento dos membros da Meacutedia Academia (ou Nova Academia) sem orientarmos sua contestaccedilatildeo ao ceticismo como um todo

Quando Agostinho tomou conhecimento do ceticismo logo apoacutes ter abandonado a seita maniqueiacutesta ele decidiu aderir-se ao movimento ceacutetico Essa decisatildeo demonstra a relevacircncia que o autor concedia aos seus questionamentos Desde seus primeiros estudos a busca pelo conhecimento e mais ainda pela verdade orientou seu trajeto Ao ler a obra de Ciacutecero ldquoHortecircnsiordquo (Hortensius) Agostinho (Confissotildees III 4 grifo nosso) eacute arrebatado por um forte anseio pela sabedoria e comenta em sua obra ldquoConfissotildeesrdquo (Confessiones)

Esse livro conteacutem uma exortaccedilatildeo ao estudo da filosofia Chama-se Hortecircnsio Ele mudou o alvo das minhas afeiccedilotildees e encaminhou para Voacutes Senhor as minhas preces transformando as minhas aspiraccedilotildees e desejos [] Natildeo era o estilo mas sim o assunto

40 Traduccedilatildeo de Danilo Marcondes

124 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tratado que me persuadia a lecirc-lo [] o amor agrave sabedoria pelo qual aqueles estudos literaacuterios me apaixonavam tem o nome grego de filosofia [] Apenas me deleitava naquela exortaccedilatildeo o fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim o desejo de amar buscar conquistar reter e abraccedilar natildeo esta ou aquela seita mas sim a proacutepria sabedoria qualquer que ela fosse

Entretanto o autor afirma logo depois que o seu

desejo soacute natildeo era completo devido agrave ausecircncia do nome de Cristo na obra Isso significava que tal sabedoria defendida pela filosofia ainda natildeo correspondia agrave verdade agrave qual buscava jornada esta que o inflamaria de expectativas e esperanccedilas apoacutes a conversatildeo

44 A BUSCA PELA SABEDORIA EXIGE AMOR POR ELA

Existem diversos elementos que constituem a

jornada daquele que almeja alcanccedilar a sabedoria Natildeo podemos de forma alguma acreditar que tal caminhar nos exige apenas a leitura de obras de caraacuteter filosoacutefico A philosophia (φιλοσοφία) reuacutene um conjunto de requisitos para que possa ser praticada Dentre eles temos o pensar reflexivo um contato com o eu que perpasse todas as situaccedilotildees as quais necessitamos individualmente entender melhor temos a discussatildeo o debate um movimento dialeacutetico que torna visiacutevel meus pensamentos ao outro de modo a permitir que eles sejam trabalhados por um ponto de vista diferente do meu temos a aceitaccedilatildeo de certas afinidades em que reconhecemos apreciar determinados conteuacutedos em detrimento de outros o que nos facilita a elaboraccedilatildeo de nossos proacuteprios problemas temos a aprendizagem que localiza pontos de partida que datildeo origem ao nosso caminhar temos a coragem de que em determinado momento precisaremos refletir sozinhos ndash sem nos

O amor na busca pela verdade 125

escondermos por traacutes da identidade de algum autor ndash natildeo porque estaremos diante de um problema novo mas porque cada indiviacuteduo eacute totalmente diferente do outro e portanto percebe a realidade de uma forma diferente Poreacutem o que nos insere nesta busca Porquecirc estudar philosophia

Para Agostinho tudo perpassava o amor Natildeo um sentimento romacircntico ou banal igual encontramos muitas vezes nos dias atuais mas algo promotor de movimento O amor como vontade estimula-nos a sair de nosso lugar em direccedilatildeo agravequilo que desejamos Devemos considerar entatildeo que o amor agostiniano possui trecircs constituintes aquele que ama o amor e aquilo que eacute amado Eacute uma triacuteade em que o amor intermedia a relaccedilatildeo entre o amante e seu objeto de desejo

O bispo de Hipona compreende que a existecircncia depende do amor Sem o amor noacutes nem sequer desejariacuteamos natildeo haveria nada que nos estimulasse a sair de noacutes mesmos Este eacute digamos o benefiacutecio de amar e antes dele o indiviacuteduo estaacute isolado em seu ego distante de tudo de todos do mundo41 Mas esta

41 ldquo[] santo Agostinho natildeo considera realmente seacuteria a ideacuteia de solipsismo Afirma ele em Contra os acadecircmicos que se chamo lsquoo mundorsquo ao que me parece ser o mundo entatildeo posso saber que o mundo existe Mas ter dito isso eacute apenas parte de seu esforccedilo continuado para mostrar que em vez do ceticismo acadecircmico haacute pelo menos algumas coisas que podem ser conhecidas Agostinho natildeo tenta perguntar agrave maneira de Descartes se e no caso afirmativo como posso saber que aleacutem do meu mundo fenomenal haacute um mundo fiacutesico que existe independentemente de mim e das minhas impressotildees acerca desse mundo Expresso no jargatildeo da filosofia do seacuteculo XX ele natildeo reconhece o Problema do Mundo Externo e muito menos tentou solucionaacute-lo Existe poreacutem um aspecto em que Agostinho encara muito a seacuterio o isolamento do ego Ele imagina como isso era para ele quando bebecirc antes de ter aprendido as palavras de qualquer liacutengua natural [] De acordo com esse lsquoquadro agostiniano da linguagemrsquo cada um de noacutes quebra o isolamento do seu ego epistemoloacutegico ao ter os nomes das coisas assinalados para noacutes de tal modo que acabamos por estar aptos a expressar os nossos

126 Eacutetica e filosofia poliacutetica

condiccedilatildeo natildeo perdura por muito tempo pois logo na infacircncia Agostinho entende que comeccedilamos a nos aproximar das coisas das pessoas e assim comeccedilamos a desejar Este desejo eacute expresso pela forma ainda primaacuteria de comunicaccedilatildeo atraveacutes de gestos sons e sinais que evoluem para o pronunciamento de palavras que expressam determinados sentidos Eacute dessa forma que Agostinho (Confissotildees I 6) descreve os momentos iniciais de sua proacutepria infacircncia

A pouco e pouco ia reconhecendo onde me encontrava Queria exprimir os meus desejos agraves pessoas que os deviam satisfazer e natildeo podia porque os desejos estavam dentro e elas fora sem poderem penetrar-me na alma com nenhum dos sentidos Estendia os braccedilos soltava vagidos fazia sinais semelhantes aos meus desejos os poucos que me era possiacutevel esboccedilar e que eu exprimia como podia Mas eram inexpressivos Como ningueacutem me obedecia ou porque natildeo entendiam ou porque receavam fazer-me mal indignava-me com essas pessoas grandes e insubmissas que sendo livres recusavam servir-me Vingava-me delas chorando Reconheci que assim eram as crianccedilas como depois pude observar

Destacamos nessa passagem o fato de que

Agostinho concede aos receacutem-nascidos uma faculdade do desejo como se desde entatildeo fossem capazes de distinguir aquilo que eles querem Contudo ele descreve tambeacutem a dependecircncia destes de outras pessoas para que pudessem conseguir alcanccedilar aquilo que desejam Os bebecircs apesar de jaacute conseguirem se movimentar para apontar em direccedilatildeo agraves coisas que os atraem ndash seja pela emissatildeo de sons ou gesticulaccedilotildees ndash ainda natildeo possuem uma estrutura bioloacutegica bem desenvolvida para sozinhos atingirem tais objetos Com o tempo eles natildeo

proacuteprios desejos usando as palavras que aprendemos []rdquo (MATTHEWS 2007 p 41 e 44)

O amor na busca pela verdade 127

apenas aprendem a ser autocircnomos como a equilibrar seus desejos e manipular a vontade

Contudo o amor natildeo eacute somente a chave para fugir do isolamento como tambeacutem para alcanccedilar uma determinada autonomia O termo ldquodeterminadardquo eacute utilizado para se referir a uma autonomia especiacutefica fruto do anseio do amante O livre-arbiacutetrio a noacutes concedido nos ilude e nos faz acreditar que podemos possuir uma total independecircncia diante do mundo Ao nos tornarmos responsaacuteveis por nossas escolhas e decisotildees tambeacutem nos tornamos responsaacuteveis pelas consequecircncias que elas acarretam Nesse raciociacutenio necessitamos distinguir o amor de vontade no pensamento agostiniano

Afirmamos mais cedo o ldquoamor como vontaderdquo Seraacute entatildeo que podemos pensar em outra forma de amor Natildeo foi bem assim que Agostinho avaliou a questatildeo Karl Jaspers (1962 p 95 traduccedilatildeo nossa) filoacutesofo alematildeo e estudioso da filosofia agostiniana escreveu

Na vida humana Agostinho natildeo encontra nada em que natildeo haacute amor Em tudo o que eacute o homem eacute fundamentalmente vontade e o cerne mais profundo da vontade eacute o amor Amar eacute um lutar por alguma coisa que eu natildeo tenho (appetitus) Como o peso move corpos o amor move almas Elas [as almas] natildeo satildeo outra coisa aleacutem de forccedilas da vontade [] Tudo o que o homem faz ateacute mesmo o mal eacute causado pelo amor [] E parar de amar natildeo eacute a soluccedilatildeo pois isto significa lsquoestar inerte morto abjeto miseraacutevelrsquo A saiacuteda natildeo eacute extinguir um amor perigoso mas purificaacute-lo [] lsquoAme o que eacute digno do amorrsquo42

42 ldquoIn human life Augustine finds nothing in which there is no love In everything that he is man is ultimately will and the innermost core of will is love Love is a striving for something I have not (appetitus) As weight moves bodies so love moves souls They are nothing other than forces of the will [hellip] Everything a man does even evil is caused by love [hellip] And to cease loving is no solution For that is to lsquobe inert dead contemptible

128 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quando amamos acreditamos sermos autocircnomos

por sermos capazes de amar ou melhor de termos liberdade para escolhermos o nosso objeto de amor Poreacutem tal desejo de posse nos torna dependentes daquilo que amamos Precisamente porque queremos estar proacuteximos de tais objetos sofremos com qualquer possibilidade de perda O tempo no mundo nos transforma em amantes ambiciosos posto que buscamos a todo momento novos objetos de amor natildeo apenas devido ao prazer que sentimos ao alcanccedilaacute-los como tambeacutem para suprirmos o vazio da perda gerado pelas coisas que foram tomadas de noacutes pelo proacuteprio tempo Entatildeo o amor natildeo apenas causa alegria mas tambeacutem pode causar tristeza infelicidade dependecircncia Para isso natildeo acontecer eacute preciso direcionar corretamente o amor A vontade eacute aquilo que estimula o movimento da alma Ao querer algo o indiviacuteduo se insere em um conflito entre obedecer ou natildeo agrave sua vontade Se obedececirc-la a alma poderaacute ordenar a accedilatildeo caso contraacuterio o indiviacuteduo permanece inerte parado No entanto a vontade eacute apenas propulsora e quando o indiviacuteduo se torna amante ao decidir agir ele deixa de querer e passa a ser controlado pelo puro desejo que o leva agravequilo que anseia Ao alcanccedilar aquilo que motivou sua accedilatildeo algo necessita mantecirc-lo estaacutevel proacuteximo ao objeto Esta eacute a funccedilatildeo do amor conferir estabilidade para que o sujeito possa enfim descansar naquilo que buscava deleitar-se

A relaccedilatildeo entre o amor e o ceticismo em Agostinho se expressa quando o autor afirma ser necessaacuterio investigar aquilo que eacute digno de ser amado Essa racionalizaccedilatildeo da busca faz com que tomemos cuidado para natildeo amar qualquer coisa que natildeo valha a pena Mas o que natildeo merece ser amado para Agostinho O filoacutesofo patriacutestico (Confissotildees IV 10 grifo nosso) nos concede uma pista para responder a esta questatildeo

wretchedrsquo The way out is not to extinguish a dangerous love but to purify it [hellip] lsquoLove what is worthy of loversquordquo (JASPERS 1962 p 95)

O amor na busca pela verdade 129

Que minha alma Vos louve por tudo isto oacute meu Deus Criador de todas as coisas Que natildeo se agarre a elas pelo visco do amor que entra pelos sentidos do corpo Tambeacutem as coisas caminham para natildeo existirem e dilaceram a alma com desejos pestilenciais porque ela quer existir e gosta de descansar no que ama Mas natildeo tem onde porque as coisas natildeo satildeo estaacuteveis fogem

Se as coisas satildeo instaacuteveis e portanto fogem de

noacutes natildeo porque natildeo querem ser amadas mas porque estatildeo sujeitas ao tempo entatildeo devemos direcionar nossa busca para aquilo que eacute estaacutevel No entanto o que eacute estaacutevel no mundo se ele estaacute tomado pelo tempo Surge aiacute a necessidade de se buscar algo que esteja fora do mundo a Sabedoria Desse modo a philosophia como sendo amor agrave sabedoria eacute para Agostinho uma forma de encontrar a verdade Entretanto nosso autor natildeo faz referecircncia a qualquer verdade proveniente de qualquer conhecimento ou conteuacutedo de caraacuteter reflexivo Para ele existe a verdadeira Sabedoria aquela de onde surgiu todas as outras coisas no mundo43 Dessa forma Agostinho natildeo eacute apenas um dogmaacutetico como acredita fielmente que a verdade eacute uma soacute manifesta pela Sabedoria Sua conversatildeo ao Cristianismo fez com que abandonasse o ceticismo pois mesmo este natildeo o aliviou de suas indagaccedilotildees A busca era contiacutenua como ele (Confissotildees X 40) mesmo revela

43 Plotino (2000 p 121 grifo nosso) pai do neoplatonismo comenta acerca dessa essecircncia originaacuteria o Bem (ou Uno) a partir do qual existem os outros bens Agostinho foi fortemente influenciado pelo pensamento neoplatocircnico nas leituras que realizou ao longo da vida e desse modo Plotino se torna um grande aliado na compreensatildeo de sua filosofia ldquoEacute pelo Uno que todos os seres satildeo seres tanto os seres que satildeo seres no sentido primeiro do termo quanto tudo o que se diz fazer parte dos seres de qualquer maneira que seja O que entatildeo poderia realmente ser senatildeo o Uno se eacute verdade que privados do Uno que eacute seu predicado tais seres deixam de secirc-lordquo

130 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Percorri o melhor possiacutevel com os sentidos o mundo exterior Observei em mim a vida do corpo e os proacuteprios sentidos Passei depois agraves profundezas da memoacuteria a essas amplidotildees sucessivas Observei-as estupefacto Mas sem Voacutes nada pude distinguir Contudo reconheci que Voacutes nada disto eacutereis

Eacutetienne Gilson (2006 p 17) comenta que a busca

de Agostinho se direciona a algo que ldquosatisfaz todo desejo e por consequecircncia confere a pazrdquo Natildeo muito diferente dos ceacuteticos o bispo de Hipona tambeacutem acreditava que o que o ser humano quer na verdade eacute ser feliz Da mesma maneira essa felicidade consistia na paz da alma (beatitude) em que finalmente possui todas as condiccedilotildees necessaacuterias para repousar sobre o que ama fruindo-o Existe um caminho que conduz a essa felicidade segundo Agostinho e neste sentido natildeo podemos fugir de sua teologia pois para ele a Sabedoria consiste em apenas uma coisa Deus Natildeo somente o conhecimento de Deus mas alcanccedilaacute-lo e estar proacuteximo dele Natildeo obstante o pensador nos lanccedila em mais um conflito como estar proacuteximo de Deus se ele estaacute aleacutem do tempo mundano e eacute exatamente por isso que ele deve ser buscado

Bem se os ceacuteticos natildeo acreditam que a verdade pode ser encontrada como por exemplo os acadecircmicos como estes poderatildeo se aproximar de Deus Este eacute o ponto eles natildeo podem Segundo Agostinho os ceacuteticos nunca seratildeo felizes pois sua proacutepria teoria os impedem de alcanccedilarem a beatitude Podemos afirmar que mesmo aqueles que natildeo satildeo acadecircmicos como argumentou Sexto Empiacuterico isto eacute aqueles que buscam continuamente a verdade (os ceacuteticos pirrocircnicos) natildeo satildeo capazes de enxergaacute-la visto que com a suspensatildeo do juiacutezo natildeo distinguem entre o que eacute verdadeiro e o que natildeo o eacute Mesmo se eles optarem por natildeo se manifestarem apenas diante das coisas natildeo-evidentes Deus permaneceria uma incoacutegnita pois frente aos seus

O amor na busca pela verdade 131

criteacuterios ceacuteticos ele eacute algo natildeo-evidente Todos estes indiviacuteduos que escolhem natildeo se empenhar em definir a verdade e buscaacute-la satildeo infelizes pois ldquose a sabedoria implica a beatitude e se a beatitude implica Deus o ceacutetico natildeo poderia possuir nem Deus nem a beatitude nem a sabedoriardquo (GILSON 2006 p 20)

Contudo a duacutevida ainda permanece como buscar a Deus Noacutes possuiacutemos alguma faculdade que nos permite estar em contato com o que natildeo conhecemos diretamente O caraacuteter neoplatocircnico da filosofia de Agostinho se revela quando este argumenta que nada existe sem Deus Portanto como entes somos partes de um Ser que na realidade eacute o todo Se de alguma forma participamos do Ser possuiacutemos entatildeo a capacidade para encontraacute-lo E eacute assim que deve ser compreendido o conceito agostiniano de homem interior pois o Ser estaacute em cada um de noacutes conferindo-nos existecircncia Buscar o Ser ou a Deus eacute realizar um movimento de retorno a si uma introspecccedilatildeo no proacuteprio eu que ao se reconhecer como ente eacute guiado pela proacutepria essecircncia que estaacute em seu interior O Ser nos conduz neste instante de encontro a ele que se revela como o Bem Supremo a verdadeira Sabedoria Deus eacute apreendido pelo pensamento pelo ato reflexivo e introspectivo de identificar-se como parte como ente por conseguinte como dependente em sua existecircncia de uma totalidade que estaacute aleacutem de si Aliaacutes eacute nisso que consiste a caridade agostiniana e portanto buscar verdadeiramente a Sabedoria

45 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Recordemos a pergunta levantada por Agostinho

em sua obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade44 Para o filoacutesofo a

44 A pergunta na realidade estaacute impliacutecita em todo o debate realizado na obra No entanto eacute interessante observar que na parte do texto em

132 Eacutetica e filosofia poliacutetica

felicidade depende da busca pela verdade e natildeo basta procuraacute-la apenas eacute preciso empenhar-se em encontraacute-la Para isso eacute necessaacuterio delimitar o que eacute a verdade afinal sabemos que ela existe e que pode ser encontrada Entatildeo para que direccedilatildeo deveremos caminhar nesta jornada O bispo de Hipona correspondendo agrave sua reflexatildeo de cunho teoloacutegico avalia ser Deus a verdadeira Sabedoria o que implica que sem Deus natildeo eacute possiacutevel sermos felizes Isso talvez soe pouco filosoacutefico para noacutes mas devemos atentar que Deus eacute por si soacute um grande problema para a filosofia Natildeo basta apenas assumir que devemos buscar a Deus mas entender de que se trata esse ldquoDeusrdquo na filosofia agostiniana

O autor entende a Deus como sendo aquilo de quem tudo procede Uma das passagens mais famosas de suas ldquoConfissotildeesrdquo se denomina ldquoQuem eacute Deusrdquo (Quid amatur cum Deus amatur) e nela Agostinho relata sua aacuterdua busca no interior da criaccedilatildeo para descobrir de onde vieram todas as coisas por quem tais seres foram criados Ao final a natureza proclama ldquorepara que a mateacuteria eacute menor na parte que no todordquo e entatildeo o autor (Confissotildees X 6) declara

Por isso te digo oacute minha alma que eacute superior ao corpo porque vivificas a mateacuteria do teu corpo dando-lhe vida o que nenhum corpo pode fazer a outro corpo Aleacutem disso teu Deus eacute tambeacutem para ti vida da tua vida

que Agostinho (Contra os Acadecircmicos I 25) expotildee a questatildeo que seraacute tratada ele inicia a conversa da seguinte forma ldquoE uma vez tendo-nos reunido por conselho meu num lugar que me pareceu oportuno para tal eu disse Por acaso duvidais que devemos saber o que eacute verdadeirordquo Em seguida o autor questiona ldquoSe pudeacutessemos ser felizes mesmo natildeo tendo compreendido o que eacute verdadeiro julgais ainda ser necessaacuteria a compreensatildeo do mesmo [] O que vos parece disse eu Julgais podermos ser felizes mesmo natildeo tendo encontrado a verdaderdquo

O amor na busca pela verdade 133

Temos duas informaccedilotildees acerca de Deus nestes

trechos ele eacute a mateacuteria do todo e por isso eacute o que confere vida agrave nossa vida e Deus eacute tambeacutem a substacircncia assim como as partes os entes Na ontologia agostiniana existe a substacircncia e o que natildeo eacute substacircncia ou seja o nada45 Sendo Deus a substacircncia originaacuteria todas as coisas e sobretudo noacutes mesmos revelamos cotidianamente a sua existecircncia Dessa forma natildeo eacute difiacutecil para Agostinho distinguir a verdadeira Sabedoria uma vez que ela estaacute presente em tudo

Por ser o todo tambeacutem natildeo eacute uma tarefa complicada descobrir onde buscaacute-la ou qual o caminho deve ser percorrido para encontraacute-la Como partes podemos afirmar que a Sabedoria estaacute em noacutes tambeacutem assim como ela se mostra em toda a natureza E como acessar essa Sabedoria que estaacute tatildeo disponiacutevel a noacutes De acordo com Agostinho esse eacute o empreendimento humano que perpassa o se sentir parte de uma parte (o mundo) e acreditar que esta parte eacute o todo ateacute descobrir que na realidade o todo eacute outra coisa inimaginaacutevel eterno e absolutamente infinito

Precisamos relembrar que antes de Agostinho aderir agrave feacute cristatilde ele seguia o movimento do ceticismo

45 O nada ou o vazio natildeo eacute Eacute neste argumento que se fundamenta a ideia de mal em Agostinho O mal em si natildeo existe porque se existisse seria substacircncia E assim sendo ou ele seria Deus ou teria sido criado por ele Agostinho recusa estas duas possibilidades Deus natildeo eacute o mal porque ele eacute o Sumo Bem e tampouco ele conteacutem o mal ou o criou pois todas as coisas criadas satildeo boas Tambeacutem natildeo existe um deus mal pois isto implicaria dizer que existem dois deuses e Agostinho em correspondecircncia agrave sua influecircncia neoplatocircnica defendia a ideia do Uno Deus eacute o Ser o Uno e nenhum outro Ser existe aleacutem dele E devido a isso eacute apenas dele que vieram todas as coisas Desse modo o mal natildeo existe ele eacute o nada O mal que encontramos no mundo eacute resultado de nossas accedilotildees derivadas de nossas escolhas as quais provecircm de nosso conflito entre as vontades No entanto natildeo eacute uma disputa entre vontade boa e maacute mas uma briga entre o querer e o natildeo-querer

134 Eacutetica e filosofia poliacutetica

acadecircmico sendo ele proacuteprio alvo de suas criacuteticas posteriores Contudo ao que parece o ceticismo acabou se tornando uma ponte para a sua conversatildeo ao cristianismo o qual permitiu-lhe encontrar e se ancorar naquilo que considerava ser por fim a verdadeira Sabedoria

REFEREcircNCIAS AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos A Ambroacutesio de Pina 21 ed Braganccedila Paulista Universitaacuteria Satildeo Francisco 2006 (Col Pensamento Humano)

______ Contra os acadecircmicos Trad Enio Paulo Giachini Petroacutepolis Vozes 2014

CESAREA Eusebius Preparation for the Gospel Trad E H Gifford Disponiacutevel em lthttpwwwtertullianorgfathersindexhtmPraeparatio_Evangelica_(The_Preparation_of_the_Gospel)gt Acesso em 26 jun 2016

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Metafiacutesicas Trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Folha de S Paulo 2015 (Col Folha Grandes Nomes do Pensamento v 5)

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes Pirrocircnicas Livro I Trad Danilo Marcondes Rev o que nos faz pensar n 12 set 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 27 jun 2016

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2006

O amor na busca pela verdade 135

JASPERS Karl Plato and Augustine Nova York Harcourt Brace amp Company 1962 (Col The Great Philosophers v 1)

MATTHEWS Gareth B Santo Agostinho a vida e as ideacuteias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007

PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012

PLOTINO Tratado das Eneacuteadas Trad Ameacuterico Sommerman Satildeo Paulo Polar Editorial 2000

POPKIN Richard A Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

136 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= V =

A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo

Anderson Lucas dos Santos Pereira

51 INTRODUCcedilAtildeO

O presente trabalho tem como intuito analisar a

questatildeo da verdade em Santo Agostinho Como eacute sabido esse ser mutante chamado Santo Agostinho teve uma fase ceacutetica que posteriormente seraacute por ele criticada em sua busca incessante pela verdade Todavia o aguilhatildeo ceacutetico acompanharaacute Santo Agostinho por toda sua vida mesmo convertido Tal trabalho tem a pretensatildeo de dar luz ao problema ceacutetico que haacute no presente autor percorrendo e averiguando por algumas de suas principais obras a questatildeo da Verdade analisando ateacute que medida o problema ceacutetico se daacute como resolvido

52 A REDENCcedilAtildeO E O AGUILHAtildeO CEacuteTICO EM SANTO AGOSTINHO

Confessar Eis o instante da ressurreiccedilatildeo O

inclinar-se a contemplar o caminho da redenccedilatildeo depois de uma estadia na corrupccedilatildeo em prol da transgressatildeo Render-se eacute sentir-se viacutevido suspender-se de todas as ldquonuvens de metalrdquo negar todo o mal e com isso elevar-se em destino a vereda pueril da emancipaccedilatildeo Quando Agostinho confessa concomitantemente liberta-se de alguns dos mais friacutevolos grilhotildees que enclausura seu espiacuterito longe do ser divino pois libertar-se se torna o

Graduando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute

138 Eacutetica e filosofia poliacutetica

caminho para a salvaccedilatildeo sossegar no divino se torna uma suacuteplica para a emancipaccedilatildeo de si Perante isso o viver ganha uma nova finalidade um dia natildeo eacute vivido apenas para esse dia a verdade evoca sua grandeza no proacuteprio caminho da redenccedilatildeo A verdade torna-se pretexto para o caminho da liberdade pois ser livre eacute praticar a verdade na factualidade e ser verdadeiro eacute ter como paradigma o caminho do Ser no qual enquanto estiver percorrendo timidamente contemplaraacute a autenticidade

Alguns perguntariam qual entatildeo eacute o caminho correto para a ressurreiccedilatildeo A liberdade com seu tom teacutetrico nos responderia natildeo haacute caminho pronto o trabalho do peregrino eacute aacuterduo ao mesmo tempo que teraacute de percorrer o caminho o teraacute tambeacutem para construiacute-lo pois inquieto eacute o coraccedilatildeo de um homem ateacute encontrar a verdade repousando nos braccedilos de Deus A finalidade teoloacutegica estaacute dada coube a Agostinho traccedilar o caminho ateacute a integridade Contudo ao confessar Agostinho natildeo tem o intuito apenas de expurgar suas laacutestimas anguacutestias que atordoam sua alma deixando-a inquieta mas sim tambeacutem mostrar a todos que lerem seu livro o Verdadeiro caminho para a redenccedilatildeo baseando-se em uma vida confessada ao lado de seu Pai

Mas a quem narro eu estes fatos Natildeo eacute a voacutes meu Deus Na vossa presenccedila dirijo-me ao gecircnero humano aquele a que eu pertenccedilo ainda que essas paacuteginas possam chegar apenas a uma minoria Entatildeo para que escrevo isto Para que eu e todos que lerem essas palavras pensemos de que abismo profundo se deve clamar por Voacutes (Conf 23 p 53-54)

Encontraraacute muitas pedras no caminho o saacutebio que

decidir percorrer esta trilha Agostinho virtuoso tu eacutes A ferro e fogo entre o erro e a voluacutepia tu vivestes livrou-se ainda em tempo do sensualismo do corruptiacutevel emancipou-se tambeacutem da duacutevida generalizada que antes

A busca da verdade em Santo Agostinho 139

fluiacutea em seu sangue rendeu-se ao maniqueiacutesmo em sua juventude mas logo conseguiu ver salvaccedilatildeo para o pereciacutevel confessou-se e teve a caridade de nos presentear com seu livro (Confissotildees) como uma forma de libertaccedilatildeo do ser para que outras pessoas sigam o caminho do pequeno cordeiro que levaraacute agrave verdade irrefutaacutevel Deus Quem percorrer essa vereda com acircnsia agrave libertaccedilatildeo de si primeiramente teraacute que morrer para assim alcanccedilar a liberdade pois o acircmago da existecircncia soacute eacute concebiacutevel quando deixamos tudo e aceitamos o que os olhos natildeo podem ver

Assim Agostinho invoca sua uacutenica verdade ao compasso do soliloacutequio contempla a luz da salvaccedilatildeo uma verdade irrevogaacutevel jaacute impressa em sua alma o Verbo transparece de uma forma inata Todos fomos feitos por Deus medite que O encontraraacute Mas a certeza do caminho natildeo possui clareza devemos primeiramente o louvar ou o invocar

Mas quem o invoca sem antes natildeo o conhecer Ou por ventura natildeo sois antes invocados para depois serdes conhecido Mas como evocaratildeo em que natildeo acreditaratildeo (Confissotildees p 27)

Entatildeo mostra-se penumbra em meio agrave busca da

salvaccedilatildeo A duacutevida natildeo estaacute cessada mesmo que o caminho fora jaacute projetado agrave luz Mesmo em meio ao horizonte em direccedilatildeo agrave luz do sol a penumbra criada pelas aacutervores rochas em meio agrave jornada obstruiraacute seu caminho Vemos entatildeo que a duacutevida natildeo estaacute introjetada no conhecimento de si para Deus mas sim adversamente na ldquoquestatildeo que Deus fez dele ndash a questatildeo dentro da questatildeordquo (WAZTEL 2015 p 97) Deus estaacute concebido mas a obscuridade rodeia sua legiacutetima face transcende os escombros limitados que datildeo forma agrave nossa razatildeo O corromper da carne natildeo concebe o todo da Eternidade mas mesmo assim

140 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eacute pela feacute que comeccedilamos a ser curados mas nossa salvaccedilatildeo seraacute perfeita quando este corpo corruptiacutevel for revestido da incorruptibilidade e quando este corpo mortal for revestido de imortalidade Essa eacute esperanccedila natildeo ainda realidade

Eis a anguacutestia percorrida pelas suas Verdades

indagando de uma forma sutil e inocente o natildeo comensuraacutevel com sua crenccedila pelo breve futuro

Traccedilar o caminho eis a consequecircncia de ser jogado ao mundo da imundiacutecie do pecado e da voluacutepia Agostinho com suas Confissotildees leva-nos a esta inexoraacutevel caminhada em direccedilatildeo ao futuro na qual com os passos vagarosos caminhamos para a salvaccedilatildeo tendo como pano de fundo a formaccedilatildeo moral do homem perante Deus O caminho explanado nas Confissotildees nos mostra que desde quando nascemos a partir de nossos primeiros segundos em plano terreno nascemos imperfeitos e seres pecadores Agostinho nos salienta

em que podia pecar neste tempo Em desejar ardentemente os peitos de minha matildee Se agora suspirasse com a mesma avidez natildeo pelos seios maternos mas pelo alimento que eacute proacuteprio de minha idade seria escarnecido e justamente censurado (Confissotildees p 33)

Vemos entatildeo que a noccedilatildeo de pecado se daacute

desde o alvorecer de nossa vida desde a amamentaccedilatildeo as laacutegrimas de uma crianccedila satildeo a vinganccedila pelo leite natildeo concebido na hora desejada Seraacute isso a reminiscecircncia de um dos primeiros pecados ldquoOu seria justo mesmo para aquela idade exigir com choros o que talvez o que seria concebidordquo (Confissotildees p 34) Eis a duacutevida novamente fomentando o ardor da alma em direccedilatildeo agrave clemecircncia divina Vemos a transgreccedilatildeo como uma caracteriacutestica jaacute impliacutecita no homem desde sua nascenccedila e que o caminho em prol da redenccedilatildeo torna-se aacuterduo em

A busca da verdade em Santo Agostinho 141

meio ao viacutecio do pecado pois tudo que vislumbramos e vivemos no cotidiano perverte-se em benefiacutecio agrave culpa nos desvirtua do caminho divino rumo a redenccedilatildeo

Agostinho nas Confissotildees nos relata os pecados que cometeu em sua adolescecircncia em benefiacutecio ao ldquocalorrdquo da transgressatildeo Quando ele se debruccedila em seu passado constata nele a beleza materialista que o rodeia vendo isso nas minuacutecias cotidianas como por exemplo nos prazeres sensuais da carne nos jogos de poderes no deleite sobre a inveja perante outros Com esses poucos exemplos vemos o quatildeo distante Agostinho estaacute do caminho postulado em direccedilatildeo agrave veracidade divina pois tais bens se tornam decompositores das virtudes negando ldquoTu Deus Tua Verdade Tua leirdquo (Salmos 40) ldquoeu escapuli de ti em minha adolescecircncia e me extraviei meu Deus ndash foi um grande desvio de tua constacircncia e me tornei para mim mesmo um lugar de desolaccedilatildeordquo O viacutecio leva o ser agrave desolaccedilatildeo no sentido de estar longe do caminho postergado pela luz divina a desolaccedilatildeo se daacute no desassossego da alma em natildeo conter Deus em seu coraccedilatildeo preferindo o tormento e a anguacutestia na desertidatildeo da alma

Quando ousamos corromper a ordem em prol do pecado estamos efetuando um modo de alienaccedilatildeo da transgressatildeo Contudo vemos que tal ldquofealdaderdquo perante os dogmas divinos natildeo satildeo uma negaccedilatildeo de si e de Deus (pois isso seria partir de um adendo maniqueiacutesta) mas sim a negaccedilatildeo de si e de Deus seria a proacutepria noccedilatildeo de suiciacutedio Com isso vemos que para Agostinho os prazeres materiais nada satildeo do que objetos obstinados para a perdiccedilatildeo e com isso para a decomposiccedilatildeo da alma pois eles natildeo deixam uma impressatildeo duradoura como uma Verdade Eterna por maior que for o prazer de tal ente Jaacute o prazer perante a divindade (Aacutegape) se daacute na infinidade da ideia pois como vemos a proacutepria noccedilatildeo de graccedila eacute infinita

142 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Mas diferentemente quando morremos para o

mundo pereciacutevel (em prol da redenccedilatildeo) repercutiremos os passos do Messias ldquoJesus de Nazareacuterdquo Tal morte para Santo Agostinho se daacute como uma representaccedilatildeo da ldquomorte realrdquo pois em meio ao padecimento Jesus se dava como um ser apaacutetico ao medo aceitando seu destino em prol do incorruptiacutevel Eis a figura da morte original Jesus desmaterializou-se com um intuito maior para que pudesse retornar a nossos coraccedilotildees e com isso nos propiciar uma morte particular e legiacutetima Negar o caminho que Jesus de Nazareacute percorreu eacute o mesmo que negar Deus e morrer para Ele A vida sem Deus se daacute na perdiccedilatildeo de ser levando-nos agraves piores dores sendo assim o ideal de vida eacute voltado agrave contemplaccedilatildeo divina concomitante a uma vida confessada Quando nos desvirtuamos do caminho da Verdade negamos tambeacutem o amor de Deus Fomos feitos para sermos estimados por Ele somos sua Suma importacircncia pois ldquoO que faraacutes tu Deus se eu perecer Eu sou teu vaso e se me quebro Eu sou tua aacutegua e se apodreccedilo Sou tua roupa e teu trabalho Sem mim perdes tu e teu sentidordquo (RILKE Rainer Novos poemas p 62) Somos feitos para almejar a Deus Ele eacute inato agrave alma humana nossa harmonia estaacute intriacutenseca ao Verbo ldquoTu nos comoves e nos comprazemos em glorificar a ti que nos fizestes teus ndash e assim o coraccedilatildeo dentro de noacutes eacute desassossegado ateacute sossegar em tirdquo

Com isso vemos que Deus estaacute em tudo e que noacutes devemos O almejar de corpo e alma Sem Deus a alma se daacute como um lugar confinado aacutevido pelos pecados carnais cabe ao Rei adentrar agrave alma e a reparar E se acaso a morada de meu ser for muito pequena entatildeo ldquodeixe que seja expandida por tirdquo Eis o caminho seguido por Jesus de Nazareacute no qual devemos nos aliar para com isso nos santificar

Como seria uma vida sem Deus onde os ornamentos do futuro enfeitam sua existecircncia com seus

A busca da verdade em Santo Agostinho 143

tons obscuros Como seria viver uma vida proacutediga percorrendo os caminhos do absurdo Agostinho retrata a partir de uma reflexatildeo da paraacutebola de Lucas 15 sobre o ser aduacuteltero do caminho de Deus seguindo a infidelidade morrendo para seu Pai Esta paraacutebola conta a histoacuteria de um pai e dois filhos na qual o filho mais novo um dia pediu parte de sua heranccedila ao pai O pai com sua condolecircncia daacute a seu filho tal parte de seus bens como resultado vecirc seu filho partir pelo mundo afora A vida proacutediga e desordenada do filho mais novo faz com que em poucos meses ele gaste todo seu dinheiro com momentos dissoluacuteveis tornando-se pobre Com sua vida em xeque vecirc-se obrigado a trabalhar em terras de um carrasco tornando-se seu escravo alimentando-se escondido do resto da comida dos porcos para natildeo morrer de fome Ficando evidente natildeo apenas sua miseacuteria material mas tambeacutem miseacuteria propriamente existencial de um coraccedilatildeo que natildeo possui Deus Com a consciecircncia pesada de ter transgredido voltou agraves terras de seu pai e abraccedilando-o e beijando-o implorou para que seu pai o deixasse trabalhar para ele como carteiro (oficio de seu pai) O filho mais velho chega em cena diante do que vecirc seu pai abraccedilando o filho proacutedigo e o presenteando com uma grande festa por sua volta irrita-se e rebela-se contra o pai pois ele nunca havia ganhado nada de seu pai mesmo natildeo o traindo e seu irmatildeo por ter traiacutedo havia ganho uma festa por sua volta O pai com toda sua serenidade entatildeo responde ao filho que todos seus bens pertencem tambeacutem a ele mas que era justo alegrar-se naquele dia pois seu irmatildeo estava morto e reviveu tinha se perdido mas achou-se

Em uma adaptaccedilatildeo da paraacutebola do filho proacutedigo Agostinho nos apresenta seu eu da juventude como um eu corrompedor dos valores que ele agora pregava Agostinho nos conta que em sua juventude com a companhia de seus amigos roubara a propriedade de outrem uma porccedilatildeo de frutas natildeo cometeu tal delito pela

144 Eacutetica e filosofia poliacutetica

fome que sentira mas apenas pela adrenalina da transgressatildeo das regras Tanto na paraacutebola do filho proacutedigo quanto na adaptaccedilatildeo confessional os elementos incisivos na proacutepria noccedilatildeo de pecado original Um deles eacute a pobreza motivacional perante o fato de roubar que apenas tinha como intuito ilusoacuterio a delimitaccedilatildeo das normas e ser concebido em um grupo de amigos e tambeacutem uma disposiccedilatildeo de substituir o consenso racional implantado por uma ausecircncia da razatildeo

Com isso a partir de uma analogia entre a paraacutebola biacuteblica e a confissatildeo de Santo Agostinho alguns nuances que se assemelham e se negam Vemos a partir de uma explanaccedilatildeo de James Watzel tais similaridades e dissonacircncias

Jaacute existem umas divergecircncias oacutebvias da paraacutebola de Lucas Agostinho natildeo estaacute desperdiccedilando uma heranccedila que lhe foi concedida voluntariamente estaacute desperdiccedilando um fruto que a lei o proiacutebe de colher E natildeo apenas ele ele natildeo ousaria infringir a lei caso estivesse sozinho e menos consciente de sua necessidade de ser aceito no grupo Agostinho tece em sua faacutebula do proacutedigo dois elementos que associa com o pecado original pobreza de motivo (natildeo existe uma boa razatildeo para enfrentar as leis de Deus e perder o Eacuteden) e uma disposiccedilatildeo para substituir o consenso por uma ausecircncia de razatildeo (ningueacutem perde o Eacuteden sozinho) Com resultado muda seu foco para a natureza proacutediga do pecado ndash uma forma de pobreza obstinada velado como um movimento para a auto expressatildeo licenciosa (WATZEL James Compreender Santo Agostinho p 76)

Vemos entatildeo um retrocesso ao mito adacircmico e

segundo Agostinho a primeira causa das transgressotildees futuras Deus dentre os sete dias natildeo criou o pecado o homem que se possibilitou a ele a partir de seu livre-arbiacutetrio Todos os pecados em si possuem consigo a caracteriacutestica do pecado primordial concebido na gecircnese

A busca da verdade em Santo Agostinho 145

da criaccedilatildeo a transgressatildeo a desordem o desvirtuamento eacute o fundamento do pecado em si O mal natildeo eacute nada mais que essa transgressatildeo de ordem uma negaccedilatildeo em prol da ilusatildeo da liberdade que se fundamentou na corrupccedilatildeo desvinculando-se do eterno Deste modo a infecccedilatildeo postulada pelo pecado original e toda sua culpabilidade condenando desde as crianccedilas no ventre de suas matildees ateacute as mentes mais perversas e contagiosas Eis o contaacutegio hereditaacuterio que perpassa por todas as culturas e tempos que afeta e alastra-se como uma praga por toda a humanidade

Tal pecado original se daacute como uma obra da liberdade humana sendo destituiacuteda da Natureza de Deus e concomitantemente concebida como uma negaccedilatildeo do Mesmo Tudo que natildeo se constitui a partir da benccedilatildeo divina rui em meio as trevas Adatildeo o terroso perde com isso Assim como o resto do mundo a proximidade com o Ser divino sendo retirado da gleba deteriorando-se em meio ao poacute A poeira caoacutetica eacute a heranccedila postergada pelos primeiros humanos que se espalha e perpetua transmitida a todo gecircnero humano pelo primeiro homem o ancestral iniciador da perdiccedilatildeo Vemos entatildeo a histoacuteria do universo segmentada em duas partes uma anterior ao pecado e uma poacutestuma a ele consistido na perdiccedilatildeo humana na desuniatildeo e no desassossego longe de Deus

Em Satildeo Paulo temos Adatildeo como ldquoa figura daquele que devia virrdquo e por mais que natildeo conceba uma visatildeo primordial do pecado Como um contaacutegio hereditaacuterio assim como em Santo Agostinho podemos jaacute salientar a evidecircncia de tal concepccedilatildeo ou seja do que posteriormente tornou-se a noccedilatildeo de pecado primordial

12O pecado entrou no mundo por um soacute homem Atraveacutes do pecado entrou a morte E a morte passou para todos os homens porque todos pecaram 13Na realidade antes de ser dada a Lei jaacute havia pecado no mundo Mas o pecado natildeo pode ser imputado quando

146 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo haacute lei 14No entanto a morte reinou desde Adatildeo ateacute Moiseacutes mesmo sobre os que natildeo pecaram como Adatildeo - o qual ndash era a figura provisoacuteria daquele que devia vir 15Mas isso natildeo quer dizer que o dom da graccedila de Deus seja comparaacutevel agrave falta de Adatildeo A transgressatildeo de um soacute levou a multidatildeo humana agrave morte mas foi de modo bem mais superior que a graccedila de Deus ou seja o dom gratuito concedido atraveacutes de um soacute homem Jesus Cristo se derramou em abundacircncia sobre todos Palavra do Senhor (Satildeo Paulo aos Romanos 512-15)

Com este fragmento da epiacutestola de Satildeo Paulo aos

romanos percebe-se que diferentemente de Santo Agostinho e o mal original Paulo salienta que ldquoAtraveacutes do pecado entrou a morte e a morte passou para todos os homens porque todos pecaramrdquo A morte neste sentido ganha um indicativo do conceito do mais puro mal tornando o mal algo concebido criado diferindo-se da posiccedilatildeo agostiniana do mal como o livre-arbiacutetrio escolhido pelo homem O pecado em Paulo natildeo foi inventado pelo homem eacute por conseguinte uma forccedila interior ao proacuteprio homem instituiacuteda por uma forccedila maior

Mas o que levou Adatildeo ou qualquer outro humano a cometer pecados negando o que haacute de mais Belo Justo e Bom Qual eacute a maior motivaccedilatildeo para ser um transgressor de acordo com Agostinho

Agrave preguiccedila parece apetecer apenas o descanso mas que repouso seguro haacute fora do senhor A luxuacuteria deseja apelidar-se saciedade e abundacircncia Voacutes poreacutem sois a plenitude e abundacircncia interminaacutevel da suavidade incorruptiacutevel A prodigalidade cobre-se com a sombra da liberalidade mas o mais magnacircnimo dispensador de bens sois Voacutes A avareza quer possuir muito e Voacutes possuis tudo a inveja litiga a partir da ldquoexcelecircnciardquo mas haveraacute algum Ser mais excelente que voacutes A ira procura a vinganccedila e quem se vinga mais justamente que voacutes (Confissotildees p 60)

A busca da verdade em Santo Agostinho 147

No entanto os bens corruptiacuteveis tecircm sua beleza que se resume na aptidatildeo pelo seu fim Independente do fim seja pela mera inclinaccedilatildeo a pecar ou pelas riquezas e soberba visceral o pecado procura a partir de sua beleza enganadora impulsionar o homem ao decliacutenio da alma com isso deleitando-se em meio agrave luxuacuteria o pecado mais avassalador e imundo Neste momento o homem agrada-se aos braccedilos de Asmodeus sucumbindo-se em meio ao caos levando o mesmo fim que Sodoma

Diante dessas constataccedilotildees surge uma outra questatildeo Porque a preferecircncia por esses prazeres corruptiacuteveis sendo que Deus posto a noacutes se daacute como um ser insaciaacutevel A resposta para isso encontra-se no conceito ldquodesejordquo (desidĕrĭvm) Etimologicamente veremos que tal conceito tem origem latina onde o radical ldquoderdquo indica um movimento de declive ou seja um movimento de cima para baixo Enquanto o prefixo do conceito (sidĕrĭvm) significa ldquoestrelardquo ldquoastrordquo ldquocorpo celesterdquo Com tal especificaccedilatildeo lembramos sobre a estrela caiacuteda dos ceacuteus (Luacutecifer a estrela da manhatilde) que a partir de seu desejo de se igualizar a Deus por seu orgulho foi exilado dos ceacuteus em declive ao inferno No paraiacuteso adacircmico tambeacutem o desejo foi o progenitor do pecado resultando na expulsatildeo do paraiacuteso A transgressatildeo nada mais eacute que o desejo pelo natildeo concebido pelo proibido

Vemos em Santo Agostinho que tal fonte de desejo por natildeo apenas conceber Deus como seu objeto mas variados entes o desejo se daacute como segundo Hannah Arendt expotildee

Santo Agostinho define o amor como uma forma de desejo que dentro da temporalidade se coloca como anseio de se apropriar deste algo bom seja por recuperaccedilatildeo do que jaacute se teve ou alcanccedilando o que ainda natildeo se tem Mas o problema eacute que este desejo de posse implica o medo medo de perder medo de natildeo alcanccedilar que remete de novo o homem agrave

148 Eacutetica e filosofia poliacutetica

instabilidade que por sua vez gera o movimento Santo Agostinho se volta para a questatildeo uacuteltima do amor como anseio de superaccedilatildeo do medo do isolamento e da instabilidade o que implica a superaccedilatildeo da proacutepria temporalidade A vida na temporalidade eacute um entre entre o natildeo mais e o ainda natildeo Desse modo Santo Agostinho afirma que o homem eacute aquilo que ama e para ele quem natildeo ama natildeo eacute nada E portanto adverte eacute necessaacuterio ter cuidado em relaccedilatildeo ao que se ama no sentido de estar atento ao que se ama O que o homem ama onde potildee a atenccedilatildeo ali estaacute o seu destino (ARENDT Hannah O conceito de amor em Santo Agostinho)

Na realidade para Santo Agostinho haacute uma

expansividade o desejo Ou seja a lsquoestrutura fundamental do entersquo (o desejo) eacute a forma de um apetite que instala o querente na solidatildeo expotildee-no a todas as anguacutestias e a todas as audaacutecias mas atraiccediloa uma dinacircmica irrecusaacutevel a vontade de ser feliz Felicidade alegria ou qualquer outro nome que se lhe chame o objeto do desejo revela o fim uacuteltimo do ser criado ser feliz O desejo eacute ontoloacutegico eacute um movimento um anseio em direccedilatildeo a algo bom o que jaacute implica a ideia da instabilidade do ser humano que eacute assim um ser em tracircnsito O homem eacute aquilo que se esforccedila por atingir Ficamos parecidos com o que amamos O amor eacute a mediaccedilatildeo entre o que ama e aquilo que ama o que ama nunca estaacute isolado daquilo que ama isso lhe pertence A realizaccedilatildeo eacute a beatitude que natildeo consiste em amar mas em fruir daquilo que eacute amado e desejado Todo o amor eacute tensatildeo dirigida para esta fruiccedilatildeo No entanto ningueacutem eacute feliz se natildeo fruir do que ama Fruir eacute estar perto do objeto desejado O que pode impedir o homem neste trajeto eacute a sua proacutepria vontade o livre-arbiacutetrio Cabe aos homens elegerem o objeto de seu amor aquilo que pensa que os faraacute felizes O mal natildeo estaacute no mundo ou nos objetos do mundo mas onde se coloca o coraccedilatildeo A morte como o fim da vida lanccedila a proacutepria vida para o retorno ao seu

A busca da verdade em Santo Agostinho 149

ser O amor tem a forccedila da morte porque o poder de subtrair o homem ao mundo reenvia agrave eleiccedilatildeo no seio do mundo Em outras palavras o sentimento de que natildeo haacute o que perder eacute o objetivo maior do amor lsquoTorna-te o que eacutesrsquo ndash isto eacute reconhece com gratidatildeo o que o fato de ter nascido te proporciona

Agostinho nas confissotildees lembra de um amigo falecido pela febre chorou lamuriou-se sobre a vida de seu amigo visando uma tristeza mais teatral quanto intensa Teatral natildeo no sentido de sentir uma tristeza falsa perante seu amigo mas sim uma tristeza anaacuteloga agraves trageacutedias gregas algo que encanta e ilude ao mesmo tempo Agostinho nas confissotildees nos diz que a morte de seu amigo se dava de um modo entristecedor para ele pois o amigo fazia parte dele quando ele via seu amigo via ao mesmo tempo o seu eu estampado na figura do amigo

Meu coraccedilatildeo estava inteiramente na sombra da tristeza e a morte era o que eu via em tudo Minha terra natal era uma puniccedilatildeo para mim a casa do meu pai um lugar estranho e desafortunado As coisas que eu partilhava com meu amigo voltavam e me torturavam cruelmente em sua ausecircncia Meus olhos se mantinham procurando por ele em todo lugar e ele havia partido

Em outra passagem das Confissotildees Agostinho

retrata o quanto seu eu transgressor contemplava e pranteava por figuras que natildeo eram seu Deus colocando seu amor nos seres corruptiacuteveis negando o eterno Por exemplo quando Agostinho defronta-se em sua juventude com a obra traacutegica de Virgiacutelio denominada Eneida sente-se frustrado por ter chorado naquela eacutepoca por uma ficccedilatildeo traacutegica na qual Dido mulher de Eneacuteas mata-se por seu amor pois ele queria fundar Troacuteia em Roma em vez de ficar ao lado de sua esposa Agostinho frustra-se pois estava chorando por um ser que aleacutem de

150 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ficcional tambeacutem se lamuriava por Eneacuteas natildeo ter auto-piedade de si negando a Deus em favor de uma guerra Quando Agostinho refere-se aos atos traacutegicos o mesmo diz que a mimeses da vida no teatro se daacute em um fundo falso no qual apenas o que conta eacute a aparecircncia da tristeza negando o real sofrer Agostinho nega a importacircncia da catarse aristoteacutelica dos sentimentos pois o homem que sofre por medo da perca de um ente querido ou de sua proacutepria vida estaacute com a alma perturbada (perturbatio animi) negando a felicidade virtuosa possui o medo do devir aos braccedilos de Deus Vemos com isso que o amor por mais que seja sincero pode desvirtuar-se ao caminho da morte perante Deus

Mas voltando agrave questatildeo ao cerne do problema proposto sobre o caminho da redenccedilatildeo Agostinho por mais que tenha se rendido agrave graccedila da salvaccedilatildeo obtecircm uma soluccedilatildeo para com sua duacutevida perante o conhecimento de Deus Em outras palavras sua experiecircncia fruitiva perante o Absoluto se daacute de forma clara e distinta Segundo o comentaacuterio de Jacques Maritain filoacutesofo da religiatildeo especialista em Santo Agostinho

A experiecircncia miacutestica consiste essencialmente numa ldquoexperiecircncia fruitiva do Absolutordquo Como experiecircncia fruitiva ela se exerce atraveacutes de um tipo de conhecimento de seu objeto e de adesatildeo afetivo-volitiva que transcendem o modo usual de operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer e visa em sua intencionalidade objetiva o Absoluto ultrapassando a contingecircncia e relatividade dos objetos que se aparecem agrave nossa experiecircncia ordinaacuteria (MARITAIN 1930)

Se observar possibilidade da ldquoaberturardquo perante o

divino de uma forma transcendental que supera a forma loacutegicaformal de conhecimento experienciativo delimitando o conhecimento perante a possibilidade

A busca da verdade em Santo Agostinho 151

intramundana concebida pelo sensualismo concomitante agrave experiecircncia casual Conceber o divino eacute ir aleacutem do conhecimento funcional e utilitaacuterio posto no cotidiano eacute transgredir a sensibilidade corriqueira diluir-se em um ecircxtase em sintonia com a Luz gravada na alma onde mesmo fechando os olhos poderei Te ver mesmo trancando os ouvidos poderei Te ouvir no qual mesmo sem minha proacutepria boca poderei Te invocar pois como suportar a sensibilidade se natildeo tornar ela uma definiccedilatildeo do ausente Uma suposiccedilatildeo do indiziacutevel Eis o sentimento extaacutetico lanccedilando-se aos braccedilos do inconcebiacutevel cegado pela luz que vela o impossiacutevel sendo apenas o que eacute todo o absurdo ldquoeis o misteacuterio da feacuterdquo (Oraccedilatildeo Eucariacutestica III) Sobre o misteacuterio cita Agostinho

[] A quem confessaria a minha ignoracircncia com mais proveito do que a ti que natildeo se desapraz com o forte zelo que me inflamas por tuas Escrituras Concede-me o que amo pois este amor eacute um dom teu Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios Eu suplico por Cristo em nome do Santo dos santos que ningueacutem perturbe minha investigaccedilatildeo Acreditei e por isso falo Minha esperanccedila a esperanccedila pela qual vivo eacute contemplar as deliacutecias do senhor [] (Confissotildees p 123)

Percebemos o caraacuteter afetivo-volitivo na suacuteplica

de Agostinho pela ldquocontemplaccedilatildeo das deliacutecias do senhorrdquo a intencionalidade objetiva relacionada com a superaccedilatildeo da contingecircncia e da relatividade em busca de um porto no qual se encerra a dissoluccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na luz absoluta Assim Santo Agostinho exerce a experiecircncia fruitiva na busca de sua experiecircncia miacutestica agrave guisa da determinaccedilatildeo do conhecimento do enigma ou

152 Eacutetica e filosofia poliacutetica

seja do proacuteprio misteacuterio que faz mister salientar que eacute o proacuteprio Absoluto

Nota-se que a ideia de transformaccedilatildeo da vida estaacute imbricada no contexto do fascinium daiacute podemos deliberar sobre o que Santo Agostinho busca atraveacutes da experiecircncia miacutestica ou seja confessando a sua ignoracircncia a Deus ele espera natildeo somente uma aproximaccedilatildeo com o absoluto mas tambeacutem uma quase-identidade com este revelando a ele a luz em consonacircncia com a experiecircncia miacutestica O sujeito Agostinho visa a comunhatildeo com o objeto intencionado ou seja com o misteacuterio do Absoluto O Livro XI das Confissotildees se encontra sob o influxo da miacutestica especulativa ou seja das fontes claacutessicas e neoplatocircnicas o eixo subjetivo em consonacircncia com a objetividade a harmonia sujeitoobjeto pela via do conhecimento embora este conhecimento esteja em grau iacutenfimo em relaccedilatildeo ao Sagrado que eacute incognosciacutevel

[] Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios [] (Confissotildees p 123)

Vemos com isso natildeo apenas uma harmonia com a teologia cristatilde sobre o misteacuterio da feacute mas tambeacutem uma posiccedilatildeo filosoacutefica denominada pirronismo um desassossego causado pelo misteacuterio ainda natildeo resolvido O problema epistemoloacutegico sobre o conhecimento ldquoperante aquele que Eacuterdquo natildeo se resolve apenas pelo consentimento da redenccedilatildeo pois assim como um ceacutetico pirrocircnico Agostinho nega o assentimento a preposiccedilotildees que podem ser duacutebias sobre o indiziacutevel pois nos falta evidecircncias sobre o Ser caindo sempre na vatilde aparecircncia

Mas quem realmente foi Pirro Como se dava a ldquometodologiardquo pirrocircnica para com a episteme E o mais

A busca da verdade em Santo Agostinho 153

importante como pode vincular tal noccedilatildeo pirrocircnica sobre o conhecimento com o misteacuterio divino

Pirro foi um filoacutesofo antigo nascido em Eacutelida entre 365 e 360 aC Foi um pensador muito influenciado pela escola socraacutetica na qual inclinou-se sobre e radicalizou a ignoracircncia saacutebia de Soacutecrates dando gecircnese a um importante ensinamento que se repercute ateacute os dias de hoje Falo da renuacutencia epistemoloacutegica sobre a Verdade uacuteltima sobre o fundamento (archeacute) da natureza (physis) que nega a essecircncia informando que a mesma ainda natildeo foi concebida denegando qualquer consentimento sobre a Verdade mas que ainda como um peregrino busca a mesma tendo sempre em vista o conceber de tal entidade assim como comenta Giovanni Reale

Enquanto o caminho da ontologia vai das aparecircncias ao ser (seja para os fiacutesicos seja para os metafiacutesicos) ao contraacuterio Pirro volta do ser agraves aparecircncias negando qualquer juiacutezo sobre o ser e reconhecendo consequumlentemente apenas o aparecer (REALE p 144)

A partir de tal perspectiva vemos a renuacutencia do

ser a abdicaccedilatildeo do inclinar-se a uma substacircncia que talvez natildeo possa estar contida no homem nem no mundo e que portanto devemos nos suspender perante tais juiacutezos epistemoloacutegicos sobre a existecircncia pois apenas assim que podemos alcanccedilar segundo Tiacutemon disciacutepulo imediato de Pirro ldquoa afasia e depois a ataraxiardquo (Aristoacutecles test 53)

A partir de tal epocheacute pirrocircnica natildeo podemos julgar ajuizar o mundo a partir de uma verdade fulcral pois nada por essecircncia eacute belo ou feio justo ou injusto bom ou mal assim como nos afirma Dioacutegenes Laeacutecio sobre Pirro ldquopois o que os homens fazem acontece por convenccedilatildeo e por haacutebito e nada eacute mais que aquilordquo (LAEacuteRCIO p 234) Com isso vemos que tais valores natildeo possuem uma estatura ontoloacutegica assim como

154 Eacutetica e filosofia poliacutetica

queriam os dogmaacuteticos mas apenas o puro fenocircmeno do mundo assim como nos aparece pois o valor da coisa-em-si eacute inconcebiacutevel fazendo-nos sempre nos suspender sobre tal Giovanni Reale nos mostra a incomensurabilidade do ser enquanto ser em tal fragmento a partir de um exemplo trivial ldquoIsso significa que em si o mel sendo como qualquer outra coisa indeterminado e inqualificaacutevel enquanto soacute o aparecer eacute qualificaacutevelrdquo (REALE p 148)

Mas contudo Pirro natildeo chegou a dissolver o mundo todo em uma simples aparecircncia pura e universal pois tal renuacutencia total seria o mesmo que cair em um dogmatismo negativo ou seja a uma absoluta certeza desviando-se da duacutevida hiperboacutelica Para a comprovaccedilatildeo de tal argumento segue-se uma passagem de Tiacutemon em uma conversa com um terceiro sobre como Pirro leva sua vida pacata sem grandes idealizaccedilotildees laborativas

Oacute Pirro esse meu coraccedilatildeo deseja aprender de ti como e que tu mesmo sendo homem tatildeo facilmente levas a vida tranquumlila tu que eacutes apenas guia para os homens semelhante a um Deus

Pirro com isso responde Dir-te-ei na verdade como me parece que seja tomando como reto cacircnon essa palavra de verdade uma natureza do divino e do bem viver eternamente do qual deriva para o homem a vida igualiacutessima

Como entender tal resposta de Pirro Segundo Giovanni Reale o Deus e o Bem pirrocircnico natildeo se daacute no mundano nem no transcendente mas sim satildeo apenas aspectos que se desvanecem e que com isso fogem da sensibilidade A afasia concomitante agrave apatia eacute tal ldquosupremaciardquo virtuosa ceacutetica que se sustenta na privaccedilatildeo de toda a faculdade de escolha quando natildeo haacute um sustento aonde possa apoiar-se Vemos com isso as

A busca da verdade em Santo Agostinho 155

escolhas se esvaiacuterem do terreno uma vez soacutelido para os filoacutesofos dogmaacuteticos eis o fundamento da virtude ceacutetica Tal virtude se daacute no movimento de negaccedilatildeo de qualquer juiacutezo cognitivo permanecendo sem qualquer inclinaccedilatildeo sendo indiferente a entidade julgada

eacute preciso natildeo ter opiniatildeo [] afirmando de cada coisa que eacute natildeo mais do que natildeo eacute ou que eacute e que natildeo eacute ou que ainda nem eacute ou nem natildeo eacute Os que se potildeem nesta posiccedilatildeo conseguiratildeo em primeiro lugar a afasia (ARISTOacuteCLES p 18)

Mas como devemos entender essa afasia ceacutetica

Talvez natildeo viver para este mundo Negar a exterioridade Natildeo mais poder de maneira nenhuma se expressar Viver em um mero solipsismo passivo de maneira nenhuma ajuizando o mundo Natildeo segundo Sexto Empiacuterico nas Hipotipoacuteses Pirrocircnicas comenta

Sobre a afasia digamos o seguinte [] Em sentido geneacuterico ldquofasirdquo eacute uma palavra que significa afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo como ldquoeacute diardquo ldquonatildeo eacute diardquo [] Portanto afasia equivale a renunciar agrave fasi no seu significado comum no qual dizemos que estatildeo contidas a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo de modo que afasia eacute uma afecccedilatildeo interna a noacutes na qual nem afirmamos nem negamos (ARISTOCLES)

Eis o caminho do ser virtuoso alcanccedilar neste

ecircxtase redutivo a ataraxia a ldquovida igualiacutessimardquo em suma redenccedilatildeo consigo mesmo Eis a forma pirrocircnica de viver

Enquanto os seus companheiros de viagem no navio apavoravam-se por causa da tempestade ele permanecia tranquumlilo e retomava acircnimo apontando um leitatildeozinho que continuava a comer e acrescentando que tal imperturbabilidade era exemplar para o comportamento do saacutebio (EMPIacuteRICO I 192)

156 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Vemos com isso o fim de todo pirrocircnico a total apatia do saacutebio as pupilas vazias de anima mas que ainda em seu interior cabendo consigo o sorriso de um homem sereno perante o mundo (um saacutebio)

Com isso chegando ao intuito final de tal trabalho nos perguntamos Qual eacute a consonacircncia existente entre um ceacutetico abnegador de qualquer verdade uacuteltima e um cordeiro da luz Qual eacute a semelhanccedila entre o meacutetodo ceacutetico e a redenccedilatildeo agostiniana pela feacute Como podemos conciliar a crenccedila divina em frente a ataraxia Veremos que o aguilhatildeo ceacutetico ainda estaacute incumbido na alma do Santo a anguacutestia ainda atordoa a alma o devir ainda eacute obscuro e Deus ainda natildeo foi concebido A verdade ainda estaacute velada obscurecida pela ignoracircncia do homem A necessidade de Agostinho de clamar a Deus convocaacute-lo em seus ritos justifica sua busca insaciada pela Verdade na qual cessaraacute apenas post mortem

Como salientado antes Agostinho ao contemplar-se com sua divindade adentra em um caminho em direccedilatildeo agrave travessia para a verdade da libertaccedilatildeo da emancipaccedilatildeo de sua alma Mas tal caminho por conter a ldquoqueda agrave carnerdquo torna-se nocivo pedregoso tornando a clareza da verdade uma incoacutegnita Salienta a biacuteblia sagrada ldquoAtenta para a obra de Deus Quem poderaacute endireitar o que ele fez tortordquo (Eclesiastes 7 13) A verdade pode estar dentro de nossos coraccedilotildees a partir da ressurreiccedilatildeo do Messias (o prometido) encarnado mas a figura real de Deus em sua mais esplecircndida Forma delimitada de qualquer compreensatildeo humana apenas pode ser concebida post mortem

Depois de tudo vemos que Santo Agostinho se associa agrave miacutestica revelando que a experiecircncia com o Sagrado implica a supressatildeo do tempo percebemos que no Cap XI sobre ldquoO tempo e eternidaderdquo Santo Agostinho exprime que os espiacuteritos buscam o Absoluto pois ainda se encontram presos nas correntes do tempo

A busca da verdade em Santo Agostinho 157

sendo eles cativos do passado e do futuro assim expotildee o Bispo de Hipona

Os que assim falam natildeo te compreendem ainda oacute sabedoria de Deus luz das inteligecircncias natildeo compreendem ainda como eacute criado o que eacute criado por ti e em ti Esforccedilam-se por saborear as coisas eternas mas seu espiacuterito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras

Santo Agostinho aclara que o momento presente

pode ser experienciado em Deus ou seja na eternidade irrompendo com as malhas do passado e do futuro e ponderando a partir do enlevo do que ldquosempre eacuterdquo ou seja da presenccedila constante do Absoluto sem os grilhotildees do passado e do futuro que encerram o devir o espaccedilo e o tempo e tudo mais que atrela o homem nas algemas do movimento Agostinho ressalta que o homem apenas carece deste porto do Absoluto pois natildeo o identifica como ldquonatildeo serrdquo

Desde que a alma plaine sobre os fatos passados e futuros o homem natildeo experiencia a ultravida na que eacute o feitio proacuteprio de Deus pois o tempo eacute a forma essencial da proacutepria alma esta se desdobra por seccedilotildees se possui por partes e por capiacutetulos havendo um desdobramento e esta abertura eacute o tempo portanto soacute eacute possiacutevel alcanccedilar a experiecircncia emblemaacutetica quando se abole o tempo

Com isso natildeo podemos dar evidecircncia a um certo pirronismo na filosofia miacutestica de Agostinho A procura pelo saciar nos braccedilos de Deus se daacute em uma longa caminhada pelos caminhos obscuros tendo uma impressatildeo apenas sobre a existecircncia de Deus mas natildeo uma clarividecircncia sobre a face divina A luz que cintila dos ceacuteus cega o homem que olha para o alto clamando nunca colocando sua verdadeira face agrave mostra sempre velado por sua camada de luminescecircncia divina Eis o

158 Eacutetica e filosofia poliacutetica

momento de suspender colocar entre parecircnteses sua real forma e viver a vida em meio a este enigma

Agostinho natildeo eacute um ceacutetico pirrocircnico mas perante a incognoscibilidade de Deus ele o coloca como um misteacuterio que nem a feacute ou os ritos poderatildeo explicar Mas Agostinho lamuria-se com isso Natildeo o bispo de Hipona nada mais faz do que esperar a sua hora chegar seguindo os ensinamentos de Soacutecrates e talvez de Pirro Agostinho aprendeu a morrer serenamente aguardando em paz sua hora chegar para conceber a Verdade assim como um ideal pirrocircnico Claramente Pirro e Agostinho traccedilaram caminhos distintos para se alavancar agrave ataraxia um por ter se rendido agrave duacutevida generalizada outro por ter se rendido ao Inconcebiacutevel mas nada impede de terem se encontrado em qualquer encruzilhada saudando o espiacuterito um do outro diluindo-se na plena ataraxia

REFEREcircNCIAS BIacuteBLIA Biacuteblia sagrada Traduccedilatildeo de Padre Antocircnio Pereira de Figueredo Rio de Janeiro Encyclopaedia Britannica 1980 Ediccedilatildeo Ecumecircnica

AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

______ Confissotildees 24 ed Trad de J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Petroacutepolis Vozes 2009 376p

BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009

WATZEL James Compreender Agostinho Trad Caesar Souza Petroacutepoles RJ Vozes 2011

REALE Giovanni Estoicismo Ceticismo e Ecletismo Satildeo Paulo SP Loyola 2011

A busca da verdade em Santo Agostinho 159

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010)

160 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VI =

O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE

Joseacute Luiz Giombelli Mariani 61 INTRODUCcedilAtildeO

O periacuteodo histoacuterico da Reforma Protestante eacute

considerado conturbado e de muitas revoluccedilotildees que culminou na mudanccedila do pensamento ocidental muitos pensadores surgiram nessa eacutepoca cada um defendendo sua feacute e questionando os adversaacuterios ldquoTanto os inovadores quanto os defensores da tradiccedilatildeo viram-se diante do mesmo problema Geralmente tentaram resolvecirc-lo atacando o criteacuterio do adversaacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29)

A problemaacutetica desse periacuteodo da reforma protestante circula em torno de um criteacuterio de verdade este problema foi central na disputa da Reforma acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso chamado de ldquoregra de feacuterdquo Assim escreve Popkin sobre as questotildees levantadas na Reforma que mais tarde se espalhou para a filosofia

O problema de se encontrar um criteacuterio de verdade primeiro levantado em disputas teoloacutegicas foi posteriormente levantado tambeacutem em relaccedilatildeo natural levando agrave crise pyrrhoniemne do iniacutecio do seacuteculo XVII (POPKIN 2000 p 25)

Acadecircmico de graduaccedilatildeo do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute UNIOESTE campus de Toledo Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID) e-mail joseluizmarianigmailcom

162 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Algumas questotildees levantadas nesse periacuteodo satildeo

as seguintes Qual o padratildeo atraveacutes do qual reconhecemos a feacute e como podemos determinar com certeza o que as Escrituras dizem Por meio de que criteacuterio pode dizer que as Escrituras consistem na Palavra de Deus Quais as evidecircncias desta Verdade Revelada Para responder tais questotildees existiram diversas correntes sendo as duas principais o catolicismo versus os seguidores de Lutero conhecidos como protestantes Existiram tambeacutem aqueles que tomaram a atitude ceacutetica como forma de resolver essa problemaacutetica ou seja em linhas gerais para estes natildeo podemos determinar o criteacuterio de verdade apresentado por ambos os lados da discussatildeo da feacute

O presente trabalha apresenta de forma geral os criteacuterios de verdade dos catoacutelicos e dos protestantes e o embate entre ambas e por fim apresenta a saiacuteda apresentada pelos ceacuteticos desse periacuteodo

62 O CETICISMO E O CRISTIANISMO

Primeiramente eacute necessaacuterio fazer uma breve

abordagem acerca desses dois conceitos a saber ceticismo e cristianismo A partir do Dicionaacuterio filosoacutefico de Andreacute Comte-Sponville podemos entender o ceticismo como

O contraacuterio do dogmatismo no sentido teacutecnico do termo Ser ceacutetico eacute pensar que todo pensamento eacute duvidoso - que natildeo temos acesso agrave certeza absoluta Note-se que o ceticismo a natildeo ser que se destrua deve ser incluiacutedo na duacutevida geral que ele instaura tudo eacute incerto inclusive que tudo seja incerto Agrave gloacuteria do pirronismo dizia Pascal Isso natildeo impede de pensar aliaacutes eacute o que obriga a pensar sempre Os ceacuteticos buscam a verdade como todo o filoacutesofo (eacute o que os distingue dos sofistas) mas nunca estatildeo certos de tecirc-la encontrado nem mesmo que seja possiacutevel encontraacute-la

O ceticismo na reforma protestante 163

(eacute o que os distingue dos dogmaacuteticos) Isso natildeo os aborrece Natildeo eacute a certeza que eles amam mas o pensamento e a verdade Por isso gostam do pensamento em ato e da verdade em potecircncia ndash o que eacute a proacutepria filosofia e eacute nisso que dizia Lagneau o ceticismo eacute o verdadeiro Decorre daiacute que ningueacutem eacute obrigado a ser ceacutetico nem autorizado a secirc-lo dogmaticamente (COMTE-SPONVILLE 2003 p 99)

O ceticismo eacute uma corrente filosoacutefica que teve

iniacutecio na antiguidade com Pirro de Eacutelis mais tarde Sexto Empiacuterico e outros tantos seguidores foram importantes na construccedilatildeo desta corrente filosoacutefica grega Portanto o ceticismo antigo foi uma grande corrente de pensamento e de grande importacircncia no pensamento grego muitas questotildees foram levantadas pelos ceacuteticos antigos Sabemos que estes escreveram inuacutemeros textos poreacutem poucos resistiram ao tempo se hoje conhecemos esta corrente do pensamento eacute graccedilas agraves obras tardias de Dioacutegenes Laeacutercio Ciacutecero e especialmente Sexto Empiacuterico

O Cristianismo tem sua base na vida e histoacuteria de Jesus Cristo que viveu em meio agrave cultura judaica Os cristatildeos possuem um livro considerado sagrado pelos seus seguidores que eacute a Biacuteblia tal conjunto de obras tecircm duas divisotildees o Antigo Testamento que satildeo livros que contam a histoacuteria antes da vinda de Jesus e o Novo Testamento que conteacutem os quatro evangelhos chamados de canocircnicos ou seja reconhecidos pela Igreja a saber Matheus Marcos Lucas e Joatildeo aleacutem de cartas e de livros que narram agrave vida das primeiras comunidades de feacute Segundo os Catoacutelicos este livro eacute a Palavra de Deus e eacute inspirado pelo Espiacuterito Santo

Desde a organizaccedilatildeo que ocorreu durante o primeiro seacuteculo da era cristatilde ateacute a Reforma este livro ficou no poder da Igreja por diversos motivos entre eles a falta de alfabetizaccedilatildeo a pobreza e a liacutengua em que eles estavam escritos o latim claacutessico

164 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os catoacutelicos tambeacutem satildeo norteados pela tradiccedilatildeo

da Igreja pelos documentos e pelos conciacutelios que durante toda a sua histoacuteria fizeram e fazem parte mostrando as diretrizes do caminho da Igreja no mundo No Catecismo da Igreja Catoacutelica um dos documentos mais importante da Igreja no que diz respeito a questotildees de feacute no artigo 2 chamado ldquoA transmissatildeo da Revelaccedilatildeo Divinardquo parte 1 nuacutemero 78 encontramos a seguinte explicaccedilatildeo sobre a transmissatildeo da feacute pela Tradiccedilatildeo

Essa transmissatildeo viva realizada no Espiacuterito Santo eacute chamada de Tradiccedilatildeo enquanto distinta da Sagrada Escritura embora intimamente ligada a ela Por meio da Tradiccedilatildeo ldquoa Igreja em sua doutrina vida e culto perpetua e transmite a todas as geraccedilotildees tudo o que ela eacute tudo o que crecircrdquo O ensinamento dos Santos Padres testemunha a presenccedila vivificante desta Tradiccedilatildeo cujas riquezas se transfundem na praxe e na vida da Igreja crente e orante (N 34)

Portanto segundo a Igreja ela possui em suas

matildeos a verdade da feacute iluminada pelo Espiacuterito Santo Eacute confiado aos sucessores dos Apoacutestolos o chamado ldquodepoacutesito da feacuterdquo o catecismo na parte trecircs deste mesmo artigo intitulado ldquoA interpretaccedilatildeo do depoacutesito da feacuterdquo escreve

O ldquoPatrimocircnio Sagradordquo da feacute (ldquodepositum fideirdquo) contido na Sagrada Tradiccedilatildeo e na Sagrada Escritura foi confiado pelos apoacutestolos agrave totalidade da Igreja Apegando-se firmemente ao mesmo o povo santo todo unido a seus Pastores perseveram continuamente na doutrina dos apoacutestolos e na comunhatildeo na fraccedilatildeo do patildeo e nas oraccedilotildees de sorte que na conservaccedilatildeo no exerciacutecio e na profissatildeo da feacute transmitida se crie uma singular unidade de espiacuterito entre os bispos e os fieacuteis (N 35)

O ceticismo na reforma protestante 165

A Igreja Catoacutelica durante seacuteculos foi detentora dessas ldquoverdades absolutasrdquo no que diz respeito agraves questotildees de feacute com a Reforma e com o passar dos anos principalmente nos uacuteltimos seacuteculos com a nossa sociedade globalizada a mesma passou por diversas reformulaccedilotildees ateacute chegarmos ao modelo que hoje vigora mesmo natildeo mudando a hierarquia da Igreja percebe-se que os leigos nos dias de hoje possuem formaccedilatildeo bastante avanccedilada natildeo sendo necessaacuteria total aceitaccedilatildeo daquilo que o clero diz mas haacute uma total compreensatildeo dos dogmas de feacute dos documentos e da Tradiccedilatildeo da Igreja

O texto em questatildeo trabalha com o periacuteodo histoacuterico determinado que eacute o da Reforma Protestante e iniacutecio da modernidade sendo assim nota-se que a Igreja naquela eacutepoca era detentora da ldquoverdaderdquo e que os cristatildeos necessariamente tinham que depositar sua total confianccedila sem ao menos entender e compreender aquilo que estavam ouvindo dos seus ldquopastoresrdquo natildeo havia compreensatildeo por parte dos leigos e sim aceitaccedilatildeo a feacute sem limites

Portanto aparentemente percebe-se aqui uma divergecircncia entre a feacute e o ceticismo Na introduccedilatildeo do artigo intitulado ldquoAlgumas outras palavras sobre ceticismo e cristianismordquo de autoria de Rodrigo Pinto de Brito da Universidade Federal do Sergipe nota-se alguns apontamentos que descrevem claramente esta distinccedilatildeo de conceitos

Nesses caraacutecteres multifacetados se embutem conceitos atribuiccedilotildees ou asserccedilotildees que fazem com que seus campos semacircnticos sejam aparentemente mutuamente excludentes e mesmo radicalmente opostos Por exemplo no caso de ceticismo a duacutevida e a descrenccedila propedecircutica ao ateiacutesmo no caso do cristianismo a feacute e o dogma propedecircuticos ao fanatismo (BRITO 2014)

166 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir desta breve anaacutelise do ceticismo e do

cristianismo compreende-se o motivo do ceticismo ser soacute resgatado no periacuteodo da reforma protestante no iniacutecio da era moderna Na Idade Meacutedia com o auge do catolicismo percebe-se que o proacuteprio ato de questionar os dogmas de feacute natildeo era tolerado quanto mais negar tais ldquoverdadesrdquo nesse sentido muitas pessoas foram agrave fogueira e tiveram condenaccedilotildees baacuterbaras

Alguns estudiosos se detecircm na demonstraccedilatildeo de quem natildeo haacute uma fronteira niacutetida entre ceticismo e cristianismo que essa fronteira eacute somente aparente O meu estudo nesse texto inicial natildeo tem como objetivo investigar tal questatildeo mas tem seu recorte estrito no periacuteodo compreendido como reforma protestante tambeacutem chamada ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo

63 REFORMA PROTESTANTE E O PROBLEMA DO CRITEacuteRIO

Este periacuteodo foi bastante intenso de debates e

discussotildees acerca do criteacuterio de verdade que haacute no catolicismo e depois nas Igrejas criadas a partir da Reforma Protestante tais discussotildees ficaram conhecidas como Reforma Intelectual momento em que antecedeu a modernidade e toda a discussatildeo da teoria do conhecimento e da forma como esse conhecimento acontece Na obra ldquoHistoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo de Richard Popkin no primeiro capiacutetulo intitulado ldquoA crise Intelectual na Reformardquo percebemos que o problema central nesse periacuteodo eacute o criteacuterio de verdade acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso tambeacutem conhecido como ldquoregra de feacuterdquo

Neste sentido Lutero foi o primeiro a criticar publicamente este criteacuterio de verdade da Igreja Catoacutelica principalmente a tradiccedilatildeo e o magisteacuterio do Papa A partir

O ceticismo na reforma protestante 167

disto Lutero desenvolve o seu criteacuterio Assim escreve Popkin

Lutero deu o passo criacutetico que foi negar a regra de feacute da Igreja apresentando um criteacuterio de conhecimento religioso radicalmente diferente Foi neste periacuteodo que ele deixou de ser apenas um reformador atacando os abusos e a corrupccedilatildeo de uma burocracia decadente para tornar-se o liacuteder de uma revolta intelectual que viria a abalar os proacuteprios fundamentos da civilizaccedilatildeo ocidental (POPKIN 2000 p 26)

Os grandes problemas vistos por Lutero na Igreja

Catoacutelica foram a autoridade papal e a Tradiccedilatildeo da Igreja jaacute apresentada no capiacutetulo anterior e que apoacutes esse periacuteodo foi reformulado pela Igreja atraveacutes de diversos documentos e conciacutelios poacutes reforma entre eles estaacute o Conciacutelio Vaticano II que acima de tudo afirmou o conteuacutedo de feacute ou seja os dogmas poreacutem modificou a forma desse conteuacutedo ser anunciado abrindo a Igreja para a evangelizaccedilatildeo fazendo com que todos os leigos conhecessem a Biacuteblia e fossem importantes no processo de evangelizaccedilatildeo e anuacutencio da Palavra de Deus modificando uma das criacuteticas de Lutero

Popkin escreve em seu livro sobre a negaccedilatildeo do Papa por parte de Lutero

Lutero chegou mesmo a negar completamente a autoridade do Papa e dos Conciacutelios mantendo que doutrinas condenadas pelos conciacutelios poderiam ser verdadeiras e que os conciacutelios podem errar jaacute que satildeo compostos apenas por homens (POPKIN 2000 p 26)

A consciecircncia de cada um dos escolhidos jaacute eacute

criteacuterio de verdade jaacute eacute regra de feacute atraveacutes de Iluminaccedilatildeo Divina este foi o criteacuterio de feacute que Lutero desenvolveu e defendeu Popkin escreve assim sobre este novo criteacuterio

168 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nesta declaraccedilatildeo de liberdade cristatilde Lutero estabeleceu seu novo criteacuterio de conhecimento religioso ou seja que aquilo que a consciecircncia eacute compelida a aceitar ao ler as Escrituras eacute verdadeiro (POPKIN 2000 p 27)

Diversas pessoas comeccedilaram a seguir Lutero

apoacutes ele traduzir o livro Sagrado para o alematildeo A resposta dos catoacutelicos a este novo criteacuterio de feacute foi de que nenhum criteacuterio de feacute pode ser compreendido como verdadeiro se este natildeo passar pelo coleacutegio cardinaliacutecio pelos conciacutelios e pela autoridade do Papa

Eis que surge entatildeo outra problemaacutetica desta vez bem mais filosoacutefica que teoloacutegica assim descrita por Popkin

Uma vez que um criteacuterio fundamental foi questionado como se podem decidir quais as possibilidades alternativas a serem aceitas Com base no que podemos defender ou refutar as pretensotildees de Lutero (POPKIN 2000 p 28)

Portanto determinar algum criteacuterio como

verdadeiro se as bases do criteacuterio anterior foram refutadas nesse sentido percebe-se um resgate do ceticismo antigo na religiatildeo e mais tarde este ceticismo resgatado nesse periacuteodo iraacute atingir as demais aacutereas do conhecimento Popkin assim comenta

A caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter consequecircncias extremamente amplas natildeo soacute na teologia mais em todos os domiacutenios intelectuais do ser humano (POPKIN 2000 p 29) O problema desse periacuteodo histoacuterico da Reforma

Protestante tambeacutem pode ser considerado como problema da evidecircncia e do criteacuterio assim Popkin demonstra a problemaacutetica ldquoPara ser capaz de reconhecer a verdadeira feacute era preciso um criteacuterio Mas

O ceticismo na reforma protestante 169

como se poderia reconhecer o verdadeiro criteacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29) Percebe-se que ambos os defensores da Tradiccedilatildeo e os inovadores tentaram resolver o problema da mesma forma atacando o adversaacuterio Os ataques mais comuns que aconteciam segundo Popkin eram

Lutero atacou a autoridade da Igreja mostrando suas inconsistecircncias Os catoacutelicos procuraram mostrar que a consciecircncia de cada um natildeo era confiaacutevel bem como a dificuldade de se discernir o verdadeiro sentido das Escrituras sem a orientaccedilatildeo da Igreja Ambos os lados advertiram sobre a cataacutestrofe ndash intelectual moral e religiosa ndash que ocorreria em consequecircncia de se adotar o criteacuterio do outro (POPKIN 2000 p 29)

Nesse periacuteodo alguns textos do Sexto Empiacuterico

foram trazidos agrave tona e acabaram corroborando na discussatildeo sobre o criteacuterio de verdade como natildeo havia mais criteacuterio aceito o problema ali instaurado era grave pois se perdeu a garantia objetiva restando somente a crenccedila em determinado criteacuterio e ldquoverdaderdquo Popkin reproduz o trecho de Sexto Empiacuterico

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilotildees enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes os forccedilamos a um regresso lsquoad infinitumrsquo (POPKIN 2000 p 28)

A partir do momento em que alguns fragmentos

de Sexto Empiacuterico e de alguns ceacuteticos foram retomados surgiram alguns pensadores que comeccedilaram a usar o

170 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo como postura para defender o catolicismo um desses foi Erasmo de Rotterdam conhecido por sua obra ldquoO elogio da Loucurardquo poreacutem foi na sua obra ldquoDe Libero Arbitriordquo que ele defende uma postura ceacutetica em diversos meios assim afirma Erasmo

os assuntos humanos satildeo tatildeo obscuros e diversos que nada se pode saber com clareza Esta foi a satilde conclusatildeo dos acadecircmicos [os ceacuteticos acadecircmicos] que foram os menos ariscos dentre os filoacutesofos (POPKIN 2000 p 30)

Esta postura ou atitude ceacutetica segundo Erasmo eacute

o que realmente importa e interessa para a salvaccedilatildeo de cada um aceitando os dogmas e as ldquoverdadesrdquo que a Igreja e aqueles que tecircm competecircncia para tal determinam como sendo correto e justo assim escreve Popkin sobre esta postura de Erasmo

Para Erasmo o importante eacute uma forma de piedade cristatilde simples baacutesica o espiacuterito do cristianismo O restante a superestrutura da crenccedila essencial eacute demasiado complexa para o homem julgaacute-la Portanto eacute mais faacutecil permanecer em uma atitude ceacutetica e aceitar a antiquiacutessima sabedoria da Igreja nestes assuntos do que tentar entender e julgar por si proacuteprio (POPKIN 2000 p 31)

Segundo Erasmo toda a estrutura escolaacutestica

instaurada na Igreja com grandes bibliotecas e grandes discussotildees teoloacutegicas entre diversas correntes com grandes teoacutelogos da Igreja eram inuacuteteis pois o que realmente importa eacute a atitude cristatilde de modo geral seguir e realizar os ensinamentos de Jesus Cristo ou seja ldquoTodo o mecanismo dessas mentes escolaacutesticas tinha perdido de vista o ponto essencial a simples atitude cristatilderdquo (POPKIN 2000 p 32) Popkin continua e comenta que o cristatildeo ldquotolordquo para Erasmo eacute mais saacutebio do que um teoacutelogo de Paris

O ceticismo na reforma protestante 171

O cristatildeo tolo estaria em melhor situaccedilatildeo do que o teoacutelogo pretensioso de Paris enredado em um labirinto criado por ele mesmo E assim se algueacutem permanecesse um cristatildeo tolo viveria uma autecircntica via cristatilde e poderia evitar todo o mundo da teologia aceitando sem tentar compreendecirc-las as posiccedilotildees religiosas promulgadas pela igreja (POPKIN 2000 p 32)

Esta teoria de que o cristatildeo tolo estaacute em uma

melhor condiccedilatildeo pois este viveria uma autecircntica vida de feacute cristatilde foi fortemente combatida por Lutero para ele a feacute natildeo deve simplesmente ser aceitaccedilatildeo mas fruto de sua proacutepria consciecircncia por isso ele defendia a universalizaccedilatildeo da Biacuteblia e que toda a consciecircncia tem a capacidade atraveacutes da Iluminaccedilatildeo do Espiacuterito Santo de acolher meditar e saborear a Palavra de Deus para Lutero ldquoEacute como se algueacutem carregasse detritos e excrementos em vasos de ouro e pratardquo (POPKIN 2000 p 32) E ainda Lutero afirma ldquoUm cristatildeo deve [] ter certeza do que afirma ou entatildeo natildeo eacute um cristatildeordquo (POPKIN 2000 p 32)

Portanto para Lutero estes conteuacutedos de feacute satildeo importantes na vida do homem e natildeo podem simplesmente serem aceitos mas devem ser certos e irrefutaacuteveis atraveacutes da experiecircncia de feacute e da certeza oriunda da consciecircncia de cada um Segundo Lutero devemos estar absolutamente certos de sua verdade assim sendo o cristianismo eacute a absoluta negaccedilatildeo do ceticismo

Para o fundador do luteranismo existe um conjunto de verdades de feacute que como o sol natildeo se escurecem apenas porque eu posso fechar os meus olhos e recusar-me a vecirc-lo A analogia mostra que haacute diversas verdades que iluminam poreacutem existem pessoas que querem fechar os olhos a estas verdades ou porque satildeo ceacuteticas ou porque insistem em acreditar na vulneraacutevel Tradiccedilatildeo da Igreja Catoacutelica e natildeo olham

172 Eacutetica e filosofia poliacutetica

para dentro de si em suas proacuteprias consciecircncias ainda para Lutero esta tentativa de Erasmo de uma atitude ceacutetica natildeo passa de um caminho arriscado e com inuacutemeras possibilidades de erro Popkin comenta a resposta de Lutero a Erasmo

E portanto Lutero respondeu a Erasmo que sua perspectiva ceacutetica na verdade natildeo levava agrave crenccedila em Deus mas era uma maneira de escarnecermos Dele Erasmo podia se quisesse aferrar-se a seu ceticismo ateacute ser chamado por Cristo Mas advertiu Lutero ldquoO Espiacuterito Santo natildeo eacute ceacuteticordquo e natildeo inscreveu em nossos coraccedilotildees opiniotildees incertas mas sim afirmaccedilotildees de maior firmezardquo (POPKIN 2000 p 33)

A disputa entre Lutero um reformista e Erasmo

um catoacutelico natildeo muito praticante estava envolta mais uma vez na questatildeo do criteacuterio de verdade onde o primeiro insistia na certeza de que cada um poderia ler as Escrituras como sendo criteacuterio e natildeo delegar isto a outros A verdade se impotildee a noacutes ldquoe o verdadeiro conhecimento religioso natildeo conteacutem contradiccedilotildeesrdquo (POPKIN 2000 p 34) O segundo tinha uma atitude cautelosa de aceitar as decisotildees da Igreja pois sabia ser incapaz de distinguir o verdadeiro do falso Percebe-se que ambos possuiacuteam como regra de feacute ou criteacuterio de verdade algo subjetivo sendo difiacutecil objetivar estes criteacuterios Portanto se tal criteacuterio natildeo pode ser objetivado eles natildeo podem ser considerados criteacuterios de verdade

Outro grande expoente nesse periacuteodo histoacuterico foi Joatildeo Calvino disciacutepulo de Lutero liacuteder dos calvinistas uma corrente dos seguidores de Lutero que tem como regra de feacute a Biacuteblia livro sagrado aleacutem disso a iluminaccedilatildeo Divina Popkin comenta sobre Calvino

Inicialmente Calvino argumentou que a Igreja natildeo pode ser a regra das Escrituras uma vez que a autoridade da Igreja depende ela proacutepria de alguns versiacuteculos das

O ceticismo na reforma protestante 173

Escrituras Portanto as Escrituras satildeo a fonte baacutesica das verdades da religiatildeo (POPKIN 2000 p 35)

Uma grande questatildeo que surgiu a partir da teoria

de Calvino eacute o que nos garante que as Escrituras satildeo Palavra de Deus e como interpretaacute-las de maneira correta Assim nos explica Popkin sobre a teoria de Calvino

Esta persuasatildeo interior natildeo soacute nos assegura que as Escrituras contecircm a Palavra de Deus mas nos compele a ler as Escrituras atentamente para compreender o seu sentido e acreditar nelas (POPKIN 2000 p 35)

Os seguidores de Calvino se intitularam como os

eleitos pessoas escolhidas iluminadas por Deus e atraveacutes desta persuasatildeo interior elas interpretam as Escrituras e satildeo como pastores para aqueles que os seguem (ovelhas) Esta iluminaccedilatildeo dos eleitos acontece atraveacutes do Espiacuterito Santo Popkin escreve sobre a Iluminaccedilatildeo Divina

Haacute portanto uma dupla iluminaccedilatildeo para os eleitos dando-lhes primeiro a regra de feacute as Escrituras e em seguida lugar agrave regra das Escrituras ou seja os meios para discernir sua verdade e crer em sua mensagem Esta dupla iluminaccedilatildeo da regra da feacute e sua aplicaccedilatildeo satildeo capazes de nos dar certeza total (POPKIN 2000 p 35)

Portanto para os primeiros calvinistas a regra de

feacute era a persuasatildeo interior a questatildeo levantada eacute como podemos decidir se esta persuasatildeo eacute autecircntica e natildeo apenas uma certeza subjetiva que pode facilmente ser ilusoacuteria A partir dessa questatildeo percebemos que temos um problema um ciacuterculo de problemas infinitos assim escreve Popkin

174 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o criteacuterio do conhecimento religioso eacute a persuasatildeo interior a garantia da autenticidade da persuasatildeo interior eacute sua origem divina e temos a garantia dela pela persuasatildeo interior (POPKIN 2000 p 37)

Ou seja natildeo podemos considerar a persuasatildeo

interior como regra de feacute ou criteacuterio de verdade pois tambeacutem eacute subjetiva e nunca objetiva

Outro expoente que defendeu uma atitude ceacutetica no que diz respeito agrave feacute foi Sebastiatildeo Castellio de Basileacuteia protestante e que foi o uacutenico a defender Servetus Servetus foi condenado agrave morte como herege por Calvino e seus seguidores Servetus era convencido da persuasatildeo interior de que natildeo haacute base nas escrituras para a doutrina da santiacutessima Trindade convencido portanto de que esta doutrina era falsa

Popkin explica sobre a metodologia usada por Castellio ldquoAtitude moderada e ceacutetica onde ningueacutem pode estar tatildeo certo da verdade em questotildees religiosas de modo que se justifique queimar algueacutem por issordquo (POPKIN 2000 p 38) Ele escreveu uma obra mas natildeo publicou onde respondeu aos calvinistas intitulada ldquoDe Arte Dubitandirdquo uma abordagem cientiacutefica liberal e cautelosa para os problemas intelectuais em contraste com o dogmatismo de seus opositores calvinistas

Podemos entatildeo dizer que dentre estes expoentes ceacuteticos Erasmo eacute bem mais ceacutetico que Castellio pois este se questiona Como duvidar do que eacute certo como Deus sua Bondade Mas como acreditar no que eacute duvidoso como o argumento teleoloacutegico das Escrituras

O ceticismo parcial levantado por Castellio representa outra faceta do problema do conhecimento levantado pelo renascimento se eacute necessaacuterio encontrar uma regra de feacute um criteacuterio para se distinguir a feacute verdadeira da falsa como conseguirmos isto Ele abandona uma busca da certeza na feacute por uma busca razoaacutevel influenciando as formas mais liberais do protestantismo

O ceticismo na reforma protestante 175

64 RELACcedilAtildeO DO CETICISMO COM O FIDEIacuteSMO POSSIacuteVEL LEITURA DO CRITEacuteRIO DE VERDADE

Ambos catoacutelicos e protestantes natildeo possuem a

regra de feacute ou o criteacuterio de verdade pois para algo ser criteacuterio de verdade precisa ser objetivado e aquilo que concerne agrave feacute eacute subjetivo e pessoal natildeo pode ser uma verdade epistemoloacutegica Neste ponto faz-se necessaacuterio abordar mais profundamente dois conceitos o ceticismo e o fideiacutesmo para chegarmos a uma possiacutevel leitura deste criteacuterio de verdade na religiatildeo

Para tanto precisamos compreender o papel do ceacutetico nas tradiccedilotildees antigas sendo elas pirrocircnica e acadecircmica Popkin demostra o papel do ceacutetico quanto agraves crenccedilas

O ceacutetico seja na tradiccedilatildeo pirrocircnica seja na acadecircmica desenvolvia argumentos para mostrar ou sugerir que as evidecircncias razotildees ou provas utilizadas como fundamentos de nossos vaacuterios tipos de crenccedilas natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterios (POPKIN 2000 p 23)

Em momento algum eacute determinado que o ceacutetico e

o crente satildeo classificaccedilotildees opostas e excludentes uma da outra pelo contraacuterio o ceacutetico tem como papel desenvolver argumentos que demonstrem que os vaacuterios tipos de crenccedilas tambeacutem satildeo faliacuteveis e natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterias no ponto de vista objetivo pois natildeo haacute verdades absolutas e natildeo haacute criteacuterios universais e objetivos Em outras palavras o ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias de uma crenccedila mas segundo Popkin ldquoo ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo (POPKIN 2000 p 24)

Portanto o ceacutetico pode ser fideiacutesta sem problema algum pois uma coisa eacute duvidar questionar evidecircncias racionais objetivas e criteacuterios de verdade que tendem a ser universais e absolutos e outra coisa eacute ser crente de

176 Eacutetica e filosofia poliacutetica

alguma crenccedila sendo ela religiosa ou natildeo pois o crer estaacute no campo subjetivo e natildeo objetivo

A partir desta leitura de que o crente e o ceacutetico neste sentido podem andar juntos comeccedila-se a compreender Erasmo Castellio e ateacute mesmo Montaigne o uacuteltimo foi o expoente principal que trouxe agrave tona o ceticismo antigo para a realidade da reforma intelectual e levou tais duacutevidas para as demais aacutereas do conhecimento

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Portanto esta postura ceacutetica de Montaigne tem

suas bases nesse periacuteodo histoacuterico em que ele estaacute vivenciando com a reforma protestante as questotildees acerca do problema do criteacuterio e o iniacutecio do renascimento eacute sem duacutevida um momento muito frutuoso onde inuacutemeras questotildees satildeo levantadas e ocorre de fato uma revoluccedilatildeo no pensamento

Percebe-se no presente trabalho atraveacutes desta leitura histoacuterica e dos problemas levantados por diversos autores como se tentou objetivar algo que eacute subjetivo como se tentou criar criteacuterios de verdade acerca da feacute fazendo com que a verdade se restringisse a sua ldquoverdade religiosardquo o que clareou todo este discurso usado foi o ceticismo que alguns autores resgataram dos antigos

De modo simples esse eacute o iniacutecio da minha pesquisa acerca desse periacuteodo e de questotildees que cercaram este momento importante na transformaccedilatildeo cultural histoacuterica e intelectual do ocidente

REFEREcircNCIAS COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo Eduardo Brandatildeo ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

O ceticismo na reforma protestante 177

JOAtildeO PAULO PP II Catecismo da Igreja Catoacutelica 11 de outubro de 1992 Disponiacutevel emhttpwwwvaticanvaarchivecathechism_poindex_newprima-pagina-cic_pohtml POPKIN Richard H Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza [1923] Traduzido por Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

178 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VII =

VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMOS

ENSAIOS DE MONTAIGNE

Andre Scoralick Eacute bastante banal dizer que a mateacuteria dos Ensaios1

pertence ao campo da moral Basta percorrer os tiacutetulos dos capiacutetulos para encontrar paixotildees viacutecios virtudes questotildees referentes agrave accedilatildeo e ao agente enfim toda uma miriacuteade de problemas referentes agrave moralidade Menos banal no entanto eacute indicar o sentido da reflexatildeo moral que Montaigne conduz em seus Ensaios Natildeo eacute evidente por exemplo que as questotildees eacuteticas natildeo sejam meros objetos de reflexatildeo de uma especulaccedilatildeo desinteressada de um tratamento puramente teoacuterico natildeo eacute evidente que elas possam ter uma finalidade eminentemente praacutetica E no entanto eacute o que o proacuteprio Montaigne sugere em uma seacuterie de passagens do seu livro dentre as quais se encontra aquela do ensaio Da educaccedilatildeo das crianccedilas em que ele aponta as liccedilotildees (morais sobretudo) que o menino deve seguir

Doutorado em Filosofia (2013) pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP instituiccedilatildeo na qual adquiriu o tiacutetulo de Mestre em Filosofia (2008) Bacharel em Filosofia (2002) 1 Utilizaremos aqui a ediccedilatildeo Villey-Saulnier (Les Essais Ed P Villey reeditada por V L Saulnier Paris PUF 1999) que traduzimos livremente no corpo do texto acrescentando o texto francecircs nas notas de rodapeacute (indicando em algarismos romanos o livro e em araacutebicos o capiacutetulo dos Ensaios) Nas citaccedilotildees do corpo do texto indicaremos a paacutegina da traduccedilatildeo para o portuguecircs feita por Rosemary Costek (Satildeo Paulo Martins Fontes 2001) cujas soluccedilotildees por vezes adotamos Nas citaccedilotildees em francecircs a paginaccedilatildeo eacute a da ediccedilatildeo Villey-Saulnier

180 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Eis aqui minhas liccedilotildees Aproveitou-as melhor quem as executa do que quem as sabe A Deus natildeo agrada diz algueacutem em Platatildeo que filosofar seja aprender muitas coisas e tratar das artes () Ele [o aluno] natildeo tanto diraacute sua liccedilatildeo como a executaraacute (I 26 pps 250-251 grifos nossos)2

Da mesma forma natildeo eacute nada evidente a

consequecircncia desta maneira de ver as coisas a saber que os Ensaios tenham uma dimensatildeo normativa para aleacutem da dimensatildeo descritiva que a Nota ao Leitor e o ensaio Do arrependimento parecem indicar ldquosou eu mesmo a mateacuteria do meu livrordquo (I Nota ao leitor p 03) ldquoos outros formam o homem eu o relatordquo (III 2 p 27)3 Segundo esta maneira de ver as coisas (a nossa maneira) tudo se passa como se Montaigne em seus Ensaios natildeo se limitasse ao autorretrato nem fizesse apenas como um dia quis Hugo Friedrich4 uma ldquociecircncia moralrdquo espeacutecie de precursora da antropologia e da psicologia modernas Tudo se passa como se nesta obra algo de normativo se apresentasse No presente texto procuraremos abordar esta questatildeo a saber em que medida eacute possiacutevel encontrar dispersos pelos Ensaios (e sobretudo nos uacuteltimos) os elementos de uma moral praacutetica com propoacutesito normativo Trata-se de resgatar para aleacutem da criacutetica montaigniana da perfeita indiferenccedila do saacutebio estoacuteico (paradigma eacutetico que herdado do periacuteodo heleniacutestico ainda orientava as ideias morais do renascimento tardio) a defesa igualmente empreendida pelo ensaiacutesta de um outro modelo moral a

2 ldquoVoicy mes leccedilons Celuy-lagrave y a mieux proffiteacute qui les fait que qui les sccedilait () Jagrave agrave Dieu ne plaise dit quelquun en Platon que philosopher ce soit apprendre plusieurs choses et traicter les arts (hellip) Il ne dira pas tant sa leccedilon comme il la ferardquo (I 26 pps 167-168) 3 ldquoje suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo (I Note au lecteur p 03) ldquoles autres forment lhomme je le reciterdquo (III 2 p 804) 4 Friedrich Hugo Montaigne (trad Robert Rovini) Paris Gallimard

1992 p 13

Viver como Soacutecrates 181

conduta ordenada ideal moral ao alcance do homem comum mediacuteocre Para iniciar a busca desta moral praacutetica tomaremos como fio condutor a leitura de algumas passagens de um ensaio em particular o deacutecimo segundo do terceiro livro intitulado Da fisionomia acrescentando quando necessaacuterio a anaacutelise de trechos de outros capiacutetulos dos Ensaios

Em Da fisionomia Montaigne opotildee duas formas de conduta aquela segundo a ciecircncia e a conduta conforme agrave natureza No horizonte desta empresa estaacute nada mais nada menos do que a vida boa possiacutevel a saber a tranquilidade da alma erguida ndash muitos ensaios o testemunham ndash como referecircncia do pensamento moral do ensaiacutesta Em Da fisionomia Montaigne insiste em afirmar que o uacutenico caminho para a serenidade eacute a conduta conforme a natureza e que aquela segundo a ciecircncia leva ao oposto do que ela promete agrave perturbaccedilatildeo Percorramos entatildeo a criacutetica de Montaigne agrave conduta segundo a ciecircncia para finalmente chegarmos ao percurso proposto pelo autor Teremos de nos perguntar entatildeo o que eacute esta lsquonaturezarsquo que o ensaiacutesta reivindica e qual eacute exatamente o seu caminho

Dissemos que no horizonte desta empresa encontra-se a vida boa possiacutevel isto eacute a tranquilidade da alma De que maneira as diversas tradiccedilotildees do pensamento ocidental ateacute o seacuteculo XVI pretenderam atingi-la Ora a partir de diferentes estrateacutegias de conhecimento e controle das afecccedilotildees da alma quer dizer de moderaccedilatildeo ou contenccedilatildeo das paixotildees (estados de perturbaccedilatildeo da alma que se manifestam na busca das coisas costumeiramente consideradas bens ndash cupidez ambiccedilatildeo voluacutepia ndash ou na aversatildeo pelas coisas consideradas males ndash medo tristeza) Dentre essas diferentes estrateacutegias uma se destaca aos olhos de Montaigne que a toma como a estrateacutegia por excelecircncia da ldquociecircnciardquo isto eacute das doutrinas dogmaacuteticas legadas pelos filoacutesofos do passado dentre as quais se destaca o

182 Eacutetica e filosofia poliacutetica

estoicismo recuperado pelos neo-estoicos em voga na Franccedila do seacuteculo XVI (Justus Lipsius e Guillaume Du Vair sobretudo) Qual seria essa estrateacutegia A meditatio mortis dos estoicismos meacutedio e imperial sobretudo de Ciacutecero e Secircneca

Segundo os estoicos a causa da perturbaccedilatildeo da alma eacute um erro de juiacutezo considerar como bens coisas que em si mesmas satildeo indiferentes5 (a riqueza a honra a sauacutede etc) Ao julgaacute-las como bens (e seus opostos como males) o indiviacuteduo as toma como fins uacuteltimos (teacuteloi) de suas accedilotildees e passa a aspiraacute-las e a direcionar seus esforccedilos para alcanccedilaacute-las e mantecirc-las Daiacute seu sofrimento quando natildeo as alcanccedila ou as perde (quando natildeo estava previsto pela Providecircncia Divina que as atingisse ou as mantivesse) A uacutenica saiacuteda para este esquema perverso das paixotildees eacute a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem6 isto eacute a compreensatildeo de que o uacutenico e verdadeiro Bem (uacutenico fim que deve ser aspirado e buscado) eacute a Harmonia Universal que depende da realizaccedilatildeo da nossa natureza individual (isto eacute do cumprimento do nosso destino7 pessoal) Conformar a proacutepria vontade aos comandos da Razatildeo ou desiacutegnios da Natureza isto eacute agrave Vontade de Deus aceitar tudo o que ocorre consigo (ou mais do que isso desejaacute-lo buscaacute-lo) eis a fonte da tranquilidade da alma

Ocorre que o indiviacuteduo de sua perspectiva finita natildeo conhece os planos de Deus Ele natildeo sabe se estaacute nos desiacutegnios do Cosmos que vaacute se casar que siga uma carreira poliacutetica que tenha ou natildeo filhos Como entatildeo deve agir O que deve escolher buscar Ora dizem os estoicos ele deve prosseguir escolhendo o que sua educaccedilatildeo o ensinou a buscar (o que eacute conveniente o que os deveres recomendam a sauacutede a honra o

5 Para a doutrina da indiferenccedila dos bens e dos males segundo a opiniatildeo comum cf Secircneca Cartas a Luciacutelio 92 e 118 6 Idem cartas 16 e 41 7 Idem carta 96

Viver como Soacutecrates 183

conhecimento etc) mas sem buscar essas coisas como se fossem bens isto eacute sem tomaacute-las como os fins uacuteltimos de suas accedilotildees Ele deve consideraacute-las apenas como preferiacuteveis isto eacute fins necessaacuterios para que continue a agir mas que natildeo devem ser seus fins uacuteltimos (teacuteloi) e sim apenas fins intermediaacuterios (skoacutepoi) Em cada uma de suas escolhas seu fim uacuteltimo (o verdadeiro objeto de suas aspiraccedilotildees) deve ser aquilo que a Razatildeo e a Natureza (a Vontade de Deus) determinam que ocorra (o Bem) Assim se ele natildeo alcanccedilar o que buscava (o fim intermediaacuterio) natildeo se decepcionaraacute pois natildeo era isso o que ele efetivamente buscava e sim o que Deus queria para ele (o que de qualquer forma realizou-se) Da mesma forma se perder algo que havia alcanccedilado este homem natildeo sofre pois qualquer coisa que advenha ele sabe que eacute conforme agrave Razatildeo ou a Vontade de Deus sabe que tudo colabora para seu bem individual (a realizaccedilatildeo de sua natureza particular) e para o Bem Universal uacutenico fim que ele aspira Este homem que os estoicos chamam de saacutebio permanece tranquilo num estado de perfeita indiferenccedila8 diante de qualquer coisa que lhe aconteccedila Mas como ele adquiriu a ciecircncia do Bem Ora ingressando no caminho da filosofia isto eacute do exerciacutecio da dialeacutetica ndash a praacutetica repetida da distinccedilatildeo dos bens e dos males De tanto repetir este exerciacutecio e julgar o que eacute correto fazer em cada caso o aspirante agrave sabedoria deve dar uma espeacutecie de ldquosalto intelectualrdquo no qual subitamente eacute levado agrave apreensatildeo do Bem

Ao longo da histoacuteria do estoicismo no entanto outros ldquomeacutetodosrdquo com vistas ao desapego em relaccedilatildeo aos bens segundo a opiniatildeo foram desenvolvidos Eacute o caso da meditaccedilatildeo da vaidade e da contingecircncia9 dessas

8 Cf Secircneca De constantia sapientis 10 4 9 Falamos a propoacutesito de laquo contingecircncia raquo porque a Providecircncia Divina pode ser representada do ponto de vista do agente como a Fortuna jaacute que ele perceberia apenas uma forccedila determinando o resultado de

184 Eacutetica e filosofia poliacutetica

coisas laquomeacutetodoraquo desenvolvido pelos estoicismos meacutedio e imperial Esta meditaccedilatildeo ndash espeacutecie de projeccedilatildeo permanente da possibilidade de perdecirc-las a todo momento ndash deve (ao menos eacute o que se espera) ter como efeito um certo desprendimento em relaccedilatildeo aos laquofalsos bensraquo numa palavra a indiferenccedila ou impassibilidade

Se pudeacutessemos ateacute o fundo da alma nos penetrar desta verdade e representar para noacutes mesmos que todos os males que acontecem com os outros todos os dias e em nuacutemero tatildeo grande tem o caminho livre para chegar a noacutes estariacuteamos armados antes de sermos atacados10

Todavia haacute uma estrateacutegia pretensamente ainda

mais eficaz que conduziria ainda mais rapidamente a tal resultado Na medida em que nas representaccedilotildees da opiniatildeo comum a morte aparece como o pior dos males (ou a vida como o maior dos bens) bastaria que a meditaccedilatildeo se aplicasse a este objeto para que como por um efeito de cascata todo o resto se tornasse indiferente Assim a meditatio mortis adquire uma centralidade dentre as estrateacutegias que buscam a impassibilidade ela seraacute a estrateacutegia por excelecircncia do estoicismo imperial (ao menos o de Secircneca) com vistas agrave tranquilidade da alma Trata-se de meditar constantemente sobre a vaidade o aspecto efecircmero e a contingecircncia da vida de projetar a todo momento e para o proacuteximo instante a proacutepria morte

suas accedilotildees cujas causas lhe escapam De seu ponto de vista limitado ele natildeo sabe se esta forccedila eacute o acaso ou a Vontade de Deus 10 ldquoHoc si quis in medullas demiserit et omnia aliena mala quorum ingenscotidie copia est sic aspexerit tamquam liberum illis et ad se iter sit multo ante se armabit quam petatur Seroanimus ad periculorum patientiam post pericula instruiturrdquo (Secircneca De tranquilitate animi 11

8)

Viver como Soacutecrates 185

Vivemos mal quando natildeo sabemos morrer bem [hellip] aquele que sabe que no momento mesmo em que foi concebido sua sentenccedila foi proclamada saberaacute viver segundo a lei da natureza e encontraraacute assim a mesma forccedila de alma para opocircr aos eventos nenhum dos quais jamais lhe seraacute imprevisto11

Ora Montaigne natildeo poderia deixar de zombar

deste lsquoprojetorsquo elaborado pelos estoicos isto eacute de sua concepccedilatildeo de tranquilidade como impassibilidade (apathia) e do caminho proposto para alcanccedilaacute-la (a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem) Isto porque diz o ensaiacutesta nem um nem outro (nem a ciecircncia nem a impassibilidade) estatildeo ao alcance dos homens12 em sua maioria ordinaacuterios comuns mediacuteocres (intelectualmente e afetivamente fracos dotados de uma fraacutegil capacidade de julgar e de uma vontade fraca) Em numerosas passagens Montaigne aponta a fragilidade constitutiva do juiacutezo dos homens (sequer eacute necessaacuterio ir agrave Apologia de Raimond Sebond para mostraacute-lo)

11 ldquoMale uiuet quisquis nesciet bene mori () qui sciet hoc sibi cum conciperetur statim condictum uiuet ad formulam et simul illud quoque eodem animi robore praestabit ne quid ex iis quae eueniunt subitum sitrdquo (Idem 11 4-6) Cf tambeacutem Cartas a Luciacutelio 91 e 101 12 Montaigne tensiona explicitamente o paradigma proposto pelos estoacuteicos (o saacutebio) e certa concepccedilatildeo do homem Ele acusa a inutilidade do modelo agrave luz da impossibilidade da maioria dos homens realizarem-no (eacute um cume sobre o qual ldquonenhum ser humano pode se sentarrdquo) Outro termo ao qual ele recorre eacute o ldquonoacutesrdquo em que ele proacuteprio se inclui e que designa a coletividade humana (ldquoessas regras que excedem nossos costumes e nossa forccedilardquo) Entendemos que estas noccedilotildees natildeo implicam nenhuma referecircncia a uma natureza humana ou a uma universalidade Quando Montaigne fala dos lsquohomensrsquo ou deste lsquonoacutesrsquo (e que frequentemente aparece como lsquonoacutes homens fracosrsquo) pensamos tratar-se de uma noccedilatildeo obtida por experiecircncia que permanece portanto como generalidade frouxa aberta a exceccedilotildees natildeo sendo uma universalidade formulada teoricamente Da mesma forma entendemos que Montaigne se refere agraves inclinaccedilotildees humanas como fenocircmenos observaacuteveis sem poder dizer se eles exprimem uma lsquonaturezarsquo oculta

186 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quem se lembra de tantas e tantas vezes ter se descontentado de seu proacuteprio juiacutezo natildeo eacute um tolo por jamais desconfiar dele Quando me vejo convencido de uma opiniatildeo falsa pela razatildeo de outrem natildeo tanto aprendo o que ele me disse de novo e esta ignoracircncia particular (seria um ganho pequeno) como em geral aprendo minha debilidade e a traiccedilatildeo de meu entendimento (III 13 p 436)13

Para Montaigne o lsquosalto intelectualrsquo de apreensatildeo

do Bem imaginado pelos estoicos eacute irrealizaacutevel O mesmo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave perfeita indiferenccedila do saacutebio Ela supotildee um poder de neutralizaccedilatildeo ou de atenuaccedilatildeo dos estados afetivos (movimentos da alma) que natildeo estaacute ao alcance da maioria dos homens ldquonatildeo sigamos esses exemplos natildeo os alcanccedilariacuteamosrdquo (III 10 347)14 Uma vez que o indiviacuteduo tenha sido tocado pelos objetos que nele despertam paixotildees nem seu juiacutezo nem sua vontade seratildeo capazes de refreaacute-lo15 - o proacuteprio

13 ldquoQui se souvient de sestre tant et tant de fois mesconteacute de son propre jugement est-il pas un sot de nen entrer pour jamais en deffiance Quand je me trouve convaincu par la raison dautruy dune opinion fauce je napprens pas tant ce quil ma dict de nouveau et cette ignorance particuliere (ce seroit peu dacquest) comme en general japprens ma debiliteacute et la trahison de mon entendementrdquo (III 13 1074) 14 ldquoNataquons pas ces exemples nous ny arriverions pointrdquo (III 10 1015) 15 Nem o juiacutezo nem a forccedila da vontade Mais do que apenas aos estoicos Montaigne portanto opotildee-se agraves duas tradiccedilotildees que desde os gregos debatiam acerca dos meios de fazer frente agraves paixotildees os intelectualistas que fundam a virtude no conhecimento do bem (o jovem Platatildeo os estoicos) e os adeptos da enkrateia isto eacute da forccedila de caraacuteter conquistada pelo exerciacutecio (Xenofonte os ciacutenicos) O Platatildeo dos diaacutelogos de maturidade (a partir da Repuacuteblica) e Aristoacuteteles

entenderatildeo que ambos o conhecimento do bem e a forccedila de caraacuteter satildeo necessaacuterios agrave virtude No opuacutesculo De constantia sapientis Secircneca daacute o nome de patientia agrave forccedila de caraacuteter diante das paixotildees e de constantia agrave ausecircncia de perturbaccedilatildeo fundada no juiacutezo reto

entendendo que a segunda virtude eacute superior agrave primeira

Viver como Soacutecrates 187

Montaigne se apresenta como exemplo de fraqueza da vontade

aqueles que devem cuidar de mim poderiam com facilidade subtrair de minha vista o que pensam ser-me nocivo pois em tais coisas jamais desejo nem tenho o que dizer sobre o que eu natildeo vejo mas daquelas que se me apresentam eles perdem seu tempo em pregar-me a abstinecircncia (III 13 p 478)16

Entre o homem comum e o paradigma do saacutebio

proposto pelos estoicos haacute uma distacircncia intransponiacutevel - o que faz deste uacuteltimo aos olhos de Montaigne um modelo inuacutetil

de que servem esses cumes elevados da filosofia sobre os quais nenhum ser humano pode se sentar e essas regras que excedem os nossos costumes e a nossa forccedila (III 9 p 307)17

Num contexto semelhante Montaigne vai ainda

mais longe na criacutetica acusando de ambiccedilatildeo os porta-vozes desta moral

Odeio esta sapiecircncia desumana que quer nos tornar indiferentes e inimigos da cultura do corpo Considero tomar a contragosto as voluacutepias naturais uma injusticcedila semelhante a gostar delas demais [] Haacute indiviacuteduos que com uma estupidez selvagem como diz Aristoacuteteles satildeo-lhes indiferentes [aos prazeres do corpo] Conheccedilo alguns que o satildeo por ambiccedilatildeo []

16 ldquoceux qui doivent avoir soing de moy pourroyent agrave bon marcheacute me desrober ce quils pensent mestre nuisible car en telles choses je ne desire jamais ny ne trouve agrave dire ce que je ne vois pas mais aussi de celles qui se presentent ils perdent leur temps de men prescher labstinencerdquo (III 13 1101) 17 ldquoA quoy faire ces poinctes esleveacutees de la philosophie sur lesquelles aucun estre humain ne se peut rassoir et ces regles qui excedent nostre usage et nostre forcerdquo (III 9 989)

188 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo (III 13 p 485-487 grifos nossos)18

Aqui Montaigne remete a uma longa tradiccedilatildeo cujos rastros se encontram na poesia grega (de Homero agraves trageacutedias) em Horaacutecio e em certos autores cristatildeos O ponto em comum entre essas diferentes fontes eacute a liccedilatildeo moral derivada da ecircnfase nos limites humanos particularmente contrastados pelos poetas gregos e autores cristatildeos19 com a perfeiccedilatildeo e a potecircncia divinas para marcar aquilo que o homem natildeo pode ambicionar Montaigne se insere nesta longa tradiccedilatildeo quando acusa na moral praacutetica dos estoicos algo como a aspiraccedilatildeo a uma condiccedilatildeo divina visto que a ciecircncia e a impassibilidade seriam atributos apenas de Deus

eles querem se colocar fora de si mesmos e escapar do homem Eacute loucura em vez de se transformarem em anjos transformam-se em bestas em vez de se elevarem precipitam-se (III 13 p 500)20

Montaigne adverte os que propotildeem esta moral

das consequecircncias nefastas de sua hyacutebris Natildeo se trata apenas de uma vatilde pretensatildeo de uma busca inuacutetil mas de um projeto nocivo Isto porque contrariamente ao que ela promete esta moral soacute produz a perturbaccedilatildeo a infelicidade Neste ponto a criacutetica endereccedila-se diretamente agrave meditatio mortis A meditaccedilatildeo permanente

18 [Je] hay cette inhumaine sapience qui nous veut rendre desdaigneux et ennemis de la culture du corps Jestime pareille injustice prendre agrave contre coeur les voluptez naturelles que de les prendre trop agrave coeur (hellip) Il en est qui dune farouche stupiditeacute comme dict Aristote en sont desgoutez Jen cognoy qui par ambition le font (hellip) Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps (III 13 1106-1107) 19 Cf tambeacutem Plutarco LE de Delfos in Dialogues Pythiques Paris Flammarion 2006 pps 112-115 (392a-393c) 20 ldquoIls veulent se mettre hors deux et eschapper agrave lhomme Cest folie au lieu de se transformer en anges ils se transforment en bestes au lieu de se hausser ils sabattentrdquo (III 13 p 1115)

Viver como Soacutecrates 189

da proacutepria morte projeccedilatildeo constante de um acontecimento fatal para o instante seguinte natildeo poderia ter outro efeito que pocircr o indiviacuteduo num estado de permanente terror A indignaccedilatildeo montaigniana com semelhante ldquomeacutetodordquo vai ao limite do escaacuternio

eacute certo que para a maior parte [dos homens] a preparaccedilatildeo para a morte provocou mais tormento do que o fez seu sofrimento [hellip] Natildeo somente o golpe mas o vento e o peido nos atingem (III 12 p 399-400)21

A meditatio acrescenta ao sofrimento sensiacutevel

real inevitaacutevel (a dor a morte) ou simplesmente possiacutevel (a pobreza a desonra) o medo ndash sofrimento criado pela imaginaccedilatildeo Ela antecipa prolonga no tempo e aprofunda (pois eacute recomendada a projeccedilatildeo dos mais terriacuteveis males uma vez que se trata de preparar-se para sua eventualidade) um sofrimento que soacute afetaria o sujeito no futuro e de modo mais leve ou mais breve no momento em que se apresentasse aos seus sentidos

Lanccedilai-vos agrave experiecircncia dos males que vos podem ocorrer sobretudo dos mais extremos testai-vos aiacute dizem eles ganhai seguranccedila [hellip] eacute preciso que nosso espiacuterito os estenda e alongue e que antecipadamente os incorpore em si e se entretenha com eles como se natildeo pesassem razoavelmente para os nossos sentidos [hellip] [ora] eacute febre submeter-se desde agora ao chicote porque pode ocorrer da fortuna vos fazer sofrer isso um dia (Ibidem)22

21 ldquoIl est certain quagrave la plus part la preparation agrave la mort a donneacute plus de tourment que na faict la souffrance (hellip) Non seulement le coup mais le vent et le pet nous frapperdquo (III 12 1050-1051) 22 ldquoJettez vous en lexperience des maux qui vous peuvent arriver nommeacutement des plus extremes esprouvez vous lagrave disent-ils asseurez vous lagrave (hellip) il faut que nostre esprit les estende et alonge et quavant la main il les incorpore en soy et sen entretienne comme sils ne poisoient pas raisonnablement agrave nos sens (hellip) [Or] cest fieacutevre aller

190 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Imaginaccedilatildeo e sentidos estes satildeo os dois poacutelos

que se opotildeem na criacutetica de Montaigne agrave meditatio mortis ou mais amplamente agrave laquociecircnciaraquo Que sejamos afetados por alguns infortuacutenios atraveacutes dos sentidos eacute algo incontornaacutevel Eacute possiacutevel evitar no entanto o trabalho nocivo da imaginaccedilatildeo que produz a perturbaccedilatildeo

Por aiacute jaacute se antevecirc o caminho que Montaigne vai contrapor agrave via da ciecircncia no que diz respeito ao enfrentamento dos infortuacutenios a via dos sentidos isto eacute da restriccedilatildeo do trabalho da imaginaccedilatildeo Trata-se do caminho percorrido espontaneamente pelo homem simples natildeo cultivado que evita pensar nos infortuacutenios antes que ocorram sofrendo-os apenas quando se apresentam aos seus sentidos ldquoO [homem] comum natildeo tem necessidade nem de remeacutedio nem de consolo a natildeo ser no momento do golpe e natildeo o considera senatildeo tanto quanto o senterdquo (III 12 p 403)23 Este homem natildeo entristece o presente por causa de uma eventual ou necessaacuteria infelicidade futura natildeo prolonga no tempo nem aumenta a gravidade dos sofrimentos por meio de projeccedilotildees imaginaacuterias Ao contraacuterio ele fixa sua consciecircncia no presente e na fruiccedilatildeo dos prazeres e pequenas felicidades do instante afastando as representaccedilotildees que provocam medo e tristeza

[] jamais vi camponecircs vizinho meu pocircr-se a cogitar sobre a continecircncia e a seguranccedila com que passaria por esta hora derradeira A natureza o ensina a soacute pensar na morte quando estiver morrendo (III 12 402)24

des agrave cette heure vous faire donner le fouet par ce quil peut advenir que fortune vous le fera souffrir un jourrdquo (idem) 23 laquoLe commun na besoing ny de remede ny de consolation quau coup et nen considere quautant justement quil en sentraquo (III 12 1052) 24 laquoJe ne vy jamais paysan de mes voisins entrer en cogitation de quelle contenance et asseurance il passeroit cette heure derniere

Viver como Soacutecrates 191

Ao deixar ao maacuteximo os infortuacutenios para os

sentidos utilizando ao miacutenimo a faculdade de representaccedilatildeo este homem eacute ateacute mesmo mais capaz de captaacute-los na sua dimensatildeo real que escapa ao homem de ldquociecircnciardquo que lhes acrescenta representaccedilotildees imaginaacuterias laquocomo os perfumistas [fazem] com o oacuteleo eles [os homens de laquociecircnciaraquo] a sofisticaram [a natureza] com tantas argumentaccedilotildees e discursos trazidos de fora [hellip]raquo (III 12 p 399)25 Enquanto o homem de ciecircncia se afasta da verdade das coisas o homem comum dela se aproxima

Eis portanto o modelo de conduta a seguir algueacutem como o camponecircs o ruacutestico Em duas palavras o homem ignorante que natildeo passou pelo processo de educaccedilatildeo (laquoesta turba ruacutestica de homens impolidosraquo - III 12 p 398)26 e que se orienta pelos costumes (as opiniotildees comuns) e pela experiecircncia imediata Sobretudo este homem sofre pouco porque toma como criteacuterio de conduta o que se apresenta aos sentidos Ele busca o prazer e foge da dor Por isso evita acrescentar agrave dor que haacute de afetaacute-lo sensivelmente (a doenccedila a velhice a morte) o sofrimento que poderiam provocar as representaccedilotildees imaginaacuterias (a tristeza o medo) Da mesma forma busca os prazeres sensiacuteveis e os frui intensamente sem misturaacute-los a representaccedilotildees desagradaacuteveis27 Mas ele tambeacutem evita os excessos pois

Nature luy apprend agrave ne songer agrave la mort que quand il se meurtraquo (idem) 25 laquocomme les parfumiers de lhuile ils [les hommes de science] lont sophistiqueacutee [la nature] de tant dargumentations et de discours appellez du dehorshellip raquo (III 12 1049) 26 laquoCette tourbe rustique dhommes impolisraquo (III 12 p 1049) 27 A conduta ldquonaturalrdquo que no ensaio Da experiecircncia Montaigne reivindica em relaccedilatildeo aos prazeres do corpo natildeo eacute a outra face da conduta natural que no Da fisionomia ele reivindica em relaccedilatildeo aos sofrimentos Pensamos que sim Mesmo que Montaigne natildeo atribua explicitamente ao ruacutestico o gozo salutar dos prazeres sensiacuteveis

192 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo deseja as dores futuras que estes poderiam acarretar28 (a ressaca depois da bebedeira a indigestatildeo apoacutes a comilanccedila) laquoa intemperanccedila eacute peste da voluacutepia e a temperanccedila natildeo eacute seu flagelo eacute seu temperoraquo (III 13 p 493)29 Enfim desta espeacutecie de sabedoria popular desta sapiecircncia quase instintiva (os animais tambeacutem buscam o prazer e evitam a dor30) adveacutem a tranquilidade da alma estado aniacutemico que coexiste com uma espeacutecie de gratidatildeo31 pelo vivido ndash fruto da praacutetica cotidiana e reiterada do desvio da consciecircncia das dores e de sua fixaccedilatildeo nos prazeres

