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Artigo: Execução provisória da SENTENÇA PENAL Jorge Vicente Silva Advogado/PR Professor de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas Pós-Graduado em Direito Processual Penal pela PUC/PR Autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, “Tóxicos - Análise da nova lei”, “Manual da Sentença Penal Condenatória”, e no prelo “Crime Fiscal - Manual Prático”. SILVA, Jorge Vicente. Execução provisória da sentença penal . Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 22/07/2005 Em termos de execução provisória de sentença penal, nossa legislação é uma verdadeira colcha de retalhos, onde dispositivos se chocam entre si, muitos afrontando os preceitos constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, mesmo em lei aprovada após a Constituição Federal que elevou estes princípios à condição de direitos e garantias dos acusados. A Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso LV estabelece que \"aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes\", e o inciso LVII, prevê que \"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória\". Prevendo a necessidade do trânsito em julgado da decisão penal encontramos o art. 669, do Código de Processo Penal, e 147 da Lei de Execuções Penais. Para melhor compreensão transcrevemos adiante os dispositivos que regulam esta matéria. Art. 669. \"Só depois de passar em julgado, será exeqüível a sentença, salvo: I – quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada fiança;\"

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Artigo: Execução provisória da SENTENÇA PENAL

Jorge Vicente Silva

Advogado/PRProfessor de Pós-Graduação da Fundação Getúlio VargasPós-Graduado em Direito Processual Penal pela PUC/PRAutor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, “Tóxicos - Análise da nova lei”, “Manual da Sentença Penal Condenatória”, e no prelo “Crime Fiscal - Manual Prático”.

SILVA, Jorge Vicente. Execução provisória da sentença penal. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 22/07/2005

Em termos de execução provisória de sentença penal, nossa legislação é uma verdadeira colcha de retalhos, onde dispositivos se chocam entre si, muitos afrontando os preceitos constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, mesmo em lei aprovada após a Constituição Federal que elevou estes princípios à condição de direitos e garantias dos acusados.

A Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso LV estabelece que \"aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes\", e o inciso LVII,  prevê que \"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória\".

Prevendo a necessidade do trânsito em julgado da decisão penal encontramos o art. 669, do Código de Processo Penal, e 147 da Lei de Execuções Penais.

Para melhor compreensão transcrevemos adiante os dispositivos que regulam esta matéria.

Art. 669. \"Só depois de passar em julgado, será exeqüível a sentença, salvo: I – quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada fiança;\"

Art. 147. \"Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o juiz de execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução ..\"

Art. 105. \"Transitada em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.\"

Autorizando a execução provisória da decisão condenatória temos os artigos, 637, do Código de Processo Penal  e  27,  § 2o. da Lei nº 8.038/90.

Art. 637. \"O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.\"

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Art. 27, § 2o.  \"Os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo.\"

Cite-se ainda que no Pacto de Costa Rica, do qual o Brasil é signatário,  também há vedação para cumprimento de sanção penal antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Em recentes julgamentos, tanto o E. STF, quanto o E. STJ, ao apreciaram esta matéria, deixaram assentado que nos casos de sanção privativa de liberdade substituída por restritiva de direito, somente é possível a execução da pena após o trânsito em julgado da decisão. Verbis:

 \"Diante dos princípios constitucionais da presunção de inocência e devido processo legal, não subsiste o art. 637, do Código de Processo Penal, pois não recepcionado pela Constituição da República.

O art. 27, § 2o., da Lei 8.038/90 estabelece regras gerais sobre os recursos especial e extraordinário, e, frente aos princípios constitucionais do estado de inocência e devido processo legal e à Lei 7.210 (Lei de Execuções Penais), não abarca esses recursos quando encerrarem matéria penal cujo conteúdo tenda a afastar a pena imposta.

Inteligência dos princípios da máxima efetividade e da interpretação conforme a constituição, cânones da hermenêutica constitucional.

Tanto o art. 669 do Código de Processo Penal, quanto a Lei 7.210/84 exigem o trânsito em julgado de decisão que aplica pena restritiva de direitos para a execução da reprimenda.\" (STJ, Rel. Min. Paulo Medina, HC n º 33.106, DJU de 06.09.04, p. 312).

\"Sentença condenatória. Pena privativa de liberdade. Substituição por penas restritivas de direito. Decisão impugnada mediante recurso especial, pendente de julgamento. Execução provisória. Inadmissibilidade. Ilegitimidade caracterizada. Ofensa ao art. 5º, LVII, da CF, e ao art. 147 da LEP.\" (STF, Rel. Min. Eros Grau, HC 84.677-7, DJU de 08.04.2005).

Pensamos que esta interpretação das duas Cortes Superiores seja um grande avanço, entretanto, com todo respeito às posições em contrário, entendemos que ela ainda é muito tímida para um Estado de Direito  Democrático como é do nosso país.

Pelos princípios que norteiam o Direto penal e processual penal, além dos dois citados e que constam da nossa Carta Magna como preceito constitucional, nenhum julgado penal pode ser executado antes do trânsito da decisão.