(regrado unicamente pela necessidade de natildeo recair em dores futuras) fazecirc-lo parece-nos conforme agraves ideias do ensaiacutesta 28 Seriam suficientes o prazer e a dor como criteacuterios de conduta para evitarmos o viacutecio e instaurarmos a virtude moral Seria suficiente a aplicaccedilatildeo desses criteacuterios Essas questotildees devem ser examinadas 29 laquoLintemperance est peste de la volupteacute et la temperance nest pas son fleau cest son assaisonnementraquo (III 13 1110) 30 laquoA natureza imprimiu nos animais o cuidado consigo mesmos e com sua conservaccedilatildeo Eles vatildeo ateacute o ponto de temer sua piora chocar-se e ferir-se que noacutes os encabrestemos e batamos neles acidentes sujeitos a seus sentidos e experiecircncia Mas que noacutes os matemos eles natildeo podem temecirc-lo nem tem a faculdade de imaginar e concluir a morteraquo (III 12 p 407) rdquoNature a empreint aux bestes le soing delles et de leur conservation Elles vont jusques lagrave de craindre leur empirement de se heurter et blesser que nous les enchevestrons et battons accidents subjects agrave leurs sens et experience Mais que nous les tuons elles ne le peuvent craindre ny nont la faculteacute dimaginer et conclurre la mortrdquo (III 12 p 1055) 31 Novamente parece-nos de acordo com as ideias do autor estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a conduta paradigmaacutetica do camponecircs (conduta conforme a natureza) e o tema da gratidatildeo que aparece no ensaio seguinte Da experiecircncia Isto porque a gratidatildeo eacute uma espeacutecie de corolaacuterio da vida conforme a natureza que restringe as dores agrave sua accedilatildeo (inevitaacutevel) sobre os sentidos e estende os prazeres sensiacuteveis com o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo (a faculdade de representaccedilatildeo) ldquoOs outros sentem a doccedilura de um contentamento e da prosperidade sinto-a assim como eles mas natildeo de passagem e escapando Eacute preciso estudaacute-la saboreaacute-la e ruminaacute-la para dar graccedilas condignas agravequele que no-la outorga () Quanto a mim portanto amo a vida e a cultivo tal como aprouve a Deus no-la outorgarrdquo (III 13 pps 494-496)

Viver como Soacutecrates 193

Mas o que significa tomar o ruacutestico (essa espeacutecie de homem quase em ldquoestado de naturezardquo) como modelo de conduta O que isso pode significar para homens que como Montaigne jaacute passaram pelo processo de educaccedilatildeo e natildeo podem simplesmente retornar para esse estado primitivo de ignoracircncia Como jaacute tendo sido educado aproximar-se deste modelo Em resposta a essas perguntas Montaigne encontra na histoacuteria da filosofia um modelo de saacutebio que teria realizado este lsquoprojetorsquo Soacutecrates O mestre de Platatildeo e de Xenofonte segundo o ensaiacutesta teria justamente alcanccedilado por meio de sua praacutetica filosoacutefica um estado similar ao do ruacutestico Ele reproduziria refletidamente sua tranquilidade fundada na ignoracircncia ldquonatildeo teremos falta de bons regentes inteacuterpretes da simplicidade natural Soacutecrates seraacute um delesrdquo (III 12 p 403)32 Isto porque o principal fruto do seu ensinamento teria sido conduzir seus interlocutores ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia (reconhecimento que ele Soacutecrates teria sido o primeiro a fazer) O essencial neste ponto eacute a praacutetica socraacutetica do elenchos a criacutetica dos discursos dogmaacuteticos (de seu pretenso saber) a conduccedilatildeo de seus interlocutores ao reconhecimento de sua falta de ciecircncia (de que estatildeo em posse apenas de opiniotildees) Em Da fisionomia Montaigne examina o discurso que Soacutecrates teria proferido na ocasiatildeo do seu julgamento e deteacutem-se na anaacutelise das razotildees de sua tranquilidade diante de sua condenaccedilatildeo agrave morte Em face deste horizonte Soacutecrates mostra-se sereno E ele argumenta que permanece calmo afirma Montaigne porque natildeo sabe o que eacute a morte Todas as opiniotildees acerca da natureza desta (se haacute ou natildeo imortalidade da alma se a morte eacute ou natildeo a nossa completa aniquilaccedilatildeo) revelam-se quando submetidas a exame apenas isto opiniotildees isto eacute juiacutezos cuja correspondecircncia com o objeto (a morte) natildeo se pode

32 ldquoNous naurons pas faute de bons regens interpretes de la simpliciteacute naturelle Socrates en sera lunrdquo (III 12 p 1052)

194 Eacutetica e filosofia poliacutetica

comprovar Portanto temer o quecirc Natildeo haacute o que justifique o temor ldquosei [diz Soacutecrates] que nem frequentei nem conheci a morte nem vi ningueacutem que tenha experimentado suas qualidades para me instruir sobre elas Aqueles que a temem pressupotildeem conhececirc-la Quanto a mim natildeo sei nem o que ela eacute nem o que se faz no outro mundordquo (III 12 p 403-404)33 O juiacutezo de Montaigne sobre o pronunciamento socraacutetico coloca o mestre de Platatildeo na mesma posiccedilatildeo do ruacutestico ldquoeacute um discurso [] [que] representa [] a pura e primeira impressatildeo e ignoracircncia naturalrdquo (III 12 p 407)34

Assim como o ruacutestico portanto o Soacutecrates montaigniano (mas agora por efeito da criacutetica ceacutetica e natildeo por inclinaccedilatildeo ldquonaturalrdquo) natildeo acrescenta agrave dor sensiacutevel e inevitaacutevel o sofrimento evitaacutevel criado pelas representaccedilotildees Mas ele tambeacutem se assemelha ao homem simples em sua dedicaccedilatildeo aos prazeres sensiacuteveis Tambeacutem daiacute deriva sua tranquilidade fruto da satisfaccedilatildeo das carecircncias naturais Natildeo satildeo poucas as passagens em que Montaigne pinta um Soacutecrates afeito aos pequenos prazeres e alegrias do instante o homem que danccedila toca instrumentos brinca com as crianccedilas bebe com os companheiros e ateacute mesmo permite-se cometer excessos ocasionais afirmando que eles pertencem (se eventuais e adequados agraves circunstacircncias) agraves regras da conveniecircncia

[natildeo haacute] coisa mais notaacutevel em Soacutecrates do que muito velho ele encontrar tempo para aprender a danccedilar e a tocar instrumentos e tecirc-lo por bem empregado [hellip] este homem se fosse convidado a beber agrave porfia por

33 ldquoJe sccedilay [dit Socrate] que je nay ny frequenteacute ny recogneu la mort ny nay veu personne qui ayt essayeacute ses qualitez pour men instruire Ceux qui la craingnent presupposent la cognoistre Quant agrave moy je ne sccedilay ny quelle elle est ny quel il faict en lautre monderdquo (III 12 pps 1052-1053) 34 ldquocest un discours (hellip) [qui] repreacutesente (hellip) la pure et premiere impression et ignorance de naturerdquo (1054-1055)

Viver como Soacutecrates 195

dever de civilidade de todo o exeacutercito era ele que levava a vantagem e natildeo se recusava nem a brincar de bolinhas com as crianccedilas nem a correr com elas sobre um cavalo de madeira e o fazia com graccedila (III 13 p 491-492)35

Por aiacute jaacute se percebe que o modelo de Soacutecrates eacute

relevante natildeo apenas por sua potecircncia criacutetica isto eacute por levar os pretensos saacutebios ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia O interesse do modelo socraacutetico natildeo se resume ao momento negativo do elenchos A partir da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia um novo programa surge e Montaigne reconhece em Soacutecrates seu mais ilustre representante Isto porque o ruacutestico natildeo eacute apenas um homem ignorante Ele eacute um homem ordenado espontaneamente ordenado um homem que se conduz conforme uma ldquoordenaccedilatildeo naturalrdquo Ora o programa que se inaugura depois do momento da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia eacute o resgate desta ordem que foi perdida por efeito de uma certa educaccedilatildeo de uma certa cultura ldquoNatildeo encaro a espeacutecie e o indiviacuteduo como uma pedra em que eu tenha tropeccedilado aprendo a temer meus passos em tudo e empenho-me em regraacute-losrdquo (III 13 p 436)36 ldquoCompor nossos costumes eacute nosso ofiacutecio natildeo compor livros e ganhar natildeo batalhas e proviacutencias mas a ordem e a tranquilidade em nossa condutardquo (III 13 pps 488-489)37

35 ldquo[il nest] chose plus remercable en Socrates que ce que tout vieil il trouve le temps de se faire instruire agrave baller et jouer des instrumens et le tient pour bien employeacute () cet homme lagrave estoit-il convieacute de boire agrave lut par devoir de civiliteacute cestoit () celuy de larmeacutee agrave qui en demeuroit lavantage et ne refusoit ny agrave jouer aux noysettes avec les enfans ny agrave courir avec eux sur un cheval de bois et y avoit bonne gracerdquo (III 13 1109-1110) 36 ldquoJe ne regarde pas lespece et lindividu comme une pierre ougrave jaye broncheacute japprens agrave craindre mon alleure par tout et mattens agrave la reiglerrdquo (III 13 1074) 37 ldquoComposer nos meurs est nostre office non pas composer des livres et gaigner non pas des batailles et provinces mais lordre et tranquilliteacute agrave nostre conduiterdquo (III 13 1108 ndash idem)

196 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Em termos socraacuteticos eacute como se passaacutessemos

agora para o momento da maiecircutica isto eacute do esforccedilo para dar ordem agraves opiniotildees e daiacute extrair o conhecimento Em termos montaignianos trata-se de recuperar a ordenaccedilatildeo de si isto eacute de suas proacuteprias opiniotildees e da relaccedilatildeo entre as partes constitutivas do eu38 a saber o corpo e a alma Eacute desta ordenaccedilatildeo que adveacutem a tranquilitas

Falemos um pouco mais do ruacutestico Sua fala e sua conduta satildeo espontaneamente ordenadas Seu discurso tem ordem ainda que suas palavras natildeo o tenham No mais das vezes ele se faz entender comunica-se com

38 Ora natildeo eacute exatamente este o ldquoprograma moralrdquo que Platatildeo elabora em diversos diaacutelogos Qual seja restabelecer a partir do conhecimento de si (isto eacute de nossa natureza) a ordem natural entre nossas partes constitutivas (no caso platocircnico a devida hierarquia entre o corpo e a alma o devido comando desta sobre aquele) ldquoa excelecircncia de cada coisa consiste em uma ordem (taacutexei) e uma disposiccedilatildeo feliz (kekosmemeacutenon) resultante da ordem () Eacute preciso que cada um aplique todas as suas forccedilas todas as da cidade na direccedilatildeo deste fim () que natildeo se permita aos apetites (epithymiacuteas) reinar sem medidardquo (Goacutergias 506d-507e) Como veremos Montaigne repropotildee o programa platocircnico da ordenaccedilatildeo de si mas em termos diversos Natildeo se trataraacute de estabelecer uma relaccedilatildeo vertical de comando e obediecircncia entre as ldquopartesrdquo mas uma relaccedilatildeo horizontal de auxiacutelio reciacuteproco de ldquomutuels officesrdquo (III 13 p 1114) Sem duacutevida Montaigne concorda com Platatildeo quanto agrave necessidade da temperanccedila Mas esta natildeo deve ser o efeito do comando da alma

sobre o corpo mas do muacutetuo auxiacutelio entre essas partes (as paixotildees da alma tambeacutem precisam ser regradas temperadas ndash aliaacutes elas satildeo as mais perigosas) Nem Montaigne pretende que busquemos a temperanccedila por se tratar de um fim uacuteltimo mas sim porque o prazer

depende dela ldquoque ela [a alma] o assista e favoreccedila [o corpo] e natildeo se recuse a participar de seus prazeres naturais e de se comprazer conjugalmente com eles acrescentando-lhes se for mais saacutebia a moderaccedilatildeo temendo que por indiscriccedilatildeo eles se confundam com o desprazerrdquo (III 13 p 494-493) O fim uacuteltimo eacute outro natildeo a virtude (para a qual deve se dirigir o prazer) mas o prazer (para o qual deve se dirigir a virtude) Mas tambeacutem eacute outro o que nos move em direccedilatildeo a tal fim natildeo mais uma vontade racional soberana mas um desejo orientado (favorecido) pelo juiacutezo

Viver como Soacutecrates 197

sucesso o espiacuterito do que diz eacute compreensiacutevel ainda que possa haver certo desarranjo na letra

Ele natildeo sabe ablativo conjuntivo substantivo nem a gramaacutetica tampouco o sabem seu lacaio ou uma peixeira de Petit Pont e no entanto vos entreteratildeo a natildeo mais poder se o desejares e possivelmente se embaraccedilaratildeo tatildeo pouco com as regras de sua linguagem quanto o melhor bacharel da Franccedila (I 26 253)39

O mesmo ocorre com sua conduta no mais das

vezes ele age de maneira reta e permanece tranquilo pois toma como criteacuterios de conduta os costumes e os sentidos (o prazer e a dor) Ele permanece tranquilo porque suas ldquopartes constitutivasrdquo (seu corpo e sua alma) estatildeo espontaneamente ordenadas uma em relaccedilatildeo agrave outra Ele eacute o homem que manteacutem uma relaccedilatildeo saudaacutevel com o proacuteprio corpo que atende agraves demandas de seus impulsos naturais (desejo de prazer e aversatildeo agrave dor) Ele natildeo busca uma impassibilidade antinatural como fazem os filoacutesofos (os homens de ldquociecircnciardquo) nem o controle de sua alma sobre seu corpo Estes (alma e corpo) auxiliam-se reciprocamente Sua alma natildeo acrescenta agraves dores do corpo o sofrimento decorrente de representaccedilotildees imaginaacuterias ao contraacuterio busca distraccedilotildees (diversotildees lembranccedilas de prazeres passados etc) para aliviar as dores inevitaacuteveis do corpo Esta conduta serve de modelo para o proacuteprio Montaigne como ele nos mostra nesta passagem

Eis que desde recentemente os mais leves movimentos expelem puro sangue de meus rins Ora nem por isso

39 ldquoIl ne sccedilait pas ablatif conjunctif substantif ny la grammaire ne faict pas son laquais ou une harangiere du petit pont et si vous entretiendront tout vostre soul si vous en avez envie et se desferreront aussi peu agrave ladventure aux regles de leur langage que le meilleur maistre eacutes arts de Francerdquo (I 26 169)

198 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eu deixo de me mover como dantes e galopar atraacutes de meus catildees com um ardor juvenil e insolente [] Sinto alguma coisa que desmorona Natildeo espereis que fique me ocupando em examinar meu pulso e minha urina para daiacute extrair alguma previsatildeo desagradaacutevel passarei bastante tempo sentindo o mal sem prolongaacute-lo com o mal do medo Quem teme sofrer jaacute sofre porque teme (III 13 p 468-469)40

Por outro lado os prazeres sensiacuteveis servem de

baacutelsamo para as paixotildees tristes da alma ndash a tristeza e o medo face agrave velhice a doenccedila e a morte Novamente eacute a conduta que Montaigne potildee em praacutetica ldquojovem eu cobria de prudecircncia minhas paixotildees alegres velho disperso as tristes com o desregramentordquo (III 9 p 288)41 Enfim por meio do muacutetuo acordo de suas lsquopartes constitutivasrsquo o homem comum consegue regrar os excessos de uma e de outra 42

E quanto a Soacutecrates Ou melhor e quanto ao Soacutecrates montaigniano Ora ele eacute o homem que se opotildee a uma certa cultura a uma determinada educaccedilatildeo a saber aquela que rompe com esta ordem ldquonaturalrdquo que desfaz a adesatildeo espontacircnea dos homens agraves opiniotildees

40 ldquoVoicy depuis de nouveau que les plus legers mouvements espreignent le pur sang de mes reins Quoy pour cela je ne laisse de me mouvoir comme devant et picquer apres mes chiens dune juvenile ardeur et insolente () Or sens je quelque chose qui crosle Ne vous attendez pas que jaille mamusant agrave recognoistre mon pous et mes urines pour y prendre quelque prevoyance ennuyeuse je seray assez agrave temps agrave sentir le mal sans lalonger par le mal de la peur Qui craint de souffrir il souffre desjagrave de ce quil craintrdquo (III 13 p 1095) 41 ldquoJeune je couvrois mes passions enjoueacutees de prudence vieil je demesle les tristes de deacutebaucherdquo (III 9 p 977) 42 Mais uma vez projetamos intencionalmente sobre o modelo do ruacutestico uma conduta que natildeo eacute explicitamente associada a ele por Montaigne a saber o muacutetuo auxiacutelio entre o corpo e a alma Acreditamos poreacutem que tal projeccedilatildeo eacute perfeitamente conforme agraves ideias do autor na medida em que associa a ordenaccedilatildeo natural entre as ldquopartes constitutivas do eurdquo agrave conduta conforme agrave natureza cujo

modelo Montaigne encontra no ruacutestico

Viver como Soacutecrates 199

comuns e aos sentidos colocando no lugar destes como criteacuterios de conduta os comandos da razatildeo (uma doutrina moral pretensamente fundada numa fiacutesica) O Soacutecrates montaigniano eacute aquele que submete agrave criacutetica o pretenso conhecimento de si (o suposto saber dos filoacutesofos dogmaacuteticos acerca da nossa essecircncia) que exibe nossa ignoracircncia a respeito de noacutes mesmos que reduz enfim as doutrinas acerca da natureza humana ao niacutevel de opiniotildees e restitui agrave experiecircncia (ao exame dos fenocircmenos) o lugar privilegiado de fonte do conhecimento de si

Os filoacutesofos com grande razatildeo remetem-nos agraves regras da Natureza mas elas natildeo tecircm o que fazer com tatildeo sublime conhecimento eles as falseiam e nos apresentam seu rosto pintado com cores que o elevam demais e sofisticam demais [] Quem rememora o excesso de sua coacutelera passada e ateacute onde essa febre o arrastou vecirc a feiura desta paixatildeo melhor do que em Aristoacuteteles e concebe por ela um oacutedio mais justo [] A vida de Ceacutesar natildeo fornece mais exemplo do que a nossa para noacutes tanto imperatriz como popular eacute sempre uma vida agrave qual todos os acidentes humanos concernem Escutemo-la somente noacutes nos dizemos tudo aquilo de que temos principalmente necessidade [] A advertecircncia para cada um se conhecer deve ser de um importante efeito visto que este Deus de ciecircncia e de luz a fez plantar no frontatildeo do seu templo como compreendendo tudo o que ele tinha para nos aconselhar Platatildeo tambeacutem diz que a prudecircncia natildeo eacute outra coisa que a execuccedilatildeo desta prescriccedilatildeo e Soacutecrates prova-o detalhadamente em Xenofonte (III 13 p 435-437)43

43 ldquoLes philosophes avec grand raison nous renvoyent aux regles de Nature mais elles nont que faire de si sublime cognoissance ils les falsifient et nous presentent son visage peint trop haut en couleur et trop sophistiqueacute (hellip) Qui remet en sa memoire lexcez de sa cholere passeacutee et jusques ougrave cette fieacutevre lemporta voit la laideur de cette

200 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir entatildeo da experiecircncia de si (e natildeo mais

de doutrinas dogmaacuteticas acerca da natureza humana) o velho programa da ordenaccedilatildeo de si pode ser recolocado nos seus devidos termos Isto porque a ausculta de si eacute a experiecircncia de uma condiccedilatildeo mista de uma vivecircncia simultaneamente aniacutemica e corpoacuterea espiritual e carnal

Os prazeres puros da imaginaccedilatildeo assim como os desprazeres dizem alguns satildeo os maiores [] Deles vejo todos os dias exemplos insignes e talvez desejaacuteveis Mas eu de condiccedilatildeo mista grosseiro natildeo posso me apegar tatildeo inteiramente a esse uacutenico objeto [] Aristipo defendia apenas o corpo como se natildeo tiveacutessemos alma Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo Ambos viciosamente (III 13 p 486-487)44

Daiacute o novo programa ordenar-se a si mesmo no

niacutevel da conduta eacute estabelecer o auxiacutelio reciacuteproco entre o corpo e a alma

para que desmembramos em divoacutercio um edifiacutecio tecido com tatildeo estreita e fraternal correspondecircncia Ao

passion mieux que dans Aristote et en conccediloit une haine plus juste (hellip) La vie de Caesar na poinct plus dexemple que la nostre pour nous et emperiegravere et populaire cest tousjours une vie que tous accidents humains regardent Escoutons y seulement nous nous disons tout ce de quoy nous avons principalement besoing (hellip) Ladvertissement agrave chacun de se cognoistre doibt estre dun important effect puisque ce Dieu de science et de lumiere le fit planter au front de son temple comme comprenant tout ce quil avoit agrave nous conseiller Platon dict aussi que prudence nest autre chose que lexecution de cette ordonnance et Socrates le verifie par le menu en Xenophonrdquo (III 13 1073-1075) 44 ldquoLes plaisirs purs de limagination ainsi que les desplaisirs disent aucuns sont les plus grands (hellip) Jen voy tous les jours des exemples insignes et agrave ladventure desirables Mais moy dune condition mixte grossier ne puis mordre si agrave faict agrave ce seul object () Aristippus ne defendoit que le corps comme si nous navions pas dame Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps Tous deux vicieusementrdquo (III 13 p 1107)

Viver como Soacutecrates 201

contraacuterio renovemo-lo por deveres muacutetuos Que o espiacuterito desperte e vivifique o peso do corpo o corpo detenha a leveza do espiacuterito e a fixe (III 13 p 498)45 Deste novo ldquoprogramardquo formulado por Montaigne

com base nos exemplos de Soacutecrates e do ruacutestico haacute de emergir uma conduta e uma vida ordenadas Agrave ordem ou agrave coerecircncia da conduta e da vida do saacutebio idealizado pelo estoicismo efeito da repeticcedilatildeo da impassibilidade (sempre conveniente sempre adequada) Montaigne opotildee uma nova figura da ordem ou da coerecircncia aquela muito mais humana que eacute efeito da reiteraccedilatildeo do desvio da consciecircncia dos objetos que despertam as paixotildees (desvio sempre conveniente sempre ldquoagrave proposrdquo) Enfim Montaigne opotildee agrave constantia estoica uma conduta que parece inconstante mas que escapa da criacutetica da inconstacircncia na medida em que eacute constituiacuteda por desvios conscientes voluntaacuterios (uma ldquomaneirardquo que natildeo tem nada de passiva ao contraacuterio eacute uma estrateacutegia para escapar da servidatildeo agraves paixotildees)

Soacutecrates natildeo diz Natildeo vos rendais aos atrativos da beleza sustentai vossa posiccedilatildeo diante dela esforccedilai-vos ao contraacuterio Fugi diz ele correi para longe de sua visatildeo e de seu encontro como de um veneno poderoso que se atira e atinge de longe (III 10 p 348)46

Finalmente chega-se a uma conduta

perfeitamente laquoordenadaraquo a uma vida unificada e uniforme totalmente coerente (laquoEle [Soacutecrates] foi

45 ldquoA quoy faire desmembrons nous en divorce un bastiment tissu dune si joincte et fraternelle correspondance Au rebours renouons le par mutuels offices Que lesprit esveille et vivifie la pesanteur du corps le corps arreste la legereteacute de lesprit et la fixerdquo (III 13 p 1114) 46 ldquoSocrates ne dit point Ne vous rendez pas aux attraicts de la beauteacute soustenez la efforcez vous au contraire Fuyez la faict-il courez hors de sa veue et de son rencontre comme dune poison puissante qui seslance et frappe de loingrdquo (III 10 1015-1016)

202 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tambeacutem sempre uno e semelhanteraquo - III 12 p 380)47 a vida do homem ordinaacuterio de bem sucessatildeo de desvios Ora natildeo eacute exatamente uma perfeita harmonia que encontramos na imagem acabada da tranquilidade da alma que Montaigne funda sobre este modelo de conduta

Ela [minha alma] mede o quanto deve a Deus por estar em paz com sua consciecircncia e com outras paixotildees intestinas por ter o corpo em sua disposiccedilatildeo natural fruindo ordenada e competentemente as funccedilotildees moles e aduladoras com as quais lhe apraz compensar com sua graccedila as dores com que sua justiccedila por sua vez nos golpeia o quanto lhe vale estar alojada em tal ponto que para onde quer que ela lance o olhar o ceacuteu estaacute calmo ao seu redor nenhum desejo nenhum temor ou duacutevida que lhe perturbe o ar nenhuma dificuldade passada presente futura por cima da qual sua imaginaccedilatildeo natildeo passe sem ofensa (III 13 p 495)48

REFEREcircNCIAS FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduit par Robert Rovini Paris Gallimard 1992 (coll ldquoTelrdquo)

LONG Anthony La Filosofia Heleniacutestica - Estoicos Epicuacutereos Esceacutepticos trad P Jordan de Urries Madrid Alianza Editorial 1977

47 laquoIl [Socrate] fut aussi tousjours un et pareilraquo (III 12 p 1037) 48 ldquoElle [mon ame] mesure combien cest quelle doibt agrave Dieu destre en repos de sa conscience et dautres passions intestines davoir le corps en sa disposition naturelle jouyssant ordonneacuteement et competemmant des functions molles et flateuses par lesquelles il luy plait compenser de sa grace les douleurs de quoy sa justice nous bat agrave son tour combien luy vaut destre logeacutee en tel point que ougrave quelle jette sa veue le ciel est calme autour delle nul desir nulle crainte ou doubte qui luy trouble lair aucune difficulteacute passeacutee presente future par dessus laquelle son imagination ne passe sans offencerdquo (III 13 p 1112)

Viver como Soacutecrates 203

MONTAIGNE Michel de Les Essais Eacutedition de Pierre Villey reeacutediteacutee par V L Saulnier Col Quadrige Paris PUF 1999

_____ Os Ensaios (traduccedilatildeo de Rosemary Costek) Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 3 vols

PLATAtildeO Gorgias Texte eacutetabli et traduit par Alfred Croiset avec la collaboration de Louis Bodin Collection des universiteacutes de France Paris Les Belles Lettres 2003

SENECA De constantia sapientis in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ De tranquilitate animi in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ Lettres a Lucilius Texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot Eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne Paris Robert Laffont 1993

204 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VIII =

NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE

Stefano Busellato

1 Desde o seu primeiriacutessimo escrito juvenil de

caraacuteter filosoacutefico Fatum und Geschichte de 1862 na perspectiva da precoce negaccedilatildeo do ldquointeiro cristianismordquo Nietzsche refletindo sobre si mesmo escreve ldquoEu procurei negar tudo ai de mim destruir eacute faacutecil mas construirrdquo

Tal frase ressalta-se como o eneacutesimo exemplo da extraordinaacuteria clarividecircncia que caracteriza Nietzsche jaacute que tal frase pode ser considerada uma suacutemula do inteiro quadro do seu pensamento

Todos aqueles que passaram alguns anos estudando as paacuteginas nietzschianas com certeza encontraram e tiveram que resolver uma peculiaridade que eacute tambeacutem um dos principais problemas exegeacuteticos diante do qual o inteacuterprete precisa elaborar uma resposta quer dizer uma evidente desproporccedilatildeo entre a pars destruens e a pars construens Se de fato os objetivos polecircmicos os alvos criacuteticos as teorias que Nietzsche confuta e rejeita satildeo extremamente claros e precisos eacute pelo contraacuterio muito mais difiacutecil individuar com tanta exatidatildeo as propostas positivas e as alternativas que ele quer propor

Graduado em Filosofia pela Universitagrave di Pisa (2001) doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave Degli Studi di Macerata (2009) poacutes-doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave di Siena (2011-2013) pela USP (2014-2016) e pela UNIOESTE (2016) Publicou entre outros os livros Nietzsche e Lo Scetticismo (2012) e Schopenhauer lettore di Spinoza (2015)

206 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Esse desniacutevel entre o contradizer e o propor

adquire em Nietzsche uma forma particular a da autocontradiccedilatildeo ndash e em uma medida tatildeo forte ao ponto de superar a normalidade das contradiccedilotildees presentes em outros pensadores (e eacute isso que leva a uma espeacutecie de licenccedila exegeacutetica na leitura do pensamento de Nietzsche que recebeu as mais variadas e contraacuterias interpretaccedilotildees como nenhum outro pensador na histoacuteria da filosofia)

Diante dessa peculiaridade da obra nietzschiana existem duas principais estrateacutegias para tentar explicaacute-la 1) negar que Nietzsche eacute um filoacutesofo stricto sensu e 2) ver exatamente na potecircncia da sua parte negativa a verdadeira (e praticamente uacutenica) essecircncia do pensamento nietzschiano De acordo com tal perspectiva o seu precioso valor emancipatoacuterio consistiria na capacidade de abater as verdades consideradas como tais e isso constituiria jaacute um resultado digno de reconhecimento e gratidatildeo da nossa parte Exigir que ele nos mostre tambeacutem uma capacidade construtiva seria dessa forma uma demonstraccedilatildeo de insatisfaccedilatildeo com o seu pensamento que seria injusta

1) Agrave primeira dessas duas opccedilotildees pertencem todos os leitores que veem em Nietzsche mais um artista do que um filoacutesofo estrito E natildeo devemos esquecer que a recepccedilatildeo criacutetica de Nietzsche antes da I Guerra Mundial assim como uma parte importante daquela que chega ateacute o limiar do segundo conflito mundial nasceu e cresceu mais graccedilas a artistas do que agrave filosofia institucional (por exemplo Mahler R Strauss DrsquoAnnunzio Gorge Hesse Thomas Mann Hofmannsthal Rilke Musil Benn Zweig etc) Mas tambeacutem pertencem a essa linha interpretativa aqueles que por mais que vejam Nietzsche como um filoacutesofo e natildeo tanto como um artista reconduzem de qualquer forma a razatildeo da sua escassez propositiva e da sua natureza contraditoacuteria a uma carecircncia teacutecnico-filosoacutefica

Nietzsche e o ceticismo 207

Entre alguns desses inteacuterpretes podemos citar Ferdinand Toumlnnies que define o pensamento de Nietzsche uma Paradoxsophie ldquoum voacutertice de pensamentos de exclamaccedilotildees e declamaccedilotildees de acessos de ira e afirmaccedilotildees contraditoacuterias em meio a muitos relacircmpagos que iluminam e ofuscamrdquo1

[] vocecircs podem sentir prazer lendo os escritos de Nietzsche [] podem aprender algumas coisas neles mas apenas se vocecircs decidiram aprender com outros as coisas mais fundamentais sobre os mesmos assuntos2

Ou ateacute mesmo inteacuterpretes de peso como Karl

Jaspers segundo o qual as contradiccedilotildees de Nietzsche nascem de uma ldquoinadequada preparaccedilatildeo filosoacutefica no manejo dos grandes pensadoresrdquo de uma ldquofalta de formaccedilatildeo profissionalrdquo que constitui tambeacutem a sua extraordinaacuteria capacidade de se relacionar ldquocom um imenso impulsordquo com a verdade mas eacute tambeacutem o que explicaria a frequente recaiacuteda em antinomias das quais por puro amadorismo ldquoele natildeo tem consciecircnciardquo3

2) A segunda opccedilatildeo exegeacutetica aquela que vecirc no aspecto negativo na excepcional forccedila do seu radicalismo criacutetico a verdadeira essecircncia da filosofia nietzschiana que explicaria tanto a diferenccedila entre a pars destruens e a construens quanto a sua autocontradiccedilatildeo eacute aquela que hoje parece prevalecer e que conta entre seus seguidores com inteacuterpretes do mais alto niacutevel Ainda que com diferenccedilas oacutebvias eacute possiacutevel traccedilar uma linha

1 F Toumlnnies Der Nietzsches-Kults Eine Kritik [1897] Akademie-Verlag Berlin 1990 pp 99-104 trad it Il culto di Nietzsche Una critica E Donaggio [Org] Editori Riuniti Roma 1998 p 131 2 Ivi p 41 3 K Jaspers Nietzsche Einfuumlhrung in das Verstaumlndnis seines Philosophierens de Gruyter Berlin-New York 1974 trad it L Rustichelli [Org] Nietzsche Introduzione alla comprensione del suo filosofare Mursia Milano 1996 pp 376-377

208 Eacutetica e filosofia poliacutetica

de continuidade entre o ldquoprinciacutepio da possibilidaderdquo de Musil a ldquoSelbstuumlberwindungrdquo de Mann ldquoo infinito transformar-serdquo de Bertram E tambeacutem na Franccedila encontramos por exemplo Bataille que fala de ldquouma exigecircncia sem referecircnciasrdquo4 que daria vida ao filosofar nietzschiano e isso o leva a observar como

[] as doutrinas de Nietzsche possuem uma caracteriacutestica estranha isto eacute que natildeo eacute possiacutevel segui-las Elas nos potildeem de frente a iluminaccedilotildees imprecisas que geralmente produzem cegueira nenhuma estrada conduz agrave meta indicada5

Nietzsche criticaria ldquoem nome de um valor moacutevel

do qual natildeo pocircde evidentemente capturar a origem e a finalidaderdquo6 Ou entatildeo Deleuze segundo o qual

Nietzsche natildeo tenta codificar [] Escrevendo e pensando da proacutepria forma Nietzsche desenvolve uma obra de decodificaccedilatildeo [] de decodificaccedilatildeo uacutenica [] [que] quer estragar todos os coacutedigos7

E resume a filosofia nietzschiana com a foacutermula

marcadamente francesa ldquojamais rien de connu mais une grande destruction de reconnu pour une creacuteation drsquoinconnurdquo8 Um passo adiante e chegamos ao ldquomestre da grande duacutevidardquo de Ricoeur e na Itaacutelia a transformar Nietzsche em um dos fundadores do ldquopensamento fracordquo um pensamento que critica as verdades fortes estabelecidas e que exatamente por isso rejeita-se

4 G Bataille Sur Nietzsche Gallimard Paris 1973 trad it A Zanzotto Su Nietzsche SE Milano 1994 p 16p 69 5 Idem p 113 6 Idem p 125 7 G Deleuze Le penseacute nomade trad it in Id Nietzsche e la filosofia a cura di F Polidori Einaudi Torino 2002 p 312 8 Id Sur Nietzsche et lrsquoimage de la penseacutee ora in Id Lrsquoicircle deacuteserte et autres textes a cura di D Lapoujade Eacuted de Minuit Paris 2002 p

189

Nietzsche e o ceticismo 209

voluntariamente a oferecer alternativas agravequilo que ele mesmo rejeitou

Pessoalmente eu natildeo acredito que esses dois modelos interpretativos sejam capazes de compreender completamente a complexidade que a filosofia de Nietzsche entreteacutem com o elemento da verdade e da criacutetica agrave verdade A primeira ao resolver o problema mencionado acima escolhendo ver em Nietzsche um artista e natildeo um filoacutesofo ou um filoacutesofo ldquopela metaderdquo eacute negada por uma evidecircncia histoacuterica uma vez que o pensamento de Nietzsche entrou nolens volens com total reconhecimento na histoacuteria da filosofia Mas tambeacutem a segunda abordagem exegeacutetica vendo quase exaustivamente a essecircncia do pensamento nietzschiano na criacutetica agrave verdade e na sua pars destruens colide com a intenccedilatildeo explicitamente declarada por Nietzsche com grande insistecircncia de uma exigecircncia fortemente propositiva que o anima e o guia Nietzsche repete assim que concede grande espaccedilo agrave negaccedilatildeo exclusivamente enquanto ela eacute o passo propedecircutico a novas construccedilotildees (pensemos por exemplo no Versuch einer Umwertung aller Werte) e que ele natildeo quer se contentar com o lado niilista e criacutetico que eacute julgado pelo contraacuterio como sintoma de cansaccedilo e de deacutecadence Dito isso poreacutem eacute sempre verdade que o fulcro da prevalecircncia do momento de negaccedilatildeo agraves custas do momento de afirmaccedilatildeo assim como a forccedila com a qual Nietzsche realiza a proacutepria criacutetica radical agrave verdade que frequentemente o leva a criticar ateacute mesmo as proacuteprias ldquoverdadesrdquo continua sendo um problema exegeacutetico de importacircncia primordial

2 Um caminho no qual eacute possiacutevel encontrar elementos uacuteteis agrave questatildeo pode ser por isso enfrentar tal noacute conceitual realizando uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo que Nietzsche teve com a filosofia que mais do que nenhuma outra abraccedilou a contraposiccedilatildeo a toda

210 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma de dogmatismo e ao conceito de verdade ou seja o ceticismo

A relaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o ceticismo o que Nietzsche sabia da filosofia ceacutetica e como ele a considerou e como a utilizou Essas satildeo trecircs questotildees que os especialistas claramente deixaram de lado mas eacute somente atraveacutes de uma pesquisa especificamente direcionada nesse sentido que podem emergir dados de grande relevacircncia interpretativa que de outra forma permaneceriam subterracircneos

Se considerarmos a questatildeo apenas a niacutevel de Quellenforschung eacute possiacutevel descobrir que Nietzsche tinha um conhecimento extremamente refinado e detalhado do ceticismo a tal ponto que eacute possiacutevel afirmar que nenhum outro filoacutesofo do seu calibre teve uma competecircncia tatildeo especializada sobre o assunto como a sua Tal caracteriacutestica lhe deriva do seu iniacutecio como filoacutelogo claacutessico e em particular dos seus estudos sobre Dioacutegenes Laeacutercio mas natildeo soacute desses estudos uma vez que a bagagem cultural de Nietzsche sobre o ceticismo antigo vai muito aleacutem daquilo que concerne a simples obrigaccedilatildeo acadecircmica

Eacute possiacutevel de fato demonstrar com exatidatildeo que ele teve um conhecimento aprofundado do inteiro panorama das principais figuras da histoacuteria do ceticismo grego (Pirro de Eacutelis Brisatildeo de Heracleacuteia Tiacutemon de Fliunte principal aluno de Pirro que ele demonstra conhecer bem Hecateu de Mileto Aristipo de Cirene Laacutecides de Cirene Arcesilau Fiacuteon de Alexandria Antiacuteoco Carneacuteades Enesidemo) e tambeacutem que ele estudou e utilizou os mais importantes textos antigos sobre o pensamento ceacutetico aleacutem de Dioacutegenes Laeacutercio e antes mesmo de se confrontar com a sua obra Nietzsche se ocupou do leacutexico bizantino Suida teve uma evidente familiaridade com os escritos de Sexto Empiacuterico citados e usados em muitas obras encontramos competecircncias especiacuteficas e diversas citaccedilotildees de fontes como Aacuteulio

Nietzsche e o ceticismo 211

Geacutelio Euseacutebio de Cesaacuterea ou Favorino de Arelate ele conheceu muito bem a Academica de Ciacutecero Em outras palavras Nietzsche possuiacutea uma preparaccedilatildeo profunda tanto no acircmbito historiograacutefico quanto teoreacutetico do fenocircmeno do ceticismo grego

O uacuteltimo texto citado enfim os Academica de Ciacutecero estaacute particularmente envolvido na questatildeo Eacute um dos documentos mais preciosos que chegaram ateacute noacutes sobre a histoacuteria do ceticismo antigo jaacute que o contexto da uacuteltima grande crise no centro da Academia platocircnica depois do embate entre Filon de Larissa e Antiacuteoco de Ascalatildeo sobre a natureza dogmaacutetica ou antidogmaacutetica do conceito de verdade na tradiccedilatildeo acadecircmica ndash que deu margem a uma longa anaacutelise sobre o inteiro passado do ceticismo antigo O estudo dos Academica mostra um interesse especial de Nietzsche pelo assunto jaacute que quando ele assumiu a caacutetedra de Basileia ele ministrou dois semestres consecutivos sobre a obra ndash as aulas do veratildeo de 1870 e do inverno de 1871 e 1872 E natildeo por acaso exatamente no Natal de 1870 Cosima lhe deu de presente os Essais de Montaigne que se tornaram outra das suas principais fontes sobre o ceticismo enriquecendo dessa forma tambeacutem no vieacutes da eacutepoca moderna o seu conhecimento sobre a filosofia ceacutetica Tudo isso deixa entrever como ateacute mesmo na casa de Wagner deveria ser conhecido o interesse especiacutefico de Nietzsche pelo tema

Portanto o primeiro dado que encontramos eacute que todas as vezes em que Nietzsche cita o ceticismo precisamos considerar que ele natildeo o usa como instrumento retoacuterico ou com um sentido geneacuterico mas sim porque deteacutem um conhecimento real e profundo sobre a mateacuteria E em particular eacute necessaacuterio considerar como durante a crucial passagem do periacuteodo filoloacutegico agravequele do verdadeiro iniacutecio da sua filosofia Nietzsche carregue consigo essa competecircncia particular no acircmbito do pensamento ceacutetico

212 Eacutetica e filosofia poliacutetica

3 Natildeo eacute surpreendente perceber portanto que o

primeiro periacuteodo da sua filosofia seja um dos arcos temporais da sua obra em que o elemento do ceticismo aparece com maior evidecircncia E isso natildeo apenas no que concerne agraves citaccedilotildees ou agrave utilizaccedilatildeo das proacuteprias leituras filoloacutegicas Em toda a primeira parte da sua produccedilatildeo eacute evidente ndash do ponto de vista gnosioloacutegico ndash uma atmosfera de grande pessimismo que encobre os principais personagens da filosofia que ele frequenta por exemplo o Demoacutecrito anti-teleoloacutegico no qual ldquoencontram-se os primoacuterdios do Pirronismo [] [e que] deriva da sua tese sobre o conhecimentordquo9 e que pode ser resumida na interpretaccedilatildeo ceacutetica de origem ciceroniana ldquoo seu princiacutepio fundamental continua sendo ldquoa coisa em si eacute incognosciacutevelrdquo10 ou entatildeo o Heraacuteclito lido sobretudo em chave anti-ontoloacutegica e relativista o filoacutesofo que nega a estabilidade do ser a favor de uma transformaccedilatildeo sempre em ato e que por isso natildeo pode ser reclusa em categorias loacutegicas e epistecircmicas Ou ainda Kant que indiretamente permanece sendo uma fonte decisiva para a teoria do conhecimento da primeira fase de Nietzsche Um Kant lido atraveacutes das interpretaccedilotildees contrastantes de Lange de um lado e de Schopenhauer do outro que acaba se tornando nas matildeos de Nietzsche o siacutembolo do ldquoconhecimento traacutegicordquo que representa a tentativa natildeo realizada de superar o ceticismo de Hume uma falha que inevitavelmente arrasta os limites do conhecimento contra o seu desejo ao grau mais elevado eacute o Kant lido em consonacircncia com o ldquosuspiro de Kleist sobre a incognoscibilidade finalrdquo como emerge em uma carta muito estimada por Nietzsche em que Kleist resume ldquoo efeito Kantrdquo ldquonoacutes natildeo podemos

9 OFN I 2 p 200 Todas as referecircncias das obras de Nietzsche satildeo de Opere Friedrich Nietzsche (OFN) Colli-Montinari (org) Milano Adelphi 1964ss 10 Idem p 185

Nietzsche e o ceticismo 213

decidir se o que chamamos verdade eacute realmente a verdade ou se apenas parece secirc-lordquo11

Mas esse pessimismo gnosioloacutegico natildeo nos autoriza poreacutem a simplificar a questatildeo convertendo o ceticismo antigo conhecido atraveacutes dos estudos filoloacutegicos como uma simples fonte no radicalismo criacutetico que a filosofia de Nietzsche em seguida iraacute desenvolver e na qual em teoria iria se exaurir Ao contraacuterio observando o papel que o ceticismo teve nessa primeira fase eacute possiacutevel mostrar como as coisas se colocam de outra forma Nietzsche na realidade permitiu que esse pessimismo gnosioloacutegico crescesse em todas as direccedilotildees porque examinando bem ele possuiu (ou acreditou possuir) um fator positivo que poderia ser o seu antiacutedoto a filosofia de Schopenhauer

E tambeacutem aqui natildeo a teoria do conhecimento schopenhauriano ou a metafiacutesica centrada no Wille este tambeacutem dissolvido desde o iniacutecio em uma visatildeo ceacutetica de ldquodesconfianccedila em relaccedilatildeo a qualquer sistema desde o princiacutepiordquo12 que julga a Vontade uma ldquopalavra de cunho grosseirordquo13 uma tentativa de superar o impasse post-kantiano mas ldquoa tentativa falhourdquo14 ldquoSchopenhauer queria encontrar o x de uma equaccedilatildeo e pelo seu caacutelculo resulta que a questatildeo eacute igual a x ou seja que ele natildeo o encontrourdquo15

O Schopenhauer afirmativo que o primeiro Nietzsche segura com forccedila nas matildeos como uma proacutepria certeza eacute na verdade aquele do III libro da Welt ldquoo mundo da arterdquo isto eacute o Schopenhauer wagneriano Esse Schopenhauer (em muitos aspectos anti-schopenhauriano) nos permite compreender porque apesar do proacuteprio pessimismo gnosio-epistecircmico

11 H von Kleist a Wilhemine e Ulrike 22-23 marccedilo de 1801 12 FP [30] 10 veratildeo de 1878 OFN IV 3II p 300 13 OFN I 2 pp 220-221 14 Idem p 220 15 Idem p 228

214 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche possa afirmar ldquoavaliar o que pode ser Schopenhauer para noacutes depois de Kant o guia [] que conduziu fora da caverna do abatimento ceacuteticordquo16 Ou o significado de anotaccedilotildees como ldquoA posiccedilatildeo transformada da filosofia depois de Kant A impossibilidade da metafiacutesica Auto-eviraccedilatildeo Submissatildeo traacutegica o fim da filosofia Apenas a arte pode nos salvarrdquo17 ldquoNatildeo haacute sequer uma causalidade da qual noacutes conheccedilamos a verdadeira essecircncia Ceticismo absoluto a necessidade da arte e da ilusatildeordquo18

No renascimento da trageacutedia a partir do drama musical wagneriano Nietzsche viu a concretizaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo em que verdade e beleza atingem o uacutenico ponto de equiliacutebrio possiacutevel uma verdade que uma vez autocompreendida como impossibilidade epistecircmica transfigura-se em esteacutetica isto eacute na necessidade da ilusatildeo ou mais precisamente segundo a foacutermula de Nietzsche na necessidade da ldquobela ilusatildeordquo

Por isso aquilo que inicialmente podia parecer a aceitaccedilatildeo teoreacutetica dos resultados corrosivos do ceticismo enquanto resultados conclusivos revela-se como sendo na verdade apenas um passo funcional para fundar com maior solidez um terreno absolutamente afirmativo como aquele que oferecia ao Nietzsche da eacutepoca a esteacutetica wagneriana que tem como texto culminante a Geburt ldquoPrecisamos superar o ceticismo precisamos esquececirc-lo A nossa salvaccedilatildeo natildeo estaacute no conhecer mas no criarrdquo19

Apenas quando comeccedilou a definhar a convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo wagneriana depois do fim da convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo de Schopenhauer o radicalismo criacutetico de Nietzsche se viu sem margens sem

16 SE sect 3 17 FP 19 [319] veratildeo de 1872-1873 OFN III 3II p 102 18 FP 19 [121] veratildeo de 1872-1873 idem p 44 19 FP 19 [125] veratildeo de 1872-1873 idem p 45

Nietzsche e o ceticismo 215

direccedilatildeo nem objetivo Em torno de 1873 durante a tempestuosa gestaccedilatildeo de Wagner a Bayreuth antes mesmo da abertura do Festival Nietzsche atingiu dessa forma o ponto maacuteximo do ceticismo que podemos encontrar nos seus escritos O documento que nos resta como eloquente testemunho desse periacuteodo eacute o breve texto Uumlber Wahrheit und Luumlge im auszligermoralischen Sinne

Eacute notoacuterio que nesse escrito encontramos a definiccedilatildeo da verdade como metaacutefora da qual perdeu-se a memoacuteria da sua natureza metafoacuterica a verdade torna-se assim mera ilusatildeo natildeo mais bela ilusatildeo

E atraveacutes do instrumento da metaacutefora o conceito de verdade eacute rejeitado em todos os pontos de vista que o constituem loacutegico antropoloacutegico e histoacuterico ldquoA verdade eacute incognosciacutevel Tudo aquilo que eacute incognosciacutevel eacute uma ilusatildeordquo20

Mas eacute preciso prestar atenccedilatildeo porque tal coincidecircncia entre o ceticismo e o resultado filosoacutefico do percurso de Nietzsche natildeo eacute vivido por ele com o regozijo que esperariacuteamos de algueacutem que tem como objetivo teoacuterico destruir as certezas porque ao contraacuterio ele declara em uma anotaccedilatildeo agrave eacutepoca ldquoo filoacutesofo traacutegico [] natildeo eacute ceacutetico [] o ceticismo de fato natildeo pode ser um fim em si mesmordquo21 E podemos encontrar um testemunho de como um tal resultado fosse contraacuterio agraves intenccedilotildees de Nietzsche em um fato geralmente negligenciado ndash quer dizer que ele decidiu natildeo publicar esse escrito

Eu estava em relaccedilatildeo agrave minha pessoa jaacute no caminho do ceticismo e da dissoluccedilatildeo moralista quer dizer empenhado tanto na criacutetica quanto no aprofundamento de todo pessimismo preacute-existente ndash e jaacute natildeo acreditava ldquomais em nadardquo como diz o povo [] e justo naquele periacuteodo nasceu um pequeno ensaio em seguida

20 FP 29 [20] veratildeo-outono de1873 idem p 233 21 FP 19 [35] veratildeo de 1872 ndash comeccedilo de 73 ivi p 13

216 Eacutetica e filosofia poliacutetica

mantido em segredo ldquoSobre a verdade e a mentira em sentido extra-moralrdquo22

Da anaacutelise da primeira fase de Nietzsche emerge

portanto um resultado importante ele deu grande espaccedilo aos instrumentos criacuteticos do ceticismo ateacute o momento em que teve em matildeos uma alternativa a ele e exatamente para fundamentar melhor essa alternativa Quando poreacutem ela falhou e ele se encontrou unicamente no ceticismo acabou por recusaacute-lo como conclusatildeo e comeccedilou a trabalhar para desenhar um novo plano afirmativo em relaccedilatildeo agravequele schopenhauriano e wagneriano julgado como natildeo mais sustentaacutevel Eacute o programa que comeccedila com Humano demasiado humano e que iraacute mantecirc-lo ocupado ateacute a metade dos anos oitenta

4 No periacuteodo central o assim chamado periacuteodo iluminista os objetivos polecircmicos tornam-se a cada passo sempre mais precisos e direcionados dois dentre todos satildeo a metafiacutesica e a moral Nesse arco cronoloacutegico a presenccedila do ceticismo perde visibilidade faz-se mais subterracircnea e pode ser encontrada com maior facilidade nos fragmentos poacutestumos do que nas obras impressas Os exoacuterdios satildeo marcados por uma certa cautela inicial que deriva da desilusatildeo das esperanccedilas nutridas no seu primeiro percurso filosoacutefico ldquonatildeo queremos construir prematuramente natildeo sabemos nem sequer se poderemos construir algo algum dia e se a melhor alternativa natildeo possa ser talvez natildeo construirrdquo23 Mas o que permanece constante eacute a consideraccedilatildeo do ceticismo unicamente como instrumento teoreacutetico de demoliccedilatildeo finalizado a uma nova construccedilatildeo

22 FP 6 [4] veratildeo de 1886 ndash primavera de 1887 OFN VIII 1 p 220 A escolha de natildeo publicar Sobre a verdade e a mentira tambeacutem eacute lembrada em uma anotaccedilatildeo de 1884 FP 26 [372] veratildeo-outono de 1884 OFN VII 2 p 226 23 FP 5 [30] primavera-veratildeo de 1875 OFN IV1 p 117

Nietzsche e o ceticismo 217

O ceticismo eacute ainda apreciado pela capacidade de limpar o caminho das ldquolsquoverdades absolutasrsquo [] instrumento de nivelamentordquo Isso eacute particularmente niacutetido por exemplo no que concerne agrave moral Em relaccedilatildeo a ela o ceticismo ainda eacute saudado como liberador ldquoA eacutepoca do grande ceticismo chegou Natildeo haacute nada de lsquomoral em si mesmorsquordquo24 Ou entatildeo no tatildeo celebrado espiacuterito cientifico ao qual Nietzsche se aproximaria desde Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia obra que tambeacutem compartilha a utilizaccedilatildeo programaacutetica e natildeo autocircnoma do ceticismo Daqui a necessidade de ldquoevocar o espiacuterito da ciecircncia que torna em geral muito mais frios e ceacuteticos e em particular modo resfria a ardente feacute em verdades uacuteltimas e definitivasrdquo25

Natildeo prestar atenccedilatildeo no nexo que Nietzsche instituiu entre o ceticismo no que concerne agraves verdades e uma permanente necessidade construtiva a primeira subordinada agrave segunda reduzir Nietzsche transformando-o exclusivamente no criacutetico radical ao qual importa exclusivamente a rejeiccedilatildeo natildeo nos permite perceber o nascimento de uma criacutetica ao ceticismo que nos anos sucessivos se revelaraacute como decisiva o ceticismo entendido como fruto da exaustatildeo niilista referindo-se ao qual Nietzsche fala ateacute mesmo de ldquooacutedio [contra] qualquer forma de fraqueza e de ceticismordquo26 e tampouco nos permite reconhecer a correta relevacircncia das poucas mas claras e inequiacutevocas indicaccedilotildees que ele deixou nas obras publicadas

Eacute significativa a conclusatildeo do diaacutelogo do aforisma 477 de Aurora intitulado Von der Skepsis erloumlst ldquo ndash B Vocecirc mesmo deixou de ser ceacutetico Vocecirc de fato nega ndash A E assim eu aprendi novamente a dizer simrdquo27 Ou entatildeo o aforisma 51 de A Gaia ciecircncia ldquoWahrheitssinnrdquo

24 FP 7 [231] final de 1880 OFN V 1 p 563 25 MA I sect 244 26 Nietzsche a Heinrich Romundt 15 de abril de 1876 E III p 141 27 M sect 477

218 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquoeu louvo todo ceticismo ao qual eu posso dizer lsquoVamos tentarrsquo E natildeo quero saber mais nada de todas as coisas e de todos os problemas que natildeo permitem seu experimentordquo28 No material poacutestumo da eacutepoca tal subordinaccedilatildeo do ceticismo agrave necessidade de uma pars construens ocupa numerosas anotaccedilotildees

Eu natildeo preciso acreditar em nada As coisas satildeo incognosciacuteveis [] O desespero eliminado a partir do ceticismo Eu conquistei o direito de criar29

Que se quebre tudo aquilo que pode se quebrar pelas nossas verdades Existem ainda muitos mundos que devem ser construiacutedos30

Admitido que algueacutem tenha uma forte vontade proacutepria uma filosofia ceacutetica eacute a melhor alternativa para colocar em ato a sua vontade da melhor forma possiacutevel31

Aleacutem disso apenas se seguirmos o efetivo papel

do ceticismo no periacuteodo central podemos entatildeo compreender o que acontece no uacuteltimo periacuteodo da obra nietzschiana em que o elemento do ceticismo volta a ocupar novamente uma posiccedilatildeo central exatamente como nos primeiros anos Um retorno que agrave primeira vista poderia parecer surpreendente De Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia assistimos de fato a um crescendo de certeza de assertividade que atinge o seu aacutepice com o Zaratustra O proacuteprio Zaratustra eacute o anunciador das duas grandes afirmaccedilotildees do eterno retorno e do Uumlbermensch

Mas inesperadamente em uma paacutegina do Anti-Cristo encontramos a seguinte frase

28 FW sect 51 29 FP 6 [2] inverno de 1882-83 OFN VII 1I p 220 30 FP 11 [16] junho-julho de 1883 OFN VII 1II p 39 31 FP 15 [50] veratildeo-outono de 1883 VII 1II p 153

Nietzsche e o ceticismo 219

Natildeo nos deixemos induzir ao erro os grandes espiacuteritos satildeo ceacuteticos Zaratustra eacute um ceacutetico Um espiacuterito que almeja algo de grandioso e que quer tambeacutem os meios para obtecirc-lo eacute necessariamente um ceacutetico32

Terminado o Zaratustra parecia ter chegado o ldquoperiacuteodo da minha grande colheitardquo isto eacute noacutes esperariacuteamos um resumo dos resultados alcanccedilados e que Nietzsche pudesse continuar sua trajetoacuteria escrevendo uma accedilatildeo de reforccedilo e de aprofundamento do que conquistara mas ao contraacuterio assistimos a um retorno a temas e a problemas do passado muitos dos quais satildeo inerentes a Humano demasiado humano e ateacute mesmo a O nascimento da trageacutedia O ceticismo pertence a esses temas que se reapresentam sob as faacutecies que pareciam ter sido deixadas para traacutes

5 Nesse desdobramento dois elementos satildeo decisivos em geral o peso de uma circunstacircncia que a criacutetica ainda natildeo reconheceu como fundamental no percurso nietzschiano Nietzsche devido aos contrastes com seu editor Schmeitzner foi obrigado a retomar todos os escritos precedentes fato que o levou entre o veratildeo de 1885 ao outono de 1886 a escrever novos prefaacutecios para o primeiro e para o segundo volume de Humano demasiado humano para Aurora e A Gaia ciecircncia acrescentando a essa uacuteltima uma quinta parte e a escrever o Tentativo de auto-criacutetica para O nascimento da trageacutedia

No que concerne por sua vez ao especiacutefico retorno em primeiro plano do elemento ceacutetico acrescenta-se a isso o papel exercido por uma fonte precisa o estudo da obra Les sceptiques grecs de Victor Brochard (1887) que Nietzsche leu poucos meses depois da sua publicaccedilatildeo (ele comenta o fato em Ecce Homo33) estimulado inicialmente pelo fato de que Brochard citava os seus escritos da juventude Dessa leitura possuiacutemos

32 AC sect 54 33 EH ldquoPorque sou tatildeo esclarecidordquo sect 3

220 Eacutetica e filosofia poliacutetica

muitas anotaccedilotildees que se concentram de forma particular na figura do pai do ceticismo antigo Pirro de Eacutelis

Nesta sede natildeo podemos realizar uma anaacutelise pontual dessas anotaccedilotildees mas para exemplificar a sua relevacircncia note-se a constante ligaccedilatildeo que Nietzsche institui entre o fenocircmeno de Pirro e dois filosofemas absolutamente centrais na uacuteltima fase da sua produccedilatildeo o conceito de deacutecadence e sobretudo o de niilismo Para Nietzsche o ceticismo antigo foi o resultado de uma especiacutefica eacutepoca de deacutecadence que subseguiu agrave morte de Alexandre em que a verdade se viu desmembrada nas disputas entre as filosofias helecircnicas ldquoA filosofia antiga de Soacutecrates em diante tem as estigmas da deacutecadence moralismo e felicidade Veacutertice Pirrordquo34

Pirro e o ceticismo fazem parte portanto da decadecircncia mas ao mesmo tempo satildeo tambeacutem exceccedilotildees dela frutos da deacutecadence mas tambeacutem oposiccedilatildeo a ela

O saacutebio cansaccedilo Pirro [] Um budista para a Greacutecia que cresceu no tumulto das escolas ele chegou tarde cansado protesto do cansado contra o zelo dos dialeacuteticos o natildeo acreditar de quem estaacute cansado na importacircncia das coisas35

Os verdadeiros filoacutesofos gregos satildeo aqueles que vecircm antes de Soacutecrates com Soacutecrates algo muda [] Em seguida eu vejo uma uacutenica figura original um retardataacuterio mas necessariamente o uacuteltimo o niilista Pirro ele aguccedilou seu instinto contra tudo aquilo que estava em voga os socraacuteticos Platatildeo36

A insistecircncia com a qual Nietzsche diz que Pirro eacute

um niilista nos permite formular a seguinte hipoacutetese que possui por sua vez algumas consequecircncias isto eacute que o

34 FP 14 [87] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 55 35 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 36 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

Nietzsche e o ceticismo 221

ceticismo pode ser uma fonte peculiar da conceitualizaccedilatildeo nietzschiana do niilismo Sabemos que esse termo comeccedila a ser utilizado com insistecircncia a partir de 1887 e ainda mais no decorrer de 1888 contemporaneamente isto eacute ao retorno em primeiro plano do ceticismo Aleacutem disso se o niilismo entrou no vocabulaacuterio nietzschiano tardiamente e principalmente graccedilas a Bourget vimos tambeacutem que o ceticismo pelo contraacuterio pertence agrave bagagem filosoacutefica de Nietzsche desde os tempos dos seus estudos de filologia

Mas satildeo tambeacutem caracterizaccedilotildees semelhantes que sustentam essa hipoacutetese como ldquoO ceticismo eacute uma consequecircncia da deacutecadence [] O niilismo natildeo eacute a causa mas apenas a consequecircncia loacutegica da deacutecadencerdquo37 como o ceticismo tambeacutem o ldquoperfeito niilismo eacute a consequecircncia necessaacuteria dos ideais ateacute agora cultivadosrdquo38 E ainda outro dado ainda mais importante para a presente anaacutelise tanto o ceticismo quanto o niilismo satildeo suscetiacuteveis contemporaneamente de avaliaccedilotildees especularmente opostas O niilismo pode ser o sinal de fato tanto de um exaurimento existencial como tambeacutem pelo contraacuterio pode ser sinal de forccedila e de sauacutede sinal isto eacute da capacidade conquistada de renunciar aos tradicionais dispositivos garantidores de sentido No primeiro caso Nietzsche fala de ldquoniilismo passivordquo dos ldquofracosrdquo ou ldquoincompletosrdquo no segundo caso ele fala de niilismo ldquoda completuderdquo ou ldquodos fortesrdquo

Sob a mesma duacuteplice perspectiva ele vecirc o ceticismo Existe um ceticismo do ldquocansaccedilordquo do ldquoexaurimentordquo e um ceticismo que nasce ao contraacuterio da ldquoforccedilardquo um

ceticismo viril [] uma espeacutecie diferente e mais vigorosa de ceticismo [] esse ceticismo despreza e natildeo menos por isso atrai a si mesmo escava e toma

37 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 38 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

222 Eacutetica e filosofia poliacutetica

posse natildeo acredita em nada mas natildeo se perde nisso oferece ao espiacuterito uma liberdade perigosa39

Mais uma vez o que marca a diferenccedila entre os

dois tipos de niilismo e de ceticismo eacute exatamente o fato de consideraacute-los como fins em si mesmos como resultados teoreacuteticos conclusivos ou entatildeo apenas como simples meios para construir uma positividade alternativa em relaccedilatildeo agravequilo que mediante o niilismo e o ceticismo eacute negado e para este segundo tipo Nietzsche deu o nome de ldquotentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo

6 Eacute possiacutevel discutir se essa tentativa foi bem-sucedida ou se ao contraacuterio faliu O proacuteprio Nietzsche na verdade deixa uma indicaccedilatildeo que natildeo deve ser subestimada quando em uma das suas uacuteltimas anotaccedilotildees escreveu ldquonaufragium feci bene navigavirdquo40 E sem duacutevidas eacute possiacutevel nos questionar sobre o que Nietzsche deixou depois da implacaacutevel campanha contra a verdade inaugurada em Para aleacutem do bem e do mal e que nos anos finais provocou um verdadeiro dominoacute ceacutetico em que caiacuteram um depois do outro os conceitos de metafiacutesica de loacutegica de causa e efeito de mateacuteria de sujeitoobjeto de sujeito conhecedor ndash isto eacute todos os criteacuterios tradicionais da verdade Ainda mais eacute liacutecito nos questionar se as alternativas agraves quais ele acena como a Vontade de potecircncia o binocircmio forccedilafraqueza a Rangordnung o Zuumlchtung satildeo realmente alternativas capazes de gerar frutos na igual medida daquilo que foi extirpado Montinari por exemplo responde negativamente

Se procurarmos as razotildees do falimento do conjunto da tentativa filosoacutefica de Nietzsche parece-nos que podemos apontar o seu principal e decisivo motivo Para Nietzsche a existecircncia da filosofia enquanto

39 JGB sect 209 40 FP 16 [44] primavera-veratildeo de 1888 OFN VIII 3

Nietzsche e o ceticismo 223

atividade teoreacutetica natildeo se sustentava mais de nenhuma forma pois a histoacuteria tomou o seu lugar como ele mesmo diz O sucessor do filoacutesofo deveria ter sido um legislador e a ambiccedilatildeo de Nietzsche o objetivo da sua ldquotransvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo eacute dar agrave humanidade uma lei nova A filosofia como histoacuteria eacute a pars destruens do pensamento do uacuteltimo Nietzsche (anaacutelise do niilismo europeu destruiccedilatildeo da foacutermula metafiacutesica ldquomundo verdadeirordquo anticristianismo) Na passagem agrave construccedilatildeo Nietzsche vecirc-se emaranhado na contradiccedilatildeo insoluacutevel entre o seu ceticismo extremo a sua luta contra qualquer convicccedilatildeo e a necessidade de ldquolegiferarrdquo41

Mas querendo ou natildeo concordar com uma

semelhante anaacutelise e devendo sempre de qualquer forma considerar que a filosofia de Nietzsche eacute uma filosofia incompleta ou seja interrompida subitamente durante uma frase de criaccedilatildeo plena ateacute os primeiros dias de janeiro de 1889 o ponto central que emerge da anaacutelise da presenccedila do ceticismo na filosofia de Nietzsche eacute que por mais que ele tenha aberto espaccedilo agrave negaccedilatildeo da duacutevida filosoacutefica e ao radicalismo criacutetico ele sempre rejeitou explicitamente e com grande forccedila conceder ao ceticismo a uacuteltima palavra Eacute a partir desse ponto de vista que devemos ler a sua tentativa tardia de frente ao alargamento do ceticismo que lhe resultou sempre mais incontrolaacutevel de recuperar aquilo que durante a juventude tinha sido o seu plano alternativo capaz de criar uma afirmaccedilatildeo que se tornou impossiacutevel ao contraacuterio por um caminho gnosioloacutegico isto eacute o plano esteacutetico a arte

Ainda que ele se encontrasse em um panorama diferente em relaccedilatildeo aos anos da juventude um panorama antirromacircntico e antiwagneriano o uacuteltimo Nietzsche voltaraacute a dizer como durante a juventude

41 M Montinari Che cosa ha detto Nietzsche [1975] (org) G

Campioni Adelphi Milano 1999 pp 150-151

224 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquouma justificaccedilatildeo do mundo eacute possiacutevel apenas esteticamenterdquo42 ldquosoacute a consciecircncia artiacutestica [concede] a liberdade do que eacute lsquoverdadeirorsquo e do que eacute lsquofalsorsquordquo43 e ldquoa arte tem mais valor do que a verdaderdquo44 uma vez que ldquoa verdade natildeo eacute algo que existe e que precisa ser descoberta mas algo que deve ser criadordquo45

Natildeo poderiacuteamos compreender de outra forma porque o projeto do Wille zur Macht devia iniciar com ldquoa vontade de potecircncia como arterdquo nem tampouco por que a uacuteltima fase de Nietzsche insista de forma tatildeo dura contra um Wagner que agrave essa altura jaacute natildeo estava mais vivo assim como por que dois dos seus uacuteltimos textos satildeo O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner Procurar na arte e na esteacutetica um plano alternativo ao ceticismo teoreacutetico o ldquocontra-movimentordquo ao niilismo foi o uacuteltimo experimento intelectual com o qual a filosofia de Nietzsche se interrompeu E falando de experimento devem ser relembradas as palavras que ele escreveu em Para aleacutem do bem e do mal

Admitindo portanto que na imagem dos filoacutesofos do futuro uma caracteriacutestica qualquer nos permita adivinhar que eles deveratildeo talvez ser ceacuteticos [] dessa forma natildeo teriacuteamos designado senatildeo um determinado aspecto desses filoacutesofos ndash e natildeo eles mesmos Com o mesmo direito eles poderiam ser chamados criacuteticos e sem duacutevidas seratildeo homens experimentadores46

Pela anaacutelise da relaccedilatildeo que Nietzsche

desenvolveu com a filosofia ceacutetica pelo uso que ele fez dela pela interpretaccedilatildeo que ele nos forneceu dos seus

42 FP 2 [110] outono de 1885 ndash outono de 1886 OFN VIII 1 p 104 43 FP 2 [67] outono de 1885 ndash outono de 1886 idem p 80 44 FP 14 [21] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 19 FP 17 [3] maio ndash junho 1888 OFN VII 3 p 312 45 FP 9 [91] outono de 1887 OFN VIII p 43 46 JGB sect 210

Nietzsche e o ceticismo 225

conceitos emerge o seguinte dado se o radicalismo criacutetico eacute certamente uma componente preponderante e central do pensamento nietzschiano ele natildeo encerra em si a sua essecircncia a qual ao contraacuterio continua presente ndash com maior forccedila e muito mais difiacutecil de ser compreendida hermeneuticamente ndash mais na sua pars construens do que na pars destruens

Refletindo sobre a relaccedilatildeo entre ambas Giorgio Colli escreveu

Aquilo que Nietzsche profetizou tornou-se realidade ateacute raacutepido demais O cristianismo eacute hoje ndash como religiatildeo ndash um entulho que natildeo incomoda mais ningueacutem A idade das grandes violecircncias chegou talvez ateacute jaacute ficou para traacutes O imoralismo crescente na poliacutetica e na cultura foi assimilado em massa tornou-se um sinal distintivo da plebe O que diria Nietzsche Ele responderia que natildeo foi isso que desejou Disso noacutes podemos ter plena convicccedilatildeo47

Eis que para o inteacuterprete nietzschiano permanece

ainda hoje aberta a pergunta o que Nietzsche entatildeo queria E procurar encontrar respostas a essa questatildeo eacute talvez um dos caminhos que prometem mais frutos para continuar dando vida ao seu pensamento

47 G Colli La ragione errabonda (org) E Colli Adelphi Milano 1982

pp 121-122

226 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 227

OS ORGANIZADORES Ceacutelia Machado Benvenho eacute Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (2008) financiado pelo CNPQ na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento Possui graduaccedilatildeo em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (1994) Especialista em Administraccedilatildeo e Planejamento de Sistemas Educacionais pela UNIPAR - Universidade Paranaense (1997) e especialista em Computaccedilatildeo Aplicada ao Ensino pela Universidade estadual de Maringaacute (1998) Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia Filosofia da Educaccedilatildeo Ensino de Filosofia e Filosofia para crianccedilas Atualmente eacute professor Assistente da UNIOESTE - campus de Toledo onde atua como Coordenador de aacuterea do CCHS leciona para o curso de graduaccedilatildeo em Filosofia orienta Trabalho de Conclusatildeo de Curso e Estaacutegio Supervisionado

228 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo eacute poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico

Nietzsche e o ceticismo 229

Joseacute Francisco de Assis Dias eacute Professor Adjunto da UNIOESTE Toledo-PR professor do Mestrado em Gestatildeo do Conhecimento nas Organizaccedilotildees na UNICESUMAR pesquisador do Grupo de Pesquisa ldquoEducaccedilatildeo e Gestatildeordquo e do Grupo de Pesquisa ldquoEacutetica e Poliacuteticardquo da UNIOESTE CCHS Toledo-PR Doutor em Direito Canocircnico pela Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Cidade do Vaticano Roma Itaacutelia Doutor em Filosofia tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Mestre em Direito Canocircnico tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Mestre em Filosofia pela mesma Pontifiacutecia Universidade Especialista em Docecircncia no Ensino Superior pela UNICESUMAR Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo ndash RS Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciecircncia Tecnologia e Inovaccedilatildeo (ICETI) E-mail jfad_brhotmailcom

230 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Joseacute Luiz Giombelli Mariani eacute acadecircmico do terceiro

ano do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade

Estadual do Oeste do Paranaacute bolsista do Programa

Institucional de Bolsa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)

vinculado a CAPESMEC Cursou trecircs semestres do

curso de Filosofia da Faculdade Palotina (FAPAS) de

Santa Maria ndash RS Participou como organizador da XIX

Semana Acadecircmica de Filosofia evento organizado pelo

Centro Acadecircmico de Filosofia Atualmente desenvolve

pesquisa na aacuterea de Eacutetica e Filosofia Poliacutetica com o

tema ceticismo na Reforma Protestante com o pensador

Montaigne orientado pelo Professor Dr Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo (UNIOESTE) Participa como membro do

Diretoacuterio do Centro Acadecircmico de Filosofia da

Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute ocupando o

cargo de Coordenador Geral

Nietzsche e o ceticismo 231

Wilson Antonio Frezzatti Jr eacute professor associado dos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo (mestradodoutorado) em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) Professor colaborador do Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute (UEM) Coordenador do GT-Nietzsche (ANPOF) Membro do Groupe Internationale de Recherche sur Nietzsche (GIRN) do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN-USP) e do Grupo de Pesquisa Filosofia Ciecircncia e Natureza na Alemanha do seacuteculo XIX (UNIOESTE) Autor dos livros Nietzsche contra Darwin (2001 1ordf ed 2014 2ordf ed) e A Fisiologia de Nietzsche a Superaccedilatildeo da Dualidade CulturaBiologia (2006)

232 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 233

234 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Page 4: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr Ceacutelia Machado Benvenho

Joseacute Francisco de Assis Dias Joseacute Luiz Giombelli Mariani

(Organizadores)

EacuteTICA E FILOSOFIA POLIacuteTICA

Ceticismo em Movimento

Primeira Ediccedilatildeo E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Toledo ndash PR

2016

6 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Copyright 2016 by

Organizadores EDITORA

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL

Ademir Menin ndash UNIOESTE ndash PR Joseacute Aparecido Pereira ndash PUC-PR Joseacute Beluci Caporalini ndash UEM Lorella Congiunti ndash PUU ndash Roma

COMITEcirc CIENTIacuteFICO Dr Ceacutesar Augusto Battisti ndash UNIOESTE ndash PR Dr Clademir Luis Araldi ndash UFPel ndash Pelotas ndash RS Dr Claudinei Aparecido de Freitas da Silva ndash UNIOESTE ndash PR Dr Ivo da Silva Jr ndash UNIFESP ndash SP Dr Joatildeo Virgiacutelio Tagliavini ndash UFSCar ndash SP Dr Joseacute Luiz Ames ndash UNIOESTE ndash PR Dr Roberto Saraiva Kahlmeyer Mertens ndash UNIOESTE ndash PR Drordf Ester Maria Dreher Heuser ndash UNIOESTE - PR

REVISAtildeO ORTOGRAacuteFICA Prof Ademir Menin

DIAGRAMACcedilAtildeO E DESIGN Editora Vivens Ltda

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo-na-Publicaccedilatildeo (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecaacuteria CRB9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o territoacuterio na-cional Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmi-tida por qualquer forma eou quaisquer meios ou arquivada em qual-quer sistema ou banco de dados sem permissatildeo escrita da Editora

Os textos satildeo de responsabilidade exclusiva de seus autores Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Rua Pedro Lodi nordm 566 ndash Jardim Coopagro Toledo ndash PR ndash CEP 85903-510 Fone (45) 3056-5596

httpwwwvivenscombr e-mail contatovivenscombr

Eacutetica e filosofia poliacutetica ceticismo em

E84 movimento organizadores Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo[et al]ndash1 ed e-book ndash Toledo

PR Vivens 2016 232 p

Modo de Acesso World Wide Web

lthttpwwwvivenscombrgt

ISBN 978-85-92670-20-7

1 Ceticismo 2 Conhecimento e verdade 3

Filosofia francesa 3 Montaigne Michel de 1533-

1592 I Tiacutetulo

CDD 22 ed 194

SUMAacuteRIO APRESENTACcedilAtildeO I = O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE Henrique Zanelato II = MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo III = AMIZADE EM MONTAIGNE Junior Cesar Luna IV = O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O CAMINHO DA FILOSOFIA Elissa Gabriela Fernandes Sanches V = A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo Anderson Lucas dos Santos Pereira VI = O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE Joseacute Luiz Giombelli Mariani VII = VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMO ENSAIOS DE MONTAIGNE Andre Scoralick

09

13

33

71

107

137

161

179

8 Eacutetica e filosofia poliacutetica

VIII = NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE Stefano Busellato 205

APRESENTACcedilAtildeO Este livro resultou das conferecircncias proferidas

durante as Jornadas de Eacutetica amp Filosofia Poliacutetica e Metafiacutesica amp Conhecimento que realizaram em 2016 a sua 9ordf ediccedilatildeo O evento conjugado teve como principal caracteriacutestica reunir especialistas de diferentes regiotildees do Brasil que pesquisem determinado assunto autor ou problema A cada ano um docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia organiza o evento como forma de propiciar a cada nova ediccedilatildeo a discussatildeo de diferentes temas filosoacuteficos relacionados a ambas as Linhas de Pesquisa como uma forma de articulaccedilatildeo de diferentes grupos de pesquisa em atividade (Eacutetica e Filosofia Poliacutetica Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Metafiacutesica e Conhecimento Wilson Antonio Frezzatti Jr e Stefano Busellato)

Por sua vez anualmente o colegiado do curso de graduaccedilatildeo em filosofia designa um professor como coordenador da Semana Acadecircmica (Joseacute Francisco de Assis Dias) As ediccedilotildees anteriores reuniram pesquisadores de diversos Estados brasileiros e ateacute mesmo alguns do exterior Nessa oportunidade os especialistas puderam debater sobre temas bastante pontuais

Para 2016 visando pois a promover o debate em torno da questatildeo da fundamentaccedilatildeo do ceticismo a Jornada em Eacutetica e Filosofia Poliacutetica almejou estudar o legado ceacutetico em particular a leitura de Sexto Empiacuterico feita por Montaigne principal divulgador do ceticismo no iniacutecio da Idade Moderna Recorre-se a argumentos que levam agrave incerteza sobre a apreensatildeo de um conhecimento verdadeiro O procedimento de Montaigne eacute o de opor a toda razatildeo uma razatildeo igual objetivando negar o Dogmatismo e estabelecer a duacutevida radical em relaccedilatildeo agraves doutrinas que afirmam ter a verdade Como

10 Eacutetica e filosofia poliacutetica

base da sua criacutetica recorre agrave tradiccedilatildeo ceacutetica antiga advinda de Pirro e de modo particular agraves Hipotiposes Pirrocircnicas O estudo dos Ensaios constitui uma fonte inesgotaacutevel de problemas A apropriaccedilatildeo e inovaccedilatildeo montaigniana do ceticismo eacute um deles

O ceticismo eacute uma forma de pensar que nos livraria das amarras de uma racionalidade comprometida em revelar um conhecimento indubitaacutevel Mas como isso aparece nos Ensaios Por que a diaphonia ateacute agora na histoacuteria do pensamento tem se revelado invenciacutevel

Na realidade em torno do ceticismo os textos desta obra apontam trecircs pensadores que de alguma forma se articulam Santo Agostinho que passou pelo ceticismo acadecircmico e foi lido pelo pirrocircnico Montaigne Este por sua vez foi lido por Nietzsche quando ganhou de presente um exemplar dos Essais

O tema da Jornada em Metafiacutesica e Conhecimento eacute ldquoZaratustra Arte e Vidardquo De certa maneira eacute sequecircncia do tema da II Jornada (2009) ldquoZaratustra Filosofia e Vidardquo A jornada deste ano debateu com pesquisadores poacutes-graduandos graduandos e professores de filosofia do Ensino Meacutedio a relaccedilatildeo entre filosofia arte e vida partindo do eixo teoacuterico do filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche no qual a filosofia eacute expressatildeo de modos de vida

Diferentes modos de vida produzem diferentes filosofias ou seja uma determinada filosofia expressa uma determinada experiecircncia Esse tema aleacutem da importacircncia de apresentar uma perspectiva acerca da proacutepria filosofia eacute relevante para os trabalhos de pesquisa que vecircm sendo desenvolvidos no Doutorado Mestrado e Graduaccedilatildeo da UNIOESTE

Os organizadores desta obra tecircm a grata satisfaccedilatildeo de apresentar textos de estudiosos de dois autores tatildeo importantes para o pensamento filosoacutefico como eacute o caso de Montaigne e de Nietzsche Por questotildees de ordem metodoloacutegica os textos estatildeo sendo

Apresentaccedilatildeo 11

publicados em dois livros conforme a proposta das duas Jornadas

Boa leitura a todos

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr

12 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= I =

O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE

Henrique Zanelato

11 INTRODUCcedilAtildeO

Pretendemos com a presente comunicaccedilatildeo

discutir certa leitura de Michel de Montaigne1 que sugere uma ldquoevoluccedilatildeordquo em seu pensamento passando de estoico a epicurista com uma chamada ldquocrise ceacuteticardquo entre elas Tal leitura eacute proposta por Pierre Villey a quem os leitores de Montaigne devem muito devido a organizaccedilatildeo feita sobre a cronologia da obra do ensaiacutesta bem como a indicaccedilatildeo das fontes utilizadas durante os anos de composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios Montaigne teria

Mestrando e graduado em filosofia pela UNIOESTE E-mail henriquezanelatoIIhotmailcom 1 ldquoMichel Eyquem seigneur de Montaigne nasceu em 1533 filho e herdeiro de Pierre Seigneur de Montaigne (dois filhos anteriores morreram apoacutes o nascimento) Foi educado falando latim como a primeira liacutengua e sempre conservou uma disposiccedilatildeo de espiacuterito latina embora conhecesse o grego preferia usar traduccedilotildees Depois de estudar direito finalmente tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux Casou-se em 1565 Em 1569 publicou a sua versatildeo francesa de Theologia naturalis de Raymond Sebond o seu Apologie eacute apenas em parte uma defesa de Sebond em que estabelece limites ceacuteticos para o raciociacutenio humano sobre Deus o homem e a natureza Em 1571 mudou-se para suas terras em Montaigne dedicando-se agrave leitura agrave reflexatildeo e agrave composiccedilatildeo de seus Ensaios (primeira versatildeo 1580) Montaigne tinha aversatildeo ao fanatismo e agraves crueldades do periacuteodo das guerras religiosas mas apoiava a ortodoxia catoacutelica e a instituiccedilatildeo monaacuterquica Duas vezes foi eleito prefeito de Bordeaux (1581 e 1583) cargo que ocupou por quatro anos Morreu em Montaigne em 1592 enquanto preparava a ediccedilatildeo final e a mais rica de seus Ensaiosrdquo (MONTAIGNE 2010)

14 Eacutetica e filosofia poliacutetica

iniciado a composiccedilatildeo de sua obra aproximadamente em 1571 escrevendo ateacute sua morte em 1592

Um esclarecimento preacutevio eacute necessaacuterio os Ensaios se dividem em trecircs livros com capiacutetulos sobre diversos temas Aleacutem disso a obra natildeo foi publicada toda de uma vez dividindo-se em trecircs ediccedilotildees e essa distinccedilatildeo nos eacute essencial aqui a primeira ediccedilatildeo surgiu em 1580 na qual os dois primeiros livros foram publicados em 1588 a obra ganhou mais um livro aleacutem de acrescentar vaacuterios acreacutescimos aos dois primeiros posteriormente a 1588 uma nova publicaccedilatildeo surge com novos acreacutescimos Essa distinccedilatildeo eacute feita nas publicaccedilotildees atuais com algumas indicaccedilotildees [A] corresponde agrave primeira ediccedilatildeo de 1580 [B] agrave segunda e [C] agrave terceira

Nosso intento ao discutir essa proposta evolutiva teraacute como foco a primeira ediccedilatildeo da obra ou seja com os textos de 1572 segundo os quais se diz que Montaigne teria adotado uma postura estoica Para isso faremos a comparaccedilatildeo desses primeiros textos com textos mais tardios bem como a comparaccedilatildeo com a literatura ceacutetica a fim de procurar elementos que confirmem ou rejeitem essa hipoacutetese de Villey de que Montaigne teria abandonado o estoicismo depois do contato com as obras ceacuteticas receacutem descobertas no Renascimento

A pesquisa sobre Montaigne deve muito ao estudo de Villey As fontes e a evoluccedilatildeo dos Ensaios de Montaigne publicado em 1908 lanccedilou uma importante luz sobre a obra do ensaiacutesta

[] vasto estudo que investiga fontes referecircncias e citaccedilotildees contextualiza historicamente os temas e propotildee uma cronologia para a composiccedilatildeo da obra de Montaigne Com este estudo Villey consolidou uma nova e fecunda leitura dos Ensaios em que se desenha sua coerecircncia Durante alguns seacuteculos aceitou-se a foacutermula de que os Ensaios eram obra fragmentaacuteria coleccedilatildeo de citaccedilotildees uma conversa

O problema do ceticismo 15

despretensiosa com o leitor na qual o acaso construiacutea o discurso (VASCONCELLOS 2000 p XI)

Aleacutem disso Montaigne natildeo organizou os capiacutetulos

segundo a ordem de composiccedilatildeo deles nos deixando no escuro ateacute Villey sobre a data da escrita de cada um deles Todas as datas que aparecem no iniacutecio dos capiacutetulos satildeo sugeridas por Villey de acordo com os temas sobre os quais Montaigne escrevia ou sobre as referecircncias feitas pelo ensaiacutesta a determinada obra ou sobre algum evento histoacuterico citado por ele Assim devemos salientar que a precisatildeo nas datas eacute apenas aproximada jaacute que sugeridas mais de 300 anos depois

Durante seu trabalho de investigaccedilatildeo Villey encontrou certa coerecircncia numa leitura que sugere uma evoluccedilatildeo no pensamento de Montaigne de acordo com as influecircncias que sofrera em suas leituras Assim propotildee que

[] Montaigne nos vinte anos em que se dedicou agrave composiccedilatildeo dos Ensaios fez um percurso filosoacutefico Em linhas gerais sua hipoacutetese eacute a de que a princiacutepio estreitamente marcado pelo estoicismo de Secircneca Montaigne teria exercitado o gecircnero literaacuterio conhecido como leccedilons (compilaccedilatildeo da filosofia dos antigos coletacircnea de exemplos e maacuteximas morais) Seus primeiros ensaios portanto na esteira das leccedilons seriam bastante impessoais O rigor deste gecircnero segundo Villey foi abrandado com a leitura das Obras morais de Plutarco que lhe permitiu uma moralidade mais amena introduzindo ao texto juiacutezos pessoais Contudo o ensaio como gecircnero literaacuterio soacute surgiria apoacutes a leitura de Sexto Empiacuterico cujo ceticismo possibilitou ao ensaiacutesta ponderar sobre a vaidade da razatildeo humana e as dificuldades de qualquer conhecimento que se aventure aleacutem dos limites do proacuteprio sujeito Viria daiacute a ecircnfase dada agrave expressatildeo de si mesmo os ensaios caracterizando-se por constituiacuterem a realizaccedilatildeo de um auto-retrato De modo

16 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que inicialmente estoico Montaigne apoacutes a crise ceacutetica teria finalmente aderido ao epicurismo ou filosofia da natureza filosofia ldquoque se contenta em regular em vez de combatecirc-los os instintos naturais a que ela abandona o homemrdquo (VASCONCELLOS 2000 p XII)

A partir dessa proposta de Villey e de alguns

trabalhos que vecircm questionando tal leitura nos propomos a investigar em que medida essa tese evolutiva se sustenta jaacute que julgamos encontrar elementos que colocam em xeque tanto um apelo totalmente estoico no iniacutecio da obra quanto um totalmente epicurista no fim dela Para isso faremos a anaacutelise de alguns capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 comparando-os com a Apologia de Raymond Sebond capiacutetulo no qual Montaigne trabalha o ceticismo de modo mais expliacutecito Faremos algumas indicaccedilotildees tambeacutem sobre alguns capiacutetulos do terceiro livro tidos como epicuristas a fim de questionar o abandono do ceticismo por Montaigne depois da ldquocrise ceacuteticardquo

Entre os capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 dois deles nos parecem fornecer alguns elementos para pontuar certa fragilidade na tese de que Montaigne teria adotado o estoicismo nesse periacuteodo Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32) e Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37) Mesmo que seja possiacutevel identificar alguns capiacutetulos com temas estoicos bem como vaacuterias citaccedilotildees e referecircncias agrave essa escola Secircneca principalmente natildeo podemos deixar de notar em outros capiacutetulos uma visiacutevel inconsistecircncia entre a confianccedila na razatildeo aspecto marcante do estoicismo e certos juiacutezos de Montaigne

Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32)

Este ensaio estaacute ao que parece relacionado estritamente com um tema contemporacircneo a Montaigne

O problema do ceticismo 17

a Reforma Protestante Tal tema eacute debatido em diversos momentos da obra montaigniana obtendo grande destaque naquele que eacute talvez o mais ceacutelebre de seus ensaios a Apologia de Raymond Sebond A Apologia eacute um dos textos mais discutidos pelos estudiosos do autor francecircs principalmente no que se refere ao ceticismo o deixaremos de lado aqui por se tratar de um ensaio posterior ao contato de Montaigne com a obra de Sexto Empiacuterico principal fonte para os estudos ceacuteticos O que nos interessa agora eacute uma anaacutelise do trigeacutesimo segundo ensaio do Livro I que segundo a nota introdutoacuteria de Villey estaria situado no comeccedilo da composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios

Este capiacutetulo foi composto poucos meses apoacutes a vitoacuteria de Dom Joatildeo da Aacuteustria em Lepanto (outubro de 1571) Um empreacutestimo tomado dos Annales drsquoAquitaine de Jean Bouchet tambeacutem atesta que ele eacute de aproximadamente 1572 (VILLEY 2000 p 321)

Outro aspecto digno de nota sobre este ensaio eacute

que a maior parte do texto compotildee a camada A ou seja a camada da primeira ediccedilatildeo do livro de 1580 Cremos portanto que I 32 contenha algo sobre o modo de pensar de Montaigne do iniacutecio de sua obra Dito isso passemos pois ao texto

Notamos desde as primeiras palavras de Montaigne o assunto do ensaio a facilidade de se falar das coisas desconhecidas Tal facilidade se deve em grande medida ao fato de que tais assuntos por natildeo serem comuns agrave experiecircncia ou agrave reflexatildeo popular natildeo sejam facilmente contrariados e muito menos refutados

[C] Por causa disso diz Platatildeo eacute muito mais faacutecil satisfazer ao falar da natureza dos deuses do que da natureza dos homens porque a ignoracircncia dos ouvintes abre um belo e amplo caminho e toda a

18 Eacutetica e filosofia poliacutetica

liberdade para o manejo de uma mateacuteria secreta (I 32 322)

O desconhecido eacute segundo ele ldquoo verdadeiro

campo e assunto da imposturardquo e todos os que se ocupam dele satildeo contadores de faacutebulas ldquocomo alquimistas prognosticadores astroacutelogos quiromantes meacutedicosrdquo Montaigne entatildeo soma a esses aqueles que parecem ser o alvo de sua criacutetica apesar de se mostrar receoso quanto a isso

A ele eu acrescentaria de bom grado se ousasse um bando de pessoas inteacuterpretes e controladores habituais dos desiacutegnios de Deus que tecircm a pretensatildeo de descobrir as causas de cada acontecimento e ver nos segredos da vontade divina os incompreensiacuteveis motivos de suas obras (I 32 322)

Notamos aqui uma comparaccedilatildeo entre

ldquoimpostores e contadores de faacutebulasrdquo com ldquoos inteacuterpretes da vontade de Deusrdquo e entre ldquoas coisas desconhecidasrdquo com ldquoas causas de cada acontecimento e os segredos da vontade divinardquo Apesar de se afirmar como catoacutelico em diversos ensaios (mesmo que isso seja motivo de discussatildeo entre os inteacuterpretes) Montaigne se posiciona contra alguns haacutebitos comuns agrave cristandade da eacutepoca ldquoMas considero mau o que vejo em uso de procurar firmar e apoiar nossa religiatildeo no sucesso e prosperidade de nossos empreendimentosrdquo (I 32 323) Sua criacutetica eacute entatildeo direcionada agravequeles cristatildeos sejam eles catoacutelicos ou protestantes que tentam justificar a legitimidade de suas reinvindicaccedilotildees pelos acontecimentos

[] nas guerras em que estamos pela religiatildeo os que levaram vantagem no confronto de Rochelabeille festejando muito a ocorrecircncia e servindo-se dessa boa fortuna para garantir a aprovaccedilatildeo de seu partido quando depois vecircm a desculpar seus infortuacutenios de

O problema do ceticismo 19

Mont-Contour e de Jarnac como sendo varas e castigos paternos (I 32 323)

O confronto de Rochelabeille segundo a nota

ocorreu em maio de 1569 e deu vantagem aos protestantes As outras duas Mont-Contour e Jarnac ocorridas em outubro e marccedilo de 1569 respectivamente favoreceram os catoacutelicos Assim Montaigne chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de justificar a escolha pelo partido catoacutelico ou protestante a partir da argumentaccedilatildeo baseada nas vitoacuterias das batalhas empreendidas de um contra o outro

Outro exemplo oferecido por Montaigne para mostrar a dificuldade de ajustar os eventos histoacutericos se refere agraves mortes semelhantes de algumas personalidades que tiveram relaccedilotildees diferentes com Deus

E quem quisesse justificar que Aacuterio e Leatildeo seu papa principais chefes daquela heresia em eacutepocas diversas tenham morrido de mortes tatildeo parecidas e tatildeo estranhas (pois afastando-se do debate por dor de barriga para ir agrave privada laacute ambos entregaram subitamente a alma) e exagerar essa vinganccedila divina pela circunstacircncia do lugar ainda poderia bem acrescentar-lhe a morte de Heliogaacutebalo que tambeacutem foi morto em uma retreta Mas ora Ireneu viu-se envolvido pela mesma fortuna (I 32 323-324)

A heresia a que Montaigne se refere

aproximando dos dois primeiros nomes eacute o arianismo2 Heliogaacutebalo foi um ldquoimperador romano de origem siacuteria cujo reinado se caracterizou pelos excessos de todo tipo introduziu em Roma o culto a Baal de que era sacerdote na Siacuteriardquo3 O outro foi ldquoSanto Ireneu padre e doutor da

2 O arianismo foi uma linha de pensamento que negava a consubstanciaccedilatildeo de Cristo Para ela Cristo natildeo seria eterno como o Pai mas uma criatura dele 3 Cf nota 10 deste capiacutetulo dos Ensaios na paacutegina 324

20 Eacutetica e filosofia poliacutetica

igreja bispo de Lyon morto no iniacutecio do seacutec IIIrdquo4 A intenccedilatildeo eacute a mesma dos exemplos anteriores Como poderia algueacutem conciliar exemplos de figuras tatildeo opostas Dizer que Deus teria se utilizado de castigo tatildeo peculiar para punir os primeiros seria ateacute aceitaacutevel mas por que um homem santo teria destino semelhante Ou para os primeiros exemplos Deus seria ora protestante ora catoacutelico Seria ele arbitraacuterio em suas decisotildees

Apesar de tantos acontecimentos apontarem contra o que argumentam ldquonatildeo deixam entretanto de perseguir sua bola e com o mesmo laacutepis pintar o preto e o brancordquo ldquovendem duas vezes o mesmo trigo e com a mesma boca sopram o quente e o friordquo Eacute faacutecil ao leitor perceber o quanto tudo isso eacute fraacutegil e Montaigne alerta para o perigo de que na falta de sucessos o povo acabe por ter sua feacute abalada ou por perdecirc-la

Em um acreacutescimo da uacuteltima ediccedilatildeo drsquoOs Ensaios ele afirma

[C] Deus querendo ensinar-nos que os bons tecircm outra coisa a esperar e os maus outra coisa a temer aleacutem das venturas ou desventuras deste mundo maneja-as e aplica-as de acordo com seu comando secreto e priva-nos dos meios de nos aproveitarmos tolamente delas E satildeo logrados os que querem se prevalecer disso segundo a razatildeo humana Nunca datildeo uma estocada sem receberem duas Santo Agostinho daacute uma bela prova disso contra seus adversaacuterios Eacute um conflito que se decide pelas armas da memoacuteria mais do que pelas da razatildeo (I 32 324)

Seria o vencedor da disputa aquele que

conhecesse mais exemplos ou que fosse mais capaz de moldaacute-los de acordo com sua causa para convencer os ouvintes Pois pelo que parece ou as coisas natildeo acontecem com base em um criteacuterio uacutenico e imutaacutevel ou ele nos eacute totalmente desconhecido Assim se uma

4 Cf nota seguinte na mesma paacutegina

O problema do ceticismo 21

batalha eacute vencida por um ou outro partido natildeo eacute porque Deus apoie a sua causa ou se algueacutem morre de modo natildeo tatildeo convencional natildeo seria isso motivo para julgar essa morte como um castigo

O que podemos notar eacute que Montaigne tem consciecircncia da facilidade com a qual eacute possiacutevel distorcer os fatos adequando-os bem ou mal com a nossa causa principalmente quando se trata de um assunto pouco comum Certa maleabilidade da razatildeo eacute reconhecida por ele A religiatildeo natildeo podendo ser fundamentada pela razatildeo deve procurar outra base sobre a qual se assentar A sugestatildeo de Montaigne para os assuntos de religiatildeo eacute que cada um tenha feacute evitando justificaacute-la com bases que natildeo satildeo capazes de tanto

[A] A um cristatildeo basta acreditar que todas as coisas vecircm de Deus recebecirc-las reconhecendo sua divina e inescrutaacutevel sabedoria e por conseguinte aceitaacute-las de bom grado sob qualquer feiccedilatildeo que lhe sejam enviadas [] Nossa crenccedila tem muitos outros fundamentos sem a legitimar pelos acontecimentos (I 32 322-323)

Natildeo queremos adentrar na questatildeo da defesa da

religiatildeo catoacutelica por Montaigne ou na conciliaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o ceticismo discutida na Apologia e motivo de controveacutersias entre os comentadores O que nos interessa eacute destacar a fragilidade e impotecircncia da razatildeo quando tentada a justificar os misteacuterios divinos preferindo confiar agrave sabedoria de Deus a razatildeo de todos os acontecimentos pois ldquoeacute difiacutecil ajustar as coisas divinas agrave nossa balanccedila sem que elas sofram diminuiccedilatildeordquo (I 32 323)

Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37)

Este ensaio apesar de Villey natildeo concluir com certeza eacute considerado por ele como datado aproximadamente de 1572 com base em outros textos

22 Eacutetica e filosofia poliacutetica

em que Montaigne insere exemplos retirados das mesmas fontes5 Eacute curto assim como o analisado anteriormente e embora apresente mais acreacutescimos das ediccedilotildees posteriores acreditamos ter uma quantidade razoaacutevel de elementos da primeira camada para nos basearmos

Ele inicia-se com uma reflexatildeo sobre trecircs exemplos nos quais o vencedor de uma batalha chora a morte de seu inimigo

[A] [] Antiacutegono ficou muito desgostoso com seu filho por lhe ter apresentado a cabeccedila do rei Pirro seu inimigo que naquele mesmo momento acabara de ser morto em combate contra ele e que tendo-a visto pocircs-se a chorar fortemente e que o duque Reneacute de Lorena tambeacutem lamentou a morte do duque Carlos de Borgonha que acabara de derrotar e acompanhou enlutado seu enterro e que na batalha de Auray que o conde de Montfort venceu contra Charles de Blois seu adversaacuterio para o ducado de Bretanha o vitorioso ao encontrar o corpo de seu inimigo morto demonstrou grande pesar (I 38 348-349)

Montaigne posiciona-se com isso contrariamente

aos versos de Petrarca e Lucano que insere logo a seguir6 Apesar de considerar verdadeira a motivaccedilatildeo e a

5 ldquoSomos tentados a admitir aliaacutes sem razotildees decisivas que este capiacutetulo foi composto por volta de 1572 De fato podemos supor que os capiacutetulos XXXVIII XLI XLIV XLV XLVII satildeo contemporacircneos pois todos eles colocados a pouca distacircncia uns dos outros foram sugeridos por exemplos extraiacutedos da mesma obra ndash as Vidas de

Plutarco ndash e apresentam notaacuteveis analogias de estrutura Ora como os capiacutetulos XLI e XLVII satildeo de 1572 eacute possiacutevel que todo o grupo seja da mesma eacutepocardquo (VILLEY 2000 p 348) 6 ldquoE assim a alma encobre suas paixotildees sob uma aparecircncia contraacuteria sob um semblante ora jubiloso ora sombriordquo (Petrarca soneto LXXXI ediccedilatildeo de 1550 soneto CXXXII) ldquoEle pensou assim que podia sem risco manifestar sentimentos de sogro derramou laacutegrimas forccediladas e extraiu gemido de um coraccedilatildeo jubilosordquo (Lucano IX 1037) Notas 2 e 3 do ensaio paacutegina 349

O problema do ceticismo 23

vontade de vencer a batalha o autor francecircs natildeo vecirc contradiccedilatildeo nem falsidade como sugere o poeta citado na atitude de pranto e pesar dos vencedores Soma entatildeo aos trecircs primeiros o exemplo de Ceacutesar que apesar de estar em guerra contra Pompeu ldquodesviou os olhos como de um espetaacuteculo vil e desagradaacutevelrdquo quando lhe apresentaram a cabeccedila deste E assim como de Petrarca discorda de Lucano que cita em seguida pois natildeo entende como fingidas as laacutegrimas de Ceacutesar tendo em vista que aleacutem de sogro de Pompeu ambos durante muito tempo haviam vivido em harmonia fazendo vaacuterias alianccedilas ldquono manejo dos assuntos puacuteblicosrdquo

O que Montaigne chama a atenccedilatildeo eacute para o fato de que natildeo somos constantes em nosso agir tema este que estaacute presente em alguns outros ensaios Por mais que sejamos conhecidos por uma qualidade ela seja qual for natildeo pode ser a uacuteltima palavra a nosso respeito pois nada impede que o mais corajoso dos homens seja invadido pela covardia em algum caso Pois

Assim como em nossos corpos dizem que haacute uma reuniatildeo de diferentes humores cujo senhor eacute o que comanda mais habitualmente em noacutes segundo nosso temperamento tambeacutem em nossas almas embora haja diversos movimentos que a agitam no entanto eacute preciso que haja um que domine o campo Mas natildeo com uma superioridade tatildeo absoluta que devido agrave volubilidade e maleabilidade da nossa alma os mais fracos ocasionalmente natildeo retomem a praccedila e por sua vez natildeo faccedilam um breve ataque (I 38 350)

Em adiccedilotildees posteriores Montaigne oferece o

proacuteprio exemplo para reforccedilar a ideia Censurar seu criado com palavras duras natildeo o impede de ldquopassada essa explosatildeordquo ajudaacute-lo quando precise mesmo que seja logo em seguida ldquono mesmo instante viro a paacuteginardquo Tambeacutem afirma que ningueacutem poderia julgar falso seu

24 Eacutetica e filosofia poliacutetica

semblante em relaccedilatildeo agrave sua mulher ldquoora frio ora amorosordquo (I 38 351)

A paacutegina seguinte depois de mais alguns exemplos (Nero e Xerxes) leva-nos para a conclusatildeo ponto que queremos destacar qual o motivo de termos sentimentos e atitudes diferentes perante a mesma coisa ou fato se natildeo eacute falsidade O que Montaigne percebe eacute que nada tem apenas um ponto de vista e que mesmo noacutes olhamos a mesma coisa de modos diferentes

[A] Embora tenhamos perseguido com vontade resoluta a vinganccedila de uma ofensa e sentido um extraordinaacuterio contentamento pela vitoacuteria entretanto choramos Natildeo eacute por isso que choramos nada mudou mas nossa alma encara a coisa com outros olhos e representa-a com outra feiccedilatildeo pois cada coisa tem vaacuterias perspectivas e vaacuterios aspectos (I 38 352)

A inconstacircncia aparece deste modo como algo

presente no homem por mais que se queira defini-lo de modo definitivo Natildeo somente que os homens sejam afetados de modos diferentes (ateacute o mesmo homem neste caso) pela mesma coisa mas que a mesma atitude tenha consequecircncias diferentes satildeo temas discutidos pelo ensaiacutesta em outros lugares7 Para Montaigne ldquoao querermos fazer de toda esta sequecircncia um corpo uno enganamo-nosrdquo

Notamos aqui como no outro ensaio8 que eacute possiacutevel discursar de modos diferentes acerca de alguma coisa ndash mesmo que natildeo seja essa a principal preocupaccedilatildeo de Montaigne em I 38 ndash conduzindo a discussatildeo para a conclusatildeo desejada Antes era possiacutevel mesmo que um exame mais acurado apontasse suas falhas argumentar de modo a transformar algum

7 Ver tambeacutem ainda no livro I Por meios diversos chega-se ao mesmo fim O lucro de um eacute prejuiacutezo do outro Diversas decorrecircncias da mesma atitude entre outros 8 I 32

O problema do ceticismo 25

acontecimento em aviso de Deus como posicionamento a favor ou contra um partido ou atitude Agora eacute possiacutevel acusar de falsidade ou mascaramento uma accedilatildeo contraacuteria ao que empreendemos no momento ou contraacuteria ao que se julga ser nossa caracteriacutestica essencial Os versos de Petrarca e Lucano citados no texto do autor francecircs atestam isso

A partir da anaacutelise desses dois capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios partimos agora para uma comparaccedilatildeo deles com o ceticismo partindo de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero com discussotildees ceacuteticas antigas e tambeacutem do proacuteprio Montaigne em textos posteriores principalmente a Apologia

De acordo com a argumentaccedilatildeo de Richard Popkin (2000) o ceticismo sofreu um esquecimento na tradiccedilatildeo filosoacutefica ficando soterrado durante todo o periacuteodo medieval onde predominou principalmente o desenvolvimento da filosofia aristoteacutelica voltada ao cristianismo No entanto no Renascimento durante as discussotildees da Reforma Protestante foram aparecendo lentamente alguns textos ceacuteticos acalorando ainda mais a discussatildeo acerca do chamado ldquocriteacuterio de feacuterdquo As fontes ceacuteticas nesse periacuteodo foram aleacutem de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero jaacute citados tambeacutem Dioacutegenes Laeacutercio que expocircs alguns elementos centrais do ceticismo aleacutem de algumas anedotas

Sexto Empiacuterico apesar de natildeo ter adicionado quase nada de original agrave doutrina ceacutetica eacute o uacutenico pirrocircnico cuja obra sobreviveu Dedicou-se principalmente em traccedilar os caminhos de seus antecessores explicando termos e argumentos de ceacuteticos mais antigos e em discutir as doutrinas dos dogmaacuteticos questionando os criteacuterios e premissas sobre as quais se construiacuteam tais escolas De acordo com Popkin Sexto ficou praticamente desconhecido durante a idade meacutedia e poucos leitores tiveram contato com seus manuscritos antes da primeira publicaccedilatildeo das

26 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Hipotiposes Pirrocircnicas uma traduccedilatildeo latina datada de 1562 Essa eacute talvez a principal obra de Sexto na qual expotildee o ceticismo pirrocircnico diferenciando-o do ceticismo acadecircmico e das demais doutrinas filosoacuteficas

Percebemos que Montaigne muito provavelmente teve acesso agrave obra de Sexto Empiacuterico visto que descreve alguns termos ceacuteticos com grande semelhanccedila no modo como o fez o meacutedico grego Aleacutem disso sabemos que Montaigne mandou gravar nas vigas de sua biblioteca algumas sentenccedilas de Sexto Segundo Villey foi aproximadamente em 1576 que a obra de Sexto teria sido conhecida pelo ensaiacutesta francecircs causando grande impacto em seu pensamento A Apologia de Raymond Sebond apesar de certa reserva de Villey teria sido escrita segundo ele entre 1576 e 1578 natildeo sendo composto todo de uma vez Eacute neste capiacutetulo tambeacutem que se encontram algumas das referecircncias mais claras ao ceticismo no qual a argumentaccedilatildeo de Montaigne eacute mais dura e nitidamente ceacutetica

Um dos aspectos principais para o qual queremos chamar a atenccedilatildeo eacute uma das consideraccedilotildees que Sexto faz acerca do ceticismo

O ceticismo eacute a capacidade de estabelecer antinomias nos fenocircmenos e nas consideraccedilotildees teoacutericas segundo qualquer um dos tropos graccedilas agraves quais nos encaminhamos ndash em virtude da equivalecircncia entre as coisas e proposiccedilotildees contrapostas ndash primeiro ateacute a suspensatildeo do juiacutezo e depois ateacute a ataraxia (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54 Itaacutelico nosso)

A ldquocapacidade de estabelecer antinomiasrdquo

aparece constantemente na obra de Sexto que as usa para contestar determinadas teses que procura contrariar Ao expor algum argumento de uma corrente filosoacutefica de sua eacutepoca o ceacutetico busca meios de por argumentos contraacuterios de antinomias refutaacute-lo

O problema do ceticismo 27

Tambeacutem encontramos esse ldquomeacutetodordquo presente na argumentaccedilatildeo do ceticismo denominado acadecircmico que aparece em alguns textos de Ciacutecero Um deles eacute notaacutevel Sobre a natureza dos deuses Nesse texto vemos uma discussatildeo como o tiacutetulo indica sobre os deuses Nela se inserem trecircs personagens Caio Veleio representante do epicurismo Luciacutelio Balbo estoico e Cota ceacutetico acadecircmico Os dois primeiros expotildeem a doutrina de cada uma de suas escolas positivamente ao passo que o ceacutetico se limita a criticar os argumentos de cada um deles

Na obra o primeiro a expor seus pensamentos eacute Veleio Apoacutes fazer uma seacuterie de consideraccedilotildees acerca do que o povo e os filoacutesofos antigos ndash preacute-socraacuteticos Platatildeo e Aristoacuteteles ndash pensavam sobre os deuses passa a argumentar sobre a teoria das divindades epicuristas De acordo com ele devemos acreditar na existecircncia dos deuses pelo fato de todos os homens terem certas ldquonoccedilotildees implantadas ou antes inatasrdquo (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 31) Tambeacutem afirma que os deuses tecircm formas humanas por ser esta a mais bela que haacute e por ser impossiacutevel que a mente que os deuses tambeacutem possuem habitasse outra forma que natildeo a humana (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 32) entre outras afirmaccedilotildees

Apoacutes a longa exposiccedilatildeo do epicurista Veleio Cota inicia seu discurso Nele depois de vaacuterias acusaccedilotildees contra Epicuro o acadecircmico passa a pontuar todos os elementos do discurso de Veleio Citemos apenas alguns segundo ele natildeo haacute como saber sobre a crenccedila de todos os povos levantando a hipoacutetese de que pode haver povos tatildeo selvagens que natildeo tenha tido nunca a ideia de qualquer deus ou mesmo os proacuteprios ateus (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 36) Algueacutem que tem a ideia de um deus natildeo poderia negaacute-lo de forma nenhuma Mostra com isso que o argumento epicurista das noccedilotildees inatas natildeo se sustenta Aleacutem disso cita outras formas tatildeo belas

28 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quanto a humana e aponta vaacuterios defeitos nela que natildeo poderiam ser admitidos para o divino Faz alusatildeo aos egiacutepcios para quem os deuses tecircm formas mistas de homens e animais (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 42)

Contra Luciacutelio Balbo que desenvolve o discurso estoico sobre o tema a argumentaccedilatildeo de Cota se desenvolve de maneira semelhante pontuando todas as afirmaccedilotildees de modo a mostrar que eacute possiacutevel qualquer que seja o argumento refutaacute-lo ou ao menos construir um oposto que o anule E essa eacute a importacircncia da criaccedilatildeo de antinomias das quais fala Sexto Empiacuterico Os argumentos opostos buscados na experiecircncia ou na dialeacutetica fazem com que o interlocutor fique sem saiacuteda pois uma vez que admita a invalidade dos argumentos ceacuteticos teraacute que confessar o mesmo para os seus por serem compostos sobre as mesmas bases

Natildeo devemos pensar no entanto que o ceacutetico admita positivamente os argumentos que formula O mesmo Cota afirma algumas vezes que por considerar o assunto difiacutecil de ser tratado natildeo pode dizer o que ou como os deuses satildeo Tambeacutem diz ter mais habilidade em reconhecer os argumentos falsos do que em formular os verdadeiros E mesmo assim o ceacutetico deve forccedilosamente reconhecer que seu argumento natildeo pode ser admitido positivamente visto que o argumento oposto do dogmaacutetico o anula tambeacutem

De todas as expressotildees ceacuteticas com efeito haacute que pressupor que natildeo nos obcecamos de que elas sejam verdadeiras posto que jaacute dissemos que podem ser refutadas por si mesmas ao estarem incluiacutedas entre aquelas que satildeo enunciadas como os purgantes entre os medicamentos natildeo apenas eliminam do corpo a doenccedila mas que tambeacutem satildeo eliminados (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 119)

O problema do ceticismo 29

Notamos que os ceacuteticos eram cientes das consequecircncias de seu modo de argumentar e entendiam que natildeo havia saiacuteda desde que essa saiacuteda significasse a adoccedilatildeo de uma das teses defendidas A uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel defendida pelos pirrocircnicos era a suspensatildeo do juiacutezo ou epocheacute De acordo com eles qualquer um que se pusesse a investigar seriamente sobre a filosofia e natildeo se deixasse levar pela precipitaccedilatildeo impressionado por alguma escola dogmaacutetica acabaria por entender que natildeo haacute criteacuterios para a adoccedilatildeo de uma ou outra tese Todas as premissas que justificariam um criteacuterio satildeo falsas ou injustificaacuteveis

Montaigne sabia disso o capiacutetulo doze do segundo livro dos Ensaios causa controveacutersias ateacute hoje sobre o sentido que o ensaiacutesta deu agrave expressatildeo Apologia de Raymond Sebond Ateacute hoje se discute os motivos de Montaigne na tentativa de defender Sebond como o tiacutetulo sugere acaba por invalidar seus argumentos9 Natildeo pensamos que esse resultado tenha sido acidental como pode parecer mas que foi resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica empreendida por ele Natildeo entraremos poreacutem nessa discussatildeo interminaacutevel

A Apologia se refere ao teoacutelogo catalatildeo Raymond Sebond escritor da obra Theacuteologie Naturelle traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Nela o teoacutelogo se propotildee a fundamentar os artigos da feacute atraveacutes da razatildeo afirmando entre outras coisas que o homem ocupa o topo da escala dos seres acima de todos os outros animais e que eacute o fim e propoacutesito da criaccedilatildeo razatildeo da existecircncia de toda a criaccedilatildeo O objetivo de Montaigne com a Apologia eacute ldquoaliviar seu livro de duas objeccedilotildees principais que lhe satildeo feitasrdquo (II 12 163) A primeira delas eacute que os cristatildeos natildeo devem tentar apoiar a sua religiatildeo atraveacutes de razotildees humanas pois soacute pode ser concebida pela feacute e pela graccedila divina A segunda se

9 Cf nota 14 EVA 2004

30 Eacutetica e filosofia poliacutetica

refere aos que dizem que os argumentos de Sebond satildeo ldquofracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e dispotildeem-se a atacaacute-los facilmenterdquo (II 12 175)

Aos que combatem por meio de pressuposiccedilatildeo eacute preciso pressupor lhes ao contraacuterio o mesmo axioma sobre o qual se estiver debatendo Pois qualquer pressuposiccedilatildeo humana e qualquer enunciaccedilatildeo tem tanta autoridade quanto outra se a razatildeo natildeo fizer diferenccedila entre elas Assim precisamos colocaacute-las todas na balanccedila (II 12 277)

As vaacuterias referecircncias de Montaigne aos ceacuteticos

gregos suas passagens quase literais seu modo de argumentar natildeo nos deixa duacutevidas de que agrave altura da Apologia ele jaacute tivera contato com os textos de Sexto e Ciacutecero e de que o ceticismo havia deixado marcas profundas em seu pensamento O mais extenso e talvez o mais estritamente filosoacutefico dos ensaios ou seja a Apologia ldquoensaio ceacutetico por excelecircncia (EVA 2004 p 11)rdquo demonstra bem isso Voltemos agora poreacutem aos ensaios analisados por noacutes anteriormente Acreditamos ter encontrado na antinomia um ponto comum entre a Apologia e eles

Eacute claro que natildeo haacute a mesma riqueza de exemplos ou de argumentos nos textos de 1572 nem referecircncias tatildeo claras ao ceticismo como aqui As foacutermulas e tropos ceacuteticos tambeacutem provavelmente natildeo lhe eram conhecidas Percebemos no entanto que Montaigne jaacute criticava a pressuposiccedilatildeo vaidosa pela qual se considerava a razatildeo como instrumento suficiente para julgar natildeo apenas os assuntos divinos como em I 32 mas tambeacutem para os assuntos humanos como se viu com o outro ensaio Maleaacutevel como uma massa de modelar a partir da qual se forma as mais diversas figuras com a razatildeo se prova o que quiser desde que os fundamentos sejam aceitos pelo interlocutor

O problema do ceticismo 31

Montaigne procede como prescreve Sexto estabelecendo antinomias de diversas maneira ldquocontrapondo fenocircmenos a fenocircmenos consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas ou uns agraves outrasrdquo (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54) Fenocircmenos a fenocircmenos quando colocados lado a lado as diversas consequecircncias de uma mesma accedilatildeo ou consequecircncias iguais de accedilotildees diferentes consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas quando argumenta dialeticamente criando argumentos para invalidar os do oponente uns agraves outras quando alude a fenocircmenos para refutar argumentos ou vice-versa O nuacutecleo basilar de nossa argumentaccedilatildeo neste estudo e que aponta para um Montaigne com inclinaccedilotildees para o ceticismo desde seus primeiros escritos eacute exatamente essa encontramos exemplos assim natildeo soacute na Apologia mas tambeacutem em ensaios anteriores Se devemos concordar com Villey que aqueles ensaios foram escritos em 1572 antes do contato de Montaigne com o ceticismo pensamos haver razotildees para duvidar de que ele tenha adotado a filosofia estoica durante esse periacuteodo A desconfianccedila nos poderes da razatildeo jaacute nesses ensaios nos parece contraditoacuteria com as opiniotildees do estoicismo quanto a esse tema

REFEREcircNCIAS SEXTO EMPIacuteRICO Esbozos pirrocircnicos Madrid Gredos 1993

MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 2001

CONCEICcedilAtildeO Gilmar Henrique da Montaigne e a poliacutetica Cascavel Edunioeste 2014

EVA Luiz A A A figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007

32 Eacutetica e filosofia poliacutetica

____ Montaigne contra a vaidade um estudo sobre o ceticismo na Apologia de Raimond Sebond Satildeo Paulo HumanitasFFLCHUSP 2004

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

VASCONCELLOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo In MONTAIGNE Os ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

VENDEMIATTI Leandro Abel Sobre a natureza dos deuses de Ciacutecero Dissertaccedilatildeo (mestrado em linguiacutestica) ndash Instituto de estudos da linguagem UNICAMP Campinas 2003

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne In MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

= II =

MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo

Este trabalho eacute parte de minha pesquisa em

desenvolvimento como doutorando em filosofia que objetiva estudar a originalidade ou antes a audaacutecia do pensamento de Montaigne cujo debate e questionamentos se iniciaram no acircmbito da religiatildeo e se estenderam para a filosofia e para a ciecircncia

Montaigne segundo Birchal (2007) relata o eu como fluxo natildeo como lsquosubstacircnciarsquo nem como lsquovaziorsquo No espiacuterito montaigniano quero comeccedilar este texto confessando junto com Porchat que tambeacutem sou um homem desesperado da filosofia e de seus problemas pois para mim os discursos da filosofia natildeo satildeo mais que prodigiosos e sublimes jogos de palavras muitas vezes distante da vida Ou como disse Porchat ldquoUm brinquedo dos

Poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico Email gilmarhenriqueconceicaohotmailcom

34 Eacutetica e filosofia poliacutetica

filoacutesofos com as palavras do Logos com os filoacutesofosrdquo (PORCHAT 2000 p 122) Montaigne chega a dizer que a razatildeo eacute uma espeacutecie de massinha com a qual podemos modelar o que quisermos Montaigne leva ao limite a capacidade da razatildeo Haacute em mim a vivecircncia da duacutevida ceacutetica pirrocircnica como uma profunda inquietaccedilatildeo Fico inquieto com os dogmaacuteticos de todos os tipos Evidentemente as questotildees loacutegicas envolvem um vocabulaacuterio teacutecnico Portanto natildeo estou pensando em loacutegica propriamente mas em filosofia Tal como os pirrocircnicos tambeacutem desconfio dos que falam difiacutecil em filosofia ldquoExprimir-se de modo difiacutecil eacute na verdade deixar transparecer certa falta de rigor intelectualrdquo (PORCHAT 2000 p 125) Eacute este o sentido pelo qual Montaigne conclui que as filosofias difiacuteceis constituem um pirronismo sob a forma resolutiva porque frequentemente a inextrincaacutevel obscuridade de seus textos natildeo nos permite saber nem mesmo qual eacute sua opiniatildeo Ou entatildeo apresentam tantas interpretaccedilotildees divergentes que obnubilam a opiniatildeo Obscurecemos e enclausuramos a compreensatildeo com tantas interpretaccedilotildees10

Pirro natildeo deixou nada escrito pois para ele filosofia natildeo eacute uma doutrina uma teoria ou um saber sistemaacutetico mas principalmente uma praacutetica uma atitude um modus vivendi (MARCONDES

10 [B] Quem natildeo afirmaria que as glosas aumentam as duacutevidas e ignoracircncia visto que natildeo se vecirc livro algum seja humano ou divino no qual o mundo se empenhe cuja dificuldade a interpretaccedilatildeo faccedila sumir O centeacutesimo comentaacuterio remete-o a seu seguinte mais espinhoso e mais escarpado do que o primeiro o achara Quando concordamos entre noacutes lsquoeste livro jaacute teve o suficiente doravante natildeo haacute mais o que dizerrsquo Isso se vecirc melhor na chicanarsquo (III 13 p 427)

Montaigne e o legado ceacutetico 35

2007 p 95) Montaigne seguindo os passos de Pirro e Sexto Empiacuterico foi decisivo na histoacuteria da filosofia sob trecircs aspectos a) ao plantar a semente da duacutevida pirrocircnica que foi desenvolvida por ele e que ficou como heranccedila para filoacutesofos posteriores b) ao argumentar que se explicaccedilatildeo haacute natildeo busca almejar o estatuto de conhecimento mas limita-se agrave constataccedilatildeo de que somos parte de uma natureza que transcende indefinidamente nossa capacidade de conhececirc-la c) Ao demolir nossas certezas visto que natildeo podemos identificar com seguranccedila nossas afecccedilotildees e disposiccedilotildees e natildeo podemos determinar nossos movimentos internos portanto devido agrave complexidade e indeterminaccedilatildeo de nossas afecccedilotildees somente podemos ver uma parte do todo ou um traccedilo entre tantos traccedilos possiacuteveis

Na realidade nos Ensaios temos a apresentaccedilatildeo de conceitos importantes para a compreensatildeo do pensamento montaigniano epokheacute zeteacutesis diaphonia isosthenia epokheacute ataraxia e eudaimonia Tais termos constituem o cerne de todo pensamento ceacutetico e satildeo familiares a Montaigne que com eles trabalha Em Montaigne temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do instante da passagem Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero que eacute tudo o que temos por esta razatildeo Montaigne eacute lsquoo filoacutesofo da aparecircnciarsquo

O ensaiacutesta compreendeu profundamente como poucos o pirronismo Montaigne eacute um pirrocircnico porque questiona ateacute mesmo o pirronismo Em outras palavras eacute isto mesmo que constitui a

36 Eacutetica e filosofia poliacutetica

atitude pirrocircnica Aprecio os inteacuterpretes do pensamento montaigniano quando destoando da exposiccedilatildeo sisuda da vida acadecircmica relatam suas exposiccedilotildees em primeira pessoa Portanto tambeacutem engatinharei do mesmo modo acompanhando de longe os passos de estudiosos que tanto admiro particularmente Oswald Porchat

Constato no ceticismo minha identidade filosoacutefica e minha chave de libertaccedilatildeo natildeo tenho verdade natildeo tenho deus natildeo tenho amigos natildeo tenho irmatildeo natildeo tenho pai e natildeo tenho matildee Se natildeo for exatamente isso eacute quase isto Ou como cantou Bob Dylan lsquoLike a rolling stonersquo Como ultima ratio entendo que estamos completamente soacutes no universo mas isso parece natildeo me entristecer Ao contraacuterio me daacute uma espeacutecie de alegria pois implica em aceitar o traacutegico e a solidatildeo da condiccedilatildeo humana lsquoalone and togetherrsquo Estamos sozinhos juntos Claro a presenccedila de um verdadeiro amigo pode nos acompanhar Aliaacutes as relaccedilotildees sociais e os projetos coletivos possibilitam tecer fios de compartilhamento Como a verdadeira amizade (I 28) eacute rara podemos ter amizades por um ponto soacute Aleacutem disso o amor nos tira da solidatildeo de ser um Por isso mesmo afinal eacute necessaacuterio viver plenamente a vida e a filosofia natildeo pode ser uma rejeiccedilatildeo da vida das vicissitudes e contingecircncias da vida comum A filosofia natildeo pode rejeitar as paixotildees humanas em nome do pensamento Como registra Sexto Empiacuterico ratificado por Montaigne se o ceacutetico condena os dogmas em nenhum momento entretanto entra em conflito com a vida comum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Com o ensaiacutesta temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do

Montaigne e o legado ceacutetico 37

instante da passagem Precisamente pelo fato de que Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero soacute temos para decidir o instante que passa

Neste trabalho elementar o nosso ponto de partida consiste em encetar esforccedilos no sentido de mostrar que Montaigne como leitor de Sexto Empiacuterico visceralmente ceacutetico suspende o juiacutezo sobre as verdades dogmaacuteticas de qualquer natureza em razatildeo disso como o ensaiacutesta natildeo tem um dogma epistemoloacutegico nem metafiacutesico natildeo apresenta um dogma moral ou um dogma poliacutetico Julga que em uacuteltima instacircncia as correntes filosoacuteficas satildeo meramente exerciacutecios de pensamento do homem no mundo Para isso nosso autor se vale em seus escritos de paradoxos de desordem e de supostas incongruecircncias A respeito disso Eva (2007) escreve que eacute certo que um traccedilo importante da reflexatildeo nos Ensaios reside em seu caraacuteter assumidamente provisoacuterio decorrente da liberdade que o autor encontra para voltar atraacutes em relaccedilatildeo ao que dissera anteriormente mesmo ao preccedilo de se contradizer Montaigne por exemplo alterna o elogio e o escaacuternio da philosophie Assim se por um lado a filosofia eacute enaltecida pela sua capacidade de tornar a alma e o corpo sadios por outro lado ela eacute criticada como palco de um conflito de razotildees (II 12)

Meu estudo estaacute focado no ceticismo como concepccedilatildeo filosoacutefica e natildeo como uma seacuterie de duacutevidas (POPKIN2000) Assim o ceticismo teve sua origem no pensamento grego antigo Como eacute

38 Eacutetica e filosofia poliacutetica

sabido durante o helenismo formou-se um conjunto de argumentos ceacuteticos estabelecendo que a nenhuma forma de conhecimento eacute possiacutevel (Ceticismo acadecircmico) b) natildeo haacute evidecircncia adequada ou suficiente para determinar se alguma forma de conhecimento eacute ou natildeo possiacutevel (Ceticismo pirrocircnico)

Como registra Popkin (2000) e Brochard (2009) o ceticismo acadecircmico surgiu na Academia de Platatildeo e sua formulaccedilatildeo teoacuterica eacute atribuiacuteda a Arcesilau e a Caacuterneacuteade que elaboraram uma seacuterie de argumentos voltados sobretudo contra as pretensotildees a conhecimento dos filoacutesofos estoicos procurando mostrar que nada se pode conhecer com certeza Estes argumentos foram transmitidos ateacute noacutes especialmente pelas obras de Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio e Santo Agostinho Os Acadecircmicos formularam uma seacuterie de dificuldades visando mostrar que os dados que obtemos por meio de nossos sentidos satildeo pouco confiaacuteveis que natildeo podemos ter certeza se nosso raciociacutenio eacute seguro e que natildeo possuiacutemos nenhum criteacuterio ou padratildeo garantido para determinar quais de nossos juiacutezos satildeo verdadeiros e quais satildeo falsos De acordo com Popkin

O problema baacutesico em questatildeo aqui eacute que qualquer proposiccedilatildeo pretendendo afirmar algum tipo de conhecimento sobre o mundo conteacutem pretensotildees que vatildeo aleacutem dos relatos meramente empiacutericos sobre como nos parecem ser os fatos (POPKIN 2000 p 2)

Luiz Eva (2007) em seu estudo sobre Montaigne indaga se dada a proeminecircncia que

Montaigne e o legado ceacutetico 39

ganha nos Ensaios o projeto de um exame da condiccedilatildeo humana e da produccedilatildeo de um retrato de si mesmo natildeo estariacuteamos diante de uma figura talvez embrionaacuteria do viacutenculo teoacuterico entre criacutetica epistemoloacutegica e tematizaccedilatildeo da subjetividade temas frequentes na posteridade filosoacutefica e mesmo diretamente associados em diversos filoacutesofos como Descartes Eva ainda sugere que o seu trajeto de estudos parece delinear uma nova imagem do proacuteprio ceticismo de Montaigne um ceticismo de linhagem lsquoradicalrsquo Acrescenta que o ceticismo montaigniano possui uma configuraccedilatildeo conceitual proacutepria e eacute ao mesmo tempo uma filosofia articulada com o pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas corporais e espirituais na medida em que isso se faz ao nosso alcance ldquouma filosofia voltada ao mundo da vida e da accedilatildeo e ao contato do homem com sua efetiva condiccedilatildeordquo (EVA 2007 p 12) Assim torna-se possiacutevel recuperar os contornos proacuteprios de um gecircnero filosoacutefico que em boa medida foram apagados pela maneira como a posteridade acolheu o ceticismo em sua versatildeo cartesiana Aliaacutes de modo geral a versatildeo difundida do ceticismo parece ser aquela advinda de Ciacutecero e Santo Agostinho (portanto na versatildeo Acadecircmica) Descartes Hume e Kant (soacute para citar alguns) enfrentaram a questatildeo da duacutevida ceacutetica Segundo Porchat (2000) Hume eacute um peacutessimo leitor do ceticismo pirrocircnico mas esta eacute outra histoacuteria natildeo iremos tratar disso neste momento

Popkin (2000) como historiador da filosofia moderna em seu estudo sobre os ceacuteticos contraria um padratildeo otimista de representaccedilatildeo dessa mesma

40 Eacutetica e filosofia poliacutetica

histoacuteria como uma aventura em direccedilatildeo ao esclarecimento e a certezas cada vez mais consistentes Como eacute sabido o ceticismo surgiu na Antiguidade Claacutessica como reaccedilatildeo agrave proliferaccedilatildeo de sistemas filosoacuteficos todos eles orientados para a detecccedilatildeo da verdade Em termos mais precisos a atitude ceacutetica emerge da descoberta de que a filosofia eacute um campo de disputa entre sistemas que sustentam que haacute uma profunda distinccedilatildeo entre o que eacute e o que aparece Enquanto homens comuns movidos por apetites e crenccedilas vivem segundo o que lhes parece ser o mundo caberia ao filoacutesofo dizer a verdade com base em sua capacidade extraordinaacuteria de ver o que natildeo se vecirc ordinariamente

A palavra ceticismo deriva de skeacutepsis que significa em grego investigaccedilatildeo O ceacutetico ao investigar os diferentes sistemas filosoacuteficos descobre que todos eles tecircm em comum a pretensatildeo de dizer o que a verdade eacute mas que por supocirc-la pertencendo agrave um mundo aleacutem de nossa percepccedilatildeo comum (o Motor Imoacutevel de Aristoacuteteles ou o Mundo das Ideias de Platatildeo por exemplo) natildeo entram em acordo com relaccedilatildeo ao que ela significa Cada um a descreve de forma particular sem apresentar evidecircncias criacuteveis para sustentar suas hipoacuteteses Trata-se pois de uma querela sobre a qual ateacute agora natildeo se pode decidir Como escreve Porchat os ceacuteticos revelam a existecircncia de um ldquoconflito das filosofiasrdquo Nesse conflito cada novo pensador pretende solucionar os impasses produzidos por seus predecessores oferecendo a possibilidade de uma nova e mais perita definiccedilatildeo da verdade Porchat sugere que ateacute mesmo a tentativa de ver

Montaigne e o legado ceacutetico 41

nas filosofias uma lsquosinfoniarsquo na realidade eacute mais um elemento da lsquodiaphoniarsquo Ou seja parece que o que acaba por acontecer eacute que essas ldquosoluccedilotildeesrdquo tatildeo somente alargam o acircmbito do dissenso Pensando resolver o problema da verdade o filoacutesofo obcecado por essa busca contribui para o aumento da incerteza

O ceticismo pirrocircnico portanto desde suas primeiras formulaccedilotildees com Pirro de Eacutelis ateacute os textos remanescentes de Sexto Empiacuterico (e Montaigne e Francisco Sanchez durante o Renascimento) sustenta a falibilidade humana em termos cognitivos e a ausecircncia de criteacuterios para definir o que eacute a verdade para aleacutem do mundo comum dos fenocircmenos que todos experimentamos

Com efeito Popkin (2000) narra os efeitos e a recepccedilatildeo que os argumentos organizados por Sexto Empiacuterico tiveram nos seacuteculos XVI e XVII Depois de considerar o impacto dos textos e argumentos ceacuteticos nos debates suscitados pela Reforma Protestante Popkin nos conduz ao universo de Michel de Montaigne leitor da primeira traduccedilatildeo latina de Sexto Empiacuterico Jaacute chamamos a atenccedilatildeo para o fato de que Montaigne tambeacutem eacute leitor de diversas obras atinentes ao ceticismo (Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio Santo Agostinho Plutarco Agrippa e Francisco Sanchez) Todavia destas leituras a que mais deixa traccedilos evidentes nos Ensaios eacute a de Sexto Empiacuterico mesmo que Montaigne natildeo cite o seu nome

Montaigne foi muito lido por Descartes Pascal Malebranche Nietzsche Rousseau Hume entre muitos outros Em Montaigne estatildeo

42 Eacutetica e filosofia poliacutetica

magnificamente presentes os temas claacutessicos do ceticismo a falibilidade do conhecimento por meios humanos uma visatildeo da vida social constituiacuteda pelas crenccedilas ordinaacuterias e uma sensibilidade iacutempar para a existecircncia de uma vasta variedade cultural e civilizatoacuteria irredutiacutevel a criteacuterios universais Essa uacuteltima perspectiva estaacute presente em um de seus ensaios a respeito dos iacutendios brasileiros Dos Canibais Nele encontramos o primeiro registro europeu que os percebe como personagens de uma experiecircncia distinta da europeia vale dizer como outra forma de sociedade Essa sensibilidade para com a diferenccedila cultural eacute uma heranccedila expliacutecita do antigo ceticismo que em um dos argumentos legados por Sexto Empiacuterico e alargado no seacuteculo XX por Claude Leacutevi-Strauss percebia a diferenccedila civilizatoacuteria como irredutiacutevel a criteacuterios universais de juiacutezo e avaliaccedilatildeo Mas condenamos o que nos parece estranho aos nossos costumes

Popkin (2000) a partir de Montaigne resgata pensadores ateacute quase desconhecidos Pierre Charron por exemplo herdeiro intelectual de Montaigne escreveraacute um dos livros mais lidos no seacuteculo XVII francecircs o De la Sagesse no qual a sabedoria eacute apresentada como fruto da utilizaccedilatildeo do ceticismo (ou pirronismo) contra as diferentes filosofias dogmaacuteticas (LESSA 2008)

Conforme Sexto e Montaigne as coisas existem poreacutem somente o que podemos saber e dizer delas satildeo de que maneira nos afetam - natildeo o que satildeo em si mesmas Natildeo obstante como iremos argumentar a epokheacute de Sexto natildeo eacute tatildeo radical como a de Pirro Montaigne por seu lado defende tambeacutem uma eacutetica do sentido comum e ainda como

Montaigne e o legado ceacutetico 43

pirrocircnico aceita a indiferenccedila (adiaphora) com respeito a todas as soluccedilotildees morais reivindica tambeacutem a importacircncia do empiacuterico

Montaigne eacute o filoacutesofo do paradoxo e da contradiccedilatildeo quando fala das coisas mas a contradiccedilatildeo estaacute nas proacuteprias coisas em suas muacuteltiplas perspectivas (II 12) Eacute claro que com isso natildeo queremos dizer que Montaigne nunca se contradiga Poreacutem a questatildeo central eacute que eacute exatamente a aceitaccedilatildeo de suas contradiccedilotildees que permite a Montaigne a articulaccedilatildeo de uma postura filosoacutefica que consiste em assumir a proacutepria incoerecircncia como labor filosoacutefico Ele parece fazer as contradiccedilotildees e incoerecircncias aparentes e efetivas trabalharem no exerciacutecio de seu pensamento na investigaccedilatildeo daquilo que lhe aparece

Essa postura arrasta consigo uma consequecircncia metodoloacutegica importante que consiste em identificar a particularidade de sua filosofia ceacutetica Montaigne como um filoacutesofo lsquode nova figurarsquo eacute inteiro Como registra Eva (2007) uma generalizaccedilatildeo aligeirada acerca da contradiccedilatildeo ambiguidade e incoerecircncia de Montaigne pode nos cegar para aquilo que compreendemos como coerecircncia filosoacutefica de Montaigne Ou seja em razatildeo da ditadura do Logos ficamos impossibilitados de observar a possibilidade de as eventuais oscilaccedilotildees opinativas Entretanto acertadamente Eva argumenta que ceticismo natildeo eacute sinocircnimo de irracionalismo ao contraacuterio a posiccedilatildeo ceacutetica estaacute conforme ao emprego da razatildeo Desse modo a constataccedilatildeo da equipolecircncia e da isostenia dos argumentos contraacuterios natildeo significa em Montaigne

44 Eacutetica e filosofia poliacutetica

a impossibilidade de uma investigaccedilatildeo racional visto que para o nosso autor os ceacuteticos se servem da razatildeo para investigar poreacutem natildeo para sentenciar

Montaigne salienta que adere ao phainoacutemenon e que conduz sua vida praacutetica da lsquomaneira comumrsquo como escreve Sexto nas Hipotiposes I 24

Aderindo assim ao aparecer das coisas [phainoacutemena] noacutes vivemos de acordo com as regras normais da vida de modo natildeo dogmaacutetico vendo que natildeo podemos permanecer inativos E parece-nos que essa regulaccedilatildeo da vida possui quatro aspectos O guia da natureza eacute aquele pelo qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo e pensamento a exigecircncia das paixotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva a comer e a sede a beber a tradiccedilatildeo dos costumes e das leis aquela pela qual noacutes consideramos a piedade nas accedilotildees da vida um bem e a impiedade um mal e a instruccedilatildeo das artes aquela pela qual natildeo somos insativos nas artes [teacutechnai] que empreendemos (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

O problema que surge para mim eacute se o ceticismo rejeita todas as filosofias Montaigne rejeita tambeacutem o ceticismo Colegas doutorandos do PPGFil da unioeste ateacute brincaram comigo recentemente quando me falaram lsquovocecirc tem certeza do ceticismorsquo Deixando de lado a brincadeira haacute aiacute algo de real Como posso ter certeza no ceticismo uma vez que isso constitui uma contradiccedilatildeo com a perspectiva ceacutetica Por que o ceticismo natildeo pode se assumir como um posicionamento consistentemente radical Claro a questatildeo estaacute mal colocada Jaacute adiantamos o

Montaigne e o legado ceacutetico 45

pirronismo eacute mais uma atitude do que um sistema de pensamento

O pirronismo acontece no acircmbito mais amplo da diaphonia filosoacutefica Portanto duvidar do proacuteprio ceticismo como Montaigne agraves vezes parece fazer eacute uma atitude pirrocircnica Portanto com isso ele natildeo rompe com o pirronismo ao contraacuterio reforccedila o pirronismo Entretanto Montaigne inova o ceticismo trazendo agrave baila temas que ateacute entatildeo natildeo ventilados no debate ceacutetico De acordo com Smith (2012) poreacutem enquanto Sexto relata as opiniotildees dos outros filoacutesofos Montaigne fala de sua proacutepria vida Quando relata o que lhe aparece Sexto relata somente oposiccedilatildeo de teses e argumentos quando relata o que lhe aparece Montaigne fala de sua vida Sexto nunca pretendeu que relatar a proacutepria vida tivesse relevacircncia filosoacutefica Os Ensaios surgem portanto como uma nova fonte para a diaphoniacuteapirrocircnica

Na tentativa de responder aos meus colegas o que posso dizer eacute que natildeo eacute bem uma certeza que tenho no ceticismo mas eacute isto exatamente que me aparece como ceticismo Talvez seja algo como a forma como vejo o mundo Eu natildeo sabia que eu era profundamente ceacutetico ateacute o dia em que li Montaigne e Sexto Empiacuterico Descobri com eles minha identidade filosoacutefica Na realidade sem ser conscientemente ceacutetico bem cedo passei a desconfiar das explicaccedilotildees que presunccedilosamente pretendem afirmar o que as coisas satildeo efetivamente em sua estrutura interna Sejam elas de acircmbito filosoacutefico poliacutetico ou religioso Jaacute salientei que o ceacutetico desconfia daquilo que chamamos lsquorealidadersquo

46 Eacutetica e filosofia poliacutetica

e sugere que se trata apenas de lsquoconsensorsquo e que muita coisa nos escapa Eacute graccedilas a esse sentido preciso de sua criacutetica tatildeo avassaladora que Montaigne acompanhando Sexto afirma que os philosophes que evocam os fenocircmenos sensiacuteveis como resposta agravequele que os potildee em duacutevida satildeo indignos desse nome

[A] Eles natildeo precisam me dizer eacute verdadeiro pois vecircs e sentes assim eacute preciso que me digam se o que eu penso sentir eu o sinto portanto de fato e se eu o sinto que eles me digam depois por que eu o sinto e como e o quecirc que eles me digam o nome a origem os componentes e os produtos do calor do frio das qualidades daquele que age e daquele que padece ou entatildeo que eles abandonem sua profissatildeo que eacute a de natildeo receber nem aprovar nada senatildeo pela via da razatildeo eacute a sua pedra de toque em toda a espeacutecie de investigaccedilotildees mas certamente eacute uma pedra de toque plena de falsidade de erro de fraqueza e de falha (II 12)

Haacute uma questatildeo muito debatida entre os inteacuterpretes que se referem agraves apropriaccedilotildees compilaccedilotildees e lsquopilhagensrsquo que Montaigne realiza advindas de autores antigos Trata-se de lsquoplaacutegiorsquo tal como entendemos hoje Quer me parecer que natildeo Acompanhemos a escrita de Montaigne quando se refere aos seus lsquoplaacutegiosrsquo

[] No entanto bem sei com quanta ousadia eu mesmo tento a todo momento igualar-me a meus plaacutegios ir par a par com eles natildeo sem uma temeraacuteria esperanccedila de conseguir

Montaigne e o legado ceacutetico 47

enganar os olhos dos juiacutezes ao discerni-los (I 26 p 220) O ensaiacutesta critica o plaacutegio e assume o plaacutegio

Examinemos isto A sua criacutetica ao plaacutegio eacute devastadora classificando-a em primeiro lugar de lsquoinjusticcedila e covardiarsquo de quem natildeo tendo em seu patrimocircnio pessoal coisa alguma com que se promover procura apresentar-se com um valor alheio E em segundo lugar chama o plaacutegio de lsquogrande tolicersquo pois se contenta por embuste em obter aprovaccedilatildeo Afinal a que tipo de plaacutegio Montaigne se refere nesta criacutetica Natildeo agravequele que leva agrave produccedilatildeo do proacuteprio mel ou da autonomia da obra mas aos que apresentam lsquoremendosrsquo lsquodessemelhanccedilasrsquo como seus e que na realidade natildeo soube lsquoassimilaacute-losrsquo como as abelhas e ele proacuteprio o fez Portanto as referecircncias ficam ao modo Frankenstein diriacuteamos recorrendo a uma posterior imagem de um livro que surgiu em 1818 Em Frankenstein aparecem as costuras e natildeo haacute plena consciecircncia Que eacute exatamente a criacutetica aos plaacutegios que Montaigne elabora

Como Montaigne busquei fazer do conhecimento afeto potente porque a inteligecircncia eacute que vecirc e que ouve a inteligecircncia eacute que tudo aproveita que dispotildee que age que domina e que reina todas as outras coisas satildeo cegas surdas e sem alma Mas Montaigne ressalva que eacute bem verdade que a tornamos servil e covarde e em certos momentos lhe recusamos a liberdade de fazer coisa alguma por si mesma (I 26 p 227) Assim com o plaacutegio a gente perde potecircncia produzindo em

48 Eacutetica e filosofia poliacutetica

si afeto triste Refiro-me aqui agrave ideia de conatus e de paralelismo que estatildeo presentes em Spinoza e Montaigne (ldquoO que se instrui natildeo eacute uma alma natildeo eacute um corpo eacute um homem natildeo se deve separaacute-lo em doisrdquoI 26 p 247) O leitor atento provavelmente estaacute percebendo que estou fazendo uma relaccedilatildeo ligeira entre estes dois filoacutesofos mas esta relaccedilatildeo natildeo eacute improacutepria Ilustres leitores de Montaigne divergem sobre o seu pensamento Alguns como por exemplo Pascal e Kant procuram descobrir nele um cristatildeo outros como Emerson veem nele um protoacutetipo do ceacutetico outros um precursor de Voltaire Mas a leitura que comungo eacute a de Sainte-Beuve Sainte-Beuve chega a julgar os Ensaios uma espeacutecie de preparaccedilatildeo de antecacircmara para a Eacutetica de Spinoza Aleacutem disso Justo-Liacutepsio traduziu para o latim a palavra essais com o tiacutetulo de gustare Os Ensaios de Montaigne foram citados em latim pelos seus contemporacircneos com o tiacutetulo geral de conatus significando a tensatildeo da pessoa que opera uma ofensiva contra as coisas Os Ensaios satildeo uma escola de tensatildeo e de liberdade sempre fraacutegil e precaacuteria

Desse modo o recurso do plaacutegio tira da gente e nos impede de perseverar em ser-movimento A paixatildeo do plaacutegio em seu caminho mais curto eacute inflado e mentiroso natildeo importa os atenuantes Se a razatildeo-corpo revela que nosso desejo de ser se realiza fundamentalmente como desejo de conhecer o plaacutegio quer enganar a razatildeo Que loucura Pois Montaigne afirma que na solidatildeo uacuteltima do pensamento sabemos que mentimos Entatildeo a criacutetica e o desmascaramento arranca a cauda plumosa de filoacutesofo grudada com sabatildeo e nos restitui ao fogo

Montaigne e o legado ceacutetico 49

da filosofia No primeiro momento o impacto eacute de desdeacutem e de vergonha poreacutem isto eacute verdadeiramente salutar Quando somos dominados por afetos contraacuterios vemos o melhor e fazemos o pior Montaigne falou que o que diminui a vaidade do pavatildeo satildeo os seus peacutes Entatildeo natildeo haacute plaacutegio em Montaigne pois quando ele mesmo descreve o seu ato de apropriaccedilatildeo de autores se compara agraves abelhas que vatildeo de flor em flor sugando poreacutem o produto final o mel eacute pessoal Do mesmo modo os Ensaios - em que pese a diversidade de autores compilados - eacute produto seu eacute o seu mel Em Montaigne natildeo aparecem as lsquocosturasrsquo

A verdade e a razatildeo satildeo comuns a todos e natildeo pertencem a quem as disse primeiramente mais do que a quem as diz depois [C] Natildeo eacute segundo Platatildeo mais do que segundo eu mesmo jaacute que ele e eu o entendemos e vemos da mesma forma [A] As abelhas sugam das flores aqui e ali mas depois fazem o mel que eacute todo delas jaacute natildeo eacute tomilho nem manjerona Assim tambeacutem as peccedilas emprestadas de outrem ele iraacute transformar e misturar para construir uma obra toda sua ou seja seu julgamento Sua educaccedilatildeo seu trabalho e estudo visam tatildeo-somente a formaacute-lo (I 26 p227)

As Hipotiposes de Sexto nos Ensaiosde Montaigne

O ceticismo objetiva opor objetos sensiacuteveis e objetos do pensamento de maneira que nenhuma das explicaccedilotildees em conflito seja mais criacutevel do que outra Satildeo ceacuteticos aqueles que em uma investigaccedilatildeo

50 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo encontram resultado e persistem na busca Os que encontram o que procuram satildeo chamados de dogmaacuteticos e aqueles que confessam ser inapreensiacutevel satildeo chamados acadecircmicos Dois tipos de argumentaccedilatildeo satildeo usados pelos ceacuteticos a argumentaccedilatildeo geral que leva agrave suspensatildeo do juiacutezo e a especiacutefica que faz objeccedilotildees contra as diversas filosofias O princiacutepio baacutesico do ceticismo eacute de se opor cada explicaccedilatildeo com outra equivalente levando a um estado de repouso abandonando a atitude dogmaacutetica (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Uma noccedilatildeo importante eacute a de suspensatildeo do juiacutezo que permeia toda filosofia ceacutetica e constitui um fim pois eacute o resultado final da investigaccedilatildeo O estado de suspensatildeo do juiacutezo que em grego eacute epokhe eacute a impossibilidade de se afirmar ou de negar a explicaccedilatildeo da aparecircncia em razatildeo da argumentaccedilatildeo geral que opotildee a cada argumento com outro pelo princiacutepio baacutesico do ceticismo O ceacutetico diz o que lhe parece e relata o que sente de forma natildeo dogmaacutetica sem afirmar nada de positivo sobre o que existe na realidade externa O ceacutetico natildeo rejeita o aparente que satildeo as impressotildees sensiacuteveis mas a explicaccedilatildeo do aparente

O criteacuterio de accedilatildeo para o ceacutetico eacute a aparecircncia ou seja as impressotildees sensiacuteveis pois estas natildeo satildeo sujeitas ao questionamento pois satildeo sensaccedilotildees e afecccedilotildees involuntaacuterias As impressotildees sensiacuteveis satildeo o princiacutepio de nosso relacionamento com o mundo As ciecircncias naturais satildeo estudadas A loacutegica e a eacutetica satildeo auxiliares na medida em que aumentam a habilidade de fazer oposiccedilatildeo a qualquer explicaccedilatildeo Aderindo ao que aparece vivemos de acordo com as normas da vida

Montaigne e o legado ceacutetico 51

comum de modo natildeo dogmaacutetico Poreacutem natildeo podendo decidir diante da equumlipolecircncia das controveacutersias acerca da verdade ou falsidade das impressotildees o ceacutetico adota a suspensatildeo Isso pode nos remeter a analogia com o equiliacutebrio de forccedilas de um sistema em equiliacutebrio onde a cada forccedila existe outra de igual intensidade e direccedilatildeo poreacutem de sentido contraacuterio O resultado eacute a ineacutercia O argumento que daacute vantagem ao ceacutetico sobre o dogmaacutetico eacute ldquoaqueles que mantecircm a opiniatildeo de que uma coisa eacute naturalmente boa sentem-se aflitos quando natildeo a encontram e quando a tem apresentam um contentamento irracional e recear perdecirc-lardquo O ceacutetico natildeo determina serem as coisas naturalmente boas ou maacutes natildeo as evitam nem as buscam e por isso natildeo se perturbam (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

Observaremos que Montaigne nos Ensaios

retoma a tradiccedilatildeo ceacutetica da Antiguidade preservando-a ao mesmo tempo em que a reconstroacutei e lhe confere novo sentido dando origem a um ceticismo de ldquolinhagem radicalrdquo (EVA 2007 p 389) a partir de interrogaccedilotildees que natildeo cessam A visatildeo interrogativa de Montaigne eacute pirrocircnica ldquo[B] Essa visatildeo eacute expressa com mais clareza pela interrogaccedilatildeo lsquoQue sei eu rsquo tal como a trago de divisa numa balanccedilardquo (II 12 p 292) Haacute diferentes respostas para o problema da viabilidade do pirronismo mas concordamos com a ideia de relativa continuidade do pirronismo destacando a noccedilatildeo de fenocircmeno como eixo que marca essa continuidade (GAZINELLI 2009) Observa-se que Dioacutegenes Laeacutercio (2009) continua exercendo consideraacutevel influecircncia sobre a interpretaccedilatildeo do

52 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo com sua obra A vida de Pirro Ao discorrer sobre o pirronismo Laeacutercio considera-o o mais nobre filosofar por ter inventado em seu modo de vida os estados de akatalepsiacutea (inapreensibilidade das coisas) e de epokheacute(suspensatildeo de juiacutezo)

Sendo assim nada dizia ser nem belo nem feio nem justo nem injusto mas igualmente sobre todas as coisas afirmava nada ser em verdade mas todos os homens agirem segundo a convenccedilatildeo e o costume pois cada coisa natildeo eacute mais isso que aquilo (LAEacuteRCIO 2009 p 161)

Como viemos chamando a atenccedilatildeo Montaigne eacute leitor rigoroso de Sexto Empiacuterico um dos expoentes maacuteximos do ceticismo Do mesmo modo como afirmamos anteriormente lembremos que este diz ser princiacutepio pirrocircnico fundamental criar antinomias opondo razotildees contraacuterias para renovar o estado de epokheacute decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a verdade nas filosofias conflitantes (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Temos entatildeo a natildeo resoluccedilatildeo da diaphonia e por essa razatildeo o ceacutetico eacute lsquodo contrarsquo O tiacutetulo das obras de Sexto Empiacuterico daacute-nos uma ideia do caraacuteter destrutivo1 e ao mesmo tempo construtivo dessa filosofia

Observemos desse modo a centralidade que tem a palavra lsquocontrarsquo no legado de Sexto Contra os dogmaacuteticos (dividido em cinco livros Contra os loacutegicos I e II Contra os fiacutesicos I e II e Contra os eacuteticos) e Contra os professores (dividido em seis livros Contra os gramaacuteticos Contra os retoacutericos Contra os geocircmetras Contra os aritmeacuteticos Contra os astroacutelogos e Contra os muacutesicos) Acrescente-se

Montaigne e o legado ceacutetico 53

todavia que o escrito mais conhecido do lsquodivinorsquo Sexto satildeo as Hipotiposes Pirrocircnicas Esse livro comeccedila distinguindo a principal diferenccedila entre os sistemas filosoacuteficos em seguida o capiacutetulo III aborda a denominaccedilatildeo do ceticismo Sexto nesta obra posiciona-se contra o dogmatismo recorrendo aos argumentos das proacuteprias doutrinas contrapondo-os de maneira que se refutem uns aos outros e anulem-se O objetivo de tal esforccedilo eacute questionar a presunccedilatildeo da sabedoria e do conhecimento apontar as aporias controveacutersias e disputas em torno do que seria a verdade demolir pretensotildees acerca de criteacuterios para se alcanccedilar a verdade e em consequecircncia a sabedoria Inversamente ele tambeacutem ataca a posiccedilatildeo dos acadecircmicos no que tange agrave negaccedilatildeo radical da possibilidade do conhecimento visto que julga que isso constitui uma espeacutecie de dogmatismo negativo (SEXTO EMPIacuteRICO 2013)

De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores (MARCONDES 2007) Como natildeo eacute possiacutevel aqui nos adentrarmos em todos os conceitos ceacuteticos devido agrave sua centralidade fixemo-nos apenas na epokheacute A epokheacute eacute uma consequecircncia da incapacidade de decisatildeo racional a favor de um lado ou outro da

54 Eacutetica e filosofia poliacutetica

questatildeo Eacute uma atitude de natildeo aceitar nem negar determinada tese em virtude do igual peso das razotildees opostas Natildeo eacute a aplicaccedilatildeo da epokheacute que mostra a universal contradiccedilatildeo antes eacute a constataccedilatildeo da diaphonia das opiniotildees que leva agrave suspensatildeo ceacutetica do juiacutezo A suspensatildeo do juiacutezo por sua vez traz consigo a ataraxia ou a imperturbabilidade da alma A epokheacute ceacutetica leva-nos a um profundo respeito por tudo aquilo que eacute variaacutevel nas partes Esta valorizaccedilatildeo do variaacutevel e do diverso tem consequecircncias no domiacutenio poliacutetico

Na realidade o ceticismo penetrou especialmente no Renascimento a partir da disputa sobre o ldquopadratildeo corretordquo do conhecimento religioso o que era chamado de lsquoa regra da feacutersquo como reconhecer o verdadeiro criteacuterio Os protestantes negam a regra de feacute da Igreja e apresentam um criteacuterio de conhecimento religioso muito diferente Busca-se assim um criteacuterio de verdade e adentra-se nas dificuldades filosoacuteficas geradas por esse conflito como mostra Montaigne no mencionado texto Apologia a Raymond Sebond (II 12) Nesse ensaio o ponto culminante eacute a duacutevida total2 O valor da evidecircncia depende do criteacuterio e natildeo o contraacuterio Assim a anaacutelise da experiecircncia sensiacutevel base de todo conhecimento coloca o problema do criteacuterio Natildeo haacute criteacuterio com certeza ou fundamento confiaacutevel Desse modo na luta para estabelecer o verdadeiro criteacuterio da feacute uma postura ceacutetica surge dentre alguns pensadores porque o problema em questatildeo fora examinado por Sexto em Hipotiposes pirrocircnicas

Montaigne e o legado ceacutetico 55

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilatildeo enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes o forccedilamos a um regresso ad infinitum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a p 163-165)

Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Lidamos apenas com o parecer e o que natildeo nos parece eacute ainda parecer Natildeo eacute possiacutevel ao ser humano ir aleacutem da aparecircncia em direccedilatildeo ao ser ldquoSegundo Pirro tem-se o puro parecer sem fundo segundo o ceticismo fenomecircnico tem-se o parecer contra o fundo de ser incognosciacutevel com a cisatildeo (natildeo pirroniana) do parecer e do ser segundo Montaigne tem-se o puro parecer aparentemente sem fundordquo (HUISMAN 2001 p 697) Natildeo se trata da verdade do ente como se algum sentido houvesse em expor o ente em sua verdade independentemente de um olhar A uacutenica verdade que o ser humano atinge natildeo eacute a de um sujeito ou de um objeto que se incline para um lado ou para o outro mas a verdade de um aspecto

56 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que natildeo eacute indissociaacutevel da apreensatildeo ou seja a verdade da aparecircncia verdade concreta visto que ele natildeo separa o olhar e o olhado o julgante e o julgado a verdade da aparecircncia os une correlaciona-os com um nexo interno A observaccedilatildeo de Montaigne se volta para o mundo e para a vida e seu juiacutezo pronuncia suas convicccedilotildees seguras marcadas por seu selo pessoal

Os filoacutesofos e moralistas doutrinais pretendem dizer o que eacute e mostrar como se deve viver para se conformar agraves leis de Deus ou da Natureza supostamente conhecidas ou ainda agrave vocaccedilatildeo do homem tal como a determinaria sua essecircncia ou seu lugar no universo Montaigne consciente da contingecircncia de seu pensamento expotildee convicccedilotildees a tiacutetulo pessoal por vezes com um vigor extremo ele natildeo daacute por cauccedilatildeo senatildeo a atitude que nesta exposiccedilatildeo se decifra como a marca de um selo e nela se confirma por reflexatildeo (TOURNON 2004 p 116)

O ensaiacutesta se opotildee ao mundo e adere ao mundo critica a poliacutetica e se insere na poliacutetica critica a razatildeo e recorre agrave razatildeo Starobinski (1992) refere-se ao movimento de oposiccedilatildeo ao mundo como recusa da mentira e da dissimulaccedilatildeo em Montaigne e talvez isso componha na verdade sua adesatildeo ao mundo como veracidade e plenitude satildeo faces do mesmo homem Ao denunciar os prestiacutegios do parecer Montaigne toma partido implicitamente pela plenitude sem equiacutevoco do ser verdadeiro Mas ele soacute o conhece pela forccedila da recusa que o faz considerar inaceitaacuteveis a mentira e a maacutescara Montaigne no instante em que se opotildee ao mundo

Montaigne e o legado ceacutetico 57

natildeo pode valer-se de nenhuma verdade possuiacuteda proclama apenas o seu oacutedio da lsquosimulaccedilatildeorsquo O verdadeiro eacute o positivo ainda desconhecido implicado pela negaccedilatildeo dirigida contra o mal pululante o verdadeiro natildeo tem fisionomia determinada eacute apenas a energia natildeo aplacada que anima e que arma o ato da recusa (STAROBINSKI 1992 p 15-16)

As Hipotiposes Pirrocircnicas reapresentam os principais argumentos do ceticismo antigo com toda a sua heranccedila demolidora em sua dimensatildeo epistemoloacutegica Como mostra Montaigne em vaacuterios de seus ensaios a impossibilidade de se estabelecer um criteacuterio de verdade indiscutiacutevel e para todos eacute fundamental na criacutetica ceacutetica aos partidos dos filoacutesofos Nesta direccedilatildeo retomemos os quatro primeiros tropos de Enesidemo que satildeo aqueles que nos dizem respeito a quem julga ou seja o sujeito que apreende o mundo mostrando dessa forma que nos precipitamos ao formular juiacutezos acerca da realidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000b) De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da

58 Eacutetica e filosofia poliacutetica

relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Saliente-se que a afinidade teoacuterica de Montaigne estaacute no fato de que os escritos de Sexto Empiacuterico satildeo dirigidos contra a defesa dogmaacutetica da pretensatildeo de conhecer a verdade absoluta tanto na moral como nas ciencias No autor natildeo haacute um fim absoluto a ser buscado Ainda que no capiacutetulo XII de Hipotiposes Sexto Empiacuterico diga que a finalidade do ceacutetico eacute a tranquilidade (ataraxia) em questotildees de opiniatildeo e a metriopathia (afecccedilotildees moderadas relativamente aos acontecimentos) (SEXTO EMPIgraveRICO) a rigor a busca da ataraxia mediante a aquisiccedilatildeo da verdade estaacute na sua preacute-histoacuteria dogmaacutetica ndash que se infiltra na sua natureza de ceacutetico enquanto ele eacute zeteacutetico isto eacute indagador buscador da verdade Poreacutem jaacute como ceacutetico que encontra a ataraxia ou seja que experimentou a tranquilidade pela equipolecircncia (isotheacuteneia) dos argumentos jaacute que ao produzir isostheacuteneia eacute levado agrave suspensatildeo do juiacutezo e vecirc acontecer a tranquilidade O ceacutetico constata o que se vecirc o que acontece constata as contradiccedilotildees das coisas constata que os argumentos contraacuterios satildeo equivalentes igualmente criacuteveis (isostheacuteneia) constata que natildeo pode decidir entre eles (epokheacute) constata que ao suspender a opiniatildeo sente-se tranquilo (ataraxia) E reitera esse caminho realista como uma espeacutecie de escada que depois eacute abandonada ou como um purgante que elimina tudo inclusive a si mesmo Se natildeo podemos acessar a verdade podemos evitar o erro suspendendo o juiacutezo (MAIA NETO 2012)

Montaigne e o legado ceacutetico 59

Conforme a traduccedilatildeo conhecida e muito utilizada de Danilo Marcondes (1997) nas Hipotiposes Pirrocircnicas (HP) I 8 encontramos

o ceticismo eacute a capacidade de colocar frente a frente [ou opor] umas com as outras da maneira que seja tanto as coisas que aparecem quanto as coisas inteligiacuteveis capacidade estaacute que devido agrave forccedila igual que haacute nas coisas e nos pensamentos opostos nos faz ter agrave suspensatildeo (epockeacute) e em seguida agrave tranquilidade (ataraxia)

Conforme o diagnoacutestico ceacutetico da diaphonia em que as diferentes filosofias se opotildeem e se equivalem na certeza da posse da verdade Tal como Montaigne reproduz na Apologia Sexto distingue os filoacutesofos dogmaacuteticos que tem a certeza da posse da verdade os filoacutesofos acadecircmicos que estatildeo certos da impossibilidade da verdade e os verdadeiramente ceacuteticos que natildeo se cansaram da busca Frente agrave equipolecircncia das filosofias o ceacutetico atinge o estado de epockeacute Nesta condiccedilatildeo soacute diz o que aparece mas natildeo como substacircncia ou essecircncia

No entanto natildeo haacute um ceticismo mas vaacuterias concepccedilotildees diferentes

Mesmo o que podemos considerar a lsquotradiccedilatildeo ceacuteticarsquo natildeo se constitui linearmente a partir de um momento inaugural ou da figura de um grande mestre tratando-se muito mais de uma tradiccedilatildeo reconstruiacuteda (MARCONDES 2007)

Sexto Empiacuterico nas Hipotiposes (I 1)

escreve

60 Eacutetica e filosofia poliacutetica

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra o objeto de sua busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser ele inapreensiacutevel ou ainda persiste na sua busca O mesmo ocorre com os objetos investigados pela filosofia e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os lsquodogmaacuteticosrsquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel sustentar que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica

As diferenciaccedilotildees entre acadecircmicos e pirrocircnicos satildeo muito controversas poreacutem natildeo esmiuccedilaremos este debate Poreacutem neste trabalho consideramos que quem de fato merece o nome de ceacuteticos satildeo os pirrocircnicos Os acadecircmicos tecircm uma posiccedilatildeo de dogmatismo negativo A posiccedilatildeo ceacutetica se caracteriza pela suspensatildeo do juiacutezo quanto agrave possiblidade ou natildeo de algo ser verdadeiro ou falso A epokheacute desse modo natildeo eacute uma decisatildeo preacutevia e sim uma consequecircncia que surge em oposiccedilatildeo aos dogmaacuteticos que enaltecem nossa capacidade racional De seu lado o pirrocircnico formula seu pensamento para enfraquecer as certezas dogmaacuteticas poreacutem natildeo almeja impor o seu pensamento natildeo elabora uma teoria indiscutiacutevel e afirmativa a respeito de algo nem pretende uma substancializaccedilatildeo Eacute este o sentido pelo qual o

Montaigne e o legado ceacutetico 61

ceticismo busca a cura para essa doenccedila que eacute a precipitaccedilatildeo dogmaacutetica o ceacutetico conforme Sexto Empiacuterico (HP I 16) natildeo assente a coisas natildeo-evidentes natildeo adota dogmas Mais a frente escreve (HP I 17) ldquopois noacutes seguimos um raciociacutenio determinado que nos mostra de acordo com a aparecircncia como viver segundo os costumes tradicionais as leis os modos de vida e nossas afecccedilotildees proacutepriasrdquo Como se pode concluir Sexto Empiacuterico resgata a vida a experiecircncia e o fenocircmeno natildeo pretendendo dogmatizar nossas impressotildees no momento em que formulamos juiacutezos visto que haacute profundas razotildees para duvidar de formulaccedilotildees deste tipo

Acompanhando a letra de Inague Juacutenior (2009)11 trataremos dos quatro primeiros tropos ou modos de Enesidemo Salienta-se aiacute a duacutevida de que as coisas natildeo se diferenciam entre si pois satildeo igualmente incertas e indiscerniacuteveis isto induz-nos epockeacute uma vez que a todo discurso pode se opor outro discurso igual de mesma forccedila persuasiva Estamos assim frente agrave manifestaccedilatildeo da equipolecircncia (isostheacuteneia) no que se refere agrave credibilidade dos argumentos conflitantes que sempre podem ser apresentados de um lado ou de outro da questatildeo (Sexto Empiacuterico HP I 10) sendo que ndash em razatildeo da equipolecircncia - nenhum deles revela-se indiscutiacutevel O ceacutetico natildeo nega a existecircncia do fenocircmeno e sim do que dizem dele Em HP I 40 temos o iniacutecio dessa exposiccedilatildeo

11 httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Cfr MARCONDES 2007

62 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o primeiro argumento (ou tropo) como dissemos eacute aquele que mostra que devido agraves diferenccedilas entre os animais as mesmas impressotildees natildeo satildeo produzidas pelas mesmas coisas Isto inferimos tanto das diferenccedilas quanto agrave geraccedilatildeo dos animais quanto da variedade de composiccedilatildeo de seus corpos

Do mesmo modo discursariacuteamos sobre o prazer e o desprazer pois o que nos agrada enquanto animais com certa constituiccedilatildeo poderia natildeo nos agradar se tiveacutessemos outra

Avanccedilando com Sexto acerca do segundo modo observemos a seguinte citaccedilatildeo de Sexto

O segundo modo eacute como haviacuteamos dito aquele baseado nas diferenccedilas entre os homens pois mesmo se admitimos por hipoacutetese que os homens satildeo mais dignos de creacutedito do que os animais irracionais verificaremos que mesmo nossas proacuteprias diferenccedilas por si mesmas levam agrave suspensatildeo Pois diz-se que o ser humano eacute composto de duas coisas alma e corpo [] Assim no que diz respeito ao corpo diferimos no que diz respeito ao nosso aspecto e no que diz respeito agraves nossas peculiaridades constitutivas (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 79)

Ocorre que tambeacutem na questatildeo da alma temos inuacutemeras teorias que se contradizem e se aniquilam ora se divergimos na nossa capacidade de formular juiacutezos natildeo eacute possiacutevel dizer a verdade Eacute esta a razatildeo pela qual o ceacutetico afirma que apenas podemos dizer aquilo que nos aparece e jamais a coisa em si Buscar a substancializaccedilatildeo eacute o mesmo que incorrer em precipitaccedilotildees e contradiccedilotildees

Montaigne e o legado ceacutetico 63

constantes (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 85) Assim a epokheacute eacute o resultado a que chega o ceacutetico

Na sequecircncia o terceiro modo de Enesidemo centra-se no individual considerando-se a constituiccedilatildeo corporal humana haacute contradiccedilotildees naquilo que os sentidos apreendem Logo soacute podemos falar daquilo que aparece e natildeo daquilo que eacute Jaacute o quarto modo da epockeacute volta-se para qualquer dos sentidos humanos O divino Sexto eacute descreve do seguinte modo

Este modo baseia-se como dizemos nas ldquocircunstacircnciasrdquo e com este termo queremos indicar condiccedilotildees ou disposiccedilotildees Este modo dizemos lida com estados que satildeo ou naturais ou natildeo-naturais tais como estar acordado ou estar dormindo com condicionamentos devido agrave idade ao movimento ou ao repouso ao amor ou ao oacutedio ao vazio ou ao preenchimento agrave embriaguez ou agrave sobriedade com predisposiccedilotildees tais como confianccedila ou medo sofrimento ou alegria (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 100)

Por conseguinte diminui bastante as possibilidades de estabelecer um indiscutiacutevel criteacuterio de verdade seja em razatildeo das oposiccedilotildees entre as apreensotildees entre as distintas espeacutecies seja em razatildeo das contradiccedilotildees das apreensotildees entre os seres humanos e o conflito entre as apreensotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Daiacute temos as contradiccedilotildees das apreensotildees visto que as coisas nos atingem de muacuteltiplas formas a depender das diferenccedilas subjetivas que impossibilita a imparcialidade

64 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os julgamentos satildeo sempre fraacutegeis As circunstacircncias mencionadas acima remetem agrave necessidade de se ter uma preferecircncia por uma determinada circunstacircncia esta tomada como paracircmetro dos julgamentos Podemos pois tomar uma circunstacircncia ou impressatildeo como preferencial percorrendo dois caminhos (HP I 114-117)

Conforme Huisman (2002) eacute fundamental chamar a atenccedilatildeo para o fato de que a epockeacutepirrocircnica eacute mais radical que a epockeacutede Sexto Empiacuterico por uma pequena diferenccedila enquanto o criador do ceticismo recusou-se a definir os graus dos comportamentos dos homens visto que as existecircncias satildeo equivalentes e satildeo dirigidas pela experiecircncia Assim sendo haacute uma distacircncia que parece insuperaacutevel que acontece entre o ser e o parecer tal como entendia Pirro Montaigne escreve que o pensamento de Pirro

[] apresenta o homem nu e vazio reconhecendo sua fraqueza natural apropriado para receber do alto uma forccedila externa desguarnecido de ciecircncia humana e portanto mais apto para alojar em si a divina anulando seu proacuteprio julgamento a fim de dar mais espaccedilo para a feacute [C] nem descrendo [A] nem estabelecendo nenhum dogma contra as observacircncias comuns humilde obediente disciplinaacutevel zeloso inimigo jurado da heresia e consequentemente isentando-se das ideacuteias irreligiosas e vatildes introduzidas pelas falsas seitas (II 12 p 260)

Parece que o fenomenismo de Sexto se mostra formulado em termos bem dualiacutesticos o

Montaigne e o legado ceacutetico 65

fenocircmeno torna-se a impressatildeo ou alteraccedilatildeo sensiacutevel do sujeito e como tal eacute contraposto ao objeto agrave ldquocoisa externardquo ou seja agrave coisa que eacute diferente do sujeito sendo pressuposta como causa da alteraccedilatildeo sensiacutevel do proacuteprio sujeito Como mera alteraccedilatildeo do sujeito o fenocircmeno natildeo resume em si toda a realidade deixando fora de si o ldquoobjeto externordquo o que eacute declarado senatildeo como incognosciacutevel de direito pelo menos como natildeo conhecido de fato (REALE G amp ANTISERI 1990)

A proacutepria conduta do ceacutetico eacute de flutuaccedilatildeo no sentido de que natildeo haacute da parte dele uma verdade inquestionaacutevel a ser defendida como eacute caso dos dogmaacuteticos que com isso se precipitam e sofrem Claro que o ceacutetico estaacute tatildeo vulneraacutevel agraves necessidades quanto o dogmaacutetico todavia com a epokheacute e da posterior ataraxia ele natildeo sofre duas vezes numa mesma circunstacircncia e ao mesmo tempo como eacute o caso dos dogmaacuteticos ou seja pela necessidade mesma e pelos juiacutezos que formulam acerca dela (INAGUE JUacuteNIOR 2009) CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Sergio Cardoso escreveu que a produccedilatildeo acadecircmica atualmente no que se refere aos Ensaios de Montaigne eacute muito grande e que ela o consagra como filoacutesofo estudando suas abordagens em todas as disciplinas da filosofia da epistemologia agrave poliacutetica (CARDOSO 2017) especialmente no Brasil que eacute um dos paiacuteses que mais produziram dissertaccedilotildees e teses acerca do Ensaiacutesta Cardoso recomenda frequentar os Ensaios cujos contornos abissais natildeo

66 Eacutetica e filosofia poliacutetica

se datildeo agrave primeira vista numa visatildeo aparentemente placida ldquoEacute verdade que na superfiacutecie tranquila dos Ensaios natildeo se notam os abalos siacutesmicos sobre os quais deslizam suas aacuteguas claras Eacute preciso conviver com eles para alcanccedilar a dimensatildeo extraordinaacuteria destas rupturas promovidas pelo filoacutesofo (CARDOSO 2017 p 19)

Conforme Eva em lsquoMontaigne ceacuteticorsquo (2017) a libertaccedilatildeo dos princiacutepios universais dogmaacuteticos da religiatildeo e da metafiacutesica encontra fundamento nos argumentos dos ceacuteticos Mas este inteacuterprete apresenta em Montaigne um ceticismo existencial mais que epistemoloacutegico ou argumentativo bem como uma moralidade mais ativa e afirmativa que aquela da submissatildeo agraves sensaccedilotildees inclinaccedilotildees e costumes tal como sugere Pirro

Montaigne natildeo somente confere aos Ensaios a dimensatildeo subjetiva e provisoacuteria como tambeacutem se contrapotildee agraves noccedilotildees abstratas e geneacutericas e aponta a experiecircncia de si como o uacutenico saber capaz de orientar de alguma maneira nossas accedilotildees sempre singulares circunstanciadas e referidas a situaccedilotildees particulares Montaigne substitui a erudiccedilatildeo inflada as certezas pela experiecircncia buscando a observaccedilatildeo direta a anaacutelise e a criacutetica dos fatos Quando a razatildeo nos falta empregamos a experiecircncia De fato como vimos ao longo de nossa exposiccedilatildeo os escritos montaignianos abrem-se para vaacuterias possibilidades de articulaccedilatildeo porque natildeo se fecham a uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Eacute por essa razatildeo que Montaigne acompanhando Sexto opta pelo partido dos ceacuteticos para quem o julgador e o julgado estatildeo em contiacutenua mutaccedilatildeo e movimento (II 12)

Montaigne e o legado ceacutetico 67

Como assinalamos no transcorrer do texto Sexto se apresenta como um ceacutetico pirrocircnico e com este procedimento busca diferenciar sua filosofia do ceticismo acadecircmico Este ceticismo foi praticado pelos herdeiros de uma tradiccedilatildeo natildeo dogmaacutetica da Academia de Platatildeo do qual Ciacutecero foi testemunha Tambeacutem Santo Agostinho em sua fase ceacutetica passou pelo ceticismo acadecircmico e nos legou uma criacutetica a esta escola em sua obra Contra os Acadecircmicos Nesta obra a questatildeo debatida eacute a conexatildeo entre verdade e felicidade e divergindo dos acadecircmicos Santo Agostinho argumenta que a verdade pode ser conhecida e que inclusive a encontrou Montaigne incorpora a divisatildeo oferecida por Sexto Empiacuterico ndash e mencionada anteriormente - entre trecircs gecircneros baacutesicos de escolas de pensamento os dogmaacuteticos que argumentam saber algo com certeza e apresentam doutrinas explicaccedilotildees filosoacuteficas acerca do real os acadecircmicos que concluiacuteram que estatildeo seguros que a verdade natildeo pode ser encontrada efetivamente e por fim os verdadeiramente ceacuteticos skeptikon os que investigam porque julgam natildeo terem ainda chegado a uma conclusatildeo acerca do conhecimento da verdade Estamos nos referindo aos pirrocircnicos obviamente Os pirrocircnicos avaliam que todos os filoacutesofos tecircm limites sendo difiacutecil decidir qual eacute a verdadeira Desse modo eles permanecem em epokheacute mas perseveram incansavelmente em sua busca

Em seus estudos sempre argutos sobre Montaigne e o ceticismo Eva registra que os argumentos expostos por Sexto Empiacuterico ressurgem

68 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quase todos nos Ensaios Em seguida este inteacuterprete daacute como exemplo o fato de que Sexto compara as percepccedilotildees humanas com aquelas que supostamente encontrariacuteamos nos animais com o intuito de argumentar que se pode tratar as representaccedilotildees humanas como verdadeiras uma vez que natildeo temos acesso a um criteacuterio para comparaacute-las Esta comparaccedilatildeo encontra-se na base daquela que Montaigne realiza na famosa Apologia a Raymond Sebond Outro exemplo dado pelo inteacuterprete Sexto Empiacuterico confronta a diversidade de costumes leis e normas de conduta entre os diferentes povos com o mesmo objetivo de impedir nossa presunccedilatildeo de acesso agrave verdade isto se aproxima bastante do debate que Montaigne elabora em II 12 no problema do acesso agraves leis naturais na moral REFEREcircNCIAS BIRCHAL Telma O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte UFMG 2007 BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009 CARDOSO Seacutergio (org) Dossiecirc Ensaiar a proacutepria vida Montaigne filoacutesofo Revista Cult marccedilo de 2017) COMTE Jaimir O iniacutecio Sexto Empiacuterico e o ceticismo pirrocircnico Revista Cult 2015 EMPIacuteRICO Sexto Contra os retoacutericos Satildeo Paulo Unesp 2013 _______ Outlines of Pyrrhonism Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

Montaigne e o legado ceacutetico 69

_______ Against the logicians Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000b _______ Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronica sn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010) EVA Luiz A A Figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007 LAEacuteRCIO Dioacutegenes A vida de Pirro Trad Gabriela G Gazinelli Satildeo Paulo Loyola 2009 LESSA Renato Uma histoacuteria da duacutevida uma resenha de A Histoacuteria do Ceticismo de Richard Popkin Rio de Janeiro Ediccedilatildeo Laboratoacuterio de Estudos Hum(e)anos ndash Online Setembro 2008) MAIA NETO Joseacute Raimundo Ceticismo e Poliacutetica em Montaignerevistaestudoshumeanoscomceticismo-e-politica-em-montaigne-por-jose-raimundo-12 de dez de 2012 MARCONDES Danilo Iniciaccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia Rio de Janeiro Zahar 2007 MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 2002 2006 (Coleccedilatildeo Paideacuteia) 3 v NOBRE Marcos REGO Joseacute Marcio Conversas com filoacutesofos brasileiros Satildeo Paulo Ed 34 2000 NAKAM Geacuteralde Montaigne et son temps Les eacuteveacutenements et les Essais lhistoire la vie le livre Paris Gallimard 1993

70 Eacutetica e filosofia poliacutetica

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000 PORCHAT Oswald Sobre o que aparece Skeacutepsis Satildeo Paulo n 1 p 17 2007 _______ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1994 REALE G ANTISERI D Histoacuteria da Filosofia Antiguidade e Idade Meacutedia Vol I 3ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo Paulus 1990 SMITH Pliacutenio Junqueira O meacutetodo ceacutetico da oposiccedilatildeo e as fantasias de Montaigne Kriterion vol53 no126 Belo Horizonte Dec 2012 STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia da Letras 1992 VILLEY Pierre Les sources et lrsquoevolution des Essais de Montaigne Paris Hechette 1908 INAGUE JUacuteNIOR Marcelo Disponiacutevel em In httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Acesso 14072009

= III =

AMIZADE EM MONTAIGNE

Junior Cesar Luna

31 INTRODUCcedilAtildeO

De iniacutecio eacute preciso lembrar que amizade surgiu

como questatildeo filosoacutefica desde a Antiguidade na ocasiatildeo em que o nuacutecleo da discussatildeo filosoacutefica abandona a reflexatildeo sobre o cosmos e adota o homem como objeto num ambiente cultural e poliacutetico que envolve seacuterios problemas12 e questionamentos morais na filosofia antiga Nesta conjuntura de discussatildeo das relaccedilotildees humanas no meio social insere-se a reflexatildeo sobre a amizade tema este discutido natildeo soacute por Aristoacuteteles na Greacutecia antiga13

Mestre em filosofia moderna e contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute 12 A leitura dos Diaacutelogos de Platatildeo Mecircnon Banquete e Fedro satildeo

relevantes para compreendermos o contexto histoacuterico em que se insere o problema e a relaccedilatildeo entre a filosofia de Platatildeo e Aristoacuteteles pois tratam de pontos essenciais da filosofia deste pensador e cruzam-se problemas fundamentais da existecircncia humana Em Fedro e Banquete Platatildeo estuda nos dois diaacutelogos a noccedilatildeo do amor onde se origina qual seu verdadeiro objeto como se situa e qual a funccedilatildeo Em Mecircnon notamos a formaccedilatildeo embrionaacuteria do sistema platocircnico Trata-se de saber se a virtude pode ou natildeo ser ensinada se existe ou natildeo ldquociecircnciardquo da virtude ou eacute um dom da natureza Identificamos a influecircncia sofista bem viva neste diaacutelogo Os sofistas antigos ensinaram que as ideias satildeo para os homens e natildeo os homens para as ideias Isso ocasionou uma grande crise na filosofia antiga envolvendo seacuterias questotildees morais e eacuteticas que se confundem na filosofia grega 13 Soacutecrates deu iniacutecio agraves discussotildees sobre a justiccedila a virtude e o amor entre os sofistas e Platatildeo e tambeacutem com Soacutecrates teve iniacutecio a reflexatildeo filosoacutefica sobre a amizade

72 Eacutetica e filosofia poliacutetica

como tambeacutem por outros contemporacircneos a ele com bastante representatividade na era heleniacutestica

No Renascimento Michel de Montaigne ao escrever sobre a amizade daacute ares de ter encontrado uma verdadeira amizade Em Da Amizade capiacutetulo 28 do primeiro livro dos Ensaios relatou toda a importacircncia de seu viacutenculo de amizade com Eacutetienne de La Boeacutetie Mas ao descrevecirc-lo diferiu dos conceitos jaacute estabelecidos pelos filoacutesofos claacutessicos e tambeacutem da maneira que os pensadores do seu tempo entendiam a amizade em seu conceito e extensatildeo aleacutem de trabalhar a questatildeo tambeacutem no acircmbito privado estritamente particular Isto fica evidente quando escreve acerca das possiblidades de utilizaccedilatildeo do termo amizade na sociedade Neste trabalho foram buscadas as questotildees eminentemente eacuteticas e filosoacuteficas em relaccedilatildeo agrave amizade perseguindo a sua possiacutevel definiccedilatildeo a instituiccedilatildeo de um caraacuteter normativo bem como a sua elevaccedilatildeo a uma possiacutevel universalidade Como se pode observar questotildees como estas trazem em seu bojo inextinguiacuteveis polecircmicas Inevitavelmente nossa apresentaccedilatildeo se insere no conjunto deste debate filosoacutefico Na realidade insere-se na constataccedilatildeo deste tema na histoacuteria da filosofia neste repique que parece natildeo ter fim isto acabou se constituindo em uma motivaccedilatildeo para continuarmos pensando a amizade como um problema filosoacutefico em Montaigne

Portanto este trabalho objetiva discutir nuclearmente a relaccedilatildeo de amizade entre Montaigne e La Boeacutetie o seu ldquoirmatildeo de alianccedilardquo A leitura dos Ensaios provoca uma indagaccedilatildeo Qual eacute o estatuto filosoacutefico da amizade Afinal este tema perpassa toda a histoacuteria da filosofia Observamos que o homem por si soacute eacute um ser social isso torna o assunto da amizade bastante pertinente e uma reflexatildeo sobre o mesmo eacute extremamente relevante

Amizade em Montaigne 73

Em Da amizade Montaigne interroga a natureza de diferentes laccedilos diversos que ligam os seres humanos entre si Basicamente para ser amigo eacute preciso ser amigo de si mesmo conforme iremos argumentar O ensaiacutesta acompanha a interpretaccedilatildeo dos antigos ateacute um certo ponto depois ele os abandona Na questatildeo da amizade Montaigne eacute leitor e criacutetico de Aristoacuteteles Ciacutecero e Epicuro porque a definiccedilatildeo de amizade dos antigos necessita de uma reinterpretaccedilatildeo para compreender a de Montaigne e La Boeacutetie Mas concorda que a amizade eacute o sentimento mais perfeito que pode existir nas relaccedilotildees humanas e argumenta que se trata de uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar A amizade tem com isso a dimensatildeo da sociabilizaccedilatildeo uma vez que olhar para o outro eacute ter a consciecircncia de que o homem eacute um ser social Em decorrecircncia este trabalho justifica-se na medida em que a investigaccedilatildeo revela a importacircncia de La Boeacutetie para o iniacutecio da empreitada de redaccedilatildeo dos Ensaios De fato a morte de La Boeacutetie causou um impacto profundo na alma de Montaigne que o levou a cair numa recordaccedilatildeo penosa que lhe fez muito mal como registra em seu Journal de voyage (MONTAIGNE 1962) Podemos especular os Ensaios teriam sido escritos se La Boeacutetie natildeo tivesse morrido Os Ensaios foram a forma de tornar presente o amigo ausente como escreve Silva (2014 p 24) Para esta investigaccedilatildeo recorremos aos inteacuterpretes dos Ensaios e a proacutepria obra evidentemente Como mostra o tiacutetulo desta apresentaccedilatildeo o assunto central eacute a questatildeo da amizade que se apresenta para Montaigne como um relevante problema filosoacutefico Iremos argumentar que em Montaigne a amizade eacute o lugar de um encontro de si pois a identidade do eu eacute afirmada por meio dela Assim a amizade eacute o lugar da experiecircncia de si ou seja natildeo eacute na solidatildeo ou na pura volta a si que Montaigne encontra a solidez de

74 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uma vida verdadeira a real existecircncia de si mesmo mas numa relaccedilatildeo singular e paradigmaacutetica com o outro

Trataremos das formas de amizade que eacute encontrada no ensaio Da Amizade Nesse sentido tem especial importacircncia a visatildeo de Aristoacuteteles sobre a justiccedila equidade e amizade tentaremos mostrar a leitura de Montaigne acerca do pensamento aristoteacutelico especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco que foi usada por Montaigne para fundamentar a questatildeo da equidade Apoiado em Aristoacuteteles Montaigne escreve que os bons legisladores se ocuparam mais da amizade que da justiccedila O problema da amizade eacute fundamental para o ensaiacutesta porque avalia que das relaccedilotildees humanas eacute a das mais lsquobelas e nobresrsquo

Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma14

Montaigne distingue a amizade da relaccedilatildeo entre

irmatildeos pois os familiares natildeo satildeo livres escolhas de afeiccedilatildeo como o eacute uma verdadeira amizade O amor pelos pais tambeacutem natildeo eacute amizade uma vez que natildeo eacute uma relaccedilatildeo horizontal E com as mulheres que amamos eacute possiacutevel amizade desse tipo Montaigne salienta que se fosse possiacutevel a amizade desse tipo com quem gozamos as deliacutecias do corpo essa seria perfeita e total Do mesmo modo tratar-se-aacute da questatildeo asseverada por Ciacutecero acerca do valor da amizade de modo particular quando este afirma que haacute amizades profundas e refinadas amizades comuns e superficiais

Observamos que de Epicuro Montaigne retomaraacute a discussatildeo da utilidade da amizade Apresentar-se-aacute as

14 I 28 p 275

Amizade em Montaigne 75

exigecircncias e condiccedilotildees apresentadas por Montaigne para o desenvolvimento de uma verdadeira amizade Argumentaremos que a amizade eacute para Montaigne uma relaccedilatildeo consigo mesmo na qual o outro nos revela a noacutes mesmos como uma espeacutecie de espelhamento Trataremos da gecircnese da amizade de Montaigne com La Boeacutetie porque para Montaigne isso tem implicaccedilotildees filosoacuteficas da mais alta importacircncia mostraremos assim que os desapontamentos com a magistratura soacute natildeo satildeo maiores devido as ocorrecircncias particulares que o levaram ao encontro de Eacutetienne de La Boeacutetie em um evento festivo da cidade de Bordeaux quando este pertencia ao parlamento desde 1554 O Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria de La Boeacutetie ldquoserviu de intermediaacuterio para o nosso primeiro contatordquo15 entre os amigos e de pronto abriu caminho para uma beliacutessima e intensa amizade pois era notoacuteria uma afinidade de pensamento que teve grande contribuiccedilatildeo para a singularidade deste viacutenculo Desse modo abrindo espaccedilo para o contraditoacuterio trataremos de mostrar a diversidade de definiccedilotildees no que tange ao problema da amizade refletida por numerosos pensadores poreacutem aqui abordaremos apenas os que consideramos mais relevantes para esta apresentaccedilatildeo

32 TEMA DA AMIZADE EM MONTAIGNE

Starobinski (1993) mostra o desenvolvimento do

conceito de amizade em Montaigne explicando que este conceito o acompanha e o motiva no iniacutecio de seu retiro (que natildeo eacute o de um ermitatildeo mas sim o de um observador atento da sociedade) para a redaccedilatildeo dos Ensaios obra da vida de Montaigne que se dedicou a ela por cerca de vinte anos Essa obra expressa uma tentativa de conhecimento do fluxo do instante que passa e de se

15 I 28 p 232

76 Eacutetica e filosofia poliacutetica

deixar conhecer por seus parentes e amigos (ou lsquoao leitorrsquo conforme afirma) mostrando todavia que o uacutenico que lhe conhecia por completo Eacutetienne de La Boeacutetie (o fiel amigo ausente desde sua morte em 1563) o acompanha sempre em seus pensamentos como um guardiatildeo da sua mais pura imagem

Ele (La Boeacutetie) era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1993 p 45)

Em seguida Starobinski indica o movimento

montaigniano para construccedilatildeo de uma amizade equitativa virtuosa e indivisiacutevel que foi experimentada pelo proacuteprio ensaiacutesta em uma vivecircncia intensa com La Boeacutetie Nessa direccedilatildeo Starobinski escreve sobre a importante contribuiccedilatildeo da leitura dos claacutessicos antigos para definiccedilatildeo de amizade em Montaigne uma vez que o ensaiacutesta se utiliza dos antigos para abrilhantar o aspecto exemplar e inigualaacutevel de sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie descrevendo caracteriacutesticas de sua amizade que soacute pode ser vivida por homens como ldquoraridaderdquo e que saibam viver com reciprocidade como escolha profunda Aleacutem disso esse tipo de amizade implica numa alienaccedilatildeo16 voluntaacuteria da vontade de ambas as partes ao ponto de suas almas unirem-se de tal forma que natildeo haja mais uma linha divisoacuteria entre elas torna-se uma alma em dois corpos

Uma breve anaacutelise do Da Amizade aponta algumas destas caracteriacutesticas descritas por Montaigne salientando a importacircncia de um amigo que aparece como ponto central da apresentaccedilatildeo do capiacutetulo sobretudo pelo fato de que eacute dedicado agrave memoacuteria de

16 Registre-se poreacutem que a palavra lsquoalienaccedilatildeorsquo natildeo eacute usada por Montaigne (CONCEICAtildeO 2014 p 163)

Amizade em Montaigne 77

Eacutetienne de La Boeacutetie Na realidade trata-se de uma curta poreacutem intensa amizade que se estabeleceu entre ambos A falta deste amigo deixa um grande vazio visto que estaacute ausente agora aquele que lhe revelava a sua imagem Provavelmente eacute a ausecircncia do amigo que o impele a escrever na tentativa de recuperar a sua imagem que a morte do amigo levou consigo

A amizade ocupa um lugar central tanto na obra quanto na vida de Montaigne A concepccedilatildeo montaigniana da amizade eacute inseparaacutevel da memoacuteria da existecircncia de La Boeacutetie por isso estaacutevamos argumentando que ele se afasta da concepccedilatildeo claacutessico-renascentista pois para ele escrever sobre a amizade era escrever sobre si mesmo era um autoconhecimento da singularidade

Na amizade que de fato falo elas se mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniu se me pressionarem para dizer por que o amava sinto que isso soacute pode ser expresso [C] respondendo ldquoporque era ele porque era eurdquo (I 28 p 281)

O fato de todo o capitulo 28 ser uma homenagem

e uma reflexatildeo sobre La Boeacutetie jaacute sugere o quanto eacute difiacutecil a tarefa de precisar conceitualmente algo como lsquouma concepccedilatildeo montaignianarsquo acerca da amizade Todavia uma coisa eacute clara a amizade em que Montaigne e La Boeacutetie haviam compartilhado caracteriza-se pela fusatildeo perfeita com que se interligam os amigos Haacute algo de miacutestico na amizade ideal uma espeacutecie de transcendecircncia muacutetua por meio da qual se perdem e se confundem as almas dos companheiros

Pois essa amizade perfeita de que falo eacute indivisiacutevel cada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhe resta para distribuir alhures ao contraacuterio ele se aborrece por natildeo ser duplo triplo ou quaacutedruplo e por

78 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo ter vaacuterias almas e vaacuterias vontades para entregaacute-las todas a esse objeto (I28 p 285)

Claramente nota-se que a amizade para

Montaigne tem um aspecto interessante ela aponta para o amor equitativo vinculado agrave justiccedila e agrave igualdade inspirado em Aristoacuteteles De fato esta ideia eacute apontada no pensamento do Estagirita17 especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco para fundamentar a noccedilatildeo de equidade Quando somadas igualdade e justiccedila ao sentimento de amizade como resultado temos a amizade equitativa Esta amizade eacute fruto da reciprocidade dos amigos pois tem em vista a igualdade em porccedilotildees idecircnticas de um para com o outro Dessa maneira esta reflexatildeo aristoteacutelica eacute contemporacircnea a Montaigne de maneira que se apoia na noccedilatildeo de teacuteleia philia para que ocorra segundo Seacutergio Cardoso uma decifraccedilatildeo laboriosa da alianccedila que unira [Montaigne] a La Boeacutetie (CARDOSO 1987) Quando Montaigne se refere ao amigo La Boeacutetie afirma que ele e seu amigo se procuravam antes mesmo de se terem visto de modo que nascia neles uma afeiccedilatildeo com raiacutezes profundas E mais uma amizade desproporcional agravequilo que eacute relatado porque tem algo de indiziacutevel Assim ele compara a afeiccedilatildeo por seu amigo com um decreto de Providecircncia

procuraacutevamos antes mesmo de termos conhecido e por informaccedilotildees que ouviacuteamos um sobre o outro e que faziam em nossa afeiccedilatildeo mais efeito do que a razatildeo atribui agrave informaccedilatildeo creio que por alguma ordem do ceacuteu abraccedilaacutevamo-nos por nossos nomes18 (I28 p 281)

17 Aristoacuteteles eacute frequentemente referido como lsquoo Estagiritarsquo (ou ldquoo Filoacutesoforsquo) Isso se daacute pelo fato de que Estagira eacute o nome da cidade conhecida por ser onde nasceu Aristoacuteteles 18 Na traduccedilatildeo da Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo de 1984 ldquoNoacutes nos procuraacutevamos antes de nos termos visto e nascia em noacutes uma

Amizade em Montaigne 79

Com efeito a amizade eacute uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar O decreto da providecircncia se equipara agrave amizade agrave medida que considera as disposiccedilotildees ou medidas proacuteprias para alcanccedilar um fim no caso o nascimento desproporcional da afeiccedilatildeo Pode-se afirmar ainda que a Providecircncia ou ordem do ceacuteu corresponde a um acontecimento feliz ldquoSe as accedilotildees de ambos se desencontrassem eles natildeo seriam nem amigos um do outro segundo minha medida nem amigos de si mesmordquo (I 28 p 283)

Montaigne observa na obra de Ciacutecero uma narrativa do pensamento de Quiacutelon a respeito de amar como se pudesse vir a odiar Estes sentimentos extremos satildeo o que de fato compotildeem a vida Assim o filoacutesofo percebe pertinecircncia nos escritos de Ciacutecero o qual aponta que cautela e prudecircncia satildeo imprescindiacuteveis na escolha dos amigos para que natildeo se ame algueacutem que mais tarde venha a odiar Para tanto alerta para natildeo as confundir as amizades corriqueiras com a sua e a de La Boeacutetie

[B] mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p 283)

Para Montaigne na alma se encontra o desejo de

se unir ao outro para que encontre sua plena realizaccedilatildeo Sobretudo com os acontecimentos de sua vida tais como a morte do pai e do amigo o ensaiacutesta eacute levado a pensar em uma descontinuidade entre alma e corpo No bojo de sua reflexatildeo e nessa descontinuidade entre alma e corpo o autor faz o exerciacutecio da epocheacute suspensatildeo do juiacutezo Refletir significa um retorno aos acontecimentos e

afeiccedilatildeo em verdade fora de proporccedilotildees com o que nos era relatado no que vejo como que um decreto da Providecircnciardquo (I 28 p 94)

80 Eacutetica e filosofia poliacutetica

experiecircncias marcantes que natildeo podem ser apagados da memoacuteria de Montaigne Escrever representa deixar viva na histoacuteria sua experiecircncia de vida marcada pelos sentimentos de dor e de alegria Aleacutem do mais significa ainda presentificar a amizade de maneira que a entrega ao outro eacute assinalada pelos ensaios para natildeo se perder a parte que ainda resta da imagem de La Boeacutetie visto que como assinalamos ele escreve para que a imagem do amigo natildeo se perca neste fluxo constante que tudo arrasta

Na amizade se unem as vontades porque ambos buscam a mesma finalidade o bem ao outro numa fusatildeo verdadeiramente perfeita Assim forma-se uma amizade indivisiacutevel Por essa razatildeo natildeo eacute possiacutevel uma multiplicidade de amigos conforme aponta Seacutergio Cardoso

Se o amigo deseja o que seu amigo deseja se eacute tatildeo seguro da vontade do amigo como da sua proacutepria a hipoacutetese da multiplicidade dos amigos compromete a unidade da proacutepria vontade justamente a grande daacutediva da amizade (CARDOSO 1987 p 184)

Montaigne e La Boeacutetie adotam a mesma postura e

detestam a servidatildeo dos cidadatildeos ao tirano inclusive La Boeacutetie vecirc a amizade como uma saiacuteda possiacutevel de oposiccedilatildeo agrave tirania Poreacutem Montaigne quando apresenta a possibilidade de utilizar o termo amizade na sociedade natildeo sugere associaacute-la agrave lsquoamizade perfeitarsquo Prefere com isso denominar amizade verdadeiramente apenas sua forma perfeita relativa ao nome

A partir disso o ensaiacutesta pensa o conceito da amizade indivisiacutevel para apontar a uniatildeo das vontades bem como a distinccedilatildeo para com as amizades corriqueiras e opacas que acentuam o bem particular ou privado o utilitarismo e o bem familiar Epicuro registra em suas Sentenccedilas Principais que de todas as coisas que a sabedoria nos oferece para a felicidade da vida a maior eacute

Amizade em Montaigne 81

a amizade De acordo com ele a amizade ainda que natildeo nos livre das dores do corpo e da alma nos auxilia a suportaacute-las Como eacute sabido Epicuro julga que o mais alto prazer reside no que chama de sauacutede Entre os prazeres elege a amizade Por isso o conviacutevio entre os estudiosos de sua doutrina era tatildeo importante a ponto de viverem em uma comunidade nominada de ldquoO Jardimrdquo Portanto de todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida a maior eacute a aquisiccedilatildeo da amizade

Constatamos em nossa pesquisa que Montaigne diverge de Aristoacuteteles quanto agrave origem da amizade poreacutem recorre ao Estagirita para fundamentar a ideia de amizade como amor equitativo ligado agrave concepccedilatildeo de justiccedila19 e igualdade Como vimos anteriormente em tais definiccedilotildees no pensamento de Aristoacuteteles o igual eacute definido pelo termo grego isoacutetes igualdade que eacute correspondente agrave justa medida Mas a principal divergecircncia com Aristoacuteteles eacute expressa por Montaigne quando se refere agrave ldquoorigemrdquo da relaccedilatildeo entre amigos Montaigne afirma que a origem da amizade natildeo se encontra na bondade ou na virtude dos sujeitos mas sim em si mesmo ou seja eacute imanente agrave proacutepria relaccedilatildeo20

Se Montaigne parte como indicamos anteriormente da acepccedilatildeo mais abrangente da palavra amizade ndash cujo contexto acabamos de assinalar ndash eacute no entanto apenas com uma intenccedilatildeo purgativa e criacutetica Pois na verdade a primeira parte de seu texto examinando a tipologia tradicional das formas associativas opera uma reduccedilatildeo tatildeo draacutestica na extensatildeo do conceito que solapa profundamente natildeo soacute as elaboraccedilotildees

19 Vale lembrar que segundo Aristoacuteteles o dikaion justo eacute definido como o isos igual isto eacute uma posiccedilatildeo que recomenda a si mesma a todos sem necessidade de evidecircncia Haja vista que o igual eacute uma mediania de modo que o justo tambeacutem eacute uma espeacutecie de mediania (SILVA 2014 p 99) 20 CARDOSO 1986 p 172

82 Eacutetica e filosofia poliacutetica

humanistas de seu tempo mas tambeacutem a ldquoopiniatildeo dos antigosrdquo (CARDOSO 1986 p 169)

Portanto a posiccedilatildeo de Montaigne eacute divergente do

que afirma Aristoacuteteles

[] A amizade perfeita eacute a existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de excelecircncia moral neste caso cada uma das pessoas quer bem agrave outra de maneira idecircntica porque a outra pessoa eacute boa e elas satildeo boas em si mesmas Entatildeo as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles satildeo amigas no sentido mais amplo pois querem bem por causa da proacutepria natureza dos amigos e natildeo por acidente [] (EN VIII 3 p 176)

Podemos entender entatildeo que ao se referir agrave

amizade Montaigne restringe radicalmente seu significado quanto as outras formas de amizade existentes diferentemente daquelas que os antigos fazem referecircncias tradicionais O ensaiacutesta julga que elas apenas se assemelham com a amizade mas de fato natildeo satildeo Diante desta anaacutelise cabe expor algumas formas de amizade que Montaigne analisa e comenta ora tecendo duras criacuteticas ora concordando parcialmente

Em primeiro lugar vejamos a amizade que tem por motivaccedilatildeo o viacutenculo familiar Existe limitaccedilotildees que impedem familiares de se tornarem amigos A criacutetica montaigniana tem como objetivo atingir e destruir a noccedilatildeo de amizade utilizada para identificar relaccedilotildees de viacutenculo comum devido a sua semelhanccedila entre as relaccedilotildees de viacutenculo natural matrimonial camaradagem e social Ao mostrar essas divergecircncias dentro do conceito de amizade ele natildeo pretende criar um novo designo mas sim reservar o termo para nominar apenas o mais puro viacutenculo entre os homens dentro de uma sociedade Da mesma forma natildeo eacute de seu interesse criar um tratado sobre o tema objetivando sanar as divergecircncias entre as

Amizade em Montaigne 83

definiccedilotildees tatildeo pouco apresentar o caraacuteter normativo da amizade bem como a possibilidade de sua universalizaccedilatildeo Isto natildeo compotildee qualquer pretensatildeo de Montaigne

Ora Montaigne seguindo os passos de Aristoacuteteles natildeo discorda que o homem seja um animal social ao contraacuterio nesta mesma direccedilatildeo reforccedila escrevendo nos ensaios

Natildeo haacute algo a que a natureza pareccedila nos ter encaminhado tanto como para a sociedade E diz Aristoacuteteles que os bons legisladores ocuparam-se mais da amizade que da justiccedila Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma (I 28 275)

Para Montaigne se o homem deseja viver

adequadamente precisa ter amigos pois isto estaacute de acordo com as leis da natureza Assim afirma Sergio Cardoso dizendo que

O amigo nos espelha e nos identifica Por isso talvez Aristoacuteteles ndash que Montaigne acompanha de perto ndash tenha dito na abertura de sua grande dissertaccedilatildeo sobre a amizade que ela ldquoeacute o que haacute de mais necessaacuterio para viver (CARDOSO 1986 p 162)

A amizade seria entatildeo o ldquoviacutenculo social por

excelecircncia pois ela faz do viver em comum uma escolha e natildeo uma necessidaderdquo como apontou Labarriegravere (2003)21 Ainda no mesmo sentido o ensaiacutesta visa extrair

21 LABARRIEgraveRE Jean-Louis Aristoacuteteles verbete inserto In Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral organizado por CANTO-

SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral trad Ana

84 Eacutetica e filosofia poliacutetica

elementos que permitem um entendimento maior dos viacutenculos naturais de relaccedilatildeo do homem Poreacutem diferente de Aristoacuteteles que pontua a amizade no terreno da natureza (ou seja a amizade eacute natural ao ser humano) Montaigne observa que a amizade estaacute no campo da eacutetica das escolhas portanto natildeo estaacute determinado e esclarece sua diferenccedila frente aos laccedilos familiares

Na questatildeo da amizade Montaigne concorda com os filoacutesofos Aristipo22 e Plutarco23 (que o ensaiacutesta tanto admira) quando desconsideram as relaccedilotildees familiares Montaigne eacute fulminante quando afirma que a famiacutelia natildeo promove a amizade tal como ele a concebe Principalmente pela hipoacutetese da plenitude da virtude hiacuteperocheacute24 ou seja a famiacutelia natildeo permite as relaccedilotildees de amizade devida a diferenccedila existente entre seus membros A exemplo disto toma a relaccedilatildeo entre pai e filho afirmando que jamais um pai poderia ser amigo de seu filho a reciacuteproca tambeacutem eacute verdadeira jamais um filho poderia ser amigo de seu pai O que impossibilitaria o desenvolvimento desta relaccedilatildeo De acordo com Montaigne eacute em razatildeo do lsquorespeitorsquo que pais e filhos natildeo podem ser amigos visto que devido a sua posiccedilatildeo de desigualdade os filhos natildeo podem dirigir duras advertecircncias a seu pai como devem sempre fazer ao amigo Assim tendo que as suprimir falharia com a fidelidade a seu amigo Portanto amizade se restringe a este tipo de viacutenculo de modo que entre pais e filhos natildeo existe amizade de que fala nosso autor

Maria Ribeiro-Althoff et alii vol 1 Rio Grande do Sul Editora Unisinos 2003 p 123 22 435 a 356 aC filoacutesofo grego fundador da escola cirenaica que defende o controle sobre o prazer afirmando que o prazer eacute o que daacute sentido agrave vida 23 46 a 126 dC filoacutesofo e historiador grego do periacuteodo greco-romano foi muito influente na cultura ocidental 24 Superioridade respeito consideraccedilatildeo e estima que constituem a famiacutelia

Amizade em Montaigne 85

O princiacutepio do respeito impede a relaccedilatildeo amical entre pai e filho devido ao niacutevel hieraacuterquico dentro da famiacutelia Assim o filho deve se espelhar em seu pai tendo como orientaccedilatildeo a noccedilatildeo de mimesis25 Sobre a questatildeo da relaccedilatildeo de amizade entre pais e filhos Montaigne segue Aristoacuteteles de perto (CARDOSO 1986 p 176) no que diz respeito ao problema da voluntariedade pois os familiares tecircm o mesmo sangue como se fosse um outro ldquoeurdquo desta forma natildeo existe a possiblidade da escolha nestas relaccedilotildees Isto implica em outra limitaccedilatildeo para a amizade entre famiacutelia Natildeo existe amizade de caraacuteter involuntaacuterio ou seja um amigo escolhe o outro e vice-versa voluntariamente livre de obrigaccedilotildees preacute-concebidas

Vale a pena lembrar que foi a pedido de seu pai que Montaigne traduziu a Theacuteologie naturelle de Raymond Sebond publicada em 1487 assim fez para natildeo o desagradar deixando perceptiacutevel seu afeto respeitoso Em que pese o carinho a admiraccedilatildeo e o respeito pela figura paterna o pai de Montaigne natildeo era seu amigo porque natildeo poderia secirc-lo Exatamente porque como jaacute chamamos a atenccedilatildeo a amizade ao contraacuterio do ambiente familiar tem uma conotaccedilatildeo espontacircnea que compreende as duas vontades que se fundem numa soacute Por maior que fosse a afeiccedilatildeo para com seu pai natildeo existiam elementos fundamentais do viacutenculo de amizade Esta eacute arquitetada pela abertura muacutetua sem nenhum tipo de ressentimento ou receio que englobe uma relaccedilatildeo de verticalidade como eacute o caso do respeito de filho Horizontalidade na amizade implica em que um confie no outro de maneira reciacuteproca e juntos onde por meio do diaacutelogo constituam os elementos que compotildeem os seus deveres muacutetuos da amizade tais como os da correccedilatildeo e da troca de experiecircncias Ou numa palavra amor muacutetuo

25 A arte de imitar termo grego

86 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Desse modo eacute o diaacutelogo que sustenta a amizade

e permite a consciecircncia da vontade do outro a comunicaccedilatildeo eacute fundamental para a composiccedilatildeo do viacutenculo de amizade26 pois ela eacute quem alimenta e fornece subsiacutedios para o fortalecimento deste viacutenculo amical sendo que ao dialogar discute-se ideias apresenta-se ao outro aquilo que sente em seu interior sem reservas ou receio livre de constrangimento tendo por objetivo ser entendido pelo outro Dentro da famiacutelia isso seria impossiacutevel aliaacutes quantas vezes pais se tornam opressores de ideias natildeo permitindo que os filhos expressem o que pensam dos atos por eles cometidos O respeito na verticalidade impede uma intimidade acentuada entre os membros da famiacutelia e os torna inconveniente Obviamente nos referimos agrave verticalidade e agrave horizontalidade de relaccedilotildees no sentido de procurar distinguir de que tipo de respeito estamos falando Quando Montaigne refere-se ao lsquorespeito pelo pairsquo como uma dificuldade para a amizade natildeo eacute que natildeo deva haver respeito em todas as relaccedilotildees humanas Ocorre apenas que Montaigne chama a nossa atenccedilatildeo pelo fato de que o respeito que se tem pelo pai eacute diferente daquele que se tem pelo amigo

A comunicaccedilatildeo sincera eacute uma das primeiras incumbecircncias da amizade o aconselhamento eacute o caminho aberto entre as pessoas para se advertir dar avisos formular censuras visando sempre o crescimento muacutetuo bem como o estreitamento do viacutenculo Como o amigo eacute aquele capaz de advertir Montaigne chama a atenccedilatildeo para as relaccedilotildees que alguns chamam de amizade poreacutem satildeo carregadas de palavras suaves superficiais elogios exagerados e benevolecircncias banais Montaigne estaacute afinado com Ciacutecero quando este escreve

Portanto advertir e ser advertido eacute proacuteprio da amizade verdadeira desde que isso seja feito com franqueza e

26 A amizade alimenta-se de comunicaccedilatildeo (I 28 276)

Amizade em Montaigne 87

afabilidade e recebido com paciecircncia e sem ressentimento Estejamos persuadidos de que na amizade nada eacute pior que a adulaccedilatildeo a lisonja a bajulaccedilatildeo sim podemos multiplicar os nomes como quisermos mas eacute preciso condenar o viacutecio dessas criaturas friacutevolas e falazes que sempre falam para agradar nunca para dizer a verdade (CIacuteCERO 2012 p 75)

As pessoas incapazes de dizer a verdade natildeo

estatildeo propensas a bons relacionamentos estas tecircm como objetivo o interesse pessoal e o proacuteprio prazer vivem camufladas pautadas na individualidade de seus interesses Ciacutecero adverte ainda formulando a primeira lei da amizade afirmando que o amigo deve ser prudente usar francamente sua opiniatildeo repreender com severidade quando necessaacuterio e que seja capaz de obedecer agraves orientaccedilotildees do outro com paciecircncia e sem ressentimento

Retomemos que haacute uma outra criacutetica montaigniana a respeito da amizade entre familiares a que tem por foco os irmatildeos Tambeacutem nesta situaccedilatildeo o obstaacuteculo eacute o mesmo que a dos pais para com os filhos a condiccedilatildeo de desigualdade e a falta de escolha entre os sujeitos Ningueacutem escolhe os proacuteprios irmatildeos Para tanto faz como se fossem suas as palavras de Aristipo e Plutarco quando

ldquopressionado sobre a afeiccedilatildeo que devia a seus filhos por terem saiacutedo dele pocircs-se a cuspir dizendo que aquilo tambeacutem saiacutera delerdquo e Plutarco que queria induzir a entender-se bem com o irmatildeo respondeu que lsquonatildeo tinha maior consideraccedilatildeo por ele soacute porque saiu do mesmo buracorsquo (I 28 276)

Montaigne argumenta que aquilo ao qual se daacute o

nome de lsquoamizadersquo e de lsquoamigorsquo verdadeiramente natildeo merece tal nome quando se trata de ligaccedilotildees familiares O ensaiacutesta parece entender que existe uma divergecircncia

88 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na concepccedilatildeo de viacutenculo familiar e de amizade pois amizade desempenha um papel diferente da famiacutelia na sociedade Afinal procuramos mostrar que conforme Montaigne a desigualdade entre os familiares bem como o respeito e a impossibilidade de escolha inviabilizam a amizade com viacutenculo familiar visto que impotildee limites aos quais a amizade natildeo suporta Acrescenta Birchal

Em relaccedilatildeo aos viacutenculos naturais como os laccedilos de paternidade e filiaccedilatildeo a amizade eacute superior pois escolhida (e natildeo determinada pela natureza) e fundada numa igualdade (ao contraacuterio da hierarquia entre pai e filho que impede a plena comunicaccedilatildeo) (BIRCHAL 2000 p 292)

Em prosseguimento Michel de Montaigne natildeo

deixa de observar que tambeacutem se associa a amizade no casamento ou na relaccedilatildeo existente entre um homem e uma mulher Disso Montaigne discorda uma vez que para ele o amor conjugal de um casal natildeo pode ser entendido como relaccedilatildeo de amizade Conclui que o marido natildeo eacute amigo de sua mulher Acompanhando Aristoacuteteles Montaigne faz questatildeo de distinguir a amizade daquele sentimento passional que existe para com as mulheres Ainda que reconheccedila que a escolha por uma mulher e natildeo por outra seja proveniente do livre arbiacutetrio (diferente do caso de irmatildeos) a paixatildeo eacute um sentimento arriscado inconstante e fraacutegil Se o marido se tornar um amigo da esposa a relaccedilatildeo corporal apaixonada esfria Nesta questatildeo continuemos a seguir Montaigne em sua escrita sobre o valor da amizade

Na amizade eacute um calor geral e universal temperado e uniforme em tudo um calor constante e sereno todo doccedilura e gentileza que nada tem de rude e pungente Tatildeo logo entra nos termos da amizade isto eacute na concordacircncia das vontades o amor se dissipa ou se enfraquece A fruiccedilatildeo arruiacutena-o pois sua meta eacute corporal e sujeita agrave saciedade A amizade ao contraacuterio

Amizade em Montaigne 89

eacute desfrutada na medida em que eacute desejada e apenas na fruiccedilatildeo se cria se alimenta e cresce porque eacute espiritual e a alma se aprimora com o uso (I 28 277278)

Acrescenta Montaigne que sobre a amizade no

relacionamento conjugal vale a pena observar que o caraacuteter voluntaacuterio se extingue apenas em sua adesatildeo de maneira que passando isto a liberdade se esvai Nosso autor chama a atenccedilatildeo ainda na questatildeo conjugal que esta pode adquirir ateacute uma caracteriacutestica comercial sobretudo o caso daqueles matrimocircnios engendrados para aumentar o patrimocircnio e a riqueza Acrescente ainda que na eacutepoca de Montaigne era muito difiacutecil a separaccedilatildeo dos cocircnjuges Ele brinca dizendo que o casamento somente tem lsquoporta de entradarsquo Claro tais fatos satildeo adversos aos interesses da amizade que soacute pode ter por fim ela mesma e por isso nela haacute liberdade tanto para adesatildeo quanto para rescisatildeo desse relacionamento (diferente do casamento)

Desta forma acabamos de ver que o ensaiacutesta reforccedila que a finalidade da amizade deve ser ela mesma contrapondo-se ao casamento pois neste podemos notar objetivos adversos agrave sua finalidade O lsquobom casamentorsquo seria aquele que se aproxima da amizade Entatildeo e se nossa amante pudesse ser nossa amiga Respondendo a esta indagaccedilatildeo o ensaiacutesta considera que se por acaso pudeacutessemos ter este relacionamento de maneira livre e voluntaacuteria com nosso cocircnjuge seria sem duacutevida a mais plena e completa amizade jaacute experimentada pela humanidade Eacute interessante a afirmaccedilatildeo do ensaiacutesta quando diz o bom casamento eacute aquele que se assemelha com a amizade27 No entanto segundo Montaigne natildeo existem registros de que isso possa ter acontecido e pelo consenso dos antigos isto estaacute longe de acontecer

27 III 5 99

90 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Logo em seguida a esta passagem dos Ensaios

Montaigne discute se eacute possiacutevel uma relaccedilatildeo de amizade no caso da pederastia antiga grega Comeccedila dizendo que a pederastia eacute lsquoabominada pelos costumes de sua eacutepocarsquo Como ceacutetico ele acata os costumes mas nem sempre Montaigne concorda na vida privada com os costumes Note-se que ele se refere ao fato de que a pederastia eacute lsquoabominado por nossos costumesrsquo poreacutem natildeo diz que ele pessoalmente a condena Natildeo eacute nosso propoacutesito aprofundar este tema mas Montaigne parece rechaccedilar a pederastia grega natildeo por uma questatildeo moral mas por natildeo ser uma relaccedilatildeo entre iguais (diferenccedila de idade de classe de ofiacutecio) Mas no tocante agrave pederastia entre iguais Montaigne natildeo se deteacutem a examinar Assim sendo neste caso Montaigne critica o viacutenculo estabelecido entre pessoas com disparidade de idade e diferenccedila de objetivos Portanto podemos entender porque para Montaigne tambeacutem temos obstaacuteculos na consecuccedilatildeo da amizade no caso da pederastia antiga grega e mesmo no relacionamento entre pessoas do mesmo gecircnero porque o fim da amizade natildeo estaacute nela mesma mas sim em um sentimento avassalador de paixatildeo Eacute uma relaccedilatildeo humana mas natildeo cumpre as exigecircncias estabelecidas pela amizade a que Montaigne se refere

E aquela outra licenciosidade grega eacute legitimamente abominada por nossos costumes Entretanto como segundo o uso ela comportava uma tatildeo necessaacuteria disparidade de idades e diferenccedila de benefiacutecios entre os amantes tampouco atendia suficientemente agrave perfeita uniatildeo e concordacircncia que aqui exigimos (I 28 279)

Logo em seguida Montaigne debatendo sempre

acerca da amizade usa os questionamentos de Ciacutecero agrave praacutetica da pederastia problematizando sobre a possibilidade de neste tipo de relaccedilatildeo amorosa haver

Amizade em Montaigne 91

amizade Pergunta ldquoo que seria de fato este amor de amizade De onde viria que ele natildeo se ligue nem a um jovem feio nem a um anciatildeo belordquo Respondendo parcialmente agrave questatildeo conclui que ldquotudo o que se pode apresentar em favor da academia eacute dizer que se tratava de um amor que terminava em amizaderdquo (I 28 280) Sugere assim que tanto o casamento quanto a pederastia podem terminar em amizade Ocorre que Montaigne suscita perguntas ateacute mesmo quando procura respondecirc-las Isto posto cabe agora analisar a diferenccedila da amizade para com os viacutenculos comuns na sociedade

Nesta ideia de amizade frouxa novamente a leitura de Montaigne aproxima-se de Aristoacuteteles visto que para o Estagirita as amizades comuns equivalem a relaccedilotildees de camaradagem Nestas relaccedilotildees ldquoas amizades deste tipo satildeo apenas acidentais pois natildeo eacute por ser quem ela eacute que a pessoa eacute amada mas por proporcionar agrave outra algum proveito ou prazerrdquo (EN VII 4 p 177) Sendo assim amizade comum eacute aquela em que o interesse estaacute nas vantagens e as accedilotildees praticadas de um para com o outro fundamentam-se no dever soacute em si mesmo e natildeo satildeo motivadas pelo bem que proporcionam ao outro Portanto natildeo eacute uma relaccedilatildeo de igualdade pois o dever leva ao sentimento de obrigaccedilatildeo com o outro em busca de um favor do reconhecimento ou seja trazendo para a nossa expressatildeo popular ldquoo que eu vou ganhar em troca distordquo accedilotildees que visam ao lucro ou favorecimento

Neste mesmo rumo Montaigne clama para que sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie natildeo seja colocada na mesma linha das relaccedilotildees de camaradagem pois nestas temos que andar sempre atentos cautelosos devido a desconfianccedila nas intenccedilotildees do outro deste modo natildeo devemos deixar de ter prudecircncia Se na amizade verdadeira haacute uma entrega ao amigo por ela mesma jaacute

92 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na amizade comum eacute preciso preservar-se porque natildeo eacute por ela mesma

Que natildeo me coloquem na mesma linha essas outras amizades comuns tenho tanto conhecimento delas como qualquer outro e das mais perfeitas em seu gecircnero mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p283)

Em outras palavras as amizades comuns tecircm

como finalidade o prazer ou a utilidade elementos que natildeo deixam de existir em nenhuma espeacutecie de amizade A diferenccedila eacute que no viacutenculo de amizade que Montaigne descreve este natildeo eacute o fim uacuteltimo da amizade De qualquer forma amizade soacute existe entre pessoas boas e ser uacutetil e agradaacutevel satildeo caracteriacutesticas de bons cidadatildeos Embora sejam elas fundamentais a amizade pura natildeo se esgota quando recebe favor do outro pois este deseja o bem para si tanto para com o outro Neste sentido compreende Aristoacuteteles (ao qual Montaigne de perto como empreacutestimo para sua proacutepria concepccedilatildeo) que

a amizade por prazer tem alguma semelhanccedila com esta espeacutecie pois pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente agradaacuteveis Acontece o mesmo em relaccedilatildeo agrave amizade por interesse pois as pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente uacuteteis (EN VIII 6 p 179)

A questatildeo que distingue os tipos de amizade

como se vecirc eacute o fim almejado Na perspectiva do ensaiacutesta a definiccedilatildeo

aristoteacutelica de uma alma em dois corpos eacute a justificativa para uma fusatildeo das vontades Por esta razatildeo Montaigne descreve sua experiecircncia de amizade com La Boeacutetie como sendo onde este princiacutepio estaacute presente onde ldquotudo eacute verdadeiramente comum entre elesrdquo Nesta

Amizade em Montaigne 93

amizade existe uma harmonia uma uniatildeo completa e sem reservas em uma palavra perfeita

Nesse nobre comeacutercio os serviccedilos e benefiacutecios que alimentam as outras amizades nem sequer merecem ser levados em conta a causa eacute essa fusatildeo plena de nossas vontades Pois assim como a amizade que tenho para comigo natildeo recebe aumento pelo socorro que me presto na necessidade natildeo importa o que digam os estoacuteicos e como natildeo me sou grato pelo serviccedilo que faccedilo assim tambeacutem a uniatildeo de tais amigos sendo realmente perfeita faz que eles percam a percepccedilatildeo desses deveres e odeiem e eliminem dentre eles estas palavras de divisatildeo e diferenccedila benefiacutecio obrigaccedilatildeo reconhecimento pedido agradecimento e suas semelhanccedilas Como tudo verdadeiramente comum entre eles ndash vontades pensamentos julgamentos bens mulheres filhos honra e vida ndash e sua harmonia eacute de uma uacutenica alma em dois corpos segundo a muito adequada definiccedilatildeo de Aristoacuteteles (I 28 p 284)

Na amizade perfeita tudo eacute conhecido pelo

amigo seus pensamentos suas intenccedilotildees e julgamentos Montaigne afirma que sua alma e a de La Boeacutetie andavam tatildeo juntas quanto possiacutevel por este motivo a comunhatildeo de ideias e experiecircncias era concebida com a mesma convicccedilatildeo da afeiccedilatildeo que sentiam um pelo outro De modo que a admiraccedilatildeo reciproca eacute complementada pela correspondecircncia do gosto e compartilhada pelo diaacutelogo que alimenta a amizade De modo que lsquocom certezarsquo as intenccedilotildees do amigo de Montaigne eram conhecidas por ele bem como seus julgamentos por isso ele escreve que de bom grado confiaria mais no amigo do que em si mesmo

A amizade verdadeira eacute uma experiecircncia de singularidade por isso Montaigne considera uma raridade a amizade que teve com La Boeacutetie Montaigne julga que esta amizade eacute incomparaacutevel devido a sua integridade e

94 Eacutetica e filosofia poliacutetica

dedicaccedilatildeo extrema sobre a qual natildeo se encontra registros de uma amizade tatildeo perfeita na histoacuteria e muito menos entre os contemporacircneos Reforccedila e a eleva ao mais alto grau da perfeiccedilatildeo humana pois a virtude da amizade eacute bela e perfeita quando sua finalidade eacute ela mesma Desta forma existe um caraacuteter de completude neste tipo de amizade onde um completa o outro numa harmonia incomparaacutevel Vejamos isso nas proacuteprias palavras do ensaiacutesta ao escrever sobre os primeiros encontros com o Amigo

Encaminhando assim essa amizade que enquanto Deus quis alimentamos entre noacutes tatildeo integra e tatildeo perfeita que sem a menor duacutevida natildeo se lecirc sobre outras iguais e entre nossos contemporacircneos natildeo se vecirc o menor indicio de sua praacutetica Para construiacute-la satildeo necessaacuterias tantas circunstancias que eacute muito se afortuna o conseguir uma vez a cada trecircs seacuteculos (I 28 p 275)

Aleacutem disso a uniatildeo dos amigos eacute de grande

intensidade ao ponto de consolidar esta bela alianccedila com um nobre tratamento chamando-o de irmatildeo ldquoNa verdade o nome irmatildeo eacute um nome belo e cheio de deleccedilatildeo e por esse motivo noacutes dois ele e eu usamo-lo em nossa alianccedilardquo (I 28 276) Starobinski lembra que La Boeacutetie ao deixar sua biblioteca e seus papeacuteis de heranccedila para Montaigne escreve uma carta onde expressa ao amigo seu desejo e chama-o de irmatildeo

E depois voltando seu discurso para mim Meu irmatildeo disse ele que amo tatildeo afetuosamente e que escolhera entre tantos homens para renovar convosco essa virtuosa e sincera amizade cujo uso estaacute pelos viacutecios haacute tanto tempo afastado de noacutes que dele natildeo restam senatildeo alguns velhos vestiacutegios na memoacuteria da Antiguidade Suplico-vos como sinal de minha afeiccedilatildeo por voacutes que aceiteis ser o sucessor de minha biblioteca e de meus livros que vos dou (apud STAROBINSKI 1992 p 60)

Amizade em Montaigne 95

Sem duacutevidas esta atitude de La Boeacutetie eacute uma

marca concreta da amizade intensa e verdadeira para com Montaigne Deixar a biblioteca como heranccedila tem um valor que vai muito aleacutem dos bens materiais pois estava ali em seus papeacuteis parte de Montaigne bem como de suas ideias compartilhadas com o amigo Eacute um ato que expressa confianccedila imensuraacutevel e para retribuir agrave altura esta mesma Montaigne insere nos ensaios a figura de seu amigo de forma indireta na redaccedilatildeo dos textos aleacutem de dedicar o escrito da Amizade onde se esforccedila para mostrar a constituiccedilatildeo desta amizade perfeita e a diferenciaacute-la das demais Observa Cardoso

Montaigne esquadrinha toda a gama dos viacutenculos associativos e interroga a natureza destes laccedilos diversos que atamos homens entre si (o estatuto das diversas philiai portanto jaacute que para os antigos esta palavra designa tambeacutem mais amplamente todas as formas de afinidade entre os seres e de suas associaccedilotildees) Ao mesmo tempo ele como que hierarquiza esses viacutenculos pelo grau da alianccedila que propiciam pela sua consistecircncia e solidez e instala no topo da classificaccedilatildeo reinando soberana a verdadeira amizade a amizade acabada ndash teacuteleacuteia philia dissera Aristoacuteteles ndash ldquouniatildeo perfeitardquo sem brechas ou fissuras ldquoDivina ligaccedilatildeordquo ldquoa coisa mais uma e unidardquo atada pelos ldquonoacutes serrados e duraacuteveisrdquo de uma ldquocostura santardquo fusatildeo das almas satildeo as expressotildees de Montaigne para essa amizade Amizade que ele afirma ser o estofo da alianccedila que o associara a Etienne de La Boeacutetie (CARDOSO 1987 p 165)

Uma expressatildeo marcante neste ensaio da

Amizade eacute a de ldquofusatildeo das almasrdquo que provem de uma forccedila28 arrebatadora ldquoinexplicaacutevel e fatalrdquo que segundo Montaigne foi ldquomediadora dessa uniatildeordquo (I 28 281) ndash

28 Na nota 22 da p 281 esta forccedila eacute chamada de lsquodestinorsquo

96 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uniatildeo entre Montaigne e La Boeacutetie Avalia que mesmo sem saber como explicar sabe-se que esta forccedila domina as vontades de maneira a mesclar a tal ponto que natildeo existe maneiras de identificaacute-las separadamente as almas ldquose mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniurdquo (I 28 281) Todavia esta fusatildeo natildeo a anula pessoas esta amizade soacute pode existir porque era Montaigne e porque era La Boeacutetie Natildeo se perde a individualidade na amizade perfeita pois um eacute o complemento do outro

A lsquoamizade perfeitarsquo eacute indivisiacutevel e de completude ldquoCada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhes resta para distribuir alhuresrdquo (I 28 285) diferente das lsquoamizades superficiaisrsquo e das amizades comuns Na amizade perfeita soacute existe espaccedilo para dois iguais (equivalente a uma alma) Assim aquele que pretende ampliar a experiecircncia da amizade perfeita entra em um dilema paradoxal Seguindo as questotildees postas no texto por Montaigne exatamente porque a amizade eacute indivisiacutevel e de completude torna-se clara a dificuldade em se ter muitos amigos ldquose dois pedissem para ser socorridos qual acudiriacuteeis Se solicitassem de voacutes serviccedilos opostos que ordem encontrariacuteeis nisso29 Se um confiasse ao vosso silecircncio algo que ao outro fosse uacutetil saber como vos desenredariacuteeis dissordquo (I 28 p 285286) Portanto quanto agrave amizade perfeita eacute impossiacutevel que seja dupla Aleacutem disto duplicar-se jaacute eacute uma daacutediva inigualaacutevel e aqueles que dizem querer estendecirc-la para mais um ainda natildeo conhecem a grandeza da amizade perfeita

Montaigne usa os exemplos antigos e suas experiecircncias para fundar suas opiniotildees assinalando que

29 Qual deles atenderiacuteeis em primeiro lugar Ou talvez como resolveriacuteeis essa dificuldade

Amizade em Montaigne 97

natildeo tem por objetivo ensinar o que se deve fazer30 Este tipo de amizade natildeo tem preccedilo A propoacutesito disto o ensaiacutesta comenta um exemplo de Eudacircmidas

Em suma satildeo fatos inimaginaacuteveis para quem natildeo experimentou e que me faz elogiar extremamente a resposta daquele jovem soldado a Ciro que lhe perguntava por quanto ele queria dar um cavalo com o qual acabara de ganhar o precircmio da corrida e se queria trocaacute-lo por um reino ldquoPor certo que natildeo meu senhor mas de muito bom grado o entregaria para obter um amigo se encontrasse homem digno de tal alianccedilardquo (I 28 p 286)

Segundo Starobinski com a morte de La Boeacutetie a

vivecircncia dele seraacute suprida pela atitude de Montaigne de maneira que ele mesmo torna-se objeto de uma representaccedilatildeo no ato da escrita ou seja doravante Montaigne seraacute o objeto de sua investigaccedilatildeo Assim

o ato de observar e de representar constitui ele proacuteprio o objeto de uma representaccedilatildeo O registro nos mostraratildeo pintor no trabalho diante do speculum e da tela em que figura um autorretrato em vias de execuccedilatildeo (STAROBINSKI 1992 p 36) Desta forma a morte do Amigo e a escrita tecircm

conjunturas fundamentais pois existe a possibilidade de eternizar por meio da escrita a experiecircncia vivida e ao mesmo tempo revivecirc-las ao passo que as registra trazendo na memoacuteria a presenccedila daquele que se foi

E por uacuteltimo analisamos que a amizade enquanto experiecircncia de si eacute marcada pela alteridade o que implica supor que o outro eacute constitutivo da identidade do eu De acordo com Starobinski La Boeacutetie era o uacutenico que conhecia Montaigne por completo Por isso ele eacute o

30 ldquoNatildeo me ocupo de dizer ao mundo o que ele deve fazer ndash outros ocupam suficientemente - e sim o que faccedilo nelerdquo (I 28 287)

98 Eacutetica e filosofia poliacutetica

guardiatildeo da sua mais pura imagem do filoacutesofo uma vez que

[] Ele era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1992 p 45)

Em Da Vanidade Montaigne discorre acerca da

amizade com La Boeacutetie Escreve que Na verdadeira amizade em que sou experimentado dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim Natildeo soacute prefiro fazer-lhe bem a que ele me faccedila mas ainda que ele o faccedila a si proacuteprio a que me faccedila faz-me ele entatildeo o maior bem possiacutevel quando a si o faz E se a sua ausecircncia lhe for quer prazenteira quer uacutetil torna-se-me ela bem mais agradaacutevel que a sua presenccedila e de resto natildeo eacute propriamente ausecircncia se haacute meios de comunicarmos um com o outro Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento Em nos separando para mim e eu para ele mais plenamente que se ele estivesse presente Uma parte de cada um de noacutes permanecia desocupada quando estaacutevamos juntos fundiacuteamo-nos num soacute A separaccedilatildeo espacial tornava mais rica a uniatildeo das nossas vontades A insaciaacutevel fome da presenccedila fiacutesica denuncia uma certa fraqueza na fruiccedilatildeo muacutetua das almas (III 9 p 272)

A escrita de Montaigne tem uma dimensatildeo muito

pessoal Busca nos haacutebitos e costumes questotildees referentes agrave humanidade como um todo Quando a razatildeo lhe falta Montaigne se apoia na experiecircncia Eacute verdade que tais bases satildeo fraacutegeis (razatildeo costume experiecircncia) poreacutem tudo o que temos eacute lsquoo que aparecersquo Desse modo ele utiliza como base de seu estudo acerca da amizade a relaccedilatildeo que manteve com La Boeacutetie Inerente agrave temaacutetica da amizade haacute uma perspectiva poliacutetica visto que para Montaigne a inspeccedilatildeo que respalda o juiacutezo relativo deve

Amizade em Montaigne 99

ultrapassar a experiecircncia de si e alcanccedilar a experiecircncia do coletivo e da opiniatildeo puacuteblica31 Ou seja para ele a ideia de humanidade se coloca acima da ideia de paacutetria e isso implica em que a amizade desempenha papel central nisso na medida em que declara a amizade mais alta aquela que dedica ao gecircnero humano Por todas estas razotildees nosso autor descreve a amizade pura e desinteressada como o fundamento de toda a sabedoria

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Satildeo estas as razotildees de toda a argumentaccedilatildeo que

enfim se depreende da leitura de Montaigne natildeo pode existir uma amizade imposta A amizade compreende um amor equitativo em outras palavras justo e igual Na amizade nada eacute privado do amigo principalmente a vontade que eacute comum desde sua origem e inclusive a proacutepria forma de enxergar a vida O desiacutegnio eacute o mesmo ser apenas uma alma em dois corpos Este pensamento se refere agrave uniatildeo das almas num soacute corpo como diziacuteamos Uma uniatildeo na qual se perde o privado todavia natildeo se perde a individualidade Esta eacute reconhecida pelo exerciacutecio da descoberta de si mesmo no outro Uma descoberta ininterrupta que inclusive vai aleacutem da morte pelo fato de que Montaigne a registra em sua escrita tornando sempre viva a experiecircncia

Viver verdadeiramente eacute realizar uma experiecircncia de amizade que na verdade eacute a descoberta da consciecircncia e da humanidade do proacuteprio lsquoeu como escreve Birchal (2000) Quem nunca teve um amigo teraacute vivido verdadeiramente Por isso a metaacutefora do espelho trazida por Starobinski eacute muito adequada visto que aquilo que o homem eacute consiste na sua proacutepria existecircncia Os atos refletem o que cada ser humano traz de tal sorte

31 CONCEICcedilAtildeO 2014

100 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que o amigo eacute capaz de enxergar-nos nesse espelho e nos decifrar Conforme Seacutergio Cardoso

desejando pois pela sua virtude a proacutepria vida e fazendo-se a vida do amigo igualmente pela virtude semelhante agrave sua o saacutebio a deseja tambeacutem Os amigos se aproximam portanto por meio da unidade da virtude e do Bem (CARDOSO 1987 p 186)

Uma vez que o proacuteprio Montaigne parece nos

querer deixar questotildees em aberto em forma de problema para refletirmos ndash como faz com frequecircncia nos Ensaios ndash talvez seja melhor que tenhamos em matildeos a contextualizaccedilatildeo de sua maneira de pensar e percebermos que o filoacutesofo estaacute aleacutem de seu tempo Eacute importante que natildeo busquemos restringir a leitura de um texto tatildeo rico e tatildeo denso dentro de um esquema que se apresente como mais coerente ou sistemaacutetico pois Os Ensaios satildeo registro de uma tensatildeo e de movimento portanto assistemaacutetico e fluido O problema do ceticismo bem como o da Amizade satildeo de grande importacircncia para a histoacuteria da filosofia e ateacute mesmo para nossos proacuteprios modos particulares de ver o mundo pode ser mais bem aproveitado se natildeo o limitarmos e respeitarmos sua complexidade pois falar sobre a escrita de Montaigne envolve muitos paradoxos Tentar aprisionaacute-lo numa explicaccedilatildeo para uma questatildeo de tamanha abrangecircncia e que talvez seja irrespondiacutevel (no sentido de ser uma questatildeo permanentemente aberta) pode natildeo ser o melhor modo de se tratar o tema da amizade e do ceticismo em um autor que de modo geral tanto adverte contra julgamentos absolutos precipitados e contra a estreiteza de pensamento

A amizade assegura portanto a existecircncia de si mesmo visto que o outro no caso La Boeacutetie eacute uma parte de Montaigne Desse modo a amizade adquire um ideal humanista uma vez que o outro revela o ldquoeurdquo de forma a garantir a sua presenccedila no mundo Com a morte do

Amizade em Montaigne 101

Amigo resta ao autor apenas o ato de redigir para que natildeo morra o restante de si mesmo No entanto aquilo que era a garantia de si mesmo antes da morte do amigo agora com a perda dele torna um ldquoeurdquo em movimento que busca constantemente a si mesmo Acontecendo a sobrevivecircncia do ldquoeurdquo por meio da escrita

Vale dizer que Montaigne tem como base de pesquisa o seu viver e tem como referecircncia ele mesmo bem como a leitura dos textos antigos Portanto trata-se de um autor que natildeo se propotildee escrever um manual a respeito da amizade ou do comportamento humano mas quer apenas apresentar reflexotildees resultantes de sua experiecircncia Segundo Cardoso

soacute aqui chegamos pois propriamente ao essai registro do proacuteprio autor autorretrato expressatildeo de si mesmo ndash gestos gostos opiniotildees reflexotildees ndash ensaios de uma vida (CARDOSO 1992 p 13)

Por fim

eacute indispensaacutevel a amizade para que haja a felicidade Natildeo obstante a morte do amigo essa natildeo seraacute apenas motivo de melancolia mas momento de honra por intermeacutedio da memoacuteria viva da uniatildeo entre eles visto que dividiam e partilhavam tudo (SILVA 2010 p 131)

A dinacircmica da relaccedilatildeo de amizade perfeita natildeo

tem fim com a morte de La Boeacutetie pois recorrendo agrave escrita a fluidez de seu pensamento toma outra dimensatildeo na medida em que a escrita revela uma vivecircncia diferente da amizade vivida

E finalmente vale ressaltar ainda que em Montaigne ldquoencontramos mais o paradoxo e menos o repousordquo (CONCEICcedilAtildeO 2015 p 27) ou seja a leitura dos Ensaios nos provoca mais indagaccedilotildees do que nos daacute respostas prontas

102 Eacutetica e filosofia poliacutetica

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Livro IX Coleccedilatildeo Os Pensadores Editora Nova Cultural Ltda Satildeo Paulo 1996

______ Eacutetica a Nicocircmacos Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

______ Eacutetica a Nicocircmaco Trad Leonel Vallandro e Gerd Bornhein da versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica Trad br Eudoro de Souza Coleccedilatildeo Os Pensadores Volume II Satildeo Paulo Abril Cultural 1979

______ Poliacutetica Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1997

BIGNOTTO N Montaigne Renascentista Kriterion n 86 p 41 1992

BIRCHAL T Montaigne e seus duplos Elementos para uma histoacuteria da subjetividade 2000 Tese (Doutorado) - Universidade de Satildeo Paulo 2000

CARDOSO Seacutergio Villey e Starobinski duas interpretaccedilotildees exemplares sobre a Gecircnese dos Ensaios Kriterion Belo Horizonte v 33 n 86 p 9-28 1992

______ Os sentidos da Paixatildeo Texto ldquoPaixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaignerdquo Companhia das Letras Satildeo Paulo 1986

______ [et al] Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987 p 159-194

COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo de Eduardo Brandatildeo 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2011

Amizade em Montaigne 103

______ Uma feacute um Rei uma Lei Anexo ao Relatoacuterio sd

______ O homem um homem do humanismo renascentista a Michel de Montaigne In Perturbador Mundo Novo Ed Escuta Satildeo Paulo 1992

______ Paixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaigne In NOVAES A (Org) Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1995 p 159-194

______ A crise da razatildeo poliacutetica na Franccedila das guerras de religiatildeo In A Crise da Razatildeo Org Adauto Novaes Satildeo Paulo Cia das letras 1996 p 173

CONCEICcedilAtildeO Gilmar H Montaigne e a Poliacutetica EDUNIOESTE Cascavel 2014

COSTA LIMA L Limites da Voz (Montaigne Schlegel Kafka) 2ordf ed revisada Rio de Janeiro Topbooks 2005

CIacuteCERO Marcos Tulio Da Amizade Trad Gilson Cesar Cardoso De Souza Wmf Martinsfontes Satildeo Paulo 2012

EVA Luiz Antonio Alves Montaigne e o Ceticismo na Apologia de Raymond Sebond a Natureza Dialeacutetica da Criacutetica agrave Vaidade In O que nos faz pensar Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio novembro de 1994 n 8

______ O Ensaio como Ceticismo Manuscrito Unicamp 2001

______ O Fideismo ceacutetico de Montaigne 1947 Kriterion Revista de filosofia v I Belo Horizonte

EMPIacuteRICO Sexto Outlines of Pyrrhonism (HP) In BURY R G (Ed) Sextus Empiricus Cambridge

104 Eacutetica e filosofia poliacutetica

London Harvard University Press William Heinemann 1987 v I (Loeb Classical Library ndeg 273)

______ Outlines of Pyrrhonism Trad Para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

______ Esbozos Pirrocircnicos Madrid Editorial Gredos 1993

JAPIASSUacute Hilton MARCONDES Danilo Dicionaacuterio Baacutesico de Filosofia 5ed Rio de Janeiro Zahar 2008

LA BOEacuteTIE E Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria Trad Laymert Garcia dos Santos Ed Marilena Chauiacute 2 ed Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1982 (Col Elogio da Filosofia)

LACOUTURE Jean Montaigne a cavalo Trad F Rangel Rio de Janeiro Record 1998

MILLIET Sergio Prefaacutecio aos Ensaios de Montaigne Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Ed Globo 1961

MONTAIGNE Journal de voyage en Italie par La Suisse amp lrsquoAllemagne In Œuvres complegraveetes Paris Gallimard 1962 (Bibliothegraveque de La Pleacuteiade)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro II Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek AbiacutelioSatildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro III Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

Amizade em Montaigne 105

MONTAIGNE Michel de Apologie de Raimond Sebond introduction de Samuel Sylvestre de Sacy Collection Ideacutees NRF France Eacuteditions Gallimard 1967

EPICURO Maacuteximas e Sentenccedilas Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

SILVA Nelson Maria Brechoacute da A Amizade em Montaigne Dissertaccedilatildeo de Mestrado- Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciecircncias 2010

STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Traduccedilatildeo de Maria Luacutecia Machado SatildeoPaulo Cia da Letras 1992

TOURNON Andreacute Montaigne Satildeo Paulo Discurso 2004

THEOBALDO Maria Cristina Sobre o ldquoDa educaccedilatildeo das crianccedilasrdquo a nova maneira De Montaigne Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2008

VASCONCELOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 (Paideacuteia)

VILLEY Pierre Os Ensaios de Montaigne Montaigne Ensaios Livro I Traduccedilatildeo Prefaacutecio e notas de Sergio Milliet Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Editora Globo 1961

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

POPKIN Richard H The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza Berkeley Los Angeles London University of California Press 1979

106 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= IV =

O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O

CAMINHO DA FILOSOFIA

Elissa Gabriela Fernandes Sanches 41 INTRODUCcedilAtildeO

De seu primeiro contato e leitura dos escritos de

Ciacutecero ndash especificamente da obra ldquoHortecircnsiordquo ndash Agostinho despertou para a vida filosoacutefica enquanto busca da sabedoria em si proacuteprio Em uma trajetoacuteria de vida marcada por grandes descontinuidades ele era constantemente perturbado pela duacutevida vivida como anguacutestia Tais indagaccedilotildees o motivaram a uma interminaacutevel busca por respostas e diferentes foram os resultados a que chegou Natildeo obstante o pensador patriacutestico se inseriu em diversos paradoxos e foi atormentado pelas proacuteprias tensotildees que encontrava na diaphonia (διαφονία) dos fenocircmenos Em um primeiro momento seus questionamentos o obrigaram a abandonar a seita maniqueiacutesta agrave qual era afiliado e o inseriram em um percurso ceacutetico de caraacuteter acadecircmico que afirmava a impossibilidade de se conhecer a verdade Tal caminhada levou Agostinho agrave conversatildeo ao Cristianismo pouco antes de 386 dC ano em que escreve sua primeira obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo com o objetivo de argumentar que a verdade natildeo soacute estaacute acessiacutevel a todos como tambeacutem pode ser conhecida por nossa razatildeo Uma mudanccedila brusca que diante de seu

Bacharel em Teologia pela Faculdade Nazarena do Brasil e mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE-PR) Contato elissagabrielafshotmailcom

108 Eacutetica e filosofia poliacutetica

contexto de vida eacute compreensiacutevel Sua atitude demonstra que as vaacuterias contradiccedilotildees agraves quais fora incitado o motivaram a ir mais aleacutem em sua jornada na intenccedilatildeo de superaacute-las embora natildeo possamos negar que muitas pontas permaneceram soltas em sua filosofia

Consideramos um risco querer reunir as vaacuterias reflexotildees do Doutor Hiponense segundo um esquema preestabelecido numa espeacutecie de ldquosistemardquo de filosofia agostiniana Agostinho natildeo se deixa aprisionar nestes quadros riacutegidos e doutrinaacuterios por isso discordamos da ideia de buscar um manual da filosofia agostiniana Fazer isso eacute arriscar-se a perder o que haacute de melhor nele e de mais caracteriacutestico suas antiacuteteses Agostinho natildeo avanccedila em linha reta e podemos afirmar que o seu espiacuterito sempre vivo e pujante empenhado em concitar o ser humano a decisotildees eacuteticas e teoreacuteticas sempre novas natildeo possibilita sequer a ideia de um sistema Claro que isso natildeo eacute um limite ao contraacuterio mostra a fertilidade de um pensador considerado um mestre do Ocidente Todo o pensamento de Agostinho gravita em torno de Deus por outro lado nosso foco aqui estaacute direcionado aos aspectos filosoacuteficos de sua reflexatildeo Pretendemos evidenciar o argumento do autor acerca da busca da verdade orientada pelo amor como uma atitude propriamente filosoacutefica

Eacute importante relembrarmos que o termo lsquoFilosofiarsquo foi elaborado por Pitaacutegoras de Samos (571-496 aC) para se referir a um amoramizade pela sabedoria (Philos φιλος amoramizade e Sophia σοφία sabedoria) Mas natildeo se trata de um amor estaacutetico e sim um sentimento que move a filoacutesofa e o filoacutesofo em direccedilatildeo agravequilo que anseia por conhecer que introduz o(a) amante no caminhar que tambeacutem foi trilhado por Agostinho

Assim apesar de ter passado por diferentes fases inclusive por uma fase ceacutetica Agostinho natildeo deixou nenhum escrito que revelasse suas reflexotildees

O amor na busca pela verdade 109

neste momento de sua vida No entanto em diversas de suas obras percebe-se o quanto ele se sentia assombrado por suas proacuteprias indagaccedilotildees Elas lhe serviram como guias orientando-o atraveacutes de sua proacutepria interioridade e visando o encontro da verdade que lhe era velada Em ldquoContra os Acadecircmicosrdquo o filoacutesofo de Cartago questiona eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade Eis a questatildeo central de nosso estudo

Para os membros da antiga Academia de Platatildeo em sua fase ceacutetica o saacutebio deveria se empenhar na busca pelo que eacute verossiacutemil ou provaacutevel natildeo pelo que eacute verdadeiro Esta posiccedilatildeo foi defendida sobretudo por Arcesilau (3165-2410 aC) responsaacutevel pela virada ceacutetica na Academia Em oposiccedilatildeo agrave Zenatildeo ele defendia uma forma rigorosa de ceticismo na qual a verdade natildeo pode ser conhecida e nesta condiccedilatildeo o saacutebio natildeo deve concordar com nenhum parecer que seja favoraacutevel a ela Resta entatildeo ceder agrave epocheacute (ἐποχή) ou suspensatildeo do juiacutezo do assentimento Esta forma de ceticismo foi aprimorada por Carneacuteades (214-129 aC) que se dedicou agrave retoacuterica e argumentaccedilatildeo para melhor defendecirc-lo nos vaacuterios debates em que participava Dessa maneira embora ambos tenham contribuiacutedo fortemente com uma variante radical de ceticismo na Academia ela foi atenuada devido ao surgimento de uma postura mais branda que avaliava a existecircncia de crenccedilas proacuteximas da verdade apesar de natildeo poderem ser julgadas como verdadeiras ou falsas posto que natildeo se pode conhecer o que eacute efetivamente verdadeiro

Entatildeo se na reflexatildeo agostiniana a verdade pode ser encontrada qual o caminho deve ser percorrido para alcanccedilaacute-la Afinal mesmo os ceacuteticos acadecircmicos tambeacutem natildeo duvidavam da existecircncia de uma verdade apenas avaliavam que ela natildeo poderia ser conhecida Agostinho propotildee portanto uma estrutura de

110 Eacutetica e filosofia poliacutetica

argumentaccedilatildeo que vincula a busca da sabedoria com a vontade o desejo em compreendecirc-la

De modo geral o amor eacute o cerne da vontade que pode levar o indiviacuteduo agrave felicidade ou natildeo Nesta condiccedilatildeo sendo a busca um movimento em direccedilatildeo a algo ela natildeo existe sem que o indiviacuteduo deseje aquilo que quer encontrar Portanto se ele quiser a verdade deveraacute antes amaacute-la pois somente o amor permite o deslocamento no sentido da coisa a que se deseja

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute explorar essa ligaccedilatildeo entre amor e verdade que natildeo estaacute expliacutecita no pensamento agostiniano para fins de demonstrar que nele o amor eacute a forccedila que instiga o indiviacuteduo agrave caminhada no encontro da verdade Na tentativa de se distanciar de qualquer forma de ignoracircncia e se aproximar de uma ataraxia (αταραξία) resultante do encontro da verdade Agostinho avalia que o engajar-se neste caminhar eacute o fator de relevacircncia e natildeo a verdade em si para aquele que busca a sabedoria e portanto ser feliz

A divergecircncia com o maniqueiacutesmo na qual o filoacutesofo de Tagaste se introduziu expressa mais uma vez que ele continuava a sofrer desesperado por alcanccedilar aquilo que tanto almejava Ao aproximar-se do ceticismo a questatildeo que o perturbava neste momento era como eacute possiacutevel alcanccedilar uma verdade certa e incontestaacutevel a respeito das coisas invisiacuteveis (natildeo-evidentes) Pergunta esta que acabou levando-o a uma nova caminhada que culminou em sua conversatildeo e consequente crenccedila de que mesmo sendo a verdade singularmente diferenciada da realidade mundana ela pode ser encontrada Ateacute porque eacute na procura da verdade que o indiviacuteduo encontra a Deus a quem almeja conhecer de fato

O amor na busca pela verdade 111

42 ENTRE O CETICISMO E O DOGMATISMO Eacute de senso comum afirmar que uma pessoa eacute

ceacutetica quando ela suspeita acerca da certeza das coisas No entanto essa expressatildeo assumiu tamanha amplitude nos dias atuais que criamos uma grande dificuldade em conceber sequer a possibilidade de um religioso ser ceacutetico Afinal como algueacutem pode acreditar em um ser divino e desconfiar da realidade Parece ser um incriacutevel paradoxo No entanto o ceticismo estaacute aleacutem do que a nossa simples linguagem cotidiana transmite Por exemplo quando olho para o ceacuteu quem me garante que ele eacute azul Mais do que isso como posso afirmar que sua tonalidade eacute de um azul claro Hoje podemos levar em consideraccedilatildeo as explicaccedilotildees cientiacuteficas para conhecermos a realidade Natildeo que elas expressem a absoluta verdade no entanto algumas contribuem para a delimitaccedilatildeo de certas percepccedilotildees Assim como podemos comprovar que a cor do ceacuteu eacute azul Experimentalmente podemos captar os raios ultravioletas que a luz do sol emite e averiguar seu comprimento de onda Cada comprimento eacute percebido pelos nossos olhos atraveacutes de uma cor especiacutefica graccedilas agrave atividade de um tipo celular presente no olho denominado bastonete Ainda devemos inserir nesse processo o aacuterduo trabalho de nossos neurocircnios em enviar as sinapses de forma correta ateacute os nervos conectados agrave nossa visatildeo Se tudo der certo poderemos enxergar o ceacuteu na cor azul Mas o fato de o enxergarmos azul significa que ele eacute azul Ou ele eacute azul para noacutes que possuiacutemos um complexo arcabouccedilo bioloacutegico que nos permite percebecirc-lo dessa maneira

Temos aiacute um conflito Uns podem afirmar que se o ceacuteu emite raios ultravioletas com determinado comprimento de onda entatildeo eacute porque ele eacute azul Outros defendem que ao contraacuterio o ceacuteu natildeo possui cor nenhuma e tudo natildeo passa de uma percepccedilatildeo nossa individual da realidade Alguns ainda podem ser um

112 Eacutetica e filosofia poliacutetica

pouco mais ousados e declarar que nem mesmo podemos garantir a existecircncia dos raios ultravioletas dado que natildeo os enxergamos Neste raciociacutenio seraacute que as maacutequinas que medem o comprimento de onda inventam seus valores Por outro lado o fato de a ciecircncia esclarecer o processo pelo qual percebemos as cores significa entatildeo que eacute uma sequecircncia que ocorre com todos da mesma maneira Seraacute que existem pessoas que percebem as cores de forma diferente No final das contas o ato de duvidar de nossas percepccedilotildees e ateacute mesmo daquelas definidas cientificamente natildeo significa que estamos sendo ceacuteticos

A palavra ldquoceticismordquo veio do termo grego skeptomai (σκέπτομαι) que significa ldquoolhar atentamenterdquo ldquoperscrutarrdquo ldquoexaminarrdquo32 Este vocaacutebulo por sua vez tem origem na palavra skepsis (σκέψις) que pode ser traduzida como ldquoexamerdquo ldquoindagaccedilatildeordquo ldquoconsideraccedilatildeordquo e remete portanto agrave proacutepria postura ceacutetica Pela etimologia podemos considerar que o ceticismo eacute em si a praacutetica de avaliar cuidadosamente acerca daquilo que se busca entender O seu movimento foi introduzido oficialmente por Pirro de Eacutelis filoacutesofo grego que viveu entre os anos de 365 a 275 aC33 Pirro natildeo nos deixou nada por escrito e alguns de seus inteacuterpretes consideram ser este um

32 Para uma anaacutelise mais acurada do ceticismo vinculada agrave criacutetica de Agostinho cf PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012 33 Eacute interessante perceber que mesmo assim podemos detectar certas posturas ceacuteticas em filoacutesofos anteriores como Soacutecrates e Platatildeo Como exemplo temos a maacutexima socraacutetica ldquoSoacute sei que nada seirdquo atitude esta que se assemelha bastante agrave epocheacute ceacutetica na qual

entre a equipolecircncia de duas afirmativas nada pode ser dito quanto ao juiacutezo de ambas Jaacute em Platatildeo seus estudiosos avaliam a presenccedila tanto de uma postura dogmaacutetica como ceacutetica o que demonstra o conflito em tentar localizar o pensador grego diante de correntes filosoacuteficas que se apresentaram bem depois de sua morte

O amor na busca pela verdade 113

procedimento bastante coerente ao seu pensamento visto que ateacute mesmo a escrita implicaria em uma forma de posicionamento Como praticante fiel de sua proacutepria teoria Pirro eacute conhecido como o uacutenico que assumiu verdadeiramente a postura ceacutetica (skepsis) em sua forma mais radical34

Timatildeo de Fliunte (325-235 aC) o mais devoto disciacutepulo de Pirro tomou para si a responsabilidade de escrever natildeo somente aquilo que aprendeu de seu mestre como tambeacutem suas proacuteprias consideraccedilotildees a respeito do ceticismo Contudo de todas as suas obras apenas alguns fragmentos de duas delas sobreviveram agraves cataacutestrofes do tempo e da histoacuteria Silos e Imagens O movimento ceacutetico que Pirro de Eacutelis iniciou foi denominado ceticismo pirrocircnico (Πυρρωνισμός) e sua radicalidade se fundamentava na postura de completa indiferenccedila diante de todas as coisas Aristocles de Messecircnia filoacutesofo peripateacutetico esclarece essa atitude

Alguns haviam naquela eacutepoca entre os antigos que falavam esta linguagem e aos quais Aristoacuteteles se opocircs O proacuteprio Pirro de Eacutelis falou fortemente neste sentido mas ele natildeo deixou nada por escrito Poreacutem seu disciacutepulo Timatildeo diz que o homem que busca ser feliz deve olhar para estas trecircs coisas primeiro quais satildeo as qualidades naturais das coisas segundo de que forma devemos nos posicionar perante elas e por uacuteltimo que vantagem haveraacute para aqueles que assim se posicionarem As coisas por si proacuteprias ele declara demonstrar satildeo igualmente indiferentes instaacuteveis indeterminadas e portanto nem nossos sentidos ou

34 PEREIRA JR 2012 p 30 Richard Popkin (2000 p 15) um conhecido estudioso do ceticismo em sua obra ldquoA Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo tambeacutem comentou acerca da exemplaridade de Pirro de Eacutelis diante de sua teoria ldquoAs histoacuterias acerca de Pirro que chegaram ateacute noacutes revelam que ele natildeo era um teoacuterico mas ao contraacuterio o exemplo vivo e completo de algueacutem que punha tudo em duacutevida um homem que natildeo aceitava se comprometer com nenhum juiacutezo que fosse aleacutem de como as coisas pareciam serrdquo

114 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nossas opiniotildees satildeo verdadeiras ou falsas Por este motivo noacutes natildeo devemos confiar nelas mas sermos sem opiniotildees sem inclinaccedilotildees e sem hesitaccedilotildees afirmando de cada coisa que ela natildeo mais eacute do que natildeo eacute ou que eacute e natildeo eacute ou que nem eacute nem natildeo eacute Para aqueles que estatildeo assim dispostos o resultado Timatildeo afirma seraacute primeiro o silecircncio [afasia ἀφασία] e entatildeo a imperturbabilidade [ataraxia αταραξία] mas Enesidemos diz [que o resultado eacute] prazer (CESAREA Preparation for the Gospel XIV 18 traduccedilatildeo nossa)35

Nesse fragmento ndash que Euseacutebio de Cesareia

expotildee em sua obra ldquoPreparaccedilatildeo para o Evangelhordquo (Εὑαγγελικὴ Προπαρασκευή) escrita entre os anos de 314 e 324 dC ndash Aristocles demonstra ser a atitude ceacutetica uma busca pela felicidade Nesta jornada o indiviacuteduo deve avaliar se realmente vale a pena se dispor diante das caracteriacutesticas naturais das coisas de modo a lanccedilar seus juiacutezos de opiniotildees sobre elas O filoacutesofo de Messecircnia considera que independentemente de como satildeo percebidas as coisas que observamos satildeo sempre indiferentes de tal modo que natildeo podem ser definidas de uma ou de outra forma Neste sentido nossas

35 ldquoSome then there were even of the ancients who spoke this language and who have been opposed by Aristotle Pyrrho indeed of Elis spoke strongly in this sense but has not himself left anything in writing But his disciple Timon says that the man who means to be happy must look to these three things first what are the natural qualities of things secondly in what way we should be disposed towards them and lastly what advantage there will be to those who are so disposed The things themselves then he professes to show are equally indifferent and unstable and indeterminate and therefore neither our senses nor our opinions are either true or false For this reason then we must not trust them but be without opinions and without bias and without wavering saying of every single thing that it no more is than is not or both is and is not or neither is nor is not To those indeed who are thus disposed the result Timon says will be first speechlessness and then imperturbability but Aenesidemus says pleasurerdquo (CAESAREA Preparation for the Gospel XIV 18)

O amor na busca pela verdade 115

impressotildees sobre elas de nada valem portanto natildeo podemos afirmaacute-las mais do que negaacute-las

Mesmo os ceacuteticos radicais como Pirro acreditavam que a felicidade devia ser alcanccedilada Poreacutem o percurso para ser feliz divergia consideravelmente dos dogmaacuteticos os quais definiam a busca pela verdade como a procura pela felicidade Para o ceticismo pirrocircnico e acadecircmico a busca pela felicidade consistia em assumir que a verdade natildeo pode ser alcanccedilada o que levava agrave ataraxia isto eacute agrave imperturbabilidade da alma Esta eacute traduzida como a tranquilidade do intelecto que diante da impossibilidade de conhecer a verdade reorienta o caminho para a sabedoria em direccedilatildeo agrave novas rotas Contudo existe uma leve diferenccedila entre ambas as formas de ceticismo que veremos um pouco mais tarde

Retornando ao exemplo do ceacuteu azul um ceacutetico natildeo duvidaria que esteja enxergando a cor azul do ceacuteu pois

natildeo eacute contra as aparecircncias ou φαινόμενων (phainomenon) que o ceacutetico vai se opor mas contra a possibilidade de conhecimento da natureza ou essecircncia dos fenocircmenos (PEREIRA JR 2012 p 25)

Nesse caso ele duvidaria de nossa capacidade

em descobrir a verdade acerca da cor do ceacuteu isto eacute se ele eacute azul ou natildeo Mesmo com toda a teacutecnica cientiacutefica natildeo soacute natildeo conseguimos avaliar a cor do ceacuteu propriamente dita (pois o fato de percebermos as cores se daacute devido ao nosso ceacuterebro ser capaz de traduzir determinados comprimentos de ondas natildeo porque a cor realmente exista) como elaboramos diversos paracircmetros que nos permitem reconhecer as cores (raios ultravioletas neurocircnios sinapses linguagem) Dessa forma com a ciecircncia apenas demonstramos a impossibilidade de conhecer a verdadeira cor do ceacuteu ou definir se ele eacute azul ou natildeo Isto significa que mesmo o conhecimento cientiacutefico natildeo pode ser utilizado como

116 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma segura para alcanccedilarmos a verdade visto que ele em si avalia como percebemos e interpretamos as coisas e natildeo como as coisas satildeo em sua natureza

Em contraposiccedilatildeo ao ceticismo temos o dogmatismo outra corrente teoacuterica que defende nossa capacidade de natildeo soacute buscar a verdade como tambeacutem de conhececirc-la A palavra dogmatismo vem da raiz grega dogma (δόγμα) que significa ldquoopiniatildeordquo ldquodoutrinardquo Tal substantivo tem origem no verbo dokeo (δοκέω) traduzido como ldquoparecerrdquo ldquoter a aparecircncia derdquo O dogmatismo estaacute intrinsecamente relacionado agrave tese de que por meio das aparecircncias podemos conhecer a verdade e portanto conferirmos juiacutezos de opiniatildeo sobre as coisas Assim a busca por ela natildeo eacute insensata mas faz jus ao nosso proacuteprio desejo humano de sermos felizes Desse modo o que eacute realmente importante eacute a jornada em si que reuacutene natildeo apenas o anseio mas a intenccedilatildeo sincera de que o indiviacuteduo somente encontraraacute a felicidade quando colocaacute-la como o uacutenico fim de sua investigaccedilatildeo O meio que se utiliza para atingir esse fim se torna assim a proacutepria busca pela verdade Mas em que consiste essa busca E seraacute que a verdade pode ser encontrada E o que eacute a verdade Ao longo da tradiccedilatildeo filosoacutefica foram elaboradas diversas respostas para tais perguntas assim como tambeacutem houveram vaacuterias refutaccedilotildees por parte dos ceacuteticos36 Neste estudo a ecircnfase

36 Uma das tentativas foi realizada por Reneacute Descartes O autor francecircs em sua obra ldquoMeditaccedilotildees Metafiacutesicasrdquo escrita em 1641 inicia sua argumentaccedilatildeo com a suspensatildeo de todos os juiacutezos ou seja se inserindo em uma condiccedilatildeo de duacutevida absoluta para identificar nesta condiccedilatildeo o que permaneceria indubitaacutevel Para Descartes a experiecircncia criteacuterio de obtenccedilatildeo da verdade por ser variada em suas muacuteltiplas formas e representada pela dimensatildeo sensiacutevel natildeo poderia fornecer os devidos subsiacutedios para encontrar a verdade o que justificaria a inutilidade da busca O filoacutesofo francecircs utiliza do mesmo raciociacutenio ceacutetico para concluir que neste sentido nem mesmo a proacutepria existecircncia eacute algo certo afinal nenhuma percepccedilatildeo sensiacutevel no mundo poderia conferir consistecircncia ao fato do ser Nisto consiste a primeira meditaccedilatildeo na qual Descartes (Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT

O amor na busca pela verdade 117

incidiraacute sobre as respostas que Agostinho concedeu a tais e outros questionamentos que veremos acerca do assunto

Costumamos associar a postura dogmaacutetica agrave religiatildeo agrave feacute Mais do que buscar precisamos confiar que a verdade existe mesmo que passemos a vida inteira procurando-a e natildeo a encontremos Faz sentido vinculaacute-la ao pensamento religioso que se pauta em diversas doutrinas e postulados promotores de significado agrave crenccedila do indiviacuteduo Mas devemos destacar aqui uma diferenccedila profundamente discreta crenccedila natildeo eacute sinocircnimo de feacute Acreditar em algo natildeo significa que temos feacute naquilo A palavra ldquocrenccedilardquo vem do substantivo latino credentiae que tem origem no verbo tambeacutem latino credo Credo significa ldquoter feacute emrdquo ldquoconfiarrdquo ldquoassumir a realidade ou a existecircncia derdquo ldquopossuir certa opiniatildeordquo ldquonatildeo duvidarrdquo logo estaacute muito mais vinculado ao ato de confiar na verdade de uma proposiccedilatildeo por meio da forccedila de persuasatildeo que este argumento possui A feacute por sua vez remonta ao substantivo latino fides pode ser traduzida como ldquopromessardquo ldquoa condiccedilatildeo de ter a

IX 9) apresenta ldquoas razotildees pelas quais podemos duvidar em geral de todas as coisas e em particular das coisas materiais ao menos enquanto natildeo tivermos outros fundamentos nas ciecircncias senatildeo aqueles que tivemos ateacute o presenterdquo No entanto o que Descartes observa eacute que o criteacuterio ceacutetico de invalidaccedilatildeo da busca pela verdade eacute em si mesmo falho A realidade sensiacutevel eacute de fato variada podendo se apresentar aos indiviacuteduos de diversas formas O ser humano como parte dessa realidade tambeacutem eacute capaz de interpretaacute-la de acordo com o seu ponto de vista Por conseguinte seraacute que a percepccedilatildeo sensiacutevel deve ser considerada o ponto focal na jornada do(a) filoacutesofo(a) Apesar do indiviacuteduo estar em um mundo que se encontra em constante mudanccedila existe um elemento que permanece constante instigado pela duacutevida pela ficccedilatildeo e pela incoerecircncia das coisas o pensamento Este eacute o fundamento a partir do qual se deve avaliar a existecircncia individual e portanto as coisas contidas na dimensatildeo sensiacutevel Isto porque apesar da duacutevida ldquoeacute propriamente o que em mim se chama sentir e isso tomado precisamente assim nada mais eacute do que pensarrdquo (DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT IX 23)

118 Eacutetica e filosofia poliacutetica

confianccedila depositada em umrdquo ldquolealdaderdquo e estaacute bastante proacutexima do sentimento de crer em algo que natildeo se conhece A crenccedila exige a feacute muitas vezes e ambas estatildeo interconectadas poreacutem natildeo podemos afirmar que as duas satildeo a mesma coisa

Nesse sentido podemos acreditar que o ceacuteu eacute azul mesmo que ele natildeo o seja Mas se conseguimos ver a sua cor azul isso eacute o suficiente para convencer a alguns de que ele eacute azul No entanto natildeo temos feacute na cor azul do ceacuteu justamente porque podemos vecirc-lo e afirmarmos o que eacute o ceacuteu e apontarmos para a cor que vemos identificando-a como azul No entanto podemos ter feacute naquele que criou o ceacuteu precisamente porque natildeo o conhecemos e por isso natildeo somos capazes de afirmar a veracidade ou falsidade de sua existecircncia Ainda assim a feacute persiste de forma bastante natural uma vez que somos assaltados pela indagaccedilatildeo e de onde veio o ceacuteu Ningueacutem sabe nem mesmo a ciecircncia eacute capaz de avaliar sua origem a partir do nada

O dogmatismo estaacute portanto muito mais vinculado agrave crenccedila do que agrave feacute em si o que confere abertura suficiente para a existecircncia de fieacuteis ceacuteticos Qualquer um pode acreditar em coisas que desconhece e ao mesmo tempo natildeo acreditar na possibilidade de conhecermos a verdade atraveacutes das aparecircncias37 Natildeo se trata aqui de ser ceacutetico e dogmaacutetico ao mesmo tempo mas de assumir um determinado grau de ceticismo que permite a suspensatildeo do juiacutezo acerca das coisas Este eacute um posicionamento uacutetil e necessaacuterio sobretudo nas diversas ocasiotildees em que precisamos assumir que as

37 Richard Popkins (2000 p 20) comenta ldquorsquoceacuteticorsquo e lsquocrentersquo natildeo satildeo classificaccedilotildees que se opotildeem O ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias das justificaccedilotildees que se apresentam para uma crenccedila duvida que razotildees necessaacuterias e suficientes tenham sido ou possam ser encontradas para mostrar que qualquer crenccedila em particular deva ser verdadeira e natildeo possa ser falsa Mas o ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo

O amor na busca pela verdade 119

nossas crenccedilas natildeo satildeo superiores ou mais verdadeiras que as crenccedilas de outrem Realizemos a epocheacute e natildeo nos deixemos afetar pela aparecircncia de verdade que nossas convicccedilotildees possuem Assim evitemos ser prejudicados por qualquer dificuldade de aceitaccedilatildeo dos diferentes posicionamentos e pontos de vista apresentados pelos outros Se o ceacuteu eacute azul ou verde tanto faz mas natildeo deixemos de aproveitar a oportunidade para apreciar a capacidade que o outro possui para enxergar as coisas de forma diversa da nossa

43 ldquoCONTRA OS ACADEcircMICOSrdquo NA BUSCA PELA VERDADE

A primeira pergunta que nos surge apoacutes a leitura

de ldquoContra os acadecircmicosrdquo (Contra academicos) eacute quem satildeo os acadecircmicos Em um momento inicial muitos podem pensar que todo o ceticismo estaacute inserido no contexto da Academia Entatildeo para entendermos a criacutetica agostiniana precisamos analisar a conjuntura filosoacutefica e histoacuterica no qual estaacute inserida

Um ponto importante que necessitamos ter em mente eacute natildeo podemos falar em ceticismo mas em ceticismos Natildeo existiu apenas um movimento ceacutetico na histoacuteria da filosofia mas vaacuterios Desse modo historiadores e filoacutesofos demarcam quatro fases do ceticismo no Periacuteodo Antigo o ceticismo antigo fundado por Pirro de Eacutelis e que se desenvolveu entre os seacuteculos IV e III aC o ceticismo acadecircmico alvo da criacutetica do bispo de Hipona e estabelecido no interior da Academia de Platatildeo por Arcesilau e Carneacuteades demarcando sua entrada na fase meacutedia da Academia (seacuteculos III e II aC) o ceticismo dialeacutetico representado por Enesidemo e Agripa entre os seacuteculos II e I aC e por fim o ceticismo empiacuterico iniciado por Sexto Empiacuterico no seacuteculo III dC

120 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Jaacute vimos que o ceticismo pirrocircnico ou ceticismo

antigo realizava a defesa de uma postura (skepsis) radical frente agrave possibilidade de natildeo se saber o que eacute a verdade Devido a isso o ceacutetico pirrocircnico se empenhava em ausentar-se totalmente de opiniotildees (afasia) Se a busca pela verdade resulta no conflito em definir entre duas proposiccedilotildees que uma eacute verdadeira e a outra eacute falsa ou que uma seja mais verdadeira que a outra entatildeo natildeo podemos emitir qualquer opiniatildeo acerca das coisas Nossa experiecircncia no mundo nos comprova que todos percebemos a realidade de diferentes maneiras Entatildeo quem percebe como o mundo eacute de verdade Quem conhece a verdade Para evitar ser atormentado por tais indagaccedilotildees impossiacuteveis de serem respondidas o ceacutetico pirrocircnico se afastava da duacutevida ao considerar que nada pode ser afirmado a respeito da natureza das coisas Somente assim era possiacutevel alcanccedilar a tatildeo desejada serenidade do intelecto (ataraxia) atraveacutes da indiferenccedila (adiaphora ἀδιάφορα)

Os ceacuteticos pirrocircnicos procuravam evitar assumir qualquer compromisso acerca de qualquer questatildeo mesmo em relaccedilatildeo agrave validade de seus proacuteprios argumentos O ceticismo para eles era uma habilidade ou atitude mental que permitia opor evidecircncias a favor e contra qualquer questatildeo relativa ao natildeo-evidente [adelo ἄδήλον] de modo a levar agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca desta questatildeo Este estado mental levaria entatildeo agrave ataraxia agrave quietude ou imperturbabilidade quando o ceacutetico entatildeo natildeo mais se preocuparia com questotildees que transcendem as aparecircncias O ceticismo seria a cura para a doenccedila do dogmatismo (POPKIN 2000 p 16)

O conceito de evidente (prodela πρόδηλα) e natildeo-

evidente (adelo) satildeo centrais no pensamento ceacutetico Popkin esclarece que o comportamento do ceacutetico pirrocircnico se direcionava a partir das coisas evidentes agraves natildeo-evidentes isto eacute agravequilo que eacute oculto a noacutes No

O amor na busca pela verdade 121

cotidiano deparamo-nos com diversos fenocircmenos os quais percebemos atraveacutes de nossos sentidos aliados agrave nossa interpretaccedilatildeo realizada por toda a nossa estrutura bioloacutegica mental Sabemos quando estaacute de dia e quando estaacute de noite sentimos o sabor doce salgado amargo dos alimentos que comemos temos contato com diversas texturas atraveacutes da nossa pele e todas essas constataccedilotildees satildeo evidentes manifestam-se a noacutes No entanto a epocheacute eacute aplicada agraves coisas que natildeo satildeo tatildeo claras a noacutes38 Aliaacutes justamente porque natildeo satildeo visiacuteveis que natildeo podemos lanccedilar qualquer forma de juiacutezo sobre elas A opiniatildeo neste momento natildeo contribuiraacute em nada pois natildeo poderemos averiguar sua veracidade

O ceticismo acadecircmico se assemelha ao pirrocircnico pela atitude (skepsis) perante agraves coisas natildeo-evidentes Contudo ele eacute considerado como sendo uma forma mais branda posto que assume a existecircncia de coisas provaacuteveis isto eacute proacuteximas da verdade Por outro lado sua radicalidade se baseava na defesa de que a verdade natildeo pode ser conhecida ponto este que promoveu a criacutetica agostiniana Afinal se afirmamos que a verdade natildeo pode ser conhecida como podemos dizer que existem coisas proacuteximas da verdade O argumento ceacutetico acadecircmico parece conter em si uma contradiccedilatildeo a de que como saberemos que estamos nos aproximando da verdade se natildeo podemos conhececirc-la

Esta forma de ceticismo ao qual se dirige a refutaccedilatildeo do bispo de Hipona foi introduzido na Academia de Platatildeo por Arcesilau (315-240 aC) e mantido nos anos subsequentes por Carneacuteades (214-129 aC) Esta

38 Eacute preciso atentar que a forma de ceticismo assumida por Pirro de Eacutelis abrangia tanto as coisas evidentes como natildeo-evidentes para as quais aplicava a suspensatildeo de seu juiacutezo Contudo ldquoSeus sucessores logo trataram de dar nova roupagem a essa postura adotando a ἐποχή natildeo para todas as coisas mas apenas para aquelas que seriam a seu modo de ver natildeo evidentes (ἄδήλον) Assim as coisas de caraacuteter mais obscuro necessitariam de uma anaacutelise mais acurada antes de qualquer pronunciamentordquo (PEREIRA JR 2012 p 24)

122 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nova etapa da Academia ficou sendo conhecida como fase meacutedia ou segunda ndash tambeacutem denominada Nova Academia ndash na qual vigorou por aproximadamente dois seacuteculos a afirmaccedilatildeo de um novo modelo de ceticismo Uma das fontes que temos para conhecer o ceticismo acadecircmico eacute a obra ldquoOs Acadecircmicosrdquo (Academica) de Ciacutecero escrita em 45 dC e com a qual Agostinho como tradicional leitor das reflexotildees ciceronianas muito provavelmente entrou em contato para realizar sua investida39 Contudo o filoacutesofo patriacutestico natildeo eacute o uacutenico a questionar o ceticismo acadecircmico Sexto Empiacuterico (I 1) meacutedico e filoacutesofo grego em sua obra ldquoHipotiposes Pirrocircnicasrdquo (Πυῤῥώνειοι ὑποτύπωσεις) escrita no seacuteculo II dC logo no comeccedilo de seu primeiro livro afirma

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra aquilo que busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser isto inapreensiacutevel ou ainda persiste em sua busca O mesmo ocorre com as investigaccedilotildees filosoacuteficas e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode

39 ldquoO destaque para essa obra de Ciacutecero justifica-se primeiramente pelo seu caraacuteter eminentemente epistemoloacutegico pois se constitui um verdadeiro tratado sobre a natureza do conhecimento Eacute nessa obra que o autor em questatildeo iraacute apresentar ao mundo romano a filosofia vigente na Academia deixada por Platatildeo Sobretudo foi uma obra amplamente citada por Santo Agostinho em Contra Academicos e certamente a fonte desse filoacutesofo na construccedilatildeo de sua criacutetica ao ceticismo acadecircmico Esse tratado epistemoloacutegico foi editado em duas versotildees ambas com alteraccedilotildees em seus tiacutetulos originais [] Desse modo a primeira ediccedilatildeo denominada de Academica Priora era composta por dois livros Catulus hoje perdido e Lucullus que ficou conhecido como Academica II por se tratar do segundo livro da primeira ediccedilatildeo A segunda ediccedilatildeo denominada de Academica Posteriora foi dividida em quatros livros dos quais apenas a metade do primeiro sobreviveu e ficou conhecida como Academica I por ser o primeiro livro da segunda ediccedilatildeo Santo Agostinho parece conhecer apenas a segunda ediccedilatildeo referindo-se a ela como Academici Librirdquo

(PEREIRA JR 2012 p 60)

O amor na busca pela verdade 123

ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os ldquodogmaacuteticosrdquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoacuteicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel manter que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica40

Podemos notar que o antigo filoacutesofo tampouco

reconhecia o ceticismo dos acadecircmicos e preferiu denominaacute-los simplesmente de ldquoacadecircmicosrdquo Para ele os ceacuteticos estatildeo em contiacutenua busca da verdade diferente dos acadecircmicos que defendem que ela natildeo pode ser apreendida Sabendo que a criacutetica de Agostinho se dirigia ao ceticismo acadecircmico e natildeo agrave sua variante original o ceticismo pirrocircnico devemos levar em consideraccedilatildeo a argumentaccedilatildeo do autor frente ao posicionamento dos membros da Meacutedia Academia (ou Nova Academia) sem orientarmos sua contestaccedilatildeo ao ceticismo como um todo

Quando Agostinho tomou conhecimento do ceticismo logo apoacutes ter abandonado a seita maniqueiacutesta ele decidiu aderir-se ao movimento ceacutetico Essa decisatildeo demonstra a relevacircncia que o autor concedia aos seus questionamentos Desde seus primeiros estudos a busca pelo conhecimento e mais ainda pela verdade orientou seu trajeto Ao ler a obra de Ciacutecero ldquoHortecircnsiordquo (Hortensius) Agostinho (Confissotildees III 4 grifo nosso) eacute arrebatado por um forte anseio pela sabedoria e comenta em sua obra ldquoConfissotildeesrdquo (Confessiones)

Esse livro conteacutem uma exortaccedilatildeo ao estudo da filosofia Chama-se Hortecircnsio Ele mudou o alvo das minhas afeiccedilotildees e encaminhou para Voacutes Senhor as minhas preces transformando as minhas aspiraccedilotildees e desejos [] Natildeo era o estilo mas sim o assunto

40 Traduccedilatildeo de Danilo Marcondes

124 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tratado que me persuadia a lecirc-lo [] o amor agrave sabedoria pelo qual aqueles estudos literaacuterios me apaixonavam tem o nome grego de filosofia [] Apenas me deleitava naquela exortaccedilatildeo o fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim o desejo de amar buscar conquistar reter e abraccedilar natildeo esta ou aquela seita mas sim a proacutepria sabedoria qualquer que ela fosse

Entretanto o autor afirma logo depois que o seu

desejo soacute natildeo era completo devido agrave ausecircncia do nome de Cristo na obra Isso significava que tal sabedoria defendida pela filosofia ainda natildeo correspondia agrave verdade agrave qual buscava jornada esta que o inflamaria de expectativas e esperanccedilas apoacutes a conversatildeo

44 A BUSCA PELA SABEDORIA EXIGE AMOR POR ELA

Existem diversos elementos que constituem a

jornada daquele que almeja alcanccedilar a sabedoria Natildeo podemos de forma alguma acreditar que tal caminhar nos exige apenas a leitura de obras de caraacuteter filosoacutefico A philosophia (φιλοσοφία) reuacutene um conjunto de requisitos para que possa ser praticada Dentre eles temos o pensar reflexivo um contato com o eu que perpasse todas as situaccedilotildees as quais necessitamos individualmente entender melhor temos a discussatildeo o debate um movimento dialeacutetico que torna visiacutevel meus pensamentos ao outro de modo a permitir que eles sejam trabalhados por um ponto de vista diferente do meu temos a aceitaccedilatildeo de certas afinidades em que reconhecemos apreciar determinados conteuacutedos em detrimento de outros o que nos facilita a elaboraccedilatildeo de nossos proacuteprios problemas temos a aprendizagem que localiza pontos de partida que datildeo origem ao nosso caminhar temos a coragem de que em determinado momento precisaremos refletir sozinhos ndash sem nos

O amor na busca pela verdade 125

escondermos por traacutes da identidade de algum autor ndash natildeo porque estaremos diante de um problema novo mas porque cada indiviacuteduo eacute totalmente diferente do outro e portanto percebe a realidade de uma forma diferente Poreacutem o que nos insere nesta busca Porquecirc estudar philosophia

Para Agostinho tudo perpassava o amor Natildeo um sentimento romacircntico ou banal igual encontramos muitas vezes nos dias atuais mas algo promotor de movimento O amor como vontade estimula-nos a sair de nosso lugar em direccedilatildeo agravequilo que desejamos Devemos considerar entatildeo que o amor agostiniano possui trecircs constituintes aquele que ama o amor e aquilo que eacute amado Eacute uma triacuteade em que o amor intermedia a relaccedilatildeo entre o amante e seu objeto de desejo

O bispo de Hipona compreende que a existecircncia depende do amor Sem o amor noacutes nem sequer desejariacuteamos natildeo haveria nada que nos estimulasse a sair de noacutes mesmos Este eacute digamos o benefiacutecio de amar e antes dele o indiviacuteduo estaacute isolado em seu ego distante de tudo de todos do mundo41 Mas esta

41 ldquo[] santo Agostinho natildeo considera realmente seacuteria a ideacuteia de solipsismo Afirma ele em Contra os acadecircmicos que se chamo lsquoo mundorsquo ao que me parece ser o mundo entatildeo posso saber que o mundo existe Mas ter dito isso eacute apenas parte de seu esforccedilo continuado para mostrar que em vez do ceticismo acadecircmico haacute pelo menos algumas coisas que podem ser conhecidas Agostinho natildeo tenta perguntar agrave maneira de Descartes se e no caso afirmativo como posso saber que aleacutem do meu mundo fenomenal haacute um mundo fiacutesico que existe independentemente de mim e das minhas impressotildees acerca desse mundo Expresso no jargatildeo da filosofia do seacuteculo XX ele natildeo reconhece o Problema do Mundo Externo e muito menos tentou solucionaacute-lo Existe poreacutem um aspecto em que Agostinho encara muito a seacuterio o isolamento do ego Ele imagina como isso era para ele quando bebecirc antes de ter aprendido as palavras de qualquer liacutengua natural [] De acordo com esse lsquoquadro agostiniano da linguagemrsquo cada um de noacutes quebra o isolamento do seu ego epistemoloacutegico ao ter os nomes das coisas assinalados para noacutes de tal modo que acabamos por estar aptos a expressar os nossos

126 Eacutetica e filosofia poliacutetica

condiccedilatildeo natildeo perdura por muito tempo pois logo na infacircncia Agostinho entende que comeccedilamos a nos aproximar das coisas das pessoas e assim comeccedilamos a desejar Este desejo eacute expresso pela forma ainda primaacuteria de comunicaccedilatildeo atraveacutes de gestos sons e sinais que evoluem para o pronunciamento de palavras que expressam determinados sentidos Eacute dessa forma que Agostinho (Confissotildees I 6) descreve os momentos iniciais de sua proacutepria infacircncia

A pouco e pouco ia reconhecendo onde me encontrava Queria exprimir os meus desejos agraves pessoas que os deviam satisfazer e natildeo podia porque os desejos estavam dentro e elas fora sem poderem penetrar-me na alma com nenhum dos sentidos Estendia os braccedilos soltava vagidos fazia sinais semelhantes aos meus desejos os poucos que me era possiacutevel esboccedilar e que eu exprimia como podia Mas eram inexpressivos Como ningueacutem me obedecia ou porque natildeo entendiam ou porque receavam fazer-me mal indignava-me com essas pessoas grandes e insubmissas que sendo livres recusavam servir-me Vingava-me delas chorando Reconheci que assim eram as crianccedilas como depois pude observar

Destacamos nessa passagem o fato de que

Agostinho concede aos receacutem-nascidos uma faculdade do desejo como se desde entatildeo fossem capazes de distinguir aquilo que eles querem Contudo ele descreve tambeacutem a dependecircncia destes de outras pessoas para que pudessem conseguir alcanccedilar aquilo que desejam Os bebecircs apesar de jaacute conseguirem se movimentar para apontar em direccedilatildeo agraves coisas que os atraem ndash seja pela emissatildeo de sons ou gesticulaccedilotildees ndash ainda natildeo possuem uma estrutura bioloacutegica bem desenvolvida para sozinhos atingirem tais objetos Com o tempo eles natildeo

proacuteprios desejos usando as palavras que aprendemos []rdquo (MATTHEWS 2007 p 41 e 44)

O amor na busca pela verdade 127

apenas aprendem a ser autocircnomos como a equilibrar seus desejos e manipular a vontade

Contudo o amor natildeo eacute somente a chave para fugir do isolamento como tambeacutem para alcanccedilar uma determinada autonomia O termo ldquodeterminadardquo eacute utilizado para se referir a uma autonomia especiacutefica fruto do anseio do amante O livre-arbiacutetrio a noacutes concedido nos ilude e nos faz acreditar que podemos possuir uma total independecircncia diante do mundo Ao nos tornarmos responsaacuteveis por nossas escolhas e decisotildees tambeacutem nos tornamos responsaacuteveis pelas consequecircncias que elas acarretam Nesse raciociacutenio necessitamos distinguir o amor de vontade no pensamento agostiniano

Afirmamos mais cedo o ldquoamor como vontaderdquo Seraacute entatildeo que podemos pensar em outra forma de amor Natildeo foi bem assim que Agostinho avaliou a questatildeo Karl Jaspers (1962 p 95 traduccedilatildeo nossa) filoacutesofo alematildeo e estudioso da filosofia agostiniana escreveu

Na vida humana Agostinho natildeo encontra nada em que natildeo haacute amor Em tudo o que eacute o homem eacute fundamentalmente vontade e o cerne mais profundo da vontade eacute o amor Amar eacute um lutar por alguma coisa que eu natildeo tenho (appetitus) Como o peso move corpos o amor move almas Elas [as almas] natildeo satildeo outra coisa aleacutem de forccedilas da vontade [] Tudo o que o homem faz ateacute mesmo o mal eacute causado pelo amor [] E parar de amar natildeo eacute a soluccedilatildeo pois isto significa lsquoestar inerte morto abjeto miseraacutevelrsquo A saiacuteda natildeo eacute extinguir um amor perigoso mas purificaacute-lo [] lsquoAme o que eacute digno do amorrsquo42

42 ldquoIn human life Augustine finds nothing in which there is no love In everything that he is man is ultimately will and the innermost core of will is love Love is a striving for something I have not (appetitus) As weight moves bodies so love moves souls They are nothing other than forces of the will [hellip] Everything a man does even evil is caused by love [hellip] And to cease loving is no solution For that is to lsquobe inert dead contemptible

128 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quando amamos acreditamos sermos autocircnomos

por sermos capazes de amar ou melhor de termos liberdade para escolhermos o nosso objeto de amor Poreacutem tal desejo de posse nos torna dependentes daquilo que amamos Precisamente porque queremos estar proacuteximos de tais objetos sofremos com qualquer possibilidade de perda O tempo no mundo nos transforma em amantes ambiciosos posto que buscamos a todo momento novos objetos de amor natildeo apenas devido ao prazer que sentimos ao alcanccedilaacute-los como tambeacutem para suprirmos o vazio da perda gerado pelas coisas que foram tomadas de noacutes pelo proacuteprio tempo Entatildeo o amor natildeo apenas causa alegria mas tambeacutem pode causar tristeza infelicidade dependecircncia Para isso natildeo acontecer eacute preciso direcionar corretamente o amor A vontade eacute aquilo que estimula o movimento da alma Ao querer algo o indiviacuteduo se insere em um conflito entre obedecer ou natildeo agrave sua vontade Se obedececirc-la a alma poderaacute ordenar a accedilatildeo caso contraacuterio o indiviacuteduo permanece inerte parado No entanto a vontade eacute apenas propulsora e quando o indiviacuteduo se torna amante ao decidir agir ele deixa de querer e passa a ser controlado pelo puro desejo que o leva agravequilo que anseia Ao alcanccedilar aquilo que motivou sua accedilatildeo algo necessita mantecirc-lo estaacutevel proacuteximo ao objeto Esta eacute a funccedilatildeo do amor conferir estabilidade para que o sujeito possa enfim descansar naquilo que buscava deleitar-se

A relaccedilatildeo entre o amor e o ceticismo em Agostinho se expressa quando o autor afirma ser necessaacuterio investigar aquilo que eacute digno de ser amado Essa racionalizaccedilatildeo da busca faz com que tomemos cuidado para natildeo amar qualquer coisa que natildeo valha a pena Mas o que natildeo merece ser amado para Agostinho O filoacutesofo patriacutestico (Confissotildees IV 10 grifo nosso) nos concede uma pista para responder a esta questatildeo

wretchedrsquo The way out is not to extinguish a dangerous love but to purify it [hellip] lsquoLove what is worthy of loversquordquo (JASPERS 1962 p 95)

O amor na busca pela verdade 129

Que minha alma Vos louve por tudo isto oacute meu Deus Criador de todas as coisas Que natildeo se agarre a elas pelo visco do amor que entra pelos sentidos do corpo Tambeacutem as coisas caminham para natildeo existirem e dilaceram a alma com desejos pestilenciais porque ela quer existir e gosta de descansar no que ama Mas natildeo tem onde porque as coisas natildeo satildeo estaacuteveis fogem

Se as coisas satildeo instaacuteveis e portanto fogem de

noacutes natildeo porque natildeo querem ser amadas mas porque estatildeo sujeitas ao tempo entatildeo devemos direcionar nossa busca para aquilo que eacute estaacutevel No entanto o que eacute estaacutevel no mundo se ele estaacute tomado pelo tempo Surge aiacute a necessidade de se buscar algo que esteja fora do mundo a Sabedoria Desse modo a philosophia como sendo amor agrave sabedoria eacute para Agostinho uma forma de encontrar a verdade Entretanto nosso autor natildeo faz referecircncia a qualquer verdade proveniente de qualquer conhecimento ou conteuacutedo de caraacuteter reflexivo Para ele existe a verdadeira Sabedoria aquela de onde surgiu todas as outras coisas no mundo43 Dessa forma Agostinho natildeo eacute apenas um dogmaacutetico como acredita fielmente que a verdade eacute uma soacute manifesta pela Sabedoria Sua conversatildeo ao Cristianismo fez com que abandonasse o ceticismo pois mesmo este natildeo o aliviou de suas indagaccedilotildees A busca era contiacutenua como ele (Confissotildees X 40) mesmo revela

43 Plotino (2000 p 121 grifo nosso) pai do neoplatonismo comenta acerca dessa essecircncia originaacuteria o Bem (ou Uno) a partir do qual existem os outros bens Agostinho foi fortemente influenciado pelo pensamento neoplatocircnico nas leituras que realizou ao longo da vida e desse modo Plotino se torna um grande aliado na compreensatildeo de sua filosofia ldquoEacute pelo Uno que todos os seres satildeo seres tanto os seres que satildeo seres no sentido primeiro do termo quanto tudo o que se diz fazer parte dos seres de qualquer maneira que seja O que entatildeo poderia realmente ser senatildeo o Uno se eacute verdade que privados do Uno que eacute seu predicado tais seres deixam de secirc-lordquo

130 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Percorri o melhor possiacutevel com os sentidos o mundo exterior Observei em mim a vida do corpo e os proacuteprios sentidos Passei depois agraves profundezas da memoacuteria a essas amplidotildees sucessivas Observei-as estupefacto Mas sem Voacutes nada pude distinguir Contudo reconheci que Voacutes nada disto eacutereis

Eacutetienne Gilson (2006 p 17) comenta que a busca

de Agostinho se direciona a algo que ldquosatisfaz todo desejo e por consequecircncia confere a pazrdquo Natildeo muito diferente dos ceacuteticos o bispo de Hipona tambeacutem acreditava que o que o ser humano quer na verdade eacute ser feliz Da mesma maneira essa felicidade consistia na paz da alma (beatitude) em que finalmente possui todas as condiccedilotildees necessaacuterias para repousar sobre o que ama fruindo-o Existe um caminho que conduz a essa felicidade segundo Agostinho e neste sentido natildeo podemos fugir de sua teologia pois para ele a Sabedoria consiste em apenas uma coisa Deus Natildeo somente o conhecimento de Deus mas alcanccedilaacute-lo e estar proacuteximo dele Natildeo obstante o pensador nos lanccedila em mais um conflito como estar proacuteximo de Deus se ele estaacute aleacutem do tempo mundano e eacute exatamente por isso que ele deve ser buscado

Bem se os ceacuteticos natildeo acreditam que a verdade pode ser encontrada como por exemplo os acadecircmicos como estes poderatildeo se aproximar de Deus Este eacute o ponto eles natildeo podem Segundo Agostinho os ceacuteticos nunca seratildeo felizes pois sua proacutepria teoria os impedem de alcanccedilarem a beatitude Podemos afirmar que mesmo aqueles que natildeo satildeo acadecircmicos como argumentou Sexto Empiacuterico isto eacute aqueles que buscam continuamente a verdade (os ceacuteticos pirrocircnicos) natildeo satildeo capazes de enxergaacute-la visto que com a suspensatildeo do juiacutezo natildeo distinguem entre o que eacute verdadeiro e o que natildeo o eacute Mesmo se eles optarem por natildeo se manifestarem apenas diante das coisas natildeo-evidentes Deus permaneceria uma incoacutegnita pois frente aos seus

O amor na busca pela verdade 131

criteacuterios ceacuteticos ele eacute algo natildeo-evidente Todos estes indiviacuteduos que escolhem natildeo se empenhar em definir a verdade e buscaacute-la satildeo infelizes pois ldquose a sabedoria implica a beatitude e se a beatitude implica Deus o ceacutetico natildeo poderia possuir nem Deus nem a beatitude nem a sabedoriardquo (GILSON 2006 p 20)

Contudo a duacutevida ainda permanece como buscar a Deus Noacutes possuiacutemos alguma faculdade que nos permite estar em contato com o que natildeo conhecemos diretamente O caraacuteter neoplatocircnico da filosofia de Agostinho se revela quando este argumenta que nada existe sem Deus Portanto como entes somos partes de um Ser que na realidade eacute o todo Se de alguma forma participamos do Ser possuiacutemos entatildeo a capacidade para encontraacute-lo E eacute assim que deve ser compreendido o conceito agostiniano de homem interior pois o Ser estaacute em cada um de noacutes conferindo-nos existecircncia Buscar o Ser ou a Deus eacute realizar um movimento de retorno a si uma introspecccedilatildeo no proacuteprio eu que ao se reconhecer como ente eacute guiado pela proacutepria essecircncia que estaacute em seu interior O Ser nos conduz neste instante de encontro a ele que se revela como o Bem Supremo a verdadeira Sabedoria Deus eacute apreendido pelo pensamento pelo ato reflexivo e introspectivo de identificar-se como parte como ente por conseguinte como dependente em sua existecircncia de uma totalidade que estaacute aleacutem de si Aliaacutes eacute nisso que consiste a caridade agostiniana e portanto buscar verdadeiramente a Sabedoria

45 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Recordemos a pergunta levantada por Agostinho

em sua obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade44 Para o filoacutesofo a

44 A pergunta na realidade estaacute impliacutecita em todo o debate realizado na obra No entanto eacute interessante observar que na parte do texto em

132 Eacutetica e filosofia poliacutetica

felicidade depende da busca pela verdade e natildeo basta procuraacute-la apenas eacute preciso empenhar-se em encontraacute-la Para isso eacute necessaacuterio delimitar o que eacute a verdade afinal sabemos que ela existe e que pode ser encontrada Entatildeo para que direccedilatildeo deveremos caminhar nesta jornada O bispo de Hipona correspondendo agrave sua reflexatildeo de cunho teoloacutegico avalia ser Deus a verdadeira Sabedoria o que implica que sem Deus natildeo eacute possiacutevel sermos felizes Isso talvez soe pouco filosoacutefico para noacutes mas devemos atentar que Deus eacute por si soacute um grande problema para a filosofia Natildeo basta apenas assumir que devemos buscar a Deus mas entender de que se trata esse ldquoDeusrdquo na filosofia agostiniana

O autor entende a Deus como sendo aquilo de quem tudo procede Uma das passagens mais famosas de suas ldquoConfissotildeesrdquo se denomina ldquoQuem eacute Deusrdquo (Quid amatur cum Deus amatur) e nela Agostinho relata sua aacuterdua busca no interior da criaccedilatildeo para descobrir de onde vieram todas as coisas por quem tais seres foram criados Ao final a natureza proclama ldquorepara que a mateacuteria eacute menor na parte que no todordquo e entatildeo o autor (Confissotildees X 6) declara

Por isso te digo oacute minha alma que eacute superior ao corpo porque vivificas a mateacuteria do teu corpo dando-lhe vida o que nenhum corpo pode fazer a outro corpo Aleacutem disso teu Deus eacute tambeacutem para ti vida da tua vida

que Agostinho (Contra os Acadecircmicos I 25) expotildee a questatildeo que seraacute tratada ele inicia a conversa da seguinte forma ldquoE uma vez tendo-nos reunido por conselho meu num lugar que me pareceu oportuno para tal eu disse Por acaso duvidais que devemos saber o que eacute verdadeirordquo Em seguida o autor questiona ldquoSe pudeacutessemos ser felizes mesmo natildeo tendo compreendido o que eacute verdadeiro julgais ainda ser necessaacuteria a compreensatildeo do mesmo [] O que vos parece disse eu Julgais podermos ser felizes mesmo natildeo tendo encontrado a verdaderdquo

O amor na busca pela verdade 133

Temos duas informaccedilotildees acerca de Deus nestes

trechos ele eacute a mateacuteria do todo e por isso eacute o que confere vida agrave nossa vida e Deus eacute tambeacutem a substacircncia assim como as partes os entes Na ontologia agostiniana existe a substacircncia e o que natildeo eacute substacircncia ou seja o nada45 Sendo Deus a substacircncia originaacuteria todas as coisas e sobretudo noacutes mesmos revelamos cotidianamente a sua existecircncia Dessa forma natildeo eacute difiacutecil para Agostinho distinguir a verdadeira Sabedoria uma vez que ela estaacute presente em tudo

Por ser o todo tambeacutem natildeo eacute uma tarefa complicada descobrir onde buscaacute-la ou qual o caminho deve ser percorrido para encontraacute-la Como partes podemos afirmar que a Sabedoria estaacute em noacutes tambeacutem assim como ela se mostra em toda a natureza E como acessar essa Sabedoria que estaacute tatildeo disponiacutevel a noacutes De acordo com Agostinho esse eacute o empreendimento humano que perpassa o se sentir parte de uma parte (o mundo) e acreditar que esta parte eacute o todo ateacute descobrir que na realidade o todo eacute outra coisa inimaginaacutevel eterno e absolutamente infinito

Precisamos relembrar que antes de Agostinho aderir agrave feacute cristatilde ele seguia o movimento do ceticismo

45 O nada ou o vazio natildeo eacute Eacute neste argumento que se fundamenta a ideia de mal em Agostinho O mal em si natildeo existe porque se existisse seria substacircncia E assim sendo ou ele seria Deus ou teria sido criado por ele Agostinho recusa estas duas possibilidades Deus natildeo eacute o mal porque ele eacute o Sumo Bem e tampouco ele conteacutem o mal ou o criou pois todas as coisas criadas satildeo boas Tambeacutem natildeo existe um deus mal pois isto implicaria dizer que existem dois deuses e Agostinho em correspondecircncia agrave sua influecircncia neoplatocircnica defendia a ideia do Uno Deus eacute o Ser o Uno e nenhum outro Ser existe aleacutem dele E devido a isso eacute apenas dele que vieram todas as coisas Desse modo o mal natildeo existe ele eacute o nada O mal que encontramos no mundo eacute resultado de nossas accedilotildees derivadas de nossas escolhas as quais provecircm de nosso conflito entre as vontades No entanto natildeo eacute uma disputa entre vontade boa e maacute mas uma briga entre o querer e o natildeo-querer

134 Eacutetica e filosofia poliacutetica

acadecircmico sendo ele proacuteprio alvo de suas criacuteticas posteriores Contudo ao que parece o ceticismo acabou se tornando uma ponte para a sua conversatildeo ao cristianismo o qual permitiu-lhe encontrar e se ancorar naquilo que considerava ser por fim a verdadeira Sabedoria

REFEREcircNCIAS AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos A Ambroacutesio de Pina 21 ed Braganccedila Paulista Universitaacuteria Satildeo Francisco 2006 (Col Pensamento Humano)

______ Contra os acadecircmicos Trad Enio Paulo Giachini Petroacutepolis Vozes 2014

CESAREA Eusebius Preparation for the Gospel Trad E H Gifford Disponiacutevel em lthttpwwwtertullianorgfathersindexhtmPraeparatio_Evangelica_(The_Preparation_of_the_Gospel)gt Acesso em 26 jun 2016

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Metafiacutesicas Trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Folha de S Paulo 2015 (Col Folha Grandes Nomes do Pensamento v 5)

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes Pirrocircnicas Livro I Trad Danilo Marcondes Rev o que nos faz pensar n 12 set 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 27 jun 2016

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2006

O amor na busca pela verdade 135

JASPERS Karl Plato and Augustine Nova York Harcourt Brace amp Company 1962 (Col The Great Philosophers v 1)

MATTHEWS Gareth B Santo Agostinho a vida e as ideacuteias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007

PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012

PLOTINO Tratado das Eneacuteadas Trad Ameacuterico Sommerman Satildeo Paulo Polar Editorial 2000

POPKIN Richard A Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

136 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= V =

A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo

Anderson Lucas dos Santos Pereira

51 INTRODUCcedilAtildeO

O presente trabalho tem como intuito analisar a

questatildeo da verdade em Santo Agostinho Como eacute sabido esse ser mutante chamado Santo Agostinho teve uma fase ceacutetica que posteriormente seraacute por ele criticada em sua busca incessante pela verdade Todavia o aguilhatildeo ceacutetico acompanharaacute Santo Agostinho por toda sua vida mesmo convertido Tal trabalho tem a pretensatildeo de dar luz ao problema ceacutetico que haacute no presente autor percorrendo e averiguando por algumas de suas principais obras a questatildeo da Verdade analisando ateacute que medida o problema ceacutetico se daacute como resolvido

52 A REDENCcedilAtildeO E O AGUILHAtildeO CEacuteTICO EM SANTO AGOSTINHO

Confessar Eis o instante da ressurreiccedilatildeo O

inclinar-se a contemplar o caminho da redenccedilatildeo depois de uma estadia na corrupccedilatildeo em prol da transgressatildeo Render-se eacute sentir-se viacutevido suspender-se de todas as ldquonuvens de metalrdquo negar todo o mal e com isso elevar-se em destino a vereda pueril da emancipaccedilatildeo Quando Agostinho confessa concomitantemente liberta-se de alguns dos mais friacutevolos grilhotildees que enclausura seu espiacuterito longe do ser divino pois libertar-se se torna o

Graduando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute

138 Eacutetica e filosofia poliacutetica

caminho para a salvaccedilatildeo sossegar no divino se torna uma suacuteplica para a emancipaccedilatildeo de si Perante isso o viver ganha uma nova finalidade um dia natildeo eacute vivido apenas para esse dia a verdade evoca sua grandeza no proacuteprio caminho da redenccedilatildeo A verdade torna-se pretexto para o caminho da liberdade pois ser livre eacute praticar a verdade na factualidade e ser verdadeiro eacute ter como paradigma o caminho do Ser no qual enquanto estiver percorrendo timidamente contemplaraacute a autenticidade

Alguns perguntariam qual entatildeo eacute o caminho correto para a ressurreiccedilatildeo A liberdade com seu tom teacutetrico nos responderia natildeo haacute caminho pronto o trabalho do peregrino eacute aacuterduo ao mesmo tempo que teraacute de percorrer o caminho o teraacute tambeacutem para construiacute-lo pois inquieto eacute o coraccedilatildeo de um homem ateacute encontrar a verdade repousando nos braccedilos de Deus A finalidade teoloacutegica estaacute dada coube a Agostinho traccedilar o caminho ateacute a integridade Contudo ao confessar Agostinho natildeo tem o intuito apenas de expurgar suas laacutestimas anguacutestias que atordoam sua alma deixando-a inquieta mas sim tambeacutem mostrar a todos que lerem seu livro o Verdadeiro caminho para a redenccedilatildeo baseando-se em uma vida confessada ao lado de seu Pai

Mas a quem narro eu estes fatos Natildeo eacute a voacutes meu Deus Na vossa presenccedila dirijo-me ao gecircnero humano aquele a que eu pertenccedilo ainda que essas paacuteginas possam chegar apenas a uma minoria Entatildeo para que escrevo isto Para que eu e todos que lerem essas palavras pensemos de que abismo profundo se deve clamar por Voacutes (Conf 23 p 53-54)

Encontraraacute muitas pedras no caminho o saacutebio que

decidir percorrer esta trilha Agostinho virtuoso tu eacutes A ferro e fogo entre o erro e a voluacutepia tu vivestes livrou-se ainda em tempo do sensualismo do corruptiacutevel emancipou-se tambeacutem da duacutevida generalizada que antes

A busca da verdade em Santo Agostinho 139

fluiacutea em seu sangue rendeu-se ao maniqueiacutesmo em sua juventude mas logo conseguiu ver salvaccedilatildeo para o pereciacutevel confessou-se e teve a caridade de nos presentear com seu livro (Confissotildees) como uma forma de libertaccedilatildeo do ser para que outras pessoas sigam o caminho do pequeno cordeiro que levaraacute agrave verdade irrefutaacutevel Deus Quem percorrer essa vereda com acircnsia agrave libertaccedilatildeo de si primeiramente teraacute que morrer para assim alcanccedilar a liberdade pois o acircmago da existecircncia soacute eacute concebiacutevel quando deixamos tudo e aceitamos o que os olhos natildeo podem ver

Assim Agostinho invoca sua uacutenica verdade ao compasso do soliloacutequio contempla a luz da salvaccedilatildeo uma verdade irrevogaacutevel jaacute impressa em sua alma o Verbo transparece de uma forma inata Todos fomos feitos por Deus medite que O encontraraacute Mas a certeza do caminho natildeo possui clareza devemos primeiramente o louvar ou o invocar

Mas quem o invoca sem antes natildeo o conhecer Ou por ventura natildeo sois antes invocados para depois serdes conhecido Mas como evocaratildeo em que natildeo acreditaratildeo (Confissotildees p 27)

Entatildeo mostra-se penumbra em meio agrave busca da

salvaccedilatildeo A duacutevida natildeo estaacute cessada mesmo que o caminho fora jaacute projetado agrave luz Mesmo em meio ao horizonte em direccedilatildeo agrave luz do sol a penumbra criada pelas aacutervores rochas em meio agrave jornada obstruiraacute seu caminho Vemos entatildeo que a duacutevida natildeo estaacute introjetada no conhecimento de si para Deus mas sim adversamente na ldquoquestatildeo que Deus fez dele ndash a questatildeo dentro da questatildeordquo (WAZTEL 2015 p 97) Deus estaacute concebido mas a obscuridade rodeia sua legiacutetima face transcende os escombros limitados que datildeo forma agrave nossa razatildeo O corromper da carne natildeo concebe o todo da Eternidade mas mesmo assim

140 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eacute pela feacute que comeccedilamos a ser curados mas nossa salvaccedilatildeo seraacute perfeita quando este corpo corruptiacutevel for revestido da incorruptibilidade e quando este corpo mortal for revestido de imortalidade Essa eacute esperanccedila natildeo ainda realidade

Eis a anguacutestia percorrida pelas suas Verdades

indagando de uma forma sutil e inocente o natildeo comensuraacutevel com sua crenccedila pelo breve futuro

Traccedilar o caminho eis a consequecircncia de ser jogado ao mundo da imundiacutecie do pecado e da voluacutepia Agostinho com suas Confissotildees leva-nos a esta inexoraacutevel caminhada em direccedilatildeo ao futuro na qual com os passos vagarosos caminhamos para a salvaccedilatildeo tendo como pano de fundo a formaccedilatildeo moral do homem perante Deus O caminho explanado nas Confissotildees nos mostra que desde quando nascemos a partir de nossos primeiros segundos em plano terreno nascemos imperfeitos e seres pecadores Agostinho nos salienta

em que podia pecar neste tempo Em desejar ardentemente os peitos de minha matildee Se agora suspirasse com a mesma avidez natildeo pelos seios maternos mas pelo alimento que eacute proacuteprio de minha idade seria escarnecido e justamente censurado (Confissotildees p 33)

Vemos entatildeo que a noccedilatildeo de pecado se daacute

desde o alvorecer de nossa vida desde a amamentaccedilatildeo as laacutegrimas de uma crianccedila satildeo a vinganccedila pelo leite natildeo concebido na hora desejada Seraacute isso a reminiscecircncia de um dos primeiros pecados ldquoOu seria justo mesmo para aquela idade exigir com choros o que talvez o que seria concebidordquo (Confissotildees p 34) Eis a duacutevida novamente fomentando o ardor da alma em direccedilatildeo agrave clemecircncia divina Vemos a transgreccedilatildeo como uma caracteriacutestica jaacute impliacutecita no homem desde sua nascenccedila e que o caminho em prol da redenccedilatildeo torna-se aacuterduo em

A busca da verdade em Santo Agostinho 141

meio ao viacutecio do pecado pois tudo que vislumbramos e vivemos no cotidiano perverte-se em benefiacutecio agrave culpa nos desvirtua do caminho divino rumo a redenccedilatildeo

Agostinho nas Confissotildees nos relata os pecados que cometeu em sua adolescecircncia em benefiacutecio ao ldquocalorrdquo da transgressatildeo Quando ele se debruccedila em seu passado constata nele a beleza materialista que o rodeia vendo isso nas minuacutecias cotidianas como por exemplo nos prazeres sensuais da carne nos jogos de poderes no deleite sobre a inveja perante outros Com esses poucos exemplos vemos o quatildeo distante Agostinho estaacute do caminho postulado em direccedilatildeo agrave veracidade divina pois tais bens se tornam decompositores das virtudes negando ldquoTu Deus Tua Verdade Tua leirdquo (Salmos 40) ldquoeu escapuli de ti em minha adolescecircncia e me extraviei meu Deus ndash foi um grande desvio de tua constacircncia e me tornei para mim mesmo um lugar de desolaccedilatildeordquo O viacutecio leva o ser agrave desolaccedilatildeo no sentido de estar longe do caminho postergado pela luz divina a desolaccedilatildeo se daacute no desassossego da alma em natildeo conter Deus em seu coraccedilatildeo preferindo o tormento e a anguacutestia na desertidatildeo da alma

Quando ousamos corromper a ordem em prol do pecado estamos efetuando um modo de alienaccedilatildeo da transgressatildeo Contudo vemos que tal ldquofealdaderdquo perante os dogmas divinos natildeo satildeo uma negaccedilatildeo de si e de Deus (pois isso seria partir de um adendo maniqueiacutesta) mas sim a negaccedilatildeo de si e de Deus seria a proacutepria noccedilatildeo de suiciacutedio Com isso vemos que para Agostinho os prazeres materiais nada satildeo do que objetos obstinados para a perdiccedilatildeo e com isso para a decomposiccedilatildeo da alma pois eles natildeo deixam uma impressatildeo duradoura como uma Verdade Eterna por maior que for o prazer de tal ente Jaacute o prazer perante a divindade (Aacutegape) se daacute na infinidade da ideia pois como vemos a proacutepria noccedilatildeo de graccedila eacute infinita

142 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Mas diferentemente quando morremos para o

mundo pereciacutevel (em prol da redenccedilatildeo) repercutiremos os passos do Messias ldquoJesus de Nazareacuterdquo Tal morte para Santo Agostinho se daacute como uma representaccedilatildeo da ldquomorte realrdquo pois em meio ao padecimento Jesus se dava como um ser apaacutetico ao medo aceitando seu destino em prol do incorruptiacutevel Eis a figura da morte original Jesus desmaterializou-se com um intuito maior para que pudesse retornar a nossos coraccedilotildees e com isso nos propiciar uma morte particular e legiacutetima Negar o caminho que Jesus de Nazareacute percorreu eacute o mesmo que negar Deus e morrer para Ele A vida sem Deus se daacute na perdiccedilatildeo de ser levando-nos agraves piores dores sendo assim o ideal de vida eacute voltado agrave contemplaccedilatildeo divina concomitante a uma vida confessada Quando nos desvirtuamos do caminho da Verdade negamos tambeacutem o amor de Deus Fomos feitos para sermos estimados por Ele somos sua Suma importacircncia pois ldquoO que faraacutes tu Deus se eu perecer Eu sou teu vaso e se me quebro Eu sou tua aacutegua e se apodreccedilo Sou tua roupa e teu trabalho Sem mim perdes tu e teu sentidordquo (RILKE Rainer Novos poemas p 62) Somos feitos para almejar a Deus Ele eacute inato agrave alma humana nossa harmonia estaacute intriacutenseca ao Verbo ldquoTu nos comoves e nos comprazemos em glorificar a ti que nos fizestes teus ndash e assim o coraccedilatildeo dentro de noacutes eacute desassossegado ateacute sossegar em tirdquo

Com isso vemos que Deus estaacute em tudo e que noacutes devemos O almejar de corpo e alma Sem Deus a alma se daacute como um lugar confinado aacutevido pelos pecados carnais cabe ao Rei adentrar agrave alma e a reparar E se acaso a morada de meu ser for muito pequena entatildeo ldquodeixe que seja expandida por tirdquo Eis o caminho seguido por Jesus de Nazareacute no qual devemos nos aliar para com isso nos santificar

Como seria uma vida sem Deus onde os ornamentos do futuro enfeitam sua existecircncia com seus

A busca da verdade em Santo Agostinho 143

tons obscuros Como seria viver uma vida proacutediga percorrendo os caminhos do absurdo Agostinho retrata a partir de uma reflexatildeo da paraacutebola de Lucas 15 sobre o ser aduacuteltero do caminho de Deus seguindo a infidelidade morrendo para seu Pai Esta paraacutebola conta a histoacuteria de um pai e dois filhos na qual o filho mais novo um dia pediu parte de sua heranccedila ao pai O pai com sua condolecircncia daacute a seu filho tal parte de seus bens como resultado vecirc seu filho partir pelo mundo afora A vida proacutediga e desordenada do filho mais novo faz com que em poucos meses ele gaste todo seu dinheiro com momentos dissoluacuteveis tornando-se pobre Com sua vida em xeque vecirc-se obrigado a trabalhar em terras de um carrasco tornando-se seu escravo alimentando-se escondido do resto da comida dos porcos para natildeo morrer de fome Ficando evidente natildeo apenas sua miseacuteria material mas tambeacutem miseacuteria propriamente existencial de um coraccedilatildeo que natildeo possui Deus Com a consciecircncia pesada de ter transgredido voltou agraves terras de seu pai e abraccedilando-o e beijando-o implorou para que seu pai o deixasse trabalhar para ele como carteiro (oficio de seu pai) O filho mais velho chega em cena diante do que vecirc seu pai abraccedilando o filho proacutedigo e o presenteando com uma grande festa por sua volta irrita-se e rebela-se contra o pai pois ele nunca havia ganhado nada de seu pai mesmo natildeo o traindo e seu irmatildeo por ter traiacutedo havia ganho uma festa por sua volta O pai com toda sua serenidade entatildeo responde ao filho que todos seus bens pertencem tambeacutem a ele mas que era justo alegrar-se naquele dia pois seu irmatildeo estava morto e reviveu tinha se perdido mas achou-se

Em uma adaptaccedilatildeo da paraacutebola do filho proacutedigo Agostinho nos apresenta seu eu da juventude como um eu corrompedor dos valores que ele agora pregava Agostinho nos conta que em sua juventude com a companhia de seus amigos roubara a propriedade de outrem uma porccedilatildeo de frutas natildeo cometeu tal delito pela

144 Eacutetica e filosofia poliacutetica

fome que sentira mas apenas pela adrenalina da transgressatildeo das regras Tanto na paraacutebola do filho proacutedigo quanto na adaptaccedilatildeo confessional os elementos incisivos na proacutepria noccedilatildeo de pecado original Um deles eacute a pobreza motivacional perante o fato de roubar que apenas tinha como intuito ilusoacuterio a delimitaccedilatildeo das normas e ser concebido em um grupo de amigos e tambeacutem uma disposiccedilatildeo de substituir o consenso racional implantado por uma ausecircncia da razatildeo

Com isso a partir de uma analogia entre a paraacutebola biacuteblica e a confissatildeo de Santo Agostinho alguns nuances que se assemelham e se negam Vemos a partir de uma explanaccedilatildeo de James Watzel tais similaridades e dissonacircncias

Jaacute existem umas divergecircncias oacutebvias da paraacutebola de Lucas Agostinho natildeo estaacute desperdiccedilando uma heranccedila que lhe foi concedida voluntariamente estaacute desperdiccedilando um fruto que a lei o proiacutebe de colher E natildeo apenas ele ele natildeo ousaria infringir a lei caso estivesse sozinho e menos consciente de sua necessidade de ser aceito no grupo Agostinho tece em sua faacutebula do proacutedigo dois elementos que associa com o pecado original pobreza de motivo (natildeo existe uma boa razatildeo para enfrentar as leis de Deus e perder o Eacuteden) e uma disposiccedilatildeo para substituir o consenso por uma ausecircncia de razatildeo (ningueacutem perde o Eacuteden sozinho) Com resultado muda seu foco para a natureza proacutediga do pecado ndash uma forma de pobreza obstinada velado como um movimento para a auto expressatildeo licenciosa (WATZEL James Compreender Santo Agostinho p 76)

Vemos entatildeo um retrocesso ao mito adacircmico e

segundo Agostinho a primeira causa das transgressotildees futuras Deus dentre os sete dias natildeo criou o pecado o homem que se possibilitou a ele a partir de seu livre-arbiacutetrio Todos os pecados em si possuem consigo a caracteriacutestica do pecado primordial concebido na gecircnese

A busca da verdade em Santo Agostinho 145

da criaccedilatildeo a transgressatildeo a desordem o desvirtuamento eacute o fundamento do pecado em si O mal natildeo eacute nada mais que essa transgressatildeo de ordem uma negaccedilatildeo em prol da ilusatildeo da liberdade que se fundamentou na corrupccedilatildeo desvinculando-se do eterno Deste modo a infecccedilatildeo postulada pelo pecado original e toda sua culpabilidade condenando desde as crianccedilas no ventre de suas matildees ateacute as mentes mais perversas e contagiosas Eis o contaacutegio hereditaacuterio que perpassa por todas as culturas e tempos que afeta e alastra-se como uma praga por toda a humanidade

Tal pecado original se daacute como uma obra da liberdade humana sendo destituiacuteda da Natureza de Deus e concomitantemente concebida como uma negaccedilatildeo do Mesmo Tudo que natildeo se constitui a partir da benccedilatildeo divina rui em meio as trevas Adatildeo o terroso perde com isso Assim como o resto do mundo a proximidade com o Ser divino sendo retirado da gleba deteriorando-se em meio ao poacute A poeira caoacutetica eacute a heranccedila postergada pelos primeiros humanos que se espalha e perpetua transmitida a todo gecircnero humano pelo primeiro homem o ancestral iniciador da perdiccedilatildeo Vemos entatildeo a histoacuteria do universo segmentada em duas partes uma anterior ao pecado e uma poacutestuma a ele consistido na perdiccedilatildeo humana na desuniatildeo e no desassossego longe de Deus

Em Satildeo Paulo temos Adatildeo como ldquoa figura daquele que devia virrdquo e por mais que natildeo conceba uma visatildeo primordial do pecado Como um contaacutegio hereditaacuterio assim como em Santo Agostinho podemos jaacute salientar a evidecircncia de tal concepccedilatildeo ou seja do que posteriormente tornou-se a noccedilatildeo de pecado primordial

12O pecado entrou no mundo por um soacute homem Atraveacutes do pecado entrou a morte E a morte passou para todos os homens porque todos pecaram 13Na realidade antes de ser dada a Lei jaacute havia pecado no mundo Mas o pecado natildeo pode ser imputado quando

146 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo haacute lei 14No entanto a morte reinou desde Adatildeo ateacute Moiseacutes mesmo sobre os que natildeo pecaram como Adatildeo - o qual ndash era a figura provisoacuteria daquele que devia vir 15Mas isso natildeo quer dizer que o dom da graccedila de Deus seja comparaacutevel agrave falta de Adatildeo A transgressatildeo de um soacute levou a multidatildeo humana agrave morte mas foi de modo bem mais superior que a graccedila de Deus ou seja o dom gratuito concedido atraveacutes de um soacute homem Jesus Cristo se derramou em abundacircncia sobre todos Palavra do Senhor (Satildeo Paulo aos Romanos 512-15)

Com este fragmento da epiacutestola de Satildeo Paulo aos

romanos percebe-se que diferentemente de Santo Agostinho e o mal original Paulo salienta que ldquoAtraveacutes do pecado entrou a morte e a morte passou para todos os homens porque todos pecaramrdquo A morte neste sentido ganha um indicativo do conceito do mais puro mal tornando o mal algo concebido criado diferindo-se da posiccedilatildeo agostiniana do mal como o livre-arbiacutetrio escolhido pelo homem O pecado em Paulo natildeo foi inventado pelo homem eacute por conseguinte uma forccedila interior ao proacuteprio homem instituiacuteda por uma forccedila maior

Mas o que levou Adatildeo ou qualquer outro humano a cometer pecados negando o que haacute de mais Belo Justo e Bom Qual eacute a maior motivaccedilatildeo para ser um transgressor de acordo com Agostinho

Agrave preguiccedila parece apetecer apenas o descanso mas que repouso seguro haacute fora do senhor A luxuacuteria deseja apelidar-se saciedade e abundacircncia Voacutes poreacutem sois a plenitude e abundacircncia interminaacutevel da suavidade incorruptiacutevel A prodigalidade cobre-se com a sombra da liberalidade mas o mais magnacircnimo dispensador de bens sois Voacutes A avareza quer possuir muito e Voacutes possuis tudo a inveja litiga a partir da ldquoexcelecircnciardquo mas haveraacute algum Ser mais excelente que voacutes A ira procura a vinganccedila e quem se vinga mais justamente que voacutes (Confissotildees p 60)

A busca da verdade em Santo Agostinho 147

No entanto os bens corruptiacuteveis tecircm sua beleza que se resume na aptidatildeo pelo seu fim Independente do fim seja pela mera inclinaccedilatildeo a pecar ou pelas riquezas e soberba visceral o pecado procura a partir de sua beleza enganadora impulsionar o homem ao decliacutenio da alma com isso deleitando-se em meio agrave luxuacuteria o pecado mais avassalador e imundo Neste momento o homem agrada-se aos braccedilos de Asmodeus sucumbindo-se em meio ao caos levando o mesmo fim que Sodoma

Diante dessas constataccedilotildees surge uma outra questatildeo Porque a preferecircncia por esses prazeres corruptiacuteveis sendo que Deus posto a noacutes se daacute como um ser insaciaacutevel A resposta para isso encontra-se no conceito ldquodesejordquo (desidĕrĭvm) Etimologicamente veremos que tal conceito tem origem latina onde o radical ldquoderdquo indica um movimento de declive ou seja um movimento de cima para baixo Enquanto o prefixo do conceito (sidĕrĭvm) significa ldquoestrelardquo ldquoastrordquo ldquocorpo celesterdquo Com tal especificaccedilatildeo lembramos sobre a estrela caiacuteda dos ceacuteus (Luacutecifer a estrela da manhatilde) que a partir de seu desejo de se igualizar a Deus por seu orgulho foi exilado dos ceacuteus em declive ao inferno No paraiacuteso adacircmico tambeacutem o desejo foi o progenitor do pecado resultando na expulsatildeo do paraiacuteso A transgressatildeo nada mais eacute que o desejo pelo natildeo concebido pelo proibido

Vemos em Santo Agostinho que tal fonte de desejo por natildeo apenas conceber Deus como seu objeto mas variados entes o desejo se daacute como segundo Hannah Arendt expotildee

Santo Agostinho define o amor como uma forma de desejo que dentro da temporalidade se coloca como anseio de se apropriar deste algo bom seja por recuperaccedilatildeo do que jaacute se teve ou alcanccedilando o que ainda natildeo se tem Mas o problema eacute que este desejo de posse implica o medo medo de perder medo de natildeo alcanccedilar que remete de novo o homem agrave

148 Eacutetica e filosofia poliacutetica

instabilidade que por sua vez gera o movimento Santo Agostinho se volta para a questatildeo uacuteltima do amor como anseio de superaccedilatildeo do medo do isolamento e da instabilidade o que implica a superaccedilatildeo da proacutepria temporalidade A vida na temporalidade eacute um entre entre o natildeo mais e o ainda natildeo Desse modo Santo Agostinho afirma que o homem eacute aquilo que ama e para ele quem natildeo ama natildeo eacute nada E portanto adverte eacute necessaacuterio ter cuidado em relaccedilatildeo ao que se ama no sentido de estar atento ao que se ama O que o homem ama onde potildee a atenccedilatildeo ali estaacute o seu destino (ARENDT Hannah O conceito de amor em Santo Agostinho)

Na realidade para Santo Agostinho haacute uma

expansividade o desejo Ou seja a lsquoestrutura fundamental do entersquo (o desejo) eacute a forma de um apetite que instala o querente na solidatildeo expotildee-no a todas as anguacutestias e a todas as audaacutecias mas atraiccediloa uma dinacircmica irrecusaacutevel a vontade de ser feliz Felicidade alegria ou qualquer outro nome que se lhe chame o objeto do desejo revela o fim uacuteltimo do ser criado ser feliz O desejo eacute ontoloacutegico eacute um movimento um anseio em direccedilatildeo a algo bom o que jaacute implica a ideia da instabilidade do ser humano que eacute assim um ser em tracircnsito O homem eacute aquilo que se esforccedila por atingir Ficamos parecidos com o que amamos O amor eacute a mediaccedilatildeo entre o que ama e aquilo que ama o que ama nunca estaacute isolado daquilo que ama isso lhe pertence A realizaccedilatildeo eacute a beatitude que natildeo consiste em amar mas em fruir daquilo que eacute amado e desejado Todo o amor eacute tensatildeo dirigida para esta fruiccedilatildeo No entanto ningueacutem eacute feliz se natildeo fruir do que ama Fruir eacute estar perto do objeto desejado O que pode impedir o homem neste trajeto eacute a sua proacutepria vontade o livre-arbiacutetrio Cabe aos homens elegerem o objeto de seu amor aquilo que pensa que os faraacute felizes O mal natildeo estaacute no mundo ou nos objetos do mundo mas onde se coloca o coraccedilatildeo A morte como o fim da vida lanccedila a proacutepria vida para o retorno ao seu

A busca da verdade em Santo Agostinho 149

ser O amor tem a forccedila da morte porque o poder de subtrair o homem ao mundo reenvia agrave eleiccedilatildeo no seio do mundo Em outras palavras o sentimento de que natildeo haacute o que perder eacute o objetivo maior do amor lsquoTorna-te o que eacutesrsquo ndash isto eacute reconhece com gratidatildeo o que o fato de ter nascido te proporciona

Agostinho nas confissotildees lembra de um amigo falecido pela febre chorou lamuriou-se sobre a vida de seu amigo visando uma tristeza mais teatral quanto intensa Teatral natildeo no sentido de sentir uma tristeza falsa perante seu amigo mas sim uma tristeza anaacuteloga agraves trageacutedias gregas algo que encanta e ilude ao mesmo tempo Agostinho nas confissotildees nos diz que a morte de seu amigo se dava de um modo entristecedor para ele pois o amigo fazia parte dele quando ele via seu amigo via ao mesmo tempo o seu eu estampado na figura do amigo

Meu coraccedilatildeo estava inteiramente na sombra da tristeza e a morte era o que eu via em tudo Minha terra natal era uma puniccedilatildeo para mim a casa do meu pai um lugar estranho e desafortunado As coisas que eu partilhava com meu amigo voltavam e me torturavam cruelmente em sua ausecircncia Meus olhos se mantinham procurando por ele em todo lugar e ele havia partido

Em outra passagem das Confissotildees Agostinho

retrata o quanto seu eu transgressor contemplava e pranteava por figuras que natildeo eram seu Deus colocando seu amor nos seres corruptiacuteveis negando o eterno Por exemplo quando Agostinho defronta-se em sua juventude com a obra traacutegica de Virgiacutelio denominada Eneida sente-se frustrado por ter chorado naquela eacutepoca por uma ficccedilatildeo traacutegica na qual Dido mulher de Eneacuteas mata-se por seu amor pois ele queria fundar Troacuteia em Roma em vez de ficar ao lado de sua esposa Agostinho frustra-se pois estava chorando por um ser que aleacutem de

150 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ficcional tambeacutem se lamuriava por Eneacuteas natildeo ter auto-piedade de si negando a Deus em favor de uma guerra Quando Agostinho refere-se aos atos traacutegicos o mesmo diz que a mimeses da vida no teatro se daacute em um fundo falso no qual apenas o que conta eacute a aparecircncia da tristeza negando o real sofrer Agostinho nega a importacircncia da catarse aristoteacutelica dos sentimentos pois o homem que sofre por medo da perca de um ente querido ou de sua proacutepria vida estaacute com a alma perturbada (perturbatio animi) negando a felicidade virtuosa possui o medo do devir aos braccedilos de Deus Vemos com isso que o amor por mais que seja sincero pode desvirtuar-se ao caminho da morte perante Deus

Mas voltando agrave questatildeo ao cerne do problema proposto sobre o caminho da redenccedilatildeo Agostinho por mais que tenha se rendido agrave graccedila da salvaccedilatildeo obtecircm uma soluccedilatildeo para com sua duacutevida perante o conhecimento de Deus Em outras palavras sua experiecircncia fruitiva perante o Absoluto se daacute de forma clara e distinta Segundo o comentaacuterio de Jacques Maritain filoacutesofo da religiatildeo especialista em Santo Agostinho

A experiecircncia miacutestica consiste essencialmente numa ldquoexperiecircncia fruitiva do Absolutordquo Como experiecircncia fruitiva ela se exerce atraveacutes de um tipo de conhecimento de seu objeto e de adesatildeo afetivo-volitiva que transcendem o modo usual de operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer e visa em sua intencionalidade objetiva o Absoluto ultrapassando a contingecircncia e relatividade dos objetos que se aparecem agrave nossa experiecircncia ordinaacuteria (MARITAIN 1930)

Se observar possibilidade da ldquoaberturardquo perante o

divino de uma forma transcendental que supera a forma loacutegicaformal de conhecimento experienciativo delimitando o conhecimento perante a possibilidade

A busca da verdade em Santo Agostinho 151

intramundana concebida pelo sensualismo concomitante agrave experiecircncia casual Conceber o divino eacute ir aleacutem do conhecimento funcional e utilitaacuterio posto no cotidiano eacute transgredir a sensibilidade corriqueira diluir-se em um ecircxtase em sintonia com a Luz gravada na alma onde mesmo fechando os olhos poderei Te ver mesmo trancando os ouvidos poderei Te ouvir no qual mesmo sem minha proacutepria boca poderei Te invocar pois como suportar a sensibilidade se natildeo tornar ela uma definiccedilatildeo do ausente Uma suposiccedilatildeo do indiziacutevel Eis o sentimento extaacutetico lanccedilando-se aos braccedilos do inconcebiacutevel cegado pela luz que vela o impossiacutevel sendo apenas o que eacute todo o absurdo ldquoeis o misteacuterio da feacuterdquo (Oraccedilatildeo Eucariacutestica III) Sobre o misteacuterio cita Agostinho

[] A quem confessaria a minha ignoracircncia com mais proveito do que a ti que natildeo se desapraz com o forte zelo que me inflamas por tuas Escrituras Concede-me o que amo pois este amor eacute um dom teu Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios Eu suplico por Cristo em nome do Santo dos santos que ningueacutem perturbe minha investigaccedilatildeo Acreditei e por isso falo Minha esperanccedila a esperanccedila pela qual vivo eacute contemplar as deliacutecias do senhor [] (Confissotildees p 123)

Percebemos o caraacuteter afetivo-volitivo na suacuteplica

de Agostinho pela ldquocontemplaccedilatildeo das deliacutecias do senhorrdquo a intencionalidade objetiva relacionada com a superaccedilatildeo da contingecircncia e da relatividade em busca de um porto no qual se encerra a dissoluccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na luz absoluta Assim Santo Agostinho exerce a experiecircncia fruitiva na busca de sua experiecircncia miacutestica agrave guisa da determinaccedilatildeo do conhecimento do enigma ou

152 Eacutetica e filosofia poliacutetica

seja do proacuteprio misteacuterio que faz mister salientar que eacute o proacuteprio Absoluto

Nota-se que a ideia de transformaccedilatildeo da vida estaacute imbricada no contexto do fascinium daiacute podemos deliberar sobre o que Santo Agostinho busca atraveacutes da experiecircncia miacutestica ou seja confessando a sua ignoracircncia a Deus ele espera natildeo somente uma aproximaccedilatildeo com o absoluto mas tambeacutem uma quase-identidade com este revelando a ele a luz em consonacircncia com a experiecircncia miacutestica O sujeito Agostinho visa a comunhatildeo com o objeto intencionado ou seja com o misteacuterio do Absoluto O Livro XI das Confissotildees se encontra sob o influxo da miacutestica especulativa ou seja das fontes claacutessicas e neoplatocircnicas o eixo subjetivo em consonacircncia com a objetividade a harmonia sujeitoobjeto pela via do conhecimento embora este conhecimento esteja em grau iacutenfimo em relaccedilatildeo ao Sagrado que eacute incognosciacutevel

[] Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios [] (Confissotildees p 123)

Vemos com isso natildeo apenas uma harmonia com a teologia cristatilde sobre o misteacuterio da feacute mas tambeacutem uma posiccedilatildeo filosoacutefica denominada pirronismo um desassossego causado pelo misteacuterio ainda natildeo resolvido O problema epistemoloacutegico sobre o conhecimento ldquoperante aquele que Eacuterdquo natildeo se resolve apenas pelo consentimento da redenccedilatildeo pois assim como um ceacutetico pirrocircnico Agostinho nega o assentimento a preposiccedilotildees que podem ser duacutebias sobre o indiziacutevel pois nos falta evidecircncias sobre o Ser caindo sempre na vatilde aparecircncia

Mas quem realmente foi Pirro Como se dava a ldquometodologiardquo pirrocircnica para com a episteme E o mais

A busca da verdade em Santo Agostinho 153

importante como pode vincular tal noccedilatildeo pirrocircnica sobre o conhecimento com o misteacuterio divino

Pirro foi um filoacutesofo antigo nascido em Eacutelida entre 365 e 360 aC Foi um pensador muito influenciado pela escola socraacutetica na qual inclinou-se sobre e radicalizou a ignoracircncia saacutebia de Soacutecrates dando gecircnese a um importante ensinamento que se repercute ateacute os dias de hoje Falo da renuacutencia epistemoloacutegica sobre a Verdade uacuteltima sobre o fundamento (archeacute) da natureza (physis) que nega a essecircncia informando que a mesma ainda natildeo foi concebida denegando qualquer consentimento sobre a Verdade mas que ainda como um peregrino busca a mesma tendo sempre em vista o conceber de tal entidade assim como comenta Giovanni Reale

Enquanto o caminho da ontologia vai das aparecircncias ao ser (seja para os fiacutesicos seja para os metafiacutesicos) ao contraacuterio Pirro volta do ser agraves aparecircncias negando qualquer juiacutezo sobre o ser e reconhecendo consequumlentemente apenas o aparecer (REALE p 144)

A partir de tal perspectiva vemos a renuacutencia do

ser a abdicaccedilatildeo do inclinar-se a uma substacircncia que talvez natildeo possa estar contida no homem nem no mundo e que portanto devemos nos suspender perante tais juiacutezos epistemoloacutegicos sobre a existecircncia pois apenas assim que podemos alcanccedilar segundo Tiacutemon disciacutepulo imediato de Pirro ldquoa afasia e depois a ataraxiardquo (Aristoacutecles test 53)

A partir de tal epocheacute pirrocircnica natildeo podemos julgar ajuizar o mundo a partir de uma verdade fulcral pois nada por essecircncia eacute belo ou feio justo ou injusto bom ou mal assim como nos afirma Dioacutegenes Laeacutecio sobre Pirro ldquopois o que os homens fazem acontece por convenccedilatildeo e por haacutebito e nada eacute mais que aquilordquo (LAEacuteRCIO p 234) Com isso vemos que tais valores natildeo possuem uma estatura ontoloacutegica assim como

154 Eacutetica e filosofia poliacutetica

queriam os dogmaacuteticos mas apenas o puro fenocircmeno do mundo assim como nos aparece pois o valor da coisa-em-si eacute inconcebiacutevel fazendo-nos sempre nos suspender sobre tal Giovanni Reale nos mostra a incomensurabilidade do ser enquanto ser em tal fragmento a partir de um exemplo trivial ldquoIsso significa que em si o mel sendo como qualquer outra coisa indeterminado e inqualificaacutevel enquanto soacute o aparecer eacute qualificaacutevelrdquo (REALE p 148)

Mas contudo Pirro natildeo chegou a dissolver o mundo todo em uma simples aparecircncia pura e universal pois tal renuacutencia total seria o mesmo que cair em um dogmatismo negativo ou seja a uma absoluta certeza desviando-se da duacutevida hiperboacutelica Para a comprovaccedilatildeo de tal argumento segue-se uma passagem de Tiacutemon em uma conversa com um terceiro sobre como Pirro leva sua vida pacata sem grandes idealizaccedilotildees laborativas

Oacute Pirro esse meu coraccedilatildeo deseja aprender de ti como e que tu mesmo sendo homem tatildeo facilmente levas a vida tranquumlila tu que eacutes apenas guia para os homens semelhante a um Deus

Pirro com isso responde Dir-te-ei na verdade como me parece que seja tomando como reto cacircnon essa palavra de verdade uma natureza do divino e do bem viver eternamente do qual deriva para o homem a vida igualiacutessima

Como entender tal resposta de Pirro Segundo Giovanni Reale o Deus e o Bem pirrocircnico natildeo se daacute no mundano nem no transcendente mas sim satildeo apenas aspectos que se desvanecem e que com isso fogem da sensibilidade A afasia concomitante agrave apatia eacute tal ldquosupremaciardquo virtuosa ceacutetica que se sustenta na privaccedilatildeo de toda a faculdade de escolha quando natildeo haacute um sustento aonde possa apoiar-se Vemos com isso as

A busca da verdade em Santo Agostinho 155

escolhas se esvaiacuterem do terreno uma vez soacutelido para os filoacutesofos dogmaacuteticos eis o fundamento da virtude ceacutetica Tal virtude se daacute no movimento de negaccedilatildeo de qualquer juiacutezo cognitivo permanecendo sem qualquer inclinaccedilatildeo sendo indiferente a entidade julgada

eacute preciso natildeo ter opiniatildeo [] afirmando de cada coisa que eacute natildeo mais do que natildeo eacute ou que eacute e que natildeo eacute ou que ainda nem eacute ou nem natildeo eacute Os que se potildeem nesta posiccedilatildeo conseguiratildeo em primeiro lugar a afasia (ARISTOacuteCLES p 18)

Mas como devemos entender essa afasia ceacutetica

Talvez natildeo viver para este mundo Negar a exterioridade Natildeo mais poder de maneira nenhuma se expressar Viver em um mero solipsismo passivo de maneira nenhuma ajuizando o mundo Natildeo segundo Sexto Empiacuterico nas Hipotipoacuteses Pirrocircnicas comenta

Sobre a afasia digamos o seguinte [] Em sentido geneacuterico ldquofasirdquo eacute uma palavra que significa afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo como ldquoeacute diardquo ldquonatildeo eacute diardquo [] Portanto afasia equivale a renunciar agrave fasi no seu significado comum no qual dizemos que estatildeo contidas a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo de modo que afasia eacute uma afecccedilatildeo interna a noacutes na qual nem afirmamos nem negamos (ARISTOCLES)

Eis o caminho do ser virtuoso alcanccedilar neste

ecircxtase redutivo a ataraxia a ldquovida igualiacutessimardquo em suma redenccedilatildeo consigo mesmo Eis a forma pirrocircnica de viver

Enquanto os seus companheiros de viagem no navio apavoravam-se por causa da tempestade ele permanecia tranquumlilo e retomava acircnimo apontando um leitatildeozinho que continuava a comer e acrescentando que tal imperturbabilidade era exemplar para o comportamento do saacutebio (EMPIacuteRICO I 192)

156 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Vemos com isso o fim de todo pirrocircnico a total apatia do saacutebio as pupilas vazias de anima mas que ainda em seu interior cabendo consigo o sorriso de um homem sereno perante o mundo (um saacutebio)

Com isso chegando ao intuito final de tal trabalho nos perguntamos Qual eacute a consonacircncia existente entre um ceacutetico abnegador de qualquer verdade uacuteltima e um cordeiro da luz Qual eacute a semelhanccedila entre o meacutetodo ceacutetico e a redenccedilatildeo agostiniana pela feacute Como podemos conciliar a crenccedila divina em frente a ataraxia Veremos que o aguilhatildeo ceacutetico ainda estaacute incumbido na alma do Santo a anguacutestia ainda atordoa a alma o devir ainda eacute obscuro e Deus ainda natildeo foi concebido A verdade ainda estaacute velada obscurecida pela ignoracircncia do homem A necessidade de Agostinho de clamar a Deus convocaacute-lo em seus ritos justifica sua busca insaciada pela Verdade na qual cessaraacute apenas post mortem

Como salientado antes Agostinho ao contemplar-se com sua divindade adentra em um caminho em direccedilatildeo agrave travessia para a verdade da libertaccedilatildeo da emancipaccedilatildeo de sua alma Mas tal caminho por conter a ldquoqueda agrave carnerdquo torna-se nocivo pedregoso tornando a clareza da verdade uma incoacutegnita Salienta a biacuteblia sagrada ldquoAtenta para a obra de Deus Quem poderaacute endireitar o que ele fez tortordquo (Eclesiastes 7 13) A verdade pode estar dentro de nossos coraccedilotildees a partir da ressurreiccedilatildeo do Messias (o prometido) encarnado mas a figura real de Deus em sua mais esplecircndida Forma delimitada de qualquer compreensatildeo humana apenas pode ser concebida post mortem

Depois de tudo vemos que Santo Agostinho se associa agrave miacutestica revelando que a experiecircncia com o Sagrado implica a supressatildeo do tempo percebemos que no Cap XI sobre ldquoO tempo e eternidaderdquo Santo Agostinho exprime que os espiacuteritos buscam o Absoluto pois ainda se encontram presos nas correntes do tempo

A busca da verdade em Santo Agostinho 157

sendo eles cativos do passado e do futuro assim expotildee o Bispo de Hipona

Os que assim falam natildeo te compreendem ainda oacute sabedoria de Deus luz das inteligecircncias natildeo compreendem ainda como eacute criado o que eacute criado por ti e em ti Esforccedilam-se por saborear as coisas eternas mas seu espiacuterito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras

Santo Agostinho aclara que o momento presente

pode ser experienciado em Deus ou seja na eternidade irrompendo com as malhas do passado e do futuro e ponderando a partir do enlevo do que ldquosempre eacuterdquo ou seja da presenccedila constante do Absoluto sem os grilhotildees do passado e do futuro que encerram o devir o espaccedilo e o tempo e tudo mais que atrela o homem nas algemas do movimento Agostinho ressalta que o homem apenas carece deste porto do Absoluto pois natildeo o identifica como ldquonatildeo serrdquo

Desde que a alma plaine sobre os fatos passados e futuros o homem natildeo experiencia a ultravida na que eacute o feitio proacuteprio de Deus pois o tempo eacute a forma essencial da proacutepria alma esta se desdobra por seccedilotildees se possui por partes e por capiacutetulos havendo um desdobramento e esta abertura eacute o tempo portanto soacute eacute possiacutevel alcanccedilar a experiecircncia emblemaacutetica quando se abole o tempo

Com isso natildeo podemos dar evidecircncia a um certo pirronismo na filosofia miacutestica de Agostinho A procura pelo saciar nos braccedilos de Deus se daacute em uma longa caminhada pelos caminhos obscuros tendo uma impressatildeo apenas sobre a existecircncia de Deus mas natildeo uma clarividecircncia sobre a face divina A luz que cintila dos ceacuteus cega o homem que olha para o alto clamando nunca colocando sua verdadeira face agrave mostra sempre velado por sua camada de luminescecircncia divina Eis o

158 Eacutetica e filosofia poliacutetica

momento de suspender colocar entre parecircnteses sua real forma e viver a vida em meio a este enigma

Agostinho natildeo eacute um ceacutetico pirrocircnico mas perante a incognoscibilidade de Deus ele o coloca como um misteacuterio que nem a feacute ou os ritos poderatildeo explicar Mas Agostinho lamuria-se com isso Natildeo o bispo de Hipona nada mais faz do que esperar a sua hora chegar seguindo os ensinamentos de Soacutecrates e talvez de Pirro Agostinho aprendeu a morrer serenamente aguardando em paz sua hora chegar para conceber a Verdade assim como um ideal pirrocircnico Claramente Pirro e Agostinho traccedilaram caminhos distintos para se alavancar agrave ataraxia um por ter se rendido agrave duacutevida generalizada outro por ter se rendido ao Inconcebiacutevel mas nada impede de terem se encontrado em qualquer encruzilhada saudando o espiacuterito um do outro diluindo-se na plena ataraxia

REFEREcircNCIAS BIacuteBLIA Biacuteblia sagrada Traduccedilatildeo de Padre Antocircnio Pereira de Figueredo Rio de Janeiro Encyclopaedia Britannica 1980 Ediccedilatildeo Ecumecircnica

AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

______ Confissotildees 24 ed Trad de J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Petroacutepolis Vozes 2009 376p

BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009

WATZEL James Compreender Agostinho Trad Caesar Souza Petroacutepoles RJ Vozes 2011

REALE Giovanni Estoicismo Ceticismo e Ecletismo Satildeo Paulo SP Loyola 2011

A busca da verdade em Santo Agostinho 159

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010)

160 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VI =

O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE

Joseacute Luiz Giombelli Mariani 61 INTRODUCcedilAtildeO

O periacuteodo histoacuterico da Reforma Protestante eacute

considerado conturbado e de muitas revoluccedilotildees que culminou na mudanccedila do pensamento ocidental muitos pensadores surgiram nessa eacutepoca cada um defendendo sua feacute e questionando os adversaacuterios ldquoTanto os inovadores quanto os defensores da tradiccedilatildeo viram-se diante do mesmo problema Geralmente tentaram resolvecirc-lo atacando o criteacuterio do adversaacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29)

A problemaacutetica desse periacuteodo da reforma protestante circula em torno de um criteacuterio de verdade este problema foi central na disputa da Reforma acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso chamado de ldquoregra de feacuterdquo Assim escreve Popkin sobre as questotildees levantadas na Reforma que mais tarde se espalhou para a filosofia

O problema de se encontrar um criteacuterio de verdade primeiro levantado em disputas teoloacutegicas foi posteriormente levantado tambeacutem em relaccedilatildeo natural levando agrave crise pyrrhoniemne do iniacutecio do seacuteculo XVII (POPKIN 2000 p 25)

Acadecircmico de graduaccedilatildeo do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute UNIOESTE campus de Toledo Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID) e-mail joseluizmarianigmailcom

162 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Algumas questotildees levantadas nesse periacuteodo satildeo

as seguintes Qual o padratildeo atraveacutes do qual reconhecemos a feacute e como podemos determinar com certeza o que as Escrituras dizem Por meio de que criteacuterio pode dizer que as Escrituras consistem na Palavra de Deus Quais as evidecircncias desta Verdade Revelada Para responder tais questotildees existiram diversas correntes sendo as duas principais o catolicismo versus os seguidores de Lutero conhecidos como protestantes Existiram tambeacutem aqueles que tomaram a atitude ceacutetica como forma de resolver essa problemaacutetica ou seja em linhas gerais para estes natildeo podemos determinar o criteacuterio de verdade apresentado por ambos os lados da discussatildeo da feacute

O presente trabalha apresenta de forma geral os criteacuterios de verdade dos catoacutelicos e dos protestantes e o embate entre ambas e por fim apresenta a saiacuteda apresentada pelos ceacuteticos desse periacuteodo

62 O CETICISMO E O CRISTIANISMO

Primeiramente eacute necessaacuterio fazer uma breve

abordagem acerca desses dois conceitos a saber ceticismo e cristianismo A partir do Dicionaacuterio filosoacutefico de Andreacute Comte-Sponville podemos entender o ceticismo como

O contraacuterio do dogmatismo no sentido teacutecnico do termo Ser ceacutetico eacute pensar que todo pensamento eacute duvidoso - que natildeo temos acesso agrave certeza absoluta Note-se que o ceticismo a natildeo ser que se destrua deve ser incluiacutedo na duacutevida geral que ele instaura tudo eacute incerto inclusive que tudo seja incerto Agrave gloacuteria do pirronismo dizia Pascal Isso natildeo impede de pensar aliaacutes eacute o que obriga a pensar sempre Os ceacuteticos buscam a verdade como todo o filoacutesofo (eacute o que os distingue dos sofistas) mas nunca estatildeo certos de tecirc-la encontrado nem mesmo que seja possiacutevel encontraacute-la

O ceticismo na reforma protestante 163

(eacute o que os distingue dos dogmaacuteticos) Isso natildeo os aborrece Natildeo eacute a certeza que eles amam mas o pensamento e a verdade Por isso gostam do pensamento em ato e da verdade em potecircncia ndash o que eacute a proacutepria filosofia e eacute nisso que dizia Lagneau o ceticismo eacute o verdadeiro Decorre daiacute que ningueacutem eacute obrigado a ser ceacutetico nem autorizado a secirc-lo dogmaticamente (COMTE-SPONVILLE 2003 p 99)

O ceticismo eacute uma corrente filosoacutefica que teve

iniacutecio na antiguidade com Pirro de Eacutelis mais tarde Sexto Empiacuterico e outros tantos seguidores foram importantes na construccedilatildeo desta corrente filosoacutefica grega Portanto o ceticismo antigo foi uma grande corrente de pensamento e de grande importacircncia no pensamento grego muitas questotildees foram levantadas pelos ceacuteticos antigos Sabemos que estes escreveram inuacutemeros textos poreacutem poucos resistiram ao tempo se hoje conhecemos esta corrente do pensamento eacute graccedilas agraves obras tardias de Dioacutegenes Laeacutercio Ciacutecero e especialmente Sexto Empiacuterico

O Cristianismo tem sua base na vida e histoacuteria de Jesus Cristo que viveu em meio agrave cultura judaica Os cristatildeos possuem um livro considerado sagrado pelos seus seguidores que eacute a Biacuteblia tal conjunto de obras tecircm duas divisotildees o Antigo Testamento que satildeo livros que contam a histoacuteria antes da vinda de Jesus e o Novo Testamento que conteacutem os quatro evangelhos chamados de canocircnicos ou seja reconhecidos pela Igreja a saber Matheus Marcos Lucas e Joatildeo aleacutem de cartas e de livros que narram agrave vida das primeiras comunidades de feacute Segundo os Catoacutelicos este livro eacute a Palavra de Deus e eacute inspirado pelo Espiacuterito Santo

Desde a organizaccedilatildeo que ocorreu durante o primeiro seacuteculo da era cristatilde ateacute a Reforma este livro ficou no poder da Igreja por diversos motivos entre eles a falta de alfabetizaccedilatildeo a pobreza e a liacutengua em que eles estavam escritos o latim claacutessico

164 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os catoacutelicos tambeacutem satildeo norteados pela tradiccedilatildeo

da Igreja pelos documentos e pelos conciacutelios que durante toda a sua histoacuteria fizeram e fazem parte mostrando as diretrizes do caminho da Igreja no mundo No Catecismo da Igreja Catoacutelica um dos documentos mais importante da Igreja no que diz respeito a questotildees de feacute no artigo 2 chamado ldquoA transmissatildeo da Revelaccedilatildeo Divinardquo parte 1 nuacutemero 78 encontramos a seguinte explicaccedilatildeo sobre a transmissatildeo da feacute pela Tradiccedilatildeo

Essa transmissatildeo viva realizada no Espiacuterito Santo eacute chamada de Tradiccedilatildeo enquanto distinta da Sagrada Escritura embora intimamente ligada a ela Por meio da Tradiccedilatildeo ldquoa Igreja em sua doutrina vida e culto perpetua e transmite a todas as geraccedilotildees tudo o que ela eacute tudo o que crecircrdquo O ensinamento dos Santos Padres testemunha a presenccedila vivificante desta Tradiccedilatildeo cujas riquezas se transfundem na praxe e na vida da Igreja crente e orante (N 34)

Portanto segundo a Igreja ela possui em suas

matildeos a verdade da feacute iluminada pelo Espiacuterito Santo Eacute confiado aos sucessores dos Apoacutestolos o chamado ldquodepoacutesito da feacuterdquo o catecismo na parte trecircs deste mesmo artigo intitulado ldquoA interpretaccedilatildeo do depoacutesito da feacuterdquo escreve

O ldquoPatrimocircnio Sagradordquo da feacute (ldquodepositum fideirdquo) contido na Sagrada Tradiccedilatildeo e na Sagrada Escritura foi confiado pelos apoacutestolos agrave totalidade da Igreja Apegando-se firmemente ao mesmo o povo santo todo unido a seus Pastores perseveram continuamente na doutrina dos apoacutestolos e na comunhatildeo na fraccedilatildeo do patildeo e nas oraccedilotildees de sorte que na conservaccedilatildeo no exerciacutecio e na profissatildeo da feacute transmitida se crie uma singular unidade de espiacuterito entre os bispos e os fieacuteis (N 35)

O ceticismo na reforma protestante 165

A Igreja Catoacutelica durante seacuteculos foi detentora dessas ldquoverdades absolutasrdquo no que diz respeito agraves questotildees de feacute com a Reforma e com o passar dos anos principalmente nos uacuteltimos seacuteculos com a nossa sociedade globalizada a mesma passou por diversas reformulaccedilotildees ateacute chegarmos ao modelo que hoje vigora mesmo natildeo mudando a hierarquia da Igreja percebe-se que os leigos nos dias de hoje possuem formaccedilatildeo bastante avanccedilada natildeo sendo necessaacuteria total aceitaccedilatildeo daquilo que o clero diz mas haacute uma total compreensatildeo dos dogmas de feacute dos documentos e da Tradiccedilatildeo da Igreja

O texto em questatildeo trabalha com o periacuteodo histoacuterico determinado que eacute o da Reforma Protestante e iniacutecio da modernidade sendo assim nota-se que a Igreja naquela eacutepoca era detentora da ldquoverdaderdquo e que os cristatildeos necessariamente tinham que depositar sua total confianccedila sem ao menos entender e compreender aquilo que estavam ouvindo dos seus ldquopastoresrdquo natildeo havia compreensatildeo por parte dos leigos e sim aceitaccedilatildeo a feacute sem limites

Portanto aparentemente percebe-se aqui uma divergecircncia entre a feacute e o ceticismo Na introduccedilatildeo do artigo intitulado ldquoAlgumas outras palavras sobre ceticismo e cristianismordquo de autoria de Rodrigo Pinto de Brito da Universidade Federal do Sergipe nota-se alguns apontamentos que descrevem claramente esta distinccedilatildeo de conceitos

Nesses caraacutecteres multifacetados se embutem conceitos atribuiccedilotildees ou asserccedilotildees que fazem com que seus campos semacircnticos sejam aparentemente mutuamente excludentes e mesmo radicalmente opostos Por exemplo no caso de ceticismo a duacutevida e a descrenccedila propedecircutica ao ateiacutesmo no caso do cristianismo a feacute e o dogma propedecircuticos ao fanatismo (BRITO 2014)

166 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir desta breve anaacutelise do ceticismo e do

cristianismo compreende-se o motivo do ceticismo ser soacute resgatado no periacuteodo da reforma protestante no iniacutecio da era moderna Na Idade Meacutedia com o auge do catolicismo percebe-se que o proacuteprio ato de questionar os dogmas de feacute natildeo era tolerado quanto mais negar tais ldquoverdadesrdquo nesse sentido muitas pessoas foram agrave fogueira e tiveram condenaccedilotildees baacuterbaras

Alguns estudiosos se detecircm na demonstraccedilatildeo de quem natildeo haacute uma fronteira niacutetida entre ceticismo e cristianismo que essa fronteira eacute somente aparente O meu estudo nesse texto inicial natildeo tem como objetivo investigar tal questatildeo mas tem seu recorte estrito no periacuteodo compreendido como reforma protestante tambeacutem chamada ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo

63 REFORMA PROTESTANTE E O PROBLEMA DO CRITEacuteRIO

Este periacuteodo foi bastante intenso de debates e

discussotildees acerca do criteacuterio de verdade que haacute no catolicismo e depois nas Igrejas criadas a partir da Reforma Protestante tais discussotildees ficaram conhecidas como Reforma Intelectual momento em que antecedeu a modernidade e toda a discussatildeo da teoria do conhecimento e da forma como esse conhecimento acontece Na obra ldquoHistoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo de Richard Popkin no primeiro capiacutetulo intitulado ldquoA crise Intelectual na Reformardquo percebemos que o problema central nesse periacuteodo eacute o criteacuterio de verdade acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso tambeacutem conhecido como ldquoregra de feacuterdquo

Neste sentido Lutero foi o primeiro a criticar publicamente este criteacuterio de verdade da Igreja Catoacutelica principalmente a tradiccedilatildeo e o magisteacuterio do Papa A partir

O ceticismo na reforma protestante 167

disto Lutero desenvolve o seu criteacuterio Assim escreve Popkin

Lutero deu o passo criacutetico que foi negar a regra de feacute da Igreja apresentando um criteacuterio de conhecimento religioso radicalmente diferente Foi neste periacuteodo que ele deixou de ser apenas um reformador atacando os abusos e a corrupccedilatildeo de uma burocracia decadente para tornar-se o liacuteder de uma revolta intelectual que viria a abalar os proacuteprios fundamentos da civilizaccedilatildeo ocidental (POPKIN 2000 p 26)

Os grandes problemas vistos por Lutero na Igreja

Catoacutelica foram a autoridade papal e a Tradiccedilatildeo da Igreja jaacute apresentada no capiacutetulo anterior e que apoacutes esse periacuteodo foi reformulado pela Igreja atraveacutes de diversos documentos e conciacutelios poacutes reforma entre eles estaacute o Conciacutelio Vaticano II que acima de tudo afirmou o conteuacutedo de feacute ou seja os dogmas poreacutem modificou a forma desse conteuacutedo ser anunciado abrindo a Igreja para a evangelizaccedilatildeo fazendo com que todos os leigos conhecessem a Biacuteblia e fossem importantes no processo de evangelizaccedilatildeo e anuacutencio da Palavra de Deus modificando uma das criacuteticas de Lutero

Popkin escreve em seu livro sobre a negaccedilatildeo do Papa por parte de Lutero

Lutero chegou mesmo a negar completamente a autoridade do Papa e dos Conciacutelios mantendo que doutrinas condenadas pelos conciacutelios poderiam ser verdadeiras e que os conciacutelios podem errar jaacute que satildeo compostos apenas por homens (POPKIN 2000 p 26)

A consciecircncia de cada um dos escolhidos jaacute eacute

criteacuterio de verdade jaacute eacute regra de feacute atraveacutes de Iluminaccedilatildeo Divina este foi o criteacuterio de feacute que Lutero desenvolveu e defendeu Popkin escreve assim sobre este novo criteacuterio

168 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nesta declaraccedilatildeo de liberdade cristatilde Lutero estabeleceu seu novo criteacuterio de conhecimento religioso ou seja que aquilo que a consciecircncia eacute compelida a aceitar ao ler as Escrituras eacute verdadeiro (POPKIN 2000 p 27)

Diversas pessoas comeccedilaram a seguir Lutero

apoacutes ele traduzir o livro Sagrado para o alematildeo A resposta dos catoacutelicos a este novo criteacuterio de feacute foi de que nenhum criteacuterio de feacute pode ser compreendido como verdadeiro se este natildeo passar pelo coleacutegio cardinaliacutecio pelos conciacutelios e pela autoridade do Papa

Eis que surge entatildeo outra problemaacutetica desta vez bem mais filosoacutefica que teoloacutegica assim descrita por Popkin

Uma vez que um criteacuterio fundamental foi questionado como se podem decidir quais as possibilidades alternativas a serem aceitas Com base no que podemos defender ou refutar as pretensotildees de Lutero (POPKIN 2000 p 28)

Portanto determinar algum criteacuterio como

verdadeiro se as bases do criteacuterio anterior foram refutadas nesse sentido percebe-se um resgate do ceticismo antigo na religiatildeo e mais tarde este ceticismo resgatado nesse periacuteodo iraacute atingir as demais aacutereas do conhecimento Popkin assim comenta

A caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter consequecircncias extremamente amplas natildeo soacute na teologia mais em todos os domiacutenios intelectuais do ser humano (POPKIN 2000 p 29) O problema desse periacuteodo histoacuterico da Reforma

Protestante tambeacutem pode ser considerado como problema da evidecircncia e do criteacuterio assim Popkin demonstra a problemaacutetica ldquoPara ser capaz de reconhecer a verdadeira feacute era preciso um criteacuterio Mas

O ceticismo na reforma protestante 169

como se poderia reconhecer o verdadeiro criteacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29) Percebe-se que ambos os defensores da Tradiccedilatildeo e os inovadores tentaram resolver o problema da mesma forma atacando o adversaacuterio Os ataques mais comuns que aconteciam segundo Popkin eram

Lutero atacou a autoridade da Igreja mostrando suas inconsistecircncias Os catoacutelicos procuraram mostrar que a consciecircncia de cada um natildeo era confiaacutevel bem como a dificuldade de se discernir o verdadeiro sentido das Escrituras sem a orientaccedilatildeo da Igreja Ambos os lados advertiram sobre a cataacutestrofe ndash intelectual moral e religiosa ndash que ocorreria em consequecircncia de se adotar o criteacuterio do outro (POPKIN 2000 p 29)

Nesse periacuteodo alguns textos do Sexto Empiacuterico

foram trazidos agrave tona e acabaram corroborando na discussatildeo sobre o criteacuterio de verdade como natildeo havia mais criteacuterio aceito o problema ali instaurado era grave pois se perdeu a garantia objetiva restando somente a crenccedila em determinado criteacuterio e ldquoverdaderdquo Popkin reproduz o trecho de Sexto Empiacuterico

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilotildees enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes os forccedilamos a um regresso lsquoad infinitumrsquo (POPKIN 2000 p 28)

A partir do momento em que alguns fragmentos

de Sexto Empiacuterico e de alguns ceacuteticos foram retomados surgiram alguns pensadores que comeccedilaram a usar o

170 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo como postura para defender o catolicismo um desses foi Erasmo de Rotterdam conhecido por sua obra ldquoO elogio da Loucurardquo poreacutem foi na sua obra ldquoDe Libero Arbitriordquo que ele defende uma postura ceacutetica em diversos meios assim afirma Erasmo

os assuntos humanos satildeo tatildeo obscuros e diversos que nada se pode saber com clareza Esta foi a satilde conclusatildeo dos acadecircmicos [os ceacuteticos acadecircmicos] que foram os menos ariscos dentre os filoacutesofos (POPKIN 2000 p 30)

Esta postura ou atitude ceacutetica segundo Erasmo eacute

o que realmente importa e interessa para a salvaccedilatildeo de cada um aceitando os dogmas e as ldquoverdadesrdquo que a Igreja e aqueles que tecircm competecircncia para tal determinam como sendo correto e justo assim escreve Popkin sobre esta postura de Erasmo

Para Erasmo o importante eacute uma forma de piedade cristatilde simples baacutesica o espiacuterito do cristianismo O restante a superestrutura da crenccedila essencial eacute demasiado complexa para o homem julgaacute-la Portanto eacute mais faacutecil permanecer em uma atitude ceacutetica e aceitar a antiquiacutessima sabedoria da Igreja nestes assuntos do que tentar entender e julgar por si proacuteprio (POPKIN 2000 p 31)

Segundo Erasmo toda a estrutura escolaacutestica

instaurada na Igreja com grandes bibliotecas e grandes discussotildees teoloacutegicas entre diversas correntes com grandes teoacutelogos da Igreja eram inuacuteteis pois o que realmente importa eacute a atitude cristatilde de modo geral seguir e realizar os ensinamentos de Jesus Cristo ou seja ldquoTodo o mecanismo dessas mentes escolaacutesticas tinha perdido de vista o ponto essencial a simples atitude cristatilderdquo (POPKIN 2000 p 32) Popkin continua e comenta que o cristatildeo ldquotolordquo para Erasmo eacute mais saacutebio do que um teoacutelogo de Paris

O ceticismo na reforma protestante 171

O cristatildeo tolo estaria em melhor situaccedilatildeo do que o teoacutelogo pretensioso de Paris enredado em um labirinto criado por ele mesmo E assim se algueacutem permanecesse um cristatildeo tolo viveria uma autecircntica via cristatilde e poderia evitar todo o mundo da teologia aceitando sem tentar compreendecirc-las as posiccedilotildees religiosas promulgadas pela igreja (POPKIN 2000 p 32)

Esta teoria de que o cristatildeo tolo estaacute em uma

melhor condiccedilatildeo pois este viveria uma autecircntica vida de feacute cristatilde foi fortemente combatida por Lutero para ele a feacute natildeo deve simplesmente ser aceitaccedilatildeo mas fruto de sua proacutepria consciecircncia por isso ele defendia a universalizaccedilatildeo da Biacuteblia e que toda a consciecircncia tem a capacidade atraveacutes da Iluminaccedilatildeo do Espiacuterito Santo de acolher meditar e saborear a Palavra de Deus para Lutero ldquoEacute como se algueacutem carregasse detritos e excrementos em vasos de ouro e pratardquo (POPKIN 2000 p 32) E ainda Lutero afirma ldquoUm cristatildeo deve [] ter certeza do que afirma ou entatildeo natildeo eacute um cristatildeordquo (POPKIN 2000 p 32)

Portanto para Lutero estes conteuacutedos de feacute satildeo importantes na vida do homem e natildeo podem simplesmente serem aceitos mas devem ser certos e irrefutaacuteveis atraveacutes da experiecircncia de feacute e da certeza oriunda da consciecircncia de cada um Segundo Lutero devemos estar absolutamente certos de sua verdade assim sendo o cristianismo eacute a absoluta negaccedilatildeo do ceticismo

Para o fundador do luteranismo existe um conjunto de verdades de feacute que como o sol natildeo se escurecem apenas porque eu posso fechar os meus olhos e recusar-me a vecirc-lo A analogia mostra que haacute diversas verdades que iluminam poreacutem existem pessoas que querem fechar os olhos a estas verdades ou porque satildeo ceacuteticas ou porque insistem em acreditar na vulneraacutevel Tradiccedilatildeo da Igreja Catoacutelica e natildeo olham

172 Eacutetica e filosofia poliacutetica

para dentro de si em suas proacuteprias consciecircncias ainda para Lutero esta tentativa de Erasmo de uma atitude ceacutetica natildeo passa de um caminho arriscado e com inuacutemeras possibilidades de erro Popkin comenta a resposta de Lutero a Erasmo

E portanto Lutero respondeu a Erasmo que sua perspectiva ceacutetica na verdade natildeo levava agrave crenccedila em Deus mas era uma maneira de escarnecermos Dele Erasmo podia se quisesse aferrar-se a seu ceticismo ateacute ser chamado por Cristo Mas advertiu Lutero ldquoO Espiacuterito Santo natildeo eacute ceacuteticordquo e natildeo inscreveu em nossos coraccedilotildees opiniotildees incertas mas sim afirmaccedilotildees de maior firmezardquo (POPKIN 2000 p 33)

A disputa entre Lutero um reformista e Erasmo

um catoacutelico natildeo muito praticante estava envolta mais uma vez na questatildeo do criteacuterio de verdade onde o primeiro insistia na certeza de que cada um poderia ler as Escrituras como sendo criteacuterio e natildeo delegar isto a outros A verdade se impotildee a noacutes ldquoe o verdadeiro conhecimento religioso natildeo conteacutem contradiccedilotildeesrdquo (POPKIN 2000 p 34) O segundo tinha uma atitude cautelosa de aceitar as decisotildees da Igreja pois sabia ser incapaz de distinguir o verdadeiro do falso Percebe-se que ambos possuiacuteam como regra de feacute ou criteacuterio de verdade algo subjetivo sendo difiacutecil objetivar estes criteacuterios Portanto se tal criteacuterio natildeo pode ser objetivado eles natildeo podem ser considerados criteacuterios de verdade

Outro grande expoente nesse periacuteodo histoacuterico foi Joatildeo Calvino disciacutepulo de Lutero liacuteder dos calvinistas uma corrente dos seguidores de Lutero que tem como regra de feacute a Biacuteblia livro sagrado aleacutem disso a iluminaccedilatildeo Divina Popkin comenta sobre Calvino

Inicialmente Calvino argumentou que a Igreja natildeo pode ser a regra das Escrituras uma vez que a autoridade da Igreja depende ela proacutepria de alguns versiacuteculos das

O ceticismo na reforma protestante 173

Escrituras Portanto as Escrituras satildeo a fonte baacutesica das verdades da religiatildeo (POPKIN 2000 p 35)

Uma grande questatildeo que surgiu a partir da teoria

de Calvino eacute o que nos garante que as Escrituras satildeo Palavra de Deus e como interpretaacute-las de maneira correta Assim nos explica Popkin sobre a teoria de Calvino

Esta persuasatildeo interior natildeo soacute nos assegura que as Escrituras contecircm a Palavra de Deus mas nos compele a ler as Escrituras atentamente para compreender o seu sentido e acreditar nelas (POPKIN 2000 p 35)

Os seguidores de Calvino se intitularam como os

eleitos pessoas escolhidas iluminadas por Deus e atraveacutes desta persuasatildeo interior elas interpretam as Escrituras e satildeo como pastores para aqueles que os seguem (ovelhas) Esta iluminaccedilatildeo dos eleitos acontece atraveacutes do Espiacuterito Santo Popkin escreve sobre a Iluminaccedilatildeo Divina

Haacute portanto uma dupla iluminaccedilatildeo para os eleitos dando-lhes primeiro a regra de feacute as Escrituras e em seguida lugar agrave regra das Escrituras ou seja os meios para discernir sua verdade e crer em sua mensagem Esta dupla iluminaccedilatildeo da regra da feacute e sua aplicaccedilatildeo satildeo capazes de nos dar certeza total (POPKIN 2000 p 35)

Portanto para os primeiros calvinistas a regra de

feacute era a persuasatildeo interior a questatildeo levantada eacute como podemos decidir se esta persuasatildeo eacute autecircntica e natildeo apenas uma certeza subjetiva que pode facilmente ser ilusoacuteria A partir dessa questatildeo percebemos que temos um problema um ciacuterculo de problemas infinitos assim escreve Popkin

174 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o criteacuterio do conhecimento religioso eacute a persuasatildeo interior a garantia da autenticidade da persuasatildeo interior eacute sua origem divina e temos a garantia dela pela persuasatildeo interior (POPKIN 2000 p 37)

Ou seja natildeo podemos considerar a persuasatildeo

interior como regra de feacute ou criteacuterio de verdade pois tambeacutem eacute subjetiva e nunca objetiva

Outro expoente que defendeu uma atitude ceacutetica no que diz respeito agrave feacute foi Sebastiatildeo Castellio de Basileacuteia protestante e que foi o uacutenico a defender Servetus Servetus foi condenado agrave morte como herege por Calvino e seus seguidores Servetus era convencido da persuasatildeo interior de que natildeo haacute base nas escrituras para a doutrina da santiacutessima Trindade convencido portanto de que esta doutrina era falsa

Popkin explica sobre a metodologia usada por Castellio ldquoAtitude moderada e ceacutetica onde ningueacutem pode estar tatildeo certo da verdade em questotildees religiosas de modo que se justifique queimar algueacutem por issordquo (POPKIN 2000 p 38) Ele escreveu uma obra mas natildeo publicou onde respondeu aos calvinistas intitulada ldquoDe Arte Dubitandirdquo uma abordagem cientiacutefica liberal e cautelosa para os problemas intelectuais em contraste com o dogmatismo de seus opositores calvinistas

Podemos entatildeo dizer que dentre estes expoentes ceacuteticos Erasmo eacute bem mais ceacutetico que Castellio pois este se questiona Como duvidar do que eacute certo como Deus sua Bondade Mas como acreditar no que eacute duvidoso como o argumento teleoloacutegico das Escrituras

O ceticismo parcial levantado por Castellio representa outra faceta do problema do conhecimento levantado pelo renascimento se eacute necessaacuterio encontrar uma regra de feacute um criteacuterio para se distinguir a feacute verdadeira da falsa como conseguirmos isto Ele abandona uma busca da certeza na feacute por uma busca razoaacutevel influenciando as formas mais liberais do protestantismo

O ceticismo na reforma protestante 175

64 RELACcedilAtildeO DO CETICISMO COM O FIDEIacuteSMO POSSIacuteVEL LEITURA DO CRITEacuteRIO DE VERDADE

Ambos catoacutelicos e protestantes natildeo possuem a

regra de feacute ou o criteacuterio de verdade pois para algo ser criteacuterio de verdade precisa ser objetivado e aquilo que concerne agrave feacute eacute subjetivo e pessoal natildeo pode ser uma verdade epistemoloacutegica Neste ponto faz-se necessaacuterio abordar mais profundamente dois conceitos o ceticismo e o fideiacutesmo para chegarmos a uma possiacutevel leitura deste criteacuterio de verdade na religiatildeo

Para tanto precisamos compreender o papel do ceacutetico nas tradiccedilotildees antigas sendo elas pirrocircnica e acadecircmica Popkin demostra o papel do ceacutetico quanto agraves crenccedilas

O ceacutetico seja na tradiccedilatildeo pirrocircnica seja na acadecircmica desenvolvia argumentos para mostrar ou sugerir que as evidecircncias razotildees ou provas utilizadas como fundamentos de nossos vaacuterios tipos de crenccedilas natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterios (POPKIN 2000 p 23)

Em momento algum eacute determinado que o ceacutetico e

o crente satildeo classificaccedilotildees opostas e excludentes uma da outra pelo contraacuterio o ceacutetico tem como papel desenvolver argumentos que demonstrem que os vaacuterios tipos de crenccedilas tambeacutem satildeo faliacuteveis e natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterias no ponto de vista objetivo pois natildeo haacute verdades absolutas e natildeo haacute criteacuterios universais e objetivos Em outras palavras o ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias de uma crenccedila mas segundo Popkin ldquoo ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo (POPKIN 2000 p 24)

Portanto o ceacutetico pode ser fideiacutesta sem problema algum pois uma coisa eacute duvidar questionar evidecircncias racionais objetivas e criteacuterios de verdade que tendem a ser universais e absolutos e outra coisa eacute ser crente de

176 Eacutetica e filosofia poliacutetica

alguma crenccedila sendo ela religiosa ou natildeo pois o crer estaacute no campo subjetivo e natildeo objetivo

A partir desta leitura de que o crente e o ceacutetico neste sentido podem andar juntos comeccedila-se a compreender Erasmo Castellio e ateacute mesmo Montaigne o uacuteltimo foi o expoente principal que trouxe agrave tona o ceticismo antigo para a realidade da reforma intelectual e levou tais duacutevidas para as demais aacutereas do conhecimento

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Portanto esta postura ceacutetica de Montaigne tem

suas bases nesse periacuteodo histoacuterico em que ele estaacute vivenciando com a reforma protestante as questotildees acerca do problema do criteacuterio e o iniacutecio do renascimento eacute sem duacutevida um momento muito frutuoso onde inuacutemeras questotildees satildeo levantadas e ocorre de fato uma revoluccedilatildeo no pensamento

Percebe-se no presente trabalho atraveacutes desta leitura histoacuterica e dos problemas levantados por diversos autores como se tentou objetivar algo que eacute subjetivo como se tentou criar criteacuterios de verdade acerca da feacute fazendo com que a verdade se restringisse a sua ldquoverdade religiosardquo o que clareou todo este discurso usado foi o ceticismo que alguns autores resgataram dos antigos

De modo simples esse eacute o iniacutecio da minha pesquisa acerca desse periacuteodo e de questotildees que cercaram este momento importante na transformaccedilatildeo cultural histoacuterica e intelectual do ocidente

REFEREcircNCIAS COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo Eduardo Brandatildeo ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

O ceticismo na reforma protestante 177

JOAtildeO PAULO PP II Catecismo da Igreja Catoacutelica 11 de outubro de 1992 Disponiacutevel emhttpwwwvaticanvaarchivecathechism_poindex_newprima-pagina-cic_pohtml POPKIN Richard H Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza [1923] Traduzido por Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

178 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VII =

VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMOS

ENSAIOS DE MONTAIGNE

Andre Scoralick Eacute bastante banal dizer que a mateacuteria dos Ensaios1

pertence ao campo da moral Basta percorrer os tiacutetulos dos capiacutetulos para encontrar paixotildees viacutecios virtudes questotildees referentes agrave accedilatildeo e ao agente enfim toda uma miriacuteade de problemas referentes agrave moralidade Menos banal no entanto eacute indicar o sentido da reflexatildeo moral que Montaigne conduz em seus Ensaios Natildeo eacute evidente por exemplo que as questotildees eacuteticas natildeo sejam meros objetos de reflexatildeo de uma especulaccedilatildeo desinteressada de um tratamento puramente teoacuterico natildeo eacute evidente que elas possam ter uma finalidade eminentemente praacutetica E no entanto eacute o que o proacuteprio Montaigne sugere em uma seacuterie de passagens do seu livro dentre as quais se encontra aquela do ensaio Da educaccedilatildeo das crianccedilas em que ele aponta as liccedilotildees (morais sobretudo) que o menino deve seguir

Doutorado em Filosofia (2013) pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP instituiccedilatildeo na qual adquiriu o tiacutetulo de Mestre em Filosofia (2008) Bacharel em Filosofia (2002) 1 Utilizaremos aqui a ediccedilatildeo Villey-Saulnier (Les Essais Ed P Villey reeditada por V L Saulnier Paris PUF 1999) que traduzimos livremente no corpo do texto acrescentando o texto francecircs nas notas de rodapeacute (indicando em algarismos romanos o livro e em araacutebicos o capiacutetulo dos Ensaios) Nas citaccedilotildees do corpo do texto indicaremos a paacutegina da traduccedilatildeo para o portuguecircs feita por Rosemary Costek (Satildeo Paulo Martins Fontes 2001) cujas soluccedilotildees por vezes adotamos Nas citaccedilotildees em francecircs a paginaccedilatildeo eacute a da ediccedilatildeo Villey-Saulnier

180 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Eis aqui minhas liccedilotildees Aproveitou-as melhor quem as executa do que quem as sabe A Deus natildeo agrada diz algueacutem em Platatildeo que filosofar seja aprender muitas coisas e tratar das artes () Ele [o aluno] natildeo tanto diraacute sua liccedilatildeo como a executaraacute (I 26 pps 250-251 grifos nossos)2

Da mesma forma natildeo eacute nada evidente a

consequecircncia desta maneira de ver as coisas a saber que os Ensaios tenham uma dimensatildeo normativa para aleacutem da dimensatildeo descritiva que a Nota ao Leitor e o ensaio Do arrependimento parecem indicar ldquosou eu mesmo a mateacuteria do meu livrordquo (I Nota ao leitor p 03) ldquoos outros formam o homem eu o relatordquo (III 2 p 27)3 Segundo esta maneira de ver as coisas (a nossa maneira) tudo se passa como se Montaigne em seus Ensaios natildeo se limitasse ao autorretrato nem fizesse apenas como um dia quis Hugo Friedrich4 uma ldquociecircncia moralrdquo espeacutecie de precursora da antropologia e da psicologia modernas Tudo se passa como se nesta obra algo de normativo se apresentasse No presente texto procuraremos abordar esta questatildeo a saber em que medida eacute possiacutevel encontrar dispersos pelos Ensaios (e sobretudo nos uacuteltimos) os elementos de uma moral praacutetica com propoacutesito normativo Trata-se de resgatar para aleacutem da criacutetica montaigniana da perfeita indiferenccedila do saacutebio estoacuteico (paradigma eacutetico que herdado do periacuteodo heleniacutestico ainda orientava as ideias morais do renascimento tardio) a defesa igualmente empreendida pelo ensaiacutesta de um outro modelo moral a

2 ldquoVoicy mes leccedilons Celuy-lagrave y a mieux proffiteacute qui les fait que qui les sccedilait () Jagrave agrave Dieu ne plaise dit quelquun en Platon que philosopher ce soit apprendre plusieurs choses et traicter les arts (hellip) Il ne dira pas tant sa leccedilon comme il la ferardquo (I 26 pps 167-168) 3 ldquoje suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo (I Note au lecteur p 03) ldquoles autres forment lhomme je le reciterdquo (III 2 p 804) 4 Friedrich Hugo Montaigne (trad Robert Rovini) Paris Gallimard

1992 p 13

Viver como Soacutecrates 181

conduta ordenada ideal moral ao alcance do homem comum mediacuteocre Para iniciar a busca desta moral praacutetica tomaremos como fio condutor a leitura de algumas passagens de um ensaio em particular o deacutecimo segundo do terceiro livro intitulado Da fisionomia acrescentando quando necessaacuterio a anaacutelise de trechos de outros capiacutetulos dos Ensaios

Em Da fisionomia Montaigne opotildee duas formas de conduta aquela segundo a ciecircncia e a conduta conforme agrave natureza No horizonte desta empresa estaacute nada mais nada menos do que a vida boa possiacutevel a saber a tranquilidade da alma erguida ndash muitos ensaios o testemunham ndash como referecircncia do pensamento moral do ensaiacutesta Em Da fisionomia Montaigne insiste em afirmar que o uacutenico caminho para a serenidade eacute a conduta conforme a natureza e que aquela segundo a ciecircncia leva ao oposto do que ela promete agrave perturbaccedilatildeo Percorramos entatildeo a criacutetica de Montaigne agrave conduta segundo a ciecircncia para finalmente chegarmos ao percurso proposto pelo autor Teremos de nos perguntar entatildeo o que eacute esta lsquonaturezarsquo que o ensaiacutesta reivindica e qual eacute exatamente o seu caminho

Dissemos que no horizonte desta empresa encontra-se a vida boa possiacutevel isto eacute a tranquilidade da alma De que maneira as diversas tradiccedilotildees do pensamento ocidental ateacute o seacuteculo XVI pretenderam atingi-la Ora a partir de diferentes estrateacutegias de conhecimento e controle das afecccedilotildees da alma quer dizer de moderaccedilatildeo ou contenccedilatildeo das paixotildees (estados de perturbaccedilatildeo da alma que se manifestam na busca das coisas costumeiramente consideradas bens ndash cupidez ambiccedilatildeo voluacutepia ndash ou na aversatildeo pelas coisas consideradas males ndash medo tristeza) Dentre essas diferentes estrateacutegias uma se destaca aos olhos de Montaigne que a toma como a estrateacutegia por excelecircncia da ldquociecircnciardquo isto eacute das doutrinas dogmaacuteticas legadas pelos filoacutesofos do passado dentre as quais se destaca o

182 Eacutetica e filosofia poliacutetica

estoicismo recuperado pelos neo-estoicos em voga na Franccedila do seacuteculo XVI (Justus Lipsius e Guillaume Du Vair sobretudo) Qual seria essa estrateacutegia A meditatio mortis dos estoicismos meacutedio e imperial sobretudo de Ciacutecero e Secircneca

Segundo os estoicos a causa da perturbaccedilatildeo da alma eacute um erro de juiacutezo considerar como bens coisas que em si mesmas satildeo indiferentes5 (a riqueza a honra a sauacutede etc) Ao julgaacute-las como bens (e seus opostos como males) o indiviacuteduo as toma como fins uacuteltimos (teacuteloi) de suas accedilotildees e passa a aspiraacute-las e a direcionar seus esforccedilos para alcanccedilaacute-las e mantecirc-las Daiacute seu sofrimento quando natildeo as alcanccedila ou as perde (quando natildeo estava previsto pela Providecircncia Divina que as atingisse ou as mantivesse) A uacutenica saiacuteda para este esquema perverso das paixotildees eacute a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem6 isto eacute a compreensatildeo de que o uacutenico e verdadeiro Bem (uacutenico fim que deve ser aspirado e buscado) eacute a Harmonia Universal que depende da realizaccedilatildeo da nossa natureza individual (isto eacute do cumprimento do nosso destino7 pessoal) Conformar a proacutepria vontade aos comandos da Razatildeo ou desiacutegnios da Natureza isto eacute agrave Vontade de Deus aceitar tudo o que ocorre consigo (ou mais do que isso desejaacute-lo buscaacute-lo) eis a fonte da tranquilidade da alma

Ocorre que o indiviacuteduo de sua perspectiva finita natildeo conhece os planos de Deus Ele natildeo sabe se estaacute nos desiacutegnios do Cosmos que vaacute se casar que siga uma carreira poliacutetica que tenha ou natildeo filhos Como entatildeo deve agir O que deve escolher buscar Ora dizem os estoicos ele deve prosseguir escolhendo o que sua educaccedilatildeo o ensinou a buscar (o que eacute conveniente o que os deveres recomendam a sauacutede a honra o

5 Para a doutrina da indiferenccedila dos bens e dos males segundo a opiniatildeo comum cf Secircneca Cartas a Luciacutelio 92 e 118 6 Idem cartas 16 e 41 7 Idem carta 96

Viver como Soacutecrates 183

conhecimento etc) mas sem buscar essas coisas como se fossem bens isto eacute sem tomaacute-las como os fins uacuteltimos de suas accedilotildees Ele deve consideraacute-las apenas como preferiacuteveis isto eacute fins necessaacuterios para que continue a agir mas que natildeo devem ser seus fins uacuteltimos (teacuteloi) e sim apenas fins intermediaacuterios (skoacutepoi) Em cada uma de suas escolhas seu fim uacuteltimo (o verdadeiro objeto de suas aspiraccedilotildees) deve ser aquilo que a Razatildeo e a Natureza (a Vontade de Deus) determinam que ocorra (o Bem) Assim se ele natildeo alcanccedilar o que buscava (o fim intermediaacuterio) natildeo se decepcionaraacute pois natildeo era isso o que ele efetivamente buscava e sim o que Deus queria para ele (o que de qualquer forma realizou-se) Da mesma forma se perder algo que havia alcanccedilado este homem natildeo sofre pois qualquer coisa que advenha ele sabe que eacute conforme agrave Razatildeo ou a Vontade de Deus sabe que tudo colabora para seu bem individual (a realizaccedilatildeo de sua natureza particular) e para o Bem Universal uacutenico fim que ele aspira Este homem que os estoicos chamam de saacutebio permanece tranquilo num estado de perfeita indiferenccedila8 diante de qualquer coisa que lhe aconteccedila Mas como ele adquiriu a ciecircncia do Bem Ora ingressando no caminho da filosofia isto eacute do exerciacutecio da dialeacutetica ndash a praacutetica repetida da distinccedilatildeo dos bens e dos males De tanto repetir este exerciacutecio e julgar o que eacute correto fazer em cada caso o aspirante agrave sabedoria deve dar uma espeacutecie de ldquosalto intelectualrdquo no qual subitamente eacute levado agrave apreensatildeo do Bem

Ao longo da histoacuteria do estoicismo no entanto outros ldquomeacutetodosrdquo com vistas ao desapego em relaccedilatildeo aos bens segundo a opiniatildeo foram desenvolvidos Eacute o caso da meditaccedilatildeo da vaidade e da contingecircncia9 dessas

8 Cf Secircneca De constantia sapientis 10 4 9 Falamos a propoacutesito de laquo contingecircncia raquo porque a Providecircncia Divina pode ser representada do ponto de vista do agente como a Fortuna jaacute que ele perceberia apenas uma forccedila determinando o resultado de

184 Eacutetica e filosofia poliacutetica

coisas laquomeacutetodoraquo desenvolvido pelos estoicismos meacutedio e imperial Esta meditaccedilatildeo ndash espeacutecie de projeccedilatildeo permanente da possibilidade de perdecirc-las a todo momento ndash deve (ao menos eacute o que se espera) ter como efeito um certo desprendimento em relaccedilatildeo aos laquofalsos bensraquo numa palavra a indiferenccedila ou impassibilidade

Se pudeacutessemos ateacute o fundo da alma nos penetrar desta verdade e representar para noacutes mesmos que todos os males que acontecem com os outros todos os dias e em nuacutemero tatildeo grande tem o caminho livre para chegar a noacutes estariacuteamos armados antes de sermos atacados10

Todavia haacute uma estrateacutegia pretensamente ainda

mais eficaz que conduziria ainda mais rapidamente a tal resultado Na medida em que nas representaccedilotildees da opiniatildeo comum a morte aparece como o pior dos males (ou a vida como o maior dos bens) bastaria que a meditaccedilatildeo se aplicasse a este objeto para que como por um efeito de cascata todo o resto se tornasse indiferente Assim a meditatio mortis adquire uma centralidade dentre as estrateacutegias que buscam a impassibilidade ela seraacute a estrateacutegia por excelecircncia do estoicismo imperial (ao menos o de Secircneca) com vistas agrave tranquilidade da alma Trata-se de meditar constantemente sobre a vaidade o aspecto efecircmero e a contingecircncia da vida de projetar a todo momento e para o proacuteximo instante a proacutepria morte

suas accedilotildees cujas causas lhe escapam De seu ponto de vista limitado ele natildeo sabe se esta forccedila eacute o acaso ou a Vontade de Deus 10 ldquoHoc si quis in medullas demiserit et omnia aliena mala quorum ingenscotidie copia est sic aspexerit tamquam liberum illis et ad se iter sit multo ante se armabit quam petatur Seroanimus ad periculorum patientiam post pericula instruiturrdquo (Secircneca De tranquilitate animi 11

8)

Viver como Soacutecrates 185

Vivemos mal quando natildeo sabemos morrer bem [hellip] aquele que sabe que no momento mesmo em que foi concebido sua sentenccedila foi proclamada saberaacute viver segundo a lei da natureza e encontraraacute assim a mesma forccedila de alma para opocircr aos eventos nenhum dos quais jamais lhe seraacute imprevisto11

Ora Montaigne natildeo poderia deixar de zombar

deste lsquoprojetorsquo elaborado pelos estoicos isto eacute de sua concepccedilatildeo de tranquilidade como impassibilidade (apathia) e do caminho proposto para alcanccedilaacute-la (a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem) Isto porque diz o ensaiacutesta nem um nem outro (nem a ciecircncia nem a impassibilidade) estatildeo ao alcance dos homens12 em sua maioria ordinaacuterios comuns mediacuteocres (intelectualmente e afetivamente fracos dotados de uma fraacutegil capacidade de julgar e de uma vontade fraca) Em numerosas passagens Montaigne aponta a fragilidade constitutiva do juiacutezo dos homens (sequer eacute necessaacuterio ir agrave Apologia de Raimond Sebond para mostraacute-lo)

11 ldquoMale uiuet quisquis nesciet bene mori () qui sciet hoc sibi cum conciperetur statim condictum uiuet ad formulam et simul illud quoque eodem animi robore praestabit ne quid ex iis quae eueniunt subitum sitrdquo (Idem 11 4-6) Cf tambeacutem Cartas a Luciacutelio 91 e 101 12 Montaigne tensiona explicitamente o paradigma proposto pelos estoacuteicos (o saacutebio) e certa concepccedilatildeo do homem Ele acusa a inutilidade do modelo agrave luz da impossibilidade da maioria dos homens realizarem-no (eacute um cume sobre o qual ldquonenhum ser humano pode se sentarrdquo) Outro termo ao qual ele recorre eacute o ldquonoacutesrdquo em que ele proacuteprio se inclui e que designa a coletividade humana (ldquoessas regras que excedem nossos costumes e nossa forccedilardquo) Entendemos que estas noccedilotildees natildeo implicam nenhuma referecircncia a uma natureza humana ou a uma universalidade Quando Montaigne fala dos lsquohomensrsquo ou deste lsquonoacutesrsquo (e que frequentemente aparece como lsquonoacutes homens fracosrsquo) pensamos tratar-se de uma noccedilatildeo obtida por experiecircncia que permanece portanto como generalidade frouxa aberta a exceccedilotildees natildeo sendo uma universalidade formulada teoricamente Da mesma forma entendemos que Montaigne se refere agraves inclinaccedilotildees humanas como fenocircmenos observaacuteveis sem poder dizer se eles exprimem uma lsquonaturezarsquo oculta

186 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quem se lembra de tantas e tantas vezes ter se descontentado de seu proacuteprio juiacutezo natildeo eacute um tolo por jamais desconfiar dele Quando me vejo convencido de uma opiniatildeo falsa pela razatildeo de outrem natildeo tanto aprendo o que ele me disse de novo e esta ignoracircncia particular (seria um ganho pequeno) como em geral aprendo minha debilidade e a traiccedilatildeo de meu entendimento (III 13 p 436)13

Para Montaigne o lsquosalto intelectualrsquo de apreensatildeo

do Bem imaginado pelos estoicos eacute irrealizaacutevel O mesmo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave perfeita indiferenccedila do saacutebio Ela supotildee um poder de neutralizaccedilatildeo ou de atenuaccedilatildeo dos estados afetivos (movimentos da alma) que natildeo estaacute ao alcance da maioria dos homens ldquonatildeo sigamos esses exemplos natildeo os alcanccedilariacuteamosrdquo (III 10 347)14 Uma vez que o indiviacuteduo tenha sido tocado pelos objetos que nele despertam paixotildees nem seu juiacutezo nem sua vontade seratildeo capazes de refreaacute-lo15 - o proacuteprio

13 ldquoQui se souvient de sestre tant et tant de fois mesconteacute de son propre jugement est-il pas un sot de nen entrer pour jamais en deffiance Quand je me trouve convaincu par la raison dautruy dune opinion fauce je napprens pas tant ce quil ma dict de nouveau et cette ignorance particuliere (ce seroit peu dacquest) comme en general japprens ma debiliteacute et la trahison de mon entendementrdquo (III 13 1074) 14 ldquoNataquons pas ces exemples nous ny arriverions pointrdquo (III 10 1015) 15 Nem o juiacutezo nem a forccedila da vontade Mais do que apenas aos estoicos Montaigne portanto opotildee-se agraves duas tradiccedilotildees que desde os gregos debatiam acerca dos meios de fazer frente agraves paixotildees os intelectualistas que fundam a virtude no conhecimento do bem (o jovem Platatildeo os estoicos) e os adeptos da enkrateia isto eacute da forccedila de caraacuteter conquistada pelo exerciacutecio (Xenofonte os ciacutenicos) O Platatildeo dos diaacutelogos de maturidade (a partir da Repuacuteblica) e Aristoacuteteles

entenderatildeo que ambos o conhecimento do bem e a forccedila de caraacuteter satildeo necessaacuterios agrave virtude No opuacutesculo De constantia sapientis Secircneca daacute o nome de patientia agrave forccedila de caraacuteter diante das paixotildees e de constantia agrave ausecircncia de perturbaccedilatildeo fundada no juiacutezo reto

entendendo que a segunda virtude eacute superior agrave primeira

Viver como Soacutecrates 187

Montaigne se apresenta como exemplo de fraqueza da vontade

aqueles que devem cuidar de mim poderiam com facilidade subtrair de minha vista o que pensam ser-me nocivo pois em tais coisas jamais desejo nem tenho o que dizer sobre o que eu natildeo vejo mas daquelas que se me apresentam eles perdem seu tempo em pregar-me a abstinecircncia (III 13 p 478)16

Entre o homem comum e o paradigma do saacutebio

proposto pelos estoicos haacute uma distacircncia intransponiacutevel - o que faz deste uacuteltimo aos olhos de Montaigne um modelo inuacutetil

de que servem esses cumes elevados da filosofia sobre os quais nenhum ser humano pode se sentar e essas regras que excedem os nossos costumes e a nossa forccedila (III 9 p 307)17

Num contexto semelhante Montaigne vai ainda

mais longe na criacutetica acusando de ambiccedilatildeo os porta-vozes desta moral

Odeio esta sapiecircncia desumana que quer nos tornar indiferentes e inimigos da cultura do corpo Considero tomar a contragosto as voluacutepias naturais uma injusticcedila semelhante a gostar delas demais [] Haacute indiviacuteduos que com uma estupidez selvagem como diz Aristoacuteteles satildeo-lhes indiferentes [aos prazeres do corpo] Conheccedilo alguns que o satildeo por ambiccedilatildeo []

16 ldquoceux qui doivent avoir soing de moy pourroyent agrave bon marcheacute me desrober ce quils pensent mestre nuisible car en telles choses je ne desire jamais ny ne trouve agrave dire ce que je ne vois pas mais aussi de celles qui se presentent ils perdent leur temps de men prescher labstinencerdquo (III 13 1101) 17 ldquoA quoy faire ces poinctes esleveacutees de la philosophie sur lesquelles aucun estre humain ne se peut rassoir et ces regles qui excedent nostre usage et nostre forcerdquo (III 9 989)

188 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo (III 13 p 485-487 grifos nossos)18

Aqui Montaigne remete a uma longa tradiccedilatildeo cujos rastros se encontram na poesia grega (de Homero agraves trageacutedias) em Horaacutecio e em certos autores cristatildeos O ponto em comum entre essas diferentes fontes eacute a liccedilatildeo moral derivada da ecircnfase nos limites humanos particularmente contrastados pelos poetas gregos e autores cristatildeos19 com a perfeiccedilatildeo e a potecircncia divinas para marcar aquilo que o homem natildeo pode ambicionar Montaigne se insere nesta longa tradiccedilatildeo quando acusa na moral praacutetica dos estoicos algo como a aspiraccedilatildeo a uma condiccedilatildeo divina visto que a ciecircncia e a impassibilidade seriam atributos apenas de Deus

eles querem se colocar fora de si mesmos e escapar do homem Eacute loucura em vez de se transformarem em anjos transformam-se em bestas em vez de se elevarem precipitam-se (III 13 p 500)20

Montaigne adverte os que propotildeem esta moral

das consequecircncias nefastas de sua hyacutebris Natildeo se trata apenas de uma vatilde pretensatildeo de uma busca inuacutetil mas de um projeto nocivo Isto porque contrariamente ao que ela promete esta moral soacute produz a perturbaccedilatildeo a infelicidade Neste ponto a criacutetica endereccedila-se diretamente agrave meditatio mortis A meditaccedilatildeo permanente

18 [Je] hay cette inhumaine sapience qui nous veut rendre desdaigneux et ennemis de la culture du corps Jestime pareille injustice prendre agrave contre coeur les voluptez naturelles que de les prendre trop agrave coeur (hellip) Il en est qui dune farouche stupiditeacute comme dict Aristote en sont desgoutez Jen cognoy qui par ambition le font (hellip) Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps (III 13 1106-1107) 19 Cf tambeacutem Plutarco LE de Delfos in Dialogues Pythiques Paris Flammarion 2006 pps 112-115 (392a-393c) 20 ldquoIls veulent se mettre hors deux et eschapper agrave lhomme Cest folie au lieu de se transformer en anges ils se transforment en bestes au lieu de se hausser ils sabattentrdquo (III 13 p 1115)

Viver como Soacutecrates 189

da proacutepria morte projeccedilatildeo constante de um acontecimento fatal para o instante seguinte natildeo poderia ter outro efeito que pocircr o indiviacuteduo num estado de permanente terror A indignaccedilatildeo montaigniana com semelhante ldquomeacutetodordquo vai ao limite do escaacuternio

eacute certo que para a maior parte [dos homens] a preparaccedilatildeo para a morte provocou mais tormento do que o fez seu sofrimento [hellip] Natildeo somente o golpe mas o vento e o peido nos atingem (III 12 p 399-400)21

A meditatio acrescenta ao sofrimento sensiacutevel

real inevitaacutevel (a dor a morte) ou simplesmente possiacutevel (a pobreza a desonra) o medo ndash sofrimento criado pela imaginaccedilatildeo Ela antecipa prolonga no tempo e aprofunda (pois eacute recomendada a projeccedilatildeo dos mais terriacuteveis males uma vez que se trata de preparar-se para sua eventualidade) um sofrimento que soacute afetaria o sujeito no futuro e de modo mais leve ou mais breve no momento em que se apresentasse aos seus sentidos

Lanccedilai-vos agrave experiecircncia dos males que vos podem ocorrer sobretudo dos mais extremos testai-vos aiacute dizem eles ganhai seguranccedila [hellip] eacute preciso que nosso espiacuterito os estenda e alongue e que antecipadamente os incorpore em si e se entretenha com eles como se natildeo pesassem razoavelmente para os nossos sentidos [hellip] [ora] eacute febre submeter-se desde agora ao chicote porque pode ocorrer da fortuna vos fazer sofrer isso um dia (Ibidem)22

21 ldquoIl est certain quagrave la plus part la preparation agrave la mort a donneacute plus de tourment que na faict la souffrance (hellip) Non seulement le coup mais le vent et le pet nous frapperdquo (III 12 1050-1051) 22 ldquoJettez vous en lexperience des maux qui vous peuvent arriver nommeacutement des plus extremes esprouvez vous lagrave disent-ils asseurez vous lagrave (hellip) il faut que nostre esprit les estende et alonge et quavant la main il les incorpore en soy et sen entretienne comme sils ne poisoient pas raisonnablement agrave nos sens (hellip) [Or] cest fieacutevre aller

190 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Imaginaccedilatildeo e sentidos estes satildeo os dois poacutelos

que se opotildeem na criacutetica de Montaigne agrave meditatio mortis ou mais amplamente agrave laquociecircnciaraquo Que sejamos afetados por alguns infortuacutenios atraveacutes dos sentidos eacute algo incontornaacutevel Eacute possiacutevel evitar no entanto o trabalho nocivo da imaginaccedilatildeo que produz a perturbaccedilatildeo

Por aiacute jaacute se antevecirc o caminho que Montaigne vai contrapor agrave via da ciecircncia no que diz respeito ao enfrentamento dos infortuacutenios a via dos sentidos isto eacute da restriccedilatildeo do trabalho da imaginaccedilatildeo Trata-se do caminho percorrido espontaneamente pelo homem simples natildeo cultivado que evita pensar nos infortuacutenios antes que ocorram sofrendo-os apenas quando se apresentam aos seus sentidos ldquoO [homem] comum natildeo tem necessidade nem de remeacutedio nem de consolo a natildeo ser no momento do golpe e natildeo o considera senatildeo tanto quanto o senterdquo (III 12 p 403)23 Este homem natildeo entristece o presente por causa de uma eventual ou necessaacuteria infelicidade futura natildeo prolonga no tempo nem aumenta a gravidade dos sofrimentos por meio de projeccedilotildees imaginaacuterias Ao contraacuterio ele fixa sua consciecircncia no presente e na fruiccedilatildeo dos prazeres e pequenas felicidades do instante afastando as representaccedilotildees que provocam medo e tristeza

[] jamais vi camponecircs vizinho meu pocircr-se a cogitar sobre a continecircncia e a seguranccedila com que passaria por esta hora derradeira A natureza o ensina a soacute pensar na morte quando estiver morrendo (III 12 402)24

des agrave cette heure vous faire donner le fouet par ce quil peut advenir que fortune vous le fera souffrir un jourrdquo (idem) 23 laquoLe commun na besoing ny de remede ny de consolation quau coup et nen considere quautant justement quil en sentraquo (III 12 1052) 24 laquoJe ne vy jamais paysan de mes voisins entrer en cogitation de quelle contenance et asseurance il passeroit cette heure derniere

Viver como Soacutecrates 191

Ao deixar ao maacuteximo os infortuacutenios para os

sentidos utilizando ao miacutenimo a faculdade de representaccedilatildeo este homem eacute ateacute mesmo mais capaz de captaacute-los na sua dimensatildeo real que escapa ao homem de ldquociecircnciardquo que lhes acrescenta representaccedilotildees imaginaacuterias laquocomo os perfumistas [fazem] com o oacuteleo eles [os homens de laquociecircnciaraquo] a sofisticaram [a natureza] com tantas argumentaccedilotildees e discursos trazidos de fora [hellip]raquo (III 12 p 399)25 Enquanto o homem de ciecircncia se afasta da verdade das coisas o homem comum dela se aproxima

Eis portanto o modelo de conduta a seguir algueacutem como o camponecircs o ruacutestico Em duas palavras o homem ignorante que natildeo passou pelo processo de educaccedilatildeo (laquoesta turba ruacutestica de homens impolidosraquo - III 12 p 398)26 e que se orienta pelos costumes (as opiniotildees comuns) e pela experiecircncia imediata Sobretudo este homem sofre pouco porque toma como criteacuterio de conduta o que se apresenta aos sentidos Ele busca o prazer e foge da dor Por isso evita acrescentar agrave dor que haacute de afetaacute-lo sensivelmente (a doenccedila a velhice a morte) o sofrimento que poderiam provocar as representaccedilotildees imaginaacuterias (a tristeza o medo) Da mesma forma busca os prazeres sensiacuteveis e os frui intensamente sem misturaacute-los a representaccedilotildees desagradaacuteveis27 Mas ele tambeacutem evita os excessos pois

Nature luy apprend agrave ne songer agrave la mort que quand il se meurtraquo (idem) 25 laquocomme les parfumiers de lhuile ils [les hommes de science] lont sophistiqueacutee [la nature] de tant dargumentations et de discours appellez du dehorshellip raquo (III 12 1049) 26 laquoCette tourbe rustique dhommes impolisraquo (III 12 p 1049) 27 A conduta ldquonaturalrdquo que no ensaio Da experiecircncia Montaigne reivindica em relaccedilatildeo aos prazeres do corpo natildeo eacute a outra face da conduta natural que no Da fisionomia ele reivindica em relaccedilatildeo aos sofrimentos Pensamos que sim Mesmo que Montaigne natildeo atribua explicitamente ao ruacutestico o gozo salutar dos prazeres sensiacuteveis

192 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo deseja as dores futuras que estes poderiam acarretar28 (a ressaca depois da bebedeira a indigestatildeo apoacutes a comilanccedila) laquoa intemperanccedila eacute peste da voluacutepia e a temperanccedila natildeo eacute seu flagelo eacute seu temperoraquo (III 13 p 493)29 Enfim desta espeacutecie de sabedoria popular desta sapiecircncia quase instintiva (os animais tambeacutem buscam o prazer e evitam a dor30) adveacutem a tranquilidade da alma estado aniacutemico que coexiste com uma espeacutecie de gratidatildeo31 pelo vivido ndash fruto da praacutetica cotidiana e reiterada do desvio da consciecircncia das dores e de sua fixaccedilatildeo nos prazeres

(regrado unicamente pela necessidade de natildeo recair em dores futuras) fazecirc-lo parece-nos conforme agraves ideias do ensaiacutesta 28 Seriam suficientes o prazer e a dor como criteacuterios de conduta para evitarmos o viacutecio e instaurarmos a virtude moral Seria suficiente a aplicaccedilatildeo desses criteacuterios Essas questotildees devem ser examinadas 29 laquoLintemperance est peste de la volupteacute et la temperance nest pas son fleau cest son assaisonnementraquo (III 13 1110) 30 laquoA natureza imprimiu nos animais o cuidado consigo mesmos e com sua conservaccedilatildeo Eles vatildeo ateacute o ponto de temer sua piora chocar-se e ferir-se que noacutes os encabrestemos e batamos neles acidentes sujeitos a seus sentidos e experiecircncia Mas que noacutes os matemos eles natildeo podem temecirc-lo nem tem a faculdade de imaginar e concluir a morteraquo (III 12 p 407) rdquoNature a empreint aux bestes le soing delles et de leur conservation Elles vont jusques lagrave de craindre leur empirement de se heurter et blesser que nous les enchevestrons et battons accidents subjects agrave leurs sens et experience Mais que nous les tuons elles ne le peuvent craindre ny nont la faculteacute dimaginer et conclurre la mortrdquo (III 12 p 1055) 31 Novamente parece-nos de acordo com as ideias do autor estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a conduta paradigmaacutetica do camponecircs (conduta conforme a natureza) e o tema da gratidatildeo que aparece no ensaio seguinte Da experiecircncia Isto porque a gratidatildeo eacute uma espeacutecie de corolaacuterio da vida conforme a natureza que restringe as dores agrave sua accedilatildeo (inevitaacutevel) sobre os sentidos e estende os prazeres sensiacuteveis com o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo (a faculdade de representaccedilatildeo) ldquoOs outros sentem a doccedilura de um contentamento e da prosperidade sinto-a assim como eles mas natildeo de passagem e escapando Eacute preciso estudaacute-la saboreaacute-la e ruminaacute-la para dar graccedilas condignas agravequele que no-la outorga () Quanto a mim portanto amo a vida e a cultivo tal como aprouve a Deus no-la outorgarrdquo (III 13 pps 494-496)

Viver como Soacutecrates 193

Mas o que significa tomar o ruacutestico (essa espeacutecie de homem quase em ldquoestado de naturezardquo) como modelo de conduta O que isso pode significar para homens que como Montaigne jaacute passaram pelo processo de educaccedilatildeo e natildeo podem simplesmente retornar para esse estado primitivo de ignoracircncia Como jaacute tendo sido educado aproximar-se deste modelo Em resposta a essas perguntas Montaigne encontra na histoacuteria da filosofia um modelo de saacutebio que teria realizado este lsquoprojetorsquo Soacutecrates O mestre de Platatildeo e de Xenofonte segundo o ensaiacutesta teria justamente alcanccedilado por meio de sua praacutetica filosoacutefica um estado similar ao do ruacutestico Ele reproduziria refletidamente sua tranquilidade fundada na ignoracircncia ldquonatildeo teremos falta de bons regentes inteacuterpretes da simplicidade natural Soacutecrates seraacute um delesrdquo (III 12 p 403)32 Isto porque o principal fruto do seu ensinamento teria sido conduzir seus interlocutores ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia (reconhecimento que ele Soacutecrates teria sido o primeiro a fazer) O essencial neste ponto eacute a praacutetica socraacutetica do elenchos a criacutetica dos discursos dogmaacuteticos (de seu pretenso saber) a conduccedilatildeo de seus interlocutores ao reconhecimento de sua falta de ciecircncia (de que estatildeo em posse apenas de opiniotildees) Em Da fisionomia Montaigne examina o discurso que Soacutecrates teria proferido na ocasiatildeo do seu julgamento e deteacutem-se na anaacutelise das razotildees de sua tranquilidade diante de sua condenaccedilatildeo agrave morte Em face deste horizonte Soacutecrates mostra-se sereno E ele argumenta que permanece calmo afirma Montaigne porque natildeo sabe o que eacute a morte Todas as opiniotildees acerca da natureza desta (se haacute ou natildeo imortalidade da alma se a morte eacute ou natildeo a nossa completa aniquilaccedilatildeo) revelam-se quando submetidas a exame apenas isto opiniotildees isto eacute juiacutezos cuja correspondecircncia com o objeto (a morte) natildeo se pode

32 ldquoNous naurons pas faute de bons regens interpretes de la simpliciteacute naturelle Socrates en sera lunrdquo (III 12 p 1052)

194 Eacutetica e filosofia poliacutetica

comprovar Portanto temer o quecirc Natildeo haacute o que justifique o temor ldquosei [diz Soacutecrates] que nem frequentei nem conheci a morte nem vi ningueacutem que tenha experimentado suas qualidades para me instruir sobre elas Aqueles que a temem pressupotildeem conhececirc-la Quanto a mim natildeo sei nem o que ela eacute nem o que se faz no outro mundordquo (III 12 p 403-404)33 O juiacutezo de Montaigne sobre o pronunciamento socraacutetico coloca o mestre de Platatildeo na mesma posiccedilatildeo do ruacutestico ldquoeacute um discurso [] [que] representa [] a pura e primeira impressatildeo e ignoracircncia naturalrdquo (III 12 p 407)34

Assim como o ruacutestico portanto o Soacutecrates montaigniano (mas agora por efeito da criacutetica ceacutetica e natildeo por inclinaccedilatildeo ldquonaturalrdquo) natildeo acrescenta agrave dor sensiacutevel e inevitaacutevel o sofrimento evitaacutevel criado pelas representaccedilotildees Mas ele tambeacutem se assemelha ao homem simples em sua dedicaccedilatildeo aos prazeres sensiacuteveis Tambeacutem daiacute deriva sua tranquilidade fruto da satisfaccedilatildeo das carecircncias naturais Natildeo satildeo poucas as passagens em que Montaigne pinta um Soacutecrates afeito aos pequenos prazeres e alegrias do instante o homem que danccedila toca instrumentos brinca com as crianccedilas bebe com os companheiros e ateacute mesmo permite-se cometer excessos ocasionais afirmando que eles pertencem (se eventuais e adequados agraves circunstacircncias) agraves regras da conveniecircncia

[natildeo haacute] coisa mais notaacutevel em Soacutecrates do que muito velho ele encontrar tempo para aprender a danccedilar e a tocar instrumentos e tecirc-lo por bem empregado [hellip] este homem se fosse convidado a beber agrave porfia por

33 ldquoJe sccedilay [dit Socrate] que je nay ny frequenteacute ny recogneu la mort ny nay veu personne qui ayt essayeacute ses qualitez pour men instruire Ceux qui la craingnent presupposent la cognoistre Quant agrave moy je ne sccedilay ny quelle elle est ny quel il faict en lautre monderdquo (III 12 pps 1052-1053) 34 ldquocest un discours (hellip) [qui] repreacutesente (hellip) la pure et premiere impression et ignorance de naturerdquo (1054-1055)

Viver como Soacutecrates 195

dever de civilidade de todo o exeacutercito era ele que levava a vantagem e natildeo se recusava nem a brincar de bolinhas com as crianccedilas nem a correr com elas sobre um cavalo de madeira e o fazia com graccedila (III 13 p 491-492)35

Por aiacute jaacute se percebe que o modelo de Soacutecrates eacute

relevante natildeo apenas por sua potecircncia criacutetica isto eacute por levar os pretensos saacutebios ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia O interesse do modelo socraacutetico natildeo se resume ao momento negativo do elenchos A partir da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia um novo programa surge e Montaigne reconhece em Soacutecrates seu mais ilustre representante Isto porque o ruacutestico natildeo eacute apenas um homem ignorante Ele eacute um homem ordenado espontaneamente ordenado um homem que se conduz conforme uma ldquoordenaccedilatildeo naturalrdquo Ora o programa que se inaugura depois do momento da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia eacute o resgate desta ordem que foi perdida por efeito de uma certa educaccedilatildeo de uma certa cultura ldquoNatildeo encaro a espeacutecie e o indiviacuteduo como uma pedra em que eu tenha tropeccedilado aprendo a temer meus passos em tudo e empenho-me em regraacute-losrdquo (III 13 p 436)36 ldquoCompor nossos costumes eacute nosso ofiacutecio natildeo compor livros e ganhar natildeo batalhas e proviacutencias mas a ordem e a tranquilidade em nossa condutardquo (III 13 pps 488-489)37

35 ldquo[il nest] chose plus remercable en Socrates que ce que tout vieil il trouve le temps de se faire instruire agrave baller et jouer des instrumens et le tient pour bien employeacute () cet homme lagrave estoit-il convieacute de boire agrave lut par devoir de civiliteacute cestoit () celuy de larmeacutee agrave qui en demeuroit lavantage et ne refusoit ny agrave jouer aux noysettes avec les enfans ny agrave courir avec eux sur un cheval de bois et y avoit bonne gracerdquo (III 13 1109-1110) 36 ldquoJe ne regarde pas lespece et lindividu comme une pierre ougrave jaye broncheacute japprens agrave craindre mon alleure par tout et mattens agrave la reiglerrdquo (III 13 1074) 37 ldquoComposer nos meurs est nostre office non pas composer des livres et gaigner non pas des batailles et provinces mais lordre et tranquilliteacute agrave nostre conduiterdquo (III 13 1108 ndash idem)

196 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Em termos socraacuteticos eacute como se passaacutessemos

agora para o momento da maiecircutica isto eacute do esforccedilo para dar ordem agraves opiniotildees e daiacute extrair o conhecimento Em termos montaignianos trata-se de recuperar a ordenaccedilatildeo de si isto eacute de suas proacuteprias opiniotildees e da relaccedilatildeo entre as partes constitutivas do eu38 a saber o corpo e a alma Eacute desta ordenaccedilatildeo que adveacutem a tranquilitas

Falemos um pouco mais do ruacutestico Sua fala e sua conduta satildeo espontaneamente ordenadas Seu discurso tem ordem ainda que suas palavras natildeo o tenham No mais das vezes ele se faz entender comunica-se com

38 Ora natildeo eacute exatamente este o ldquoprograma moralrdquo que Platatildeo elabora em diversos diaacutelogos Qual seja restabelecer a partir do conhecimento de si (isto eacute de nossa natureza) a ordem natural entre nossas partes constitutivas (no caso platocircnico a devida hierarquia entre o corpo e a alma o devido comando desta sobre aquele) ldquoa excelecircncia de cada coisa consiste em uma ordem (taacutexei) e uma disposiccedilatildeo feliz (kekosmemeacutenon) resultante da ordem () Eacute preciso que cada um aplique todas as suas forccedilas todas as da cidade na direccedilatildeo deste fim () que natildeo se permita aos apetites (epithymiacuteas) reinar sem medidardquo (Goacutergias 506d-507e) Como veremos Montaigne repropotildee o programa platocircnico da ordenaccedilatildeo de si mas em termos diversos Natildeo se trataraacute de estabelecer uma relaccedilatildeo vertical de comando e obediecircncia entre as ldquopartesrdquo mas uma relaccedilatildeo horizontal de auxiacutelio reciacuteproco de ldquomutuels officesrdquo (III 13 p 1114) Sem duacutevida Montaigne concorda com Platatildeo quanto agrave necessidade da temperanccedila Mas esta natildeo deve ser o efeito do comando da alma

sobre o corpo mas do muacutetuo auxiacutelio entre essas partes (as paixotildees da alma tambeacutem precisam ser regradas temperadas ndash aliaacutes elas satildeo as mais perigosas) Nem Montaigne pretende que busquemos a temperanccedila por se tratar de um fim uacuteltimo mas sim porque o prazer

depende dela ldquoque ela [a alma] o assista e favoreccedila [o corpo] e natildeo se recuse a participar de seus prazeres naturais e de se comprazer conjugalmente com eles acrescentando-lhes se for mais saacutebia a moderaccedilatildeo temendo que por indiscriccedilatildeo eles se confundam com o desprazerrdquo (III 13 p 494-493) O fim uacuteltimo eacute outro natildeo a virtude (para a qual deve se dirigir o prazer) mas o prazer (para o qual deve se dirigir a virtude) Mas tambeacutem eacute outro o que nos move em direccedilatildeo a tal fim natildeo mais uma vontade racional soberana mas um desejo orientado (favorecido) pelo juiacutezo

Viver como Soacutecrates 197

sucesso o espiacuterito do que diz eacute compreensiacutevel ainda que possa haver certo desarranjo na letra

Ele natildeo sabe ablativo conjuntivo substantivo nem a gramaacutetica tampouco o sabem seu lacaio ou uma peixeira de Petit Pont e no entanto vos entreteratildeo a natildeo mais poder se o desejares e possivelmente se embaraccedilaratildeo tatildeo pouco com as regras de sua linguagem quanto o melhor bacharel da Franccedila (I 26 253)39

O mesmo ocorre com sua conduta no mais das

vezes ele age de maneira reta e permanece tranquilo pois toma como criteacuterios de conduta os costumes e os sentidos (o prazer e a dor) Ele permanece tranquilo porque suas ldquopartes constitutivasrdquo (seu corpo e sua alma) estatildeo espontaneamente ordenadas uma em relaccedilatildeo agrave outra Ele eacute o homem que manteacutem uma relaccedilatildeo saudaacutevel com o proacuteprio corpo que atende agraves demandas de seus impulsos naturais (desejo de prazer e aversatildeo agrave dor) Ele natildeo busca uma impassibilidade antinatural como fazem os filoacutesofos (os homens de ldquociecircnciardquo) nem o controle de sua alma sobre seu corpo Estes (alma e corpo) auxiliam-se reciprocamente Sua alma natildeo acrescenta agraves dores do corpo o sofrimento decorrente de representaccedilotildees imaginaacuterias ao contraacuterio busca distraccedilotildees (diversotildees lembranccedilas de prazeres passados etc) para aliviar as dores inevitaacuteveis do corpo Esta conduta serve de modelo para o proacuteprio Montaigne como ele nos mostra nesta passagem

Eis que desde recentemente os mais leves movimentos expelem puro sangue de meus rins Ora nem por isso

39 ldquoIl ne sccedilait pas ablatif conjunctif substantif ny la grammaire ne faict pas son laquais ou une harangiere du petit pont et si vous entretiendront tout vostre soul si vous en avez envie et se desferreront aussi peu agrave ladventure aux regles de leur langage que le meilleur maistre eacutes arts de Francerdquo (I 26 169)

198 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eu deixo de me mover como dantes e galopar atraacutes de meus catildees com um ardor juvenil e insolente [] Sinto alguma coisa que desmorona Natildeo espereis que fique me ocupando em examinar meu pulso e minha urina para daiacute extrair alguma previsatildeo desagradaacutevel passarei bastante tempo sentindo o mal sem prolongaacute-lo com o mal do medo Quem teme sofrer jaacute sofre porque teme (III 13 p 468-469)40

Por outro lado os prazeres sensiacuteveis servem de

baacutelsamo para as paixotildees tristes da alma ndash a tristeza e o medo face agrave velhice a doenccedila e a morte Novamente eacute a conduta que Montaigne potildee em praacutetica ldquojovem eu cobria de prudecircncia minhas paixotildees alegres velho disperso as tristes com o desregramentordquo (III 9 p 288)41 Enfim por meio do muacutetuo acordo de suas lsquopartes constitutivasrsquo o homem comum consegue regrar os excessos de uma e de outra 42

E quanto a Soacutecrates Ou melhor e quanto ao Soacutecrates montaigniano Ora ele eacute o homem que se opotildee a uma certa cultura a uma determinada educaccedilatildeo a saber aquela que rompe com esta ordem ldquonaturalrdquo que desfaz a adesatildeo espontacircnea dos homens agraves opiniotildees

40 ldquoVoicy depuis de nouveau que les plus legers mouvements espreignent le pur sang de mes reins Quoy pour cela je ne laisse de me mouvoir comme devant et picquer apres mes chiens dune juvenile ardeur et insolente () Or sens je quelque chose qui crosle Ne vous attendez pas que jaille mamusant agrave recognoistre mon pous et mes urines pour y prendre quelque prevoyance ennuyeuse je seray assez agrave temps agrave sentir le mal sans lalonger par le mal de la peur Qui craint de souffrir il souffre desjagrave de ce quil craintrdquo (III 13 p 1095) 41 ldquoJeune je couvrois mes passions enjoueacutees de prudence vieil je demesle les tristes de deacutebaucherdquo (III 9 p 977) 42 Mais uma vez projetamos intencionalmente sobre o modelo do ruacutestico uma conduta que natildeo eacute explicitamente associada a ele por Montaigne a saber o muacutetuo auxiacutelio entre o corpo e a alma Acreditamos poreacutem que tal projeccedilatildeo eacute perfeitamente conforme agraves ideias do autor na medida em que associa a ordenaccedilatildeo natural entre as ldquopartes constitutivas do eurdquo agrave conduta conforme agrave natureza cujo

modelo Montaigne encontra no ruacutestico

Viver como Soacutecrates 199

comuns e aos sentidos colocando no lugar destes como criteacuterios de conduta os comandos da razatildeo (uma doutrina moral pretensamente fundada numa fiacutesica) O Soacutecrates montaigniano eacute aquele que submete agrave criacutetica o pretenso conhecimento de si (o suposto saber dos filoacutesofos dogmaacuteticos acerca da nossa essecircncia) que exibe nossa ignoracircncia a respeito de noacutes mesmos que reduz enfim as doutrinas acerca da natureza humana ao niacutevel de opiniotildees e restitui agrave experiecircncia (ao exame dos fenocircmenos) o lugar privilegiado de fonte do conhecimento de si

Os filoacutesofos com grande razatildeo remetem-nos agraves regras da Natureza mas elas natildeo tecircm o que fazer com tatildeo sublime conhecimento eles as falseiam e nos apresentam seu rosto pintado com cores que o elevam demais e sofisticam demais [] Quem rememora o excesso de sua coacutelera passada e ateacute onde essa febre o arrastou vecirc a feiura desta paixatildeo melhor do que em Aristoacuteteles e concebe por ela um oacutedio mais justo [] A vida de Ceacutesar natildeo fornece mais exemplo do que a nossa para noacutes tanto imperatriz como popular eacute sempre uma vida agrave qual todos os acidentes humanos concernem Escutemo-la somente noacutes nos dizemos tudo aquilo de que temos principalmente necessidade [] A advertecircncia para cada um se conhecer deve ser de um importante efeito visto que este Deus de ciecircncia e de luz a fez plantar no frontatildeo do seu templo como compreendendo tudo o que ele tinha para nos aconselhar Platatildeo tambeacutem diz que a prudecircncia natildeo eacute outra coisa que a execuccedilatildeo desta prescriccedilatildeo e Soacutecrates prova-o detalhadamente em Xenofonte (III 13 p 435-437)43

43 ldquoLes philosophes avec grand raison nous renvoyent aux regles de Nature mais elles nont que faire de si sublime cognoissance ils les falsifient et nous presentent son visage peint trop haut en couleur et trop sophistiqueacute (hellip) Qui remet en sa memoire lexcez de sa cholere passeacutee et jusques ougrave cette fieacutevre lemporta voit la laideur de cette

200 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir entatildeo da experiecircncia de si (e natildeo mais

de doutrinas dogmaacuteticas acerca da natureza humana) o velho programa da ordenaccedilatildeo de si pode ser recolocado nos seus devidos termos Isto porque a ausculta de si eacute a experiecircncia de uma condiccedilatildeo mista de uma vivecircncia simultaneamente aniacutemica e corpoacuterea espiritual e carnal

Os prazeres puros da imaginaccedilatildeo assim como os desprazeres dizem alguns satildeo os maiores [] Deles vejo todos os dias exemplos insignes e talvez desejaacuteveis Mas eu de condiccedilatildeo mista grosseiro natildeo posso me apegar tatildeo inteiramente a esse uacutenico objeto [] Aristipo defendia apenas o corpo como se natildeo tiveacutessemos alma Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo Ambos viciosamente (III 13 p 486-487)44

Daiacute o novo programa ordenar-se a si mesmo no

niacutevel da conduta eacute estabelecer o auxiacutelio reciacuteproco entre o corpo e a alma

para que desmembramos em divoacutercio um edifiacutecio tecido com tatildeo estreita e fraternal correspondecircncia Ao

passion mieux que dans Aristote et en conccediloit une haine plus juste (hellip) La vie de Caesar na poinct plus dexemple que la nostre pour nous et emperiegravere et populaire cest tousjours une vie que tous accidents humains regardent Escoutons y seulement nous nous disons tout ce de quoy nous avons principalement besoing (hellip) Ladvertissement agrave chacun de se cognoistre doibt estre dun important effect puisque ce Dieu de science et de lumiere le fit planter au front de son temple comme comprenant tout ce quil avoit agrave nous conseiller Platon dict aussi que prudence nest autre chose que lexecution de cette ordonnance et Socrates le verifie par le menu en Xenophonrdquo (III 13 1073-1075) 44 ldquoLes plaisirs purs de limagination ainsi que les desplaisirs disent aucuns sont les plus grands (hellip) Jen voy tous les jours des exemples insignes et agrave ladventure desirables Mais moy dune condition mixte grossier ne puis mordre si agrave faict agrave ce seul object () Aristippus ne defendoit que le corps comme si nous navions pas dame Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps Tous deux vicieusementrdquo (III 13 p 1107)

Viver como Soacutecrates 201

contraacuterio renovemo-lo por deveres muacutetuos Que o espiacuterito desperte e vivifique o peso do corpo o corpo detenha a leveza do espiacuterito e a fixe (III 13 p 498)45 Deste novo ldquoprogramardquo formulado por Montaigne

com base nos exemplos de Soacutecrates e do ruacutestico haacute de emergir uma conduta e uma vida ordenadas Agrave ordem ou agrave coerecircncia da conduta e da vida do saacutebio idealizado pelo estoicismo efeito da repeticcedilatildeo da impassibilidade (sempre conveniente sempre adequada) Montaigne opotildee uma nova figura da ordem ou da coerecircncia aquela muito mais humana que eacute efeito da reiteraccedilatildeo do desvio da consciecircncia dos objetos que despertam as paixotildees (desvio sempre conveniente sempre ldquoagrave proposrdquo) Enfim Montaigne opotildee agrave constantia estoica uma conduta que parece inconstante mas que escapa da criacutetica da inconstacircncia na medida em que eacute constituiacuteda por desvios conscientes voluntaacuterios (uma ldquomaneirardquo que natildeo tem nada de passiva ao contraacuterio eacute uma estrateacutegia para escapar da servidatildeo agraves paixotildees)

Soacutecrates natildeo diz Natildeo vos rendais aos atrativos da beleza sustentai vossa posiccedilatildeo diante dela esforccedilai-vos ao contraacuterio Fugi diz ele correi para longe de sua visatildeo e de seu encontro como de um veneno poderoso que se atira e atinge de longe (III 10 p 348)46

Finalmente chega-se a uma conduta

perfeitamente laquoordenadaraquo a uma vida unificada e uniforme totalmente coerente (laquoEle [Soacutecrates] foi

45 ldquoA quoy faire desmembrons nous en divorce un bastiment tissu dune si joincte et fraternelle correspondance Au rebours renouons le par mutuels offices Que lesprit esveille et vivifie la pesanteur du corps le corps arreste la legereteacute de lesprit et la fixerdquo (III 13 p 1114) 46 ldquoSocrates ne dit point Ne vous rendez pas aux attraicts de la beauteacute soustenez la efforcez vous au contraire Fuyez la faict-il courez hors de sa veue et de son rencontre comme dune poison puissante qui seslance et frappe de loingrdquo (III 10 1015-1016)

202 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tambeacutem sempre uno e semelhanteraquo - III 12 p 380)47 a vida do homem ordinaacuterio de bem sucessatildeo de desvios Ora natildeo eacute exatamente uma perfeita harmonia que encontramos na imagem acabada da tranquilidade da alma que Montaigne funda sobre este modelo de conduta

Ela [minha alma] mede o quanto deve a Deus por estar em paz com sua consciecircncia e com outras paixotildees intestinas por ter o corpo em sua disposiccedilatildeo natural fruindo ordenada e competentemente as funccedilotildees moles e aduladoras com as quais lhe apraz compensar com sua graccedila as dores com que sua justiccedila por sua vez nos golpeia o quanto lhe vale estar alojada em tal ponto que para onde quer que ela lance o olhar o ceacuteu estaacute calmo ao seu redor nenhum desejo nenhum temor ou duacutevida que lhe perturbe o ar nenhuma dificuldade passada presente futura por cima da qual sua imaginaccedilatildeo natildeo passe sem ofensa (III 13 p 495)48

REFEREcircNCIAS FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduit par Robert Rovini Paris Gallimard 1992 (coll ldquoTelrdquo)

LONG Anthony La Filosofia Heleniacutestica - Estoicos Epicuacutereos Esceacutepticos trad P Jordan de Urries Madrid Alianza Editorial 1977

47 laquoIl [Socrate] fut aussi tousjours un et pareilraquo (III 12 p 1037) 48 ldquoElle [mon ame] mesure combien cest quelle doibt agrave Dieu destre en repos de sa conscience et dautres passions intestines davoir le corps en sa disposition naturelle jouyssant ordonneacuteement et competemmant des functions molles et flateuses par lesquelles il luy plait compenser de sa grace les douleurs de quoy sa justice nous bat agrave son tour combien luy vaut destre logeacutee en tel point que ougrave quelle jette sa veue le ciel est calme autour delle nul desir nulle crainte ou doubte qui luy trouble lair aucune difficulteacute passeacutee presente future par dessus laquelle son imagination ne passe sans offencerdquo (III 13 p 1112)

Viver como Soacutecrates 203

MONTAIGNE Michel de Les Essais Eacutedition de Pierre Villey reeacutediteacutee par V L Saulnier Col Quadrige Paris PUF 1999

_____ Os Ensaios (traduccedilatildeo de Rosemary Costek) Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 3 vols

PLATAtildeO Gorgias Texte eacutetabli et traduit par Alfred Croiset avec la collaboration de Louis Bodin Collection des universiteacutes de France Paris Les Belles Lettres 2003

SENECA De constantia sapientis in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ De tranquilitate animi in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ Lettres a Lucilius Texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot Eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne Paris Robert Laffont 1993

204 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VIII =

NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE

Stefano Busellato

1 Desde o seu primeiriacutessimo escrito juvenil de

caraacuteter filosoacutefico Fatum und Geschichte de 1862 na perspectiva da precoce negaccedilatildeo do ldquointeiro cristianismordquo Nietzsche refletindo sobre si mesmo escreve ldquoEu procurei negar tudo ai de mim destruir eacute faacutecil mas construirrdquo

Tal frase ressalta-se como o eneacutesimo exemplo da extraordinaacuteria clarividecircncia que caracteriza Nietzsche jaacute que tal frase pode ser considerada uma suacutemula do inteiro quadro do seu pensamento

Todos aqueles que passaram alguns anos estudando as paacuteginas nietzschianas com certeza encontraram e tiveram que resolver uma peculiaridade que eacute tambeacutem um dos principais problemas exegeacuteticos diante do qual o inteacuterprete precisa elaborar uma resposta quer dizer uma evidente desproporccedilatildeo entre a pars destruens e a pars construens Se de fato os objetivos polecircmicos os alvos criacuteticos as teorias que Nietzsche confuta e rejeita satildeo extremamente claros e precisos eacute pelo contraacuterio muito mais difiacutecil individuar com tanta exatidatildeo as propostas positivas e as alternativas que ele quer propor

Graduado em Filosofia pela Universitagrave di Pisa (2001) doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave Degli Studi di Macerata (2009) poacutes-doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave di Siena (2011-2013) pela USP (2014-2016) e pela UNIOESTE (2016) Publicou entre outros os livros Nietzsche e Lo Scetticismo (2012) e Schopenhauer lettore di Spinoza (2015)

206 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Esse desniacutevel entre o contradizer e o propor

adquire em Nietzsche uma forma particular a da autocontradiccedilatildeo ndash e em uma medida tatildeo forte ao ponto de superar a normalidade das contradiccedilotildees presentes em outros pensadores (e eacute isso que leva a uma espeacutecie de licenccedila exegeacutetica na leitura do pensamento de Nietzsche que recebeu as mais variadas e contraacuterias interpretaccedilotildees como nenhum outro pensador na histoacuteria da filosofia)

Diante dessa peculiaridade da obra nietzschiana existem duas principais estrateacutegias para tentar explicaacute-la 1) negar que Nietzsche eacute um filoacutesofo stricto sensu e 2) ver exatamente na potecircncia da sua parte negativa a verdadeira (e praticamente uacutenica) essecircncia do pensamento nietzschiano De acordo com tal perspectiva o seu precioso valor emancipatoacuterio consistiria na capacidade de abater as verdades consideradas como tais e isso constituiria jaacute um resultado digno de reconhecimento e gratidatildeo da nossa parte Exigir que ele nos mostre tambeacutem uma capacidade construtiva seria dessa forma uma demonstraccedilatildeo de insatisfaccedilatildeo com o seu pensamento que seria injusta

1) Agrave primeira dessas duas opccedilotildees pertencem todos os leitores que veem em Nietzsche mais um artista do que um filoacutesofo estrito E natildeo devemos esquecer que a recepccedilatildeo criacutetica de Nietzsche antes da I Guerra Mundial assim como uma parte importante daquela que chega ateacute o limiar do segundo conflito mundial nasceu e cresceu mais graccedilas a artistas do que agrave filosofia institucional (por exemplo Mahler R Strauss DrsquoAnnunzio Gorge Hesse Thomas Mann Hofmannsthal Rilke Musil Benn Zweig etc) Mas tambeacutem pertencem a essa linha interpretativa aqueles que por mais que vejam Nietzsche como um filoacutesofo e natildeo tanto como um artista reconduzem de qualquer forma a razatildeo da sua escassez propositiva e da sua natureza contraditoacuteria a uma carecircncia teacutecnico-filosoacutefica

Nietzsche e o ceticismo 207

Entre alguns desses inteacuterpretes podemos citar Ferdinand Toumlnnies que define o pensamento de Nietzsche uma Paradoxsophie ldquoum voacutertice de pensamentos de exclamaccedilotildees e declamaccedilotildees de acessos de ira e afirmaccedilotildees contraditoacuterias em meio a muitos relacircmpagos que iluminam e ofuscamrdquo1

[] vocecircs podem sentir prazer lendo os escritos de Nietzsche [] podem aprender algumas coisas neles mas apenas se vocecircs decidiram aprender com outros as coisas mais fundamentais sobre os mesmos assuntos2

Ou ateacute mesmo inteacuterpretes de peso como Karl

Jaspers segundo o qual as contradiccedilotildees de Nietzsche nascem de uma ldquoinadequada preparaccedilatildeo filosoacutefica no manejo dos grandes pensadoresrdquo de uma ldquofalta de formaccedilatildeo profissionalrdquo que constitui tambeacutem a sua extraordinaacuteria capacidade de se relacionar ldquocom um imenso impulsordquo com a verdade mas eacute tambeacutem o que explicaria a frequente recaiacuteda em antinomias das quais por puro amadorismo ldquoele natildeo tem consciecircnciardquo3

2) A segunda opccedilatildeo exegeacutetica aquela que vecirc no aspecto negativo na excepcional forccedila do seu radicalismo criacutetico a verdadeira essecircncia da filosofia nietzschiana que explicaria tanto a diferenccedila entre a pars destruens e a construens quanto a sua autocontradiccedilatildeo eacute aquela que hoje parece prevalecer e que conta entre seus seguidores com inteacuterpretes do mais alto niacutevel Ainda que com diferenccedilas oacutebvias eacute possiacutevel traccedilar uma linha

1 F Toumlnnies Der Nietzsches-Kults Eine Kritik [1897] Akademie-Verlag Berlin 1990 pp 99-104 trad it Il culto di Nietzsche Una critica E Donaggio [Org] Editori Riuniti Roma 1998 p 131 2 Ivi p 41 3 K Jaspers Nietzsche Einfuumlhrung in das Verstaumlndnis seines Philosophierens de Gruyter Berlin-New York 1974 trad it L Rustichelli [Org] Nietzsche Introduzione alla comprensione del suo filosofare Mursia Milano 1996 pp 376-377

208 Eacutetica e filosofia poliacutetica

de continuidade entre o ldquoprinciacutepio da possibilidaderdquo de Musil a ldquoSelbstuumlberwindungrdquo de Mann ldquoo infinito transformar-serdquo de Bertram E tambeacutem na Franccedila encontramos por exemplo Bataille que fala de ldquouma exigecircncia sem referecircnciasrdquo4 que daria vida ao filosofar nietzschiano e isso o leva a observar como

[] as doutrinas de Nietzsche possuem uma caracteriacutestica estranha isto eacute que natildeo eacute possiacutevel segui-las Elas nos potildeem de frente a iluminaccedilotildees imprecisas que geralmente produzem cegueira nenhuma estrada conduz agrave meta indicada5

Nietzsche criticaria ldquoem nome de um valor moacutevel

do qual natildeo pocircde evidentemente capturar a origem e a finalidaderdquo6 Ou entatildeo Deleuze segundo o qual

Nietzsche natildeo tenta codificar [] Escrevendo e pensando da proacutepria forma Nietzsche desenvolve uma obra de decodificaccedilatildeo [] de decodificaccedilatildeo uacutenica [] [que] quer estragar todos os coacutedigos7

E resume a filosofia nietzschiana com a foacutermula

marcadamente francesa ldquojamais rien de connu mais une grande destruction de reconnu pour une creacuteation drsquoinconnurdquo8 Um passo adiante e chegamos ao ldquomestre da grande duacutevidardquo de Ricoeur e na Itaacutelia a transformar Nietzsche em um dos fundadores do ldquopensamento fracordquo um pensamento que critica as verdades fortes estabelecidas e que exatamente por isso rejeita-se

4 G Bataille Sur Nietzsche Gallimard Paris 1973 trad it A Zanzotto Su Nietzsche SE Milano 1994 p 16p 69 5 Idem p 113 6 Idem p 125 7 G Deleuze Le penseacute nomade trad it in Id Nietzsche e la filosofia a cura di F Polidori Einaudi Torino 2002 p 312 8 Id Sur Nietzsche et lrsquoimage de la penseacutee ora in Id Lrsquoicircle deacuteserte et autres textes a cura di D Lapoujade Eacuted de Minuit Paris 2002 p

189

Nietzsche e o ceticismo 209

voluntariamente a oferecer alternativas agravequilo que ele mesmo rejeitou

Pessoalmente eu natildeo acredito que esses dois modelos interpretativos sejam capazes de compreender completamente a complexidade que a filosofia de Nietzsche entreteacutem com o elemento da verdade e da criacutetica agrave verdade A primeira ao resolver o problema mencionado acima escolhendo ver em Nietzsche um artista e natildeo um filoacutesofo ou um filoacutesofo ldquopela metaderdquo eacute negada por uma evidecircncia histoacuterica uma vez que o pensamento de Nietzsche entrou nolens volens com total reconhecimento na histoacuteria da filosofia Mas tambeacutem a segunda abordagem exegeacutetica vendo quase exaustivamente a essecircncia do pensamento nietzschiano na criacutetica agrave verdade e na sua pars destruens colide com a intenccedilatildeo explicitamente declarada por Nietzsche com grande insistecircncia de uma exigecircncia fortemente propositiva que o anima e o guia Nietzsche repete assim que concede grande espaccedilo agrave negaccedilatildeo exclusivamente enquanto ela eacute o passo propedecircutico a novas construccedilotildees (pensemos por exemplo no Versuch einer Umwertung aller Werte) e que ele natildeo quer se contentar com o lado niilista e criacutetico que eacute julgado pelo contraacuterio como sintoma de cansaccedilo e de deacutecadence Dito isso poreacutem eacute sempre verdade que o fulcro da prevalecircncia do momento de negaccedilatildeo agraves custas do momento de afirmaccedilatildeo assim como a forccedila com a qual Nietzsche realiza a proacutepria criacutetica radical agrave verdade que frequentemente o leva a criticar ateacute mesmo as proacuteprias ldquoverdadesrdquo continua sendo um problema exegeacutetico de importacircncia primordial

2 Um caminho no qual eacute possiacutevel encontrar elementos uacuteteis agrave questatildeo pode ser por isso enfrentar tal noacute conceitual realizando uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo que Nietzsche teve com a filosofia que mais do que nenhuma outra abraccedilou a contraposiccedilatildeo a toda

210 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma de dogmatismo e ao conceito de verdade ou seja o ceticismo

A relaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o ceticismo o que Nietzsche sabia da filosofia ceacutetica e como ele a considerou e como a utilizou Essas satildeo trecircs questotildees que os especialistas claramente deixaram de lado mas eacute somente atraveacutes de uma pesquisa especificamente direcionada nesse sentido que podem emergir dados de grande relevacircncia interpretativa que de outra forma permaneceriam subterracircneos

Se considerarmos a questatildeo apenas a niacutevel de Quellenforschung eacute possiacutevel descobrir que Nietzsche tinha um conhecimento extremamente refinado e detalhado do ceticismo a tal ponto que eacute possiacutevel afirmar que nenhum outro filoacutesofo do seu calibre teve uma competecircncia tatildeo especializada sobre o assunto como a sua Tal caracteriacutestica lhe deriva do seu iniacutecio como filoacutelogo claacutessico e em particular dos seus estudos sobre Dioacutegenes Laeacutercio mas natildeo soacute desses estudos uma vez que a bagagem cultural de Nietzsche sobre o ceticismo antigo vai muito aleacutem daquilo que concerne a simples obrigaccedilatildeo acadecircmica

Eacute possiacutevel de fato demonstrar com exatidatildeo que ele teve um conhecimento aprofundado do inteiro panorama das principais figuras da histoacuteria do ceticismo grego (Pirro de Eacutelis Brisatildeo de Heracleacuteia Tiacutemon de Fliunte principal aluno de Pirro que ele demonstra conhecer bem Hecateu de Mileto Aristipo de Cirene Laacutecides de Cirene Arcesilau Fiacuteon de Alexandria Antiacuteoco Carneacuteades Enesidemo) e tambeacutem que ele estudou e utilizou os mais importantes textos antigos sobre o pensamento ceacutetico aleacutem de Dioacutegenes Laeacutercio e antes mesmo de se confrontar com a sua obra Nietzsche se ocupou do leacutexico bizantino Suida teve uma evidente familiaridade com os escritos de Sexto Empiacuterico citados e usados em muitas obras encontramos competecircncias especiacuteficas e diversas citaccedilotildees de fontes como Aacuteulio

Nietzsche e o ceticismo 211

Geacutelio Euseacutebio de Cesaacuterea ou Favorino de Arelate ele conheceu muito bem a Academica de Ciacutecero Em outras palavras Nietzsche possuiacutea uma preparaccedilatildeo profunda tanto no acircmbito historiograacutefico quanto teoreacutetico do fenocircmeno do ceticismo grego

O uacuteltimo texto citado enfim os Academica de Ciacutecero estaacute particularmente envolvido na questatildeo Eacute um dos documentos mais preciosos que chegaram ateacute noacutes sobre a histoacuteria do ceticismo antigo jaacute que o contexto da uacuteltima grande crise no centro da Academia platocircnica depois do embate entre Filon de Larissa e Antiacuteoco de Ascalatildeo sobre a natureza dogmaacutetica ou antidogmaacutetica do conceito de verdade na tradiccedilatildeo acadecircmica ndash que deu margem a uma longa anaacutelise sobre o inteiro passado do ceticismo antigo O estudo dos Academica mostra um interesse especial de Nietzsche pelo assunto jaacute que quando ele assumiu a caacutetedra de Basileia ele ministrou dois semestres consecutivos sobre a obra ndash as aulas do veratildeo de 1870 e do inverno de 1871 e 1872 E natildeo por acaso exatamente no Natal de 1870 Cosima lhe deu de presente os Essais de Montaigne que se tornaram outra das suas principais fontes sobre o ceticismo enriquecendo dessa forma tambeacutem no vieacutes da eacutepoca moderna o seu conhecimento sobre a filosofia ceacutetica Tudo isso deixa entrever como ateacute mesmo na casa de Wagner deveria ser conhecido o interesse especiacutefico de Nietzsche pelo tema

Portanto o primeiro dado que encontramos eacute que todas as vezes em que Nietzsche cita o ceticismo precisamos considerar que ele natildeo o usa como instrumento retoacuterico ou com um sentido geneacuterico mas sim porque deteacutem um conhecimento real e profundo sobre a mateacuteria E em particular eacute necessaacuterio considerar como durante a crucial passagem do periacuteodo filoloacutegico agravequele do verdadeiro iniacutecio da sua filosofia Nietzsche carregue consigo essa competecircncia particular no acircmbito do pensamento ceacutetico

212 Eacutetica e filosofia poliacutetica

3 Natildeo eacute surpreendente perceber portanto que o

primeiro periacuteodo da sua filosofia seja um dos arcos temporais da sua obra em que o elemento do ceticismo aparece com maior evidecircncia E isso natildeo apenas no que concerne agraves citaccedilotildees ou agrave utilizaccedilatildeo das proacuteprias leituras filoloacutegicas Em toda a primeira parte da sua produccedilatildeo eacute evidente ndash do ponto de vista gnosioloacutegico ndash uma atmosfera de grande pessimismo que encobre os principais personagens da filosofia que ele frequenta por exemplo o Demoacutecrito anti-teleoloacutegico no qual ldquoencontram-se os primoacuterdios do Pirronismo [] [e que] deriva da sua tese sobre o conhecimentordquo9 e que pode ser resumida na interpretaccedilatildeo ceacutetica de origem ciceroniana ldquoo seu princiacutepio fundamental continua sendo ldquoa coisa em si eacute incognosciacutevelrdquo10 ou entatildeo o Heraacuteclito lido sobretudo em chave anti-ontoloacutegica e relativista o filoacutesofo que nega a estabilidade do ser a favor de uma transformaccedilatildeo sempre em ato e que por isso natildeo pode ser reclusa em categorias loacutegicas e epistecircmicas Ou ainda Kant que indiretamente permanece sendo uma fonte decisiva para a teoria do conhecimento da primeira fase de Nietzsche Um Kant lido atraveacutes das interpretaccedilotildees contrastantes de Lange de um lado e de Schopenhauer do outro que acaba se tornando nas matildeos de Nietzsche o siacutembolo do ldquoconhecimento traacutegicordquo que representa a tentativa natildeo realizada de superar o ceticismo de Hume uma falha que inevitavelmente arrasta os limites do conhecimento contra o seu desejo ao grau mais elevado eacute o Kant lido em consonacircncia com o ldquosuspiro de Kleist sobre a incognoscibilidade finalrdquo como emerge em uma carta muito estimada por Nietzsche em que Kleist resume ldquoo efeito Kantrdquo ldquonoacutes natildeo podemos

9 OFN I 2 p 200 Todas as referecircncias das obras de Nietzsche satildeo de Opere Friedrich Nietzsche (OFN) Colli-Montinari (org) Milano Adelphi 1964ss 10 Idem p 185

Nietzsche e o ceticismo 213

decidir se o que chamamos verdade eacute realmente a verdade ou se apenas parece secirc-lordquo11

Mas esse pessimismo gnosioloacutegico natildeo nos autoriza poreacutem a simplificar a questatildeo convertendo o ceticismo antigo conhecido atraveacutes dos estudos filoloacutegicos como uma simples fonte no radicalismo criacutetico que a filosofia de Nietzsche em seguida iraacute desenvolver e na qual em teoria iria se exaurir Ao contraacuterio observando o papel que o ceticismo teve nessa primeira fase eacute possiacutevel mostrar como as coisas se colocam de outra forma Nietzsche na realidade permitiu que esse pessimismo gnosioloacutegico crescesse em todas as direccedilotildees porque examinando bem ele possuiu (ou acreditou possuir) um fator positivo que poderia ser o seu antiacutedoto a filosofia de Schopenhauer

E tambeacutem aqui natildeo a teoria do conhecimento schopenhauriano ou a metafiacutesica centrada no Wille este tambeacutem dissolvido desde o iniacutecio em uma visatildeo ceacutetica de ldquodesconfianccedila em relaccedilatildeo a qualquer sistema desde o princiacutepiordquo12 que julga a Vontade uma ldquopalavra de cunho grosseirordquo13 uma tentativa de superar o impasse post-kantiano mas ldquoa tentativa falhourdquo14 ldquoSchopenhauer queria encontrar o x de uma equaccedilatildeo e pelo seu caacutelculo resulta que a questatildeo eacute igual a x ou seja que ele natildeo o encontrourdquo15

O Schopenhauer afirmativo que o primeiro Nietzsche segura com forccedila nas matildeos como uma proacutepria certeza eacute na verdade aquele do III libro da Welt ldquoo mundo da arterdquo isto eacute o Schopenhauer wagneriano Esse Schopenhauer (em muitos aspectos anti-schopenhauriano) nos permite compreender porque apesar do proacuteprio pessimismo gnosio-epistecircmico

11 H von Kleist a Wilhemine e Ulrike 22-23 marccedilo de 1801 12 FP [30] 10 veratildeo de 1878 OFN IV 3II p 300 13 OFN I 2 pp 220-221 14 Idem p 220 15 Idem p 228

214 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche possa afirmar ldquoavaliar o que pode ser Schopenhauer para noacutes depois de Kant o guia [] que conduziu fora da caverna do abatimento ceacuteticordquo16 Ou o significado de anotaccedilotildees como ldquoA posiccedilatildeo transformada da filosofia depois de Kant A impossibilidade da metafiacutesica Auto-eviraccedilatildeo Submissatildeo traacutegica o fim da filosofia Apenas a arte pode nos salvarrdquo17 ldquoNatildeo haacute sequer uma causalidade da qual noacutes conheccedilamos a verdadeira essecircncia Ceticismo absoluto a necessidade da arte e da ilusatildeordquo18

No renascimento da trageacutedia a partir do drama musical wagneriano Nietzsche viu a concretizaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo em que verdade e beleza atingem o uacutenico ponto de equiliacutebrio possiacutevel uma verdade que uma vez autocompreendida como impossibilidade epistecircmica transfigura-se em esteacutetica isto eacute na necessidade da ilusatildeo ou mais precisamente segundo a foacutermula de Nietzsche na necessidade da ldquobela ilusatildeordquo

Por isso aquilo que inicialmente podia parecer a aceitaccedilatildeo teoreacutetica dos resultados corrosivos do ceticismo enquanto resultados conclusivos revela-se como sendo na verdade apenas um passo funcional para fundar com maior solidez um terreno absolutamente afirmativo como aquele que oferecia ao Nietzsche da eacutepoca a esteacutetica wagneriana que tem como texto culminante a Geburt ldquoPrecisamos superar o ceticismo precisamos esquececirc-lo A nossa salvaccedilatildeo natildeo estaacute no conhecer mas no criarrdquo19

Apenas quando comeccedilou a definhar a convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo wagneriana depois do fim da convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo de Schopenhauer o radicalismo criacutetico de Nietzsche se viu sem margens sem

16 SE sect 3 17 FP 19 [319] veratildeo de 1872-1873 OFN III 3II p 102 18 FP 19 [121] veratildeo de 1872-1873 idem p 44 19 FP 19 [125] veratildeo de 1872-1873 idem p 45

Nietzsche e o ceticismo 215

direccedilatildeo nem objetivo Em torno de 1873 durante a tempestuosa gestaccedilatildeo de Wagner a Bayreuth antes mesmo da abertura do Festival Nietzsche atingiu dessa forma o ponto maacuteximo do ceticismo que podemos encontrar nos seus escritos O documento que nos resta como eloquente testemunho desse periacuteodo eacute o breve texto Uumlber Wahrheit und Luumlge im auszligermoralischen Sinne

Eacute notoacuterio que nesse escrito encontramos a definiccedilatildeo da verdade como metaacutefora da qual perdeu-se a memoacuteria da sua natureza metafoacuterica a verdade torna-se assim mera ilusatildeo natildeo mais bela ilusatildeo

E atraveacutes do instrumento da metaacutefora o conceito de verdade eacute rejeitado em todos os pontos de vista que o constituem loacutegico antropoloacutegico e histoacuterico ldquoA verdade eacute incognosciacutevel Tudo aquilo que eacute incognosciacutevel eacute uma ilusatildeordquo20

Mas eacute preciso prestar atenccedilatildeo porque tal coincidecircncia entre o ceticismo e o resultado filosoacutefico do percurso de Nietzsche natildeo eacute vivido por ele com o regozijo que esperariacuteamos de algueacutem que tem como objetivo teoacuterico destruir as certezas porque ao contraacuterio ele declara em uma anotaccedilatildeo agrave eacutepoca ldquoo filoacutesofo traacutegico [] natildeo eacute ceacutetico [] o ceticismo de fato natildeo pode ser um fim em si mesmordquo21 E podemos encontrar um testemunho de como um tal resultado fosse contraacuterio agraves intenccedilotildees de Nietzsche em um fato geralmente negligenciado ndash quer dizer que ele decidiu natildeo publicar esse escrito

Eu estava em relaccedilatildeo agrave minha pessoa jaacute no caminho do ceticismo e da dissoluccedilatildeo moralista quer dizer empenhado tanto na criacutetica quanto no aprofundamento de todo pessimismo preacute-existente ndash e jaacute natildeo acreditava ldquomais em nadardquo como diz o povo [] e justo naquele periacuteodo nasceu um pequeno ensaio em seguida

20 FP 29 [20] veratildeo-outono de1873 idem p 233 21 FP 19 [35] veratildeo de 1872 ndash comeccedilo de 73 ivi p 13

216 Eacutetica e filosofia poliacutetica

mantido em segredo ldquoSobre a verdade e a mentira em sentido extra-moralrdquo22

Da anaacutelise da primeira fase de Nietzsche emerge

portanto um resultado importante ele deu grande espaccedilo aos instrumentos criacuteticos do ceticismo ateacute o momento em que teve em matildeos uma alternativa a ele e exatamente para fundamentar melhor essa alternativa Quando poreacutem ela falhou e ele se encontrou unicamente no ceticismo acabou por recusaacute-lo como conclusatildeo e comeccedilou a trabalhar para desenhar um novo plano afirmativo em relaccedilatildeo agravequele schopenhauriano e wagneriano julgado como natildeo mais sustentaacutevel Eacute o programa que comeccedila com Humano demasiado humano e que iraacute mantecirc-lo ocupado ateacute a metade dos anos oitenta

4 No periacuteodo central o assim chamado periacuteodo iluminista os objetivos polecircmicos tornam-se a cada passo sempre mais precisos e direcionados dois dentre todos satildeo a metafiacutesica e a moral Nesse arco cronoloacutegico a presenccedila do ceticismo perde visibilidade faz-se mais subterracircnea e pode ser encontrada com maior facilidade nos fragmentos poacutestumos do que nas obras impressas Os exoacuterdios satildeo marcados por uma certa cautela inicial que deriva da desilusatildeo das esperanccedilas nutridas no seu primeiro percurso filosoacutefico ldquonatildeo queremos construir prematuramente natildeo sabemos nem sequer se poderemos construir algo algum dia e se a melhor alternativa natildeo possa ser talvez natildeo construirrdquo23 Mas o que permanece constante eacute a consideraccedilatildeo do ceticismo unicamente como instrumento teoreacutetico de demoliccedilatildeo finalizado a uma nova construccedilatildeo

22 FP 6 [4] veratildeo de 1886 ndash primavera de 1887 OFN VIII 1 p 220 A escolha de natildeo publicar Sobre a verdade e a mentira tambeacutem eacute lembrada em uma anotaccedilatildeo de 1884 FP 26 [372] veratildeo-outono de 1884 OFN VII 2 p 226 23 FP 5 [30] primavera-veratildeo de 1875 OFN IV1 p 117

Nietzsche e o ceticismo 217

O ceticismo eacute ainda apreciado pela capacidade de limpar o caminho das ldquolsquoverdades absolutasrsquo [] instrumento de nivelamentordquo Isso eacute particularmente niacutetido por exemplo no que concerne agrave moral Em relaccedilatildeo a ela o ceticismo ainda eacute saudado como liberador ldquoA eacutepoca do grande ceticismo chegou Natildeo haacute nada de lsquomoral em si mesmorsquordquo24 Ou entatildeo no tatildeo celebrado espiacuterito cientifico ao qual Nietzsche se aproximaria desde Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia obra que tambeacutem compartilha a utilizaccedilatildeo programaacutetica e natildeo autocircnoma do ceticismo Daqui a necessidade de ldquoevocar o espiacuterito da ciecircncia que torna em geral muito mais frios e ceacuteticos e em particular modo resfria a ardente feacute em verdades uacuteltimas e definitivasrdquo25

Natildeo prestar atenccedilatildeo no nexo que Nietzsche instituiu entre o ceticismo no que concerne agraves verdades e uma permanente necessidade construtiva a primeira subordinada agrave segunda reduzir Nietzsche transformando-o exclusivamente no criacutetico radical ao qual importa exclusivamente a rejeiccedilatildeo natildeo nos permite perceber o nascimento de uma criacutetica ao ceticismo que nos anos sucessivos se revelaraacute como decisiva o ceticismo entendido como fruto da exaustatildeo niilista referindo-se ao qual Nietzsche fala ateacute mesmo de ldquooacutedio [contra] qualquer forma de fraqueza e de ceticismordquo26 e tampouco nos permite reconhecer a correta relevacircncia das poucas mas claras e inequiacutevocas indicaccedilotildees que ele deixou nas obras publicadas

Eacute significativa a conclusatildeo do diaacutelogo do aforisma 477 de Aurora intitulado Von der Skepsis erloumlst ldquo ndash B Vocecirc mesmo deixou de ser ceacutetico Vocecirc de fato nega ndash A E assim eu aprendi novamente a dizer simrdquo27 Ou entatildeo o aforisma 51 de A Gaia ciecircncia ldquoWahrheitssinnrdquo

24 FP 7 [231] final de 1880 OFN V 1 p 563 25 MA I sect 244 26 Nietzsche a Heinrich Romundt 15 de abril de 1876 E III p 141 27 M sect 477

218 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquoeu louvo todo ceticismo ao qual eu posso dizer lsquoVamos tentarrsquo E natildeo quero saber mais nada de todas as coisas e de todos os problemas que natildeo permitem seu experimentordquo28 No material poacutestumo da eacutepoca tal subordinaccedilatildeo do ceticismo agrave necessidade de uma pars construens ocupa numerosas anotaccedilotildees

Eu natildeo preciso acreditar em nada As coisas satildeo incognosciacuteveis [] O desespero eliminado a partir do ceticismo Eu conquistei o direito de criar29

Que se quebre tudo aquilo que pode se quebrar pelas nossas verdades Existem ainda muitos mundos que devem ser construiacutedos30

Admitido que algueacutem tenha uma forte vontade proacutepria uma filosofia ceacutetica eacute a melhor alternativa para colocar em ato a sua vontade da melhor forma possiacutevel31

Aleacutem disso apenas se seguirmos o efetivo papel

do ceticismo no periacuteodo central podemos entatildeo compreender o que acontece no uacuteltimo periacuteodo da obra nietzschiana em que o elemento do ceticismo volta a ocupar novamente uma posiccedilatildeo central exatamente como nos primeiros anos Um retorno que agrave primeira vista poderia parecer surpreendente De Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia assistimos de fato a um crescendo de certeza de assertividade que atinge o seu aacutepice com o Zaratustra O proacuteprio Zaratustra eacute o anunciador das duas grandes afirmaccedilotildees do eterno retorno e do Uumlbermensch

Mas inesperadamente em uma paacutegina do Anti-Cristo encontramos a seguinte frase

28 FW sect 51 29 FP 6 [2] inverno de 1882-83 OFN VII 1I p 220 30 FP 11 [16] junho-julho de 1883 OFN VII 1II p 39 31 FP 15 [50] veratildeo-outono de 1883 VII 1II p 153

Nietzsche e o ceticismo 219

Natildeo nos deixemos induzir ao erro os grandes espiacuteritos satildeo ceacuteticos Zaratustra eacute um ceacutetico Um espiacuterito que almeja algo de grandioso e que quer tambeacutem os meios para obtecirc-lo eacute necessariamente um ceacutetico32

Terminado o Zaratustra parecia ter chegado o ldquoperiacuteodo da minha grande colheitardquo isto eacute noacutes esperariacuteamos um resumo dos resultados alcanccedilados e que Nietzsche pudesse continuar sua trajetoacuteria escrevendo uma accedilatildeo de reforccedilo e de aprofundamento do que conquistara mas ao contraacuterio assistimos a um retorno a temas e a problemas do passado muitos dos quais satildeo inerentes a Humano demasiado humano e ateacute mesmo a O nascimento da trageacutedia O ceticismo pertence a esses temas que se reapresentam sob as faacutecies que pareciam ter sido deixadas para traacutes

5 Nesse desdobramento dois elementos satildeo decisivos em geral o peso de uma circunstacircncia que a criacutetica ainda natildeo reconheceu como fundamental no percurso nietzschiano Nietzsche devido aos contrastes com seu editor Schmeitzner foi obrigado a retomar todos os escritos precedentes fato que o levou entre o veratildeo de 1885 ao outono de 1886 a escrever novos prefaacutecios para o primeiro e para o segundo volume de Humano demasiado humano para Aurora e A Gaia ciecircncia acrescentando a essa uacuteltima uma quinta parte e a escrever o Tentativo de auto-criacutetica para O nascimento da trageacutedia

No que concerne por sua vez ao especiacutefico retorno em primeiro plano do elemento ceacutetico acrescenta-se a isso o papel exercido por uma fonte precisa o estudo da obra Les sceptiques grecs de Victor Brochard (1887) que Nietzsche leu poucos meses depois da sua publicaccedilatildeo (ele comenta o fato em Ecce Homo33) estimulado inicialmente pelo fato de que Brochard citava os seus escritos da juventude Dessa leitura possuiacutemos

32 AC sect 54 33 EH ldquoPorque sou tatildeo esclarecidordquo sect 3

220 Eacutetica e filosofia poliacutetica

muitas anotaccedilotildees que se concentram de forma particular na figura do pai do ceticismo antigo Pirro de Eacutelis

Nesta sede natildeo podemos realizar uma anaacutelise pontual dessas anotaccedilotildees mas para exemplificar a sua relevacircncia note-se a constante ligaccedilatildeo que Nietzsche institui entre o fenocircmeno de Pirro e dois filosofemas absolutamente centrais na uacuteltima fase da sua produccedilatildeo o conceito de deacutecadence e sobretudo o de niilismo Para Nietzsche o ceticismo antigo foi o resultado de uma especiacutefica eacutepoca de deacutecadence que subseguiu agrave morte de Alexandre em que a verdade se viu desmembrada nas disputas entre as filosofias helecircnicas ldquoA filosofia antiga de Soacutecrates em diante tem as estigmas da deacutecadence moralismo e felicidade Veacutertice Pirrordquo34

Pirro e o ceticismo fazem parte portanto da decadecircncia mas ao mesmo tempo satildeo tambeacutem exceccedilotildees dela frutos da deacutecadence mas tambeacutem oposiccedilatildeo a ela

O saacutebio cansaccedilo Pirro [] Um budista para a Greacutecia que cresceu no tumulto das escolas ele chegou tarde cansado protesto do cansado contra o zelo dos dialeacuteticos o natildeo acreditar de quem estaacute cansado na importacircncia das coisas35

Os verdadeiros filoacutesofos gregos satildeo aqueles que vecircm antes de Soacutecrates com Soacutecrates algo muda [] Em seguida eu vejo uma uacutenica figura original um retardataacuterio mas necessariamente o uacuteltimo o niilista Pirro ele aguccedilou seu instinto contra tudo aquilo que estava em voga os socraacuteticos Platatildeo36

A insistecircncia com a qual Nietzsche diz que Pirro eacute

um niilista nos permite formular a seguinte hipoacutetese que possui por sua vez algumas consequecircncias isto eacute que o

34 FP 14 [87] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 55 35 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 36 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

Nietzsche e o ceticismo 221

ceticismo pode ser uma fonte peculiar da conceitualizaccedilatildeo nietzschiana do niilismo Sabemos que esse termo comeccedila a ser utilizado com insistecircncia a partir de 1887 e ainda mais no decorrer de 1888 contemporaneamente isto eacute ao retorno em primeiro plano do ceticismo Aleacutem disso se o niilismo entrou no vocabulaacuterio nietzschiano tardiamente e principalmente graccedilas a Bourget vimos tambeacutem que o ceticismo pelo contraacuterio pertence agrave bagagem filosoacutefica de Nietzsche desde os tempos dos seus estudos de filologia

Mas satildeo tambeacutem caracterizaccedilotildees semelhantes que sustentam essa hipoacutetese como ldquoO ceticismo eacute uma consequecircncia da deacutecadence [] O niilismo natildeo eacute a causa mas apenas a consequecircncia loacutegica da deacutecadencerdquo37 como o ceticismo tambeacutem o ldquoperfeito niilismo eacute a consequecircncia necessaacuteria dos ideais ateacute agora cultivadosrdquo38 E ainda outro dado ainda mais importante para a presente anaacutelise tanto o ceticismo quanto o niilismo satildeo suscetiacuteveis contemporaneamente de avaliaccedilotildees especularmente opostas O niilismo pode ser o sinal de fato tanto de um exaurimento existencial como tambeacutem pelo contraacuterio pode ser sinal de forccedila e de sauacutede sinal isto eacute da capacidade conquistada de renunciar aos tradicionais dispositivos garantidores de sentido No primeiro caso Nietzsche fala de ldquoniilismo passivordquo dos ldquofracosrdquo ou ldquoincompletosrdquo no segundo caso ele fala de niilismo ldquoda completuderdquo ou ldquodos fortesrdquo

Sob a mesma duacuteplice perspectiva ele vecirc o ceticismo Existe um ceticismo do ldquocansaccedilordquo do ldquoexaurimentordquo e um ceticismo que nasce ao contraacuterio da ldquoforccedilardquo um

ceticismo viril [] uma espeacutecie diferente e mais vigorosa de ceticismo [] esse ceticismo despreza e natildeo menos por isso atrai a si mesmo escava e toma

37 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 38 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

222 Eacutetica e filosofia poliacutetica

posse natildeo acredita em nada mas natildeo se perde nisso oferece ao espiacuterito uma liberdade perigosa39

Mais uma vez o que marca a diferenccedila entre os

dois tipos de niilismo e de ceticismo eacute exatamente o fato de consideraacute-los como fins em si mesmos como resultados teoreacuteticos conclusivos ou entatildeo apenas como simples meios para construir uma positividade alternativa em relaccedilatildeo agravequilo que mediante o niilismo e o ceticismo eacute negado e para este segundo tipo Nietzsche deu o nome de ldquotentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo

6 Eacute possiacutevel discutir se essa tentativa foi bem-sucedida ou se ao contraacuterio faliu O proacuteprio Nietzsche na verdade deixa uma indicaccedilatildeo que natildeo deve ser subestimada quando em uma das suas uacuteltimas anotaccedilotildees escreveu ldquonaufragium feci bene navigavirdquo40 E sem duacutevidas eacute possiacutevel nos questionar sobre o que Nietzsche deixou depois da implacaacutevel campanha contra a verdade inaugurada em Para aleacutem do bem e do mal e que nos anos finais provocou um verdadeiro dominoacute ceacutetico em que caiacuteram um depois do outro os conceitos de metafiacutesica de loacutegica de causa e efeito de mateacuteria de sujeitoobjeto de sujeito conhecedor ndash isto eacute todos os criteacuterios tradicionais da verdade Ainda mais eacute liacutecito nos questionar se as alternativas agraves quais ele acena como a Vontade de potecircncia o binocircmio forccedilafraqueza a Rangordnung o Zuumlchtung satildeo realmente alternativas capazes de gerar frutos na igual medida daquilo que foi extirpado Montinari por exemplo responde negativamente

Se procurarmos as razotildees do falimento do conjunto da tentativa filosoacutefica de Nietzsche parece-nos que podemos apontar o seu principal e decisivo motivo Para Nietzsche a existecircncia da filosofia enquanto

39 JGB sect 209 40 FP 16 [44] primavera-veratildeo de 1888 OFN VIII 3

Nietzsche e o ceticismo 223

atividade teoreacutetica natildeo se sustentava mais de nenhuma forma pois a histoacuteria tomou o seu lugar como ele mesmo diz O sucessor do filoacutesofo deveria ter sido um legislador e a ambiccedilatildeo de Nietzsche o objetivo da sua ldquotransvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo eacute dar agrave humanidade uma lei nova A filosofia como histoacuteria eacute a pars destruens do pensamento do uacuteltimo Nietzsche (anaacutelise do niilismo europeu destruiccedilatildeo da foacutermula metafiacutesica ldquomundo verdadeirordquo anticristianismo) Na passagem agrave construccedilatildeo Nietzsche vecirc-se emaranhado na contradiccedilatildeo insoluacutevel entre o seu ceticismo extremo a sua luta contra qualquer convicccedilatildeo e a necessidade de ldquolegiferarrdquo41

Mas querendo ou natildeo concordar com uma

semelhante anaacutelise e devendo sempre de qualquer forma considerar que a filosofia de Nietzsche eacute uma filosofia incompleta ou seja interrompida subitamente durante uma frase de criaccedilatildeo plena ateacute os primeiros dias de janeiro de 1889 o ponto central que emerge da anaacutelise da presenccedila do ceticismo na filosofia de Nietzsche eacute que por mais que ele tenha aberto espaccedilo agrave negaccedilatildeo da duacutevida filosoacutefica e ao radicalismo criacutetico ele sempre rejeitou explicitamente e com grande forccedila conceder ao ceticismo a uacuteltima palavra Eacute a partir desse ponto de vista que devemos ler a sua tentativa tardia de frente ao alargamento do ceticismo que lhe resultou sempre mais incontrolaacutevel de recuperar aquilo que durante a juventude tinha sido o seu plano alternativo capaz de criar uma afirmaccedilatildeo que se tornou impossiacutevel ao contraacuterio por um caminho gnosioloacutegico isto eacute o plano esteacutetico a arte

Ainda que ele se encontrasse em um panorama diferente em relaccedilatildeo aos anos da juventude um panorama antirromacircntico e antiwagneriano o uacuteltimo Nietzsche voltaraacute a dizer como durante a juventude

41 M Montinari Che cosa ha detto Nietzsche [1975] (org) G

Campioni Adelphi Milano 1999 pp 150-151

224 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquouma justificaccedilatildeo do mundo eacute possiacutevel apenas esteticamenterdquo42 ldquosoacute a consciecircncia artiacutestica [concede] a liberdade do que eacute lsquoverdadeirorsquo e do que eacute lsquofalsorsquordquo43 e ldquoa arte tem mais valor do que a verdaderdquo44 uma vez que ldquoa verdade natildeo eacute algo que existe e que precisa ser descoberta mas algo que deve ser criadordquo45

Natildeo poderiacuteamos compreender de outra forma porque o projeto do Wille zur Macht devia iniciar com ldquoa vontade de potecircncia como arterdquo nem tampouco por que a uacuteltima fase de Nietzsche insista de forma tatildeo dura contra um Wagner que agrave essa altura jaacute natildeo estava mais vivo assim como por que dois dos seus uacuteltimos textos satildeo O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner Procurar na arte e na esteacutetica um plano alternativo ao ceticismo teoreacutetico o ldquocontra-movimentordquo ao niilismo foi o uacuteltimo experimento intelectual com o qual a filosofia de Nietzsche se interrompeu E falando de experimento devem ser relembradas as palavras que ele escreveu em Para aleacutem do bem e do mal

Admitindo portanto que na imagem dos filoacutesofos do futuro uma caracteriacutestica qualquer nos permita adivinhar que eles deveratildeo talvez ser ceacuteticos [] dessa forma natildeo teriacuteamos designado senatildeo um determinado aspecto desses filoacutesofos ndash e natildeo eles mesmos Com o mesmo direito eles poderiam ser chamados criacuteticos e sem duacutevidas seratildeo homens experimentadores46

Pela anaacutelise da relaccedilatildeo que Nietzsche

desenvolveu com a filosofia ceacutetica pelo uso que ele fez dela pela interpretaccedilatildeo que ele nos forneceu dos seus

42 FP 2 [110] outono de 1885 ndash outono de 1886 OFN VIII 1 p 104 43 FP 2 [67] outono de 1885 ndash outono de 1886 idem p 80 44 FP 14 [21] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 19 FP 17 [3] maio ndash junho 1888 OFN VII 3 p 312 45 FP 9 [91] outono de 1887 OFN VIII p 43 46 JGB sect 210

Nietzsche e o ceticismo 225

conceitos emerge o seguinte dado se o radicalismo criacutetico eacute certamente uma componente preponderante e central do pensamento nietzschiano ele natildeo encerra em si a sua essecircncia a qual ao contraacuterio continua presente ndash com maior forccedila e muito mais difiacutecil de ser compreendida hermeneuticamente ndash mais na sua pars construens do que na pars destruens

Refletindo sobre a relaccedilatildeo entre ambas Giorgio Colli escreveu

Aquilo que Nietzsche profetizou tornou-se realidade ateacute raacutepido demais O cristianismo eacute hoje ndash como religiatildeo ndash um entulho que natildeo incomoda mais ningueacutem A idade das grandes violecircncias chegou talvez ateacute jaacute ficou para traacutes O imoralismo crescente na poliacutetica e na cultura foi assimilado em massa tornou-se um sinal distintivo da plebe O que diria Nietzsche Ele responderia que natildeo foi isso que desejou Disso noacutes podemos ter plena convicccedilatildeo47

Eis que para o inteacuterprete nietzschiano permanece

ainda hoje aberta a pergunta o que Nietzsche entatildeo queria E procurar encontrar respostas a essa questatildeo eacute talvez um dos caminhos que prometem mais frutos para continuar dando vida ao seu pensamento

47 G Colli La ragione errabonda (org) E Colli Adelphi Milano 1982

pp 121-122

226 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 227

OS ORGANIZADORES Ceacutelia Machado Benvenho eacute Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (2008) financiado pelo CNPQ na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento Possui graduaccedilatildeo em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (1994) Especialista em Administraccedilatildeo e Planejamento de Sistemas Educacionais pela UNIPAR - Universidade Paranaense (1997) e especialista em Computaccedilatildeo Aplicada ao Ensino pela Universidade estadual de Maringaacute (1998) Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia Filosofia da Educaccedilatildeo Ensino de Filosofia e Filosofia para crianccedilas Atualmente eacute professor Assistente da UNIOESTE - campus de Toledo onde atua como Coordenador de aacuterea do CCHS leciona para o curso de graduaccedilatildeo em Filosofia orienta Trabalho de Conclusatildeo de Curso e Estaacutegio Supervisionado

228 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo eacute poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico

Nietzsche e o ceticismo 229

Joseacute Francisco de Assis Dias eacute Professor Adjunto da UNIOESTE Toledo-PR professor do Mestrado em Gestatildeo do Conhecimento nas Organizaccedilotildees na UNICESUMAR pesquisador do Grupo de Pesquisa ldquoEducaccedilatildeo e Gestatildeordquo e do Grupo de Pesquisa ldquoEacutetica e Poliacuteticardquo da UNIOESTE CCHS Toledo-PR Doutor em Direito Canocircnico pela Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Cidade do Vaticano Roma Itaacutelia Doutor em Filosofia tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Mestre em Direito Canocircnico tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Mestre em Filosofia pela mesma Pontifiacutecia Universidade Especialista em Docecircncia no Ensino Superior pela UNICESUMAR Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo ndash RS Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciecircncia Tecnologia e Inovaccedilatildeo (ICETI) E-mail jfad_brhotmailcom

230 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Joseacute Luiz Giombelli Mariani eacute acadecircmico do terceiro

ano do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade

Estadual do Oeste do Paranaacute bolsista do Programa

Institucional de Bolsa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)

vinculado a CAPESMEC Cursou trecircs semestres do

curso de Filosofia da Faculdade Palotina (FAPAS) de

Santa Maria ndash RS Participou como organizador da XIX

Semana Acadecircmica de Filosofia evento organizado pelo

Centro Acadecircmico de Filosofia Atualmente desenvolve

pesquisa na aacuterea de Eacutetica e Filosofia Poliacutetica com o

tema ceticismo na Reforma Protestante com o pensador

Montaigne orientado pelo Professor Dr Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo (UNIOESTE) Participa como membro do

Diretoacuterio do Centro Acadecircmico de Filosofia da

Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute ocupando o

cargo de Coordenador Geral

Nietzsche e o ceticismo 231

Wilson Antonio Frezzatti Jr eacute professor associado dos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo (mestradodoutorado) em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) Professor colaborador do Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute (UEM) Coordenador do GT-Nietzsche (ANPOF) Membro do Groupe Internationale de Recherche sur Nietzsche (GIRN) do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN-USP) e do Grupo de Pesquisa Filosofia Ciecircncia e Natureza na Alemanha do seacuteculo XIX (UNIOESTE) Autor dos livros Nietzsche contra Darwin (2001 1ordf ed 2014 2ordf ed) e A Fisiologia de Nietzsche a Superaccedilatildeo da Dualidade CulturaBiologia (2006)

232 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 233

234 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Page 5: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento

6 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Copyright 2016 by

Organizadores EDITORA

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL

Ademir Menin ndash UNIOESTE ndash PR Joseacute Aparecido Pereira ndash PUC-PR Joseacute Beluci Caporalini ndash UEM Lorella Congiunti ndash PUU ndash Roma

COMITEcirc CIENTIacuteFICO Dr Ceacutesar Augusto Battisti ndash UNIOESTE ndash PR Dr Clademir Luis Araldi ndash UFPel ndash Pelotas ndash RS Dr Claudinei Aparecido de Freitas da Silva ndash UNIOESTE ndash PR Dr Ivo da Silva Jr ndash UNIFESP ndash SP Dr Joatildeo Virgiacutelio Tagliavini ndash UFSCar ndash SP Dr Joseacute Luiz Ames ndash UNIOESTE ndash PR Dr Roberto Saraiva Kahlmeyer Mertens ndash UNIOESTE ndash PR Drordf Ester Maria Dreher Heuser ndash UNIOESTE - PR

REVISAtildeO ORTOGRAacuteFICA Prof Ademir Menin

DIAGRAMACcedilAtildeO E DESIGN Editora Vivens Ltda

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo-na-Publicaccedilatildeo (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecaacuteria CRB9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o territoacuterio na-cional Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmi-tida por qualquer forma eou quaisquer meios ou arquivada em qual-quer sistema ou banco de dados sem permissatildeo escrita da Editora

Os textos satildeo de responsabilidade exclusiva de seus autores Editora Vivens O conhecimento a serviccedilo da Vida

Rua Pedro Lodi nordm 566 ndash Jardim Coopagro Toledo ndash PR ndash CEP 85903-510 Fone (45) 3056-5596

httpwwwvivenscombr e-mail contatovivenscombr

Eacutetica e filosofia poliacutetica ceticismo em

E84 movimento organizadores Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo[et al]ndash1 ed e-book ndash Toledo

PR Vivens 2016 232 p

Modo de Acesso World Wide Web

lthttpwwwvivenscombrgt

ISBN 978-85-92670-20-7

1 Ceticismo 2 Conhecimento e verdade 3

Filosofia francesa 3 Montaigne Michel de 1533-

1592 I Tiacutetulo

CDD 22 ed 194

SUMAacuteRIO APRESENTACcedilAtildeO I = O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE Henrique Zanelato II = MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo III = AMIZADE EM MONTAIGNE Junior Cesar Luna IV = O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O CAMINHO DA FILOSOFIA Elissa Gabriela Fernandes Sanches V = A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo Anderson Lucas dos Santos Pereira VI = O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE Joseacute Luiz Giombelli Mariani VII = VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMO ENSAIOS DE MONTAIGNE Andre Scoralick

09

13

33

71

107

137

161

179

8 Eacutetica e filosofia poliacutetica

VIII = NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE Stefano Busellato 205

APRESENTACcedilAtildeO Este livro resultou das conferecircncias proferidas

durante as Jornadas de Eacutetica amp Filosofia Poliacutetica e Metafiacutesica amp Conhecimento que realizaram em 2016 a sua 9ordf ediccedilatildeo O evento conjugado teve como principal caracteriacutestica reunir especialistas de diferentes regiotildees do Brasil que pesquisem determinado assunto autor ou problema A cada ano um docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia organiza o evento como forma de propiciar a cada nova ediccedilatildeo a discussatildeo de diferentes temas filosoacuteficos relacionados a ambas as Linhas de Pesquisa como uma forma de articulaccedilatildeo de diferentes grupos de pesquisa em atividade (Eacutetica e Filosofia Poliacutetica Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Metafiacutesica e Conhecimento Wilson Antonio Frezzatti Jr e Stefano Busellato)

Por sua vez anualmente o colegiado do curso de graduaccedilatildeo em filosofia designa um professor como coordenador da Semana Acadecircmica (Joseacute Francisco de Assis Dias) As ediccedilotildees anteriores reuniram pesquisadores de diversos Estados brasileiros e ateacute mesmo alguns do exterior Nessa oportunidade os especialistas puderam debater sobre temas bastante pontuais

Para 2016 visando pois a promover o debate em torno da questatildeo da fundamentaccedilatildeo do ceticismo a Jornada em Eacutetica e Filosofia Poliacutetica almejou estudar o legado ceacutetico em particular a leitura de Sexto Empiacuterico feita por Montaigne principal divulgador do ceticismo no iniacutecio da Idade Moderna Recorre-se a argumentos que levam agrave incerteza sobre a apreensatildeo de um conhecimento verdadeiro O procedimento de Montaigne eacute o de opor a toda razatildeo uma razatildeo igual objetivando negar o Dogmatismo e estabelecer a duacutevida radical em relaccedilatildeo agraves doutrinas que afirmam ter a verdade Como

10 Eacutetica e filosofia poliacutetica

base da sua criacutetica recorre agrave tradiccedilatildeo ceacutetica antiga advinda de Pirro e de modo particular agraves Hipotiposes Pirrocircnicas O estudo dos Ensaios constitui uma fonte inesgotaacutevel de problemas A apropriaccedilatildeo e inovaccedilatildeo montaigniana do ceticismo eacute um deles

O ceticismo eacute uma forma de pensar que nos livraria das amarras de uma racionalidade comprometida em revelar um conhecimento indubitaacutevel Mas como isso aparece nos Ensaios Por que a diaphonia ateacute agora na histoacuteria do pensamento tem se revelado invenciacutevel

Na realidade em torno do ceticismo os textos desta obra apontam trecircs pensadores que de alguma forma se articulam Santo Agostinho que passou pelo ceticismo acadecircmico e foi lido pelo pirrocircnico Montaigne Este por sua vez foi lido por Nietzsche quando ganhou de presente um exemplar dos Essais

O tema da Jornada em Metafiacutesica e Conhecimento eacute ldquoZaratustra Arte e Vidardquo De certa maneira eacute sequecircncia do tema da II Jornada (2009) ldquoZaratustra Filosofia e Vidardquo A jornada deste ano debateu com pesquisadores poacutes-graduandos graduandos e professores de filosofia do Ensino Meacutedio a relaccedilatildeo entre filosofia arte e vida partindo do eixo teoacuterico do filoacutesofo alematildeo Friedrich Nietzsche no qual a filosofia eacute expressatildeo de modos de vida

Diferentes modos de vida produzem diferentes filosofias ou seja uma determinada filosofia expressa uma determinada experiecircncia Esse tema aleacutem da importacircncia de apresentar uma perspectiva acerca da proacutepria filosofia eacute relevante para os trabalhos de pesquisa que vecircm sendo desenvolvidos no Doutorado Mestrado e Graduaccedilatildeo da UNIOESTE

Os organizadores desta obra tecircm a grata satisfaccedilatildeo de apresentar textos de estudiosos de dois autores tatildeo importantes para o pensamento filosoacutefico como eacute o caso de Montaigne e de Nietzsche Por questotildees de ordem metodoloacutegica os textos estatildeo sendo

Apresentaccedilatildeo 11

publicados em dois livros conforme a proposta das duas Jornadas

Boa leitura a todos

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo Wilson Antonio Frezzatti Jr

12 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= I =

O PROBLEMA DO CETICISMO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE MONTAIGNE

Henrique Zanelato

11 INTRODUCcedilAtildeO

Pretendemos com a presente comunicaccedilatildeo

discutir certa leitura de Michel de Montaigne1 que sugere uma ldquoevoluccedilatildeordquo em seu pensamento passando de estoico a epicurista com uma chamada ldquocrise ceacuteticardquo entre elas Tal leitura eacute proposta por Pierre Villey a quem os leitores de Montaigne devem muito devido a organizaccedilatildeo feita sobre a cronologia da obra do ensaiacutesta bem como a indicaccedilatildeo das fontes utilizadas durante os anos de composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios Montaigne teria

Mestrando e graduado em filosofia pela UNIOESTE E-mail henriquezanelatoIIhotmailcom 1 ldquoMichel Eyquem seigneur de Montaigne nasceu em 1533 filho e herdeiro de Pierre Seigneur de Montaigne (dois filhos anteriores morreram apoacutes o nascimento) Foi educado falando latim como a primeira liacutengua e sempre conservou uma disposiccedilatildeo de espiacuterito latina embora conhecesse o grego preferia usar traduccedilotildees Depois de estudar direito finalmente tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux Casou-se em 1565 Em 1569 publicou a sua versatildeo francesa de Theologia naturalis de Raymond Sebond o seu Apologie eacute apenas em parte uma defesa de Sebond em que estabelece limites ceacuteticos para o raciociacutenio humano sobre Deus o homem e a natureza Em 1571 mudou-se para suas terras em Montaigne dedicando-se agrave leitura agrave reflexatildeo e agrave composiccedilatildeo de seus Ensaios (primeira versatildeo 1580) Montaigne tinha aversatildeo ao fanatismo e agraves crueldades do periacuteodo das guerras religiosas mas apoiava a ortodoxia catoacutelica e a instituiccedilatildeo monaacuterquica Duas vezes foi eleito prefeito de Bordeaux (1581 e 1583) cargo que ocupou por quatro anos Morreu em Montaigne em 1592 enquanto preparava a ediccedilatildeo final e a mais rica de seus Ensaiosrdquo (MONTAIGNE 2010)

14 Eacutetica e filosofia poliacutetica

iniciado a composiccedilatildeo de sua obra aproximadamente em 1571 escrevendo ateacute sua morte em 1592

Um esclarecimento preacutevio eacute necessaacuterio os Ensaios se dividem em trecircs livros com capiacutetulos sobre diversos temas Aleacutem disso a obra natildeo foi publicada toda de uma vez dividindo-se em trecircs ediccedilotildees e essa distinccedilatildeo nos eacute essencial aqui a primeira ediccedilatildeo surgiu em 1580 na qual os dois primeiros livros foram publicados em 1588 a obra ganhou mais um livro aleacutem de acrescentar vaacuterios acreacutescimos aos dois primeiros posteriormente a 1588 uma nova publicaccedilatildeo surge com novos acreacutescimos Essa distinccedilatildeo eacute feita nas publicaccedilotildees atuais com algumas indicaccedilotildees [A] corresponde agrave primeira ediccedilatildeo de 1580 [B] agrave segunda e [C] agrave terceira

Nosso intento ao discutir essa proposta evolutiva teraacute como foco a primeira ediccedilatildeo da obra ou seja com os textos de 1572 segundo os quais se diz que Montaigne teria adotado uma postura estoica Para isso faremos a comparaccedilatildeo desses primeiros textos com textos mais tardios bem como a comparaccedilatildeo com a literatura ceacutetica a fim de procurar elementos que confirmem ou rejeitem essa hipoacutetese de Villey de que Montaigne teria abandonado o estoicismo depois do contato com as obras ceacuteticas receacutem descobertas no Renascimento

A pesquisa sobre Montaigne deve muito ao estudo de Villey As fontes e a evoluccedilatildeo dos Ensaios de Montaigne publicado em 1908 lanccedilou uma importante luz sobre a obra do ensaiacutesta

[] vasto estudo que investiga fontes referecircncias e citaccedilotildees contextualiza historicamente os temas e propotildee uma cronologia para a composiccedilatildeo da obra de Montaigne Com este estudo Villey consolidou uma nova e fecunda leitura dos Ensaios em que se desenha sua coerecircncia Durante alguns seacuteculos aceitou-se a foacutermula de que os Ensaios eram obra fragmentaacuteria coleccedilatildeo de citaccedilotildees uma conversa

O problema do ceticismo 15

despretensiosa com o leitor na qual o acaso construiacutea o discurso (VASCONCELLOS 2000 p XI)

Aleacutem disso Montaigne natildeo organizou os capiacutetulos

segundo a ordem de composiccedilatildeo deles nos deixando no escuro ateacute Villey sobre a data da escrita de cada um deles Todas as datas que aparecem no iniacutecio dos capiacutetulos satildeo sugeridas por Villey de acordo com os temas sobre os quais Montaigne escrevia ou sobre as referecircncias feitas pelo ensaiacutesta a determinada obra ou sobre algum evento histoacuterico citado por ele Assim devemos salientar que a precisatildeo nas datas eacute apenas aproximada jaacute que sugeridas mais de 300 anos depois

Durante seu trabalho de investigaccedilatildeo Villey encontrou certa coerecircncia numa leitura que sugere uma evoluccedilatildeo no pensamento de Montaigne de acordo com as influecircncias que sofrera em suas leituras Assim propotildee que

[] Montaigne nos vinte anos em que se dedicou agrave composiccedilatildeo dos Ensaios fez um percurso filosoacutefico Em linhas gerais sua hipoacutetese eacute a de que a princiacutepio estreitamente marcado pelo estoicismo de Secircneca Montaigne teria exercitado o gecircnero literaacuterio conhecido como leccedilons (compilaccedilatildeo da filosofia dos antigos coletacircnea de exemplos e maacuteximas morais) Seus primeiros ensaios portanto na esteira das leccedilons seriam bastante impessoais O rigor deste gecircnero segundo Villey foi abrandado com a leitura das Obras morais de Plutarco que lhe permitiu uma moralidade mais amena introduzindo ao texto juiacutezos pessoais Contudo o ensaio como gecircnero literaacuterio soacute surgiria apoacutes a leitura de Sexto Empiacuterico cujo ceticismo possibilitou ao ensaiacutesta ponderar sobre a vaidade da razatildeo humana e as dificuldades de qualquer conhecimento que se aventure aleacutem dos limites do proacuteprio sujeito Viria daiacute a ecircnfase dada agrave expressatildeo de si mesmo os ensaios caracterizando-se por constituiacuterem a realizaccedilatildeo de um auto-retrato De modo

16 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que inicialmente estoico Montaigne apoacutes a crise ceacutetica teria finalmente aderido ao epicurismo ou filosofia da natureza filosofia ldquoque se contenta em regular em vez de combatecirc-los os instintos naturais a que ela abandona o homemrdquo (VASCONCELLOS 2000 p XII)

A partir dessa proposta de Villey e de alguns

trabalhos que vecircm questionando tal leitura nos propomos a investigar em que medida essa tese evolutiva se sustenta jaacute que julgamos encontrar elementos que colocam em xeque tanto um apelo totalmente estoico no iniacutecio da obra quanto um totalmente epicurista no fim dela Para isso faremos a anaacutelise de alguns capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 comparando-os com a Apologia de Raymond Sebond capiacutetulo no qual Montaigne trabalha o ceticismo de modo mais expliacutecito Faremos algumas indicaccedilotildees tambeacutem sobre alguns capiacutetulos do terceiro livro tidos como epicuristas a fim de questionar o abandono do ceticismo por Montaigne depois da ldquocrise ceacuteticardquo

Entre os capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios datados por Villey de 1572 dois deles nos parecem fornecer alguns elementos para pontuar certa fragilidade na tese de que Montaigne teria adotado o estoicismo nesse periacuteodo Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32) e Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37) Mesmo que seja possiacutevel identificar alguns capiacutetulos com temas estoicos bem como vaacuterias citaccedilotildees e referecircncias agrave essa escola Secircneca principalmente natildeo podemos deixar de notar em outros capiacutetulos uma visiacutevel inconsistecircncia entre a confianccedila na razatildeo aspecto marcante do estoicismo e certos juiacutezos de Montaigne

Que eacute preciso sobriedade no aventurar-se a julgar as decisotildees divinas (I 32)

Este ensaio estaacute ao que parece relacionado estritamente com um tema contemporacircneo a Montaigne

O problema do ceticismo 17

a Reforma Protestante Tal tema eacute debatido em diversos momentos da obra montaigniana obtendo grande destaque naquele que eacute talvez o mais ceacutelebre de seus ensaios a Apologia de Raymond Sebond A Apologia eacute um dos textos mais discutidos pelos estudiosos do autor francecircs principalmente no que se refere ao ceticismo o deixaremos de lado aqui por se tratar de um ensaio posterior ao contato de Montaigne com a obra de Sexto Empiacuterico principal fonte para os estudos ceacuteticos O que nos interessa agora eacute uma anaacutelise do trigeacutesimo segundo ensaio do Livro I que segundo a nota introdutoacuteria de Villey estaria situado no comeccedilo da composiccedilatildeo drsquoOs Ensaios

Este capiacutetulo foi composto poucos meses apoacutes a vitoacuteria de Dom Joatildeo da Aacuteustria em Lepanto (outubro de 1571) Um empreacutestimo tomado dos Annales drsquoAquitaine de Jean Bouchet tambeacutem atesta que ele eacute de aproximadamente 1572 (VILLEY 2000 p 321)

Outro aspecto digno de nota sobre este ensaio eacute

que a maior parte do texto compotildee a camada A ou seja a camada da primeira ediccedilatildeo do livro de 1580 Cremos portanto que I 32 contenha algo sobre o modo de pensar de Montaigne do iniacutecio de sua obra Dito isso passemos pois ao texto

Notamos desde as primeiras palavras de Montaigne o assunto do ensaio a facilidade de se falar das coisas desconhecidas Tal facilidade se deve em grande medida ao fato de que tais assuntos por natildeo serem comuns agrave experiecircncia ou agrave reflexatildeo popular natildeo sejam facilmente contrariados e muito menos refutados

[C] Por causa disso diz Platatildeo eacute muito mais faacutecil satisfazer ao falar da natureza dos deuses do que da natureza dos homens porque a ignoracircncia dos ouvintes abre um belo e amplo caminho e toda a

18 Eacutetica e filosofia poliacutetica

liberdade para o manejo de uma mateacuteria secreta (I 32 322)

O desconhecido eacute segundo ele ldquoo verdadeiro

campo e assunto da imposturardquo e todos os que se ocupam dele satildeo contadores de faacutebulas ldquocomo alquimistas prognosticadores astroacutelogos quiromantes meacutedicosrdquo Montaigne entatildeo soma a esses aqueles que parecem ser o alvo de sua criacutetica apesar de se mostrar receoso quanto a isso

A ele eu acrescentaria de bom grado se ousasse um bando de pessoas inteacuterpretes e controladores habituais dos desiacutegnios de Deus que tecircm a pretensatildeo de descobrir as causas de cada acontecimento e ver nos segredos da vontade divina os incompreensiacuteveis motivos de suas obras (I 32 322)

Notamos aqui uma comparaccedilatildeo entre

ldquoimpostores e contadores de faacutebulasrdquo com ldquoos inteacuterpretes da vontade de Deusrdquo e entre ldquoas coisas desconhecidasrdquo com ldquoas causas de cada acontecimento e os segredos da vontade divinardquo Apesar de se afirmar como catoacutelico em diversos ensaios (mesmo que isso seja motivo de discussatildeo entre os inteacuterpretes) Montaigne se posiciona contra alguns haacutebitos comuns agrave cristandade da eacutepoca ldquoMas considero mau o que vejo em uso de procurar firmar e apoiar nossa religiatildeo no sucesso e prosperidade de nossos empreendimentosrdquo (I 32 323) Sua criacutetica eacute entatildeo direcionada agravequeles cristatildeos sejam eles catoacutelicos ou protestantes que tentam justificar a legitimidade de suas reinvindicaccedilotildees pelos acontecimentos

[] nas guerras em que estamos pela religiatildeo os que levaram vantagem no confronto de Rochelabeille festejando muito a ocorrecircncia e servindo-se dessa boa fortuna para garantir a aprovaccedilatildeo de seu partido quando depois vecircm a desculpar seus infortuacutenios de

O problema do ceticismo 19

Mont-Contour e de Jarnac como sendo varas e castigos paternos (I 32 323)

O confronto de Rochelabeille segundo a nota

ocorreu em maio de 1569 e deu vantagem aos protestantes As outras duas Mont-Contour e Jarnac ocorridas em outubro e marccedilo de 1569 respectivamente favoreceram os catoacutelicos Assim Montaigne chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de justificar a escolha pelo partido catoacutelico ou protestante a partir da argumentaccedilatildeo baseada nas vitoacuterias das batalhas empreendidas de um contra o outro

Outro exemplo oferecido por Montaigne para mostrar a dificuldade de ajustar os eventos histoacutericos se refere agraves mortes semelhantes de algumas personalidades que tiveram relaccedilotildees diferentes com Deus

E quem quisesse justificar que Aacuterio e Leatildeo seu papa principais chefes daquela heresia em eacutepocas diversas tenham morrido de mortes tatildeo parecidas e tatildeo estranhas (pois afastando-se do debate por dor de barriga para ir agrave privada laacute ambos entregaram subitamente a alma) e exagerar essa vinganccedila divina pela circunstacircncia do lugar ainda poderia bem acrescentar-lhe a morte de Heliogaacutebalo que tambeacutem foi morto em uma retreta Mas ora Ireneu viu-se envolvido pela mesma fortuna (I 32 323-324)

A heresia a que Montaigne se refere

aproximando dos dois primeiros nomes eacute o arianismo2 Heliogaacutebalo foi um ldquoimperador romano de origem siacuteria cujo reinado se caracterizou pelos excessos de todo tipo introduziu em Roma o culto a Baal de que era sacerdote na Siacuteriardquo3 O outro foi ldquoSanto Ireneu padre e doutor da

2 O arianismo foi uma linha de pensamento que negava a consubstanciaccedilatildeo de Cristo Para ela Cristo natildeo seria eterno como o Pai mas uma criatura dele 3 Cf nota 10 deste capiacutetulo dos Ensaios na paacutegina 324

20 Eacutetica e filosofia poliacutetica

igreja bispo de Lyon morto no iniacutecio do seacutec IIIrdquo4 A intenccedilatildeo eacute a mesma dos exemplos anteriores Como poderia algueacutem conciliar exemplos de figuras tatildeo opostas Dizer que Deus teria se utilizado de castigo tatildeo peculiar para punir os primeiros seria ateacute aceitaacutevel mas por que um homem santo teria destino semelhante Ou para os primeiros exemplos Deus seria ora protestante ora catoacutelico Seria ele arbitraacuterio em suas decisotildees

Apesar de tantos acontecimentos apontarem contra o que argumentam ldquonatildeo deixam entretanto de perseguir sua bola e com o mesmo laacutepis pintar o preto e o brancordquo ldquovendem duas vezes o mesmo trigo e com a mesma boca sopram o quente e o friordquo Eacute faacutecil ao leitor perceber o quanto tudo isso eacute fraacutegil e Montaigne alerta para o perigo de que na falta de sucessos o povo acabe por ter sua feacute abalada ou por perdecirc-la

Em um acreacutescimo da uacuteltima ediccedilatildeo drsquoOs Ensaios ele afirma

[C] Deus querendo ensinar-nos que os bons tecircm outra coisa a esperar e os maus outra coisa a temer aleacutem das venturas ou desventuras deste mundo maneja-as e aplica-as de acordo com seu comando secreto e priva-nos dos meios de nos aproveitarmos tolamente delas E satildeo logrados os que querem se prevalecer disso segundo a razatildeo humana Nunca datildeo uma estocada sem receberem duas Santo Agostinho daacute uma bela prova disso contra seus adversaacuterios Eacute um conflito que se decide pelas armas da memoacuteria mais do que pelas da razatildeo (I 32 324)

Seria o vencedor da disputa aquele que

conhecesse mais exemplos ou que fosse mais capaz de moldaacute-los de acordo com sua causa para convencer os ouvintes Pois pelo que parece ou as coisas natildeo acontecem com base em um criteacuterio uacutenico e imutaacutevel ou ele nos eacute totalmente desconhecido Assim se uma

4 Cf nota seguinte na mesma paacutegina

O problema do ceticismo 21

batalha eacute vencida por um ou outro partido natildeo eacute porque Deus apoie a sua causa ou se algueacutem morre de modo natildeo tatildeo convencional natildeo seria isso motivo para julgar essa morte como um castigo

O que podemos notar eacute que Montaigne tem consciecircncia da facilidade com a qual eacute possiacutevel distorcer os fatos adequando-os bem ou mal com a nossa causa principalmente quando se trata de um assunto pouco comum Certa maleabilidade da razatildeo eacute reconhecida por ele A religiatildeo natildeo podendo ser fundamentada pela razatildeo deve procurar outra base sobre a qual se assentar A sugestatildeo de Montaigne para os assuntos de religiatildeo eacute que cada um tenha feacute evitando justificaacute-la com bases que natildeo satildeo capazes de tanto

[A] A um cristatildeo basta acreditar que todas as coisas vecircm de Deus recebecirc-las reconhecendo sua divina e inescrutaacutevel sabedoria e por conseguinte aceitaacute-las de bom grado sob qualquer feiccedilatildeo que lhe sejam enviadas [] Nossa crenccedila tem muitos outros fundamentos sem a legitimar pelos acontecimentos (I 32 322-323)

Natildeo queremos adentrar na questatildeo da defesa da

religiatildeo catoacutelica por Montaigne ou na conciliaccedilatildeo entre a feacute cristatilde e o ceticismo discutida na Apologia e motivo de controveacutersias entre os comentadores O que nos interessa eacute destacar a fragilidade e impotecircncia da razatildeo quando tentada a justificar os misteacuterios divinos preferindo confiar agrave sabedoria de Deus a razatildeo de todos os acontecimentos pois ldquoeacute difiacutecil ajustar as coisas divinas agrave nossa balanccedila sem que elas sofram diminuiccedilatildeordquo (I 32 323)

Como choramos e rimos por uma mesma coisa (I 37)

Este ensaio apesar de Villey natildeo concluir com certeza eacute considerado por ele como datado aproximadamente de 1572 com base em outros textos

22 Eacutetica e filosofia poliacutetica

em que Montaigne insere exemplos retirados das mesmas fontes5 Eacute curto assim como o analisado anteriormente e embora apresente mais acreacutescimos das ediccedilotildees posteriores acreditamos ter uma quantidade razoaacutevel de elementos da primeira camada para nos basearmos

Ele inicia-se com uma reflexatildeo sobre trecircs exemplos nos quais o vencedor de uma batalha chora a morte de seu inimigo

[A] [] Antiacutegono ficou muito desgostoso com seu filho por lhe ter apresentado a cabeccedila do rei Pirro seu inimigo que naquele mesmo momento acabara de ser morto em combate contra ele e que tendo-a visto pocircs-se a chorar fortemente e que o duque Reneacute de Lorena tambeacutem lamentou a morte do duque Carlos de Borgonha que acabara de derrotar e acompanhou enlutado seu enterro e que na batalha de Auray que o conde de Montfort venceu contra Charles de Blois seu adversaacuterio para o ducado de Bretanha o vitorioso ao encontrar o corpo de seu inimigo morto demonstrou grande pesar (I 38 348-349)

Montaigne posiciona-se com isso contrariamente

aos versos de Petrarca e Lucano que insere logo a seguir6 Apesar de considerar verdadeira a motivaccedilatildeo e a

5 ldquoSomos tentados a admitir aliaacutes sem razotildees decisivas que este capiacutetulo foi composto por volta de 1572 De fato podemos supor que os capiacutetulos XXXVIII XLI XLIV XLV XLVII satildeo contemporacircneos pois todos eles colocados a pouca distacircncia uns dos outros foram sugeridos por exemplos extraiacutedos da mesma obra ndash as Vidas de

Plutarco ndash e apresentam notaacuteveis analogias de estrutura Ora como os capiacutetulos XLI e XLVII satildeo de 1572 eacute possiacutevel que todo o grupo seja da mesma eacutepocardquo (VILLEY 2000 p 348) 6 ldquoE assim a alma encobre suas paixotildees sob uma aparecircncia contraacuteria sob um semblante ora jubiloso ora sombriordquo (Petrarca soneto LXXXI ediccedilatildeo de 1550 soneto CXXXII) ldquoEle pensou assim que podia sem risco manifestar sentimentos de sogro derramou laacutegrimas forccediladas e extraiu gemido de um coraccedilatildeo jubilosordquo (Lucano IX 1037) Notas 2 e 3 do ensaio paacutegina 349

O problema do ceticismo 23

vontade de vencer a batalha o autor francecircs natildeo vecirc contradiccedilatildeo nem falsidade como sugere o poeta citado na atitude de pranto e pesar dos vencedores Soma entatildeo aos trecircs primeiros o exemplo de Ceacutesar que apesar de estar em guerra contra Pompeu ldquodesviou os olhos como de um espetaacuteculo vil e desagradaacutevelrdquo quando lhe apresentaram a cabeccedila deste E assim como de Petrarca discorda de Lucano que cita em seguida pois natildeo entende como fingidas as laacutegrimas de Ceacutesar tendo em vista que aleacutem de sogro de Pompeu ambos durante muito tempo haviam vivido em harmonia fazendo vaacuterias alianccedilas ldquono manejo dos assuntos puacuteblicosrdquo

O que Montaigne chama a atenccedilatildeo eacute para o fato de que natildeo somos constantes em nosso agir tema este que estaacute presente em alguns outros ensaios Por mais que sejamos conhecidos por uma qualidade ela seja qual for natildeo pode ser a uacuteltima palavra a nosso respeito pois nada impede que o mais corajoso dos homens seja invadido pela covardia em algum caso Pois

Assim como em nossos corpos dizem que haacute uma reuniatildeo de diferentes humores cujo senhor eacute o que comanda mais habitualmente em noacutes segundo nosso temperamento tambeacutem em nossas almas embora haja diversos movimentos que a agitam no entanto eacute preciso que haja um que domine o campo Mas natildeo com uma superioridade tatildeo absoluta que devido agrave volubilidade e maleabilidade da nossa alma os mais fracos ocasionalmente natildeo retomem a praccedila e por sua vez natildeo faccedilam um breve ataque (I 38 350)

Em adiccedilotildees posteriores Montaigne oferece o

proacuteprio exemplo para reforccedilar a ideia Censurar seu criado com palavras duras natildeo o impede de ldquopassada essa explosatildeordquo ajudaacute-lo quando precise mesmo que seja logo em seguida ldquono mesmo instante viro a paacuteginardquo Tambeacutem afirma que ningueacutem poderia julgar falso seu

24 Eacutetica e filosofia poliacutetica

semblante em relaccedilatildeo agrave sua mulher ldquoora frio ora amorosordquo (I 38 351)

A paacutegina seguinte depois de mais alguns exemplos (Nero e Xerxes) leva-nos para a conclusatildeo ponto que queremos destacar qual o motivo de termos sentimentos e atitudes diferentes perante a mesma coisa ou fato se natildeo eacute falsidade O que Montaigne percebe eacute que nada tem apenas um ponto de vista e que mesmo noacutes olhamos a mesma coisa de modos diferentes

[A] Embora tenhamos perseguido com vontade resoluta a vinganccedila de uma ofensa e sentido um extraordinaacuterio contentamento pela vitoacuteria entretanto choramos Natildeo eacute por isso que choramos nada mudou mas nossa alma encara a coisa com outros olhos e representa-a com outra feiccedilatildeo pois cada coisa tem vaacuterias perspectivas e vaacuterios aspectos (I 38 352)

A inconstacircncia aparece deste modo como algo

presente no homem por mais que se queira defini-lo de modo definitivo Natildeo somente que os homens sejam afetados de modos diferentes (ateacute o mesmo homem neste caso) pela mesma coisa mas que a mesma atitude tenha consequecircncias diferentes satildeo temas discutidos pelo ensaiacutesta em outros lugares7 Para Montaigne ldquoao querermos fazer de toda esta sequecircncia um corpo uno enganamo-nosrdquo

Notamos aqui como no outro ensaio8 que eacute possiacutevel discursar de modos diferentes acerca de alguma coisa ndash mesmo que natildeo seja essa a principal preocupaccedilatildeo de Montaigne em I 38 ndash conduzindo a discussatildeo para a conclusatildeo desejada Antes era possiacutevel mesmo que um exame mais acurado apontasse suas falhas argumentar de modo a transformar algum

7 Ver tambeacutem ainda no livro I Por meios diversos chega-se ao mesmo fim O lucro de um eacute prejuiacutezo do outro Diversas decorrecircncias da mesma atitude entre outros 8 I 32

O problema do ceticismo 25

acontecimento em aviso de Deus como posicionamento a favor ou contra um partido ou atitude Agora eacute possiacutevel acusar de falsidade ou mascaramento uma accedilatildeo contraacuteria ao que empreendemos no momento ou contraacuteria ao que se julga ser nossa caracteriacutestica essencial Os versos de Petrarca e Lucano citados no texto do autor francecircs atestam isso

A partir da anaacutelise desses dois capiacutetulos do primeiro livro dos Ensaios partimos agora para uma comparaccedilatildeo deles com o ceticismo partindo de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero com discussotildees ceacuteticas antigas e tambeacutem do proacuteprio Montaigne em textos posteriores principalmente a Apologia

De acordo com a argumentaccedilatildeo de Richard Popkin (2000) o ceticismo sofreu um esquecimento na tradiccedilatildeo filosoacutefica ficando soterrado durante todo o periacuteodo medieval onde predominou principalmente o desenvolvimento da filosofia aristoteacutelica voltada ao cristianismo No entanto no Renascimento durante as discussotildees da Reforma Protestante foram aparecendo lentamente alguns textos ceacuteticos acalorando ainda mais a discussatildeo acerca do chamado ldquocriteacuterio de feacuterdquo As fontes ceacuteticas nesse periacuteodo foram aleacutem de Sexto Empiacuterico e Ciacutecero jaacute citados tambeacutem Dioacutegenes Laeacutercio que expocircs alguns elementos centrais do ceticismo aleacutem de algumas anedotas

Sexto Empiacuterico apesar de natildeo ter adicionado quase nada de original agrave doutrina ceacutetica eacute o uacutenico pirrocircnico cuja obra sobreviveu Dedicou-se principalmente em traccedilar os caminhos de seus antecessores explicando termos e argumentos de ceacuteticos mais antigos e em discutir as doutrinas dos dogmaacuteticos questionando os criteacuterios e premissas sobre as quais se construiacuteam tais escolas De acordo com Popkin Sexto ficou praticamente desconhecido durante a idade meacutedia e poucos leitores tiveram contato com seus manuscritos antes da primeira publicaccedilatildeo das

26 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Hipotiposes Pirrocircnicas uma traduccedilatildeo latina datada de 1562 Essa eacute talvez a principal obra de Sexto na qual expotildee o ceticismo pirrocircnico diferenciando-o do ceticismo acadecircmico e das demais doutrinas filosoacuteficas

Percebemos que Montaigne muito provavelmente teve acesso agrave obra de Sexto Empiacuterico visto que descreve alguns termos ceacuteticos com grande semelhanccedila no modo como o fez o meacutedico grego Aleacutem disso sabemos que Montaigne mandou gravar nas vigas de sua biblioteca algumas sentenccedilas de Sexto Segundo Villey foi aproximadamente em 1576 que a obra de Sexto teria sido conhecida pelo ensaiacutesta francecircs causando grande impacto em seu pensamento A Apologia de Raymond Sebond apesar de certa reserva de Villey teria sido escrita segundo ele entre 1576 e 1578 natildeo sendo composto todo de uma vez Eacute neste capiacutetulo tambeacutem que se encontram algumas das referecircncias mais claras ao ceticismo no qual a argumentaccedilatildeo de Montaigne eacute mais dura e nitidamente ceacutetica

Um dos aspectos principais para o qual queremos chamar a atenccedilatildeo eacute uma das consideraccedilotildees que Sexto faz acerca do ceticismo

O ceticismo eacute a capacidade de estabelecer antinomias nos fenocircmenos e nas consideraccedilotildees teoacutericas segundo qualquer um dos tropos graccedilas agraves quais nos encaminhamos ndash em virtude da equivalecircncia entre as coisas e proposiccedilotildees contrapostas ndash primeiro ateacute a suspensatildeo do juiacutezo e depois ateacute a ataraxia (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54 Itaacutelico nosso)

A ldquocapacidade de estabelecer antinomiasrdquo

aparece constantemente na obra de Sexto que as usa para contestar determinadas teses que procura contrariar Ao expor algum argumento de uma corrente filosoacutefica de sua eacutepoca o ceacutetico busca meios de por argumentos contraacuterios de antinomias refutaacute-lo

O problema do ceticismo 27

Tambeacutem encontramos esse ldquomeacutetodordquo presente na argumentaccedilatildeo do ceticismo denominado acadecircmico que aparece em alguns textos de Ciacutecero Um deles eacute notaacutevel Sobre a natureza dos deuses Nesse texto vemos uma discussatildeo como o tiacutetulo indica sobre os deuses Nela se inserem trecircs personagens Caio Veleio representante do epicurismo Luciacutelio Balbo estoico e Cota ceacutetico acadecircmico Os dois primeiros expotildeem a doutrina de cada uma de suas escolas positivamente ao passo que o ceacutetico se limita a criticar os argumentos de cada um deles

Na obra o primeiro a expor seus pensamentos eacute Veleio Apoacutes fazer uma seacuterie de consideraccedilotildees acerca do que o povo e os filoacutesofos antigos ndash preacute-socraacuteticos Platatildeo e Aristoacuteteles ndash pensavam sobre os deuses passa a argumentar sobre a teoria das divindades epicuristas De acordo com ele devemos acreditar na existecircncia dos deuses pelo fato de todos os homens terem certas ldquonoccedilotildees implantadas ou antes inatasrdquo (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 31) Tambeacutem afirma que os deuses tecircm formas humanas por ser esta a mais bela que haacute e por ser impossiacutevel que a mente que os deuses tambeacutem possuem habitasse outra forma que natildeo a humana (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 32) entre outras afirmaccedilotildees

Apoacutes a longa exposiccedilatildeo do epicurista Veleio Cota inicia seu discurso Nele depois de vaacuterias acusaccedilotildees contra Epicuro o acadecircmico passa a pontuar todos os elementos do discurso de Veleio Citemos apenas alguns segundo ele natildeo haacute como saber sobre a crenccedila de todos os povos levantando a hipoacutetese de que pode haver povos tatildeo selvagens que natildeo tenha tido nunca a ideia de qualquer deus ou mesmo os proacuteprios ateus (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 36) Algueacutem que tem a ideia de um deus natildeo poderia negaacute-lo de forma nenhuma Mostra com isso que o argumento epicurista das noccedilotildees inatas natildeo se sustenta Aleacutem disso cita outras formas tatildeo belas

28 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quanto a humana e aponta vaacuterios defeitos nela que natildeo poderiam ser admitidos para o divino Faz alusatildeo aos egiacutepcios para quem os deuses tecircm formas mistas de homens e animais (CIacuteCERO In VENDEMIATTI 2003 p 42)

Contra Luciacutelio Balbo que desenvolve o discurso estoico sobre o tema a argumentaccedilatildeo de Cota se desenvolve de maneira semelhante pontuando todas as afirmaccedilotildees de modo a mostrar que eacute possiacutevel qualquer que seja o argumento refutaacute-lo ou ao menos construir um oposto que o anule E essa eacute a importacircncia da criaccedilatildeo de antinomias das quais fala Sexto Empiacuterico Os argumentos opostos buscados na experiecircncia ou na dialeacutetica fazem com que o interlocutor fique sem saiacuteda pois uma vez que admita a invalidade dos argumentos ceacuteticos teraacute que confessar o mesmo para os seus por serem compostos sobre as mesmas bases

Natildeo devemos pensar no entanto que o ceacutetico admita positivamente os argumentos que formula O mesmo Cota afirma algumas vezes que por considerar o assunto difiacutecil de ser tratado natildeo pode dizer o que ou como os deuses satildeo Tambeacutem diz ter mais habilidade em reconhecer os argumentos falsos do que em formular os verdadeiros E mesmo assim o ceacutetico deve forccedilosamente reconhecer que seu argumento natildeo pode ser admitido positivamente visto que o argumento oposto do dogmaacutetico o anula tambeacutem

De todas as expressotildees ceacuteticas com efeito haacute que pressupor que natildeo nos obcecamos de que elas sejam verdadeiras posto que jaacute dissemos que podem ser refutadas por si mesmas ao estarem incluiacutedas entre aquelas que satildeo enunciadas como os purgantes entre os medicamentos natildeo apenas eliminam do corpo a doenccedila mas que tambeacutem satildeo eliminados (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 119)

O problema do ceticismo 29

Notamos que os ceacuteticos eram cientes das consequecircncias de seu modo de argumentar e entendiam que natildeo havia saiacuteda desde que essa saiacuteda significasse a adoccedilatildeo de uma das teses defendidas A uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel defendida pelos pirrocircnicos era a suspensatildeo do juiacutezo ou epocheacute De acordo com eles qualquer um que se pusesse a investigar seriamente sobre a filosofia e natildeo se deixasse levar pela precipitaccedilatildeo impressionado por alguma escola dogmaacutetica acabaria por entender que natildeo haacute criteacuterios para a adoccedilatildeo de uma ou outra tese Todas as premissas que justificariam um criteacuterio satildeo falsas ou injustificaacuteveis

Montaigne sabia disso o capiacutetulo doze do segundo livro dos Ensaios causa controveacutersias ateacute hoje sobre o sentido que o ensaiacutesta deu agrave expressatildeo Apologia de Raymond Sebond Ateacute hoje se discute os motivos de Montaigne na tentativa de defender Sebond como o tiacutetulo sugere acaba por invalidar seus argumentos9 Natildeo pensamos que esse resultado tenha sido acidental como pode parecer mas que foi resultado da argumentaccedilatildeo ceacutetica empreendida por ele Natildeo entraremos poreacutem nessa discussatildeo interminaacutevel

A Apologia se refere ao teoacutelogo catalatildeo Raymond Sebond escritor da obra Theacuteologie Naturelle traduzida por Montaigne em 1569 a pedido de seu pai Nela o teoacutelogo se propotildee a fundamentar os artigos da feacute atraveacutes da razatildeo afirmando entre outras coisas que o homem ocupa o topo da escala dos seres acima de todos os outros animais e que eacute o fim e propoacutesito da criaccedilatildeo razatildeo da existecircncia de toda a criaccedilatildeo O objetivo de Montaigne com a Apologia eacute ldquoaliviar seu livro de duas objeccedilotildees principais que lhe satildeo feitasrdquo (II 12 163) A primeira delas eacute que os cristatildeos natildeo devem tentar apoiar a sua religiatildeo atraveacutes de razotildees humanas pois soacute pode ser concebida pela feacute e pela graccedila divina A segunda se

9 Cf nota 14 EVA 2004

30 Eacutetica e filosofia poliacutetica

refere aos que dizem que os argumentos de Sebond satildeo ldquofracos e inadequados para demonstrar o que ele pretende e dispotildeem-se a atacaacute-los facilmenterdquo (II 12 175)

Aos que combatem por meio de pressuposiccedilatildeo eacute preciso pressupor lhes ao contraacuterio o mesmo axioma sobre o qual se estiver debatendo Pois qualquer pressuposiccedilatildeo humana e qualquer enunciaccedilatildeo tem tanta autoridade quanto outra se a razatildeo natildeo fizer diferenccedila entre elas Assim precisamos colocaacute-las todas na balanccedila (II 12 277)

As vaacuterias referecircncias de Montaigne aos ceacuteticos

gregos suas passagens quase literais seu modo de argumentar natildeo nos deixa duacutevidas de que agrave altura da Apologia ele jaacute tivera contato com os textos de Sexto e Ciacutecero e de que o ceticismo havia deixado marcas profundas em seu pensamento O mais extenso e talvez o mais estritamente filosoacutefico dos ensaios ou seja a Apologia ldquoensaio ceacutetico por excelecircncia (EVA 2004 p 11)rdquo demonstra bem isso Voltemos agora poreacutem aos ensaios analisados por noacutes anteriormente Acreditamos ter encontrado na antinomia um ponto comum entre a Apologia e eles

Eacute claro que natildeo haacute a mesma riqueza de exemplos ou de argumentos nos textos de 1572 nem referecircncias tatildeo claras ao ceticismo como aqui As foacutermulas e tropos ceacuteticos tambeacutem provavelmente natildeo lhe eram conhecidas Percebemos no entanto que Montaigne jaacute criticava a pressuposiccedilatildeo vaidosa pela qual se considerava a razatildeo como instrumento suficiente para julgar natildeo apenas os assuntos divinos como em I 32 mas tambeacutem para os assuntos humanos como se viu com o outro ensaio Maleaacutevel como uma massa de modelar a partir da qual se forma as mais diversas figuras com a razatildeo se prova o que quiser desde que os fundamentos sejam aceitos pelo interlocutor

O problema do ceticismo 31

Montaigne procede como prescreve Sexto estabelecendo antinomias de diversas maneira ldquocontrapondo fenocircmenos a fenocircmenos consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas ou uns agraves outrasrdquo (SEXTO EMPIacuteRICO 1993 p 54) Fenocircmenos a fenocircmenos quando colocados lado a lado as diversas consequecircncias de uma mesma accedilatildeo ou consequecircncias iguais de accedilotildees diferentes consideraccedilotildees teoacutericas a consideraccedilotildees teoacutericas quando argumenta dialeticamente criando argumentos para invalidar os do oponente uns agraves outras quando alude a fenocircmenos para refutar argumentos ou vice-versa O nuacutecleo basilar de nossa argumentaccedilatildeo neste estudo e que aponta para um Montaigne com inclinaccedilotildees para o ceticismo desde seus primeiros escritos eacute exatamente essa encontramos exemplos assim natildeo soacute na Apologia mas tambeacutem em ensaios anteriores Se devemos concordar com Villey que aqueles ensaios foram escritos em 1572 antes do contato de Montaigne com o ceticismo pensamos haver razotildees para duvidar de que ele tenha adotado a filosofia estoica durante esse periacuteodo A desconfianccedila nos poderes da razatildeo jaacute nesses ensaios nos parece contraditoacuteria com as opiniotildees do estoicismo quanto a esse tema

REFEREcircNCIAS SEXTO EMPIacuteRICO Esbozos pirrocircnicos Madrid Gredos 1993

MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 2001

CONCEICcedilAtildeO Gilmar Henrique da Montaigne e a poliacutetica Cascavel Edunioeste 2014

EVA Luiz A A A figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007

32 Eacutetica e filosofia poliacutetica

____ Montaigne contra a vaidade um estudo sobre o ceticismo na Apologia de Raimond Sebond Satildeo Paulo HumanitasFFLCHUSP 2004

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

VASCONCELLOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo In MONTAIGNE Os ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

VENDEMIATTI Leandro Abel Sobre a natureza dos deuses de Ciacutecero Dissertaccedilatildeo (mestrado em linguiacutestica) ndash Instituto de estudos da linguagem UNICAMP Campinas 2003

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne In MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000

= II =

MONTAIGNE E O LEGADO CEacuteTICO

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo

Este trabalho eacute parte de minha pesquisa em

desenvolvimento como doutorando em filosofia que objetiva estudar a originalidade ou antes a audaacutecia do pensamento de Montaigne cujo debate e questionamentos se iniciaram no acircmbito da religiatildeo e se estenderam para a filosofia e para a ciecircncia

Montaigne segundo Birchal (2007) relata o eu como fluxo natildeo como lsquosubstacircnciarsquo nem como lsquovaziorsquo No espiacuterito montaigniano quero comeccedilar este texto confessando junto com Porchat que tambeacutem sou um homem desesperado da filosofia e de seus problemas pois para mim os discursos da filosofia natildeo satildeo mais que prodigiosos e sublimes jogos de palavras muitas vezes distante da vida Ou como disse Porchat ldquoUm brinquedo dos

Poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico Email gilmarhenriqueconceicaohotmailcom

34 Eacutetica e filosofia poliacutetica

filoacutesofos com as palavras do Logos com os filoacutesofosrdquo (PORCHAT 2000 p 122) Montaigne chega a dizer que a razatildeo eacute uma espeacutecie de massinha com a qual podemos modelar o que quisermos Montaigne leva ao limite a capacidade da razatildeo Haacute em mim a vivecircncia da duacutevida ceacutetica pirrocircnica como uma profunda inquietaccedilatildeo Fico inquieto com os dogmaacuteticos de todos os tipos Evidentemente as questotildees loacutegicas envolvem um vocabulaacuterio teacutecnico Portanto natildeo estou pensando em loacutegica propriamente mas em filosofia Tal como os pirrocircnicos tambeacutem desconfio dos que falam difiacutecil em filosofia ldquoExprimir-se de modo difiacutecil eacute na verdade deixar transparecer certa falta de rigor intelectualrdquo (PORCHAT 2000 p 125) Eacute este o sentido pelo qual Montaigne conclui que as filosofias difiacuteceis constituem um pirronismo sob a forma resolutiva porque frequentemente a inextrincaacutevel obscuridade de seus textos natildeo nos permite saber nem mesmo qual eacute sua opiniatildeo Ou entatildeo apresentam tantas interpretaccedilotildees divergentes que obnubilam a opiniatildeo Obscurecemos e enclausuramos a compreensatildeo com tantas interpretaccedilotildees10

Pirro natildeo deixou nada escrito pois para ele filosofia natildeo eacute uma doutrina uma teoria ou um saber sistemaacutetico mas principalmente uma praacutetica uma atitude um modus vivendi (MARCONDES

10 [B] Quem natildeo afirmaria que as glosas aumentam as duacutevidas e ignoracircncia visto que natildeo se vecirc livro algum seja humano ou divino no qual o mundo se empenhe cuja dificuldade a interpretaccedilatildeo faccedila sumir O centeacutesimo comentaacuterio remete-o a seu seguinte mais espinhoso e mais escarpado do que o primeiro o achara Quando concordamos entre noacutes lsquoeste livro jaacute teve o suficiente doravante natildeo haacute mais o que dizerrsquo Isso se vecirc melhor na chicanarsquo (III 13 p 427)

Montaigne e o legado ceacutetico 35

2007 p 95) Montaigne seguindo os passos de Pirro e Sexto Empiacuterico foi decisivo na histoacuteria da filosofia sob trecircs aspectos a) ao plantar a semente da duacutevida pirrocircnica que foi desenvolvida por ele e que ficou como heranccedila para filoacutesofos posteriores b) ao argumentar que se explicaccedilatildeo haacute natildeo busca almejar o estatuto de conhecimento mas limita-se agrave constataccedilatildeo de que somos parte de uma natureza que transcende indefinidamente nossa capacidade de conhececirc-la c) Ao demolir nossas certezas visto que natildeo podemos identificar com seguranccedila nossas afecccedilotildees e disposiccedilotildees e natildeo podemos determinar nossos movimentos internos portanto devido agrave complexidade e indeterminaccedilatildeo de nossas afecccedilotildees somente podemos ver uma parte do todo ou um traccedilo entre tantos traccedilos possiacuteveis

Na realidade nos Ensaios temos a apresentaccedilatildeo de conceitos importantes para a compreensatildeo do pensamento montaigniano epokheacute zeteacutesis diaphonia isosthenia epokheacute ataraxia e eudaimonia Tais termos constituem o cerne de todo pensamento ceacutetico e satildeo familiares a Montaigne que com eles trabalha Em Montaigne temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do instante da passagem Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero que eacute tudo o que temos por esta razatildeo Montaigne eacute lsquoo filoacutesofo da aparecircnciarsquo

O ensaiacutesta compreendeu profundamente como poucos o pirronismo Montaigne eacute um pirrocircnico porque questiona ateacute mesmo o pirronismo Em outras palavras eacute isto mesmo que constitui a

36 Eacutetica e filosofia poliacutetica

atitude pirrocircnica Aprecio os inteacuterpretes do pensamento montaigniano quando destoando da exposiccedilatildeo sisuda da vida acadecircmica relatam suas exposiccedilotildees em primeira pessoa Portanto tambeacutem engatinharei do mesmo modo acompanhando de longe os passos de estudiosos que tanto admiro particularmente Oswald Porchat

Constato no ceticismo minha identidade filosoacutefica e minha chave de libertaccedilatildeo natildeo tenho verdade natildeo tenho deus natildeo tenho amigos natildeo tenho irmatildeo natildeo tenho pai e natildeo tenho matildee Se natildeo for exatamente isso eacute quase isto Ou como cantou Bob Dylan lsquoLike a rolling stonersquo Como ultima ratio entendo que estamos completamente soacutes no universo mas isso parece natildeo me entristecer Ao contraacuterio me daacute uma espeacutecie de alegria pois implica em aceitar o traacutegico e a solidatildeo da condiccedilatildeo humana lsquoalone and togetherrsquo Estamos sozinhos juntos Claro a presenccedila de um verdadeiro amigo pode nos acompanhar Aliaacutes as relaccedilotildees sociais e os projetos coletivos possibilitam tecer fios de compartilhamento Como a verdadeira amizade (I 28) eacute rara podemos ter amizades por um ponto soacute Aleacutem disso o amor nos tira da solidatildeo de ser um Por isso mesmo afinal eacute necessaacuterio viver plenamente a vida e a filosofia natildeo pode ser uma rejeiccedilatildeo da vida das vicissitudes e contingecircncias da vida comum A filosofia natildeo pode rejeitar as paixotildees humanas em nome do pensamento Como registra Sexto Empiacuterico ratificado por Montaigne se o ceacutetico condena os dogmas em nenhum momento entretanto entra em conflito com a vida comum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Com o ensaiacutesta temos a afirmaccedilatildeo do valor do efecircmero do valor do

Montaigne e o legado ceacutetico 37

instante da passagem Precisamente pelo fato de que Montaigne natildeo quer para si nem para ningueacutem uma filosofia de renuacutencias e de conceitos eternos Ao contraacuterio ele declara seu amor ao efecircmero soacute temos para decidir o instante que passa

Neste trabalho elementar o nosso ponto de partida consiste em encetar esforccedilos no sentido de mostrar que Montaigne como leitor de Sexto Empiacuterico visceralmente ceacutetico suspende o juiacutezo sobre as verdades dogmaacuteticas de qualquer natureza em razatildeo disso como o ensaiacutesta natildeo tem um dogma epistemoloacutegico nem metafiacutesico natildeo apresenta um dogma moral ou um dogma poliacutetico Julga que em uacuteltima instacircncia as correntes filosoacuteficas satildeo meramente exerciacutecios de pensamento do homem no mundo Para isso nosso autor se vale em seus escritos de paradoxos de desordem e de supostas incongruecircncias A respeito disso Eva (2007) escreve que eacute certo que um traccedilo importante da reflexatildeo nos Ensaios reside em seu caraacuteter assumidamente provisoacuterio decorrente da liberdade que o autor encontra para voltar atraacutes em relaccedilatildeo ao que dissera anteriormente mesmo ao preccedilo de se contradizer Montaigne por exemplo alterna o elogio e o escaacuternio da philosophie Assim se por um lado a filosofia eacute enaltecida pela sua capacidade de tornar a alma e o corpo sadios por outro lado ela eacute criticada como palco de um conflito de razotildees (II 12)

Meu estudo estaacute focado no ceticismo como concepccedilatildeo filosoacutefica e natildeo como uma seacuterie de duacutevidas (POPKIN2000) Assim o ceticismo teve sua origem no pensamento grego antigo Como eacute

38 Eacutetica e filosofia poliacutetica

sabido durante o helenismo formou-se um conjunto de argumentos ceacuteticos estabelecendo que a nenhuma forma de conhecimento eacute possiacutevel (Ceticismo acadecircmico) b) natildeo haacute evidecircncia adequada ou suficiente para determinar se alguma forma de conhecimento eacute ou natildeo possiacutevel (Ceticismo pirrocircnico)

Como registra Popkin (2000) e Brochard (2009) o ceticismo acadecircmico surgiu na Academia de Platatildeo e sua formulaccedilatildeo teoacuterica eacute atribuiacuteda a Arcesilau e a Caacuterneacuteade que elaboraram uma seacuterie de argumentos voltados sobretudo contra as pretensotildees a conhecimento dos filoacutesofos estoicos procurando mostrar que nada se pode conhecer com certeza Estes argumentos foram transmitidos ateacute noacutes especialmente pelas obras de Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio e Santo Agostinho Os Acadecircmicos formularam uma seacuterie de dificuldades visando mostrar que os dados que obtemos por meio de nossos sentidos satildeo pouco confiaacuteveis que natildeo podemos ter certeza se nosso raciociacutenio eacute seguro e que natildeo possuiacutemos nenhum criteacuterio ou padratildeo garantido para determinar quais de nossos juiacutezos satildeo verdadeiros e quais satildeo falsos De acordo com Popkin

O problema baacutesico em questatildeo aqui eacute que qualquer proposiccedilatildeo pretendendo afirmar algum tipo de conhecimento sobre o mundo conteacutem pretensotildees que vatildeo aleacutem dos relatos meramente empiacutericos sobre como nos parecem ser os fatos (POPKIN 2000 p 2)

Luiz Eva (2007) em seu estudo sobre Montaigne indaga se dada a proeminecircncia que

Montaigne e o legado ceacutetico 39

ganha nos Ensaios o projeto de um exame da condiccedilatildeo humana e da produccedilatildeo de um retrato de si mesmo natildeo estariacuteamos diante de uma figura talvez embrionaacuteria do viacutenculo teoacuterico entre criacutetica epistemoloacutegica e tematizaccedilatildeo da subjetividade temas frequentes na posteridade filosoacutefica e mesmo diretamente associados em diversos filoacutesofos como Descartes Eva ainda sugere que o seu trajeto de estudos parece delinear uma nova imagem do proacuteprio ceticismo de Montaigne um ceticismo de linhagem lsquoradicalrsquo Acrescenta que o ceticismo montaigniano possui uma configuraccedilatildeo conceitual proacutepria e eacute ao mesmo tempo uma filosofia articulada com o pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas corporais e espirituais na medida em que isso se faz ao nosso alcance ldquouma filosofia voltada ao mundo da vida e da accedilatildeo e ao contato do homem com sua efetiva condiccedilatildeordquo (EVA 2007 p 12) Assim torna-se possiacutevel recuperar os contornos proacuteprios de um gecircnero filosoacutefico que em boa medida foram apagados pela maneira como a posteridade acolheu o ceticismo em sua versatildeo cartesiana Aliaacutes de modo geral a versatildeo difundida do ceticismo parece ser aquela advinda de Ciacutecero e Santo Agostinho (portanto na versatildeo Acadecircmica) Descartes Hume e Kant (soacute para citar alguns) enfrentaram a questatildeo da duacutevida ceacutetica Segundo Porchat (2000) Hume eacute um peacutessimo leitor do ceticismo pirrocircnico mas esta eacute outra histoacuteria natildeo iremos tratar disso neste momento

Popkin (2000) como historiador da filosofia moderna em seu estudo sobre os ceacuteticos contraria um padratildeo otimista de representaccedilatildeo dessa mesma

40 Eacutetica e filosofia poliacutetica

histoacuteria como uma aventura em direccedilatildeo ao esclarecimento e a certezas cada vez mais consistentes Como eacute sabido o ceticismo surgiu na Antiguidade Claacutessica como reaccedilatildeo agrave proliferaccedilatildeo de sistemas filosoacuteficos todos eles orientados para a detecccedilatildeo da verdade Em termos mais precisos a atitude ceacutetica emerge da descoberta de que a filosofia eacute um campo de disputa entre sistemas que sustentam que haacute uma profunda distinccedilatildeo entre o que eacute e o que aparece Enquanto homens comuns movidos por apetites e crenccedilas vivem segundo o que lhes parece ser o mundo caberia ao filoacutesofo dizer a verdade com base em sua capacidade extraordinaacuteria de ver o que natildeo se vecirc ordinariamente

A palavra ceticismo deriva de skeacutepsis que significa em grego investigaccedilatildeo O ceacutetico ao investigar os diferentes sistemas filosoacuteficos descobre que todos eles tecircm em comum a pretensatildeo de dizer o que a verdade eacute mas que por supocirc-la pertencendo agrave um mundo aleacutem de nossa percepccedilatildeo comum (o Motor Imoacutevel de Aristoacuteteles ou o Mundo das Ideias de Platatildeo por exemplo) natildeo entram em acordo com relaccedilatildeo ao que ela significa Cada um a descreve de forma particular sem apresentar evidecircncias criacuteveis para sustentar suas hipoacuteteses Trata-se pois de uma querela sobre a qual ateacute agora natildeo se pode decidir Como escreve Porchat os ceacuteticos revelam a existecircncia de um ldquoconflito das filosofiasrdquo Nesse conflito cada novo pensador pretende solucionar os impasses produzidos por seus predecessores oferecendo a possibilidade de uma nova e mais perita definiccedilatildeo da verdade Porchat sugere que ateacute mesmo a tentativa de ver

Montaigne e o legado ceacutetico 41

nas filosofias uma lsquosinfoniarsquo na realidade eacute mais um elemento da lsquodiaphoniarsquo Ou seja parece que o que acaba por acontecer eacute que essas ldquosoluccedilotildeesrdquo tatildeo somente alargam o acircmbito do dissenso Pensando resolver o problema da verdade o filoacutesofo obcecado por essa busca contribui para o aumento da incerteza

O ceticismo pirrocircnico portanto desde suas primeiras formulaccedilotildees com Pirro de Eacutelis ateacute os textos remanescentes de Sexto Empiacuterico (e Montaigne e Francisco Sanchez durante o Renascimento) sustenta a falibilidade humana em termos cognitivos e a ausecircncia de criteacuterios para definir o que eacute a verdade para aleacutem do mundo comum dos fenocircmenos que todos experimentamos

Com efeito Popkin (2000) narra os efeitos e a recepccedilatildeo que os argumentos organizados por Sexto Empiacuterico tiveram nos seacuteculos XVI e XVII Depois de considerar o impacto dos textos e argumentos ceacuteticos nos debates suscitados pela Reforma Protestante Popkin nos conduz ao universo de Michel de Montaigne leitor da primeira traduccedilatildeo latina de Sexto Empiacuterico Jaacute chamamos a atenccedilatildeo para o fato de que Montaigne tambeacutem eacute leitor de diversas obras atinentes ao ceticismo (Ciacutecero Dioacutegenes Laeacutercio Santo Agostinho Plutarco Agrippa e Francisco Sanchez) Todavia destas leituras a que mais deixa traccedilos evidentes nos Ensaios eacute a de Sexto Empiacuterico mesmo que Montaigne natildeo cite o seu nome

Montaigne foi muito lido por Descartes Pascal Malebranche Nietzsche Rousseau Hume entre muitos outros Em Montaigne estatildeo

42 Eacutetica e filosofia poliacutetica

magnificamente presentes os temas claacutessicos do ceticismo a falibilidade do conhecimento por meios humanos uma visatildeo da vida social constituiacuteda pelas crenccedilas ordinaacuterias e uma sensibilidade iacutempar para a existecircncia de uma vasta variedade cultural e civilizatoacuteria irredutiacutevel a criteacuterios universais Essa uacuteltima perspectiva estaacute presente em um de seus ensaios a respeito dos iacutendios brasileiros Dos Canibais Nele encontramos o primeiro registro europeu que os percebe como personagens de uma experiecircncia distinta da europeia vale dizer como outra forma de sociedade Essa sensibilidade para com a diferenccedila cultural eacute uma heranccedila expliacutecita do antigo ceticismo que em um dos argumentos legados por Sexto Empiacuterico e alargado no seacuteculo XX por Claude Leacutevi-Strauss percebia a diferenccedila civilizatoacuteria como irredutiacutevel a criteacuterios universais de juiacutezo e avaliaccedilatildeo Mas condenamos o que nos parece estranho aos nossos costumes

Popkin (2000) a partir de Montaigne resgata pensadores ateacute quase desconhecidos Pierre Charron por exemplo herdeiro intelectual de Montaigne escreveraacute um dos livros mais lidos no seacuteculo XVII francecircs o De la Sagesse no qual a sabedoria eacute apresentada como fruto da utilizaccedilatildeo do ceticismo (ou pirronismo) contra as diferentes filosofias dogmaacuteticas (LESSA 2008)

Conforme Sexto e Montaigne as coisas existem poreacutem somente o que podemos saber e dizer delas satildeo de que maneira nos afetam - natildeo o que satildeo em si mesmas Natildeo obstante como iremos argumentar a epokheacute de Sexto natildeo eacute tatildeo radical como a de Pirro Montaigne por seu lado defende tambeacutem uma eacutetica do sentido comum e ainda como

Montaigne e o legado ceacutetico 43

pirrocircnico aceita a indiferenccedila (adiaphora) com respeito a todas as soluccedilotildees morais reivindica tambeacutem a importacircncia do empiacuterico

Montaigne eacute o filoacutesofo do paradoxo e da contradiccedilatildeo quando fala das coisas mas a contradiccedilatildeo estaacute nas proacuteprias coisas em suas muacuteltiplas perspectivas (II 12) Eacute claro que com isso natildeo queremos dizer que Montaigne nunca se contradiga Poreacutem a questatildeo central eacute que eacute exatamente a aceitaccedilatildeo de suas contradiccedilotildees que permite a Montaigne a articulaccedilatildeo de uma postura filosoacutefica que consiste em assumir a proacutepria incoerecircncia como labor filosoacutefico Ele parece fazer as contradiccedilotildees e incoerecircncias aparentes e efetivas trabalharem no exerciacutecio de seu pensamento na investigaccedilatildeo daquilo que lhe aparece

Essa postura arrasta consigo uma consequecircncia metodoloacutegica importante que consiste em identificar a particularidade de sua filosofia ceacutetica Montaigne como um filoacutesofo lsquode nova figurarsquo eacute inteiro Como registra Eva (2007) uma generalizaccedilatildeo aligeirada acerca da contradiccedilatildeo ambiguidade e incoerecircncia de Montaigne pode nos cegar para aquilo que compreendemos como coerecircncia filosoacutefica de Montaigne Ou seja em razatildeo da ditadura do Logos ficamos impossibilitados de observar a possibilidade de as eventuais oscilaccedilotildees opinativas Entretanto acertadamente Eva argumenta que ceticismo natildeo eacute sinocircnimo de irracionalismo ao contraacuterio a posiccedilatildeo ceacutetica estaacute conforme ao emprego da razatildeo Desse modo a constataccedilatildeo da equipolecircncia e da isostenia dos argumentos contraacuterios natildeo significa em Montaigne

44 Eacutetica e filosofia poliacutetica

a impossibilidade de uma investigaccedilatildeo racional visto que para o nosso autor os ceacuteticos se servem da razatildeo para investigar poreacutem natildeo para sentenciar

Montaigne salienta que adere ao phainoacutemenon e que conduz sua vida praacutetica da lsquomaneira comumrsquo como escreve Sexto nas Hipotiposes I 24

Aderindo assim ao aparecer das coisas [phainoacutemena] noacutes vivemos de acordo com as regras normais da vida de modo natildeo dogmaacutetico vendo que natildeo podemos permanecer inativos E parece-nos que essa regulaccedilatildeo da vida possui quatro aspectos O guia da natureza eacute aquele pelo qual somos naturalmente capazes de sensaccedilatildeo e pensamento a exigecircncia das paixotildees eacute aquela pela qual a fome nos leva a comer e a sede a beber a tradiccedilatildeo dos costumes e das leis aquela pela qual noacutes consideramos a piedade nas accedilotildees da vida um bem e a impiedade um mal e a instruccedilatildeo das artes aquela pela qual natildeo somos insativos nas artes [teacutechnai] que empreendemos (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

O problema que surge para mim eacute se o ceticismo rejeita todas as filosofias Montaigne rejeita tambeacutem o ceticismo Colegas doutorandos do PPGFil da unioeste ateacute brincaram comigo recentemente quando me falaram lsquovocecirc tem certeza do ceticismorsquo Deixando de lado a brincadeira haacute aiacute algo de real Como posso ter certeza no ceticismo uma vez que isso constitui uma contradiccedilatildeo com a perspectiva ceacutetica Por que o ceticismo natildeo pode se assumir como um posicionamento consistentemente radical Claro a questatildeo estaacute mal colocada Jaacute adiantamos o

Montaigne e o legado ceacutetico 45

pirronismo eacute mais uma atitude do que um sistema de pensamento

O pirronismo acontece no acircmbito mais amplo da diaphonia filosoacutefica Portanto duvidar do proacuteprio ceticismo como Montaigne agraves vezes parece fazer eacute uma atitude pirrocircnica Portanto com isso ele natildeo rompe com o pirronismo ao contraacuterio reforccedila o pirronismo Entretanto Montaigne inova o ceticismo trazendo agrave baila temas que ateacute entatildeo natildeo ventilados no debate ceacutetico De acordo com Smith (2012) poreacutem enquanto Sexto relata as opiniotildees dos outros filoacutesofos Montaigne fala de sua proacutepria vida Quando relata o que lhe aparece Sexto relata somente oposiccedilatildeo de teses e argumentos quando relata o que lhe aparece Montaigne fala de sua vida Sexto nunca pretendeu que relatar a proacutepria vida tivesse relevacircncia filosoacutefica Os Ensaios surgem portanto como uma nova fonte para a diaphoniacuteapirrocircnica

Na tentativa de responder aos meus colegas o que posso dizer eacute que natildeo eacute bem uma certeza que tenho no ceticismo mas eacute isto exatamente que me aparece como ceticismo Talvez seja algo como a forma como vejo o mundo Eu natildeo sabia que eu era profundamente ceacutetico ateacute o dia em que li Montaigne e Sexto Empiacuterico Descobri com eles minha identidade filosoacutefica Na realidade sem ser conscientemente ceacutetico bem cedo passei a desconfiar das explicaccedilotildees que presunccedilosamente pretendem afirmar o que as coisas satildeo efetivamente em sua estrutura interna Sejam elas de acircmbito filosoacutefico poliacutetico ou religioso Jaacute salientei que o ceacutetico desconfia daquilo que chamamos lsquorealidadersquo

46 Eacutetica e filosofia poliacutetica

e sugere que se trata apenas de lsquoconsensorsquo e que muita coisa nos escapa Eacute graccedilas a esse sentido preciso de sua criacutetica tatildeo avassaladora que Montaigne acompanhando Sexto afirma que os philosophes que evocam os fenocircmenos sensiacuteveis como resposta agravequele que os potildee em duacutevida satildeo indignos desse nome

[A] Eles natildeo precisam me dizer eacute verdadeiro pois vecircs e sentes assim eacute preciso que me digam se o que eu penso sentir eu o sinto portanto de fato e se eu o sinto que eles me digam depois por que eu o sinto e como e o quecirc que eles me digam o nome a origem os componentes e os produtos do calor do frio das qualidades daquele que age e daquele que padece ou entatildeo que eles abandonem sua profissatildeo que eacute a de natildeo receber nem aprovar nada senatildeo pela via da razatildeo eacute a sua pedra de toque em toda a espeacutecie de investigaccedilotildees mas certamente eacute uma pedra de toque plena de falsidade de erro de fraqueza e de falha (II 12)

Haacute uma questatildeo muito debatida entre os inteacuterpretes que se referem agraves apropriaccedilotildees compilaccedilotildees e lsquopilhagensrsquo que Montaigne realiza advindas de autores antigos Trata-se de lsquoplaacutegiorsquo tal como entendemos hoje Quer me parecer que natildeo Acompanhemos a escrita de Montaigne quando se refere aos seus lsquoplaacutegiosrsquo

[] No entanto bem sei com quanta ousadia eu mesmo tento a todo momento igualar-me a meus plaacutegios ir par a par com eles natildeo sem uma temeraacuteria esperanccedila de conseguir

Montaigne e o legado ceacutetico 47

enganar os olhos dos juiacutezes ao discerni-los (I 26 p 220) O ensaiacutesta critica o plaacutegio e assume o plaacutegio

Examinemos isto A sua criacutetica ao plaacutegio eacute devastadora classificando-a em primeiro lugar de lsquoinjusticcedila e covardiarsquo de quem natildeo tendo em seu patrimocircnio pessoal coisa alguma com que se promover procura apresentar-se com um valor alheio E em segundo lugar chama o plaacutegio de lsquogrande tolicersquo pois se contenta por embuste em obter aprovaccedilatildeo Afinal a que tipo de plaacutegio Montaigne se refere nesta criacutetica Natildeo agravequele que leva agrave produccedilatildeo do proacuteprio mel ou da autonomia da obra mas aos que apresentam lsquoremendosrsquo lsquodessemelhanccedilasrsquo como seus e que na realidade natildeo soube lsquoassimilaacute-losrsquo como as abelhas e ele proacuteprio o fez Portanto as referecircncias ficam ao modo Frankenstein diriacuteamos recorrendo a uma posterior imagem de um livro que surgiu em 1818 Em Frankenstein aparecem as costuras e natildeo haacute plena consciecircncia Que eacute exatamente a criacutetica aos plaacutegios que Montaigne elabora

Como Montaigne busquei fazer do conhecimento afeto potente porque a inteligecircncia eacute que vecirc e que ouve a inteligecircncia eacute que tudo aproveita que dispotildee que age que domina e que reina todas as outras coisas satildeo cegas surdas e sem alma Mas Montaigne ressalva que eacute bem verdade que a tornamos servil e covarde e em certos momentos lhe recusamos a liberdade de fazer coisa alguma por si mesma (I 26 p 227) Assim com o plaacutegio a gente perde potecircncia produzindo em

48 Eacutetica e filosofia poliacutetica

si afeto triste Refiro-me aqui agrave ideia de conatus e de paralelismo que estatildeo presentes em Spinoza e Montaigne (ldquoO que se instrui natildeo eacute uma alma natildeo eacute um corpo eacute um homem natildeo se deve separaacute-lo em doisrdquoI 26 p 247) O leitor atento provavelmente estaacute percebendo que estou fazendo uma relaccedilatildeo ligeira entre estes dois filoacutesofos mas esta relaccedilatildeo natildeo eacute improacutepria Ilustres leitores de Montaigne divergem sobre o seu pensamento Alguns como por exemplo Pascal e Kant procuram descobrir nele um cristatildeo outros como Emerson veem nele um protoacutetipo do ceacutetico outros um precursor de Voltaire Mas a leitura que comungo eacute a de Sainte-Beuve Sainte-Beuve chega a julgar os Ensaios uma espeacutecie de preparaccedilatildeo de antecacircmara para a Eacutetica de Spinoza Aleacutem disso Justo-Liacutepsio traduziu para o latim a palavra essais com o tiacutetulo de gustare Os Ensaios de Montaigne foram citados em latim pelos seus contemporacircneos com o tiacutetulo geral de conatus significando a tensatildeo da pessoa que opera uma ofensiva contra as coisas Os Ensaios satildeo uma escola de tensatildeo e de liberdade sempre fraacutegil e precaacuteria

Desse modo o recurso do plaacutegio tira da gente e nos impede de perseverar em ser-movimento A paixatildeo do plaacutegio em seu caminho mais curto eacute inflado e mentiroso natildeo importa os atenuantes Se a razatildeo-corpo revela que nosso desejo de ser se realiza fundamentalmente como desejo de conhecer o plaacutegio quer enganar a razatildeo Que loucura Pois Montaigne afirma que na solidatildeo uacuteltima do pensamento sabemos que mentimos Entatildeo a criacutetica e o desmascaramento arranca a cauda plumosa de filoacutesofo grudada com sabatildeo e nos restitui ao fogo

Montaigne e o legado ceacutetico 49

da filosofia No primeiro momento o impacto eacute de desdeacutem e de vergonha poreacutem isto eacute verdadeiramente salutar Quando somos dominados por afetos contraacuterios vemos o melhor e fazemos o pior Montaigne falou que o que diminui a vaidade do pavatildeo satildeo os seus peacutes Entatildeo natildeo haacute plaacutegio em Montaigne pois quando ele mesmo descreve o seu ato de apropriaccedilatildeo de autores se compara agraves abelhas que vatildeo de flor em flor sugando poreacutem o produto final o mel eacute pessoal Do mesmo modo os Ensaios - em que pese a diversidade de autores compilados - eacute produto seu eacute o seu mel Em Montaigne natildeo aparecem as lsquocosturasrsquo

A verdade e a razatildeo satildeo comuns a todos e natildeo pertencem a quem as disse primeiramente mais do que a quem as diz depois [C] Natildeo eacute segundo Platatildeo mais do que segundo eu mesmo jaacute que ele e eu o entendemos e vemos da mesma forma [A] As abelhas sugam das flores aqui e ali mas depois fazem o mel que eacute todo delas jaacute natildeo eacute tomilho nem manjerona Assim tambeacutem as peccedilas emprestadas de outrem ele iraacute transformar e misturar para construir uma obra toda sua ou seja seu julgamento Sua educaccedilatildeo seu trabalho e estudo visam tatildeo-somente a formaacute-lo (I 26 p227)

As Hipotiposes de Sexto nos Ensaiosde Montaigne

O ceticismo objetiva opor objetos sensiacuteveis e objetos do pensamento de maneira que nenhuma das explicaccedilotildees em conflito seja mais criacutevel do que outra Satildeo ceacuteticos aqueles que em uma investigaccedilatildeo

50 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo encontram resultado e persistem na busca Os que encontram o que procuram satildeo chamados de dogmaacuteticos e aqueles que confessam ser inapreensiacutevel satildeo chamados acadecircmicos Dois tipos de argumentaccedilatildeo satildeo usados pelos ceacuteticos a argumentaccedilatildeo geral que leva agrave suspensatildeo do juiacutezo e a especiacutefica que faz objeccedilotildees contra as diversas filosofias O princiacutepio baacutesico do ceticismo eacute de se opor cada explicaccedilatildeo com outra equivalente levando a um estado de repouso abandonando a atitude dogmaacutetica (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Uma noccedilatildeo importante eacute a de suspensatildeo do juiacutezo que permeia toda filosofia ceacutetica e constitui um fim pois eacute o resultado final da investigaccedilatildeo O estado de suspensatildeo do juiacutezo que em grego eacute epokhe eacute a impossibilidade de se afirmar ou de negar a explicaccedilatildeo da aparecircncia em razatildeo da argumentaccedilatildeo geral que opotildee a cada argumento com outro pelo princiacutepio baacutesico do ceticismo O ceacutetico diz o que lhe parece e relata o que sente de forma natildeo dogmaacutetica sem afirmar nada de positivo sobre o que existe na realidade externa O ceacutetico natildeo rejeita o aparente que satildeo as impressotildees sensiacuteveis mas a explicaccedilatildeo do aparente

O criteacuterio de accedilatildeo para o ceacutetico eacute a aparecircncia ou seja as impressotildees sensiacuteveis pois estas natildeo satildeo sujeitas ao questionamento pois satildeo sensaccedilotildees e afecccedilotildees involuntaacuterias As impressotildees sensiacuteveis satildeo o princiacutepio de nosso relacionamento com o mundo As ciecircncias naturais satildeo estudadas A loacutegica e a eacutetica satildeo auxiliares na medida em que aumentam a habilidade de fazer oposiccedilatildeo a qualquer explicaccedilatildeo Aderindo ao que aparece vivemos de acordo com as normas da vida

Montaigne e o legado ceacutetico 51

comum de modo natildeo dogmaacutetico Poreacutem natildeo podendo decidir diante da equumlipolecircncia das controveacutersias acerca da verdade ou falsidade das impressotildees o ceacutetico adota a suspensatildeo Isso pode nos remeter a analogia com o equiliacutebrio de forccedilas de um sistema em equiliacutebrio onde a cada forccedila existe outra de igual intensidade e direccedilatildeo poreacutem de sentido contraacuterio O resultado eacute a ineacutercia O argumento que daacute vantagem ao ceacutetico sobre o dogmaacutetico eacute ldquoaqueles que mantecircm a opiniatildeo de que uma coisa eacute naturalmente boa sentem-se aflitos quando natildeo a encontram e quando a tem apresentam um contentamento irracional e recear perdecirc-lardquo O ceacutetico natildeo determina serem as coisas naturalmente boas ou maacutes natildeo as evitam nem as buscam e por isso natildeo se perturbam (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a)

Observaremos que Montaigne nos Ensaios

retoma a tradiccedilatildeo ceacutetica da Antiguidade preservando-a ao mesmo tempo em que a reconstroacutei e lhe confere novo sentido dando origem a um ceticismo de ldquolinhagem radicalrdquo (EVA 2007 p 389) a partir de interrogaccedilotildees que natildeo cessam A visatildeo interrogativa de Montaigne eacute pirrocircnica ldquo[B] Essa visatildeo eacute expressa com mais clareza pela interrogaccedilatildeo lsquoQue sei eu rsquo tal como a trago de divisa numa balanccedilardquo (II 12 p 292) Haacute diferentes respostas para o problema da viabilidade do pirronismo mas concordamos com a ideia de relativa continuidade do pirronismo destacando a noccedilatildeo de fenocircmeno como eixo que marca essa continuidade (GAZINELLI 2009) Observa-se que Dioacutegenes Laeacutercio (2009) continua exercendo consideraacutevel influecircncia sobre a interpretaccedilatildeo do

52 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo com sua obra A vida de Pirro Ao discorrer sobre o pirronismo Laeacutercio considera-o o mais nobre filosofar por ter inventado em seu modo de vida os estados de akatalepsiacutea (inapreensibilidade das coisas) e de epokheacute(suspensatildeo de juiacutezo)

Sendo assim nada dizia ser nem belo nem feio nem justo nem injusto mas igualmente sobre todas as coisas afirmava nada ser em verdade mas todos os homens agirem segundo a convenccedilatildeo e o costume pois cada coisa natildeo eacute mais isso que aquilo (LAEacuteRCIO 2009 p 161)

Como viemos chamando a atenccedilatildeo Montaigne eacute leitor rigoroso de Sexto Empiacuterico um dos expoentes maacuteximos do ceticismo Do mesmo modo como afirmamos anteriormente lembremos que este diz ser princiacutepio pirrocircnico fundamental criar antinomias opondo razotildees contraacuterias para renovar o estado de epokheacute decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a verdade nas filosofias conflitantes (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Temos entatildeo a natildeo resoluccedilatildeo da diaphonia e por essa razatildeo o ceacutetico eacute lsquodo contrarsquo O tiacutetulo das obras de Sexto Empiacuterico daacute-nos uma ideia do caraacuteter destrutivo1 e ao mesmo tempo construtivo dessa filosofia

Observemos desse modo a centralidade que tem a palavra lsquocontrarsquo no legado de Sexto Contra os dogmaacuteticos (dividido em cinco livros Contra os loacutegicos I e II Contra os fiacutesicos I e II e Contra os eacuteticos) e Contra os professores (dividido em seis livros Contra os gramaacuteticos Contra os retoacutericos Contra os geocircmetras Contra os aritmeacuteticos Contra os astroacutelogos e Contra os muacutesicos) Acrescente-se

Montaigne e o legado ceacutetico 53

todavia que o escrito mais conhecido do lsquodivinorsquo Sexto satildeo as Hipotiposes Pirrocircnicas Esse livro comeccedila distinguindo a principal diferenccedila entre os sistemas filosoacuteficos em seguida o capiacutetulo III aborda a denominaccedilatildeo do ceticismo Sexto nesta obra posiciona-se contra o dogmatismo recorrendo aos argumentos das proacuteprias doutrinas contrapondo-os de maneira que se refutem uns aos outros e anulem-se O objetivo de tal esforccedilo eacute questionar a presunccedilatildeo da sabedoria e do conhecimento apontar as aporias controveacutersias e disputas em torno do que seria a verdade demolir pretensotildees acerca de criteacuterios para se alcanccedilar a verdade e em consequecircncia a sabedoria Inversamente ele tambeacutem ataca a posiccedilatildeo dos acadecircmicos no que tange agrave negaccedilatildeo radical da possibilidade do conhecimento visto que julga que isso constitui uma espeacutecie de dogmatismo negativo (SEXTO EMPIacuteRICO 2013)

De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores (MARCONDES 2007) Como natildeo eacute possiacutevel aqui nos adentrarmos em todos os conceitos ceacuteticos devido agrave sua centralidade fixemo-nos apenas na epokheacute A epokheacute eacute uma consequecircncia da incapacidade de decisatildeo racional a favor de um lado ou outro da

54 Eacutetica e filosofia poliacutetica

questatildeo Eacute uma atitude de natildeo aceitar nem negar determinada tese em virtude do igual peso das razotildees opostas Natildeo eacute a aplicaccedilatildeo da epokheacute que mostra a universal contradiccedilatildeo antes eacute a constataccedilatildeo da diaphonia das opiniotildees que leva agrave suspensatildeo ceacutetica do juiacutezo A suspensatildeo do juiacutezo por sua vez traz consigo a ataraxia ou a imperturbabilidade da alma A epokheacute ceacutetica leva-nos a um profundo respeito por tudo aquilo que eacute variaacutevel nas partes Esta valorizaccedilatildeo do variaacutevel e do diverso tem consequecircncias no domiacutenio poliacutetico

Na realidade o ceticismo penetrou especialmente no Renascimento a partir da disputa sobre o ldquopadratildeo corretordquo do conhecimento religioso o que era chamado de lsquoa regra da feacutersquo como reconhecer o verdadeiro criteacuterio Os protestantes negam a regra de feacute da Igreja e apresentam um criteacuterio de conhecimento religioso muito diferente Busca-se assim um criteacuterio de verdade e adentra-se nas dificuldades filosoacuteficas geradas por esse conflito como mostra Montaigne no mencionado texto Apologia a Raymond Sebond (II 12) Nesse ensaio o ponto culminante eacute a duacutevida total2 O valor da evidecircncia depende do criteacuterio e natildeo o contraacuterio Assim a anaacutelise da experiecircncia sensiacutevel base de todo conhecimento coloca o problema do criteacuterio Natildeo haacute criteacuterio com certeza ou fundamento confiaacutevel Desse modo na luta para estabelecer o verdadeiro criteacuterio da feacute uma postura ceacutetica surge dentre alguns pensadores porque o problema em questatildeo fora examinado por Sexto em Hipotiposes pirrocircnicas

Montaigne e o legado ceacutetico 55

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilatildeo enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes o forccedilamos a um regresso ad infinitum (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a p 163-165)

Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Lidamos apenas com o parecer e o que natildeo nos parece eacute ainda parecer Natildeo eacute possiacutevel ao ser humano ir aleacutem da aparecircncia em direccedilatildeo ao ser ldquoSegundo Pirro tem-se o puro parecer sem fundo segundo o ceticismo fenomecircnico tem-se o parecer contra o fundo de ser incognosciacutevel com a cisatildeo (natildeo pirroniana) do parecer e do ser segundo Montaigne tem-se o puro parecer aparentemente sem fundordquo (HUISMAN 2001 p 697) Natildeo se trata da verdade do ente como se algum sentido houvesse em expor o ente em sua verdade independentemente de um olhar A uacutenica verdade que o ser humano atinge natildeo eacute a de um sujeito ou de um objeto que se incline para um lado ou para o outro mas a verdade de um aspecto

56 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que natildeo eacute indissociaacutevel da apreensatildeo ou seja a verdade da aparecircncia verdade concreta visto que ele natildeo separa o olhar e o olhado o julgante e o julgado a verdade da aparecircncia os une correlaciona-os com um nexo interno A observaccedilatildeo de Montaigne se volta para o mundo e para a vida e seu juiacutezo pronuncia suas convicccedilotildees seguras marcadas por seu selo pessoal

Os filoacutesofos e moralistas doutrinais pretendem dizer o que eacute e mostrar como se deve viver para se conformar agraves leis de Deus ou da Natureza supostamente conhecidas ou ainda agrave vocaccedilatildeo do homem tal como a determinaria sua essecircncia ou seu lugar no universo Montaigne consciente da contingecircncia de seu pensamento expotildee convicccedilotildees a tiacutetulo pessoal por vezes com um vigor extremo ele natildeo daacute por cauccedilatildeo senatildeo a atitude que nesta exposiccedilatildeo se decifra como a marca de um selo e nela se confirma por reflexatildeo (TOURNON 2004 p 116)

O ensaiacutesta se opotildee ao mundo e adere ao mundo critica a poliacutetica e se insere na poliacutetica critica a razatildeo e recorre agrave razatildeo Starobinski (1992) refere-se ao movimento de oposiccedilatildeo ao mundo como recusa da mentira e da dissimulaccedilatildeo em Montaigne e talvez isso componha na verdade sua adesatildeo ao mundo como veracidade e plenitude satildeo faces do mesmo homem Ao denunciar os prestiacutegios do parecer Montaigne toma partido implicitamente pela plenitude sem equiacutevoco do ser verdadeiro Mas ele soacute o conhece pela forccedila da recusa que o faz considerar inaceitaacuteveis a mentira e a maacutescara Montaigne no instante em que se opotildee ao mundo

Montaigne e o legado ceacutetico 57

natildeo pode valer-se de nenhuma verdade possuiacuteda proclama apenas o seu oacutedio da lsquosimulaccedilatildeorsquo O verdadeiro eacute o positivo ainda desconhecido implicado pela negaccedilatildeo dirigida contra o mal pululante o verdadeiro natildeo tem fisionomia determinada eacute apenas a energia natildeo aplacada que anima e que arma o ato da recusa (STAROBINSKI 1992 p 15-16)

As Hipotiposes Pirrocircnicas reapresentam os principais argumentos do ceticismo antigo com toda a sua heranccedila demolidora em sua dimensatildeo epistemoloacutegica Como mostra Montaigne em vaacuterios de seus ensaios a impossibilidade de se estabelecer um criteacuterio de verdade indiscutiacutevel e para todos eacute fundamental na criacutetica ceacutetica aos partidos dos filoacutesofos Nesta direccedilatildeo retomemos os quatro primeiros tropos de Enesidemo que satildeo aqueles que nos dizem respeito a quem julga ou seja o sujeito que apreende o mundo mostrando dessa forma que nos precipitamos ao formular juiacutezos acerca da realidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000b) De acordo com Sexto Empiacuterico a filosofia ceacutetica eacute denominada zeteacutetica devido agrave sua atividade de investigar e indagar efeacutetica ou suspensiva devido ao estado produzido naquele que investiga apoacutes a sua busca e aporeacutetica ou dubitativa devido agrave sua indecisatildeo quanto agrave afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo e pirrocircnica a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores Sexto Empiacuterico escreve que os ceacuteticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco modos de suspensatildeo do juiacutezo o do desacordo o da regressatildeo ao infinito o da

58 Eacutetica e filosofia poliacutetica

relatividade o da hipoacutetese e o da circularidade (SEXTO EMPIacuteRICO 2000a) Sexto depois de explicar cada tropo conclui que como somos incapazes de estabelecer a verdade suspendemos o juiacutezo Saliente-se que a afinidade teoacuterica de Montaigne estaacute no fato de que os escritos de Sexto Empiacuterico satildeo dirigidos contra a defesa dogmaacutetica da pretensatildeo de conhecer a verdade absoluta tanto na moral como nas ciencias No autor natildeo haacute um fim absoluto a ser buscado Ainda que no capiacutetulo XII de Hipotiposes Sexto Empiacuterico diga que a finalidade do ceacutetico eacute a tranquilidade (ataraxia) em questotildees de opiniatildeo e a metriopathia (afecccedilotildees moderadas relativamente aos acontecimentos) (SEXTO EMPIgraveRICO) a rigor a busca da ataraxia mediante a aquisiccedilatildeo da verdade estaacute na sua preacute-histoacuteria dogmaacutetica ndash que se infiltra na sua natureza de ceacutetico enquanto ele eacute zeteacutetico isto eacute indagador buscador da verdade Poreacutem jaacute como ceacutetico que encontra a ataraxia ou seja que experimentou a tranquilidade pela equipolecircncia (isotheacuteneia) dos argumentos jaacute que ao produzir isostheacuteneia eacute levado agrave suspensatildeo do juiacutezo e vecirc acontecer a tranquilidade O ceacutetico constata o que se vecirc o que acontece constata as contradiccedilotildees das coisas constata que os argumentos contraacuterios satildeo equivalentes igualmente criacuteveis (isostheacuteneia) constata que natildeo pode decidir entre eles (epokheacute) constata que ao suspender a opiniatildeo sente-se tranquilo (ataraxia) E reitera esse caminho realista como uma espeacutecie de escada que depois eacute abandonada ou como um purgante que elimina tudo inclusive a si mesmo Se natildeo podemos acessar a verdade podemos evitar o erro suspendendo o juiacutezo (MAIA NETO 2012)

Montaigne e o legado ceacutetico 59

Conforme a traduccedilatildeo conhecida e muito utilizada de Danilo Marcondes (1997) nas Hipotiposes Pirrocircnicas (HP) I 8 encontramos

o ceticismo eacute a capacidade de colocar frente a frente [ou opor] umas com as outras da maneira que seja tanto as coisas que aparecem quanto as coisas inteligiacuteveis capacidade estaacute que devido agrave forccedila igual que haacute nas coisas e nos pensamentos opostos nos faz ter agrave suspensatildeo (epockeacute) e em seguida agrave tranquilidade (ataraxia)

Conforme o diagnoacutestico ceacutetico da diaphonia em que as diferentes filosofias se opotildeem e se equivalem na certeza da posse da verdade Tal como Montaigne reproduz na Apologia Sexto distingue os filoacutesofos dogmaacuteticos que tem a certeza da posse da verdade os filoacutesofos acadecircmicos que estatildeo certos da impossibilidade da verdade e os verdadeiramente ceacuteticos que natildeo se cansaram da busca Frente agrave equipolecircncia das filosofias o ceacutetico atinge o estado de epockeacute Nesta condiccedilatildeo soacute diz o que aparece mas natildeo como substacircncia ou essecircncia

No entanto natildeo haacute um ceticismo mas vaacuterias concepccedilotildees diferentes

Mesmo o que podemos considerar a lsquotradiccedilatildeo ceacuteticarsquo natildeo se constitui linearmente a partir de um momento inaugural ou da figura de um grande mestre tratando-se muito mais de uma tradiccedilatildeo reconstruiacuteda (MARCONDES 2007)

Sexto Empiacuterico nas Hipotiposes (I 1)

escreve

60 Eacutetica e filosofia poliacutetica

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra o objeto de sua busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser ele inapreensiacutevel ou ainda persiste na sua busca O mesmo ocorre com os objetos investigados pela filosofia e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os lsquodogmaacuteticosrsquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel sustentar que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica

As diferenciaccedilotildees entre acadecircmicos e pirrocircnicos satildeo muito controversas poreacutem natildeo esmiuccedilaremos este debate Poreacutem neste trabalho consideramos que quem de fato merece o nome de ceacuteticos satildeo os pirrocircnicos Os acadecircmicos tecircm uma posiccedilatildeo de dogmatismo negativo A posiccedilatildeo ceacutetica se caracteriza pela suspensatildeo do juiacutezo quanto agrave possiblidade ou natildeo de algo ser verdadeiro ou falso A epokheacute desse modo natildeo eacute uma decisatildeo preacutevia e sim uma consequecircncia que surge em oposiccedilatildeo aos dogmaacuteticos que enaltecem nossa capacidade racional De seu lado o pirrocircnico formula seu pensamento para enfraquecer as certezas dogmaacuteticas poreacutem natildeo almeja impor o seu pensamento natildeo elabora uma teoria indiscutiacutevel e afirmativa a respeito de algo nem pretende uma substancializaccedilatildeo Eacute este o sentido pelo qual o

Montaigne e o legado ceacutetico 61

ceticismo busca a cura para essa doenccedila que eacute a precipitaccedilatildeo dogmaacutetica o ceacutetico conforme Sexto Empiacuterico (HP I 16) natildeo assente a coisas natildeo-evidentes natildeo adota dogmas Mais a frente escreve (HP I 17) ldquopois noacutes seguimos um raciociacutenio determinado que nos mostra de acordo com a aparecircncia como viver segundo os costumes tradicionais as leis os modos de vida e nossas afecccedilotildees proacutepriasrdquo Como se pode concluir Sexto Empiacuterico resgata a vida a experiecircncia e o fenocircmeno natildeo pretendendo dogmatizar nossas impressotildees no momento em que formulamos juiacutezos visto que haacute profundas razotildees para duvidar de formulaccedilotildees deste tipo

Acompanhando a letra de Inague Juacutenior (2009)11 trataremos dos quatro primeiros tropos ou modos de Enesidemo Salienta-se aiacute a duacutevida de que as coisas natildeo se diferenciam entre si pois satildeo igualmente incertas e indiscerniacuteveis isto induz-nos epockeacute uma vez que a todo discurso pode se opor outro discurso igual de mesma forccedila persuasiva Estamos assim frente agrave manifestaccedilatildeo da equipolecircncia (isostheacuteneia) no que se refere agrave credibilidade dos argumentos conflitantes que sempre podem ser apresentados de um lado ou de outro da questatildeo (Sexto Empiacuterico HP I 10) sendo que ndash em razatildeo da equipolecircncia - nenhum deles revela-se indiscutiacutevel O ceacutetico natildeo nega a existecircncia do fenocircmeno e sim do que dizem dele Em HP I 40 temos o iniacutecio dessa exposiccedilatildeo

11 httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Cfr MARCONDES 2007

62 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o primeiro argumento (ou tropo) como dissemos eacute aquele que mostra que devido agraves diferenccedilas entre os animais as mesmas impressotildees natildeo satildeo produzidas pelas mesmas coisas Isto inferimos tanto das diferenccedilas quanto agrave geraccedilatildeo dos animais quanto da variedade de composiccedilatildeo de seus corpos

Do mesmo modo discursariacuteamos sobre o prazer e o desprazer pois o que nos agrada enquanto animais com certa constituiccedilatildeo poderia natildeo nos agradar se tiveacutessemos outra

Avanccedilando com Sexto acerca do segundo modo observemos a seguinte citaccedilatildeo de Sexto

O segundo modo eacute como haviacuteamos dito aquele baseado nas diferenccedilas entre os homens pois mesmo se admitimos por hipoacutetese que os homens satildeo mais dignos de creacutedito do que os animais irracionais verificaremos que mesmo nossas proacuteprias diferenccedilas por si mesmas levam agrave suspensatildeo Pois diz-se que o ser humano eacute composto de duas coisas alma e corpo [] Assim no que diz respeito ao corpo diferimos no que diz respeito ao nosso aspecto e no que diz respeito agraves nossas peculiaridades constitutivas (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 79)

Ocorre que tambeacutem na questatildeo da alma temos inuacutemeras teorias que se contradizem e se aniquilam ora se divergimos na nossa capacidade de formular juiacutezos natildeo eacute possiacutevel dizer a verdade Eacute esta a razatildeo pela qual o ceacutetico afirma que apenas podemos dizer aquilo que nos aparece e jamais a coisa em si Buscar a substancializaccedilatildeo eacute o mesmo que incorrer em precipitaccedilotildees e contradiccedilotildees

Montaigne e o legado ceacutetico 63

constantes (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 85) Assim a epokheacute eacute o resultado a que chega o ceacutetico

Na sequecircncia o terceiro modo de Enesidemo centra-se no individual considerando-se a constituiccedilatildeo corporal humana haacute contradiccedilotildees naquilo que os sentidos apreendem Logo soacute podemos falar daquilo que aparece e natildeo daquilo que eacute Jaacute o quarto modo da epockeacute volta-se para qualquer dos sentidos humanos O divino Sexto eacute descreve do seguinte modo

Este modo baseia-se como dizemos nas ldquocircunstacircnciasrdquo e com este termo queremos indicar condiccedilotildees ou disposiccedilotildees Este modo dizemos lida com estados que satildeo ou naturais ou natildeo-naturais tais como estar acordado ou estar dormindo com condicionamentos devido agrave idade ao movimento ou ao repouso ao amor ou ao oacutedio ao vazio ou ao preenchimento agrave embriaguez ou agrave sobriedade com predisposiccedilotildees tais como confianccedila ou medo sofrimento ou alegria (SEXTO EMPIacuteRICO HP I 100)

Por conseguinte diminui bastante as possibilidades de estabelecer um indiscutiacutevel criteacuterio de verdade seja em razatildeo das oposiccedilotildees entre as apreensotildees entre as distintas espeacutecies seja em razatildeo das contradiccedilotildees das apreensotildees entre os seres humanos e o conflito entre as apreensotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Daiacute temos as contradiccedilotildees das apreensotildees visto que as coisas nos atingem de muacuteltiplas formas a depender das diferenccedilas subjetivas que impossibilita a imparcialidade

64 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os julgamentos satildeo sempre fraacutegeis As circunstacircncias mencionadas acima remetem agrave necessidade de se ter uma preferecircncia por uma determinada circunstacircncia esta tomada como paracircmetro dos julgamentos Podemos pois tomar uma circunstacircncia ou impressatildeo como preferencial percorrendo dois caminhos (HP I 114-117)

Conforme Huisman (2002) eacute fundamental chamar a atenccedilatildeo para o fato de que a epockeacutepirrocircnica eacute mais radical que a epockeacutede Sexto Empiacuterico por uma pequena diferenccedila enquanto o criador do ceticismo recusou-se a definir os graus dos comportamentos dos homens visto que as existecircncias satildeo equivalentes e satildeo dirigidas pela experiecircncia Assim sendo haacute uma distacircncia que parece insuperaacutevel que acontece entre o ser e o parecer tal como entendia Pirro Montaigne escreve que o pensamento de Pirro

[] apresenta o homem nu e vazio reconhecendo sua fraqueza natural apropriado para receber do alto uma forccedila externa desguarnecido de ciecircncia humana e portanto mais apto para alojar em si a divina anulando seu proacuteprio julgamento a fim de dar mais espaccedilo para a feacute [C] nem descrendo [A] nem estabelecendo nenhum dogma contra as observacircncias comuns humilde obediente disciplinaacutevel zeloso inimigo jurado da heresia e consequentemente isentando-se das ideacuteias irreligiosas e vatildes introduzidas pelas falsas seitas (II 12 p 260)

Parece que o fenomenismo de Sexto se mostra formulado em termos bem dualiacutesticos o

Montaigne e o legado ceacutetico 65

fenocircmeno torna-se a impressatildeo ou alteraccedilatildeo sensiacutevel do sujeito e como tal eacute contraposto ao objeto agrave ldquocoisa externardquo ou seja agrave coisa que eacute diferente do sujeito sendo pressuposta como causa da alteraccedilatildeo sensiacutevel do proacuteprio sujeito Como mera alteraccedilatildeo do sujeito o fenocircmeno natildeo resume em si toda a realidade deixando fora de si o ldquoobjeto externordquo o que eacute declarado senatildeo como incognosciacutevel de direito pelo menos como natildeo conhecido de fato (REALE G amp ANTISERI 1990)

A proacutepria conduta do ceacutetico eacute de flutuaccedilatildeo no sentido de que natildeo haacute da parte dele uma verdade inquestionaacutevel a ser defendida como eacute caso dos dogmaacuteticos que com isso se precipitam e sofrem Claro que o ceacutetico estaacute tatildeo vulneraacutevel agraves necessidades quanto o dogmaacutetico todavia com a epokheacute e da posterior ataraxia ele natildeo sofre duas vezes numa mesma circunstacircncia e ao mesmo tempo como eacute o caso dos dogmaacuteticos ou seja pela necessidade mesma e pelos juiacutezos que formulam acerca dela (INAGUE JUacuteNIOR 2009) CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Sergio Cardoso escreveu que a produccedilatildeo acadecircmica atualmente no que se refere aos Ensaios de Montaigne eacute muito grande e que ela o consagra como filoacutesofo estudando suas abordagens em todas as disciplinas da filosofia da epistemologia agrave poliacutetica (CARDOSO 2017) especialmente no Brasil que eacute um dos paiacuteses que mais produziram dissertaccedilotildees e teses acerca do Ensaiacutesta Cardoso recomenda frequentar os Ensaios cujos contornos abissais natildeo

66 Eacutetica e filosofia poliacutetica

se datildeo agrave primeira vista numa visatildeo aparentemente placida ldquoEacute verdade que na superfiacutecie tranquila dos Ensaios natildeo se notam os abalos siacutesmicos sobre os quais deslizam suas aacuteguas claras Eacute preciso conviver com eles para alcanccedilar a dimensatildeo extraordinaacuteria destas rupturas promovidas pelo filoacutesofo (CARDOSO 2017 p 19)

Conforme Eva em lsquoMontaigne ceacuteticorsquo (2017) a libertaccedilatildeo dos princiacutepios universais dogmaacuteticos da religiatildeo e da metafiacutesica encontra fundamento nos argumentos dos ceacuteticos Mas este inteacuterprete apresenta em Montaigne um ceticismo existencial mais que epistemoloacutegico ou argumentativo bem como uma moralidade mais ativa e afirmativa que aquela da submissatildeo agraves sensaccedilotildees inclinaccedilotildees e costumes tal como sugere Pirro

Montaigne natildeo somente confere aos Ensaios a dimensatildeo subjetiva e provisoacuteria como tambeacutem se contrapotildee agraves noccedilotildees abstratas e geneacutericas e aponta a experiecircncia de si como o uacutenico saber capaz de orientar de alguma maneira nossas accedilotildees sempre singulares circunstanciadas e referidas a situaccedilotildees particulares Montaigne substitui a erudiccedilatildeo inflada as certezas pela experiecircncia buscando a observaccedilatildeo direta a anaacutelise e a criacutetica dos fatos Quando a razatildeo nos falta empregamos a experiecircncia De fato como vimos ao longo de nossa exposiccedilatildeo os escritos montaignianos abrem-se para vaacuterias possibilidades de articulaccedilatildeo porque natildeo se fecham a uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Eacute por essa razatildeo que Montaigne acompanhando Sexto opta pelo partido dos ceacuteticos para quem o julgador e o julgado estatildeo em contiacutenua mutaccedilatildeo e movimento (II 12)

Montaigne e o legado ceacutetico 67

Como assinalamos no transcorrer do texto Sexto se apresenta como um ceacutetico pirrocircnico e com este procedimento busca diferenciar sua filosofia do ceticismo acadecircmico Este ceticismo foi praticado pelos herdeiros de uma tradiccedilatildeo natildeo dogmaacutetica da Academia de Platatildeo do qual Ciacutecero foi testemunha Tambeacutem Santo Agostinho em sua fase ceacutetica passou pelo ceticismo acadecircmico e nos legou uma criacutetica a esta escola em sua obra Contra os Acadecircmicos Nesta obra a questatildeo debatida eacute a conexatildeo entre verdade e felicidade e divergindo dos acadecircmicos Santo Agostinho argumenta que a verdade pode ser conhecida e que inclusive a encontrou Montaigne incorpora a divisatildeo oferecida por Sexto Empiacuterico ndash e mencionada anteriormente - entre trecircs gecircneros baacutesicos de escolas de pensamento os dogmaacuteticos que argumentam saber algo com certeza e apresentam doutrinas explicaccedilotildees filosoacuteficas acerca do real os acadecircmicos que concluiacuteram que estatildeo seguros que a verdade natildeo pode ser encontrada efetivamente e por fim os verdadeiramente ceacuteticos skeptikon os que investigam porque julgam natildeo terem ainda chegado a uma conclusatildeo acerca do conhecimento da verdade Estamos nos referindo aos pirrocircnicos obviamente Os pirrocircnicos avaliam que todos os filoacutesofos tecircm limites sendo difiacutecil decidir qual eacute a verdadeira Desse modo eles permanecem em epokheacute mas perseveram incansavelmente em sua busca

Em seus estudos sempre argutos sobre Montaigne e o ceticismo Eva registra que os argumentos expostos por Sexto Empiacuterico ressurgem

68 Eacutetica e filosofia poliacutetica

quase todos nos Ensaios Em seguida este inteacuterprete daacute como exemplo o fato de que Sexto compara as percepccedilotildees humanas com aquelas que supostamente encontrariacuteamos nos animais com o intuito de argumentar que se pode tratar as representaccedilotildees humanas como verdadeiras uma vez que natildeo temos acesso a um criteacuterio para comparaacute-las Esta comparaccedilatildeo encontra-se na base daquela que Montaigne realiza na famosa Apologia a Raymond Sebond Outro exemplo dado pelo inteacuterprete Sexto Empiacuterico confronta a diversidade de costumes leis e normas de conduta entre os diferentes povos com o mesmo objetivo de impedir nossa presunccedilatildeo de acesso agrave verdade isto se aproxima bastante do debate que Montaigne elabora em II 12 no problema do acesso agraves leis naturais na moral REFEREcircNCIAS BIRCHAL Telma O eu nos Ensaios de Montaigne Belo Horizonte UFMG 2007 BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009 CARDOSO Seacutergio (org) Dossiecirc Ensaiar a proacutepria vida Montaigne filoacutesofo Revista Cult marccedilo de 2017) COMTE Jaimir O iniacutecio Sexto Empiacuterico e o ceticismo pirrocircnico Revista Cult 2015 EMPIacuteRICO Sexto Contra os retoacutericos Satildeo Paulo Unesp 2013 _______ Outlines of Pyrrhonism Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

Montaigne e o legado ceacutetico 69

_______ Against the logicians Trad para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000b _______ Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronica sn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010) EVA Luiz A A Figura do filoacutesofo ceticismo e subjetividade em Montaigne Satildeo Paulo Loyola 2007 LAEacuteRCIO Dioacutegenes A vida de Pirro Trad Gabriela G Gazinelli Satildeo Paulo Loyola 2009 LESSA Renato Uma histoacuteria da duacutevida uma resenha de A Histoacuteria do Ceticismo de Richard Popkin Rio de Janeiro Ediccedilatildeo Laboratoacuterio de Estudos Hum(e)anos ndash Online Setembro 2008) MAIA NETO Joseacute Raimundo Ceticismo e Poliacutetica em Montaignerevistaestudoshumeanoscomceticismo-e-politica-em-montaigne-por-jose-raimundo-12 de dez de 2012 MARCONDES Danilo Iniciaccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia Rio de Janeiro Zahar 2007 MONTAIGNE Michel de Os Ensaios Trad Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 2002 2006 (Coleccedilatildeo Paideacuteia) 3 v NOBRE Marcos REGO Joseacute Marcio Conversas com filoacutesofos brasileiros Satildeo Paulo Ed 34 2000 NAKAM Geacuteralde Montaigne et son temps Les eacuteveacutenements et les Essais lhistoire la vie le livre Paris Gallimard 1993

70 Eacutetica e filosofia poliacutetica

POPKIN Richard Histoacuteria do ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000 PORCHAT Oswald Sobre o que aparece Skeacutepsis Satildeo Paulo n 1 p 17 2007 _______ Vida comum e ceticismo Satildeo Paulo Brasiliense 1994 REALE G ANTISERI D Histoacuteria da Filosofia Antiguidade e Idade Meacutedia Vol I 3ordf Ediccedilatildeo Satildeo Paulo Paulus 1990 SMITH Pliacutenio Junqueira O meacutetodo ceacutetico da oposiccedilatildeo e as fantasias de Montaigne Kriterion vol53 no126 Belo Horizonte Dec 2012 STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Trad Maria Luacutecia Machado Satildeo Paulo Companhia da Letras 1992 VILLEY Pierre Les sources et lrsquoevolution des Essais de Montaigne Paris Hechette 1908 INAGUE JUacuteNIOR Marcelo Disponiacutevel em In httpprojetofilosofiablogspotcombr200907hipotiposes-pirronicashtml Acesso 14072009

= III =

AMIZADE EM MONTAIGNE

Junior Cesar Luna

31 INTRODUCcedilAtildeO

De iniacutecio eacute preciso lembrar que amizade surgiu

como questatildeo filosoacutefica desde a Antiguidade na ocasiatildeo em que o nuacutecleo da discussatildeo filosoacutefica abandona a reflexatildeo sobre o cosmos e adota o homem como objeto num ambiente cultural e poliacutetico que envolve seacuterios problemas12 e questionamentos morais na filosofia antiga Nesta conjuntura de discussatildeo das relaccedilotildees humanas no meio social insere-se a reflexatildeo sobre a amizade tema este discutido natildeo soacute por Aristoacuteteles na Greacutecia antiga13

Mestre em filosofia moderna e contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute 12 A leitura dos Diaacutelogos de Platatildeo Mecircnon Banquete e Fedro satildeo

relevantes para compreendermos o contexto histoacuterico em que se insere o problema e a relaccedilatildeo entre a filosofia de Platatildeo e Aristoacuteteles pois tratam de pontos essenciais da filosofia deste pensador e cruzam-se problemas fundamentais da existecircncia humana Em Fedro e Banquete Platatildeo estuda nos dois diaacutelogos a noccedilatildeo do amor onde se origina qual seu verdadeiro objeto como se situa e qual a funccedilatildeo Em Mecircnon notamos a formaccedilatildeo embrionaacuteria do sistema platocircnico Trata-se de saber se a virtude pode ou natildeo ser ensinada se existe ou natildeo ldquociecircnciardquo da virtude ou eacute um dom da natureza Identificamos a influecircncia sofista bem viva neste diaacutelogo Os sofistas antigos ensinaram que as ideias satildeo para os homens e natildeo os homens para as ideias Isso ocasionou uma grande crise na filosofia antiga envolvendo seacuterias questotildees morais e eacuteticas que se confundem na filosofia grega 13 Soacutecrates deu iniacutecio agraves discussotildees sobre a justiccedila a virtude e o amor entre os sofistas e Platatildeo e tambeacutem com Soacutecrates teve iniacutecio a reflexatildeo filosoacutefica sobre a amizade

72 Eacutetica e filosofia poliacutetica

como tambeacutem por outros contemporacircneos a ele com bastante representatividade na era heleniacutestica

No Renascimento Michel de Montaigne ao escrever sobre a amizade daacute ares de ter encontrado uma verdadeira amizade Em Da Amizade capiacutetulo 28 do primeiro livro dos Ensaios relatou toda a importacircncia de seu viacutenculo de amizade com Eacutetienne de La Boeacutetie Mas ao descrevecirc-lo diferiu dos conceitos jaacute estabelecidos pelos filoacutesofos claacutessicos e tambeacutem da maneira que os pensadores do seu tempo entendiam a amizade em seu conceito e extensatildeo aleacutem de trabalhar a questatildeo tambeacutem no acircmbito privado estritamente particular Isto fica evidente quando escreve acerca das possiblidades de utilizaccedilatildeo do termo amizade na sociedade Neste trabalho foram buscadas as questotildees eminentemente eacuteticas e filosoacuteficas em relaccedilatildeo agrave amizade perseguindo a sua possiacutevel definiccedilatildeo a instituiccedilatildeo de um caraacuteter normativo bem como a sua elevaccedilatildeo a uma possiacutevel universalidade Como se pode observar questotildees como estas trazem em seu bojo inextinguiacuteveis polecircmicas Inevitavelmente nossa apresentaccedilatildeo se insere no conjunto deste debate filosoacutefico Na realidade insere-se na constataccedilatildeo deste tema na histoacuteria da filosofia neste repique que parece natildeo ter fim isto acabou se constituindo em uma motivaccedilatildeo para continuarmos pensando a amizade como um problema filosoacutefico em Montaigne

Portanto este trabalho objetiva discutir nuclearmente a relaccedilatildeo de amizade entre Montaigne e La Boeacutetie o seu ldquoirmatildeo de alianccedilardquo A leitura dos Ensaios provoca uma indagaccedilatildeo Qual eacute o estatuto filosoacutefico da amizade Afinal este tema perpassa toda a histoacuteria da filosofia Observamos que o homem por si soacute eacute um ser social isso torna o assunto da amizade bastante pertinente e uma reflexatildeo sobre o mesmo eacute extremamente relevante

Amizade em Montaigne 73

Em Da amizade Montaigne interroga a natureza de diferentes laccedilos diversos que ligam os seres humanos entre si Basicamente para ser amigo eacute preciso ser amigo de si mesmo conforme iremos argumentar O ensaiacutesta acompanha a interpretaccedilatildeo dos antigos ateacute um certo ponto depois ele os abandona Na questatildeo da amizade Montaigne eacute leitor e criacutetico de Aristoacuteteles Ciacutecero e Epicuro porque a definiccedilatildeo de amizade dos antigos necessita de uma reinterpretaccedilatildeo para compreender a de Montaigne e La Boeacutetie Mas concorda que a amizade eacute o sentimento mais perfeito que pode existir nas relaccedilotildees humanas e argumenta que se trata de uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar A amizade tem com isso a dimensatildeo da sociabilizaccedilatildeo uma vez que olhar para o outro eacute ter a consciecircncia de que o homem eacute um ser social Em decorrecircncia este trabalho justifica-se na medida em que a investigaccedilatildeo revela a importacircncia de La Boeacutetie para o iniacutecio da empreitada de redaccedilatildeo dos Ensaios De fato a morte de La Boeacutetie causou um impacto profundo na alma de Montaigne que o levou a cair numa recordaccedilatildeo penosa que lhe fez muito mal como registra em seu Journal de voyage (MONTAIGNE 1962) Podemos especular os Ensaios teriam sido escritos se La Boeacutetie natildeo tivesse morrido Os Ensaios foram a forma de tornar presente o amigo ausente como escreve Silva (2014 p 24) Para esta investigaccedilatildeo recorremos aos inteacuterpretes dos Ensaios e a proacutepria obra evidentemente Como mostra o tiacutetulo desta apresentaccedilatildeo o assunto central eacute a questatildeo da amizade que se apresenta para Montaigne como um relevante problema filosoacutefico Iremos argumentar que em Montaigne a amizade eacute o lugar de um encontro de si pois a identidade do eu eacute afirmada por meio dela Assim a amizade eacute o lugar da experiecircncia de si ou seja natildeo eacute na solidatildeo ou na pura volta a si que Montaigne encontra a solidez de

74 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uma vida verdadeira a real existecircncia de si mesmo mas numa relaccedilatildeo singular e paradigmaacutetica com o outro

Trataremos das formas de amizade que eacute encontrada no ensaio Da Amizade Nesse sentido tem especial importacircncia a visatildeo de Aristoacuteteles sobre a justiccedila equidade e amizade tentaremos mostrar a leitura de Montaigne acerca do pensamento aristoteacutelico especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco que foi usada por Montaigne para fundamentar a questatildeo da equidade Apoiado em Aristoacuteteles Montaigne escreve que os bons legisladores se ocuparam mais da amizade que da justiccedila O problema da amizade eacute fundamental para o ensaiacutesta porque avalia que das relaccedilotildees humanas eacute a das mais lsquobelas e nobresrsquo

Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma14

Montaigne distingue a amizade da relaccedilatildeo entre

irmatildeos pois os familiares natildeo satildeo livres escolhas de afeiccedilatildeo como o eacute uma verdadeira amizade O amor pelos pais tambeacutem natildeo eacute amizade uma vez que natildeo eacute uma relaccedilatildeo horizontal E com as mulheres que amamos eacute possiacutevel amizade desse tipo Montaigne salienta que se fosse possiacutevel a amizade desse tipo com quem gozamos as deliacutecias do corpo essa seria perfeita e total Do mesmo modo tratar-se-aacute da questatildeo asseverada por Ciacutecero acerca do valor da amizade de modo particular quando este afirma que haacute amizades profundas e refinadas amizades comuns e superficiais

Observamos que de Epicuro Montaigne retomaraacute a discussatildeo da utilidade da amizade Apresentar-se-aacute as

14 I 28 p 275

Amizade em Montaigne 75

exigecircncias e condiccedilotildees apresentadas por Montaigne para o desenvolvimento de uma verdadeira amizade Argumentaremos que a amizade eacute para Montaigne uma relaccedilatildeo consigo mesmo na qual o outro nos revela a noacutes mesmos como uma espeacutecie de espelhamento Trataremos da gecircnese da amizade de Montaigne com La Boeacutetie porque para Montaigne isso tem implicaccedilotildees filosoacuteficas da mais alta importacircncia mostraremos assim que os desapontamentos com a magistratura soacute natildeo satildeo maiores devido as ocorrecircncias particulares que o levaram ao encontro de Eacutetienne de La Boeacutetie em um evento festivo da cidade de Bordeaux quando este pertencia ao parlamento desde 1554 O Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria de La Boeacutetie ldquoserviu de intermediaacuterio para o nosso primeiro contatordquo15 entre os amigos e de pronto abriu caminho para uma beliacutessima e intensa amizade pois era notoacuteria uma afinidade de pensamento que teve grande contribuiccedilatildeo para a singularidade deste viacutenculo Desse modo abrindo espaccedilo para o contraditoacuterio trataremos de mostrar a diversidade de definiccedilotildees no que tange ao problema da amizade refletida por numerosos pensadores poreacutem aqui abordaremos apenas os que consideramos mais relevantes para esta apresentaccedilatildeo

32 TEMA DA AMIZADE EM MONTAIGNE

Starobinski (1993) mostra o desenvolvimento do

conceito de amizade em Montaigne explicando que este conceito o acompanha e o motiva no iniacutecio de seu retiro (que natildeo eacute o de um ermitatildeo mas sim o de um observador atento da sociedade) para a redaccedilatildeo dos Ensaios obra da vida de Montaigne que se dedicou a ela por cerca de vinte anos Essa obra expressa uma tentativa de conhecimento do fluxo do instante que passa e de se

15 I 28 p 232

76 Eacutetica e filosofia poliacutetica

deixar conhecer por seus parentes e amigos (ou lsquoao leitorrsquo conforme afirma) mostrando todavia que o uacutenico que lhe conhecia por completo Eacutetienne de La Boeacutetie (o fiel amigo ausente desde sua morte em 1563) o acompanha sempre em seus pensamentos como um guardiatildeo da sua mais pura imagem

Ele (La Boeacutetie) era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1993 p 45)

Em seguida Starobinski indica o movimento

montaigniano para construccedilatildeo de uma amizade equitativa virtuosa e indivisiacutevel que foi experimentada pelo proacuteprio ensaiacutesta em uma vivecircncia intensa com La Boeacutetie Nessa direccedilatildeo Starobinski escreve sobre a importante contribuiccedilatildeo da leitura dos claacutessicos antigos para definiccedilatildeo de amizade em Montaigne uma vez que o ensaiacutesta se utiliza dos antigos para abrilhantar o aspecto exemplar e inigualaacutevel de sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie descrevendo caracteriacutesticas de sua amizade que soacute pode ser vivida por homens como ldquoraridaderdquo e que saibam viver com reciprocidade como escolha profunda Aleacutem disso esse tipo de amizade implica numa alienaccedilatildeo16 voluntaacuteria da vontade de ambas as partes ao ponto de suas almas unirem-se de tal forma que natildeo haja mais uma linha divisoacuteria entre elas torna-se uma alma em dois corpos

Uma breve anaacutelise do Da Amizade aponta algumas destas caracteriacutesticas descritas por Montaigne salientando a importacircncia de um amigo que aparece como ponto central da apresentaccedilatildeo do capiacutetulo sobretudo pelo fato de que eacute dedicado agrave memoacuteria de

16 Registre-se poreacutem que a palavra lsquoalienaccedilatildeorsquo natildeo eacute usada por Montaigne (CONCEICAtildeO 2014 p 163)

Amizade em Montaigne 77

Eacutetienne de La Boeacutetie Na realidade trata-se de uma curta poreacutem intensa amizade que se estabeleceu entre ambos A falta deste amigo deixa um grande vazio visto que estaacute ausente agora aquele que lhe revelava a sua imagem Provavelmente eacute a ausecircncia do amigo que o impele a escrever na tentativa de recuperar a sua imagem que a morte do amigo levou consigo

A amizade ocupa um lugar central tanto na obra quanto na vida de Montaigne A concepccedilatildeo montaigniana da amizade eacute inseparaacutevel da memoacuteria da existecircncia de La Boeacutetie por isso estaacutevamos argumentando que ele se afasta da concepccedilatildeo claacutessico-renascentista pois para ele escrever sobre a amizade era escrever sobre si mesmo era um autoconhecimento da singularidade

Na amizade que de fato falo elas se mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniu se me pressionarem para dizer por que o amava sinto que isso soacute pode ser expresso [C] respondendo ldquoporque era ele porque era eurdquo (I 28 p 281)

O fato de todo o capitulo 28 ser uma homenagem

e uma reflexatildeo sobre La Boeacutetie jaacute sugere o quanto eacute difiacutecil a tarefa de precisar conceitualmente algo como lsquouma concepccedilatildeo montaignianarsquo acerca da amizade Todavia uma coisa eacute clara a amizade em que Montaigne e La Boeacutetie haviam compartilhado caracteriza-se pela fusatildeo perfeita com que se interligam os amigos Haacute algo de miacutestico na amizade ideal uma espeacutecie de transcendecircncia muacutetua por meio da qual se perdem e se confundem as almas dos companheiros

Pois essa amizade perfeita de que falo eacute indivisiacutevel cada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhe resta para distribuir alhures ao contraacuterio ele se aborrece por natildeo ser duplo triplo ou quaacutedruplo e por

78 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo ter vaacuterias almas e vaacuterias vontades para entregaacute-las todas a esse objeto (I28 p 285)

Claramente nota-se que a amizade para

Montaigne tem um aspecto interessante ela aponta para o amor equitativo vinculado agrave justiccedila e agrave igualdade inspirado em Aristoacuteteles De fato esta ideia eacute apontada no pensamento do Estagirita17 especialmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco para fundamentar a noccedilatildeo de equidade Quando somadas igualdade e justiccedila ao sentimento de amizade como resultado temos a amizade equitativa Esta amizade eacute fruto da reciprocidade dos amigos pois tem em vista a igualdade em porccedilotildees idecircnticas de um para com o outro Dessa maneira esta reflexatildeo aristoteacutelica eacute contemporacircnea a Montaigne de maneira que se apoia na noccedilatildeo de teacuteleia philia para que ocorra segundo Seacutergio Cardoso uma decifraccedilatildeo laboriosa da alianccedila que unira [Montaigne] a La Boeacutetie (CARDOSO 1987) Quando Montaigne se refere ao amigo La Boeacutetie afirma que ele e seu amigo se procuravam antes mesmo de se terem visto de modo que nascia neles uma afeiccedilatildeo com raiacutezes profundas E mais uma amizade desproporcional agravequilo que eacute relatado porque tem algo de indiziacutevel Assim ele compara a afeiccedilatildeo por seu amigo com um decreto de Providecircncia

procuraacutevamos antes mesmo de termos conhecido e por informaccedilotildees que ouviacuteamos um sobre o outro e que faziam em nossa afeiccedilatildeo mais efeito do que a razatildeo atribui agrave informaccedilatildeo creio que por alguma ordem do ceacuteu abraccedilaacutevamo-nos por nossos nomes18 (I28 p 281)

17 Aristoacuteteles eacute frequentemente referido como lsquoo Estagiritarsquo (ou ldquoo Filoacutesoforsquo) Isso se daacute pelo fato de que Estagira eacute o nome da cidade conhecida por ser onde nasceu Aristoacuteteles 18 Na traduccedilatildeo da Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo de 1984 ldquoNoacutes nos procuraacutevamos antes de nos termos visto e nascia em noacutes uma

Amizade em Montaigne 79

Com efeito a amizade eacute uma afeiccedilatildeo incomensuraacutevel porque ela eacute a maior afeiccedilatildeo a que o homem pode aspirar O decreto da providecircncia se equipara agrave amizade agrave medida que considera as disposiccedilotildees ou medidas proacuteprias para alcanccedilar um fim no caso o nascimento desproporcional da afeiccedilatildeo Pode-se afirmar ainda que a Providecircncia ou ordem do ceacuteu corresponde a um acontecimento feliz ldquoSe as accedilotildees de ambos se desencontrassem eles natildeo seriam nem amigos um do outro segundo minha medida nem amigos de si mesmordquo (I 28 p 283)

Montaigne observa na obra de Ciacutecero uma narrativa do pensamento de Quiacutelon a respeito de amar como se pudesse vir a odiar Estes sentimentos extremos satildeo o que de fato compotildeem a vida Assim o filoacutesofo percebe pertinecircncia nos escritos de Ciacutecero o qual aponta que cautela e prudecircncia satildeo imprescindiacuteveis na escolha dos amigos para que natildeo se ame algueacutem que mais tarde venha a odiar Para tanto alerta para natildeo as confundir as amizades corriqueiras com a sua e a de La Boeacutetie

[B] mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p 283)

Para Montaigne na alma se encontra o desejo de

se unir ao outro para que encontre sua plena realizaccedilatildeo Sobretudo com os acontecimentos de sua vida tais como a morte do pai e do amigo o ensaiacutesta eacute levado a pensar em uma descontinuidade entre alma e corpo No bojo de sua reflexatildeo e nessa descontinuidade entre alma e corpo o autor faz o exerciacutecio da epocheacute suspensatildeo do juiacutezo Refletir significa um retorno aos acontecimentos e

afeiccedilatildeo em verdade fora de proporccedilotildees com o que nos era relatado no que vejo como que um decreto da Providecircnciardquo (I 28 p 94)

80 Eacutetica e filosofia poliacutetica

experiecircncias marcantes que natildeo podem ser apagados da memoacuteria de Montaigne Escrever representa deixar viva na histoacuteria sua experiecircncia de vida marcada pelos sentimentos de dor e de alegria Aleacutem do mais significa ainda presentificar a amizade de maneira que a entrega ao outro eacute assinalada pelos ensaios para natildeo se perder a parte que ainda resta da imagem de La Boeacutetie visto que como assinalamos ele escreve para que a imagem do amigo natildeo se perca neste fluxo constante que tudo arrasta

Na amizade se unem as vontades porque ambos buscam a mesma finalidade o bem ao outro numa fusatildeo verdadeiramente perfeita Assim forma-se uma amizade indivisiacutevel Por essa razatildeo natildeo eacute possiacutevel uma multiplicidade de amigos conforme aponta Seacutergio Cardoso

Se o amigo deseja o que seu amigo deseja se eacute tatildeo seguro da vontade do amigo como da sua proacutepria a hipoacutetese da multiplicidade dos amigos compromete a unidade da proacutepria vontade justamente a grande daacutediva da amizade (CARDOSO 1987 p 184)

Montaigne e La Boeacutetie adotam a mesma postura e

detestam a servidatildeo dos cidadatildeos ao tirano inclusive La Boeacutetie vecirc a amizade como uma saiacuteda possiacutevel de oposiccedilatildeo agrave tirania Poreacutem Montaigne quando apresenta a possibilidade de utilizar o termo amizade na sociedade natildeo sugere associaacute-la agrave lsquoamizade perfeitarsquo Prefere com isso denominar amizade verdadeiramente apenas sua forma perfeita relativa ao nome

A partir disso o ensaiacutesta pensa o conceito da amizade indivisiacutevel para apontar a uniatildeo das vontades bem como a distinccedilatildeo para com as amizades corriqueiras e opacas que acentuam o bem particular ou privado o utilitarismo e o bem familiar Epicuro registra em suas Sentenccedilas Principais que de todas as coisas que a sabedoria nos oferece para a felicidade da vida a maior eacute

Amizade em Montaigne 81

a amizade De acordo com ele a amizade ainda que natildeo nos livre das dores do corpo e da alma nos auxilia a suportaacute-las Como eacute sabido Epicuro julga que o mais alto prazer reside no que chama de sauacutede Entre os prazeres elege a amizade Por isso o conviacutevio entre os estudiosos de sua doutrina era tatildeo importante a ponto de viverem em uma comunidade nominada de ldquoO Jardimrdquo Portanto de todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida a maior eacute a aquisiccedilatildeo da amizade

Constatamos em nossa pesquisa que Montaigne diverge de Aristoacuteteles quanto agrave origem da amizade poreacutem recorre ao Estagirita para fundamentar a ideia de amizade como amor equitativo ligado agrave concepccedilatildeo de justiccedila19 e igualdade Como vimos anteriormente em tais definiccedilotildees no pensamento de Aristoacuteteles o igual eacute definido pelo termo grego isoacutetes igualdade que eacute correspondente agrave justa medida Mas a principal divergecircncia com Aristoacuteteles eacute expressa por Montaigne quando se refere agrave ldquoorigemrdquo da relaccedilatildeo entre amigos Montaigne afirma que a origem da amizade natildeo se encontra na bondade ou na virtude dos sujeitos mas sim em si mesmo ou seja eacute imanente agrave proacutepria relaccedilatildeo20

Se Montaigne parte como indicamos anteriormente da acepccedilatildeo mais abrangente da palavra amizade ndash cujo contexto acabamos de assinalar ndash eacute no entanto apenas com uma intenccedilatildeo purgativa e criacutetica Pois na verdade a primeira parte de seu texto examinando a tipologia tradicional das formas associativas opera uma reduccedilatildeo tatildeo draacutestica na extensatildeo do conceito que solapa profundamente natildeo soacute as elaboraccedilotildees

19 Vale lembrar que segundo Aristoacuteteles o dikaion justo eacute definido como o isos igual isto eacute uma posiccedilatildeo que recomenda a si mesma a todos sem necessidade de evidecircncia Haja vista que o igual eacute uma mediania de modo que o justo tambeacutem eacute uma espeacutecie de mediania (SILVA 2014 p 99) 20 CARDOSO 1986 p 172

82 Eacutetica e filosofia poliacutetica

humanistas de seu tempo mas tambeacutem a ldquoopiniatildeo dos antigosrdquo (CARDOSO 1986 p 169)

Portanto a posiccedilatildeo de Montaigne eacute divergente do

que afirma Aristoacuteteles

[] A amizade perfeita eacute a existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de excelecircncia moral neste caso cada uma das pessoas quer bem agrave outra de maneira idecircntica porque a outra pessoa eacute boa e elas satildeo boas em si mesmas Entatildeo as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles satildeo amigas no sentido mais amplo pois querem bem por causa da proacutepria natureza dos amigos e natildeo por acidente [] (EN VIII 3 p 176)

Podemos entender entatildeo que ao se referir agrave

amizade Montaigne restringe radicalmente seu significado quanto as outras formas de amizade existentes diferentemente daquelas que os antigos fazem referecircncias tradicionais O ensaiacutesta julga que elas apenas se assemelham com a amizade mas de fato natildeo satildeo Diante desta anaacutelise cabe expor algumas formas de amizade que Montaigne analisa e comenta ora tecendo duras criacuteticas ora concordando parcialmente

Em primeiro lugar vejamos a amizade que tem por motivaccedilatildeo o viacutenculo familiar Existe limitaccedilotildees que impedem familiares de se tornarem amigos A criacutetica montaigniana tem como objetivo atingir e destruir a noccedilatildeo de amizade utilizada para identificar relaccedilotildees de viacutenculo comum devido a sua semelhanccedila entre as relaccedilotildees de viacutenculo natural matrimonial camaradagem e social Ao mostrar essas divergecircncias dentro do conceito de amizade ele natildeo pretende criar um novo designo mas sim reservar o termo para nominar apenas o mais puro viacutenculo entre os homens dentro de uma sociedade Da mesma forma natildeo eacute de seu interesse criar um tratado sobre o tema objetivando sanar as divergecircncias entre as

Amizade em Montaigne 83

definiccedilotildees tatildeo pouco apresentar o caraacuteter normativo da amizade bem como a possibilidade de sua universalizaccedilatildeo Isto natildeo compotildee qualquer pretensatildeo de Montaigne

Ora Montaigne seguindo os passos de Aristoacuteteles natildeo discorda que o homem seja um animal social ao contraacuterio nesta mesma direccedilatildeo reforccedila escrevendo nos ensaios

Natildeo haacute algo a que a natureza pareccedila nos ter encaminhado tanto como para a sociedade E diz Aristoacuteteles que os bons legisladores ocuparam-se mais da amizade que da justiccedila Ora este eacute o uacuteltimo ponto de sua perfeiccedilatildeo Pois em geral todas as que a voluacutepia ou o proveito as necessidades puacuteblicas ou privadas engendram e alimentam satildeo menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam agrave amizade outra causa e objetivo e fruto que natildeo ela mesma (I 28 275)

Para Montaigne se o homem deseja viver

adequadamente precisa ter amigos pois isto estaacute de acordo com as leis da natureza Assim afirma Sergio Cardoso dizendo que

O amigo nos espelha e nos identifica Por isso talvez Aristoacuteteles ndash que Montaigne acompanha de perto ndash tenha dito na abertura de sua grande dissertaccedilatildeo sobre a amizade que ela ldquoeacute o que haacute de mais necessaacuterio para viver (CARDOSO 1986 p 162)

A amizade seria entatildeo o ldquoviacutenculo social por

excelecircncia pois ela faz do viver em comum uma escolha e natildeo uma necessidaderdquo como apontou Labarriegravere (2003)21 Ainda no mesmo sentido o ensaiacutesta visa extrair

21 LABARRIEgraveRE Jean-Louis Aristoacuteteles verbete inserto In Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral organizado por CANTO-

SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e Filosofia Moral trad Ana

84 Eacutetica e filosofia poliacutetica

elementos que permitem um entendimento maior dos viacutenculos naturais de relaccedilatildeo do homem Poreacutem diferente de Aristoacuteteles que pontua a amizade no terreno da natureza (ou seja a amizade eacute natural ao ser humano) Montaigne observa que a amizade estaacute no campo da eacutetica das escolhas portanto natildeo estaacute determinado e esclarece sua diferenccedila frente aos laccedilos familiares

Na questatildeo da amizade Montaigne concorda com os filoacutesofos Aristipo22 e Plutarco23 (que o ensaiacutesta tanto admira) quando desconsideram as relaccedilotildees familiares Montaigne eacute fulminante quando afirma que a famiacutelia natildeo promove a amizade tal como ele a concebe Principalmente pela hipoacutetese da plenitude da virtude hiacuteperocheacute24 ou seja a famiacutelia natildeo permite as relaccedilotildees de amizade devida a diferenccedila existente entre seus membros A exemplo disto toma a relaccedilatildeo entre pai e filho afirmando que jamais um pai poderia ser amigo de seu filho a reciacuteproca tambeacutem eacute verdadeira jamais um filho poderia ser amigo de seu pai O que impossibilitaria o desenvolvimento desta relaccedilatildeo De acordo com Montaigne eacute em razatildeo do lsquorespeitorsquo que pais e filhos natildeo podem ser amigos visto que devido a sua posiccedilatildeo de desigualdade os filhos natildeo podem dirigir duras advertecircncias a seu pai como devem sempre fazer ao amigo Assim tendo que as suprimir falharia com a fidelidade a seu amigo Portanto amizade se restringe a este tipo de viacutenculo de modo que entre pais e filhos natildeo existe amizade de que fala nosso autor

Maria Ribeiro-Althoff et alii vol 1 Rio Grande do Sul Editora Unisinos 2003 p 123 22 435 a 356 aC filoacutesofo grego fundador da escola cirenaica que defende o controle sobre o prazer afirmando que o prazer eacute o que daacute sentido agrave vida 23 46 a 126 dC filoacutesofo e historiador grego do periacuteodo greco-romano foi muito influente na cultura ocidental 24 Superioridade respeito consideraccedilatildeo e estima que constituem a famiacutelia

Amizade em Montaigne 85

O princiacutepio do respeito impede a relaccedilatildeo amical entre pai e filho devido ao niacutevel hieraacuterquico dentro da famiacutelia Assim o filho deve se espelhar em seu pai tendo como orientaccedilatildeo a noccedilatildeo de mimesis25 Sobre a questatildeo da relaccedilatildeo de amizade entre pais e filhos Montaigne segue Aristoacuteteles de perto (CARDOSO 1986 p 176) no que diz respeito ao problema da voluntariedade pois os familiares tecircm o mesmo sangue como se fosse um outro ldquoeurdquo desta forma natildeo existe a possiblidade da escolha nestas relaccedilotildees Isto implica em outra limitaccedilatildeo para a amizade entre famiacutelia Natildeo existe amizade de caraacuteter involuntaacuterio ou seja um amigo escolhe o outro e vice-versa voluntariamente livre de obrigaccedilotildees preacute-concebidas

Vale a pena lembrar que foi a pedido de seu pai que Montaigne traduziu a Theacuteologie naturelle de Raymond Sebond publicada em 1487 assim fez para natildeo o desagradar deixando perceptiacutevel seu afeto respeitoso Em que pese o carinho a admiraccedilatildeo e o respeito pela figura paterna o pai de Montaigne natildeo era seu amigo porque natildeo poderia secirc-lo Exatamente porque como jaacute chamamos a atenccedilatildeo a amizade ao contraacuterio do ambiente familiar tem uma conotaccedilatildeo espontacircnea que compreende as duas vontades que se fundem numa soacute Por maior que fosse a afeiccedilatildeo para com seu pai natildeo existiam elementos fundamentais do viacutenculo de amizade Esta eacute arquitetada pela abertura muacutetua sem nenhum tipo de ressentimento ou receio que englobe uma relaccedilatildeo de verticalidade como eacute o caso do respeito de filho Horizontalidade na amizade implica em que um confie no outro de maneira reciacuteproca e juntos onde por meio do diaacutelogo constituam os elementos que compotildeem os seus deveres muacutetuos da amizade tais como os da correccedilatildeo e da troca de experiecircncias Ou numa palavra amor muacutetuo

25 A arte de imitar termo grego

86 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Desse modo eacute o diaacutelogo que sustenta a amizade

e permite a consciecircncia da vontade do outro a comunicaccedilatildeo eacute fundamental para a composiccedilatildeo do viacutenculo de amizade26 pois ela eacute quem alimenta e fornece subsiacutedios para o fortalecimento deste viacutenculo amical sendo que ao dialogar discute-se ideias apresenta-se ao outro aquilo que sente em seu interior sem reservas ou receio livre de constrangimento tendo por objetivo ser entendido pelo outro Dentro da famiacutelia isso seria impossiacutevel aliaacutes quantas vezes pais se tornam opressores de ideias natildeo permitindo que os filhos expressem o que pensam dos atos por eles cometidos O respeito na verticalidade impede uma intimidade acentuada entre os membros da famiacutelia e os torna inconveniente Obviamente nos referimos agrave verticalidade e agrave horizontalidade de relaccedilotildees no sentido de procurar distinguir de que tipo de respeito estamos falando Quando Montaigne refere-se ao lsquorespeito pelo pairsquo como uma dificuldade para a amizade natildeo eacute que natildeo deva haver respeito em todas as relaccedilotildees humanas Ocorre apenas que Montaigne chama a nossa atenccedilatildeo pelo fato de que o respeito que se tem pelo pai eacute diferente daquele que se tem pelo amigo

A comunicaccedilatildeo sincera eacute uma das primeiras incumbecircncias da amizade o aconselhamento eacute o caminho aberto entre as pessoas para se advertir dar avisos formular censuras visando sempre o crescimento muacutetuo bem como o estreitamento do viacutenculo Como o amigo eacute aquele capaz de advertir Montaigne chama a atenccedilatildeo para as relaccedilotildees que alguns chamam de amizade poreacutem satildeo carregadas de palavras suaves superficiais elogios exagerados e benevolecircncias banais Montaigne estaacute afinado com Ciacutecero quando este escreve

Portanto advertir e ser advertido eacute proacuteprio da amizade verdadeira desde que isso seja feito com franqueza e

26 A amizade alimenta-se de comunicaccedilatildeo (I 28 276)

Amizade em Montaigne 87

afabilidade e recebido com paciecircncia e sem ressentimento Estejamos persuadidos de que na amizade nada eacute pior que a adulaccedilatildeo a lisonja a bajulaccedilatildeo sim podemos multiplicar os nomes como quisermos mas eacute preciso condenar o viacutecio dessas criaturas friacutevolas e falazes que sempre falam para agradar nunca para dizer a verdade (CIacuteCERO 2012 p 75)

As pessoas incapazes de dizer a verdade natildeo

estatildeo propensas a bons relacionamentos estas tecircm como objetivo o interesse pessoal e o proacuteprio prazer vivem camufladas pautadas na individualidade de seus interesses Ciacutecero adverte ainda formulando a primeira lei da amizade afirmando que o amigo deve ser prudente usar francamente sua opiniatildeo repreender com severidade quando necessaacuterio e que seja capaz de obedecer agraves orientaccedilotildees do outro com paciecircncia e sem ressentimento

Retomemos que haacute uma outra criacutetica montaigniana a respeito da amizade entre familiares a que tem por foco os irmatildeos Tambeacutem nesta situaccedilatildeo o obstaacuteculo eacute o mesmo que a dos pais para com os filhos a condiccedilatildeo de desigualdade e a falta de escolha entre os sujeitos Ningueacutem escolhe os proacuteprios irmatildeos Para tanto faz como se fossem suas as palavras de Aristipo e Plutarco quando

ldquopressionado sobre a afeiccedilatildeo que devia a seus filhos por terem saiacutedo dele pocircs-se a cuspir dizendo que aquilo tambeacutem saiacutera delerdquo e Plutarco que queria induzir a entender-se bem com o irmatildeo respondeu que lsquonatildeo tinha maior consideraccedilatildeo por ele soacute porque saiu do mesmo buracorsquo (I 28 276)

Montaigne argumenta que aquilo ao qual se daacute o

nome de lsquoamizadersquo e de lsquoamigorsquo verdadeiramente natildeo merece tal nome quando se trata de ligaccedilotildees familiares O ensaiacutesta parece entender que existe uma divergecircncia

88 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na concepccedilatildeo de viacutenculo familiar e de amizade pois amizade desempenha um papel diferente da famiacutelia na sociedade Afinal procuramos mostrar que conforme Montaigne a desigualdade entre os familiares bem como o respeito e a impossibilidade de escolha inviabilizam a amizade com viacutenculo familiar visto que impotildee limites aos quais a amizade natildeo suporta Acrescenta Birchal

Em relaccedilatildeo aos viacutenculos naturais como os laccedilos de paternidade e filiaccedilatildeo a amizade eacute superior pois escolhida (e natildeo determinada pela natureza) e fundada numa igualdade (ao contraacuterio da hierarquia entre pai e filho que impede a plena comunicaccedilatildeo) (BIRCHAL 2000 p 292)

Em prosseguimento Michel de Montaigne natildeo

deixa de observar que tambeacutem se associa a amizade no casamento ou na relaccedilatildeo existente entre um homem e uma mulher Disso Montaigne discorda uma vez que para ele o amor conjugal de um casal natildeo pode ser entendido como relaccedilatildeo de amizade Conclui que o marido natildeo eacute amigo de sua mulher Acompanhando Aristoacuteteles Montaigne faz questatildeo de distinguir a amizade daquele sentimento passional que existe para com as mulheres Ainda que reconheccedila que a escolha por uma mulher e natildeo por outra seja proveniente do livre arbiacutetrio (diferente do caso de irmatildeos) a paixatildeo eacute um sentimento arriscado inconstante e fraacutegil Se o marido se tornar um amigo da esposa a relaccedilatildeo corporal apaixonada esfria Nesta questatildeo continuemos a seguir Montaigne em sua escrita sobre o valor da amizade

Na amizade eacute um calor geral e universal temperado e uniforme em tudo um calor constante e sereno todo doccedilura e gentileza que nada tem de rude e pungente Tatildeo logo entra nos termos da amizade isto eacute na concordacircncia das vontades o amor se dissipa ou se enfraquece A fruiccedilatildeo arruiacutena-o pois sua meta eacute corporal e sujeita agrave saciedade A amizade ao contraacuterio

Amizade em Montaigne 89

eacute desfrutada na medida em que eacute desejada e apenas na fruiccedilatildeo se cria se alimenta e cresce porque eacute espiritual e a alma se aprimora com o uso (I 28 277278)

Acrescenta Montaigne que sobre a amizade no

relacionamento conjugal vale a pena observar que o caraacuteter voluntaacuterio se extingue apenas em sua adesatildeo de maneira que passando isto a liberdade se esvai Nosso autor chama a atenccedilatildeo ainda na questatildeo conjugal que esta pode adquirir ateacute uma caracteriacutestica comercial sobretudo o caso daqueles matrimocircnios engendrados para aumentar o patrimocircnio e a riqueza Acrescente ainda que na eacutepoca de Montaigne era muito difiacutecil a separaccedilatildeo dos cocircnjuges Ele brinca dizendo que o casamento somente tem lsquoporta de entradarsquo Claro tais fatos satildeo adversos aos interesses da amizade que soacute pode ter por fim ela mesma e por isso nela haacute liberdade tanto para adesatildeo quanto para rescisatildeo desse relacionamento (diferente do casamento)

Desta forma acabamos de ver que o ensaiacutesta reforccedila que a finalidade da amizade deve ser ela mesma contrapondo-se ao casamento pois neste podemos notar objetivos adversos agrave sua finalidade O lsquobom casamentorsquo seria aquele que se aproxima da amizade Entatildeo e se nossa amante pudesse ser nossa amiga Respondendo a esta indagaccedilatildeo o ensaiacutesta considera que se por acaso pudeacutessemos ter este relacionamento de maneira livre e voluntaacuteria com nosso cocircnjuge seria sem duacutevida a mais plena e completa amizade jaacute experimentada pela humanidade Eacute interessante a afirmaccedilatildeo do ensaiacutesta quando diz o bom casamento eacute aquele que se assemelha com a amizade27 No entanto segundo Montaigne natildeo existem registros de que isso possa ter acontecido e pelo consenso dos antigos isto estaacute longe de acontecer

27 III 5 99

90 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Logo em seguida a esta passagem dos Ensaios

Montaigne discute se eacute possiacutevel uma relaccedilatildeo de amizade no caso da pederastia antiga grega Comeccedila dizendo que a pederastia eacute lsquoabominada pelos costumes de sua eacutepocarsquo Como ceacutetico ele acata os costumes mas nem sempre Montaigne concorda na vida privada com os costumes Note-se que ele se refere ao fato de que a pederastia eacute lsquoabominado por nossos costumesrsquo poreacutem natildeo diz que ele pessoalmente a condena Natildeo eacute nosso propoacutesito aprofundar este tema mas Montaigne parece rechaccedilar a pederastia grega natildeo por uma questatildeo moral mas por natildeo ser uma relaccedilatildeo entre iguais (diferenccedila de idade de classe de ofiacutecio) Mas no tocante agrave pederastia entre iguais Montaigne natildeo se deteacutem a examinar Assim sendo neste caso Montaigne critica o viacutenculo estabelecido entre pessoas com disparidade de idade e diferenccedila de objetivos Portanto podemos entender porque para Montaigne tambeacutem temos obstaacuteculos na consecuccedilatildeo da amizade no caso da pederastia antiga grega e mesmo no relacionamento entre pessoas do mesmo gecircnero porque o fim da amizade natildeo estaacute nela mesma mas sim em um sentimento avassalador de paixatildeo Eacute uma relaccedilatildeo humana mas natildeo cumpre as exigecircncias estabelecidas pela amizade a que Montaigne se refere

E aquela outra licenciosidade grega eacute legitimamente abominada por nossos costumes Entretanto como segundo o uso ela comportava uma tatildeo necessaacuteria disparidade de idades e diferenccedila de benefiacutecios entre os amantes tampouco atendia suficientemente agrave perfeita uniatildeo e concordacircncia que aqui exigimos (I 28 279)

Logo em seguida Montaigne debatendo sempre

acerca da amizade usa os questionamentos de Ciacutecero agrave praacutetica da pederastia problematizando sobre a possibilidade de neste tipo de relaccedilatildeo amorosa haver

Amizade em Montaigne 91

amizade Pergunta ldquoo que seria de fato este amor de amizade De onde viria que ele natildeo se ligue nem a um jovem feio nem a um anciatildeo belordquo Respondendo parcialmente agrave questatildeo conclui que ldquotudo o que se pode apresentar em favor da academia eacute dizer que se tratava de um amor que terminava em amizaderdquo (I 28 280) Sugere assim que tanto o casamento quanto a pederastia podem terminar em amizade Ocorre que Montaigne suscita perguntas ateacute mesmo quando procura respondecirc-las Isto posto cabe agora analisar a diferenccedila da amizade para com os viacutenculos comuns na sociedade

Nesta ideia de amizade frouxa novamente a leitura de Montaigne aproxima-se de Aristoacuteteles visto que para o Estagirita as amizades comuns equivalem a relaccedilotildees de camaradagem Nestas relaccedilotildees ldquoas amizades deste tipo satildeo apenas acidentais pois natildeo eacute por ser quem ela eacute que a pessoa eacute amada mas por proporcionar agrave outra algum proveito ou prazerrdquo (EN VII 4 p 177) Sendo assim amizade comum eacute aquela em que o interesse estaacute nas vantagens e as accedilotildees praticadas de um para com o outro fundamentam-se no dever soacute em si mesmo e natildeo satildeo motivadas pelo bem que proporcionam ao outro Portanto natildeo eacute uma relaccedilatildeo de igualdade pois o dever leva ao sentimento de obrigaccedilatildeo com o outro em busca de um favor do reconhecimento ou seja trazendo para a nossa expressatildeo popular ldquoo que eu vou ganhar em troca distordquo accedilotildees que visam ao lucro ou favorecimento

Neste mesmo rumo Montaigne clama para que sua relaccedilatildeo com La Boeacutetie natildeo seja colocada na mesma linha das relaccedilotildees de camaradagem pois nestas temos que andar sempre atentos cautelosos devido a desconfianccedila nas intenccedilotildees do outro deste modo natildeo devemos deixar de ter prudecircncia Se na amizade verdadeira haacute uma entrega ao amigo por ela mesma jaacute

92 Eacutetica e filosofia poliacutetica

na amizade comum eacute preciso preservar-se porque natildeo eacute por ela mesma

Que natildeo me coloquem na mesma linha essas outras amizades comuns tenho tanto conhecimento delas como qualquer outro e das mais perfeitas em seu gecircnero mas natildeo aconselho a confundir suas regras seria um engano Nessas outras amizades eacute preciso andar com as reacutedeas na matildeo com prudecircncia e precauccedilatildeo a ligaccedilatildeo natildeo eacute atada de maneira que natildeo haja a menor desconfianccedila (I 28 p283)

Em outras palavras as amizades comuns tecircm

como finalidade o prazer ou a utilidade elementos que natildeo deixam de existir em nenhuma espeacutecie de amizade A diferenccedila eacute que no viacutenculo de amizade que Montaigne descreve este natildeo eacute o fim uacuteltimo da amizade De qualquer forma amizade soacute existe entre pessoas boas e ser uacutetil e agradaacutevel satildeo caracteriacutesticas de bons cidadatildeos Embora sejam elas fundamentais a amizade pura natildeo se esgota quando recebe favor do outro pois este deseja o bem para si tanto para com o outro Neste sentido compreende Aristoacuteteles (ao qual Montaigne de perto como empreacutestimo para sua proacutepria concepccedilatildeo) que

a amizade por prazer tem alguma semelhanccedila com esta espeacutecie pois pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente agradaacuteveis Acontece o mesmo em relaccedilatildeo agrave amizade por interesse pois as pessoas boas tambeacutem satildeo reciprocamente uacuteteis (EN VIII 6 p 179)

A questatildeo que distingue os tipos de amizade

como se vecirc eacute o fim almejado Na perspectiva do ensaiacutesta a definiccedilatildeo

aristoteacutelica de uma alma em dois corpos eacute a justificativa para uma fusatildeo das vontades Por esta razatildeo Montaigne descreve sua experiecircncia de amizade com La Boeacutetie como sendo onde este princiacutepio estaacute presente onde ldquotudo eacute verdadeiramente comum entre elesrdquo Nesta

Amizade em Montaigne 93

amizade existe uma harmonia uma uniatildeo completa e sem reservas em uma palavra perfeita

Nesse nobre comeacutercio os serviccedilos e benefiacutecios que alimentam as outras amizades nem sequer merecem ser levados em conta a causa eacute essa fusatildeo plena de nossas vontades Pois assim como a amizade que tenho para comigo natildeo recebe aumento pelo socorro que me presto na necessidade natildeo importa o que digam os estoacuteicos e como natildeo me sou grato pelo serviccedilo que faccedilo assim tambeacutem a uniatildeo de tais amigos sendo realmente perfeita faz que eles percam a percepccedilatildeo desses deveres e odeiem e eliminem dentre eles estas palavras de divisatildeo e diferenccedila benefiacutecio obrigaccedilatildeo reconhecimento pedido agradecimento e suas semelhanccedilas Como tudo verdadeiramente comum entre eles ndash vontades pensamentos julgamentos bens mulheres filhos honra e vida ndash e sua harmonia eacute de uma uacutenica alma em dois corpos segundo a muito adequada definiccedilatildeo de Aristoacuteteles (I 28 p 284)

Na amizade perfeita tudo eacute conhecido pelo

amigo seus pensamentos suas intenccedilotildees e julgamentos Montaigne afirma que sua alma e a de La Boeacutetie andavam tatildeo juntas quanto possiacutevel por este motivo a comunhatildeo de ideias e experiecircncias era concebida com a mesma convicccedilatildeo da afeiccedilatildeo que sentiam um pelo outro De modo que a admiraccedilatildeo reciproca eacute complementada pela correspondecircncia do gosto e compartilhada pelo diaacutelogo que alimenta a amizade De modo que lsquocom certezarsquo as intenccedilotildees do amigo de Montaigne eram conhecidas por ele bem como seus julgamentos por isso ele escreve que de bom grado confiaria mais no amigo do que em si mesmo

A amizade verdadeira eacute uma experiecircncia de singularidade por isso Montaigne considera uma raridade a amizade que teve com La Boeacutetie Montaigne julga que esta amizade eacute incomparaacutevel devido a sua integridade e

94 Eacutetica e filosofia poliacutetica

dedicaccedilatildeo extrema sobre a qual natildeo se encontra registros de uma amizade tatildeo perfeita na histoacuteria e muito menos entre os contemporacircneos Reforccedila e a eleva ao mais alto grau da perfeiccedilatildeo humana pois a virtude da amizade eacute bela e perfeita quando sua finalidade eacute ela mesma Desta forma existe um caraacuteter de completude neste tipo de amizade onde um completa o outro numa harmonia incomparaacutevel Vejamos isso nas proacuteprias palavras do ensaiacutesta ao escrever sobre os primeiros encontros com o Amigo

Encaminhando assim essa amizade que enquanto Deus quis alimentamos entre noacutes tatildeo integra e tatildeo perfeita que sem a menor duacutevida natildeo se lecirc sobre outras iguais e entre nossos contemporacircneos natildeo se vecirc o menor indicio de sua praacutetica Para construiacute-la satildeo necessaacuterias tantas circunstancias que eacute muito se afortuna o conseguir uma vez a cada trecircs seacuteculos (I 28 p 275)

Aleacutem disso a uniatildeo dos amigos eacute de grande

intensidade ao ponto de consolidar esta bela alianccedila com um nobre tratamento chamando-o de irmatildeo ldquoNa verdade o nome irmatildeo eacute um nome belo e cheio de deleccedilatildeo e por esse motivo noacutes dois ele e eu usamo-lo em nossa alianccedilardquo (I 28 276) Starobinski lembra que La Boeacutetie ao deixar sua biblioteca e seus papeacuteis de heranccedila para Montaigne escreve uma carta onde expressa ao amigo seu desejo e chama-o de irmatildeo

E depois voltando seu discurso para mim Meu irmatildeo disse ele que amo tatildeo afetuosamente e que escolhera entre tantos homens para renovar convosco essa virtuosa e sincera amizade cujo uso estaacute pelos viacutecios haacute tanto tempo afastado de noacutes que dele natildeo restam senatildeo alguns velhos vestiacutegios na memoacuteria da Antiguidade Suplico-vos como sinal de minha afeiccedilatildeo por voacutes que aceiteis ser o sucessor de minha biblioteca e de meus livros que vos dou (apud STAROBINSKI 1992 p 60)

Amizade em Montaigne 95

Sem duacutevidas esta atitude de La Boeacutetie eacute uma

marca concreta da amizade intensa e verdadeira para com Montaigne Deixar a biblioteca como heranccedila tem um valor que vai muito aleacutem dos bens materiais pois estava ali em seus papeacuteis parte de Montaigne bem como de suas ideias compartilhadas com o amigo Eacute um ato que expressa confianccedila imensuraacutevel e para retribuir agrave altura esta mesma Montaigne insere nos ensaios a figura de seu amigo de forma indireta na redaccedilatildeo dos textos aleacutem de dedicar o escrito da Amizade onde se esforccedila para mostrar a constituiccedilatildeo desta amizade perfeita e a diferenciaacute-la das demais Observa Cardoso

Montaigne esquadrinha toda a gama dos viacutenculos associativos e interroga a natureza destes laccedilos diversos que atamos homens entre si (o estatuto das diversas philiai portanto jaacute que para os antigos esta palavra designa tambeacutem mais amplamente todas as formas de afinidade entre os seres e de suas associaccedilotildees) Ao mesmo tempo ele como que hierarquiza esses viacutenculos pelo grau da alianccedila que propiciam pela sua consistecircncia e solidez e instala no topo da classificaccedilatildeo reinando soberana a verdadeira amizade a amizade acabada ndash teacuteleacuteia philia dissera Aristoacuteteles ndash ldquouniatildeo perfeitardquo sem brechas ou fissuras ldquoDivina ligaccedilatildeordquo ldquoa coisa mais uma e unidardquo atada pelos ldquonoacutes serrados e duraacuteveisrdquo de uma ldquocostura santardquo fusatildeo das almas satildeo as expressotildees de Montaigne para essa amizade Amizade que ele afirma ser o estofo da alianccedila que o associara a Etienne de La Boeacutetie (CARDOSO 1987 p 165)

Uma expressatildeo marcante neste ensaio da

Amizade eacute a de ldquofusatildeo das almasrdquo que provem de uma forccedila28 arrebatadora ldquoinexplicaacutevel e fatalrdquo que segundo Montaigne foi ldquomediadora dessa uniatildeordquo (I 28 281) ndash

28 Na nota 22 da p 281 esta forccedila eacute chamada de lsquodestinorsquo

96 Eacutetica e filosofia poliacutetica

uniatildeo entre Montaigne e La Boeacutetie Avalia que mesmo sem saber como explicar sabe-se que esta forccedila domina as vontades de maneira a mesclar a tal ponto que natildeo existe maneiras de identificaacute-las separadamente as almas ldquose mesclam e se confundem uma na outra numa fusatildeo tatildeo total que apagam e natildeo mais encontram a costura que as uniurdquo (I 28 281) Todavia esta fusatildeo natildeo a anula pessoas esta amizade soacute pode existir porque era Montaigne e porque era La Boeacutetie Natildeo se perde a individualidade na amizade perfeita pois um eacute o complemento do outro

A lsquoamizade perfeitarsquo eacute indivisiacutevel e de completude ldquoCada um se daacute tatildeo inteiramente a seu amigo que nada lhes resta para distribuir alhuresrdquo (I 28 285) diferente das lsquoamizades superficiaisrsquo e das amizades comuns Na amizade perfeita soacute existe espaccedilo para dois iguais (equivalente a uma alma) Assim aquele que pretende ampliar a experiecircncia da amizade perfeita entra em um dilema paradoxal Seguindo as questotildees postas no texto por Montaigne exatamente porque a amizade eacute indivisiacutevel e de completude torna-se clara a dificuldade em se ter muitos amigos ldquose dois pedissem para ser socorridos qual acudiriacuteeis Se solicitassem de voacutes serviccedilos opostos que ordem encontrariacuteeis nisso29 Se um confiasse ao vosso silecircncio algo que ao outro fosse uacutetil saber como vos desenredariacuteeis dissordquo (I 28 p 285286) Portanto quanto agrave amizade perfeita eacute impossiacutevel que seja dupla Aleacutem disto duplicar-se jaacute eacute uma daacutediva inigualaacutevel e aqueles que dizem querer estendecirc-la para mais um ainda natildeo conhecem a grandeza da amizade perfeita

Montaigne usa os exemplos antigos e suas experiecircncias para fundar suas opiniotildees assinalando que

29 Qual deles atenderiacuteeis em primeiro lugar Ou talvez como resolveriacuteeis essa dificuldade

Amizade em Montaigne 97

natildeo tem por objetivo ensinar o que se deve fazer30 Este tipo de amizade natildeo tem preccedilo A propoacutesito disto o ensaiacutesta comenta um exemplo de Eudacircmidas

Em suma satildeo fatos inimaginaacuteveis para quem natildeo experimentou e que me faz elogiar extremamente a resposta daquele jovem soldado a Ciro que lhe perguntava por quanto ele queria dar um cavalo com o qual acabara de ganhar o precircmio da corrida e se queria trocaacute-lo por um reino ldquoPor certo que natildeo meu senhor mas de muito bom grado o entregaria para obter um amigo se encontrasse homem digno de tal alianccedilardquo (I 28 p 286)

Segundo Starobinski com a morte de La Boeacutetie a

vivecircncia dele seraacute suprida pela atitude de Montaigne de maneira que ele mesmo torna-se objeto de uma representaccedilatildeo no ato da escrita ou seja doravante Montaigne seraacute o objeto de sua investigaccedilatildeo Assim

o ato de observar e de representar constitui ele proacuteprio o objeto de uma representaccedilatildeo O registro nos mostraratildeo pintor no trabalho diante do speculum e da tela em que figura um autorretrato em vias de execuccedilatildeo (STAROBINSKI 1992 p 36) Desta forma a morte do Amigo e a escrita tecircm

conjunturas fundamentais pois existe a possibilidade de eternizar por meio da escrita a experiecircncia vivida e ao mesmo tempo revivecirc-las ao passo que as registra trazendo na memoacuteria a presenccedila daquele que se foi

E por uacuteltimo analisamos que a amizade enquanto experiecircncia de si eacute marcada pela alteridade o que implica supor que o outro eacute constitutivo da identidade do eu De acordo com Starobinski La Boeacutetie era o uacutenico que conhecia Montaigne por completo Por isso ele eacute o

30 ldquoNatildeo me ocupo de dizer ao mundo o que ele deve fazer ndash outros ocupam suficientemente - e sim o que faccedilo nelerdquo (I 28 287)

98 Eacutetica e filosofia poliacutetica

guardiatildeo da sua mais pura imagem do filoacutesofo uma vez que

[] Ele era o detentor de uma verdade completa sobre Michel de Montaigne verdade que a proacutepria consciecircncia de Montaigne natildeo soubera levar a um grau de plenitude comparaacutevel (STAROBINSKI 1992 p 45)

Em Da Vanidade Montaigne discorre acerca da

amizade com La Boeacutetie Escreve que Na verdadeira amizade em que sou experimentado dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim Natildeo soacute prefiro fazer-lhe bem a que ele me faccedila mas ainda que ele o faccedila a si proacuteprio a que me faccedila faz-me ele entatildeo o maior bem possiacutevel quando a si o faz E se a sua ausecircncia lhe for quer prazenteira quer uacutetil torna-se-me ela bem mais agradaacutevel que a sua presenccedila e de resto natildeo eacute propriamente ausecircncia se haacute meios de comunicarmos um com o outro Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento Em nos separando para mim e eu para ele mais plenamente que se ele estivesse presente Uma parte de cada um de noacutes permanecia desocupada quando estaacutevamos juntos fundiacuteamo-nos num soacute A separaccedilatildeo espacial tornava mais rica a uniatildeo das nossas vontades A insaciaacutevel fome da presenccedila fiacutesica denuncia uma certa fraqueza na fruiccedilatildeo muacutetua das almas (III 9 p 272)

A escrita de Montaigne tem uma dimensatildeo muito

pessoal Busca nos haacutebitos e costumes questotildees referentes agrave humanidade como um todo Quando a razatildeo lhe falta Montaigne se apoia na experiecircncia Eacute verdade que tais bases satildeo fraacutegeis (razatildeo costume experiecircncia) poreacutem tudo o que temos eacute lsquoo que aparecersquo Desse modo ele utiliza como base de seu estudo acerca da amizade a relaccedilatildeo que manteve com La Boeacutetie Inerente agrave temaacutetica da amizade haacute uma perspectiva poliacutetica visto que para Montaigne a inspeccedilatildeo que respalda o juiacutezo relativo deve

Amizade em Montaigne 99

ultrapassar a experiecircncia de si e alcanccedilar a experiecircncia do coletivo e da opiniatildeo puacuteblica31 Ou seja para ele a ideia de humanidade se coloca acima da ideia de paacutetria e isso implica em que a amizade desempenha papel central nisso na medida em que declara a amizade mais alta aquela que dedica ao gecircnero humano Por todas estas razotildees nosso autor descreve a amizade pura e desinteressada como o fundamento de toda a sabedoria

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Satildeo estas as razotildees de toda a argumentaccedilatildeo que

enfim se depreende da leitura de Montaigne natildeo pode existir uma amizade imposta A amizade compreende um amor equitativo em outras palavras justo e igual Na amizade nada eacute privado do amigo principalmente a vontade que eacute comum desde sua origem e inclusive a proacutepria forma de enxergar a vida O desiacutegnio eacute o mesmo ser apenas uma alma em dois corpos Este pensamento se refere agrave uniatildeo das almas num soacute corpo como diziacuteamos Uma uniatildeo na qual se perde o privado todavia natildeo se perde a individualidade Esta eacute reconhecida pelo exerciacutecio da descoberta de si mesmo no outro Uma descoberta ininterrupta que inclusive vai aleacutem da morte pelo fato de que Montaigne a registra em sua escrita tornando sempre viva a experiecircncia

Viver verdadeiramente eacute realizar uma experiecircncia de amizade que na verdade eacute a descoberta da consciecircncia e da humanidade do proacuteprio lsquoeu como escreve Birchal (2000) Quem nunca teve um amigo teraacute vivido verdadeiramente Por isso a metaacutefora do espelho trazida por Starobinski eacute muito adequada visto que aquilo que o homem eacute consiste na sua proacutepria existecircncia Os atos refletem o que cada ser humano traz de tal sorte

31 CONCEICcedilAtildeO 2014

100 Eacutetica e filosofia poliacutetica

que o amigo eacute capaz de enxergar-nos nesse espelho e nos decifrar Conforme Seacutergio Cardoso

desejando pois pela sua virtude a proacutepria vida e fazendo-se a vida do amigo igualmente pela virtude semelhante agrave sua o saacutebio a deseja tambeacutem Os amigos se aproximam portanto por meio da unidade da virtude e do Bem (CARDOSO 1987 p 186)

Uma vez que o proacuteprio Montaigne parece nos

querer deixar questotildees em aberto em forma de problema para refletirmos ndash como faz com frequecircncia nos Ensaios ndash talvez seja melhor que tenhamos em matildeos a contextualizaccedilatildeo de sua maneira de pensar e percebermos que o filoacutesofo estaacute aleacutem de seu tempo Eacute importante que natildeo busquemos restringir a leitura de um texto tatildeo rico e tatildeo denso dentro de um esquema que se apresente como mais coerente ou sistemaacutetico pois Os Ensaios satildeo registro de uma tensatildeo e de movimento portanto assistemaacutetico e fluido O problema do ceticismo bem como o da Amizade satildeo de grande importacircncia para a histoacuteria da filosofia e ateacute mesmo para nossos proacuteprios modos particulares de ver o mundo pode ser mais bem aproveitado se natildeo o limitarmos e respeitarmos sua complexidade pois falar sobre a escrita de Montaigne envolve muitos paradoxos Tentar aprisionaacute-lo numa explicaccedilatildeo para uma questatildeo de tamanha abrangecircncia e que talvez seja irrespondiacutevel (no sentido de ser uma questatildeo permanentemente aberta) pode natildeo ser o melhor modo de se tratar o tema da amizade e do ceticismo em um autor que de modo geral tanto adverte contra julgamentos absolutos precipitados e contra a estreiteza de pensamento

A amizade assegura portanto a existecircncia de si mesmo visto que o outro no caso La Boeacutetie eacute uma parte de Montaigne Desse modo a amizade adquire um ideal humanista uma vez que o outro revela o ldquoeurdquo de forma a garantir a sua presenccedila no mundo Com a morte do

Amizade em Montaigne 101

Amigo resta ao autor apenas o ato de redigir para que natildeo morra o restante de si mesmo No entanto aquilo que era a garantia de si mesmo antes da morte do amigo agora com a perda dele torna um ldquoeurdquo em movimento que busca constantemente a si mesmo Acontecendo a sobrevivecircncia do ldquoeurdquo por meio da escrita

Vale dizer que Montaigne tem como base de pesquisa o seu viver e tem como referecircncia ele mesmo bem como a leitura dos textos antigos Portanto trata-se de um autor que natildeo se propotildee escrever um manual a respeito da amizade ou do comportamento humano mas quer apenas apresentar reflexotildees resultantes de sua experiecircncia Segundo Cardoso

soacute aqui chegamos pois propriamente ao essai registro do proacuteprio autor autorretrato expressatildeo de si mesmo ndash gestos gostos opiniotildees reflexotildees ndash ensaios de uma vida (CARDOSO 1992 p 13)

Por fim

eacute indispensaacutevel a amizade para que haja a felicidade Natildeo obstante a morte do amigo essa natildeo seraacute apenas motivo de melancolia mas momento de honra por intermeacutedio da memoacuteria viva da uniatildeo entre eles visto que dividiam e partilhavam tudo (SILVA 2010 p 131)

A dinacircmica da relaccedilatildeo de amizade perfeita natildeo

tem fim com a morte de La Boeacutetie pois recorrendo agrave escrita a fluidez de seu pensamento toma outra dimensatildeo na medida em que a escrita revela uma vivecircncia diferente da amizade vivida

E finalmente vale ressaltar ainda que em Montaigne ldquoencontramos mais o paradoxo e menos o repousordquo (CONCEICcedilAtildeO 2015 p 27) ou seja a leitura dos Ensaios nos provoca mais indagaccedilotildees do que nos daacute respostas prontas

102 Eacutetica e filosofia poliacutetica

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Livro IX Coleccedilatildeo Os Pensadores Editora Nova Cultural Ltda Satildeo Paulo 1996

______ Eacutetica a Nicocircmacos Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001

______ Eacutetica a Nicocircmaco Trad Leonel Vallandro e Gerd Bornhein da versatildeo inglesa de W D Ross Poeacutetica Trad br Eudoro de Souza Coleccedilatildeo Os Pensadores Volume II Satildeo Paulo Abril Cultural 1979

______ Poliacutetica Trad br Maacuterio Gama Kury 3ordf Ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1997

BIGNOTTO N Montaigne Renascentista Kriterion n 86 p 41 1992

BIRCHAL T Montaigne e seus duplos Elementos para uma histoacuteria da subjetividade 2000 Tese (Doutorado) - Universidade de Satildeo Paulo 2000

CARDOSO Seacutergio Villey e Starobinski duas interpretaccedilotildees exemplares sobre a Gecircnese dos Ensaios Kriterion Belo Horizonte v 33 n 86 p 9-28 1992

______ Os sentidos da Paixatildeo Texto ldquoPaixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaignerdquo Companhia das Letras Satildeo Paulo 1986

______ [et al] Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987 p 159-194

COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo de Eduardo Brandatildeo 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2011

Amizade em Montaigne 103

______ Uma feacute um Rei uma Lei Anexo ao Relatoacuterio sd

______ O homem um homem do humanismo renascentista a Michel de Montaigne In Perturbador Mundo Novo Ed Escuta Satildeo Paulo 1992

______ Paixatildeo da igualdade paixatildeo da liberdade a amizade em Montaigne In NOVAES A (Org) Os sentidos da paixatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1995 p 159-194

______ A crise da razatildeo poliacutetica na Franccedila das guerras de religiatildeo In A Crise da Razatildeo Org Adauto Novaes Satildeo Paulo Cia das letras 1996 p 173

CONCEICcedilAtildeO Gilmar H Montaigne e a Poliacutetica EDUNIOESTE Cascavel 2014

COSTA LIMA L Limites da Voz (Montaigne Schlegel Kafka) 2ordf ed revisada Rio de Janeiro Topbooks 2005

CIacuteCERO Marcos Tulio Da Amizade Trad Gilson Cesar Cardoso De Souza Wmf Martinsfontes Satildeo Paulo 2012

EVA Luiz Antonio Alves Montaigne e o Ceticismo na Apologia de Raymond Sebond a Natureza Dialeacutetica da Criacutetica agrave Vaidade In O que nos faz pensar Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio novembro de 1994 n 8

______ O Ensaio como Ceticismo Manuscrito Unicamp 2001

______ O Fideismo ceacutetico de Montaigne 1947 Kriterion Revista de filosofia v I Belo Horizonte

EMPIacuteRICO Sexto Outlines of Pyrrhonism (HP) In BURY R G (Ed) Sextus Empiricus Cambridge

104 Eacutetica e filosofia poliacutetica

London Harvard University Press William Heinemann 1987 v I (Loeb Classical Library ndeg 273)

______ Outlines of Pyrrhonism Trad Para o inglecircs R G Bury Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 2000a

______ Esbozos Pirrocircnicos Madrid Editorial Gredos 1993

JAPIASSUacute Hilton MARCONDES Danilo Dicionaacuterio Baacutesico de Filosofia 5ed Rio de Janeiro Zahar 2008

LA BOEacuteTIE E Discurso da Servidatildeo Voluntaacuteria Trad Laymert Garcia dos Santos Ed Marilena Chauiacute 2 ed Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1982 (Col Elogio da Filosofia)

LACOUTURE Jean Montaigne a cavalo Trad F Rangel Rio de Janeiro Record 1998

MILLIET Sergio Prefaacutecio aos Ensaios de Montaigne Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Ed Globo 1961

MONTAIGNE Journal de voyage en Italie par La Suisse amp lrsquoAllemagne In Œuvres complegraveetes Paris Gallimard 1962 (Bibliothegraveque de La Pleacuteiade)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro II Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek AbiacutelioSatildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

MONTAIGNE Os Ensaios Livro III Traduccedilatildeo de Rosemary Costhek Abiacutelio Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

Amizade em Montaigne 105

MONTAIGNE Michel de Apologie de Raimond Sebond introduction de Samuel Sylvestre de Sacy Collection Ideacutees NRF France Eacuteditions Gallimard 1967

EPICURO Maacuteximas e Sentenccedilas Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

SILVA Nelson Maria Brechoacute da A Amizade em Montaigne Dissertaccedilatildeo de Mestrado- Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciecircncias 2010

STAROBINSKI Jean Montaigne em movimento Traduccedilatildeo de Maria Luacutecia Machado SatildeoPaulo Cia da Letras 1992

TOURNON Andreacute Montaigne Satildeo Paulo Discurso 2004

THEOBALDO Maria Cristina Sobre o ldquoDa educaccedilatildeo das crianccedilasrdquo a nova maneira De Montaigne Tese de Doutorado Universidade de Satildeo Paulo 2008

VASCONCELOS Claacuteudia Agrave guisa de introduccedilatildeo MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 (Paideacuteia)

VILLEY Pierre Os Ensaios de Montaigne Montaigne Ensaios Livro I Traduccedilatildeo Prefaacutecio e notas de Sergio Milliet Rio de JaneiroPorto AlegreSatildeo Paulo Editora Globo 1961

VILLEY Pierre A vida e a obra de Montaigne MONTAIGNE Os Ensaios Livro I Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 ndash (Paideacuteia)

POPKIN Richard H The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza Berkeley Los Angeles London University of California Press 1979

106 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= IV =

O AMOR NA BUSCA PELA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO A RENUacuteNCIA AO CETICISMO E O

CAMINHO DA FILOSOFIA

Elissa Gabriela Fernandes Sanches 41 INTRODUCcedilAtildeO

De seu primeiro contato e leitura dos escritos de

Ciacutecero ndash especificamente da obra ldquoHortecircnsiordquo ndash Agostinho despertou para a vida filosoacutefica enquanto busca da sabedoria em si proacuteprio Em uma trajetoacuteria de vida marcada por grandes descontinuidades ele era constantemente perturbado pela duacutevida vivida como anguacutestia Tais indagaccedilotildees o motivaram a uma interminaacutevel busca por respostas e diferentes foram os resultados a que chegou Natildeo obstante o pensador patriacutestico se inseriu em diversos paradoxos e foi atormentado pelas proacuteprias tensotildees que encontrava na diaphonia (διαφονία) dos fenocircmenos Em um primeiro momento seus questionamentos o obrigaram a abandonar a seita maniqueiacutesta agrave qual era afiliado e o inseriram em um percurso ceacutetico de caraacuteter acadecircmico que afirmava a impossibilidade de se conhecer a verdade Tal caminhada levou Agostinho agrave conversatildeo ao Cristianismo pouco antes de 386 dC ano em que escreve sua primeira obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo com o objetivo de argumentar que a verdade natildeo soacute estaacute acessiacutevel a todos como tambeacutem pode ser conhecida por nossa razatildeo Uma mudanccedila brusca que diante de seu

Bacharel em Teologia pela Faculdade Nazarena do Brasil e mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE-PR) Contato elissagabrielafshotmailcom

108 Eacutetica e filosofia poliacutetica

contexto de vida eacute compreensiacutevel Sua atitude demonstra que as vaacuterias contradiccedilotildees agraves quais fora incitado o motivaram a ir mais aleacutem em sua jornada na intenccedilatildeo de superaacute-las embora natildeo possamos negar que muitas pontas permaneceram soltas em sua filosofia

Consideramos um risco querer reunir as vaacuterias reflexotildees do Doutor Hiponense segundo um esquema preestabelecido numa espeacutecie de ldquosistemardquo de filosofia agostiniana Agostinho natildeo se deixa aprisionar nestes quadros riacutegidos e doutrinaacuterios por isso discordamos da ideia de buscar um manual da filosofia agostiniana Fazer isso eacute arriscar-se a perder o que haacute de melhor nele e de mais caracteriacutestico suas antiacuteteses Agostinho natildeo avanccedila em linha reta e podemos afirmar que o seu espiacuterito sempre vivo e pujante empenhado em concitar o ser humano a decisotildees eacuteticas e teoreacuteticas sempre novas natildeo possibilita sequer a ideia de um sistema Claro que isso natildeo eacute um limite ao contraacuterio mostra a fertilidade de um pensador considerado um mestre do Ocidente Todo o pensamento de Agostinho gravita em torno de Deus por outro lado nosso foco aqui estaacute direcionado aos aspectos filosoacuteficos de sua reflexatildeo Pretendemos evidenciar o argumento do autor acerca da busca da verdade orientada pelo amor como uma atitude propriamente filosoacutefica

Eacute importante relembrarmos que o termo lsquoFilosofiarsquo foi elaborado por Pitaacutegoras de Samos (571-496 aC) para se referir a um amoramizade pela sabedoria (Philos φιλος amoramizade e Sophia σοφία sabedoria) Mas natildeo se trata de um amor estaacutetico e sim um sentimento que move a filoacutesofa e o filoacutesofo em direccedilatildeo agravequilo que anseia por conhecer que introduz o(a) amante no caminhar que tambeacutem foi trilhado por Agostinho

Assim apesar de ter passado por diferentes fases inclusive por uma fase ceacutetica Agostinho natildeo deixou nenhum escrito que revelasse suas reflexotildees

O amor na busca pela verdade 109

neste momento de sua vida No entanto em diversas de suas obras percebe-se o quanto ele se sentia assombrado por suas proacuteprias indagaccedilotildees Elas lhe serviram como guias orientando-o atraveacutes de sua proacutepria interioridade e visando o encontro da verdade que lhe era velada Em ldquoContra os Acadecircmicosrdquo o filoacutesofo de Cartago questiona eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade Eis a questatildeo central de nosso estudo

Para os membros da antiga Academia de Platatildeo em sua fase ceacutetica o saacutebio deveria se empenhar na busca pelo que eacute verossiacutemil ou provaacutevel natildeo pelo que eacute verdadeiro Esta posiccedilatildeo foi defendida sobretudo por Arcesilau (3165-2410 aC) responsaacutevel pela virada ceacutetica na Academia Em oposiccedilatildeo agrave Zenatildeo ele defendia uma forma rigorosa de ceticismo na qual a verdade natildeo pode ser conhecida e nesta condiccedilatildeo o saacutebio natildeo deve concordar com nenhum parecer que seja favoraacutevel a ela Resta entatildeo ceder agrave epocheacute (ἐποχή) ou suspensatildeo do juiacutezo do assentimento Esta forma de ceticismo foi aprimorada por Carneacuteades (214-129 aC) que se dedicou agrave retoacuterica e argumentaccedilatildeo para melhor defendecirc-lo nos vaacuterios debates em que participava Dessa maneira embora ambos tenham contribuiacutedo fortemente com uma variante radical de ceticismo na Academia ela foi atenuada devido ao surgimento de uma postura mais branda que avaliava a existecircncia de crenccedilas proacuteximas da verdade apesar de natildeo poderem ser julgadas como verdadeiras ou falsas posto que natildeo se pode conhecer o que eacute efetivamente verdadeiro

Entatildeo se na reflexatildeo agostiniana a verdade pode ser encontrada qual o caminho deve ser percorrido para alcanccedilaacute-la Afinal mesmo os ceacuteticos acadecircmicos tambeacutem natildeo duvidavam da existecircncia de uma verdade apenas avaliavam que ela natildeo poderia ser conhecida Agostinho propotildee portanto uma estrutura de

110 Eacutetica e filosofia poliacutetica

argumentaccedilatildeo que vincula a busca da sabedoria com a vontade o desejo em compreendecirc-la

De modo geral o amor eacute o cerne da vontade que pode levar o indiviacuteduo agrave felicidade ou natildeo Nesta condiccedilatildeo sendo a busca um movimento em direccedilatildeo a algo ela natildeo existe sem que o indiviacuteduo deseje aquilo que quer encontrar Portanto se ele quiser a verdade deveraacute antes amaacute-la pois somente o amor permite o deslocamento no sentido da coisa a que se deseja

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute explorar essa ligaccedilatildeo entre amor e verdade que natildeo estaacute expliacutecita no pensamento agostiniano para fins de demonstrar que nele o amor eacute a forccedila que instiga o indiviacuteduo agrave caminhada no encontro da verdade Na tentativa de se distanciar de qualquer forma de ignoracircncia e se aproximar de uma ataraxia (αταραξία) resultante do encontro da verdade Agostinho avalia que o engajar-se neste caminhar eacute o fator de relevacircncia e natildeo a verdade em si para aquele que busca a sabedoria e portanto ser feliz

A divergecircncia com o maniqueiacutesmo na qual o filoacutesofo de Tagaste se introduziu expressa mais uma vez que ele continuava a sofrer desesperado por alcanccedilar aquilo que tanto almejava Ao aproximar-se do ceticismo a questatildeo que o perturbava neste momento era como eacute possiacutevel alcanccedilar uma verdade certa e incontestaacutevel a respeito das coisas invisiacuteveis (natildeo-evidentes) Pergunta esta que acabou levando-o a uma nova caminhada que culminou em sua conversatildeo e consequente crenccedila de que mesmo sendo a verdade singularmente diferenciada da realidade mundana ela pode ser encontrada Ateacute porque eacute na procura da verdade que o indiviacuteduo encontra a Deus a quem almeja conhecer de fato

O amor na busca pela verdade 111

42 ENTRE O CETICISMO E O DOGMATISMO Eacute de senso comum afirmar que uma pessoa eacute

ceacutetica quando ela suspeita acerca da certeza das coisas No entanto essa expressatildeo assumiu tamanha amplitude nos dias atuais que criamos uma grande dificuldade em conceber sequer a possibilidade de um religioso ser ceacutetico Afinal como algueacutem pode acreditar em um ser divino e desconfiar da realidade Parece ser um incriacutevel paradoxo No entanto o ceticismo estaacute aleacutem do que a nossa simples linguagem cotidiana transmite Por exemplo quando olho para o ceacuteu quem me garante que ele eacute azul Mais do que isso como posso afirmar que sua tonalidade eacute de um azul claro Hoje podemos levar em consideraccedilatildeo as explicaccedilotildees cientiacuteficas para conhecermos a realidade Natildeo que elas expressem a absoluta verdade no entanto algumas contribuem para a delimitaccedilatildeo de certas percepccedilotildees Assim como podemos comprovar que a cor do ceacuteu eacute azul Experimentalmente podemos captar os raios ultravioletas que a luz do sol emite e averiguar seu comprimento de onda Cada comprimento eacute percebido pelos nossos olhos atraveacutes de uma cor especiacutefica graccedilas agrave atividade de um tipo celular presente no olho denominado bastonete Ainda devemos inserir nesse processo o aacuterduo trabalho de nossos neurocircnios em enviar as sinapses de forma correta ateacute os nervos conectados agrave nossa visatildeo Se tudo der certo poderemos enxergar o ceacuteu na cor azul Mas o fato de o enxergarmos azul significa que ele eacute azul Ou ele eacute azul para noacutes que possuiacutemos um complexo arcabouccedilo bioloacutegico que nos permite percebecirc-lo dessa maneira

Temos aiacute um conflito Uns podem afirmar que se o ceacuteu emite raios ultravioletas com determinado comprimento de onda entatildeo eacute porque ele eacute azul Outros defendem que ao contraacuterio o ceacuteu natildeo possui cor nenhuma e tudo natildeo passa de uma percepccedilatildeo nossa individual da realidade Alguns ainda podem ser um

112 Eacutetica e filosofia poliacutetica

pouco mais ousados e declarar que nem mesmo podemos garantir a existecircncia dos raios ultravioletas dado que natildeo os enxergamos Neste raciociacutenio seraacute que as maacutequinas que medem o comprimento de onda inventam seus valores Por outro lado o fato de a ciecircncia esclarecer o processo pelo qual percebemos as cores significa entatildeo que eacute uma sequecircncia que ocorre com todos da mesma maneira Seraacute que existem pessoas que percebem as cores de forma diferente No final das contas o ato de duvidar de nossas percepccedilotildees e ateacute mesmo daquelas definidas cientificamente natildeo significa que estamos sendo ceacuteticos

A palavra ldquoceticismordquo veio do termo grego skeptomai (σκέπτομαι) que significa ldquoolhar atentamenterdquo ldquoperscrutarrdquo ldquoexaminarrdquo32 Este vocaacutebulo por sua vez tem origem na palavra skepsis (σκέψις) que pode ser traduzida como ldquoexamerdquo ldquoindagaccedilatildeordquo ldquoconsideraccedilatildeordquo e remete portanto agrave proacutepria postura ceacutetica Pela etimologia podemos considerar que o ceticismo eacute em si a praacutetica de avaliar cuidadosamente acerca daquilo que se busca entender O seu movimento foi introduzido oficialmente por Pirro de Eacutelis filoacutesofo grego que viveu entre os anos de 365 a 275 aC33 Pirro natildeo nos deixou nada por escrito e alguns de seus inteacuterpretes consideram ser este um

32 Para uma anaacutelise mais acurada do ceticismo vinculada agrave criacutetica de Agostinho cf PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012 33 Eacute interessante perceber que mesmo assim podemos detectar certas posturas ceacuteticas em filoacutesofos anteriores como Soacutecrates e Platatildeo Como exemplo temos a maacutexima socraacutetica ldquoSoacute sei que nada seirdquo atitude esta que se assemelha bastante agrave epocheacute ceacutetica na qual

entre a equipolecircncia de duas afirmativas nada pode ser dito quanto ao juiacutezo de ambas Jaacute em Platatildeo seus estudiosos avaliam a presenccedila tanto de uma postura dogmaacutetica como ceacutetica o que demonstra o conflito em tentar localizar o pensador grego diante de correntes filosoacuteficas que se apresentaram bem depois de sua morte

O amor na busca pela verdade 113

procedimento bastante coerente ao seu pensamento visto que ateacute mesmo a escrita implicaria em uma forma de posicionamento Como praticante fiel de sua proacutepria teoria Pirro eacute conhecido como o uacutenico que assumiu verdadeiramente a postura ceacutetica (skepsis) em sua forma mais radical34

Timatildeo de Fliunte (325-235 aC) o mais devoto disciacutepulo de Pirro tomou para si a responsabilidade de escrever natildeo somente aquilo que aprendeu de seu mestre como tambeacutem suas proacuteprias consideraccedilotildees a respeito do ceticismo Contudo de todas as suas obras apenas alguns fragmentos de duas delas sobreviveram agraves cataacutestrofes do tempo e da histoacuteria Silos e Imagens O movimento ceacutetico que Pirro de Eacutelis iniciou foi denominado ceticismo pirrocircnico (Πυρρωνισμός) e sua radicalidade se fundamentava na postura de completa indiferenccedila diante de todas as coisas Aristocles de Messecircnia filoacutesofo peripateacutetico esclarece essa atitude

Alguns haviam naquela eacutepoca entre os antigos que falavam esta linguagem e aos quais Aristoacuteteles se opocircs O proacuteprio Pirro de Eacutelis falou fortemente neste sentido mas ele natildeo deixou nada por escrito Poreacutem seu disciacutepulo Timatildeo diz que o homem que busca ser feliz deve olhar para estas trecircs coisas primeiro quais satildeo as qualidades naturais das coisas segundo de que forma devemos nos posicionar perante elas e por uacuteltimo que vantagem haveraacute para aqueles que assim se posicionarem As coisas por si proacuteprias ele declara demonstrar satildeo igualmente indiferentes instaacuteveis indeterminadas e portanto nem nossos sentidos ou

34 PEREIRA JR 2012 p 30 Richard Popkin (2000 p 15) um conhecido estudioso do ceticismo em sua obra ldquoA Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo tambeacutem comentou acerca da exemplaridade de Pirro de Eacutelis diante de sua teoria ldquoAs histoacuterias acerca de Pirro que chegaram ateacute noacutes revelam que ele natildeo era um teoacuterico mas ao contraacuterio o exemplo vivo e completo de algueacutem que punha tudo em duacutevida um homem que natildeo aceitava se comprometer com nenhum juiacutezo que fosse aleacutem de como as coisas pareciam serrdquo

114 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nossas opiniotildees satildeo verdadeiras ou falsas Por este motivo noacutes natildeo devemos confiar nelas mas sermos sem opiniotildees sem inclinaccedilotildees e sem hesitaccedilotildees afirmando de cada coisa que ela natildeo mais eacute do que natildeo eacute ou que eacute e natildeo eacute ou que nem eacute nem natildeo eacute Para aqueles que estatildeo assim dispostos o resultado Timatildeo afirma seraacute primeiro o silecircncio [afasia ἀφασία] e entatildeo a imperturbabilidade [ataraxia αταραξία] mas Enesidemos diz [que o resultado eacute] prazer (CESAREA Preparation for the Gospel XIV 18 traduccedilatildeo nossa)35

Nesse fragmento ndash que Euseacutebio de Cesareia

expotildee em sua obra ldquoPreparaccedilatildeo para o Evangelhordquo (Εὑαγγελικὴ Προπαρασκευή) escrita entre os anos de 314 e 324 dC ndash Aristocles demonstra ser a atitude ceacutetica uma busca pela felicidade Nesta jornada o indiviacuteduo deve avaliar se realmente vale a pena se dispor diante das caracteriacutesticas naturais das coisas de modo a lanccedilar seus juiacutezos de opiniotildees sobre elas O filoacutesofo de Messecircnia considera que independentemente de como satildeo percebidas as coisas que observamos satildeo sempre indiferentes de tal modo que natildeo podem ser definidas de uma ou de outra forma Neste sentido nossas

35 ldquoSome then there were even of the ancients who spoke this language and who have been opposed by Aristotle Pyrrho indeed of Elis spoke strongly in this sense but has not himself left anything in writing But his disciple Timon says that the man who means to be happy must look to these three things first what are the natural qualities of things secondly in what way we should be disposed towards them and lastly what advantage there will be to those who are so disposed The things themselves then he professes to show are equally indifferent and unstable and indeterminate and therefore neither our senses nor our opinions are either true or false For this reason then we must not trust them but be without opinions and without bias and without wavering saying of every single thing that it no more is than is not or both is and is not or neither is nor is not To those indeed who are thus disposed the result Timon says will be first speechlessness and then imperturbability but Aenesidemus says pleasurerdquo (CAESAREA Preparation for the Gospel XIV 18)

O amor na busca pela verdade 115

impressotildees sobre elas de nada valem portanto natildeo podemos afirmaacute-las mais do que negaacute-las

Mesmo os ceacuteticos radicais como Pirro acreditavam que a felicidade devia ser alcanccedilada Poreacutem o percurso para ser feliz divergia consideravelmente dos dogmaacuteticos os quais definiam a busca pela verdade como a procura pela felicidade Para o ceticismo pirrocircnico e acadecircmico a busca pela felicidade consistia em assumir que a verdade natildeo pode ser alcanccedilada o que levava agrave ataraxia isto eacute agrave imperturbabilidade da alma Esta eacute traduzida como a tranquilidade do intelecto que diante da impossibilidade de conhecer a verdade reorienta o caminho para a sabedoria em direccedilatildeo agrave novas rotas Contudo existe uma leve diferenccedila entre ambas as formas de ceticismo que veremos um pouco mais tarde

Retornando ao exemplo do ceacuteu azul um ceacutetico natildeo duvidaria que esteja enxergando a cor azul do ceacuteu pois

natildeo eacute contra as aparecircncias ou φαινόμενων (phainomenon) que o ceacutetico vai se opor mas contra a possibilidade de conhecimento da natureza ou essecircncia dos fenocircmenos (PEREIRA JR 2012 p 25)

Nesse caso ele duvidaria de nossa capacidade

em descobrir a verdade acerca da cor do ceacuteu isto eacute se ele eacute azul ou natildeo Mesmo com toda a teacutecnica cientiacutefica natildeo soacute natildeo conseguimos avaliar a cor do ceacuteu propriamente dita (pois o fato de percebermos as cores se daacute devido ao nosso ceacuterebro ser capaz de traduzir determinados comprimentos de ondas natildeo porque a cor realmente exista) como elaboramos diversos paracircmetros que nos permitem reconhecer as cores (raios ultravioletas neurocircnios sinapses linguagem) Dessa forma com a ciecircncia apenas demonstramos a impossibilidade de conhecer a verdadeira cor do ceacuteu ou definir se ele eacute azul ou natildeo Isto significa que mesmo o conhecimento cientiacutefico natildeo pode ser utilizado como

116 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma segura para alcanccedilarmos a verdade visto que ele em si avalia como percebemos e interpretamos as coisas e natildeo como as coisas satildeo em sua natureza

Em contraposiccedilatildeo ao ceticismo temos o dogmatismo outra corrente teoacuterica que defende nossa capacidade de natildeo soacute buscar a verdade como tambeacutem de conhececirc-la A palavra dogmatismo vem da raiz grega dogma (δόγμα) que significa ldquoopiniatildeordquo ldquodoutrinardquo Tal substantivo tem origem no verbo dokeo (δοκέω) traduzido como ldquoparecerrdquo ldquoter a aparecircncia derdquo O dogmatismo estaacute intrinsecamente relacionado agrave tese de que por meio das aparecircncias podemos conhecer a verdade e portanto conferirmos juiacutezos de opiniatildeo sobre as coisas Assim a busca por ela natildeo eacute insensata mas faz jus ao nosso proacuteprio desejo humano de sermos felizes Desse modo o que eacute realmente importante eacute a jornada em si que reuacutene natildeo apenas o anseio mas a intenccedilatildeo sincera de que o indiviacuteduo somente encontraraacute a felicidade quando colocaacute-la como o uacutenico fim de sua investigaccedilatildeo O meio que se utiliza para atingir esse fim se torna assim a proacutepria busca pela verdade Mas em que consiste essa busca E seraacute que a verdade pode ser encontrada E o que eacute a verdade Ao longo da tradiccedilatildeo filosoacutefica foram elaboradas diversas respostas para tais perguntas assim como tambeacutem houveram vaacuterias refutaccedilotildees por parte dos ceacuteticos36 Neste estudo a ecircnfase

36 Uma das tentativas foi realizada por Reneacute Descartes O autor francecircs em sua obra ldquoMeditaccedilotildees Metafiacutesicasrdquo escrita em 1641 inicia sua argumentaccedilatildeo com a suspensatildeo de todos os juiacutezos ou seja se inserindo em uma condiccedilatildeo de duacutevida absoluta para identificar nesta condiccedilatildeo o que permaneceria indubitaacutevel Para Descartes a experiecircncia criteacuterio de obtenccedilatildeo da verdade por ser variada em suas muacuteltiplas formas e representada pela dimensatildeo sensiacutevel natildeo poderia fornecer os devidos subsiacutedios para encontrar a verdade o que justificaria a inutilidade da busca O filoacutesofo francecircs utiliza do mesmo raciociacutenio ceacutetico para concluir que neste sentido nem mesmo a proacutepria existecircncia eacute algo certo afinal nenhuma percepccedilatildeo sensiacutevel no mundo poderia conferir consistecircncia ao fato do ser Nisto consiste a primeira meditaccedilatildeo na qual Descartes (Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT

O amor na busca pela verdade 117

incidiraacute sobre as respostas que Agostinho concedeu a tais e outros questionamentos que veremos acerca do assunto

Costumamos associar a postura dogmaacutetica agrave religiatildeo agrave feacute Mais do que buscar precisamos confiar que a verdade existe mesmo que passemos a vida inteira procurando-a e natildeo a encontremos Faz sentido vinculaacute-la ao pensamento religioso que se pauta em diversas doutrinas e postulados promotores de significado agrave crenccedila do indiviacuteduo Mas devemos destacar aqui uma diferenccedila profundamente discreta crenccedila natildeo eacute sinocircnimo de feacute Acreditar em algo natildeo significa que temos feacute naquilo A palavra ldquocrenccedilardquo vem do substantivo latino credentiae que tem origem no verbo tambeacutem latino credo Credo significa ldquoter feacute emrdquo ldquoconfiarrdquo ldquoassumir a realidade ou a existecircncia derdquo ldquopossuir certa opiniatildeordquo ldquonatildeo duvidarrdquo logo estaacute muito mais vinculado ao ato de confiar na verdade de uma proposiccedilatildeo por meio da forccedila de persuasatildeo que este argumento possui A feacute por sua vez remonta ao substantivo latino fides pode ser traduzida como ldquopromessardquo ldquoa condiccedilatildeo de ter a

IX 9) apresenta ldquoas razotildees pelas quais podemos duvidar em geral de todas as coisas e em particular das coisas materiais ao menos enquanto natildeo tivermos outros fundamentos nas ciecircncias senatildeo aqueles que tivemos ateacute o presenterdquo No entanto o que Descartes observa eacute que o criteacuterio ceacutetico de invalidaccedilatildeo da busca pela verdade eacute em si mesmo falho A realidade sensiacutevel eacute de fato variada podendo se apresentar aos indiviacuteduos de diversas formas O ser humano como parte dessa realidade tambeacutem eacute capaz de interpretaacute-la de acordo com o seu ponto de vista Por conseguinte seraacute que a percepccedilatildeo sensiacutevel deve ser considerada o ponto focal na jornada do(a) filoacutesofo(a) Apesar do indiviacuteduo estar em um mundo que se encontra em constante mudanccedila existe um elemento que permanece constante instigado pela duacutevida pela ficccedilatildeo e pela incoerecircncia das coisas o pensamento Este eacute o fundamento a partir do qual se deve avaliar a existecircncia individual e portanto as coisas contidas na dimensatildeo sensiacutevel Isto porque apesar da duacutevida ldquoeacute propriamente o que em mim se chama sentir e isso tomado precisamente assim nada mais eacute do que pensarrdquo (DESCARTES Meditaccedilotildees Metafiacutesicas AT IX 23)

118 Eacutetica e filosofia poliacutetica

confianccedila depositada em umrdquo ldquolealdaderdquo e estaacute bastante proacutexima do sentimento de crer em algo que natildeo se conhece A crenccedila exige a feacute muitas vezes e ambas estatildeo interconectadas poreacutem natildeo podemos afirmar que as duas satildeo a mesma coisa

Nesse sentido podemos acreditar que o ceacuteu eacute azul mesmo que ele natildeo o seja Mas se conseguimos ver a sua cor azul isso eacute o suficiente para convencer a alguns de que ele eacute azul No entanto natildeo temos feacute na cor azul do ceacuteu justamente porque podemos vecirc-lo e afirmarmos o que eacute o ceacuteu e apontarmos para a cor que vemos identificando-a como azul No entanto podemos ter feacute naquele que criou o ceacuteu precisamente porque natildeo o conhecemos e por isso natildeo somos capazes de afirmar a veracidade ou falsidade de sua existecircncia Ainda assim a feacute persiste de forma bastante natural uma vez que somos assaltados pela indagaccedilatildeo e de onde veio o ceacuteu Ningueacutem sabe nem mesmo a ciecircncia eacute capaz de avaliar sua origem a partir do nada

O dogmatismo estaacute portanto muito mais vinculado agrave crenccedila do que agrave feacute em si o que confere abertura suficiente para a existecircncia de fieacuteis ceacuteticos Qualquer um pode acreditar em coisas que desconhece e ao mesmo tempo natildeo acreditar na possibilidade de conhecermos a verdade atraveacutes das aparecircncias37 Natildeo se trata aqui de ser ceacutetico e dogmaacutetico ao mesmo tempo mas de assumir um determinado grau de ceticismo que permite a suspensatildeo do juiacutezo acerca das coisas Este eacute um posicionamento uacutetil e necessaacuterio sobretudo nas diversas ocasiotildees em que precisamos assumir que as

37 Richard Popkins (2000 p 20) comenta ldquorsquoceacuteticorsquo e lsquocrentersquo natildeo satildeo classificaccedilotildees que se opotildeem O ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias das justificaccedilotildees que se apresentam para uma crenccedila duvida que razotildees necessaacuterias e suficientes tenham sido ou possam ser encontradas para mostrar que qualquer crenccedila em particular deva ser verdadeira e natildeo possa ser falsa Mas o ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo

O amor na busca pela verdade 119

nossas crenccedilas natildeo satildeo superiores ou mais verdadeiras que as crenccedilas de outrem Realizemos a epocheacute e natildeo nos deixemos afetar pela aparecircncia de verdade que nossas convicccedilotildees possuem Assim evitemos ser prejudicados por qualquer dificuldade de aceitaccedilatildeo dos diferentes posicionamentos e pontos de vista apresentados pelos outros Se o ceacuteu eacute azul ou verde tanto faz mas natildeo deixemos de aproveitar a oportunidade para apreciar a capacidade que o outro possui para enxergar as coisas de forma diversa da nossa

43 ldquoCONTRA OS ACADEcircMICOSrdquo NA BUSCA PELA VERDADE

A primeira pergunta que nos surge apoacutes a leitura

de ldquoContra os acadecircmicosrdquo (Contra academicos) eacute quem satildeo os acadecircmicos Em um momento inicial muitos podem pensar que todo o ceticismo estaacute inserido no contexto da Academia Entatildeo para entendermos a criacutetica agostiniana precisamos analisar a conjuntura filosoacutefica e histoacuterica no qual estaacute inserida

Um ponto importante que necessitamos ter em mente eacute natildeo podemos falar em ceticismo mas em ceticismos Natildeo existiu apenas um movimento ceacutetico na histoacuteria da filosofia mas vaacuterios Desse modo historiadores e filoacutesofos demarcam quatro fases do ceticismo no Periacuteodo Antigo o ceticismo antigo fundado por Pirro de Eacutelis e que se desenvolveu entre os seacuteculos IV e III aC o ceticismo acadecircmico alvo da criacutetica do bispo de Hipona e estabelecido no interior da Academia de Platatildeo por Arcesilau e Carneacuteades demarcando sua entrada na fase meacutedia da Academia (seacuteculos III e II aC) o ceticismo dialeacutetico representado por Enesidemo e Agripa entre os seacuteculos II e I aC e por fim o ceticismo empiacuterico iniciado por Sexto Empiacuterico no seacuteculo III dC

120 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Jaacute vimos que o ceticismo pirrocircnico ou ceticismo

antigo realizava a defesa de uma postura (skepsis) radical frente agrave possibilidade de natildeo se saber o que eacute a verdade Devido a isso o ceacutetico pirrocircnico se empenhava em ausentar-se totalmente de opiniotildees (afasia) Se a busca pela verdade resulta no conflito em definir entre duas proposiccedilotildees que uma eacute verdadeira e a outra eacute falsa ou que uma seja mais verdadeira que a outra entatildeo natildeo podemos emitir qualquer opiniatildeo acerca das coisas Nossa experiecircncia no mundo nos comprova que todos percebemos a realidade de diferentes maneiras Entatildeo quem percebe como o mundo eacute de verdade Quem conhece a verdade Para evitar ser atormentado por tais indagaccedilotildees impossiacuteveis de serem respondidas o ceacutetico pirrocircnico se afastava da duacutevida ao considerar que nada pode ser afirmado a respeito da natureza das coisas Somente assim era possiacutevel alcanccedilar a tatildeo desejada serenidade do intelecto (ataraxia) atraveacutes da indiferenccedila (adiaphora ἀδιάφορα)

Os ceacuteticos pirrocircnicos procuravam evitar assumir qualquer compromisso acerca de qualquer questatildeo mesmo em relaccedilatildeo agrave validade de seus proacuteprios argumentos O ceticismo para eles era uma habilidade ou atitude mental que permitia opor evidecircncias a favor e contra qualquer questatildeo relativa ao natildeo-evidente [adelo ἄδήλον] de modo a levar agrave suspensatildeo do juiacutezo acerca desta questatildeo Este estado mental levaria entatildeo agrave ataraxia agrave quietude ou imperturbabilidade quando o ceacutetico entatildeo natildeo mais se preocuparia com questotildees que transcendem as aparecircncias O ceticismo seria a cura para a doenccedila do dogmatismo (POPKIN 2000 p 16)

O conceito de evidente (prodela πρόδηλα) e natildeo-

evidente (adelo) satildeo centrais no pensamento ceacutetico Popkin esclarece que o comportamento do ceacutetico pirrocircnico se direcionava a partir das coisas evidentes agraves natildeo-evidentes isto eacute agravequilo que eacute oculto a noacutes No

O amor na busca pela verdade 121

cotidiano deparamo-nos com diversos fenocircmenos os quais percebemos atraveacutes de nossos sentidos aliados agrave nossa interpretaccedilatildeo realizada por toda a nossa estrutura bioloacutegica mental Sabemos quando estaacute de dia e quando estaacute de noite sentimos o sabor doce salgado amargo dos alimentos que comemos temos contato com diversas texturas atraveacutes da nossa pele e todas essas constataccedilotildees satildeo evidentes manifestam-se a noacutes No entanto a epocheacute eacute aplicada agraves coisas que natildeo satildeo tatildeo claras a noacutes38 Aliaacutes justamente porque natildeo satildeo visiacuteveis que natildeo podemos lanccedilar qualquer forma de juiacutezo sobre elas A opiniatildeo neste momento natildeo contribuiraacute em nada pois natildeo poderemos averiguar sua veracidade

O ceticismo acadecircmico se assemelha ao pirrocircnico pela atitude (skepsis) perante agraves coisas natildeo-evidentes Contudo ele eacute considerado como sendo uma forma mais branda posto que assume a existecircncia de coisas provaacuteveis isto eacute proacuteximas da verdade Por outro lado sua radicalidade se baseava na defesa de que a verdade natildeo pode ser conhecida ponto este que promoveu a criacutetica agostiniana Afinal se afirmamos que a verdade natildeo pode ser conhecida como podemos dizer que existem coisas proacuteximas da verdade O argumento ceacutetico acadecircmico parece conter em si uma contradiccedilatildeo a de que como saberemos que estamos nos aproximando da verdade se natildeo podemos conhececirc-la

Esta forma de ceticismo ao qual se dirige a refutaccedilatildeo do bispo de Hipona foi introduzido na Academia de Platatildeo por Arcesilau (315-240 aC) e mantido nos anos subsequentes por Carneacuteades (214-129 aC) Esta

38 Eacute preciso atentar que a forma de ceticismo assumida por Pirro de Eacutelis abrangia tanto as coisas evidentes como natildeo-evidentes para as quais aplicava a suspensatildeo de seu juiacutezo Contudo ldquoSeus sucessores logo trataram de dar nova roupagem a essa postura adotando a ἐποχή natildeo para todas as coisas mas apenas para aquelas que seriam a seu modo de ver natildeo evidentes (ἄδήλον) Assim as coisas de caraacuteter mais obscuro necessitariam de uma anaacutelise mais acurada antes de qualquer pronunciamentordquo (PEREIRA JR 2012 p 24)

122 Eacutetica e filosofia poliacutetica

nova etapa da Academia ficou sendo conhecida como fase meacutedia ou segunda ndash tambeacutem denominada Nova Academia ndash na qual vigorou por aproximadamente dois seacuteculos a afirmaccedilatildeo de um novo modelo de ceticismo Uma das fontes que temos para conhecer o ceticismo acadecircmico eacute a obra ldquoOs Acadecircmicosrdquo (Academica) de Ciacutecero escrita em 45 dC e com a qual Agostinho como tradicional leitor das reflexotildees ciceronianas muito provavelmente entrou em contato para realizar sua investida39 Contudo o filoacutesofo patriacutestico natildeo eacute o uacutenico a questionar o ceticismo acadecircmico Sexto Empiacuterico (I 1) meacutedico e filoacutesofo grego em sua obra ldquoHipotiposes Pirrocircnicasrdquo (Πυῤῥώνειοι ὑποτύπωσεις) escrita no seacuteculo II dC logo no comeccedilo de seu primeiro livro afirma

O resultado natural de qualquer investigaccedilatildeo eacute que aquele que investiga ou bem encontra aquilo que busca ou bem nega que seja encontraacutevel e confessa ser isto inapreensiacutevel ou ainda persiste em sua busca O mesmo ocorre com as investigaccedilotildees filosoacuteficas e eacute provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade outros que a verdade natildeo pode

39 ldquoO destaque para essa obra de Ciacutecero justifica-se primeiramente pelo seu caraacuteter eminentemente epistemoloacutegico pois se constitui um verdadeiro tratado sobre a natureza do conhecimento Eacute nessa obra que o autor em questatildeo iraacute apresentar ao mundo romano a filosofia vigente na Academia deixada por Platatildeo Sobretudo foi uma obra amplamente citada por Santo Agostinho em Contra Academicos e certamente a fonte desse filoacutesofo na construccedilatildeo de sua criacutetica ao ceticismo acadecircmico Esse tratado epistemoloacutegico foi editado em duas versotildees ambas com alteraccedilotildees em seus tiacutetulos originais [] Desse modo a primeira ediccedilatildeo denominada de Academica Priora era composta por dois livros Catulus hoje perdido e Lucullus que ficou conhecido como Academica II por se tratar do segundo livro da primeira ediccedilatildeo A segunda ediccedilatildeo denominada de Academica Posteriora foi dividida em quatros livros dos quais apenas a metade do primeiro sobreviveu e ficou conhecida como Academica I por ser o primeiro livro da segunda ediccedilatildeo Santo Agostinho parece conhecer apenas a segunda ediccedilatildeo referindo-se a ela como Academici Librirdquo

(PEREIRA JR 2012 p 60)

O amor na busca pela verdade 123

ser apreendida enquanto outros continuam buscando Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade satildeo os ldquodogmaacuteticosrdquo assim satildeo chamados especialmente Aristoacuteteles por exemplo Epicuro os estoacuteicos e alguns outros Clitocircmaco Carneacuteades e outros acadecircmicos consideram a verdade inapreensiacutevel e os ceacuteticos continuam buscando Portanto parece razoaacutevel manter que haacute trecircs tipos de filosofia a dogmaacutetica a acadecircmica e a ceacutetica40

Podemos notar que o antigo filoacutesofo tampouco

reconhecia o ceticismo dos acadecircmicos e preferiu denominaacute-los simplesmente de ldquoacadecircmicosrdquo Para ele os ceacuteticos estatildeo em contiacutenua busca da verdade diferente dos acadecircmicos que defendem que ela natildeo pode ser apreendida Sabendo que a criacutetica de Agostinho se dirigia ao ceticismo acadecircmico e natildeo agrave sua variante original o ceticismo pirrocircnico devemos levar em consideraccedilatildeo a argumentaccedilatildeo do autor frente ao posicionamento dos membros da Meacutedia Academia (ou Nova Academia) sem orientarmos sua contestaccedilatildeo ao ceticismo como um todo

Quando Agostinho tomou conhecimento do ceticismo logo apoacutes ter abandonado a seita maniqueiacutesta ele decidiu aderir-se ao movimento ceacutetico Essa decisatildeo demonstra a relevacircncia que o autor concedia aos seus questionamentos Desde seus primeiros estudos a busca pelo conhecimento e mais ainda pela verdade orientou seu trajeto Ao ler a obra de Ciacutecero ldquoHortecircnsiordquo (Hortensius) Agostinho (Confissotildees III 4 grifo nosso) eacute arrebatado por um forte anseio pela sabedoria e comenta em sua obra ldquoConfissotildeesrdquo (Confessiones)

Esse livro conteacutem uma exortaccedilatildeo ao estudo da filosofia Chama-se Hortecircnsio Ele mudou o alvo das minhas afeiccedilotildees e encaminhou para Voacutes Senhor as minhas preces transformando as minhas aspiraccedilotildees e desejos [] Natildeo era o estilo mas sim o assunto

40 Traduccedilatildeo de Danilo Marcondes

124 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tratado que me persuadia a lecirc-lo [] o amor agrave sabedoria pelo qual aqueles estudos literaacuterios me apaixonavam tem o nome grego de filosofia [] Apenas me deleitava naquela exortaccedilatildeo o fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim o desejo de amar buscar conquistar reter e abraccedilar natildeo esta ou aquela seita mas sim a proacutepria sabedoria qualquer que ela fosse

Entretanto o autor afirma logo depois que o seu

desejo soacute natildeo era completo devido agrave ausecircncia do nome de Cristo na obra Isso significava que tal sabedoria defendida pela filosofia ainda natildeo correspondia agrave verdade agrave qual buscava jornada esta que o inflamaria de expectativas e esperanccedilas apoacutes a conversatildeo

44 A BUSCA PELA SABEDORIA EXIGE AMOR POR ELA

Existem diversos elementos que constituem a

jornada daquele que almeja alcanccedilar a sabedoria Natildeo podemos de forma alguma acreditar que tal caminhar nos exige apenas a leitura de obras de caraacuteter filosoacutefico A philosophia (φιλοσοφία) reuacutene um conjunto de requisitos para que possa ser praticada Dentre eles temos o pensar reflexivo um contato com o eu que perpasse todas as situaccedilotildees as quais necessitamos individualmente entender melhor temos a discussatildeo o debate um movimento dialeacutetico que torna visiacutevel meus pensamentos ao outro de modo a permitir que eles sejam trabalhados por um ponto de vista diferente do meu temos a aceitaccedilatildeo de certas afinidades em que reconhecemos apreciar determinados conteuacutedos em detrimento de outros o que nos facilita a elaboraccedilatildeo de nossos proacuteprios problemas temos a aprendizagem que localiza pontos de partida que datildeo origem ao nosso caminhar temos a coragem de que em determinado momento precisaremos refletir sozinhos ndash sem nos

O amor na busca pela verdade 125

escondermos por traacutes da identidade de algum autor ndash natildeo porque estaremos diante de um problema novo mas porque cada indiviacuteduo eacute totalmente diferente do outro e portanto percebe a realidade de uma forma diferente Poreacutem o que nos insere nesta busca Porquecirc estudar philosophia

Para Agostinho tudo perpassava o amor Natildeo um sentimento romacircntico ou banal igual encontramos muitas vezes nos dias atuais mas algo promotor de movimento O amor como vontade estimula-nos a sair de nosso lugar em direccedilatildeo agravequilo que desejamos Devemos considerar entatildeo que o amor agostiniano possui trecircs constituintes aquele que ama o amor e aquilo que eacute amado Eacute uma triacuteade em que o amor intermedia a relaccedilatildeo entre o amante e seu objeto de desejo

O bispo de Hipona compreende que a existecircncia depende do amor Sem o amor noacutes nem sequer desejariacuteamos natildeo haveria nada que nos estimulasse a sair de noacutes mesmos Este eacute digamos o benefiacutecio de amar e antes dele o indiviacuteduo estaacute isolado em seu ego distante de tudo de todos do mundo41 Mas esta

41 ldquo[] santo Agostinho natildeo considera realmente seacuteria a ideacuteia de solipsismo Afirma ele em Contra os acadecircmicos que se chamo lsquoo mundorsquo ao que me parece ser o mundo entatildeo posso saber que o mundo existe Mas ter dito isso eacute apenas parte de seu esforccedilo continuado para mostrar que em vez do ceticismo acadecircmico haacute pelo menos algumas coisas que podem ser conhecidas Agostinho natildeo tenta perguntar agrave maneira de Descartes se e no caso afirmativo como posso saber que aleacutem do meu mundo fenomenal haacute um mundo fiacutesico que existe independentemente de mim e das minhas impressotildees acerca desse mundo Expresso no jargatildeo da filosofia do seacuteculo XX ele natildeo reconhece o Problema do Mundo Externo e muito menos tentou solucionaacute-lo Existe poreacutem um aspecto em que Agostinho encara muito a seacuterio o isolamento do ego Ele imagina como isso era para ele quando bebecirc antes de ter aprendido as palavras de qualquer liacutengua natural [] De acordo com esse lsquoquadro agostiniano da linguagemrsquo cada um de noacutes quebra o isolamento do seu ego epistemoloacutegico ao ter os nomes das coisas assinalados para noacutes de tal modo que acabamos por estar aptos a expressar os nossos

126 Eacutetica e filosofia poliacutetica

condiccedilatildeo natildeo perdura por muito tempo pois logo na infacircncia Agostinho entende que comeccedilamos a nos aproximar das coisas das pessoas e assim comeccedilamos a desejar Este desejo eacute expresso pela forma ainda primaacuteria de comunicaccedilatildeo atraveacutes de gestos sons e sinais que evoluem para o pronunciamento de palavras que expressam determinados sentidos Eacute dessa forma que Agostinho (Confissotildees I 6) descreve os momentos iniciais de sua proacutepria infacircncia

A pouco e pouco ia reconhecendo onde me encontrava Queria exprimir os meus desejos agraves pessoas que os deviam satisfazer e natildeo podia porque os desejos estavam dentro e elas fora sem poderem penetrar-me na alma com nenhum dos sentidos Estendia os braccedilos soltava vagidos fazia sinais semelhantes aos meus desejos os poucos que me era possiacutevel esboccedilar e que eu exprimia como podia Mas eram inexpressivos Como ningueacutem me obedecia ou porque natildeo entendiam ou porque receavam fazer-me mal indignava-me com essas pessoas grandes e insubmissas que sendo livres recusavam servir-me Vingava-me delas chorando Reconheci que assim eram as crianccedilas como depois pude observar

Destacamos nessa passagem o fato de que

Agostinho concede aos receacutem-nascidos uma faculdade do desejo como se desde entatildeo fossem capazes de distinguir aquilo que eles querem Contudo ele descreve tambeacutem a dependecircncia destes de outras pessoas para que pudessem conseguir alcanccedilar aquilo que desejam Os bebecircs apesar de jaacute conseguirem se movimentar para apontar em direccedilatildeo agraves coisas que os atraem ndash seja pela emissatildeo de sons ou gesticulaccedilotildees ndash ainda natildeo possuem uma estrutura bioloacutegica bem desenvolvida para sozinhos atingirem tais objetos Com o tempo eles natildeo

proacuteprios desejos usando as palavras que aprendemos []rdquo (MATTHEWS 2007 p 41 e 44)

O amor na busca pela verdade 127

apenas aprendem a ser autocircnomos como a equilibrar seus desejos e manipular a vontade

Contudo o amor natildeo eacute somente a chave para fugir do isolamento como tambeacutem para alcanccedilar uma determinada autonomia O termo ldquodeterminadardquo eacute utilizado para se referir a uma autonomia especiacutefica fruto do anseio do amante O livre-arbiacutetrio a noacutes concedido nos ilude e nos faz acreditar que podemos possuir uma total independecircncia diante do mundo Ao nos tornarmos responsaacuteveis por nossas escolhas e decisotildees tambeacutem nos tornamos responsaacuteveis pelas consequecircncias que elas acarretam Nesse raciociacutenio necessitamos distinguir o amor de vontade no pensamento agostiniano

Afirmamos mais cedo o ldquoamor como vontaderdquo Seraacute entatildeo que podemos pensar em outra forma de amor Natildeo foi bem assim que Agostinho avaliou a questatildeo Karl Jaspers (1962 p 95 traduccedilatildeo nossa) filoacutesofo alematildeo e estudioso da filosofia agostiniana escreveu

Na vida humana Agostinho natildeo encontra nada em que natildeo haacute amor Em tudo o que eacute o homem eacute fundamentalmente vontade e o cerne mais profundo da vontade eacute o amor Amar eacute um lutar por alguma coisa que eu natildeo tenho (appetitus) Como o peso move corpos o amor move almas Elas [as almas] natildeo satildeo outra coisa aleacutem de forccedilas da vontade [] Tudo o que o homem faz ateacute mesmo o mal eacute causado pelo amor [] E parar de amar natildeo eacute a soluccedilatildeo pois isto significa lsquoestar inerte morto abjeto miseraacutevelrsquo A saiacuteda natildeo eacute extinguir um amor perigoso mas purificaacute-lo [] lsquoAme o que eacute digno do amorrsquo42

42 ldquoIn human life Augustine finds nothing in which there is no love In everything that he is man is ultimately will and the innermost core of will is love Love is a striving for something I have not (appetitus) As weight moves bodies so love moves souls They are nothing other than forces of the will [hellip] Everything a man does even evil is caused by love [hellip] And to cease loving is no solution For that is to lsquobe inert dead contemptible

128 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quando amamos acreditamos sermos autocircnomos

por sermos capazes de amar ou melhor de termos liberdade para escolhermos o nosso objeto de amor Poreacutem tal desejo de posse nos torna dependentes daquilo que amamos Precisamente porque queremos estar proacuteximos de tais objetos sofremos com qualquer possibilidade de perda O tempo no mundo nos transforma em amantes ambiciosos posto que buscamos a todo momento novos objetos de amor natildeo apenas devido ao prazer que sentimos ao alcanccedilaacute-los como tambeacutem para suprirmos o vazio da perda gerado pelas coisas que foram tomadas de noacutes pelo proacuteprio tempo Entatildeo o amor natildeo apenas causa alegria mas tambeacutem pode causar tristeza infelicidade dependecircncia Para isso natildeo acontecer eacute preciso direcionar corretamente o amor A vontade eacute aquilo que estimula o movimento da alma Ao querer algo o indiviacuteduo se insere em um conflito entre obedecer ou natildeo agrave sua vontade Se obedececirc-la a alma poderaacute ordenar a accedilatildeo caso contraacuterio o indiviacuteduo permanece inerte parado No entanto a vontade eacute apenas propulsora e quando o indiviacuteduo se torna amante ao decidir agir ele deixa de querer e passa a ser controlado pelo puro desejo que o leva agravequilo que anseia Ao alcanccedilar aquilo que motivou sua accedilatildeo algo necessita mantecirc-lo estaacutevel proacuteximo ao objeto Esta eacute a funccedilatildeo do amor conferir estabilidade para que o sujeito possa enfim descansar naquilo que buscava deleitar-se

A relaccedilatildeo entre o amor e o ceticismo em Agostinho se expressa quando o autor afirma ser necessaacuterio investigar aquilo que eacute digno de ser amado Essa racionalizaccedilatildeo da busca faz com que tomemos cuidado para natildeo amar qualquer coisa que natildeo valha a pena Mas o que natildeo merece ser amado para Agostinho O filoacutesofo patriacutestico (Confissotildees IV 10 grifo nosso) nos concede uma pista para responder a esta questatildeo

wretchedrsquo The way out is not to extinguish a dangerous love but to purify it [hellip] lsquoLove what is worthy of loversquordquo (JASPERS 1962 p 95)

O amor na busca pela verdade 129

Que minha alma Vos louve por tudo isto oacute meu Deus Criador de todas as coisas Que natildeo se agarre a elas pelo visco do amor que entra pelos sentidos do corpo Tambeacutem as coisas caminham para natildeo existirem e dilaceram a alma com desejos pestilenciais porque ela quer existir e gosta de descansar no que ama Mas natildeo tem onde porque as coisas natildeo satildeo estaacuteveis fogem

Se as coisas satildeo instaacuteveis e portanto fogem de

noacutes natildeo porque natildeo querem ser amadas mas porque estatildeo sujeitas ao tempo entatildeo devemos direcionar nossa busca para aquilo que eacute estaacutevel No entanto o que eacute estaacutevel no mundo se ele estaacute tomado pelo tempo Surge aiacute a necessidade de se buscar algo que esteja fora do mundo a Sabedoria Desse modo a philosophia como sendo amor agrave sabedoria eacute para Agostinho uma forma de encontrar a verdade Entretanto nosso autor natildeo faz referecircncia a qualquer verdade proveniente de qualquer conhecimento ou conteuacutedo de caraacuteter reflexivo Para ele existe a verdadeira Sabedoria aquela de onde surgiu todas as outras coisas no mundo43 Dessa forma Agostinho natildeo eacute apenas um dogmaacutetico como acredita fielmente que a verdade eacute uma soacute manifesta pela Sabedoria Sua conversatildeo ao Cristianismo fez com que abandonasse o ceticismo pois mesmo este natildeo o aliviou de suas indagaccedilotildees A busca era contiacutenua como ele (Confissotildees X 40) mesmo revela

43 Plotino (2000 p 121 grifo nosso) pai do neoplatonismo comenta acerca dessa essecircncia originaacuteria o Bem (ou Uno) a partir do qual existem os outros bens Agostinho foi fortemente influenciado pelo pensamento neoplatocircnico nas leituras que realizou ao longo da vida e desse modo Plotino se torna um grande aliado na compreensatildeo de sua filosofia ldquoEacute pelo Uno que todos os seres satildeo seres tanto os seres que satildeo seres no sentido primeiro do termo quanto tudo o que se diz fazer parte dos seres de qualquer maneira que seja O que entatildeo poderia realmente ser senatildeo o Uno se eacute verdade que privados do Uno que eacute seu predicado tais seres deixam de secirc-lordquo

130 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Percorri o melhor possiacutevel com os sentidos o mundo exterior Observei em mim a vida do corpo e os proacuteprios sentidos Passei depois agraves profundezas da memoacuteria a essas amplidotildees sucessivas Observei-as estupefacto Mas sem Voacutes nada pude distinguir Contudo reconheci que Voacutes nada disto eacutereis

Eacutetienne Gilson (2006 p 17) comenta que a busca

de Agostinho se direciona a algo que ldquosatisfaz todo desejo e por consequecircncia confere a pazrdquo Natildeo muito diferente dos ceacuteticos o bispo de Hipona tambeacutem acreditava que o que o ser humano quer na verdade eacute ser feliz Da mesma maneira essa felicidade consistia na paz da alma (beatitude) em que finalmente possui todas as condiccedilotildees necessaacuterias para repousar sobre o que ama fruindo-o Existe um caminho que conduz a essa felicidade segundo Agostinho e neste sentido natildeo podemos fugir de sua teologia pois para ele a Sabedoria consiste em apenas uma coisa Deus Natildeo somente o conhecimento de Deus mas alcanccedilaacute-lo e estar proacuteximo dele Natildeo obstante o pensador nos lanccedila em mais um conflito como estar proacuteximo de Deus se ele estaacute aleacutem do tempo mundano e eacute exatamente por isso que ele deve ser buscado

Bem se os ceacuteticos natildeo acreditam que a verdade pode ser encontrada como por exemplo os acadecircmicos como estes poderatildeo se aproximar de Deus Este eacute o ponto eles natildeo podem Segundo Agostinho os ceacuteticos nunca seratildeo felizes pois sua proacutepria teoria os impedem de alcanccedilarem a beatitude Podemos afirmar que mesmo aqueles que natildeo satildeo acadecircmicos como argumentou Sexto Empiacuterico isto eacute aqueles que buscam continuamente a verdade (os ceacuteticos pirrocircnicos) natildeo satildeo capazes de enxergaacute-la visto que com a suspensatildeo do juiacutezo natildeo distinguem entre o que eacute verdadeiro e o que natildeo o eacute Mesmo se eles optarem por natildeo se manifestarem apenas diante das coisas natildeo-evidentes Deus permaneceria uma incoacutegnita pois frente aos seus

O amor na busca pela verdade 131

criteacuterios ceacuteticos ele eacute algo natildeo-evidente Todos estes indiviacuteduos que escolhem natildeo se empenhar em definir a verdade e buscaacute-la satildeo infelizes pois ldquose a sabedoria implica a beatitude e se a beatitude implica Deus o ceacutetico natildeo poderia possuir nem Deus nem a beatitude nem a sabedoriardquo (GILSON 2006 p 20)

Contudo a duacutevida ainda permanece como buscar a Deus Noacutes possuiacutemos alguma faculdade que nos permite estar em contato com o que natildeo conhecemos diretamente O caraacuteter neoplatocircnico da filosofia de Agostinho se revela quando este argumenta que nada existe sem Deus Portanto como entes somos partes de um Ser que na realidade eacute o todo Se de alguma forma participamos do Ser possuiacutemos entatildeo a capacidade para encontraacute-lo E eacute assim que deve ser compreendido o conceito agostiniano de homem interior pois o Ser estaacute em cada um de noacutes conferindo-nos existecircncia Buscar o Ser ou a Deus eacute realizar um movimento de retorno a si uma introspecccedilatildeo no proacuteprio eu que ao se reconhecer como ente eacute guiado pela proacutepria essecircncia que estaacute em seu interior O Ser nos conduz neste instante de encontro a ele que se revela como o Bem Supremo a verdadeira Sabedoria Deus eacute apreendido pelo pensamento pelo ato reflexivo e introspectivo de identificar-se como parte como ente por conseguinte como dependente em sua existecircncia de uma totalidade que estaacute aleacutem de si Aliaacutes eacute nisso que consiste a caridade agostiniana e portanto buscar verdadeiramente a Sabedoria

45 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Recordemos a pergunta levantada por Agostinho

em sua obra ldquoContra os Acadecircmicosrdquo eacute possiacutevel viver feliz sem ter encontrado a verdade44 Para o filoacutesofo a

44 A pergunta na realidade estaacute impliacutecita em todo o debate realizado na obra No entanto eacute interessante observar que na parte do texto em

132 Eacutetica e filosofia poliacutetica

felicidade depende da busca pela verdade e natildeo basta procuraacute-la apenas eacute preciso empenhar-se em encontraacute-la Para isso eacute necessaacuterio delimitar o que eacute a verdade afinal sabemos que ela existe e que pode ser encontrada Entatildeo para que direccedilatildeo deveremos caminhar nesta jornada O bispo de Hipona correspondendo agrave sua reflexatildeo de cunho teoloacutegico avalia ser Deus a verdadeira Sabedoria o que implica que sem Deus natildeo eacute possiacutevel sermos felizes Isso talvez soe pouco filosoacutefico para noacutes mas devemos atentar que Deus eacute por si soacute um grande problema para a filosofia Natildeo basta apenas assumir que devemos buscar a Deus mas entender de que se trata esse ldquoDeusrdquo na filosofia agostiniana

O autor entende a Deus como sendo aquilo de quem tudo procede Uma das passagens mais famosas de suas ldquoConfissotildeesrdquo se denomina ldquoQuem eacute Deusrdquo (Quid amatur cum Deus amatur) e nela Agostinho relata sua aacuterdua busca no interior da criaccedilatildeo para descobrir de onde vieram todas as coisas por quem tais seres foram criados Ao final a natureza proclama ldquorepara que a mateacuteria eacute menor na parte que no todordquo e entatildeo o autor (Confissotildees X 6) declara

Por isso te digo oacute minha alma que eacute superior ao corpo porque vivificas a mateacuteria do teu corpo dando-lhe vida o que nenhum corpo pode fazer a outro corpo Aleacutem disso teu Deus eacute tambeacutem para ti vida da tua vida

que Agostinho (Contra os Acadecircmicos I 25) expotildee a questatildeo que seraacute tratada ele inicia a conversa da seguinte forma ldquoE uma vez tendo-nos reunido por conselho meu num lugar que me pareceu oportuno para tal eu disse Por acaso duvidais que devemos saber o que eacute verdadeirordquo Em seguida o autor questiona ldquoSe pudeacutessemos ser felizes mesmo natildeo tendo compreendido o que eacute verdadeiro julgais ainda ser necessaacuteria a compreensatildeo do mesmo [] O que vos parece disse eu Julgais podermos ser felizes mesmo natildeo tendo encontrado a verdaderdquo

O amor na busca pela verdade 133

Temos duas informaccedilotildees acerca de Deus nestes

trechos ele eacute a mateacuteria do todo e por isso eacute o que confere vida agrave nossa vida e Deus eacute tambeacutem a substacircncia assim como as partes os entes Na ontologia agostiniana existe a substacircncia e o que natildeo eacute substacircncia ou seja o nada45 Sendo Deus a substacircncia originaacuteria todas as coisas e sobretudo noacutes mesmos revelamos cotidianamente a sua existecircncia Dessa forma natildeo eacute difiacutecil para Agostinho distinguir a verdadeira Sabedoria uma vez que ela estaacute presente em tudo

Por ser o todo tambeacutem natildeo eacute uma tarefa complicada descobrir onde buscaacute-la ou qual o caminho deve ser percorrido para encontraacute-la Como partes podemos afirmar que a Sabedoria estaacute em noacutes tambeacutem assim como ela se mostra em toda a natureza E como acessar essa Sabedoria que estaacute tatildeo disponiacutevel a noacutes De acordo com Agostinho esse eacute o empreendimento humano que perpassa o se sentir parte de uma parte (o mundo) e acreditar que esta parte eacute o todo ateacute descobrir que na realidade o todo eacute outra coisa inimaginaacutevel eterno e absolutamente infinito

Precisamos relembrar que antes de Agostinho aderir agrave feacute cristatilde ele seguia o movimento do ceticismo

45 O nada ou o vazio natildeo eacute Eacute neste argumento que se fundamenta a ideia de mal em Agostinho O mal em si natildeo existe porque se existisse seria substacircncia E assim sendo ou ele seria Deus ou teria sido criado por ele Agostinho recusa estas duas possibilidades Deus natildeo eacute o mal porque ele eacute o Sumo Bem e tampouco ele conteacutem o mal ou o criou pois todas as coisas criadas satildeo boas Tambeacutem natildeo existe um deus mal pois isto implicaria dizer que existem dois deuses e Agostinho em correspondecircncia agrave sua influecircncia neoplatocircnica defendia a ideia do Uno Deus eacute o Ser o Uno e nenhum outro Ser existe aleacutem dele E devido a isso eacute apenas dele que vieram todas as coisas Desse modo o mal natildeo existe ele eacute o nada O mal que encontramos no mundo eacute resultado de nossas accedilotildees derivadas de nossas escolhas as quais provecircm de nosso conflito entre as vontades No entanto natildeo eacute uma disputa entre vontade boa e maacute mas uma briga entre o querer e o natildeo-querer

134 Eacutetica e filosofia poliacutetica

acadecircmico sendo ele proacuteprio alvo de suas criacuteticas posteriores Contudo ao que parece o ceticismo acabou se tornando uma ponte para a sua conversatildeo ao cristianismo o qual permitiu-lhe encontrar e se ancorar naquilo que considerava ser por fim a verdadeira Sabedoria

REFEREcircNCIAS AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos A Ambroacutesio de Pina 21 ed Braganccedila Paulista Universitaacuteria Satildeo Francisco 2006 (Col Pensamento Humano)

______ Contra os acadecircmicos Trad Enio Paulo Giachini Petroacutepolis Vozes 2014

CESAREA Eusebius Preparation for the Gospel Trad E H Gifford Disponiacutevel em lthttpwwwtertullianorgfathersindexhtmPraeparatio_Evangelica_(The_Preparation_of_the_Gospel)gt Acesso em 26 jun 2016

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Metafiacutesicas Trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Folha de S Paulo 2015 (Col Folha Grandes Nomes do Pensamento v 5)

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes Pirrocircnicas Livro I Trad Danilo Marcondes Rev o que nos faz pensar n 12 set 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 27 jun 2016

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2006

O amor na busca pela verdade 135

JASPERS Karl Plato and Augustine Nova York Harcourt Brace amp Company 1962 (Col The Great Philosophers v 1)

MATTHEWS Gareth B Santo Agostinho a vida e as ideacuteias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007

PEREIRA JR Antonio Agostinho e o Ceticismo Um estudo da criacutetica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos 2012 116 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2012

PLOTINO Tratado das Eneacuteadas Trad Ameacuterico Sommerman Satildeo Paulo Polar Editorial 2000

POPKIN Richard A Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza Trad Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

136 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= V =

A BUSCA DA VERDADE EM SANTO AGOSTINHO ldquoSCEPTIQUES MALGREacute LUIrdquo

Anderson Lucas dos Santos Pereira

51 INTRODUCcedilAtildeO

O presente trabalho tem como intuito analisar a

questatildeo da verdade em Santo Agostinho Como eacute sabido esse ser mutante chamado Santo Agostinho teve uma fase ceacutetica que posteriormente seraacute por ele criticada em sua busca incessante pela verdade Todavia o aguilhatildeo ceacutetico acompanharaacute Santo Agostinho por toda sua vida mesmo convertido Tal trabalho tem a pretensatildeo de dar luz ao problema ceacutetico que haacute no presente autor percorrendo e averiguando por algumas de suas principais obras a questatildeo da Verdade analisando ateacute que medida o problema ceacutetico se daacute como resolvido

52 A REDENCcedilAtildeO E O AGUILHAtildeO CEacuteTICO EM SANTO AGOSTINHO

Confessar Eis o instante da ressurreiccedilatildeo O

inclinar-se a contemplar o caminho da redenccedilatildeo depois de uma estadia na corrupccedilatildeo em prol da transgressatildeo Render-se eacute sentir-se viacutevido suspender-se de todas as ldquonuvens de metalrdquo negar todo o mal e com isso elevar-se em destino a vereda pueril da emancipaccedilatildeo Quando Agostinho confessa concomitantemente liberta-se de alguns dos mais friacutevolos grilhotildees que enclausura seu espiacuterito longe do ser divino pois libertar-se se torna o

Graduando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute

138 Eacutetica e filosofia poliacutetica

caminho para a salvaccedilatildeo sossegar no divino se torna uma suacuteplica para a emancipaccedilatildeo de si Perante isso o viver ganha uma nova finalidade um dia natildeo eacute vivido apenas para esse dia a verdade evoca sua grandeza no proacuteprio caminho da redenccedilatildeo A verdade torna-se pretexto para o caminho da liberdade pois ser livre eacute praticar a verdade na factualidade e ser verdadeiro eacute ter como paradigma o caminho do Ser no qual enquanto estiver percorrendo timidamente contemplaraacute a autenticidade

Alguns perguntariam qual entatildeo eacute o caminho correto para a ressurreiccedilatildeo A liberdade com seu tom teacutetrico nos responderia natildeo haacute caminho pronto o trabalho do peregrino eacute aacuterduo ao mesmo tempo que teraacute de percorrer o caminho o teraacute tambeacutem para construiacute-lo pois inquieto eacute o coraccedilatildeo de um homem ateacute encontrar a verdade repousando nos braccedilos de Deus A finalidade teoloacutegica estaacute dada coube a Agostinho traccedilar o caminho ateacute a integridade Contudo ao confessar Agostinho natildeo tem o intuito apenas de expurgar suas laacutestimas anguacutestias que atordoam sua alma deixando-a inquieta mas sim tambeacutem mostrar a todos que lerem seu livro o Verdadeiro caminho para a redenccedilatildeo baseando-se em uma vida confessada ao lado de seu Pai

Mas a quem narro eu estes fatos Natildeo eacute a voacutes meu Deus Na vossa presenccedila dirijo-me ao gecircnero humano aquele a que eu pertenccedilo ainda que essas paacuteginas possam chegar apenas a uma minoria Entatildeo para que escrevo isto Para que eu e todos que lerem essas palavras pensemos de que abismo profundo se deve clamar por Voacutes (Conf 23 p 53-54)

Encontraraacute muitas pedras no caminho o saacutebio que

decidir percorrer esta trilha Agostinho virtuoso tu eacutes A ferro e fogo entre o erro e a voluacutepia tu vivestes livrou-se ainda em tempo do sensualismo do corruptiacutevel emancipou-se tambeacutem da duacutevida generalizada que antes

A busca da verdade em Santo Agostinho 139

fluiacutea em seu sangue rendeu-se ao maniqueiacutesmo em sua juventude mas logo conseguiu ver salvaccedilatildeo para o pereciacutevel confessou-se e teve a caridade de nos presentear com seu livro (Confissotildees) como uma forma de libertaccedilatildeo do ser para que outras pessoas sigam o caminho do pequeno cordeiro que levaraacute agrave verdade irrefutaacutevel Deus Quem percorrer essa vereda com acircnsia agrave libertaccedilatildeo de si primeiramente teraacute que morrer para assim alcanccedilar a liberdade pois o acircmago da existecircncia soacute eacute concebiacutevel quando deixamos tudo e aceitamos o que os olhos natildeo podem ver

Assim Agostinho invoca sua uacutenica verdade ao compasso do soliloacutequio contempla a luz da salvaccedilatildeo uma verdade irrevogaacutevel jaacute impressa em sua alma o Verbo transparece de uma forma inata Todos fomos feitos por Deus medite que O encontraraacute Mas a certeza do caminho natildeo possui clareza devemos primeiramente o louvar ou o invocar

Mas quem o invoca sem antes natildeo o conhecer Ou por ventura natildeo sois antes invocados para depois serdes conhecido Mas como evocaratildeo em que natildeo acreditaratildeo (Confissotildees p 27)

Entatildeo mostra-se penumbra em meio agrave busca da

salvaccedilatildeo A duacutevida natildeo estaacute cessada mesmo que o caminho fora jaacute projetado agrave luz Mesmo em meio ao horizonte em direccedilatildeo agrave luz do sol a penumbra criada pelas aacutervores rochas em meio agrave jornada obstruiraacute seu caminho Vemos entatildeo que a duacutevida natildeo estaacute introjetada no conhecimento de si para Deus mas sim adversamente na ldquoquestatildeo que Deus fez dele ndash a questatildeo dentro da questatildeordquo (WAZTEL 2015 p 97) Deus estaacute concebido mas a obscuridade rodeia sua legiacutetima face transcende os escombros limitados que datildeo forma agrave nossa razatildeo O corromper da carne natildeo concebe o todo da Eternidade mas mesmo assim

140 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eacute pela feacute que comeccedilamos a ser curados mas nossa salvaccedilatildeo seraacute perfeita quando este corpo corruptiacutevel for revestido da incorruptibilidade e quando este corpo mortal for revestido de imortalidade Essa eacute esperanccedila natildeo ainda realidade

Eis a anguacutestia percorrida pelas suas Verdades

indagando de uma forma sutil e inocente o natildeo comensuraacutevel com sua crenccedila pelo breve futuro

Traccedilar o caminho eis a consequecircncia de ser jogado ao mundo da imundiacutecie do pecado e da voluacutepia Agostinho com suas Confissotildees leva-nos a esta inexoraacutevel caminhada em direccedilatildeo ao futuro na qual com os passos vagarosos caminhamos para a salvaccedilatildeo tendo como pano de fundo a formaccedilatildeo moral do homem perante Deus O caminho explanado nas Confissotildees nos mostra que desde quando nascemos a partir de nossos primeiros segundos em plano terreno nascemos imperfeitos e seres pecadores Agostinho nos salienta

em que podia pecar neste tempo Em desejar ardentemente os peitos de minha matildee Se agora suspirasse com a mesma avidez natildeo pelos seios maternos mas pelo alimento que eacute proacuteprio de minha idade seria escarnecido e justamente censurado (Confissotildees p 33)

Vemos entatildeo que a noccedilatildeo de pecado se daacute

desde o alvorecer de nossa vida desde a amamentaccedilatildeo as laacutegrimas de uma crianccedila satildeo a vinganccedila pelo leite natildeo concebido na hora desejada Seraacute isso a reminiscecircncia de um dos primeiros pecados ldquoOu seria justo mesmo para aquela idade exigir com choros o que talvez o que seria concebidordquo (Confissotildees p 34) Eis a duacutevida novamente fomentando o ardor da alma em direccedilatildeo agrave clemecircncia divina Vemos a transgreccedilatildeo como uma caracteriacutestica jaacute impliacutecita no homem desde sua nascenccedila e que o caminho em prol da redenccedilatildeo torna-se aacuterduo em

A busca da verdade em Santo Agostinho 141

meio ao viacutecio do pecado pois tudo que vislumbramos e vivemos no cotidiano perverte-se em benefiacutecio agrave culpa nos desvirtua do caminho divino rumo a redenccedilatildeo

Agostinho nas Confissotildees nos relata os pecados que cometeu em sua adolescecircncia em benefiacutecio ao ldquocalorrdquo da transgressatildeo Quando ele se debruccedila em seu passado constata nele a beleza materialista que o rodeia vendo isso nas minuacutecias cotidianas como por exemplo nos prazeres sensuais da carne nos jogos de poderes no deleite sobre a inveja perante outros Com esses poucos exemplos vemos o quatildeo distante Agostinho estaacute do caminho postulado em direccedilatildeo agrave veracidade divina pois tais bens se tornam decompositores das virtudes negando ldquoTu Deus Tua Verdade Tua leirdquo (Salmos 40) ldquoeu escapuli de ti em minha adolescecircncia e me extraviei meu Deus ndash foi um grande desvio de tua constacircncia e me tornei para mim mesmo um lugar de desolaccedilatildeordquo O viacutecio leva o ser agrave desolaccedilatildeo no sentido de estar longe do caminho postergado pela luz divina a desolaccedilatildeo se daacute no desassossego da alma em natildeo conter Deus em seu coraccedilatildeo preferindo o tormento e a anguacutestia na desertidatildeo da alma

Quando ousamos corromper a ordem em prol do pecado estamos efetuando um modo de alienaccedilatildeo da transgressatildeo Contudo vemos que tal ldquofealdaderdquo perante os dogmas divinos natildeo satildeo uma negaccedilatildeo de si e de Deus (pois isso seria partir de um adendo maniqueiacutesta) mas sim a negaccedilatildeo de si e de Deus seria a proacutepria noccedilatildeo de suiciacutedio Com isso vemos que para Agostinho os prazeres materiais nada satildeo do que objetos obstinados para a perdiccedilatildeo e com isso para a decomposiccedilatildeo da alma pois eles natildeo deixam uma impressatildeo duradoura como uma Verdade Eterna por maior que for o prazer de tal ente Jaacute o prazer perante a divindade (Aacutegape) se daacute na infinidade da ideia pois como vemos a proacutepria noccedilatildeo de graccedila eacute infinita

142 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Mas diferentemente quando morremos para o

mundo pereciacutevel (em prol da redenccedilatildeo) repercutiremos os passos do Messias ldquoJesus de Nazareacuterdquo Tal morte para Santo Agostinho se daacute como uma representaccedilatildeo da ldquomorte realrdquo pois em meio ao padecimento Jesus se dava como um ser apaacutetico ao medo aceitando seu destino em prol do incorruptiacutevel Eis a figura da morte original Jesus desmaterializou-se com um intuito maior para que pudesse retornar a nossos coraccedilotildees e com isso nos propiciar uma morte particular e legiacutetima Negar o caminho que Jesus de Nazareacute percorreu eacute o mesmo que negar Deus e morrer para Ele A vida sem Deus se daacute na perdiccedilatildeo de ser levando-nos agraves piores dores sendo assim o ideal de vida eacute voltado agrave contemplaccedilatildeo divina concomitante a uma vida confessada Quando nos desvirtuamos do caminho da Verdade negamos tambeacutem o amor de Deus Fomos feitos para sermos estimados por Ele somos sua Suma importacircncia pois ldquoO que faraacutes tu Deus se eu perecer Eu sou teu vaso e se me quebro Eu sou tua aacutegua e se apodreccedilo Sou tua roupa e teu trabalho Sem mim perdes tu e teu sentidordquo (RILKE Rainer Novos poemas p 62) Somos feitos para almejar a Deus Ele eacute inato agrave alma humana nossa harmonia estaacute intriacutenseca ao Verbo ldquoTu nos comoves e nos comprazemos em glorificar a ti que nos fizestes teus ndash e assim o coraccedilatildeo dentro de noacutes eacute desassossegado ateacute sossegar em tirdquo

Com isso vemos que Deus estaacute em tudo e que noacutes devemos O almejar de corpo e alma Sem Deus a alma se daacute como um lugar confinado aacutevido pelos pecados carnais cabe ao Rei adentrar agrave alma e a reparar E se acaso a morada de meu ser for muito pequena entatildeo ldquodeixe que seja expandida por tirdquo Eis o caminho seguido por Jesus de Nazareacute no qual devemos nos aliar para com isso nos santificar

Como seria uma vida sem Deus onde os ornamentos do futuro enfeitam sua existecircncia com seus

A busca da verdade em Santo Agostinho 143

tons obscuros Como seria viver uma vida proacutediga percorrendo os caminhos do absurdo Agostinho retrata a partir de uma reflexatildeo da paraacutebola de Lucas 15 sobre o ser aduacuteltero do caminho de Deus seguindo a infidelidade morrendo para seu Pai Esta paraacutebola conta a histoacuteria de um pai e dois filhos na qual o filho mais novo um dia pediu parte de sua heranccedila ao pai O pai com sua condolecircncia daacute a seu filho tal parte de seus bens como resultado vecirc seu filho partir pelo mundo afora A vida proacutediga e desordenada do filho mais novo faz com que em poucos meses ele gaste todo seu dinheiro com momentos dissoluacuteveis tornando-se pobre Com sua vida em xeque vecirc-se obrigado a trabalhar em terras de um carrasco tornando-se seu escravo alimentando-se escondido do resto da comida dos porcos para natildeo morrer de fome Ficando evidente natildeo apenas sua miseacuteria material mas tambeacutem miseacuteria propriamente existencial de um coraccedilatildeo que natildeo possui Deus Com a consciecircncia pesada de ter transgredido voltou agraves terras de seu pai e abraccedilando-o e beijando-o implorou para que seu pai o deixasse trabalhar para ele como carteiro (oficio de seu pai) O filho mais velho chega em cena diante do que vecirc seu pai abraccedilando o filho proacutedigo e o presenteando com uma grande festa por sua volta irrita-se e rebela-se contra o pai pois ele nunca havia ganhado nada de seu pai mesmo natildeo o traindo e seu irmatildeo por ter traiacutedo havia ganho uma festa por sua volta O pai com toda sua serenidade entatildeo responde ao filho que todos seus bens pertencem tambeacutem a ele mas que era justo alegrar-se naquele dia pois seu irmatildeo estava morto e reviveu tinha se perdido mas achou-se

Em uma adaptaccedilatildeo da paraacutebola do filho proacutedigo Agostinho nos apresenta seu eu da juventude como um eu corrompedor dos valores que ele agora pregava Agostinho nos conta que em sua juventude com a companhia de seus amigos roubara a propriedade de outrem uma porccedilatildeo de frutas natildeo cometeu tal delito pela

144 Eacutetica e filosofia poliacutetica

fome que sentira mas apenas pela adrenalina da transgressatildeo das regras Tanto na paraacutebola do filho proacutedigo quanto na adaptaccedilatildeo confessional os elementos incisivos na proacutepria noccedilatildeo de pecado original Um deles eacute a pobreza motivacional perante o fato de roubar que apenas tinha como intuito ilusoacuterio a delimitaccedilatildeo das normas e ser concebido em um grupo de amigos e tambeacutem uma disposiccedilatildeo de substituir o consenso racional implantado por uma ausecircncia da razatildeo

Com isso a partir de uma analogia entre a paraacutebola biacuteblica e a confissatildeo de Santo Agostinho alguns nuances que se assemelham e se negam Vemos a partir de uma explanaccedilatildeo de James Watzel tais similaridades e dissonacircncias

Jaacute existem umas divergecircncias oacutebvias da paraacutebola de Lucas Agostinho natildeo estaacute desperdiccedilando uma heranccedila que lhe foi concedida voluntariamente estaacute desperdiccedilando um fruto que a lei o proiacutebe de colher E natildeo apenas ele ele natildeo ousaria infringir a lei caso estivesse sozinho e menos consciente de sua necessidade de ser aceito no grupo Agostinho tece em sua faacutebula do proacutedigo dois elementos que associa com o pecado original pobreza de motivo (natildeo existe uma boa razatildeo para enfrentar as leis de Deus e perder o Eacuteden) e uma disposiccedilatildeo para substituir o consenso por uma ausecircncia de razatildeo (ningueacutem perde o Eacuteden sozinho) Com resultado muda seu foco para a natureza proacutediga do pecado ndash uma forma de pobreza obstinada velado como um movimento para a auto expressatildeo licenciosa (WATZEL James Compreender Santo Agostinho p 76)

Vemos entatildeo um retrocesso ao mito adacircmico e

segundo Agostinho a primeira causa das transgressotildees futuras Deus dentre os sete dias natildeo criou o pecado o homem que se possibilitou a ele a partir de seu livre-arbiacutetrio Todos os pecados em si possuem consigo a caracteriacutestica do pecado primordial concebido na gecircnese

A busca da verdade em Santo Agostinho 145

da criaccedilatildeo a transgressatildeo a desordem o desvirtuamento eacute o fundamento do pecado em si O mal natildeo eacute nada mais que essa transgressatildeo de ordem uma negaccedilatildeo em prol da ilusatildeo da liberdade que se fundamentou na corrupccedilatildeo desvinculando-se do eterno Deste modo a infecccedilatildeo postulada pelo pecado original e toda sua culpabilidade condenando desde as crianccedilas no ventre de suas matildees ateacute as mentes mais perversas e contagiosas Eis o contaacutegio hereditaacuterio que perpassa por todas as culturas e tempos que afeta e alastra-se como uma praga por toda a humanidade

Tal pecado original se daacute como uma obra da liberdade humana sendo destituiacuteda da Natureza de Deus e concomitantemente concebida como uma negaccedilatildeo do Mesmo Tudo que natildeo se constitui a partir da benccedilatildeo divina rui em meio as trevas Adatildeo o terroso perde com isso Assim como o resto do mundo a proximidade com o Ser divino sendo retirado da gleba deteriorando-se em meio ao poacute A poeira caoacutetica eacute a heranccedila postergada pelos primeiros humanos que se espalha e perpetua transmitida a todo gecircnero humano pelo primeiro homem o ancestral iniciador da perdiccedilatildeo Vemos entatildeo a histoacuteria do universo segmentada em duas partes uma anterior ao pecado e uma poacutestuma a ele consistido na perdiccedilatildeo humana na desuniatildeo e no desassossego longe de Deus

Em Satildeo Paulo temos Adatildeo como ldquoa figura daquele que devia virrdquo e por mais que natildeo conceba uma visatildeo primordial do pecado Como um contaacutegio hereditaacuterio assim como em Santo Agostinho podemos jaacute salientar a evidecircncia de tal concepccedilatildeo ou seja do que posteriormente tornou-se a noccedilatildeo de pecado primordial

12O pecado entrou no mundo por um soacute homem Atraveacutes do pecado entrou a morte E a morte passou para todos os homens porque todos pecaram 13Na realidade antes de ser dada a Lei jaacute havia pecado no mundo Mas o pecado natildeo pode ser imputado quando

146 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo haacute lei 14No entanto a morte reinou desde Adatildeo ateacute Moiseacutes mesmo sobre os que natildeo pecaram como Adatildeo - o qual ndash era a figura provisoacuteria daquele que devia vir 15Mas isso natildeo quer dizer que o dom da graccedila de Deus seja comparaacutevel agrave falta de Adatildeo A transgressatildeo de um soacute levou a multidatildeo humana agrave morte mas foi de modo bem mais superior que a graccedila de Deus ou seja o dom gratuito concedido atraveacutes de um soacute homem Jesus Cristo se derramou em abundacircncia sobre todos Palavra do Senhor (Satildeo Paulo aos Romanos 512-15)

Com este fragmento da epiacutestola de Satildeo Paulo aos

romanos percebe-se que diferentemente de Santo Agostinho e o mal original Paulo salienta que ldquoAtraveacutes do pecado entrou a morte e a morte passou para todos os homens porque todos pecaramrdquo A morte neste sentido ganha um indicativo do conceito do mais puro mal tornando o mal algo concebido criado diferindo-se da posiccedilatildeo agostiniana do mal como o livre-arbiacutetrio escolhido pelo homem O pecado em Paulo natildeo foi inventado pelo homem eacute por conseguinte uma forccedila interior ao proacuteprio homem instituiacuteda por uma forccedila maior

Mas o que levou Adatildeo ou qualquer outro humano a cometer pecados negando o que haacute de mais Belo Justo e Bom Qual eacute a maior motivaccedilatildeo para ser um transgressor de acordo com Agostinho

Agrave preguiccedila parece apetecer apenas o descanso mas que repouso seguro haacute fora do senhor A luxuacuteria deseja apelidar-se saciedade e abundacircncia Voacutes poreacutem sois a plenitude e abundacircncia interminaacutevel da suavidade incorruptiacutevel A prodigalidade cobre-se com a sombra da liberalidade mas o mais magnacircnimo dispensador de bens sois Voacutes A avareza quer possuir muito e Voacutes possuis tudo a inveja litiga a partir da ldquoexcelecircnciardquo mas haveraacute algum Ser mais excelente que voacutes A ira procura a vinganccedila e quem se vinga mais justamente que voacutes (Confissotildees p 60)

A busca da verdade em Santo Agostinho 147

No entanto os bens corruptiacuteveis tecircm sua beleza que se resume na aptidatildeo pelo seu fim Independente do fim seja pela mera inclinaccedilatildeo a pecar ou pelas riquezas e soberba visceral o pecado procura a partir de sua beleza enganadora impulsionar o homem ao decliacutenio da alma com isso deleitando-se em meio agrave luxuacuteria o pecado mais avassalador e imundo Neste momento o homem agrada-se aos braccedilos de Asmodeus sucumbindo-se em meio ao caos levando o mesmo fim que Sodoma

Diante dessas constataccedilotildees surge uma outra questatildeo Porque a preferecircncia por esses prazeres corruptiacuteveis sendo que Deus posto a noacutes se daacute como um ser insaciaacutevel A resposta para isso encontra-se no conceito ldquodesejordquo (desidĕrĭvm) Etimologicamente veremos que tal conceito tem origem latina onde o radical ldquoderdquo indica um movimento de declive ou seja um movimento de cima para baixo Enquanto o prefixo do conceito (sidĕrĭvm) significa ldquoestrelardquo ldquoastrordquo ldquocorpo celesterdquo Com tal especificaccedilatildeo lembramos sobre a estrela caiacuteda dos ceacuteus (Luacutecifer a estrela da manhatilde) que a partir de seu desejo de se igualizar a Deus por seu orgulho foi exilado dos ceacuteus em declive ao inferno No paraiacuteso adacircmico tambeacutem o desejo foi o progenitor do pecado resultando na expulsatildeo do paraiacuteso A transgressatildeo nada mais eacute que o desejo pelo natildeo concebido pelo proibido

Vemos em Santo Agostinho que tal fonte de desejo por natildeo apenas conceber Deus como seu objeto mas variados entes o desejo se daacute como segundo Hannah Arendt expotildee

Santo Agostinho define o amor como uma forma de desejo que dentro da temporalidade se coloca como anseio de se apropriar deste algo bom seja por recuperaccedilatildeo do que jaacute se teve ou alcanccedilando o que ainda natildeo se tem Mas o problema eacute que este desejo de posse implica o medo medo de perder medo de natildeo alcanccedilar que remete de novo o homem agrave

148 Eacutetica e filosofia poliacutetica

instabilidade que por sua vez gera o movimento Santo Agostinho se volta para a questatildeo uacuteltima do amor como anseio de superaccedilatildeo do medo do isolamento e da instabilidade o que implica a superaccedilatildeo da proacutepria temporalidade A vida na temporalidade eacute um entre entre o natildeo mais e o ainda natildeo Desse modo Santo Agostinho afirma que o homem eacute aquilo que ama e para ele quem natildeo ama natildeo eacute nada E portanto adverte eacute necessaacuterio ter cuidado em relaccedilatildeo ao que se ama no sentido de estar atento ao que se ama O que o homem ama onde potildee a atenccedilatildeo ali estaacute o seu destino (ARENDT Hannah O conceito de amor em Santo Agostinho)

Na realidade para Santo Agostinho haacute uma

expansividade o desejo Ou seja a lsquoestrutura fundamental do entersquo (o desejo) eacute a forma de um apetite que instala o querente na solidatildeo expotildee-no a todas as anguacutestias e a todas as audaacutecias mas atraiccediloa uma dinacircmica irrecusaacutevel a vontade de ser feliz Felicidade alegria ou qualquer outro nome que se lhe chame o objeto do desejo revela o fim uacuteltimo do ser criado ser feliz O desejo eacute ontoloacutegico eacute um movimento um anseio em direccedilatildeo a algo bom o que jaacute implica a ideia da instabilidade do ser humano que eacute assim um ser em tracircnsito O homem eacute aquilo que se esforccedila por atingir Ficamos parecidos com o que amamos O amor eacute a mediaccedilatildeo entre o que ama e aquilo que ama o que ama nunca estaacute isolado daquilo que ama isso lhe pertence A realizaccedilatildeo eacute a beatitude que natildeo consiste em amar mas em fruir daquilo que eacute amado e desejado Todo o amor eacute tensatildeo dirigida para esta fruiccedilatildeo No entanto ningueacutem eacute feliz se natildeo fruir do que ama Fruir eacute estar perto do objeto desejado O que pode impedir o homem neste trajeto eacute a sua proacutepria vontade o livre-arbiacutetrio Cabe aos homens elegerem o objeto de seu amor aquilo que pensa que os faraacute felizes O mal natildeo estaacute no mundo ou nos objetos do mundo mas onde se coloca o coraccedilatildeo A morte como o fim da vida lanccedila a proacutepria vida para o retorno ao seu

A busca da verdade em Santo Agostinho 149

ser O amor tem a forccedila da morte porque o poder de subtrair o homem ao mundo reenvia agrave eleiccedilatildeo no seio do mundo Em outras palavras o sentimento de que natildeo haacute o que perder eacute o objetivo maior do amor lsquoTorna-te o que eacutesrsquo ndash isto eacute reconhece com gratidatildeo o que o fato de ter nascido te proporciona

Agostinho nas confissotildees lembra de um amigo falecido pela febre chorou lamuriou-se sobre a vida de seu amigo visando uma tristeza mais teatral quanto intensa Teatral natildeo no sentido de sentir uma tristeza falsa perante seu amigo mas sim uma tristeza anaacuteloga agraves trageacutedias gregas algo que encanta e ilude ao mesmo tempo Agostinho nas confissotildees nos diz que a morte de seu amigo se dava de um modo entristecedor para ele pois o amigo fazia parte dele quando ele via seu amigo via ao mesmo tempo o seu eu estampado na figura do amigo

Meu coraccedilatildeo estava inteiramente na sombra da tristeza e a morte era o que eu via em tudo Minha terra natal era uma puniccedilatildeo para mim a casa do meu pai um lugar estranho e desafortunado As coisas que eu partilhava com meu amigo voltavam e me torturavam cruelmente em sua ausecircncia Meus olhos se mantinham procurando por ele em todo lugar e ele havia partido

Em outra passagem das Confissotildees Agostinho

retrata o quanto seu eu transgressor contemplava e pranteava por figuras que natildeo eram seu Deus colocando seu amor nos seres corruptiacuteveis negando o eterno Por exemplo quando Agostinho defronta-se em sua juventude com a obra traacutegica de Virgiacutelio denominada Eneida sente-se frustrado por ter chorado naquela eacutepoca por uma ficccedilatildeo traacutegica na qual Dido mulher de Eneacuteas mata-se por seu amor pois ele queria fundar Troacuteia em Roma em vez de ficar ao lado de sua esposa Agostinho frustra-se pois estava chorando por um ser que aleacutem de

150 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ficcional tambeacutem se lamuriava por Eneacuteas natildeo ter auto-piedade de si negando a Deus em favor de uma guerra Quando Agostinho refere-se aos atos traacutegicos o mesmo diz que a mimeses da vida no teatro se daacute em um fundo falso no qual apenas o que conta eacute a aparecircncia da tristeza negando o real sofrer Agostinho nega a importacircncia da catarse aristoteacutelica dos sentimentos pois o homem que sofre por medo da perca de um ente querido ou de sua proacutepria vida estaacute com a alma perturbada (perturbatio animi) negando a felicidade virtuosa possui o medo do devir aos braccedilos de Deus Vemos com isso que o amor por mais que seja sincero pode desvirtuar-se ao caminho da morte perante Deus

Mas voltando agrave questatildeo ao cerne do problema proposto sobre o caminho da redenccedilatildeo Agostinho por mais que tenha se rendido agrave graccedila da salvaccedilatildeo obtecircm uma soluccedilatildeo para com sua duacutevida perante o conhecimento de Deus Em outras palavras sua experiecircncia fruitiva perante o Absoluto se daacute de forma clara e distinta Segundo o comentaacuterio de Jacques Maritain filoacutesofo da religiatildeo especialista em Santo Agostinho

A experiecircncia miacutestica consiste essencialmente numa ldquoexperiecircncia fruitiva do Absolutordquo Como experiecircncia fruitiva ela se exerce atraveacutes de um tipo de conhecimento de seu objeto e de adesatildeo afetivo-volitiva que transcendem o modo usual de operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer e visa em sua intencionalidade objetiva o Absoluto ultrapassando a contingecircncia e relatividade dos objetos que se aparecem agrave nossa experiecircncia ordinaacuteria (MARITAIN 1930)

Se observar possibilidade da ldquoaberturardquo perante o

divino de uma forma transcendental que supera a forma loacutegicaformal de conhecimento experienciativo delimitando o conhecimento perante a possibilidade

A busca da verdade em Santo Agostinho 151

intramundana concebida pelo sensualismo concomitante agrave experiecircncia casual Conceber o divino eacute ir aleacutem do conhecimento funcional e utilitaacuterio posto no cotidiano eacute transgredir a sensibilidade corriqueira diluir-se em um ecircxtase em sintonia com a Luz gravada na alma onde mesmo fechando os olhos poderei Te ver mesmo trancando os ouvidos poderei Te ouvir no qual mesmo sem minha proacutepria boca poderei Te invocar pois como suportar a sensibilidade se natildeo tornar ela uma definiccedilatildeo do ausente Uma suposiccedilatildeo do indiziacutevel Eis o sentimento extaacutetico lanccedilando-se aos braccedilos do inconcebiacutevel cegado pela luz que vela o impossiacutevel sendo apenas o que eacute todo o absurdo ldquoeis o misteacuterio da feacuterdquo (Oraccedilatildeo Eucariacutestica III) Sobre o misteacuterio cita Agostinho

[] A quem confessaria a minha ignoracircncia com mais proveito do que a ti que natildeo se desapraz com o forte zelo que me inflamas por tuas Escrituras Concede-me o que amo pois este amor eacute um dom teu Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios Eu suplico por Cristo em nome do Santo dos santos que ningueacutem perturbe minha investigaccedilatildeo Acreditei e por isso falo Minha esperanccedila a esperanccedila pela qual vivo eacute contemplar as deliacutecias do senhor [] (Confissotildees p 123)

Percebemos o caraacuteter afetivo-volitivo na suacuteplica

de Agostinho pela ldquocontemplaccedilatildeo das deliacutecias do senhorrdquo a intencionalidade objetiva relacionada com a superaccedilatildeo da contingecircncia e da relatividade em busca de um porto no qual se encerra a dissoluccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na luz absoluta Assim Santo Agostinho exerce a experiecircncia fruitiva na busca de sua experiecircncia miacutestica agrave guisa da determinaccedilatildeo do conhecimento do enigma ou

152 Eacutetica e filosofia poliacutetica

seja do proacuteprio misteacuterio que faz mister salientar que eacute o proacuteprio Absoluto

Nota-se que a ideia de transformaccedilatildeo da vida estaacute imbricada no contexto do fascinium daiacute podemos deliberar sobre o que Santo Agostinho busca atraveacutes da experiecircncia miacutestica ou seja confessando a sua ignoracircncia a Deus ele espera natildeo somente uma aproximaccedilatildeo com o absoluto mas tambeacutem uma quase-identidade com este revelando a ele a luz em consonacircncia com a experiecircncia miacutestica O sujeito Agostinho visa a comunhatildeo com o objeto intencionado ou seja com o misteacuterio do Absoluto O Livro XI das Confissotildees se encontra sob o influxo da miacutestica especulativa ou seja das fontes claacutessicas e neoplatocircnicas o eixo subjetivo em consonacircncia com a objetividade a harmonia sujeitoobjeto pela via do conhecimento embora este conhecimento esteja em grau iacutenfimo em relaccedilatildeo ao Sagrado que eacute incognosciacutevel

[] Daacute-me oacute Pai essa graccedila tu que sabes presentear com boas daacutedivas a teus filhos Concede-me essa luz porque determinei conhececirc-la e meu esforccedilo seraacute rude ateacute que me reveles esses misteacuterios [] (Confissotildees p 123)

Vemos com isso natildeo apenas uma harmonia com a teologia cristatilde sobre o misteacuterio da feacute mas tambeacutem uma posiccedilatildeo filosoacutefica denominada pirronismo um desassossego causado pelo misteacuterio ainda natildeo resolvido O problema epistemoloacutegico sobre o conhecimento ldquoperante aquele que Eacuterdquo natildeo se resolve apenas pelo consentimento da redenccedilatildeo pois assim como um ceacutetico pirrocircnico Agostinho nega o assentimento a preposiccedilotildees que podem ser duacutebias sobre o indiziacutevel pois nos falta evidecircncias sobre o Ser caindo sempre na vatilde aparecircncia

Mas quem realmente foi Pirro Como se dava a ldquometodologiardquo pirrocircnica para com a episteme E o mais

A busca da verdade em Santo Agostinho 153

importante como pode vincular tal noccedilatildeo pirrocircnica sobre o conhecimento com o misteacuterio divino

Pirro foi um filoacutesofo antigo nascido em Eacutelida entre 365 e 360 aC Foi um pensador muito influenciado pela escola socraacutetica na qual inclinou-se sobre e radicalizou a ignoracircncia saacutebia de Soacutecrates dando gecircnese a um importante ensinamento que se repercute ateacute os dias de hoje Falo da renuacutencia epistemoloacutegica sobre a Verdade uacuteltima sobre o fundamento (archeacute) da natureza (physis) que nega a essecircncia informando que a mesma ainda natildeo foi concebida denegando qualquer consentimento sobre a Verdade mas que ainda como um peregrino busca a mesma tendo sempre em vista o conceber de tal entidade assim como comenta Giovanni Reale

Enquanto o caminho da ontologia vai das aparecircncias ao ser (seja para os fiacutesicos seja para os metafiacutesicos) ao contraacuterio Pirro volta do ser agraves aparecircncias negando qualquer juiacutezo sobre o ser e reconhecendo consequumlentemente apenas o aparecer (REALE p 144)

A partir de tal perspectiva vemos a renuacutencia do

ser a abdicaccedilatildeo do inclinar-se a uma substacircncia que talvez natildeo possa estar contida no homem nem no mundo e que portanto devemos nos suspender perante tais juiacutezos epistemoloacutegicos sobre a existecircncia pois apenas assim que podemos alcanccedilar segundo Tiacutemon disciacutepulo imediato de Pirro ldquoa afasia e depois a ataraxiardquo (Aristoacutecles test 53)

A partir de tal epocheacute pirrocircnica natildeo podemos julgar ajuizar o mundo a partir de uma verdade fulcral pois nada por essecircncia eacute belo ou feio justo ou injusto bom ou mal assim como nos afirma Dioacutegenes Laeacutecio sobre Pirro ldquopois o que os homens fazem acontece por convenccedilatildeo e por haacutebito e nada eacute mais que aquilordquo (LAEacuteRCIO p 234) Com isso vemos que tais valores natildeo possuem uma estatura ontoloacutegica assim como

154 Eacutetica e filosofia poliacutetica

queriam os dogmaacuteticos mas apenas o puro fenocircmeno do mundo assim como nos aparece pois o valor da coisa-em-si eacute inconcebiacutevel fazendo-nos sempre nos suspender sobre tal Giovanni Reale nos mostra a incomensurabilidade do ser enquanto ser em tal fragmento a partir de um exemplo trivial ldquoIsso significa que em si o mel sendo como qualquer outra coisa indeterminado e inqualificaacutevel enquanto soacute o aparecer eacute qualificaacutevelrdquo (REALE p 148)

Mas contudo Pirro natildeo chegou a dissolver o mundo todo em uma simples aparecircncia pura e universal pois tal renuacutencia total seria o mesmo que cair em um dogmatismo negativo ou seja a uma absoluta certeza desviando-se da duacutevida hiperboacutelica Para a comprovaccedilatildeo de tal argumento segue-se uma passagem de Tiacutemon em uma conversa com um terceiro sobre como Pirro leva sua vida pacata sem grandes idealizaccedilotildees laborativas

Oacute Pirro esse meu coraccedilatildeo deseja aprender de ti como e que tu mesmo sendo homem tatildeo facilmente levas a vida tranquumlila tu que eacutes apenas guia para os homens semelhante a um Deus

Pirro com isso responde Dir-te-ei na verdade como me parece que seja tomando como reto cacircnon essa palavra de verdade uma natureza do divino e do bem viver eternamente do qual deriva para o homem a vida igualiacutessima

Como entender tal resposta de Pirro Segundo Giovanni Reale o Deus e o Bem pirrocircnico natildeo se daacute no mundano nem no transcendente mas sim satildeo apenas aspectos que se desvanecem e que com isso fogem da sensibilidade A afasia concomitante agrave apatia eacute tal ldquosupremaciardquo virtuosa ceacutetica que se sustenta na privaccedilatildeo de toda a faculdade de escolha quando natildeo haacute um sustento aonde possa apoiar-se Vemos com isso as

A busca da verdade em Santo Agostinho 155

escolhas se esvaiacuterem do terreno uma vez soacutelido para os filoacutesofos dogmaacuteticos eis o fundamento da virtude ceacutetica Tal virtude se daacute no movimento de negaccedilatildeo de qualquer juiacutezo cognitivo permanecendo sem qualquer inclinaccedilatildeo sendo indiferente a entidade julgada

eacute preciso natildeo ter opiniatildeo [] afirmando de cada coisa que eacute natildeo mais do que natildeo eacute ou que eacute e que natildeo eacute ou que ainda nem eacute ou nem natildeo eacute Os que se potildeem nesta posiccedilatildeo conseguiratildeo em primeiro lugar a afasia (ARISTOacuteCLES p 18)

Mas como devemos entender essa afasia ceacutetica

Talvez natildeo viver para este mundo Negar a exterioridade Natildeo mais poder de maneira nenhuma se expressar Viver em um mero solipsismo passivo de maneira nenhuma ajuizando o mundo Natildeo segundo Sexto Empiacuterico nas Hipotipoacuteses Pirrocircnicas comenta

Sobre a afasia digamos o seguinte [] Em sentido geneacuterico ldquofasirdquo eacute uma palavra que significa afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo como ldquoeacute diardquo ldquonatildeo eacute diardquo [] Portanto afasia equivale a renunciar agrave fasi no seu significado comum no qual dizemos que estatildeo contidas a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo de modo que afasia eacute uma afecccedilatildeo interna a noacutes na qual nem afirmamos nem negamos (ARISTOCLES)

Eis o caminho do ser virtuoso alcanccedilar neste

ecircxtase redutivo a ataraxia a ldquovida igualiacutessimardquo em suma redenccedilatildeo consigo mesmo Eis a forma pirrocircnica de viver

Enquanto os seus companheiros de viagem no navio apavoravam-se por causa da tempestade ele permanecia tranquumlilo e retomava acircnimo apontando um leitatildeozinho que continuava a comer e acrescentando que tal imperturbabilidade era exemplar para o comportamento do saacutebio (EMPIacuteRICO I 192)

156 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Vemos com isso o fim de todo pirrocircnico a total apatia do saacutebio as pupilas vazias de anima mas que ainda em seu interior cabendo consigo o sorriso de um homem sereno perante o mundo (um saacutebio)

Com isso chegando ao intuito final de tal trabalho nos perguntamos Qual eacute a consonacircncia existente entre um ceacutetico abnegador de qualquer verdade uacuteltima e um cordeiro da luz Qual eacute a semelhanccedila entre o meacutetodo ceacutetico e a redenccedilatildeo agostiniana pela feacute Como podemos conciliar a crenccedila divina em frente a ataraxia Veremos que o aguilhatildeo ceacutetico ainda estaacute incumbido na alma do Santo a anguacutestia ainda atordoa a alma o devir ainda eacute obscuro e Deus ainda natildeo foi concebido A verdade ainda estaacute velada obscurecida pela ignoracircncia do homem A necessidade de Agostinho de clamar a Deus convocaacute-lo em seus ritos justifica sua busca insaciada pela Verdade na qual cessaraacute apenas post mortem

Como salientado antes Agostinho ao contemplar-se com sua divindade adentra em um caminho em direccedilatildeo agrave travessia para a verdade da libertaccedilatildeo da emancipaccedilatildeo de sua alma Mas tal caminho por conter a ldquoqueda agrave carnerdquo torna-se nocivo pedregoso tornando a clareza da verdade uma incoacutegnita Salienta a biacuteblia sagrada ldquoAtenta para a obra de Deus Quem poderaacute endireitar o que ele fez tortordquo (Eclesiastes 7 13) A verdade pode estar dentro de nossos coraccedilotildees a partir da ressurreiccedilatildeo do Messias (o prometido) encarnado mas a figura real de Deus em sua mais esplecircndida Forma delimitada de qualquer compreensatildeo humana apenas pode ser concebida post mortem

Depois de tudo vemos que Santo Agostinho se associa agrave miacutestica revelando que a experiecircncia com o Sagrado implica a supressatildeo do tempo percebemos que no Cap XI sobre ldquoO tempo e eternidaderdquo Santo Agostinho exprime que os espiacuteritos buscam o Absoluto pois ainda se encontram presos nas correntes do tempo

A busca da verdade em Santo Agostinho 157

sendo eles cativos do passado e do futuro assim expotildee o Bispo de Hipona

Os que assim falam natildeo te compreendem ainda oacute sabedoria de Deus luz das inteligecircncias natildeo compreendem ainda como eacute criado o que eacute criado por ti e em ti Esforccedilam-se por saborear as coisas eternas mas seu espiacuterito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras

Santo Agostinho aclara que o momento presente

pode ser experienciado em Deus ou seja na eternidade irrompendo com as malhas do passado e do futuro e ponderando a partir do enlevo do que ldquosempre eacuterdquo ou seja da presenccedila constante do Absoluto sem os grilhotildees do passado e do futuro que encerram o devir o espaccedilo e o tempo e tudo mais que atrela o homem nas algemas do movimento Agostinho ressalta que o homem apenas carece deste porto do Absoluto pois natildeo o identifica como ldquonatildeo serrdquo

Desde que a alma plaine sobre os fatos passados e futuros o homem natildeo experiencia a ultravida na que eacute o feitio proacuteprio de Deus pois o tempo eacute a forma essencial da proacutepria alma esta se desdobra por seccedilotildees se possui por partes e por capiacutetulos havendo um desdobramento e esta abertura eacute o tempo portanto soacute eacute possiacutevel alcanccedilar a experiecircncia emblemaacutetica quando se abole o tempo

Com isso natildeo podemos dar evidecircncia a um certo pirronismo na filosofia miacutestica de Agostinho A procura pelo saciar nos braccedilos de Deus se daacute em uma longa caminhada pelos caminhos obscuros tendo uma impressatildeo apenas sobre a existecircncia de Deus mas natildeo uma clarividecircncia sobre a face divina A luz que cintila dos ceacuteus cega o homem que olha para o alto clamando nunca colocando sua verdadeira face agrave mostra sempre velado por sua camada de luminescecircncia divina Eis o

158 Eacutetica e filosofia poliacutetica

momento de suspender colocar entre parecircnteses sua real forma e viver a vida em meio a este enigma

Agostinho natildeo eacute um ceacutetico pirrocircnico mas perante a incognoscibilidade de Deus ele o coloca como um misteacuterio que nem a feacute ou os ritos poderatildeo explicar Mas Agostinho lamuria-se com isso Natildeo o bispo de Hipona nada mais faz do que esperar a sua hora chegar seguindo os ensinamentos de Soacutecrates e talvez de Pirro Agostinho aprendeu a morrer serenamente aguardando em paz sua hora chegar para conceber a Verdade assim como um ideal pirrocircnico Claramente Pirro e Agostinho traccedilaram caminhos distintos para se alavancar agrave ataraxia um por ter se rendido agrave duacutevida generalizada outro por ter se rendido ao Inconcebiacutevel mas nada impede de terem se encontrado em qualquer encruzilhada saudando o espiacuterito um do outro diluindo-se na plena ataraxia

REFEREcircNCIAS BIacuteBLIA Biacuteblia sagrada Traduccedilatildeo de Padre Antocircnio Pereira de Figueredo Rio de Janeiro Encyclopaedia Britannica 1980 Ediccedilatildeo Ecumecircnica

AGOSTINHO Confissotildees Trad J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

______ Confissotildees 24 ed Trad de J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Petroacutepolis Vozes 2009 376p

BROCHARD Victor Os ceacuteticos gregos Trad de Jaimir Conte Satildeo Paulo Odysseus 2009

WATZEL James Compreender Agostinho Trad Caesar Souza Petroacutepoles RJ Vozes 2011

REALE Giovanni Estoicismo Ceticismo e Ecletismo Satildeo Paulo SP Loyola 2011

A busca da verdade em Santo Agostinho 159

EMPIacuteRICO Sexto Hipotiposes pirrocircnicas Trad Danilo Marcondes O que nos faz pensar n 12 st de 1997 Disponiacutevel em httpwwwoquenosfazpensarcomadmuploadsartigotraducao_hipotiposes_pirronicasn12traducaopdf Acesso em 15 mar 2010)

160 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VI =

O CETICISMO NA REFORMA PROTESTANTE

Joseacute Luiz Giombelli Mariani 61 INTRODUCcedilAtildeO

O periacuteodo histoacuterico da Reforma Protestante eacute

considerado conturbado e de muitas revoluccedilotildees que culminou na mudanccedila do pensamento ocidental muitos pensadores surgiram nessa eacutepoca cada um defendendo sua feacute e questionando os adversaacuterios ldquoTanto os inovadores quanto os defensores da tradiccedilatildeo viram-se diante do mesmo problema Geralmente tentaram resolvecirc-lo atacando o criteacuterio do adversaacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29)

A problemaacutetica desse periacuteodo da reforma protestante circula em torno de um criteacuterio de verdade este problema foi central na disputa da Reforma acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso chamado de ldquoregra de feacuterdquo Assim escreve Popkin sobre as questotildees levantadas na Reforma que mais tarde se espalhou para a filosofia

O problema de se encontrar um criteacuterio de verdade primeiro levantado em disputas teoloacutegicas foi posteriormente levantado tambeacutem em relaccedilatildeo natural levando agrave crise pyrrhoniemne do iniacutecio do seacuteculo XVII (POPKIN 2000 p 25)

Acadecircmico de graduaccedilatildeo do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute UNIOESTE campus de Toledo Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID) e-mail joseluizmarianigmailcom

162 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Algumas questotildees levantadas nesse periacuteodo satildeo

as seguintes Qual o padratildeo atraveacutes do qual reconhecemos a feacute e como podemos determinar com certeza o que as Escrituras dizem Por meio de que criteacuterio pode dizer que as Escrituras consistem na Palavra de Deus Quais as evidecircncias desta Verdade Revelada Para responder tais questotildees existiram diversas correntes sendo as duas principais o catolicismo versus os seguidores de Lutero conhecidos como protestantes Existiram tambeacutem aqueles que tomaram a atitude ceacutetica como forma de resolver essa problemaacutetica ou seja em linhas gerais para estes natildeo podemos determinar o criteacuterio de verdade apresentado por ambos os lados da discussatildeo da feacute

O presente trabalha apresenta de forma geral os criteacuterios de verdade dos catoacutelicos e dos protestantes e o embate entre ambas e por fim apresenta a saiacuteda apresentada pelos ceacuteticos desse periacuteodo

62 O CETICISMO E O CRISTIANISMO

Primeiramente eacute necessaacuterio fazer uma breve

abordagem acerca desses dois conceitos a saber ceticismo e cristianismo A partir do Dicionaacuterio filosoacutefico de Andreacute Comte-Sponville podemos entender o ceticismo como

O contraacuterio do dogmatismo no sentido teacutecnico do termo Ser ceacutetico eacute pensar que todo pensamento eacute duvidoso - que natildeo temos acesso agrave certeza absoluta Note-se que o ceticismo a natildeo ser que se destrua deve ser incluiacutedo na duacutevida geral que ele instaura tudo eacute incerto inclusive que tudo seja incerto Agrave gloacuteria do pirronismo dizia Pascal Isso natildeo impede de pensar aliaacutes eacute o que obriga a pensar sempre Os ceacuteticos buscam a verdade como todo o filoacutesofo (eacute o que os distingue dos sofistas) mas nunca estatildeo certos de tecirc-la encontrado nem mesmo que seja possiacutevel encontraacute-la

O ceticismo na reforma protestante 163

(eacute o que os distingue dos dogmaacuteticos) Isso natildeo os aborrece Natildeo eacute a certeza que eles amam mas o pensamento e a verdade Por isso gostam do pensamento em ato e da verdade em potecircncia ndash o que eacute a proacutepria filosofia e eacute nisso que dizia Lagneau o ceticismo eacute o verdadeiro Decorre daiacute que ningueacutem eacute obrigado a ser ceacutetico nem autorizado a secirc-lo dogmaticamente (COMTE-SPONVILLE 2003 p 99)

O ceticismo eacute uma corrente filosoacutefica que teve

iniacutecio na antiguidade com Pirro de Eacutelis mais tarde Sexto Empiacuterico e outros tantos seguidores foram importantes na construccedilatildeo desta corrente filosoacutefica grega Portanto o ceticismo antigo foi uma grande corrente de pensamento e de grande importacircncia no pensamento grego muitas questotildees foram levantadas pelos ceacuteticos antigos Sabemos que estes escreveram inuacutemeros textos poreacutem poucos resistiram ao tempo se hoje conhecemos esta corrente do pensamento eacute graccedilas agraves obras tardias de Dioacutegenes Laeacutercio Ciacutecero e especialmente Sexto Empiacuterico

O Cristianismo tem sua base na vida e histoacuteria de Jesus Cristo que viveu em meio agrave cultura judaica Os cristatildeos possuem um livro considerado sagrado pelos seus seguidores que eacute a Biacuteblia tal conjunto de obras tecircm duas divisotildees o Antigo Testamento que satildeo livros que contam a histoacuteria antes da vinda de Jesus e o Novo Testamento que conteacutem os quatro evangelhos chamados de canocircnicos ou seja reconhecidos pela Igreja a saber Matheus Marcos Lucas e Joatildeo aleacutem de cartas e de livros que narram agrave vida das primeiras comunidades de feacute Segundo os Catoacutelicos este livro eacute a Palavra de Deus e eacute inspirado pelo Espiacuterito Santo

Desde a organizaccedilatildeo que ocorreu durante o primeiro seacuteculo da era cristatilde ateacute a Reforma este livro ficou no poder da Igreja por diversos motivos entre eles a falta de alfabetizaccedilatildeo a pobreza e a liacutengua em que eles estavam escritos o latim claacutessico

164 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Os catoacutelicos tambeacutem satildeo norteados pela tradiccedilatildeo

da Igreja pelos documentos e pelos conciacutelios que durante toda a sua histoacuteria fizeram e fazem parte mostrando as diretrizes do caminho da Igreja no mundo No Catecismo da Igreja Catoacutelica um dos documentos mais importante da Igreja no que diz respeito a questotildees de feacute no artigo 2 chamado ldquoA transmissatildeo da Revelaccedilatildeo Divinardquo parte 1 nuacutemero 78 encontramos a seguinte explicaccedilatildeo sobre a transmissatildeo da feacute pela Tradiccedilatildeo

Essa transmissatildeo viva realizada no Espiacuterito Santo eacute chamada de Tradiccedilatildeo enquanto distinta da Sagrada Escritura embora intimamente ligada a ela Por meio da Tradiccedilatildeo ldquoa Igreja em sua doutrina vida e culto perpetua e transmite a todas as geraccedilotildees tudo o que ela eacute tudo o que crecircrdquo O ensinamento dos Santos Padres testemunha a presenccedila vivificante desta Tradiccedilatildeo cujas riquezas se transfundem na praxe e na vida da Igreja crente e orante (N 34)

Portanto segundo a Igreja ela possui em suas

matildeos a verdade da feacute iluminada pelo Espiacuterito Santo Eacute confiado aos sucessores dos Apoacutestolos o chamado ldquodepoacutesito da feacuterdquo o catecismo na parte trecircs deste mesmo artigo intitulado ldquoA interpretaccedilatildeo do depoacutesito da feacuterdquo escreve

O ldquoPatrimocircnio Sagradordquo da feacute (ldquodepositum fideirdquo) contido na Sagrada Tradiccedilatildeo e na Sagrada Escritura foi confiado pelos apoacutestolos agrave totalidade da Igreja Apegando-se firmemente ao mesmo o povo santo todo unido a seus Pastores perseveram continuamente na doutrina dos apoacutestolos e na comunhatildeo na fraccedilatildeo do patildeo e nas oraccedilotildees de sorte que na conservaccedilatildeo no exerciacutecio e na profissatildeo da feacute transmitida se crie uma singular unidade de espiacuterito entre os bispos e os fieacuteis (N 35)

O ceticismo na reforma protestante 165

A Igreja Catoacutelica durante seacuteculos foi detentora dessas ldquoverdades absolutasrdquo no que diz respeito agraves questotildees de feacute com a Reforma e com o passar dos anos principalmente nos uacuteltimos seacuteculos com a nossa sociedade globalizada a mesma passou por diversas reformulaccedilotildees ateacute chegarmos ao modelo que hoje vigora mesmo natildeo mudando a hierarquia da Igreja percebe-se que os leigos nos dias de hoje possuem formaccedilatildeo bastante avanccedilada natildeo sendo necessaacuteria total aceitaccedilatildeo daquilo que o clero diz mas haacute uma total compreensatildeo dos dogmas de feacute dos documentos e da Tradiccedilatildeo da Igreja

O texto em questatildeo trabalha com o periacuteodo histoacuterico determinado que eacute o da Reforma Protestante e iniacutecio da modernidade sendo assim nota-se que a Igreja naquela eacutepoca era detentora da ldquoverdaderdquo e que os cristatildeos necessariamente tinham que depositar sua total confianccedila sem ao menos entender e compreender aquilo que estavam ouvindo dos seus ldquopastoresrdquo natildeo havia compreensatildeo por parte dos leigos e sim aceitaccedilatildeo a feacute sem limites

Portanto aparentemente percebe-se aqui uma divergecircncia entre a feacute e o ceticismo Na introduccedilatildeo do artigo intitulado ldquoAlgumas outras palavras sobre ceticismo e cristianismordquo de autoria de Rodrigo Pinto de Brito da Universidade Federal do Sergipe nota-se alguns apontamentos que descrevem claramente esta distinccedilatildeo de conceitos

Nesses caraacutecteres multifacetados se embutem conceitos atribuiccedilotildees ou asserccedilotildees que fazem com que seus campos semacircnticos sejam aparentemente mutuamente excludentes e mesmo radicalmente opostos Por exemplo no caso de ceticismo a duacutevida e a descrenccedila propedecircutica ao ateiacutesmo no caso do cristianismo a feacute e o dogma propedecircuticos ao fanatismo (BRITO 2014)

166 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir desta breve anaacutelise do ceticismo e do

cristianismo compreende-se o motivo do ceticismo ser soacute resgatado no periacuteodo da reforma protestante no iniacutecio da era moderna Na Idade Meacutedia com o auge do catolicismo percebe-se que o proacuteprio ato de questionar os dogmas de feacute natildeo era tolerado quanto mais negar tais ldquoverdadesrdquo nesse sentido muitas pessoas foram agrave fogueira e tiveram condenaccedilotildees baacuterbaras

Alguns estudiosos se detecircm na demonstraccedilatildeo de quem natildeo haacute uma fronteira niacutetida entre ceticismo e cristianismo que essa fronteira eacute somente aparente O meu estudo nesse texto inicial natildeo tem como objetivo investigar tal questatildeo mas tem seu recorte estrito no periacuteodo compreendido como reforma protestante tambeacutem chamada ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo

63 REFORMA PROTESTANTE E O PROBLEMA DO CRITEacuteRIO

Este periacuteodo foi bastante intenso de debates e

discussotildees acerca do criteacuterio de verdade que haacute no catolicismo e depois nas Igrejas criadas a partir da Reforma Protestante tais discussotildees ficaram conhecidas como Reforma Intelectual momento em que antecedeu a modernidade e toda a discussatildeo da teoria do conhecimento e da forma como esse conhecimento acontece Na obra ldquoHistoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinozardquo de Richard Popkin no primeiro capiacutetulo intitulado ldquoA crise Intelectual na Reformardquo percebemos que o problema central nesse periacuteodo eacute o criteacuterio de verdade acerca do que seria o padratildeo correto do conhecimento religioso tambeacutem conhecido como ldquoregra de feacuterdquo

Neste sentido Lutero foi o primeiro a criticar publicamente este criteacuterio de verdade da Igreja Catoacutelica principalmente a tradiccedilatildeo e o magisteacuterio do Papa A partir

O ceticismo na reforma protestante 167

disto Lutero desenvolve o seu criteacuterio Assim escreve Popkin

Lutero deu o passo criacutetico que foi negar a regra de feacute da Igreja apresentando um criteacuterio de conhecimento religioso radicalmente diferente Foi neste periacuteodo que ele deixou de ser apenas um reformador atacando os abusos e a corrupccedilatildeo de uma burocracia decadente para tornar-se o liacuteder de uma revolta intelectual que viria a abalar os proacuteprios fundamentos da civilizaccedilatildeo ocidental (POPKIN 2000 p 26)

Os grandes problemas vistos por Lutero na Igreja

Catoacutelica foram a autoridade papal e a Tradiccedilatildeo da Igreja jaacute apresentada no capiacutetulo anterior e que apoacutes esse periacuteodo foi reformulado pela Igreja atraveacutes de diversos documentos e conciacutelios poacutes reforma entre eles estaacute o Conciacutelio Vaticano II que acima de tudo afirmou o conteuacutedo de feacute ou seja os dogmas poreacutem modificou a forma desse conteuacutedo ser anunciado abrindo a Igreja para a evangelizaccedilatildeo fazendo com que todos os leigos conhecessem a Biacuteblia e fossem importantes no processo de evangelizaccedilatildeo e anuacutencio da Palavra de Deus modificando uma das criacuteticas de Lutero

Popkin escreve em seu livro sobre a negaccedilatildeo do Papa por parte de Lutero

Lutero chegou mesmo a negar completamente a autoridade do Papa e dos Conciacutelios mantendo que doutrinas condenadas pelos conciacutelios poderiam ser verdadeiras e que os conciacutelios podem errar jaacute que satildeo compostos apenas por homens (POPKIN 2000 p 26)

A consciecircncia de cada um dos escolhidos jaacute eacute

criteacuterio de verdade jaacute eacute regra de feacute atraveacutes de Iluminaccedilatildeo Divina este foi o criteacuterio de feacute que Lutero desenvolveu e defendeu Popkin escreve assim sobre este novo criteacuterio

168 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nesta declaraccedilatildeo de liberdade cristatilde Lutero estabeleceu seu novo criteacuterio de conhecimento religioso ou seja que aquilo que a consciecircncia eacute compelida a aceitar ao ler as Escrituras eacute verdadeiro (POPKIN 2000 p 27)

Diversas pessoas comeccedilaram a seguir Lutero

apoacutes ele traduzir o livro Sagrado para o alematildeo A resposta dos catoacutelicos a este novo criteacuterio de feacute foi de que nenhum criteacuterio de feacute pode ser compreendido como verdadeiro se este natildeo passar pelo coleacutegio cardinaliacutecio pelos conciacutelios e pela autoridade do Papa

Eis que surge entatildeo outra problemaacutetica desta vez bem mais filosoacutefica que teoloacutegica assim descrita por Popkin

Uma vez que um criteacuterio fundamental foi questionado como se podem decidir quais as possibilidades alternativas a serem aceitas Com base no que podemos defender ou refutar as pretensotildees de Lutero (POPKIN 2000 p 28)

Portanto determinar algum criteacuterio como

verdadeiro se as bases do criteacuterio anterior foram refutadas nesse sentido percebe-se um resgate do ceticismo antigo na religiatildeo e mais tarde este ceticismo resgatado nesse periacuteodo iraacute atingir as demais aacutereas do conhecimento Popkin assim comenta

A caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter consequecircncias extremamente amplas natildeo soacute na teologia mais em todos os domiacutenios intelectuais do ser humano (POPKIN 2000 p 29) O problema desse periacuteodo histoacuterico da Reforma

Protestante tambeacutem pode ser considerado como problema da evidecircncia e do criteacuterio assim Popkin demonstra a problemaacutetica ldquoPara ser capaz de reconhecer a verdadeira feacute era preciso um criteacuterio Mas

O ceticismo na reforma protestante 169

como se poderia reconhecer o verdadeiro criteacuteriordquo (POPKIN 2000 p 29) Percebe-se que ambos os defensores da Tradiccedilatildeo e os inovadores tentaram resolver o problema da mesma forma atacando o adversaacuterio Os ataques mais comuns que aconteciam segundo Popkin eram

Lutero atacou a autoridade da Igreja mostrando suas inconsistecircncias Os catoacutelicos procuraram mostrar que a consciecircncia de cada um natildeo era confiaacutevel bem como a dificuldade de se discernir o verdadeiro sentido das Escrituras sem a orientaccedilatildeo da Igreja Ambos os lados advertiram sobre a cataacutestrofe ndash intelectual moral e religiosa ndash que ocorreria em consequecircncia de se adotar o criteacuterio do outro (POPKIN 2000 p 29)

Nesse periacuteodo alguns textos do Sexto Empiacuterico

foram trazidos agrave tona e acabaram corroborando na discussatildeo sobre o criteacuterio de verdade como natildeo havia mais criteacuterio aceito o problema ali instaurado era grave pois se perdeu a garantia objetiva restando somente a crenccedila em determinado criteacuterio e ldquoverdaderdquo Popkin reproduz o trecho de Sexto Empiacuterico

[] para decidir a disputa que surgiu sobre o criteacuterio devemos ter um criteacuterio aceito por meio do qual se possa julgar a disputa e para ter um criteacuterio aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o criteacuterio E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciociacutenio circular encontrar um criteacuterio torna-se impraticaacutevel uma vez que natildeo permitimos que eles [os filoacutesofos dogmaacuteticos] adotem um criteacuterio por suposiccedilotildees enquanto que se oferecem para julgar o criteacuterio por um outro criteacuterio noacutes os forccedilamos a um regresso lsquoad infinitumrsquo (POPKIN 2000 p 28)

A partir do momento em que alguns fragmentos

de Sexto Empiacuterico e de alguns ceacuteticos foram retomados surgiram alguns pensadores que comeccedilaram a usar o

170 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ceticismo como postura para defender o catolicismo um desses foi Erasmo de Rotterdam conhecido por sua obra ldquoO elogio da Loucurardquo poreacutem foi na sua obra ldquoDe Libero Arbitriordquo que ele defende uma postura ceacutetica em diversos meios assim afirma Erasmo

os assuntos humanos satildeo tatildeo obscuros e diversos que nada se pode saber com clareza Esta foi a satilde conclusatildeo dos acadecircmicos [os ceacuteticos acadecircmicos] que foram os menos ariscos dentre os filoacutesofos (POPKIN 2000 p 30)

Esta postura ou atitude ceacutetica segundo Erasmo eacute

o que realmente importa e interessa para a salvaccedilatildeo de cada um aceitando os dogmas e as ldquoverdadesrdquo que a Igreja e aqueles que tecircm competecircncia para tal determinam como sendo correto e justo assim escreve Popkin sobre esta postura de Erasmo

Para Erasmo o importante eacute uma forma de piedade cristatilde simples baacutesica o espiacuterito do cristianismo O restante a superestrutura da crenccedila essencial eacute demasiado complexa para o homem julgaacute-la Portanto eacute mais faacutecil permanecer em uma atitude ceacutetica e aceitar a antiquiacutessima sabedoria da Igreja nestes assuntos do que tentar entender e julgar por si proacuteprio (POPKIN 2000 p 31)

Segundo Erasmo toda a estrutura escolaacutestica

instaurada na Igreja com grandes bibliotecas e grandes discussotildees teoloacutegicas entre diversas correntes com grandes teoacutelogos da Igreja eram inuacuteteis pois o que realmente importa eacute a atitude cristatilde de modo geral seguir e realizar os ensinamentos de Jesus Cristo ou seja ldquoTodo o mecanismo dessas mentes escolaacutesticas tinha perdido de vista o ponto essencial a simples atitude cristatilderdquo (POPKIN 2000 p 32) Popkin continua e comenta que o cristatildeo ldquotolordquo para Erasmo eacute mais saacutebio do que um teoacutelogo de Paris

O ceticismo na reforma protestante 171

O cristatildeo tolo estaria em melhor situaccedilatildeo do que o teoacutelogo pretensioso de Paris enredado em um labirinto criado por ele mesmo E assim se algueacutem permanecesse um cristatildeo tolo viveria uma autecircntica via cristatilde e poderia evitar todo o mundo da teologia aceitando sem tentar compreendecirc-las as posiccedilotildees religiosas promulgadas pela igreja (POPKIN 2000 p 32)

Esta teoria de que o cristatildeo tolo estaacute em uma

melhor condiccedilatildeo pois este viveria uma autecircntica vida de feacute cristatilde foi fortemente combatida por Lutero para ele a feacute natildeo deve simplesmente ser aceitaccedilatildeo mas fruto de sua proacutepria consciecircncia por isso ele defendia a universalizaccedilatildeo da Biacuteblia e que toda a consciecircncia tem a capacidade atraveacutes da Iluminaccedilatildeo do Espiacuterito Santo de acolher meditar e saborear a Palavra de Deus para Lutero ldquoEacute como se algueacutem carregasse detritos e excrementos em vasos de ouro e pratardquo (POPKIN 2000 p 32) E ainda Lutero afirma ldquoUm cristatildeo deve [] ter certeza do que afirma ou entatildeo natildeo eacute um cristatildeordquo (POPKIN 2000 p 32)

Portanto para Lutero estes conteuacutedos de feacute satildeo importantes na vida do homem e natildeo podem simplesmente serem aceitos mas devem ser certos e irrefutaacuteveis atraveacutes da experiecircncia de feacute e da certeza oriunda da consciecircncia de cada um Segundo Lutero devemos estar absolutamente certos de sua verdade assim sendo o cristianismo eacute a absoluta negaccedilatildeo do ceticismo

Para o fundador do luteranismo existe um conjunto de verdades de feacute que como o sol natildeo se escurecem apenas porque eu posso fechar os meus olhos e recusar-me a vecirc-lo A analogia mostra que haacute diversas verdades que iluminam poreacutem existem pessoas que querem fechar os olhos a estas verdades ou porque satildeo ceacuteticas ou porque insistem em acreditar na vulneraacutevel Tradiccedilatildeo da Igreja Catoacutelica e natildeo olham

172 Eacutetica e filosofia poliacutetica

para dentro de si em suas proacuteprias consciecircncias ainda para Lutero esta tentativa de Erasmo de uma atitude ceacutetica natildeo passa de um caminho arriscado e com inuacutemeras possibilidades de erro Popkin comenta a resposta de Lutero a Erasmo

E portanto Lutero respondeu a Erasmo que sua perspectiva ceacutetica na verdade natildeo levava agrave crenccedila em Deus mas era uma maneira de escarnecermos Dele Erasmo podia se quisesse aferrar-se a seu ceticismo ateacute ser chamado por Cristo Mas advertiu Lutero ldquoO Espiacuterito Santo natildeo eacute ceacuteticordquo e natildeo inscreveu em nossos coraccedilotildees opiniotildees incertas mas sim afirmaccedilotildees de maior firmezardquo (POPKIN 2000 p 33)

A disputa entre Lutero um reformista e Erasmo

um catoacutelico natildeo muito praticante estava envolta mais uma vez na questatildeo do criteacuterio de verdade onde o primeiro insistia na certeza de que cada um poderia ler as Escrituras como sendo criteacuterio e natildeo delegar isto a outros A verdade se impotildee a noacutes ldquoe o verdadeiro conhecimento religioso natildeo conteacutem contradiccedilotildeesrdquo (POPKIN 2000 p 34) O segundo tinha uma atitude cautelosa de aceitar as decisotildees da Igreja pois sabia ser incapaz de distinguir o verdadeiro do falso Percebe-se que ambos possuiacuteam como regra de feacute ou criteacuterio de verdade algo subjetivo sendo difiacutecil objetivar estes criteacuterios Portanto se tal criteacuterio natildeo pode ser objetivado eles natildeo podem ser considerados criteacuterios de verdade

Outro grande expoente nesse periacuteodo histoacuterico foi Joatildeo Calvino disciacutepulo de Lutero liacuteder dos calvinistas uma corrente dos seguidores de Lutero que tem como regra de feacute a Biacuteblia livro sagrado aleacutem disso a iluminaccedilatildeo Divina Popkin comenta sobre Calvino

Inicialmente Calvino argumentou que a Igreja natildeo pode ser a regra das Escrituras uma vez que a autoridade da Igreja depende ela proacutepria de alguns versiacuteculos das

O ceticismo na reforma protestante 173

Escrituras Portanto as Escrituras satildeo a fonte baacutesica das verdades da religiatildeo (POPKIN 2000 p 35)

Uma grande questatildeo que surgiu a partir da teoria

de Calvino eacute o que nos garante que as Escrituras satildeo Palavra de Deus e como interpretaacute-las de maneira correta Assim nos explica Popkin sobre a teoria de Calvino

Esta persuasatildeo interior natildeo soacute nos assegura que as Escrituras contecircm a Palavra de Deus mas nos compele a ler as Escrituras atentamente para compreender o seu sentido e acreditar nelas (POPKIN 2000 p 35)

Os seguidores de Calvino se intitularam como os

eleitos pessoas escolhidas iluminadas por Deus e atraveacutes desta persuasatildeo interior elas interpretam as Escrituras e satildeo como pastores para aqueles que os seguem (ovelhas) Esta iluminaccedilatildeo dos eleitos acontece atraveacutes do Espiacuterito Santo Popkin escreve sobre a Iluminaccedilatildeo Divina

Haacute portanto uma dupla iluminaccedilatildeo para os eleitos dando-lhes primeiro a regra de feacute as Escrituras e em seguida lugar agrave regra das Escrituras ou seja os meios para discernir sua verdade e crer em sua mensagem Esta dupla iluminaccedilatildeo da regra da feacute e sua aplicaccedilatildeo satildeo capazes de nos dar certeza total (POPKIN 2000 p 35)

Portanto para os primeiros calvinistas a regra de

feacute era a persuasatildeo interior a questatildeo levantada eacute como podemos decidir se esta persuasatildeo eacute autecircntica e natildeo apenas uma certeza subjetiva que pode facilmente ser ilusoacuteria A partir dessa questatildeo percebemos que temos um problema um ciacuterculo de problemas infinitos assim escreve Popkin

174 Eacutetica e filosofia poliacutetica

o criteacuterio do conhecimento religioso eacute a persuasatildeo interior a garantia da autenticidade da persuasatildeo interior eacute sua origem divina e temos a garantia dela pela persuasatildeo interior (POPKIN 2000 p 37)

Ou seja natildeo podemos considerar a persuasatildeo

interior como regra de feacute ou criteacuterio de verdade pois tambeacutem eacute subjetiva e nunca objetiva

Outro expoente que defendeu uma atitude ceacutetica no que diz respeito agrave feacute foi Sebastiatildeo Castellio de Basileacuteia protestante e que foi o uacutenico a defender Servetus Servetus foi condenado agrave morte como herege por Calvino e seus seguidores Servetus era convencido da persuasatildeo interior de que natildeo haacute base nas escrituras para a doutrina da santiacutessima Trindade convencido portanto de que esta doutrina era falsa

Popkin explica sobre a metodologia usada por Castellio ldquoAtitude moderada e ceacutetica onde ningueacutem pode estar tatildeo certo da verdade em questotildees religiosas de modo que se justifique queimar algueacutem por issordquo (POPKIN 2000 p 38) Ele escreveu uma obra mas natildeo publicou onde respondeu aos calvinistas intitulada ldquoDe Arte Dubitandirdquo uma abordagem cientiacutefica liberal e cautelosa para os problemas intelectuais em contraste com o dogmatismo de seus opositores calvinistas

Podemos entatildeo dizer que dentre estes expoentes ceacuteticos Erasmo eacute bem mais ceacutetico que Castellio pois este se questiona Como duvidar do que eacute certo como Deus sua Bondade Mas como acreditar no que eacute duvidoso como o argumento teleoloacutegico das Escrituras

O ceticismo parcial levantado por Castellio representa outra faceta do problema do conhecimento levantado pelo renascimento se eacute necessaacuterio encontrar uma regra de feacute um criteacuterio para se distinguir a feacute verdadeira da falsa como conseguirmos isto Ele abandona uma busca da certeza na feacute por uma busca razoaacutevel influenciando as formas mais liberais do protestantismo

O ceticismo na reforma protestante 175

64 RELACcedilAtildeO DO CETICISMO COM O FIDEIacuteSMO POSSIacuteVEL LEITURA DO CRITEacuteRIO DE VERDADE

Ambos catoacutelicos e protestantes natildeo possuem a

regra de feacute ou o criteacuterio de verdade pois para algo ser criteacuterio de verdade precisa ser objetivado e aquilo que concerne agrave feacute eacute subjetivo e pessoal natildeo pode ser uma verdade epistemoloacutegica Neste ponto faz-se necessaacuterio abordar mais profundamente dois conceitos o ceticismo e o fideiacutesmo para chegarmos a uma possiacutevel leitura deste criteacuterio de verdade na religiatildeo

Para tanto precisamos compreender o papel do ceacutetico nas tradiccedilotildees antigas sendo elas pirrocircnica e acadecircmica Popkin demostra o papel do ceacutetico quanto agraves crenccedilas

O ceacutetico seja na tradiccedilatildeo pirrocircnica seja na acadecircmica desenvolvia argumentos para mostrar ou sugerir que as evidecircncias razotildees ou provas utilizadas como fundamentos de nossos vaacuterios tipos de crenccedilas natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterios (POPKIN 2000 p 23)

Em momento algum eacute determinado que o ceacutetico e

o crente satildeo classificaccedilotildees opostas e excludentes uma da outra pelo contraacuterio o ceacutetico tem como papel desenvolver argumentos que demonstrem que os vaacuterios tipos de crenccedilas tambeacutem satildeo faliacuteveis e natildeo satildeo inteiramente satisfatoacuterias no ponto de vista objetivo pois natildeo haacute verdades absolutas e natildeo haacute criteacuterios universais e objetivos Em outras palavras o ceacutetico levanta duacutevidas acerca dos meacuteritos racionais e das evidecircncias de uma crenccedila mas segundo Popkin ldquoo ceacutetico pode mesmo assim tanto quanto qualquer pessoa aceitar crenccedilas de vaacuterios tiposrdquo (POPKIN 2000 p 24)

Portanto o ceacutetico pode ser fideiacutesta sem problema algum pois uma coisa eacute duvidar questionar evidecircncias racionais objetivas e criteacuterios de verdade que tendem a ser universais e absolutos e outra coisa eacute ser crente de

176 Eacutetica e filosofia poliacutetica

alguma crenccedila sendo ela religiosa ou natildeo pois o crer estaacute no campo subjetivo e natildeo objetivo

A partir desta leitura de que o crente e o ceacutetico neste sentido podem andar juntos comeccedila-se a compreender Erasmo Castellio e ateacute mesmo Montaigne o uacuteltimo foi o expoente principal que trouxe agrave tona o ceticismo antigo para a realidade da reforma intelectual e levou tais duacutevidas para as demais aacutereas do conhecimento

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Portanto esta postura ceacutetica de Montaigne tem

suas bases nesse periacuteodo histoacuterico em que ele estaacute vivenciando com a reforma protestante as questotildees acerca do problema do criteacuterio e o iniacutecio do renascimento eacute sem duacutevida um momento muito frutuoso onde inuacutemeras questotildees satildeo levantadas e ocorre de fato uma revoluccedilatildeo no pensamento

Percebe-se no presente trabalho atraveacutes desta leitura histoacuterica e dos problemas levantados por diversos autores como se tentou objetivar algo que eacute subjetivo como se tentou criar criteacuterios de verdade acerca da feacute fazendo com que a verdade se restringisse a sua ldquoverdade religiosardquo o que clareou todo este discurso usado foi o ceticismo que alguns autores resgataram dos antigos

De modo simples esse eacute o iniacutecio da minha pesquisa acerca desse periacuteodo e de questotildees que cercaram este momento importante na transformaccedilatildeo cultural histoacuterica e intelectual do ocidente

REFEREcircNCIAS COMTE-SPONVILLE Andreacute Dicionaacuterio Filosoacutefico Traduccedilatildeo Eduardo Brandatildeo ndash Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

O ceticismo na reforma protestante 177

JOAtildeO PAULO PP II Catecismo da Igreja Catoacutelica 11 de outubro de 1992 Disponiacutevel emhttpwwwvaticanvaarchivecathechism_poindex_newprima-pagina-cic_pohtml POPKIN Richard H Histoacuteria do Ceticismo de Erasmo a Spinoza [1923] Traduzido por Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Francisco Alves 2000

178 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VII =

VIVER COMO SOacuteCRATES A NOCcedilAtildeO DE ORDEM E A MORAL DO HOMEM MEDIacuteOCRE NOS UacuteLTIMOS

ENSAIOS DE MONTAIGNE

Andre Scoralick Eacute bastante banal dizer que a mateacuteria dos Ensaios1

pertence ao campo da moral Basta percorrer os tiacutetulos dos capiacutetulos para encontrar paixotildees viacutecios virtudes questotildees referentes agrave accedilatildeo e ao agente enfim toda uma miriacuteade de problemas referentes agrave moralidade Menos banal no entanto eacute indicar o sentido da reflexatildeo moral que Montaigne conduz em seus Ensaios Natildeo eacute evidente por exemplo que as questotildees eacuteticas natildeo sejam meros objetos de reflexatildeo de uma especulaccedilatildeo desinteressada de um tratamento puramente teoacuterico natildeo eacute evidente que elas possam ter uma finalidade eminentemente praacutetica E no entanto eacute o que o proacuteprio Montaigne sugere em uma seacuterie de passagens do seu livro dentre as quais se encontra aquela do ensaio Da educaccedilatildeo das crianccedilas em que ele aponta as liccedilotildees (morais sobretudo) que o menino deve seguir

Doutorado em Filosofia (2013) pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP instituiccedilatildeo na qual adquiriu o tiacutetulo de Mestre em Filosofia (2008) Bacharel em Filosofia (2002) 1 Utilizaremos aqui a ediccedilatildeo Villey-Saulnier (Les Essais Ed P Villey reeditada por V L Saulnier Paris PUF 1999) que traduzimos livremente no corpo do texto acrescentando o texto francecircs nas notas de rodapeacute (indicando em algarismos romanos o livro e em araacutebicos o capiacutetulo dos Ensaios) Nas citaccedilotildees do corpo do texto indicaremos a paacutegina da traduccedilatildeo para o portuguecircs feita por Rosemary Costek (Satildeo Paulo Martins Fontes 2001) cujas soluccedilotildees por vezes adotamos Nas citaccedilotildees em francecircs a paginaccedilatildeo eacute a da ediccedilatildeo Villey-Saulnier

180 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Eis aqui minhas liccedilotildees Aproveitou-as melhor quem as executa do que quem as sabe A Deus natildeo agrada diz algueacutem em Platatildeo que filosofar seja aprender muitas coisas e tratar das artes () Ele [o aluno] natildeo tanto diraacute sua liccedilatildeo como a executaraacute (I 26 pps 250-251 grifos nossos)2

Da mesma forma natildeo eacute nada evidente a

consequecircncia desta maneira de ver as coisas a saber que os Ensaios tenham uma dimensatildeo normativa para aleacutem da dimensatildeo descritiva que a Nota ao Leitor e o ensaio Do arrependimento parecem indicar ldquosou eu mesmo a mateacuteria do meu livrordquo (I Nota ao leitor p 03) ldquoos outros formam o homem eu o relatordquo (III 2 p 27)3 Segundo esta maneira de ver as coisas (a nossa maneira) tudo se passa como se Montaigne em seus Ensaios natildeo se limitasse ao autorretrato nem fizesse apenas como um dia quis Hugo Friedrich4 uma ldquociecircncia moralrdquo espeacutecie de precursora da antropologia e da psicologia modernas Tudo se passa como se nesta obra algo de normativo se apresentasse No presente texto procuraremos abordar esta questatildeo a saber em que medida eacute possiacutevel encontrar dispersos pelos Ensaios (e sobretudo nos uacuteltimos) os elementos de uma moral praacutetica com propoacutesito normativo Trata-se de resgatar para aleacutem da criacutetica montaigniana da perfeita indiferenccedila do saacutebio estoacuteico (paradigma eacutetico que herdado do periacuteodo heleniacutestico ainda orientava as ideias morais do renascimento tardio) a defesa igualmente empreendida pelo ensaiacutesta de um outro modelo moral a

2 ldquoVoicy mes leccedilons Celuy-lagrave y a mieux proffiteacute qui les fait que qui les sccedilait () Jagrave agrave Dieu ne plaise dit quelquun en Platon que philosopher ce soit apprendre plusieurs choses et traicter les arts (hellip) Il ne dira pas tant sa leccedilon comme il la ferardquo (I 26 pps 167-168) 3 ldquoje suis moy-mesmes la matiere de mon livrerdquo (I Note au lecteur p 03) ldquoles autres forment lhomme je le reciterdquo (III 2 p 804) 4 Friedrich Hugo Montaigne (trad Robert Rovini) Paris Gallimard

1992 p 13

Viver como Soacutecrates 181

conduta ordenada ideal moral ao alcance do homem comum mediacuteocre Para iniciar a busca desta moral praacutetica tomaremos como fio condutor a leitura de algumas passagens de um ensaio em particular o deacutecimo segundo do terceiro livro intitulado Da fisionomia acrescentando quando necessaacuterio a anaacutelise de trechos de outros capiacutetulos dos Ensaios

Em Da fisionomia Montaigne opotildee duas formas de conduta aquela segundo a ciecircncia e a conduta conforme agrave natureza No horizonte desta empresa estaacute nada mais nada menos do que a vida boa possiacutevel a saber a tranquilidade da alma erguida ndash muitos ensaios o testemunham ndash como referecircncia do pensamento moral do ensaiacutesta Em Da fisionomia Montaigne insiste em afirmar que o uacutenico caminho para a serenidade eacute a conduta conforme a natureza e que aquela segundo a ciecircncia leva ao oposto do que ela promete agrave perturbaccedilatildeo Percorramos entatildeo a criacutetica de Montaigne agrave conduta segundo a ciecircncia para finalmente chegarmos ao percurso proposto pelo autor Teremos de nos perguntar entatildeo o que eacute esta lsquonaturezarsquo que o ensaiacutesta reivindica e qual eacute exatamente o seu caminho

Dissemos que no horizonte desta empresa encontra-se a vida boa possiacutevel isto eacute a tranquilidade da alma De que maneira as diversas tradiccedilotildees do pensamento ocidental ateacute o seacuteculo XVI pretenderam atingi-la Ora a partir de diferentes estrateacutegias de conhecimento e controle das afecccedilotildees da alma quer dizer de moderaccedilatildeo ou contenccedilatildeo das paixotildees (estados de perturbaccedilatildeo da alma que se manifestam na busca das coisas costumeiramente consideradas bens ndash cupidez ambiccedilatildeo voluacutepia ndash ou na aversatildeo pelas coisas consideradas males ndash medo tristeza) Dentre essas diferentes estrateacutegias uma se destaca aos olhos de Montaigne que a toma como a estrateacutegia por excelecircncia da ldquociecircnciardquo isto eacute das doutrinas dogmaacuteticas legadas pelos filoacutesofos do passado dentre as quais se destaca o

182 Eacutetica e filosofia poliacutetica

estoicismo recuperado pelos neo-estoicos em voga na Franccedila do seacuteculo XVI (Justus Lipsius e Guillaume Du Vair sobretudo) Qual seria essa estrateacutegia A meditatio mortis dos estoicismos meacutedio e imperial sobretudo de Ciacutecero e Secircneca

Segundo os estoicos a causa da perturbaccedilatildeo da alma eacute um erro de juiacutezo considerar como bens coisas que em si mesmas satildeo indiferentes5 (a riqueza a honra a sauacutede etc) Ao julgaacute-las como bens (e seus opostos como males) o indiviacuteduo as toma como fins uacuteltimos (teacuteloi) de suas accedilotildees e passa a aspiraacute-las e a direcionar seus esforccedilos para alcanccedilaacute-las e mantecirc-las Daiacute seu sofrimento quando natildeo as alcanccedila ou as perde (quando natildeo estava previsto pela Providecircncia Divina que as atingisse ou as mantivesse) A uacutenica saiacuteda para este esquema perverso das paixotildees eacute a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem6 isto eacute a compreensatildeo de que o uacutenico e verdadeiro Bem (uacutenico fim que deve ser aspirado e buscado) eacute a Harmonia Universal que depende da realizaccedilatildeo da nossa natureza individual (isto eacute do cumprimento do nosso destino7 pessoal) Conformar a proacutepria vontade aos comandos da Razatildeo ou desiacutegnios da Natureza isto eacute agrave Vontade de Deus aceitar tudo o que ocorre consigo (ou mais do que isso desejaacute-lo buscaacute-lo) eis a fonte da tranquilidade da alma

Ocorre que o indiviacuteduo de sua perspectiva finita natildeo conhece os planos de Deus Ele natildeo sabe se estaacute nos desiacutegnios do Cosmos que vaacute se casar que siga uma carreira poliacutetica que tenha ou natildeo filhos Como entatildeo deve agir O que deve escolher buscar Ora dizem os estoicos ele deve prosseguir escolhendo o que sua educaccedilatildeo o ensinou a buscar (o que eacute conveniente o que os deveres recomendam a sauacutede a honra o

5 Para a doutrina da indiferenccedila dos bens e dos males segundo a opiniatildeo comum cf Secircneca Cartas a Luciacutelio 92 e 118 6 Idem cartas 16 e 41 7 Idem carta 96

Viver como Soacutecrates 183

conhecimento etc) mas sem buscar essas coisas como se fossem bens isto eacute sem tomaacute-las como os fins uacuteltimos de suas accedilotildees Ele deve consideraacute-las apenas como preferiacuteveis isto eacute fins necessaacuterios para que continue a agir mas que natildeo devem ser seus fins uacuteltimos (teacuteloi) e sim apenas fins intermediaacuterios (skoacutepoi) Em cada uma de suas escolhas seu fim uacuteltimo (o verdadeiro objeto de suas aspiraccedilotildees) deve ser aquilo que a Razatildeo e a Natureza (a Vontade de Deus) determinam que ocorra (o Bem) Assim se ele natildeo alcanccedilar o que buscava (o fim intermediaacuterio) natildeo se decepcionaraacute pois natildeo era isso o que ele efetivamente buscava e sim o que Deus queria para ele (o que de qualquer forma realizou-se) Da mesma forma se perder algo que havia alcanccedilado este homem natildeo sofre pois qualquer coisa que advenha ele sabe que eacute conforme agrave Razatildeo ou a Vontade de Deus sabe que tudo colabora para seu bem individual (a realizaccedilatildeo de sua natureza particular) e para o Bem Universal uacutenico fim que ele aspira Este homem que os estoicos chamam de saacutebio permanece tranquilo num estado de perfeita indiferenccedila8 diante de qualquer coisa que lhe aconteccedila Mas como ele adquiriu a ciecircncia do Bem Ora ingressando no caminho da filosofia isto eacute do exerciacutecio da dialeacutetica ndash a praacutetica repetida da distinccedilatildeo dos bens e dos males De tanto repetir este exerciacutecio e julgar o que eacute correto fazer em cada caso o aspirante agrave sabedoria deve dar uma espeacutecie de ldquosalto intelectualrdquo no qual subitamente eacute levado agrave apreensatildeo do Bem

Ao longo da histoacuteria do estoicismo no entanto outros ldquomeacutetodosrdquo com vistas ao desapego em relaccedilatildeo aos bens segundo a opiniatildeo foram desenvolvidos Eacute o caso da meditaccedilatildeo da vaidade e da contingecircncia9 dessas

8 Cf Secircneca De constantia sapientis 10 4 9 Falamos a propoacutesito de laquo contingecircncia raquo porque a Providecircncia Divina pode ser representada do ponto de vista do agente como a Fortuna jaacute que ele perceberia apenas uma forccedila determinando o resultado de

184 Eacutetica e filosofia poliacutetica

coisas laquomeacutetodoraquo desenvolvido pelos estoicismos meacutedio e imperial Esta meditaccedilatildeo ndash espeacutecie de projeccedilatildeo permanente da possibilidade de perdecirc-las a todo momento ndash deve (ao menos eacute o que se espera) ter como efeito um certo desprendimento em relaccedilatildeo aos laquofalsos bensraquo numa palavra a indiferenccedila ou impassibilidade

Se pudeacutessemos ateacute o fundo da alma nos penetrar desta verdade e representar para noacutes mesmos que todos os males que acontecem com os outros todos os dias e em nuacutemero tatildeo grande tem o caminho livre para chegar a noacutes estariacuteamos armados antes de sermos atacados10

Todavia haacute uma estrateacutegia pretensamente ainda

mais eficaz que conduziria ainda mais rapidamente a tal resultado Na medida em que nas representaccedilotildees da opiniatildeo comum a morte aparece como o pior dos males (ou a vida como o maior dos bens) bastaria que a meditaccedilatildeo se aplicasse a este objeto para que como por um efeito de cascata todo o resto se tornasse indiferente Assim a meditatio mortis adquire uma centralidade dentre as estrateacutegias que buscam a impassibilidade ela seraacute a estrateacutegia por excelecircncia do estoicismo imperial (ao menos o de Secircneca) com vistas agrave tranquilidade da alma Trata-se de meditar constantemente sobre a vaidade o aspecto efecircmero e a contingecircncia da vida de projetar a todo momento e para o proacuteximo instante a proacutepria morte

suas accedilotildees cujas causas lhe escapam De seu ponto de vista limitado ele natildeo sabe se esta forccedila eacute o acaso ou a Vontade de Deus 10 ldquoHoc si quis in medullas demiserit et omnia aliena mala quorum ingenscotidie copia est sic aspexerit tamquam liberum illis et ad se iter sit multo ante se armabit quam petatur Seroanimus ad periculorum patientiam post pericula instruiturrdquo (Secircneca De tranquilitate animi 11

8)

Viver como Soacutecrates 185

Vivemos mal quando natildeo sabemos morrer bem [hellip] aquele que sabe que no momento mesmo em que foi concebido sua sentenccedila foi proclamada saberaacute viver segundo a lei da natureza e encontraraacute assim a mesma forccedila de alma para opocircr aos eventos nenhum dos quais jamais lhe seraacute imprevisto11

Ora Montaigne natildeo poderia deixar de zombar

deste lsquoprojetorsquo elaborado pelos estoicos isto eacute de sua concepccedilatildeo de tranquilidade como impassibilidade (apathia) e do caminho proposto para alcanccedilaacute-la (a aquisiccedilatildeo da ciecircncia do Bem) Isto porque diz o ensaiacutesta nem um nem outro (nem a ciecircncia nem a impassibilidade) estatildeo ao alcance dos homens12 em sua maioria ordinaacuterios comuns mediacuteocres (intelectualmente e afetivamente fracos dotados de uma fraacutegil capacidade de julgar e de uma vontade fraca) Em numerosas passagens Montaigne aponta a fragilidade constitutiva do juiacutezo dos homens (sequer eacute necessaacuterio ir agrave Apologia de Raimond Sebond para mostraacute-lo)

11 ldquoMale uiuet quisquis nesciet bene mori () qui sciet hoc sibi cum conciperetur statim condictum uiuet ad formulam et simul illud quoque eodem animi robore praestabit ne quid ex iis quae eueniunt subitum sitrdquo (Idem 11 4-6) Cf tambeacutem Cartas a Luciacutelio 91 e 101 12 Montaigne tensiona explicitamente o paradigma proposto pelos estoacuteicos (o saacutebio) e certa concepccedilatildeo do homem Ele acusa a inutilidade do modelo agrave luz da impossibilidade da maioria dos homens realizarem-no (eacute um cume sobre o qual ldquonenhum ser humano pode se sentarrdquo) Outro termo ao qual ele recorre eacute o ldquonoacutesrdquo em que ele proacuteprio se inclui e que designa a coletividade humana (ldquoessas regras que excedem nossos costumes e nossa forccedilardquo) Entendemos que estas noccedilotildees natildeo implicam nenhuma referecircncia a uma natureza humana ou a uma universalidade Quando Montaigne fala dos lsquohomensrsquo ou deste lsquonoacutesrsquo (e que frequentemente aparece como lsquonoacutes homens fracosrsquo) pensamos tratar-se de uma noccedilatildeo obtida por experiecircncia que permanece portanto como generalidade frouxa aberta a exceccedilotildees natildeo sendo uma universalidade formulada teoricamente Da mesma forma entendemos que Montaigne se refere agraves inclinaccedilotildees humanas como fenocircmenos observaacuteveis sem poder dizer se eles exprimem uma lsquonaturezarsquo oculta

186 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Quem se lembra de tantas e tantas vezes ter se descontentado de seu proacuteprio juiacutezo natildeo eacute um tolo por jamais desconfiar dele Quando me vejo convencido de uma opiniatildeo falsa pela razatildeo de outrem natildeo tanto aprendo o que ele me disse de novo e esta ignoracircncia particular (seria um ganho pequeno) como em geral aprendo minha debilidade e a traiccedilatildeo de meu entendimento (III 13 p 436)13

Para Montaigne o lsquosalto intelectualrsquo de apreensatildeo

do Bem imaginado pelos estoicos eacute irrealizaacutevel O mesmo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave perfeita indiferenccedila do saacutebio Ela supotildee um poder de neutralizaccedilatildeo ou de atenuaccedilatildeo dos estados afetivos (movimentos da alma) que natildeo estaacute ao alcance da maioria dos homens ldquonatildeo sigamos esses exemplos natildeo os alcanccedilariacuteamosrdquo (III 10 347)14 Uma vez que o indiviacuteduo tenha sido tocado pelos objetos que nele despertam paixotildees nem seu juiacutezo nem sua vontade seratildeo capazes de refreaacute-lo15 - o proacuteprio

13 ldquoQui se souvient de sestre tant et tant de fois mesconteacute de son propre jugement est-il pas un sot de nen entrer pour jamais en deffiance Quand je me trouve convaincu par la raison dautruy dune opinion fauce je napprens pas tant ce quil ma dict de nouveau et cette ignorance particuliere (ce seroit peu dacquest) comme en general japprens ma debiliteacute et la trahison de mon entendementrdquo (III 13 1074) 14 ldquoNataquons pas ces exemples nous ny arriverions pointrdquo (III 10 1015) 15 Nem o juiacutezo nem a forccedila da vontade Mais do que apenas aos estoicos Montaigne portanto opotildee-se agraves duas tradiccedilotildees que desde os gregos debatiam acerca dos meios de fazer frente agraves paixotildees os intelectualistas que fundam a virtude no conhecimento do bem (o jovem Platatildeo os estoicos) e os adeptos da enkrateia isto eacute da forccedila de caraacuteter conquistada pelo exerciacutecio (Xenofonte os ciacutenicos) O Platatildeo dos diaacutelogos de maturidade (a partir da Repuacuteblica) e Aristoacuteteles

entenderatildeo que ambos o conhecimento do bem e a forccedila de caraacuteter satildeo necessaacuterios agrave virtude No opuacutesculo De constantia sapientis Secircneca daacute o nome de patientia agrave forccedila de caraacuteter diante das paixotildees e de constantia agrave ausecircncia de perturbaccedilatildeo fundada no juiacutezo reto

entendendo que a segunda virtude eacute superior agrave primeira

Viver como Soacutecrates 187

Montaigne se apresenta como exemplo de fraqueza da vontade

aqueles que devem cuidar de mim poderiam com facilidade subtrair de minha vista o que pensam ser-me nocivo pois em tais coisas jamais desejo nem tenho o que dizer sobre o que eu natildeo vejo mas daquelas que se me apresentam eles perdem seu tempo em pregar-me a abstinecircncia (III 13 p 478)16

Entre o homem comum e o paradigma do saacutebio

proposto pelos estoicos haacute uma distacircncia intransponiacutevel - o que faz deste uacuteltimo aos olhos de Montaigne um modelo inuacutetil

de que servem esses cumes elevados da filosofia sobre os quais nenhum ser humano pode se sentar e essas regras que excedem os nossos costumes e a nossa forccedila (III 9 p 307)17

Num contexto semelhante Montaigne vai ainda

mais longe na criacutetica acusando de ambiccedilatildeo os porta-vozes desta moral

Odeio esta sapiecircncia desumana que quer nos tornar indiferentes e inimigos da cultura do corpo Considero tomar a contragosto as voluacutepias naturais uma injusticcedila semelhante a gostar delas demais [] Haacute indiviacuteduos que com uma estupidez selvagem como diz Aristoacuteteles satildeo-lhes indiferentes [aos prazeres do corpo] Conheccedilo alguns que o satildeo por ambiccedilatildeo []

16 ldquoceux qui doivent avoir soing de moy pourroyent agrave bon marcheacute me desrober ce quils pensent mestre nuisible car en telles choses je ne desire jamais ny ne trouve agrave dire ce que je ne vois pas mais aussi de celles qui se presentent ils perdent leur temps de men prescher labstinencerdquo (III 13 1101) 17 ldquoA quoy faire ces poinctes esleveacutees de la philosophie sur lesquelles aucun estre humain ne se peut rassoir et ces regles qui excedent nostre usage et nostre forcerdquo (III 9 989)

188 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo (III 13 p 485-487 grifos nossos)18

Aqui Montaigne remete a uma longa tradiccedilatildeo cujos rastros se encontram na poesia grega (de Homero agraves trageacutedias) em Horaacutecio e em certos autores cristatildeos O ponto em comum entre essas diferentes fontes eacute a liccedilatildeo moral derivada da ecircnfase nos limites humanos particularmente contrastados pelos poetas gregos e autores cristatildeos19 com a perfeiccedilatildeo e a potecircncia divinas para marcar aquilo que o homem natildeo pode ambicionar Montaigne se insere nesta longa tradiccedilatildeo quando acusa na moral praacutetica dos estoicos algo como a aspiraccedilatildeo a uma condiccedilatildeo divina visto que a ciecircncia e a impassibilidade seriam atributos apenas de Deus

eles querem se colocar fora de si mesmos e escapar do homem Eacute loucura em vez de se transformarem em anjos transformam-se em bestas em vez de se elevarem precipitam-se (III 13 p 500)20

Montaigne adverte os que propotildeem esta moral

das consequecircncias nefastas de sua hyacutebris Natildeo se trata apenas de uma vatilde pretensatildeo de uma busca inuacutetil mas de um projeto nocivo Isto porque contrariamente ao que ela promete esta moral soacute produz a perturbaccedilatildeo a infelicidade Neste ponto a criacutetica endereccedila-se diretamente agrave meditatio mortis A meditaccedilatildeo permanente

18 [Je] hay cette inhumaine sapience qui nous veut rendre desdaigneux et ennemis de la culture du corps Jestime pareille injustice prendre agrave contre coeur les voluptez naturelles que de les prendre trop agrave coeur (hellip) Il en est qui dune farouche stupiditeacute comme dict Aristote en sont desgoutez Jen cognoy qui par ambition le font (hellip) Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps (III 13 1106-1107) 19 Cf tambeacutem Plutarco LE de Delfos in Dialogues Pythiques Paris Flammarion 2006 pps 112-115 (392a-393c) 20 ldquoIls veulent se mettre hors deux et eschapper agrave lhomme Cest folie au lieu de se transformer en anges ils se transforment en bestes au lieu de se hausser ils sabattentrdquo (III 13 p 1115)

Viver como Soacutecrates 189

da proacutepria morte projeccedilatildeo constante de um acontecimento fatal para o instante seguinte natildeo poderia ter outro efeito que pocircr o indiviacuteduo num estado de permanente terror A indignaccedilatildeo montaigniana com semelhante ldquomeacutetodordquo vai ao limite do escaacuternio

eacute certo que para a maior parte [dos homens] a preparaccedilatildeo para a morte provocou mais tormento do que o fez seu sofrimento [hellip] Natildeo somente o golpe mas o vento e o peido nos atingem (III 12 p 399-400)21

A meditatio acrescenta ao sofrimento sensiacutevel

real inevitaacutevel (a dor a morte) ou simplesmente possiacutevel (a pobreza a desonra) o medo ndash sofrimento criado pela imaginaccedilatildeo Ela antecipa prolonga no tempo e aprofunda (pois eacute recomendada a projeccedilatildeo dos mais terriacuteveis males uma vez que se trata de preparar-se para sua eventualidade) um sofrimento que soacute afetaria o sujeito no futuro e de modo mais leve ou mais breve no momento em que se apresentasse aos seus sentidos

Lanccedilai-vos agrave experiecircncia dos males que vos podem ocorrer sobretudo dos mais extremos testai-vos aiacute dizem eles ganhai seguranccedila [hellip] eacute preciso que nosso espiacuterito os estenda e alongue e que antecipadamente os incorpore em si e se entretenha com eles como se natildeo pesassem razoavelmente para os nossos sentidos [hellip] [ora] eacute febre submeter-se desde agora ao chicote porque pode ocorrer da fortuna vos fazer sofrer isso um dia (Ibidem)22

21 ldquoIl est certain quagrave la plus part la preparation agrave la mort a donneacute plus de tourment que na faict la souffrance (hellip) Non seulement le coup mais le vent et le pet nous frapperdquo (III 12 1050-1051) 22 ldquoJettez vous en lexperience des maux qui vous peuvent arriver nommeacutement des plus extremes esprouvez vous lagrave disent-ils asseurez vous lagrave (hellip) il faut que nostre esprit les estende et alonge et quavant la main il les incorpore en soy et sen entretienne comme sils ne poisoient pas raisonnablement agrave nos sens (hellip) [Or] cest fieacutevre aller

190 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Imaginaccedilatildeo e sentidos estes satildeo os dois poacutelos

que se opotildeem na criacutetica de Montaigne agrave meditatio mortis ou mais amplamente agrave laquociecircnciaraquo Que sejamos afetados por alguns infortuacutenios atraveacutes dos sentidos eacute algo incontornaacutevel Eacute possiacutevel evitar no entanto o trabalho nocivo da imaginaccedilatildeo que produz a perturbaccedilatildeo

Por aiacute jaacute se antevecirc o caminho que Montaigne vai contrapor agrave via da ciecircncia no que diz respeito ao enfrentamento dos infortuacutenios a via dos sentidos isto eacute da restriccedilatildeo do trabalho da imaginaccedilatildeo Trata-se do caminho percorrido espontaneamente pelo homem simples natildeo cultivado que evita pensar nos infortuacutenios antes que ocorram sofrendo-os apenas quando se apresentam aos seus sentidos ldquoO [homem] comum natildeo tem necessidade nem de remeacutedio nem de consolo a natildeo ser no momento do golpe e natildeo o considera senatildeo tanto quanto o senterdquo (III 12 p 403)23 Este homem natildeo entristece o presente por causa de uma eventual ou necessaacuteria infelicidade futura natildeo prolonga no tempo nem aumenta a gravidade dos sofrimentos por meio de projeccedilotildees imaginaacuterias Ao contraacuterio ele fixa sua consciecircncia no presente e na fruiccedilatildeo dos prazeres e pequenas felicidades do instante afastando as representaccedilotildees que provocam medo e tristeza

[] jamais vi camponecircs vizinho meu pocircr-se a cogitar sobre a continecircncia e a seguranccedila com que passaria por esta hora derradeira A natureza o ensina a soacute pensar na morte quando estiver morrendo (III 12 402)24

des agrave cette heure vous faire donner le fouet par ce quil peut advenir que fortune vous le fera souffrir un jourrdquo (idem) 23 laquoLe commun na besoing ny de remede ny de consolation quau coup et nen considere quautant justement quil en sentraquo (III 12 1052) 24 laquoJe ne vy jamais paysan de mes voisins entrer en cogitation de quelle contenance et asseurance il passeroit cette heure derniere

Viver como Soacutecrates 191

Ao deixar ao maacuteximo os infortuacutenios para os

sentidos utilizando ao miacutenimo a faculdade de representaccedilatildeo este homem eacute ateacute mesmo mais capaz de captaacute-los na sua dimensatildeo real que escapa ao homem de ldquociecircnciardquo que lhes acrescenta representaccedilotildees imaginaacuterias laquocomo os perfumistas [fazem] com o oacuteleo eles [os homens de laquociecircnciaraquo] a sofisticaram [a natureza] com tantas argumentaccedilotildees e discursos trazidos de fora [hellip]raquo (III 12 p 399)25 Enquanto o homem de ciecircncia se afasta da verdade das coisas o homem comum dela se aproxima

Eis portanto o modelo de conduta a seguir algueacutem como o camponecircs o ruacutestico Em duas palavras o homem ignorante que natildeo passou pelo processo de educaccedilatildeo (laquoesta turba ruacutestica de homens impolidosraquo - III 12 p 398)26 e que se orienta pelos costumes (as opiniotildees comuns) e pela experiecircncia imediata Sobretudo este homem sofre pouco porque toma como criteacuterio de conduta o que se apresenta aos sentidos Ele busca o prazer e foge da dor Por isso evita acrescentar agrave dor que haacute de afetaacute-lo sensivelmente (a doenccedila a velhice a morte) o sofrimento que poderiam provocar as representaccedilotildees imaginaacuterias (a tristeza o medo) Da mesma forma busca os prazeres sensiacuteveis e os frui intensamente sem misturaacute-los a representaccedilotildees desagradaacuteveis27 Mas ele tambeacutem evita os excessos pois

Nature luy apprend agrave ne songer agrave la mort que quand il se meurtraquo (idem) 25 laquocomme les parfumiers de lhuile ils [les hommes de science] lont sophistiqueacutee [la nature] de tant dargumentations et de discours appellez du dehorshellip raquo (III 12 1049) 26 laquoCette tourbe rustique dhommes impolisraquo (III 12 p 1049) 27 A conduta ldquonaturalrdquo que no ensaio Da experiecircncia Montaigne reivindica em relaccedilatildeo aos prazeres do corpo natildeo eacute a outra face da conduta natural que no Da fisionomia ele reivindica em relaccedilatildeo aos sofrimentos Pensamos que sim Mesmo que Montaigne natildeo atribua explicitamente ao ruacutestico o gozo salutar dos prazeres sensiacuteveis

192 Eacutetica e filosofia poliacutetica

natildeo deseja as dores futuras que estes poderiam acarretar28 (a ressaca depois da bebedeira a indigestatildeo apoacutes a comilanccedila) laquoa intemperanccedila eacute peste da voluacutepia e a temperanccedila natildeo eacute seu flagelo eacute seu temperoraquo (III 13 p 493)29 Enfim desta espeacutecie de sabedoria popular desta sapiecircncia quase instintiva (os animais tambeacutem buscam o prazer e evitam a dor30) adveacutem a tranquilidade da alma estado aniacutemico que coexiste com uma espeacutecie de gratidatildeo31 pelo vivido ndash fruto da praacutetica cotidiana e reiterada do desvio da consciecircncia das dores e de sua fixaccedilatildeo nos prazeres

(regrado unicamente pela necessidade de natildeo recair em dores futuras) fazecirc-lo parece-nos conforme agraves ideias do ensaiacutesta 28 Seriam suficientes o prazer e a dor como criteacuterios de conduta para evitarmos o viacutecio e instaurarmos a virtude moral Seria suficiente a aplicaccedilatildeo desses criteacuterios Essas questotildees devem ser examinadas 29 laquoLintemperance est peste de la volupteacute et la temperance nest pas son fleau cest son assaisonnementraquo (III 13 1110) 30 laquoA natureza imprimiu nos animais o cuidado consigo mesmos e com sua conservaccedilatildeo Eles vatildeo ateacute o ponto de temer sua piora chocar-se e ferir-se que noacutes os encabrestemos e batamos neles acidentes sujeitos a seus sentidos e experiecircncia Mas que noacutes os matemos eles natildeo podem temecirc-lo nem tem a faculdade de imaginar e concluir a morteraquo (III 12 p 407) rdquoNature a empreint aux bestes le soing delles et de leur conservation Elles vont jusques lagrave de craindre leur empirement de se heurter et blesser que nous les enchevestrons et battons accidents subjects agrave leurs sens et experience Mais que nous les tuons elles ne le peuvent craindre ny nont la faculteacute dimaginer et conclurre la mortrdquo (III 12 p 1055) 31 Novamente parece-nos de acordo com as ideias do autor estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a conduta paradigmaacutetica do camponecircs (conduta conforme a natureza) e o tema da gratidatildeo que aparece no ensaio seguinte Da experiecircncia Isto porque a gratidatildeo eacute uma espeacutecie de corolaacuterio da vida conforme a natureza que restringe as dores agrave sua accedilatildeo (inevitaacutevel) sobre os sentidos e estende os prazeres sensiacuteveis com o auxiacutelio da imaginaccedilatildeo (a faculdade de representaccedilatildeo) ldquoOs outros sentem a doccedilura de um contentamento e da prosperidade sinto-a assim como eles mas natildeo de passagem e escapando Eacute preciso estudaacute-la saboreaacute-la e ruminaacute-la para dar graccedilas condignas agravequele que no-la outorga () Quanto a mim portanto amo a vida e a cultivo tal como aprouve a Deus no-la outorgarrdquo (III 13 pps 494-496)

Viver como Soacutecrates 193

Mas o que significa tomar o ruacutestico (essa espeacutecie de homem quase em ldquoestado de naturezardquo) como modelo de conduta O que isso pode significar para homens que como Montaigne jaacute passaram pelo processo de educaccedilatildeo e natildeo podem simplesmente retornar para esse estado primitivo de ignoracircncia Como jaacute tendo sido educado aproximar-se deste modelo Em resposta a essas perguntas Montaigne encontra na histoacuteria da filosofia um modelo de saacutebio que teria realizado este lsquoprojetorsquo Soacutecrates O mestre de Platatildeo e de Xenofonte segundo o ensaiacutesta teria justamente alcanccedilado por meio de sua praacutetica filosoacutefica um estado similar ao do ruacutestico Ele reproduziria refletidamente sua tranquilidade fundada na ignoracircncia ldquonatildeo teremos falta de bons regentes inteacuterpretes da simplicidade natural Soacutecrates seraacute um delesrdquo (III 12 p 403)32 Isto porque o principal fruto do seu ensinamento teria sido conduzir seus interlocutores ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia (reconhecimento que ele Soacutecrates teria sido o primeiro a fazer) O essencial neste ponto eacute a praacutetica socraacutetica do elenchos a criacutetica dos discursos dogmaacuteticos (de seu pretenso saber) a conduccedilatildeo de seus interlocutores ao reconhecimento de sua falta de ciecircncia (de que estatildeo em posse apenas de opiniotildees) Em Da fisionomia Montaigne examina o discurso que Soacutecrates teria proferido na ocasiatildeo do seu julgamento e deteacutem-se na anaacutelise das razotildees de sua tranquilidade diante de sua condenaccedilatildeo agrave morte Em face deste horizonte Soacutecrates mostra-se sereno E ele argumenta que permanece calmo afirma Montaigne porque natildeo sabe o que eacute a morte Todas as opiniotildees acerca da natureza desta (se haacute ou natildeo imortalidade da alma se a morte eacute ou natildeo a nossa completa aniquilaccedilatildeo) revelam-se quando submetidas a exame apenas isto opiniotildees isto eacute juiacutezos cuja correspondecircncia com o objeto (a morte) natildeo se pode

32 ldquoNous naurons pas faute de bons regens interpretes de la simpliciteacute naturelle Socrates en sera lunrdquo (III 12 p 1052)

194 Eacutetica e filosofia poliacutetica

comprovar Portanto temer o quecirc Natildeo haacute o que justifique o temor ldquosei [diz Soacutecrates] que nem frequentei nem conheci a morte nem vi ningueacutem que tenha experimentado suas qualidades para me instruir sobre elas Aqueles que a temem pressupotildeem conhececirc-la Quanto a mim natildeo sei nem o que ela eacute nem o que se faz no outro mundordquo (III 12 p 403-404)33 O juiacutezo de Montaigne sobre o pronunciamento socraacutetico coloca o mestre de Platatildeo na mesma posiccedilatildeo do ruacutestico ldquoeacute um discurso [] [que] representa [] a pura e primeira impressatildeo e ignoracircncia naturalrdquo (III 12 p 407)34

Assim como o ruacutestico portanto o Soacutecrates montaigniano (mas agora por efeito da criacutetica ceacutetica e natildeo por inclinaccedilatildeo ldquonaturalrdquo) natildeo acrescenta agrave dor sensiacutevel e inevitaacutevel o sofrimento evitaacutevel criado pelas representaccedilotildees Mas ele tambeacutem se assemelha ao homem simples em sua dedicaccedilatildeo aos prazeres sensiacuteveis Tambeacutem daiacute deriva sua tranquilidade fruto da satisfaccedilatildeo das carecircncias naturais Natildeo satildeo poucas as passagens em que Montaigne pinta um Soacutecrates afeito aos pequenos prazeres e alegrias do instante o homem que danccedila toca instrumentos brinca com as crianccedilas bebe com os companheiros e ateacute mesmo permite-se cometer excessos ocasionais afirmando que eles pertencem (se eventuais e adequados agraves circunstacircncias) agraves regras da conveniecircncia

[natildeo haacute] coisa mais notaacutevel em Soacutecrates do que muito velho ele encontrar tempo para aprender a danccedilar e a tocar instrumentos e tecirc-lo por bem empregado [hellip] este homem se fosse convidado a beber agrave porfia por

33 ldquoJe sccedilay [dit Socrate] que je nay ny frequenteacute ny recogneu la mort ny nay veu personne qui ayt essayeacute ses qualitez pour men instruire Ceux qui la craingnent presupposent la cognoistre Quant agrave moy je ne sccedilay ny quelle elle est ny quel il faict en lautre monderdquo (III 12 pps 1052-1053) 34 ldquocest un discours (hellip) [qui] repreacutesente (hellip) la pure et premiere impression et ignorance de naturerdquo (1054-1055)

Viver como Soacutecrates 195

dever de civilidade de todo o exeacutercito era ele que levava a vantagem e natildeo se recusava nem a brincar de bolinhas com as crianccedilas nem a correr com elas sobre um cavalo de madeira e o fazia com graccedila (III 13 p 491-492)35

Por aiacute jaacute se percebe que o modelo de Soacutecrates eacute

relevante natildeo apenas por sua potecircncia criacutetica isto eacute por levar os pretensos saacutebios ao reconhecimento de sua proacutepria ignoracircncia O interesse do modelo socraacutetico natildeo se resume ao momento negativo do elenchos A partir da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia um novo programa surge e Montaigne reconhece em Soacutecrates seu mais ilustre representante Isto porque o ruacutestico natildeo eacute apenas um homem ignorante Ele eacute um homem ordenado espontaneamente ordenado um homem que se conduz conforme uma ldquoordenaccedilatildeo naturalrdquo Ora o programa que se inaugura depois do momento da reduccedilatildeo agrave ignoracircncia eacute o resgate desta ordem que foi perdida por efeito de uma certa educaccedilatildeo de uma certa cultura ldquoNatildeo encaro a espeacutecie e o indiviacuteduo como uma pedra em que eu tenha tropeccedilado aprendo a temer meus passos em tudo e empenho-me em regraacute-losrdquo (III 13 p 436)36 ldquoCompor nossos costumes eacute nosso ofiacutecio natildeo compor livros e ganhar natildeo batalhas e proviacutencias mas a ordem e a tranquilidade em nossa condutardquo (III 13 pps 488-489)37

35 ldquo[il nest] chose plus remercable en Socrates que ce que tout vieil il trouve le temps de se faire instruire agrave baller et jouer des instrumens et le tient pour bien employeacute () cet homme lagrave estoit-il convieacute de boire agrave lut par devoir de civiliteacute cestoit () celuy de larmeacutee agrave qui en demeuroit lavantage et ne refusoit ny agrave jouer aux noysettes avec les enfans ny agrave courir avec eux sur un cheval de bois et y avoit bonne gracerdquo (III 13 1109-1110) 36 ldquoJe ne regarde pas lespece et lindividu comme une pierre ougrave jaye broncheacute japprens agrave craindre mon alleure par tout et mattens agrave la reiglerrdquo (III 13 1074) 37 ldquoComposer nos meurs est nostre office non pas composer des livres et gaigner non pas des batailles et provinces mais lordre et tranquilliteacute agrave nostre conduiterdquo (III 13 1108 ndash idem)

196 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Em termos socraacuteticos eacute como se passaacutessemos

agora para o momento da maiecircutica isto eacute do esforccedilo para dar ordem agraves opiniotildees e daiacute extrair o conhecimento Em termos montaignianos trata-se de recuperar a ordenaccedilatildeo de si isto eacute de suas proacuteprias opiniotildees e da relaccedilatildeo entre as partes constitutivas do eu38 a saber o corpo e a alma Eacute desta ordenaccedilatildeo que adveacutem a tranquilitas

Falemos um pouco mais do ruacutestico Sua fala e sua conduta satildeo espontaneamente ordenadas Seu discurso tem ordem ainda que suas palavras natildeo o tenham No mais das vezes ele se faz entender comunica-se com

38 Ora natildeo eacute exatamente este o ldquoprograma moralrdquo que Platatildeo elabora em diversos diaacutelogos Qual seja restabelecer a partir do conhecimento de si (isto eacute de nossa natureza) a ordem natural entre nossas partes constitutivas (no caso platocircnico a devida hierarquia entre o corpo e a alma o devido comando desta sobre aquele) ldquoa excelecircncia de cada coisa consiste em uma ordem (taacutexei) e uma disposiccedilatildeo feliz (kekosmemeacutenon) resultante da ordem () Eacute preciso que cada um aplique todas as suas forccedilas todas as da cidade na direccedilatildeo deste fim () que natildeo se permita aos apetites (epithymiacuteas) reinar sem medidardquo (Goacutergias 506d-507e) Como veremos Montaigne repropotildee o programa platocircnico da ordenaccedilatildeo de si mas em termos diversos Natildeo se trataraacute de estabelecer uma relaccedilatildeo vertical de comando e obediecircncia entre as ldquopartesrdquo mas uma relaccedilatildeo horizontal de auxiacutelio reciacuteproco de ldquomutuels officesrdquo (III 13 p 1114) Sem duacutevida Montaigne concorda com Platatildeo quanto agrave necessidade da temperanccedila Mas esta natildeo deve ser o efeito do comando da alma

sobre o corpo mas do muacutetuo auxiacutelio entre essas partes (as paixotildees da alma tambeacutem precisam ser regradas temperadas ndash aliaacutes elas satildeo as mais perigosas) Nem Montaigne pretende que busquemos a temperanccedila por se tratar de um fim uacuteltimo mas sim porque o prazer

depende dela ldquoque ela [a alma] o assista e favoreccedila [o corpo] e natildeo se recuse a participar de seus prazeres naturais e de se comprazer conjugalmente com eles acrescentando-lhes se for mais saacutebia a moderaccedilatildeo temendo que por indiscriccedilatildeo eles se confundam com o desprazerrdquo (III 13 p 494-493) O fim uacuteltimo eacute outro natildeo a virtude (para a qual deve se dirigir o prazer) mas o prazer (para o qual deve se dirigir a virtude) Mas tambeacutem eacute outro o que nos move em direccedilatildeo a tal fim natildeo mais uma vontade racional soberana mas um desejo orientado (favorecido) pelo juiacutezo

Viver como Soacutecrates 197

sucesso o espiacuterito do que diz eacute compreensiacutevel ainda que possa haver certo desarranjo na letra

Ele natildeo sabe ablativo conjuntivo substantivo nem a gramaacutetica tampouco o sabem seu lacaio ou uma peixeira de Petit Pont e no entanto vos entreteratildeo a natildeo mais poder se o desejares e possivelmente se embaraccedilaratildeo tatildeo pouco com as regras de sua linguagem quanto o melhor bacharel da Franccedila (I 26 253)39

O mesmo ocorre com sua conduta no mais das

vezes ele age de maneira reta e permanece tranquilo pois toma como criteacuterios de conduta os costumes e os sentidos (o prazer e a dor) Ele permanece tranquilo porque suas ldquopartes constitutivasrdquo (seu corpo e sua alma) estatildeo espontaneamente ordenadas uma em relaccedilatildeo agrave outra Ele eacute o homem que manteacutem uma relaccedilatildeo saudaacutevel com o proacuteprio corpo que atende agraves demandas de seus impulsos naturais (desejo de prazer e aversatildeo agrave dor) Ele natildeo busca uma impassibilidade antinatural como fazem os filoacutesofos (os homens de ldquociecircnciardquo) nem o controle de sua alma sobre seu corpo Estes (alma e corpo) auxiliam-se reciprocamente Sua alma natildeo acrescenta agraves dores do corpo o sofrimento decorrente de representaccedilotildees imaginaacuterias ao contraacuterio busca distraccedilotildees (diversotildees lembranccedilas de prazeres passados etc) para aliviar as dores inevitaacuteveis do corpo Esta conduta serve de modelo para o proacuteprio Montaigne como ele nos mostra nesta passagem

Eis que desde recentemente os mais leves movimentos expelem puro sangue de meus rins Ora nem por isso

39 ldquoIl ne sccedilait pas ablatif conjunctif substantif ny la grammaire ne faict pas son laquais ou une harangiere du petit pont et si vous entretiendront tout vostre soul si vous en avez envie et se desferreront aussi peu agrave ladventure aux regles de leur langage que le meilleur maistre eacutes arts de Francerdquo (I 26 169)

198 Eacutetica e filosofia poliacutetica

eu deixo de me mover como dantes e galopar atraacutes de meus catildees com um ardor juvenil e insolente [] Sinto alguma coisa que desmorona Natildeo espereis que fique me ocupando em examinar meu pulso e minha urina para daiacute extrair alguma previsatildeo desagradaacutevel passarei bastante tempo sentindo o mal sem prolongaacute-lo com o mal do medo Quem teme sofrer jaacute sofre porque teme (III 13 p 468-469)40

Por outro lado os prazeres sensiacuteveis servem de

baacutelsamo para as paixotildees tristes da alma ndash a tristeza e o medo face agrave velhice a doenccedila e a morte Novamente eacute a conduta que Montaigne potildee em praacutetica ldquojovem eu cobria de prudecircncia minhas paixotildees alegres velho disperso as tristes com o desregramentordquo (III 9 p 288)41 Enfim por meio do muacutetuo acordo de suas lsquopartes constitutivasrsquo o homem comum consegue regrar os excessos de uma e de outra 42

E quanto a Soacutecrates Ou melhor e quanto ao Soacutecrates montaigniano Ora ele eacute o homem que se opotildee a uma certa cultura a uma determinada educaccedilatildeo a saber aquela que rompe com esta ordem ldquonaturalrdquo que desfaz a adesatildeo espontacircnea dos homens agraves opiniotildees

40 ldquoVoicy depuis de nouveau que les plus legers mouvements espreignent le pur sang de mes reins Quoy pour cela je ne laisse de me mouvoir comme devant et picquer apres mes chiens dune juvenile ardeur et insolente () Or sens je quelque chose qui crosle Ne vous attendez pas que jaille mamusant agrave recognoistre mon pous et mes urines pour y prendre quelque prevoyance ennuyeuse je seray assez agrave temps agrave sentir le mal sans lalonger par le mal de la peur Qui craint de souffrir il souffre desjagrave de ce quil craintrdquo (III 13 p 1095) 41 ldquoJeune je couvrois mes passions enjoueacutees de prudence vieil je demesle les tristes de deacutebaucherdquo (III 9 p 977) 42 Mais uma vez projetamos intencionalmente sobre o modelo do ruacutestico uma conduta que natildeo eacute explicitamente associada a ele por Montaigne a saber o muacutetuo auxiacutelio entre o corpo e a alma Acreditamos poreacutem que tal projeccedilatildeo eacute perfeitamente conforme agraves ideias do autor na medida em que associa a ordenaccedilatildeo natural entre as ldquopartes constitutivas do eurdquo agrave conduta conforme agrave natureza cujo

modelo Montaigne encontra no ruacutestico

Viver como Soacutecrates 199

comuns e aos sentidos colocando no lugar destes como criteacuterios de conduta os comandos da razatildeo (uma doutrina moral pretensamente fundada numa fiacutesica) O Soacutecrates montaigniano eacute aquele que submete agrave criacutetica o pretenso conhecimento de si (o suposto saber dos filoacutesofos dogmaacuteticos acerca da nossa essecircncia) que exibe nossa ignoracircncia a respeito de noacutes mesmos que reduz enfim as doutrinas acerca da natureza humana ao niacutevel de opiniotildees e restitui agrave experiecircncia (ao exame dos fenocircmenos) o lugar privilegiado de fonte do conhecimento de si

Os filoacutesofos com grande razatildeo remetem-nos agraves regras da Natureza mas elas natildeo tecircm o que fazer com tatildeo sublime conhecimento eles as falseiam e nos apresentam seu rosto pintado com cores que o elevam demais e sofisticam demais [] Quem rememora o excesso de sua coacutelera passada e ateacute onde essa febre o arrastou vecirc a feiura desta paixatildeo melhor do que em Aristoacuteteles e concebe por ela um oacutedio mais justo [] A vida de Ceacutesar natildeo fornece mais exemplo do que a nossa para noacutes tanto imperatriz como popular eacute sempre uma vida agrave qual todos os acidentes humanos concernem Escutemo-la somente noacutes nos dizemos tudo aquilo de que temos principalmente necessidade [] A advertecircncia para cada um se conhecer deve ser de um importante efeito visto que este Deus de ciecircncia e de luz a fez plantar no frontatildeo do seu templo como compreendendo tudo o que ele tinha para nos aconselhar Platatildeo tambeacutem diz que a prudecircncia natildeo eacute outra coisa que a execuccedilatildeo desta prescriccedilatildeo e Soacutecrates prova-o detalhadamente em Xenofonte (III 13 p 435-437)43

43 ldquoLes philosophes avec grand raison nous renvoyent aux regles de Nature mais elles nont que faire de si sublime cognoissance ils les falsifient et nous presentent son visage peint trop haut en couleur et trop sophistiqueacute (hellip) Qui remet en sa memoire lexcez de sa cholere passeacutee et jusques ougrave cette fieacutevre lemporta voit la laideur de cette

200 Eacutetica e filosofia poliacutetica

A partir entatildeo da experiecircncia de si (e natildeo mais

de doutrinas dogmaacuteticas acerca da natureza humana) o velho programa da ordenaccedilatildeo de si pode ser recolocado nos seus devidos termos Isto porque a ausculta de si eacute a experiecircncia de uma condiccedilatildeo mista de uma vivecircncia simultaneamente aniacutemica e corpoacuterea espiritual e carnal

Os prazeres puros da imaginaccedilatildeo assim como os desprazeres dizem alguns satildeo os maiores [] Deles vejo todos os dias exemplos insignes e talvez desejaacuteveis Mas eu de condiccedilatildeo mista grosseiro natildeo posso me apegar tatildeo inteiramente a esse uacutenico objeto [] Aristipo defendia apenas o corpo como se natildeo tiveacutessemos alma Zenatildeo abraccedilava apenas a alma como se natildeo tiveacutessemos corpo Ambos viciosamente (III 13 p 486-487)44

Daiacute o novo programa ordenar-se a si mesmo no

niacutevel da conduta eacute estabelecer o auxiacutelio reciacuteproco entre o corpo e a alma

para que desmembramos em divoacutercio um edifiacutecio tecido com tatildeo estreita e fraternal correspondecircncia Ao

passion mieux que dans Aristote et en conccediloit une haine plus juste (hellip) La vie de Caesar na poinct plus dexemple que la nostre pour nous et emperiegravere et populaire cest tousjours une vie que tous accidents humains regardent Escoutons y seulement nous nous disons tout ce de quoy nous avons principalement besoing (hellip) Ladvertissement agrave chacun de se cognoistre doibt estre dun important effect puisque ce Dieu de science et de lumiere le fit planter au front de son temple comme comprenant tout ce quil avoit agrave nous conseiller Platon dict aussi que prudence nest autre chose que lexecution de cette ordonnance et Socrates le verifie par le menu en Xenophonrdquo (III 13 1073-1075) 44 ldquoLes plaisirs purs de limagination ainsi que les desplaisirs disent aucuns sont les plus grands (hellip) Jen voy tous les jours des exemples insignes et agrave ladventure desirables Mais moy dune condition mixte grossier ne puis mordre si agrave faict agrave ce seul object () Aristippus ne defendoit que le corps comme si nous navions pas dame Zenon nembrassoit que lame comme si nous navions pas de corps Tous deux vicieusementrdquo (III 13 p 1107)

Viver como Soacutecrates 201

contraacuterio renovemo-lo por deveres muacutetuos Que o espiacuterito desperte e vivifique o peso do corpo o corpo detenha a leveza do espiacuterito e a fixe (III 13 p 498)45 Deste novo ldquoprogramardquo formulado por Montaigne

com base nos exemplos de Soacutecrates e do ruacutestico haacute de emergir uma conduta e uma vida ordenadas Agrave ordem ou agrave coerecircncia da conduta e da vida do saacutebio idealizado pelo estoicismo efeito da repeticcedilatildeo da impassibilidade (sempre conveniente sempre adequada) Montaigne opotildee uma nova figura da ordem ou da coerecircncia aquela muito mais humana que eacute efeito da reiteraccedilatildeo do desvio da consciecircncia dos objetos que despertam as paixotildees (desvio sempre conveniente sempre ldquoagrave proposrdquo) Enfim Montaigne opotildee agrave constantia estoica uma conduta que parece inconstante mas que escapa da criacutetica da inconstacircncia na medida em que eacute constituiacuteda por desvios conscientes voluntaacuterios (uma ldquomaneirardquo que natildeo tem nada de passiva ao contraacuterio eacute uma estrateacutegia para escapar da servidatildeo agraves paixotildees)

Soacutecrates natildeo diz Natildeo vos rendais aos atrativos da beleza sustentai vossa posiccedilatildeo diante dela esforccedilai-vos ao contraacuterio Fugi diz ele correi para longe de sua visatildeo e de seu encontro como de um veneno poderoso que se atira e atinge de longe (III 10 p 348)46

Finalmente chega-se a uma conduta

perfeitamente laquoordenadaraquo a uma vida unificada e uniforme totalmente coerente (laquoEle [Soacutecrates] foi

45 ldquoA quoy faire desmembrons nous en divorce un bastiment tissu dune si joincte et fraternelle correspondance Au rebours renouons le par mutuels offices Que lesprit esveille et vivifie la pesanteur du corps le corps arreste la legereteacute de lesprit et la fixerdquo (III 13 p 1114) 46 ldquoSocrates ne dit point Ne vous rendez pas aux attraicts de la beauteacute soustenez la efforcez vous au contraire Fuyez la faict-il courez hors de sa veue et de son rencontre comme dune poison puissante qui seslance et frappe de loingrdquo (III 10 1015-1016)

202 Eacutetica e filosofia poliacutetica

tambeacutem sempre uno e semelhanteraquo - III 12 p 380)47 a vida do homem ordinaacuterio de bem sucessatildeo de desvios Ora natildeo eacute exatamente uma perfeita harmonia que encontramos na imagem acabada da tranquilidade da alma que Montaigne funda sobre este modelo de conduta

Ela [minha alma] mede o quanto deve a Deus por estar em paz com sua consciecircncia e com outras paixotildees intestinas por ter o corpo em sua disposiccedilatildeo natural fruindo ordenada e competentemente as funccedilotildees moles e aduladoras com as quais lhe apraz compensar com sua graccedila as dores com que sua justiccedila por sua vez nos golpeia o quanto lhe vale estar alojada em tal ponto que para onde quer que ela lance o olhar o ceacuteu estaacute calmo ao seu redor nenhum desejo nenhum temor ou duacutevida que lhe perturbe o ar nenhuma dificuldade passada presente futura por cima da qual sua imaginaccedilatildeo natildeo passe sem ofensa (III 13 p 495)48

REFEREcircNCIAS FRIEDRICH Hugo Montaigne Traduit par Robert Rovini Paris Gallimard 1992 (coll ldquoTelrdquo)

LONG Anthony La Filosofia Heleniacutestica - Estoicos Epicuacutereos Esceacutepticos trad P Jordan de Urries Madrid Alianza Editorial 1977

47 laquoIl [Socrate] fut aussi tousjours un et pareilraquo (III 12 p 1037) 48 ldquoElle [mon ame] mesure combien cest quelle doibt agrave Dieu destre en repos de sa conscience et dautres passions intestines davoir le corps en sa disposition naturelle jouyssant ordonneacuteement et competemmant des functions molles et flateuses par lesquelles il luy plait compenser de sa grace les douleurs de quoy sa justice nous bat agrave son tour combien luy vaut destre logeacutee en tel point que ougrave quelle jette sa veue le ciel est calme autour delle nul desir nulle crainte ou doubte qui luy trouble lair aucune difficulteacute passeacutee presente future par dessus laquelle son imagination ne passe sans offencerdquo (III 13 p 1112)

Viver como Soacutecrates 203

MONTAIGNE Michel de Les Essais Eacutedition de Pierre Villey reeacutediteacutee par V L Saulnier Col Quadrige Paris PUF 1999

_____ Os Ensaios (traduccedilatildeo de Rosemary Costek) Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 3 vols

PLATAtildeO Gorgias Texte eacutetabli et traduit par Alfred Croiset avec la collaboration de Louis Bodin Collection des universiteacutes de France Paris Les Belles Lettres 2003

SENECA De constantia sapientis in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ De tranquilitate animi in Entretiens et Cartas a Luciacutelio (texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne) Paris Robert Laffont 1993

_____ Lettres a Lucilius Texte eacutetabli par F Preacutechac et traduit par H Noblot Eacutedition revue e corrigeacute par Paul Veyne Paris Robert Laffont 1993

204 Eacutetica e filosofia poliacutetica

= VIII =

NIETZSCHE E O CETICISMO O PROBLEMA DA VERDADE ENTRE NEGACcedilAtildeO E NECESSIDADE

Stefano Busellato

1 Desde o seu primeiriacutessimo escrito juvenil de

caraacuteter filosoacutefico Fatum und Geschichte de 1862 na perspectiva da precoce negaccedilatildeo do ldquointeiro cristianismordquo Nietzsche refletindo sobre si mesmo escreve ldquoEu procurei negar tudo ai de mim destruir eacute faacutecil mas construirrdquo

Tal frase ressalta-se como o eneacutesimo exemplo da extraordinaacuteria clarividecircncia que caracteriza Nietzsche jaacute que tal frase pode ser considerada uma suacutemula do inteiro quadro do seu pensamento

Todos aqueles que passaram alguns anos estudando as paacuteginas nietzschianas com certeza encontraram e tiveram que resolver uma peculiaridade que eacute tambeacutem um dos principais problemas exegeacuteticos diante do qual o inteacuterprete precisa elaborar uma resposta quer dizer uma evidente desproporccedilatildeo entre a pars destruens e a pars construens Se de fato os objetivos polecircmicos os alvos criacuteticos as teorias que Nietzsche confuta e rejeita satildeo extremamente claros e precisos eacute pelo contraacuterio muito mais difiacutecil individuar com tanta exatidatildeo as propostas positivas e as alternativas que ele quer propor

Graduado em Filosofia pela Universitagrave di Pisa (2001) doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave Degli Studi di Macerata (2009) poacutes-doutorado em Histoacuteria da Filosofia pela Universitagrave di Siena (2011-2013) pela USP (2014-2016) e pela UNIOESTE (2016) Publicou entre outros os livros Nietzsche e Lo Scetticismo (2012) e Schopenhauer lettore di Spinoza (2015)

206 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Esse desniacutevel entre o contradizer e o propor

adquire em Nietzsche uma forma particular a da autocontradiccedilatildeo ndash e em uma medida tatildeo forte ao ponto de superar a normalidade das contradiccedilotildees presentes em outros pensadores (e eacute isso que leva a uma espeacutecie de licenccedila exegeacutetica na leitura do pensamento de Nietzsche que recebeu as mais variadas e contraacuterias interpretaccedilotildees como nenhum outro pensador na histoacuteria da filosofia)

Diante dessa peculiaridade da obra nietzschiana existem duas principais estrateacutegias para tentar explicaacute-la 1) negar que Nietzsche eacute um filoacutesofo stricto sensu e 2) ver exatamente na potecircncia da sua parte negativa a verdadeira (e praticamente uacutenica) essecircncia do pensamento nietzschiano De acordo com tal perspectiva o seu precioso valor emancipatoacuterio consistiria na capacidade de abater as verdades consideradas como tais e isso constituiria jaacute um resultado digno de reconhecimento e gratidatildeo da nossa parte Exigir que ele nos mostre tambeacutem uma capacidade construtiva seria dessa forma uma demonstraccedilatildeo de insatisfaccedilatildeo com o seu pensamento que seria injusta

1) Agrave primeira dessas duas opccedilotildees pertencem todos os leitores que veem em Nietzsche mais um artista do que um filoacutesofo estrito E natildeo devemos esquecer que a recepccedilatildeo criacutetica de Nietzsche antes da I Guerra Mundial assim como uma parte importante daquela que chega ateacute o limiar do segundo conflito mundial nasceu e cresceu mais graccedilas a artistas do que agrave filosofia institucional (por exemplo Mahler R Strauss DrsquoAnnunzio Gorge Hesse Thomas Mann Hofmannsthal Rilke Musil Benn Zweig etc) Mas tambeacutem pertencem a essa linha interpretativa aqueles que por mais que vejam Nietzsche como um filoacutesofo e natildeo tanto como um artista reconduzem de qualquer forma a razatildeo da sua escassez propositiva e da sua natureza contraditoacuteria a uma carecircncia teacutecnico-filosoacutefica

Nietzsche e o ceticismo 207

Entre alguns desses inteacuterpretes podemos citar Ferdinand Toumlnnies que define o pensamento de Nietzsche uma Paradoxsophie ldquoum voacutertice de pensamentos de exclamaccedilotildees e declamaccedilotildees de acessos de ira e afirmaccedilotildees contraditoacuterias em meio a muitos relacircmpagos que iluminam e ofuscamrdquo1

[] vocecircs podem sentir prazer lendo os escritos de Nietzsche [] podem aprender algumas coisas neles mas apenas se vocecircs decidiram aprender com outros as coisas mais fundamentais sobre os mesmos assuntos2

Ou ateacute mesmo inteacuterpretes de peso como Karl

Jaspers segundo o qual as contradiccedilotildees de Nietzsche nascem de uma ldquoinadequada preparaccedilatildeo filosoacutefica no manejo dos grandes pensadoresrdquo de uma ldquofalta de formaccedilatildeo profissionalrdquo que constitui tambeacutem a sua extraordinaacuteria capacidade de se relacionar ldquocom um imenso impulsordquo com a verdade mas eacute tambeacutem o que explicaria a frequente recaiacuteda em antinomias das quais por puro amadorismo ldquoele natildeo tem consciecircnciardquo3

2) A segunda opccedilatildeo exegeacutetica aquela que vecirc no aspecto negativo na excepcional forccedila do seu radicalismo criacutetico a verdadeira essecircncia da filosofia nietzschiana que explicaria tanto a diferenccedila entre a pars destruens e a construens quanto a sua autocontradiccedilatildeo eacute aquela que hoje parece prevalecer e que conta entre seus seguidores com inteacuterpretes do mais alto niacutevel Ainda que com diferenccedilas oacutebvias eacute possiacutevel traccedilar uma linha

1 F Toumlnnies Der Nietzsches-Kults Eine Kritik [1897] Akademie-Verlag Berlin 1990 pp 99-104 trad it Il culto di Nietzsche Una critica E Donaggio [Org] Editori Riuniti Roma 1998 p 131 2 Ivi p 41 3 K Jaspers Nietzsche Einfuumlhrung in das Verstaumlndnis seines Philosophierens de Gruyter Berlin-New York 1974 trad it L Rustichelli [Org] Nietzsche Introduzione alla comprensione del suo filosofare Mursia Milano 1996 pp 376-377

208 Eacutetica e filosofia poliacutetica

de continuidade entre o ldquoprinciacutepio da possibilidaderdquo de Musil a ldquoSelbstuumlberwindungrdquo de Mann ldquoo infinito transformar-serdquo de Bertram E tambeacutem na Franccedila encontramos por exemplo Bataille que fala de ldquouma exigecircncia sem referecircnciasrdquo4 que daria vida ao filosofar nietzschiano e isso o leva a observar como

[] as doutrinas de Nietzsche possuem uma caracteriacutestica estranha isto eacute que natildeo eacute possiacutevel segui-las Elas nos potildeem de frente a iluminaccedilotildees imprecisas que geralmente produzem cegueira nenhuma estrada conduz agrave meta indicada5

Nietzsche criticaria ldquoem nome de um valor moacutevel

do qual natildeo pocircde evidentemente capturar a origem e a finalidaderdquo6 Ou entatildeo Deleuze segundo o qual

Nietzsche natildeo tenta codificar [] Escrevendo e pensando da proacutepria forma Nietzsche desenvolve uma obra de decodificaccedilatildeo [] de decodificaccedilatildeo uacutenica [] [que] quer estragar todos os coacutedigos7

E resume a filosofia nietzschiana com a foacutermula

marcadamente francesa ldquojamais rien de connu mais une grande destruction de reconnu pour une creacuteation drsquoinconnurdquo8 Um passo adiante e chegamos ao ldquomestre da grande duacutevidardquo de Ricoeur e na Itaacutelia a transformar Nietzsche em um dos fundadores do ldquopensamento fracordquo um pensamento que critica as verdades fortes estabelecidas e que exatamente por isso rejeita-se

4 G Bataille Sur Nietzsche Gallimard Paris 1973 trad it A Zanzotto Su Nietzsche SE Milano 1994 p 16p 69 5 Idem p 113 6 Idem p 125 7 G Deleuze Le penseacute nomade trad it in Id Nietzsche e la filosofia a cura di F Polidori Einaudi Torino 2002 p 312 8 Id Sur Nietzsche et lrsquoimage de la penseacutee ora in Id Lrsquoicircle deacuteserte et autres textes a cura di D Lapoujade Eacuted de Minuit Paris 2002 p

189

Nietzsche e o ceticismo 209

voluntariamente a oferecer alternativas agravequilo que ele mesmo rejeitou

Pessoalmente eu natildeo acredito que esses dois modelos interpretativos sejam capazes de compreender completamente a complexidade que a filosofia de Nietzsche entreteacutem com o elemento da verdade e da criacutetica agrave verdade A primeira ao resolver o problema mencionado acima escolhendo ver em Nietzsche um artista e natildeo um filoacutesofo ou um filoacutesofo ldquopela metaderdquo eacute negada por uma evidecircncia histoacuterica uma vez que o pensamento de Nietzsche entrou nolens volens com total reconhecimento na histoacuteria da filosofia Mas tambeacutem a segunda abordagem exegeacutetica vendo quase exaustivamente a essecircncia do pensamento nietzschiano na criacutetica agrave verdade e na sua pars destruens colide com a intenccedilatildeo explicitamente declarada por Nietzsche com grande insistecircncia de uma exigecircncia fortemente propositiva que o anima e o guia Nietzsche repete assim que concede grande espaccedilo agrave negaccedilatildeo exclusivamente enquanto ela eacute o passo propedecircutico a novas construccedilotildees (pensemos por exemplo no Versuch einer Umwertung aller Werte) e que ele natildeo quer se contentar com o lado niilista e criacutetico que eacute julgado pelo contraacuterio como sintoma de cansaccedilo e de deacutecadence Dito isso poreacutem eacute sempre verdade que o fulcro da prevalecircncia do momento de negaccedilatildeo agraves custas do momento de afirmaccedilatildeo assim como a forccedila com a qual Nietzsche realiza a proacutepria criacutetica radical agrave verdade que frequentemente o leva a criticar ateacute mesmo as proacuteprias ldquoverdadesrdquo continua sendo um problema exegeacutetico de importacircncia primordial

2 Um caminho no qual eacute possiacutevel encontrar elementos uacuteteis agrave questatildeo pode ser por isso enfrentar tal noacute conceitual realizando uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo que Nietzsche teve com a filosofia que mais do que nenhuma outra abraccedilou a contraposiccedilatildeo a toda

210 Eacutetica e filosofia poliacutetica

forma de dogmatismo e ao conceito de verdade ou seja o ceticismo

A relaccedilatildeo entre o pensamento nietzschiano e o ceticismo o que Nietzsche sabia da filosofia ceacutetica e como ele a considerou e como a utilizou Essas satildeo trecircs questotildees que os especialistas claramente deixaram de lado mas eacute somente atraveacutes de uma pesquisa especificamente direcionada nesse sentido que podem emergir dados de grande relevacircncia interpretativa que de outra forma permaneceriam subterracircneos

Se considerarmos a questatildeo apenas a niacutevel de Quellenforschung eacute possiacutevel descobrir que Nietzsche tinha um conhecimento extremamente refinado e detalhado do ceticismo a tal ponto que eacute possiacutevel afirmar que nenhum outro filoacutesofo do seu calibre teve uma competecircncia tatildeo especializada sobre o assunto como a sua Tal caracteriacutestica lhe deriva do seu iniacutecio como filoacutelogo claacutessico e em particular dos seus estudos sobre Dioacutegenes Laeacutercio mas natildeo soacute desses estudos uma vez que a bagagem cultural de Nietzsche sobre o ceticismo antigo vai muito aleacutem daquilo que concerne a simples obrigaccedilatildeo acadecircmica

Eacute possiacutevel de fato demonstrar com exatidatildeo que ele teve um conhecimento aprofundado do inteiro panorama das principais figuras da histoacuteria do ceticismo grego (Pirro de Eacutelis Brisatildeo de Heracleacuteia Tiacutemon de Fliunte principal aluno de Pirro que ele demonstra conhecer bem Hecateu de Mileto Aristipo de Cirene Laacutecides de Cirene Arcesilau Fiacuteon de Alexandria Antiacuteoco Carneacuteades Enesidemo) e tambeacutem que ele estudou e utilizou os mais importantes textos antigos sobre o pensamento ceacutetico aleacutem de Dioacutegenes Laeacutercio e antes mesmo de se confrontar com a sua obra Nietzsche se ocupou do leacutexico bizantino Suida teve uma evidente familiaridade com os escritos de Sexto Empiacuterico citados e usados em muitas obras encontramos competecircncias especiacuteficas e diversas citaccedilotildees de fontes como Aacuteulio

Nietzsche e o ceticismo 211

Geacutelio Euseacutebio de Cesaacuterea ou Favorino de Arelate ele conheceu muito bem a Academica de Ciacutecero Em outras palavras Nietzsche possuiacutea uma preparaccedilatildeo profunda tanto no acircmbito historiograacutefico quanto teoreacutetico do fenocircmeno do ceticismo grego

O uacuteltimo texto citado enfim os Academica de Ciacutecero estaacute particularmente envolvido na questatildeo Eacute um dos documentos mais preciosos que chegaram ateacute noacutes sobre a histoacuteria do ceticismo antigo jaacute que o contexto da uacuteltima grande crise no centro da Academia platocircnica depois do embate entre Filon de Larissa e Antiacuteoco de Ascalatildeo sobre a natureza dogmaacutetica ou antidogmaacutetica do conceito de verdade na tradiccedilatildeo acadecircmica ndash que deu margem a uma longa anaacutelise sobre o inteiro passado do ceticismo antigo O estudo dos Academica mostra um interesse especial de Nietzsche pelo assunto jaacute que quando ele assumiu a caacutetedra de Basileia ele ministrou dois semestres consecutivos sobre a obra ndash as aulas do veratildeo de 1870 e do inverno de 1871 e 1872 E natildeo por acaso exatamente no Natal de 1870 Cosima lhe deu de presente os Essais de Montaigne que se tornaram outra das suas principais fontes sobre o ceticismo enriquecendo dessa forma tambeacutem no vieacutes da eacutepoca moderna o seu conhecimento sobre a filosofia ceacutetica Tudo isso deixa entrever como ateacute mesmo na casa de Wagner deveria ser conhecido o interesse especiacutefico de Nietzsche pelo tema

Portanto o primeiro dado que encontramos eacute que todas as vezes em que Nietzsche cita o ceticismo precisamos considerar que ele natildeo o usa como instrumento retoacuterico ou com um sentido geneacuterico mas sim porque deteacutem um conhecimento real e profundo sobre a mateacuteria E em particular eacute necessaacuterio considerar como durante a crucial passagem do periacuteodo filoloacutegico agravequele do verdadeiro iniacutecio da sua filosofia Nietzsche carregue consigo essa competecircncia particular no acircmbito do pensamento ceacutetico

212 Eacutetica e filosofia poliacutetica

3 Natildeo eacute surpreendente perceber portanto que o

primeiro periacuteodo da sua filosofia seja um dos arcos temporais da sua obra em que o elemento do ceticismo aparece com maior evidecircncia E isso natildeo apenas no que concerne agraves citaccedilotildees ou agrave utilizaccedilatildeo das proacuteprias leituras filoloacutegicas Em toda a primeira parte da sua produccedilatildeo eacute evidente ndash do ponto de vista gnosioloacutegico ndash uma atmosfera de grande pessimismo que encobre os principais personagens da filosofia que ele frequenta por exemplo o Demoacutecrito anti-teleoloacutegico no qual ldquoencontram-se os primoacuterdios do Pirronismo [] [e que] deriva da sua tese sobre o conhecimentordquo9 e que pode ser resumida na interpretaccedilatildeo ceacutetica de origem ciceroniana ldquoo seu princiacutepio fundamental continua sendo ldquoa coisa em si eacute incognosciacutevelrdquo10 ou entatildeo o Heraacuteclito lido sobretudo em chave anti-ontoloacutegica e relativista o filoacutesofo que nega a estabilidade do ser a favor de uma transformaccedilatildeo sempre em ato e que por isso natildeo pode ser reclusa em categorias loacutegicas e epistecircmicas Ou ainda Kant que indiretamente permanece sendo uma fonte decisiva para a teoria do conhecimento da primeira fase de Nietzsche Um Kant lido atraveacutes das interpretaccedilotildees contrastantes de Lange de um lado e de Schopenhauer do outro que acaba se tornando nas matildeos de Nietzsche o siacutembolo do ldquoconhecimento traacutegicordquo que representa a tentativa natildeo realizada de superar o ceticismo de Hume uma falha que inevitavelmente arrasta os limites do conhecimento contra o seu desejo ao grau mais elevado eacute o Kant lido em consonacircncia com o ldquosuspiro de Kleist sobre a incognoscibilidade finalrdquo como emerge em uma carta muito estimada por Nietzsche em que Kleist resume ldquoo efeito Kantrdquo ldquonoacutes natildeo podemos

9 OFN I 2 p 200 Todas as referecircncias das obras de Nietzsche satildeo de Opere Friedrich Nietzsche (OFN) Colli-Montinari (org) Milano Adelphi 1964ss 10 Idem p 185

Nietzsche e o ceticismo 213

decidir se o que chamamos verdade eacute realmente a verdade ou se apenas parece secirc-lordquo11

Mas esse pessimismo gnosioloacutegico natildeo nos autoriza poreacutem a simplificar a questatildeo convertendo o ceticismo antigo conhecido atraveacutes dos estudos filoloacutegicos como uma simples fonte no radicalismo criacutetico que a filosofia de Nietzsche em seguida iraacute desenvolver e na qual em teoria iria se exaurir Ao contraacuterio observando o papel que o ceticismo teve nessa primeira fase eacute possiacutevel mostrar como as coisas se colocam de outra forma Nietzsche na realidade permitiu que esse pessimismo gnosioloacutegico crescesse em todas as direccedilotildees porque examinando bem ele possuiu (ou acreditou possuir) um fator positivo que poderia ser o seu antiacutedoto a filosofia de Schopenhauer

E tambeacutem aqui natildeo a teoria do conhecimento schopenhauriano ou a metafiacutesica centrada no Wille este tambeacutem dissolvido desde o iniacutecio em uma visatildeo ceacutetica de ldquodesconfianccedila em relaccedilatildeo a qualquer sistema desde o princiacutepiordquo12 que julga a Vontade uma ldquopalavra de cunho grosseirordquo13 uma tentativa de superar o impasse post-kantiano mas ldquoa tentativa falhourdquo14 ldquoSchopenhauer queria encontrar o x de uma equaccedilatildeo e pelo seu caacutelculo resulta que a questatildeo eacute igual a x ou seja que ele natildeo o encontrourdquo15

O Schopenhauer afirmativo que o primeiro Nietzsche segura com forccedila nas matildeos como uma proacutepria certeza eacute na verdade aquele do III libro da Welt ldquoo mundo da arterdquo isto eacute o Schopenhauer wagneriano Esse Schopenhauer (em muitos aspectos anti-schopenhauriano) nos permite compreender porque apesar do proacuteprio pessimismo gnosio-epistecircmico

11 H von Kleist a Wilhemine e Ulrike 22-23 marccedilo de 1801 12 FP [30] 10 veratildeo de 1878 OFN IV 3II p 300 13 OFN I 2 pp 220-221 14 Idem p 220 15 Idem p 228

214 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche possa afirmar ldquoavaliar o que pode ser Schopenhauer para noacutes depois de Kant o guia [] que conduziu fora da caverna do abatimento ceacuteticordquo16 Ou o significado de anotaccedilotildees como ldquoA posiccedilatildeo transformada da filosofia depois de Kant A impossibilidade da metafiacutesica Auto-eviraccedilatildeo Submissatildeo traacutegica o fim da filosofia Apenas a arte pode nos salvarrdquo17 ldquoNatildeo haacute sequer uma causalidade da qual noacutes conheccedilamos a verdadeira essecircncia Ceticismo absoluto a necessidade da arte e da ilusatildeordquo18

No renascimento da trageacutedia a partir do drama musical wagneriano Nietzsche viu a concretizaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo em que verdade e beleza atingem o uacutenico ponto de equiliacutebrio possiacutevel uma verdade que uma vez autocompreendida como impossibilidade epistecircmica transfigura-se em esteacutetica isto eacute na necessidade da ilusatildeo ou mais precisamente segundo a foacutermula de Nietzsche na necessidade da ldquobela ilusatildeordquo

Por isso aquilo que inicialmente podia parecer a aceitaccedilatildeo teoreacutetica dos resultados corrosivos do ceticismo enquanto resultados conclusivos revela-se como sendo na verdade apenas um passo funcional para fundar com maior solidez um terreno absolutamente afirmativo como aquele que oferecia ao Nietzsche da eacutepoca a esteacutetica wagneriana que tem como texto culminante a Geburt ldquoPrecisamos superar o ceticismo precisamos esquececirc-lo A nossa salvaccedilatildeo natildeo estaacute no conhecer mas no criarrdquo19

Apenas quando comeccedilou a definhar a convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo wagneriana depois do fim da convicccedilatildeo na validade da soluccedilatildeo de Schopenhauer o radicalismo criacutetico de Nietzsche se viu sem margens sem

16 SE sect 3 17 FP 19 [319] veratildeo de 1872-1873 OFN III 3II p 102 18 FP 19 [121] veratildeo de 1872-1873 idem p 44 19 FP 19 [125] veratildeo de 1872-1873 idem p 45

Nietzsche e o ceticismo 215

direccedilatildeo nem objetivo Em torno de 1873 durante a tempestuosa gestaccedilatildeo de Wagner a Bayreuth antes mesmo da abertura do Festival Nietzsche atingiu dessa forma o ponto maacuteximo do ceticismo que podemos encontrar nos seus escritos O documento que nos resta como eloquente testemunho desse periacuteodo eacute o breve texto Uumlber Wahrheit und Luumlge im auszligermoralischen Sinne

Eacute notoacuterio que nesse escrito encontramos a definiccedilatildeo da verdade como metaacutefora da qual perdeu-se a memoacuteria da sua natureza metafoacuterica a verdade torna-se assim mera ilusatildeo natildeo mais bela ilusatildeo

E atraveacutes do instrumento da metaacutefora o conceito de verdade eacute rejeitado em todos os pontos de vista que o constituem loacutegico antropoloacutegico e histoacuterico ldquoA verdade eacute incognosciacutevel Tudo aquilo que eacute incognosciacutevel eacute uma ilusatildeordquo20

Mas eacute preciso prestar atenccedilatildeo porque tal coincidecircncia entre o ceticismo e o resultado filosoacutefico do percurso de Nietzsche natildeo eacute vivido por ele com o regozijo que esperariacuteamos de algueacutem que tem como objetivo teoacuterico destruir as certezas porque ao contraacuterio ele declara em uma anotaccedilatildeo agrave eacutepoca ldquoo filoacutesofo traacutegico [] natildeo eacute ceacutetico [] o ceticismo de fato natildeo pode ser um fim em si mesmordquo21 E podemos encontrar um testemunho de como um tal resultado fosse contraacuterio agraves intenccedilotildees de Nietzsche em um fato geralmente negligenciado ndash quer dizer que ele decidiu natildeo publicar esse escrito

Eu estava em relaccedilatildeo agrave minha pessoa jaacute no caminho do ceticismo e da dissoluccedilatildeo moralista quer dizer empenhado tanto na criacutetica quanto no aprofundamento de todo pessimismo preacute-existente ndash e jaacute natildeo acreditava ldquomais em nadardquo como diz o povo [] e justo naquele periacuteodo nasceu um pequeno ensaio em seguida

20 FP 29 [20] veratildeo-outono de1873 idem p 233 21 FP 19 [35] veratildeo de 1872 ndash comeccedilo de 73 ivi p 13

216 Eacutetica e filosofia poliacutetica

mantido em segredo ldquoSobre a verdade e a mentira em sentido extra-moralrdquo22

Da anaacutelise da primeira fase de Nietzsche emerge

portanto um resultado importante ele deu grande espaccedilo aos instrumentos criacuteticos do ceticismo ateacute o momento em que teve em matildeos uma alternativa a ele e exatamente para fundamentar melhor essa alternativa Quando poreacutem ela falhou e ele se encontrou unicamente no ceticismo acabou por recusaacute-lo como conclusatildeo e comeccedilou a trabalhar para desenhar um novo plano afirmativo em relaccedilatildeo agravequele schopenhauriano e wagneriano julgado como natildeo mais sustentaacutevel Eacute o programa que comeccedila com Humano demasiado humano e que iraacute mantecirc-lo ocupado ateacute a metade dos anos oitenta

4 No periacuteodo central o assim chamado periacuteodo iluminista os objetivos polecircmicos tornam-se a cada passo sempre mais precisos e direcionados dois dentre todos satildeo a metafiacutesica e a moral Nesse arco cronoloacutegico a presenccedila do ceticismo perde visibilidade faz-se mais subterracircnea e pode ser encontrada com maior facilidade nos fragmentos poacutestumos do que nas obras impressas Os exoacuterdios satildeo marcados por uma certa cautela inicial que deriva da desilusatildeo das esperanccedilas nutridas no seu primeiro percurso filosoacutefico ldquonatildeo queremos construir prematuramente natildeo sabemos nem sequer se poderemos construir algo algum dia e se a melhor alternativa natildeo possa ser talvez natildeo construirrdquo23 Mas o que permanece constante eacute a consideraccedilatildeo do ceticismo unicamente como instrumento teoreacutetico de demoliccedilatildeo finalizado a uma nova construccedilatildeo

22 FP 6 [4] veratildeo de 1886 ndash primavera de 1887 OFN VIII 1 p 220 A escolha de natildeo publicar Sobre a verdade e a mentira tambeacutem eacute lembrada em uma anotaccedilatildeo de 1884 FP 26 [372] veratildeo-outono de 1884 OFN VII 2 p 226 23 FP 5 [30] primavera-veratildeo de 1875 OFN IV1 p 117

Nietzsche e o ceticismo 217

O ceticismo eacute ainda apreciado pela capacidade de limpar o caminho das ldquolsquoverdades absolutasrsquo [] instrumento de nivelamentordquo Isso eacute particularmente niacutetido por exemplo no que concerne agrave moral Em relaccedilatildeo a ela o ceticismo ainda eacute saudado como liberador ldquoA eacutepoca do grande ceticismo chegou Natildeo haacute nada de lsquomoral em si mesmorsquordquo24 Ou entatildeo no tatildeo celebrado espiacuterito cientifico ao qual Nietzsche se aproximaria desde Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia obra que tambeacutem compartilha a utilizaccedilatildeo programaacutetica e natildeo autocircnoma do ceticismo Daqui a necessidade de ldquoevocar o espiacuterito da ciecircncia que torna em geral muito mais frios e ceacuteticos e em particular modo resfria a ardente feacute em verdades uacuteltimas e definitivasrdquo25

Natildeo prestar atenccedilatildeo no nexo que Nietzsche instituiu entre o ceticismo no que concerne agraves verdades e uma permanente necessidade construtiva a primeira subordinada agrave segunda reduzir Nietzsche transformando-o exclusivamente no criacutetico radical ao qual importa exclusivamente a rejeiccedilatildeo natildeo nos permite perceber o nascimento de uma criacutetica ao ceticismo que nos anos sucessivos se revelaraacute como decisiva o ceticismo entendido como fruto da exaustatildeo niilista referindo-se ao qual Nietzsche fala ateacute mesmo de ldquooacutedio [contra] qualquer forma de fraqueza e de ceticismordquo26 e tampouco nos permite reconhecer a correta relevacircncia das poucas mas claras e inequiacutevocas indicaccedilotildees que ele deixou nas obras publicadas

Eacute significativa a conclusatildeo do diaacutelogo do aforisma 477 de Aurora intitulado Von der Skepsis erloumlst ldquo ndash B Vocecirc mesmo deixou de ser ceacutetico Vocecirc de fato nega ndash A E assim eu aprendi novamente a dizer simrdquo27 Ou entatildeo o aforisma 51 de A Gaia ciecircncia ldquoWahrheitssinnrdquo

24 FP 7 [231] final de 1880 OFN V 1 p 563 25 MA I sect 244 26 Nietzsche a Heinrich Romundt 15 de abril de 1876 E III p 141 27 M sect 477

218 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquoeu louvo todo ceticismo ao qual eu posso dizer lsquoVamos tentarrsquo E natildeo quero saber mais nada de todas as coisas e de todos os problemas que natildeo permitem seu experimentordquo28 No material poacutestumo da eacutepoca tal subordinaccedilatildeo do ceticismo agrave necessidade de uma pars construens ocupa numerosas anotaccedilotildees

Eu natildeo preciso acreditar em nada As coisas satildeo incognosciacuteveis [] O desespero eliminado a partir do ceticismo Eu conquistei o direito de criar29

Que se quebre tudo aquilo que pode se quebrar pelas nossas verdades Existem ainda muitos mundos que devem ser construiacutedos30

Admitido que algueacutem tenha uma forte vontade proacutepria uma filosofia ceacutetica eacute a melhor alternativa para colocar em ato a sua vontade da melhor forma possiacutevel31

Aleacutem disso apenas se seguirmos o efetivo papel

do ceticismo no periacuteodo central podemos entatildeo compreender o que acontece no uacuteltimo periacuteodo da obra nietzschiana em que o elemento do ceticismo volta a ocupar novamente uma posiccedilatildeo central exatamente como nos primeiros anos Um retorno que agrave primeira vista poderia parecer surpreendente De Humano demasiado humano ateacute A gaia ciecircncia assistimos de fato a um crescendo de certeza de assertividade que atinge o seu aacutepice com o Zaratustra O proacuteprio Zaratustra eacute o anunciador das duas grandes afirmaccedilotildees do eterno retorno e do Uumlbermensch

Mas inesperadamente em uma paacutegina do Anti-Cristo encontramos a seguinte frase

28 FW sect 51 29 FP 6 [2] inverno de 1882-83 OFN VII 1I p 220 30 FP 11 [16] junho-julho de 1883 OFN VII 1II p 39 31 FP 15 [50] veratildeo-outono de 1883 VII 1II p 153

Nietzsche e o ceticismo 219

Natildeo nos deixemos induzir ao erro os grandes espiacuteritos satildeo ceacuteticos Zaratustra eacute um ceacutetico Um espiacuterito que almeja algo de grandioso e que quer tambeacutem os meios para obtecirc-lo eacute necessariamente um ceacutetico32

Terminado o Zaratustra parecia ter chegado o ldquoperiacuteodo da minha grande colheitardquo isto eacute noacutes esperariacuteamos um resumo dos resultados alcanccedilados e que Nietzsche pudesse continuar sua trajetoacuteria escrevendo uma accedilatildeo de reforccedilo e de aprofundamento do que conquistara mas ao contraacuterio assistimos a um retorno a temas e a problemas do passado muitos dos quais satildeo inerentes a Humano demasiado humano e ateacute mesmo a O nascimento da trageacutedia O ceticismo pertence a esses temas que se reapresentam sob as faacutecies que pareciam ter sido deixadas para traacutes

5 Nesse desdobramento dois elementos satildeo decisivos em geral o peso de uma circunstacircncia que a criacutetica ainda natildeo reconheceu como fundamental no percurso nietzschiano Nietzsche devido aos contrastes com seu editor Schmeitzner foi obrigado a retomar todos os escritos precedentes fato que o levou entre o veratildeo de 1885 ao outono de 1886 a escrever novos prefaacutecios para o primeiro e para o segundo volume de Humano demasiado humano para Aurora e A Gaia ciecircncia acrescentando a essa uacuteltima uma quinta parte e a escrever o Tentativo de auto-criacutetica para O nascimento da trageacutedia

No que concerne por sua vez ao especiacutefico retorno em primeiro plano do elemento ceacutetico acrescenta-se a isso o papel exercido por uma fonte precisa o estudo da obra Les sceptiques grecs de Victor Brochard (1887) que Nietzsche leu poucos meses depois da sua publicaccedilatildeo (ele comenta o fato em Ecce Homo33) estimulado inicialmente pelo fato de que Brochard citava os seus escritos da juventude Dessa leitura possuiacutemos

32 AC sect 54 33 EH ldquoPorque sou tatildeo esclarecidordquo sect 3

220 Eacutetica e filosofia poliacutetica

muitas anotaccedilotildees que se concentram de forma particular na figura do pai do ceticismo antigo Pirro de Eacutelis

Nesta sede natildeo podemos realizar uma anaacutelise pontual dessas anotaccedilotildees mas para exemplificar a sua relevacircncia note-se a constante ligaccedilatildeo que Nietzsche institui entre o fenocircmeno de Pirro e dois filosofemas absolutamente centrais na uacuteltima fase da sua produccedilatildeo o conceito de deacutecadence e sobretudo o de niilismo Para Nietzsche o ceticismo antigo foi o resultado de uma especiacutefica eacutepoca de deacutecadence que subseguiu agrave morte de Alexandre em que a verdade se viu desmembrada nas disputas entre as filosofias helecircnicas ldquoA filosofia antiga de Soacutecrates em diante tem as estigmas da deacutecadence moralismo e felicidade Veacutertice Pirrordquo34

Pirro e o ceticismo fazem parte portanto da decadecircncia mas ao mesmo tempo satildeo tambeacutem exceccedilotildees dela frutos da deacutecadence mas tambeacutem oposiccedilatildeo a ela

O saacutebio cansaccedilo Pirro [] Um budista para a Greacutecia que cresceu no tumulto das escolas ele chegou tarde cansado protesto do cansado contra o zelo dos dialeacuteticos o natildeo acreditar de quem estaacute cansado na importacircncia das coisas35

Os verdadeiros filoacutesofos gregos satildeo aqueles que vecircm antes de Soacutecrates com Soacutecrates algo muda [] Em seguida eu vejo uma uacutenica figura original um retardataacuterio mas necessariamente o uacuteltimo o niilista Pirro ele aguccedilou seu instinto contra tudo aquilo que estava em voga os socraacuteticos Platatildeo36

A insistecircncia com a qual Nietzsche diz que Pirro eacute

um niilista nos permite formular a seguinte hipoacutetese que possui por sua vez algumas consequecircncias isto eacute que o

34 FP 14 [87] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 55 35 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 36 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

Nietzsche e o ceticismo 221

ceticismo pode ser uma fonte peculiar da conceitualizaccedilatildeo nietzschiana do niilismo Sabemos que esse termo comeccedila a ser utilizado com insistecircncia a partir de 1887 e ainda mais no decorrer de 1888 contemporaneamente isto eacute ao retorno em primeiro plano do ceticismo Aleacutem disso se o niilismo entrou no vocabulaacuterio nietzschiano tardiamente e principalmente graccedilas a Bourget vimos tambeacutem que o ceticismo pelo contraacuterio pertence agrave bagagem filosoacutefica de Nietzsche desde os tempos dos seus estudos de filologia

Mas satildeo tambeacutem caracterizaccedilotildees semelhantes que sustentam essa hipoacutetese como ldquoO ceticismo eacute uma consequecircncia da deacutecadence [] O niilismo natildeo eacute a causa mas apenas a consequecircncia loacutegica da deacutecadencerdquo37 como o ceticismo tambeacutem o ldquoperfeito niilismo eacute a consequecircncia necessaacuteria dos ideais ateacute agora cultivadosrdquo38 E ainda outro dado ainda mais importante para a presente anaacutelise tanto o ceticismo quanto o niilismo satildeo suscetiacuteveis contemporaneamente de avaliaccedilotildees especularmente opostas O niilismo pode ser o sinal de fato tanto de um exaurimento existencial como tambeacutem pelo contraacuterio pode ser sinal de forccedila e de sauacutede sinal isto eacute da capacidade conquistada de renunciar aos tradicionais dispositivos garantidores de sentido No primeiro caso Nietzsche fala de ldquoniilismo passivordquo dos ldquofracosrdquo ou ldquoincompletosrdquo no segundo caso ele fala de niilismo ldquoda completuderdquo ou ldquodos fortesrdquo

Sob a mesma duacuteplice perspectiva ele vecirc o ceticismo Existe um ceticismo do ldquocansaccedilordquo do ldquoexaurimentordquo e um ceticismo que nasce ao contraacuterio da ldquoforccedilardquo um

ceticismo viril [] uma espeacutecie diferente e mais vigorosa de ceticismo [] esse ceticismo despreza e natildeo menos por isso atrai a si mesmo escava e toma

37 FP 14 [86] primavera de 1888 idem 3 pp 54-55 38 FP 10 [42] outono de 1887 OFN VIII 2 p 125

222 Eacutetica e filosofia poliacutetica

posse natildeo acredita em nada mas natildeo se perde nisso oferece ao espiacuterito uma liberdade perigosa39

Mais uma vez o que marca a diferenccedila entre os

dois tipos de niilismo e de ceticismo eacute exatamente o fato de consideraacute-los como fins em si mesmos como resultados teoreacuteticos conclusivos ou entatildeo apenas como simples meios para construir uma positividade alternativa em relaccedilatildeo agravequilo que mediante o niilismo e o ceticismo eacute negado e para este segundo tipo Nietzsche deu o nome de ldquotentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo

6 Eacute possiacutevel discutir se essa tentativa foi bem-sucedida ou se ao contraacuterio faliu O proacuteprio Nietzsche na verdade deixa uma indicaccedilatildeo que natildeo deve ser subestimada quando em uma das suas uacuteltimas anotaccedilotildees escreveu ldquonaufragium feci bene navigavirdquo40 E sem duacutevidas eacute possiacutevel nos questionar sobre o que Nietzsche deixou depois da implacaacutevel campanha contra a verdade inaugurada em Para aleacutem do bem e do mal e que nos anos finais provocou um verdadeiro dominoacute ceacutetico em que caiacuteram um depois do outro os conceitos de metafiacutesica de loacutegica de causa e efeito de mateacuteria de sujeitoobjeto de sujeito conhecedor ndash isto eacute todos os criteacuterios tradicionais da verdade Ainda mais eacute liacutecito nos questionar se as alternativas agraves quais ele acena como a Vontade de potecircncia o binocircmio forccedilafraqueza a Rangordnung o Zuumlchtung satildeo realmente alternativas capazes de gerar frutos na igual medida daquilo que foi extirpado Montinari por exemplo responde negativamente

Se procurarmos as razotildees do falimento do conjunto da tentativa filosoacutefica de Nietzsche parece-nos que podemos apontar o seu principal e decisivo motivo Para Nietzsche a existecircncia da filosofia enquanto

39 JGB sect 209 40 FP 16 [44] primavera-veratildeo de 1888 OFN VIII 3

Nietzsche e o ceticismo 223

atividade teoreacutetica natildeo se sustentava mais de nenhuma forma pois a histoacuteria tomou o seu lugar como ele mesmo diz O sucessor do filoacutesofo deveria ter sido um legislador e a ambiccedilatildeo de Nietzsche o objetivo da sua ldquotransvaloraccedilatildeo de todos os valoresrdquo eacute dar agrave humanidade uma lei nova A filosofia como histoacuteria eacute a pars destruens do pensamento do uacuteltimo Nietzsche (anaacutelise do niilismo europeu destruiccedilatildeo da foacutermula metafiacutesica ldquomundo verdadeirordquo anticristianismo) Na passagem agrave construccedilatildeo Nietzsche vecirc-se emaranhado na contradiccedilatildeo insoluacutevel entre o seu ceticismo extremo a sua luta contra qualquer convicccedilatildeo e a necessidade de ldquolegiferarrdquo41

Mas querendo ou natildeo concordar com uma

semelhante anaacutelise e devendo sempre de qualquer forma considerar que a filosofia de Nietzsche eacute uma filosofia incompleta ou seja interrompida subitamente durante uma frase de criaccedilatildeo plena ateacute os primeiros dias de janeiro de 1889 o ponto central que emerge da anaacutelise da presenccedila do ceticismo na filosofia de Nietzsche eacute que por mais que ele tenha aberto espaccedilo agrave negaccedilatildeo da duacutevida filosoacutefica e ao radicalismo criacutetico ele sempre rejeitou explicitamente e com grande forccedila conceder ao ceticismo a uacuteltima palavra Eacute a partir desse ponto de vista que devemos ler a sua tentativa tardia de frente ao alargamento do ceticismo que lhe resultou sempre mais incontrolaacutevel de recuperar aquilo que durante a juventude tinha sido o seu plano alternativo capaz de criar uma afirmaccedilatildeo que se tornou impossiacutevel ao contraacuterio por um caminho gnosioloacutegico isto eacute o plano esteacutetico a arte

Ainda que ele se encontrasse em um panorama diferente em relaccedilatildeo aos anos da juventude um panorama antirromacircntico e antiwagneriano o uacuteltimo Nietzsche voltaraacute a dizer como durante a juventude

41 M Montinari Che cosa ha detto Nietzsche [1975] (org) G

Campioni Adelphi Milano 1999 pp 150-151

224 Eacutetica e filosofia poliacutetica

ldquouma justificaccedilatildeo do mundo eacute possiacutevel apenas esteticamenterdquo42 ldquosoacute a consciecircncia artiacutestica [concede] a liberdade do que eacute lsquoverdadeirorsquo e do que eacute lsquofalsorsquordquo43 e ldquoa arte tem mais valor do que a verdaderdquo44 uma vez que ldquoa verdade natildeo eacute algo que existe e que precisa ser descoberta mas algo que deve ser criadordquo45

Natildeo poderiacuteamos compreender de outra forma porque o projeto do Wille zur Macht devia iniciar com ldquoa vontade de potecircncia como arterdquo nem tampouco por que a uacuteltima fase de Nietzsche insista de forma tatildeo dura contra um Wagner que agrave essa altura jaacute natildeo estava mais vivo assim como por que dois dos seus uacuteltimos textos satildeo O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner Procurar na arte e na esteacutetica um plano alternativo ao ceticismo teoreacutetico o ldquocontra-movimentordquo ao niilismo foi o uacuteltimo experimento intelectual com o qual a filosofia de Nietzsche se interrompeu E falando de experimento devem ser relembradas as palavras que ele escreveu em Para aleacutem do bem e do mal

Admitindo portanto que na imagem dos filoacutesofos do futuro uma caracteriacutestica qualquer nos permita adivinhar que eles deveratildeo talvez ser ceacuteticos [] dessa forma natildeo teriacuteamos designado senatildeo um determinado aspecto desses filoacutesofos ndash e natildeo eles mesmos Com o mesmo direito eles poderiam ser chamados criacuteticos e sem duacutevidas seratildeo homens experimentadores46

Pela anaacutelise da relaccedilatildeo que Nietzsche

desenvolveu com a filosofia ceacutetica pelo uso que ele fez dela pela interpretaccedilatildeo que ele nos forneceu dos seus

42 FP 2 [110] outono de 1885 ndash outono de 1886 OFN VIII 1 p 104 43 FP 2 [67] outono de 1885 ndash outono de 1886 idem p 80 44 FP 14 [21] primavera de 1888 OFN VIII 3 p 19 FP 17 [3] maio ndash junho 1888 OFN VII 3 p 312 45 FP 9 [91] outono de 1887 OFN VIII p 43 46 JGB sect 210

Nietzsche e o ceticismo 225

conceitos emerge o seguinte dado se o radicalismo criacutetico eacute certamente uma componente preponderante e central do pensamento nietzschiano ele natildeo encerra em si a sua essecircncia a qual ao contraacuterio continua presente ndash com maior forccedila e muito mais difiacutecil de ser compreendida hermeneuticamente ndash mais na sua pars construens do que na pars destruens

Refletindo sobre a relaccedilatildeo entre ambas Giorgio Colli escreveu

Aquilo que Nietzsche profetizou tornou-se realidade ateacute raacutepido demais O cristianismo eacute hoje ndash como religiatildeo ndash um entulho que natildeo incomoda mais ningueacutem A idade das grandes violecircncias chegou talvez ateacute jaacute ficou para traacutes O imoralismo crescente na poliacutetica e na cultura foi assimilado em massa tornou-se um sinal distintivo da plebe O que diria Nietzsche Ele responderia que natildeo foi isso que desejou Disso noacutes podemos ter plena convicccedilatildeo47

Eis que para o inteacuterprete nietzschiano permanece

ainda hoje aberta a pergunta o que Nietzsche entatildeo queria E procurar encontrar respostas a essa questatildeo eacute talvez um dos caminhos que prometem mais frutos para continuar dando vida ao seu pensamento

47 G Colli La ragione errabonda (org) E Colli Adelphi Milano 1982

pp 121-122

226 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 227

OS ORGANIZADORES Ceacutelia Machado Benvenho eacute Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (2008) financiado pelo CNPQ na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento Possui graduaccedilatildeo em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (1994) Especialista em Administraccedilatildeo e Planejamento de Sistemas Educacionais pela UNIPAR - Universidade Paranaense (1997) e especialista em Computaccedilatildeo Aplicada ao Ensino pela Universidade estadual de Maringaacute (1998) Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia Filosofia da Educaccedilatildeo Ensino de Filosofia e Filosofia para crianccedilas Atualmente eacute professor Assistente da UNIOESTE - campus de Toledo onde atua como Coordenador de aacuterea do CCHS leciona para o curso de graduaccedilatildeo em Filosofia orienta Trabalho de Conclusatildeo de Curso e Estaacutegio Supervisionado

228 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Gilmar Henrique da Conceiccedilatildeo eacute poacutes-doutorando na UFMG Doutorando em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Metafiacutesica e Conhecimento (UNIOESTE) Mestre em Filosofia Moderna e Contemporacircnea na linha de pesquisa Eacutetica e Filosofia Poliacutetica (UNIOESTE) doutor em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Filosofia da Educaccedilatildeo (UNICAMP) mestre em educaccedilatildeo na linha de pesquisa Fundamentos Filosoacuteficos da Educaccedilatildeo (UFSCar) graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Lorena Membro do GT Eacutetica e Poliacutetica na Filosofia do Renascimento (ANPOF) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute Tem experiecircncia na aacuterea de Filosofia (com ecircnfase em filosofia poliacutetica e ceticismo - especialmente em Montaigne) atuando principalmente nos seguintes temas filosofia poliacutetica poliacutetica na filosofia do Renascimento ceticismo pirrocircnico

Nietzsche e o ceticismo 229

Joseacute Francisco de Assis Dias eacute Professor Adjunto da UNIOESTE Toledo-PR professor do Mestrado em Gestatildeo do Conhecimento nas Organizaccedilotildees na UNICESUMAR pesquisador do Grupo de Pesquisa ldquoEducaccedilatildeo e Gestatildeordquo e do Grupo de Pesquisa ldquoEacutetica e Poliacuteticardquo da UNIOESTE CCHS Toledo-PR Doutor em Direito Canocircnico pela Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Cidade do Vaticano Roma Itaacutelia Doutor em Filosofia tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Mestre em Direito Canocircnico tambeacutem pela mesma Pontifiacutecia Universidade Urbaniana Mestre em Filosofia pela mesma Pontifiacutecia Universidade Especialista em Docecircncia no Ensino Superior pela UNICESUMAR Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo ndash RS Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciecircncia Tecnologia e Inovaccedilatildeo (ICETI) E-mail jfad_brhotmailcom

230 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Joseacute Luiz Giombelli Mariani eacute acadecircmico do terceiro

ano do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade

Estadual do Oeste do Paranaacute bolsista do Programa

Institucional de Bolsa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)

vinculado a CAPESMEC Cursou trecircs semestres do

curso de Filosofia da Faculdade Palotina (FAPAS) de

Santa Maria ndash RS Participou como organizador da XIX

Semana Acadecircmica de Filosofia evento organizado pelo

Centro Acadecircmico de Filosofia Atualmente desenvolve

pesquisa na aacuterea de Eacutetica e Filosofia Poliacutetica com o

tema ceticismo na Reforma Protestante com o pensador

Montaigne orientado pelo Professor Dr Gilmar Henrique

da Conceiccedilatildeo (UNIOESTE) Participa como membro do

Diretoacuterio do Centro Acadecircmico de Filosofia da

Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute ocupando o

cargo de Coordenador Geral

Nietzsche e o ceticismo 231

Wilson Antonio Frezzatti Jr eacute professor associado dos cursos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo (mestradodoutorado) em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute (UNIOESTE) Professor colaborador do Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute (UEM) Coordenador do GT-Nietzsche (ANPOF) Membro do Groupe Internationale de Recherche sur Nietzsche (GIRN) do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN-USP) e do Grupo de Pesquisa Filosofia Ciecircncia e Natureza na Alemanha do seacuteculo XIX (UNIOESTE) Autor dos livros Nietzsche contra Darwin (2001 1ordf ed 2014 2ordf ed) e A Fisiologia de Nietzsche a Superaccedilatildeo da Dualidade CulturaBiologia (2006)

232 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Nietzsche e o ceticismo 233

234 Eacutetica e filosofia poliacutetica

Page 6: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 7: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 8: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 9: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 10: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 11: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 12: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 13: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 14: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 15: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 16: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 17: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 18: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 19: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 20: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 21: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 22: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 23: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 24: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 25: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 26: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 27: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 28: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 29: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 30: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 31: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 32: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 33: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 34: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 35: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 36: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 37: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 38: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 39: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 40: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 41: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 42: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 43: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 44: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 45: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 46: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 47: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 48: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 49: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 50: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 51: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 52: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 53: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 54: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 55: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 56: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 57: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 58: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 59: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 60: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 61: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 62: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 63: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 64: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 65: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 66: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 67: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 68: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 69: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 70: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 71: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 72: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 73: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 74: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 75: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 76: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 77: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 78: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 79: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 80: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 81: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 82: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 83: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 84: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 85: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 86: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 87: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 88: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 89: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 90: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 91: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 92: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 93: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 94: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 95: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 96: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 97: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 98: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 99: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 100: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 101: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 102: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 103: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 104: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 105: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 106: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 107: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 108: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 109: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 110: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 111: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 112: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 113: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 114: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 115: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 116: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 117: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 118: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 119: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 120: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 121: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 122: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 123: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 124: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 125: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 126: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 127: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 128: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 129: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 130: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 131: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 132: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 133: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 134: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 135: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 136: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 137: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 138: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 139: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 140: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 141: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 142: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 143: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 144: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 145: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 146: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 147: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 148: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 149: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 150: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 151: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 152: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 153: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 154: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 155: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 156: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 157: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 158: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 159: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 160: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 161: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 162: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 163: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 164: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 165: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 166: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 167: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 168: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 169: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 170: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 171: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 172: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 173: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 174: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 175: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 176: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 177: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 178: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 179: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 180: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 181: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 182: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 183: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 184: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 185: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 186: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 187: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 188: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 189: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 190: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 191: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 192: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 193: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 194: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 195: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 196: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 197: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 198: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 199: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 200: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 201: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 202: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 203: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 204: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 205: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 206: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 207: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 208: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 209: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 210: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 211: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 212: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 213: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 214: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 215: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 216: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 217: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 218: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 219: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 220: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 221: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 222: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 223: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 224: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 225: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 226: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 227: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 228: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 229: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 230: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 231: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 232: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento
Page 233: 2 Ética e filosofia política - Humanitas Vivens · início da Idade Moderna. Recorre-se a argumentos que levam à incerteza sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro. O procedimento