E para se chegar a esta conclusão o raciocínio é simples. Ora, se para as sanções restritivas de direitos, que são menos gravosas ao condenado, em uma interpretação sistemática das normas atrás citadas, nossos Tribunais Superiores chegaram à conclusão de que se deve esperar o trânsito em julgado da condenação, a fim de  evitar que o condenado cumpra indevidamente a pena lhe imposta, caso a decisão condenatória seja reformada, com maior razão para as penas privativas de liberdade, que são mais gravosas, deve-se também esperar o termo final da persecução criminal.

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Invoca-se ainda para sustentar esta tese o princípio de que as normas de direito penal e processual penal, com carga penal, devem ser interpretadas sempre em favor do acusado, e por isso, se para as sanções penais mais leves, a fim de evitar cumprimento indevido de pena, se admite efeito suspensivo ao recurso especial e extraordinário, com maior razão deve-se aplicar esta regra para sanções mais gravosas.

É lógico que esta interpretação não se deve aplicar para aqueles casos onde estejam presentes os requisitos para decretação da prisão preventiva. Neste caso a prisão será processual e não execução provisória.

Em arremate concluímos que em tema penal a nossa Lei Maior, assim como as normas infraconstitucionais, através de uma interpretação sistemática destas normas, em consonância com os princípios que norteiam este ramo do Direito, em hipótese alguma  admitem execução provisória de decisão penal, ficando o encarceramento do condenado  antes do trânsito em julgado restrito à prisão processual.

istema acusatório e EMENDATIO libelliPaulo Queiroz

Professor do UniCEUB e procurador regional da República em Brasília

QUEIROZ, Paulo. Sistema acusatório e emendatio libelli. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 176, p. 4-5, jul. 2007.

Parte da doutrina vem defendendo, nos últimos anos, a inconstitucionalidade da emenda e mudança do libelo(1) (CPP, arts. 383 e 384(2)), argumentando, fundamentalmente, que o juiz, ao condenar o réu por crime diverso do capitulado na denúncia, estaria fazendo as vezes de acusador, violando o sistema acusatório e, pois, agindo sem um mínimo de isenção. Isso significaria em termos práticos o seguinte: ou bem o juiz absolve o réu ou bem o condena como o órgão da acusação quer e propõe(3).

Efetivamente, o Código de Processo, ao admitir, inclusive, que o juiz possa, de ofício, e indiretamente, “aditar” a denúncia (art. 384, caput), suprindo omissão ministerial, ofende o sistema acusatório, pois o co-responsabiliza pela acusação, transferindo-lhe parte do ônus de acusar. Compete ao Ministério Público, por isso, promover a tempo o aditamento por iniciativa própria; se não o fizer, o juiz só poderá condenar nos termos da denúncia ou absolver, mas não poderá se substituir àquele órgão, razão pela qual é manifesta a incompatibilidade da mutatio libelli com o sistema acusatório.

O mesmo não ocorre, porém, quanto à emendatio libelli (CPP, art. 383), por cujo meio o juiz corrige ou simplesmente diverge da classificação jurídico-penal dada aos fatos articulados na denúncia.

Desde logo, porque, a pretexto de preservar o sistema acusatório, se está em realidade negando o direito à divergência: o juiz, se condenar, só poderá fazê-lo nos exatos termos da proposição ministerial (denúncia e/ou alegações finais), por mais equivocada que seja a definição jurídico-penal proposta. Com efeito, de acordo com esse entendimento, se o Ministério Público descrever, precisamente, um crime de roubo e o capitular, por

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erro, má-fé ou convicção pessoal, como furto, o juiz só poderá condená-lo por furto, ainda que o caso seja a toda evidência de roubo. Também o contrário está proibido: se narrar um furto e o capitular como roubo, não se poderia condenar senão por roubo; se o juiz entender que o caso é de furto, embora capitulado como roubo, então, deverá absolver (!). Não há meio termo. Ora, isso não é outra coisa senão a violação pura e simples dos princípios da legalidade e proporcionalidade: condenar por mais quando cabe o menos; condenar por menos quando cabe o mais; e absolver por puro formalismo quem se sabe culpado. Converte-se assim o processo num fim em si mesmo, fazendo prevalecer a forma sobre a matéria, perdendo-se de vista o seu fim último: possibilitar uma decisão minimamente justa.

Também por isso, a tese é antidemocrática, visto que, ao fomentar uma espécie de ditadura ministerial, dificulta ou impossibilita a existência de controles dos eventuais erros e abusos, negando, inclusive, a divergência indispensável às instituições que se pretendem democráticas. Afinal, o erro passa a ser praticamente incorrigível ou, ao menos, dificilmente corrigível, em virtude do engessamento que implica.

E ao criar uma espécie de interpretação ex vi legis (impositiva), parte-se de algum modo do pressuposto de que o direito já está previamente dado, especialmente com a denúncia e a participação do órgão da acusação, quando, em verdade, o crime é socialmente construído durante a ação penal inclusive, por meio dos elementos de prova produzidos na instrução, de modo a provar a prática de uma infração penal (típica, ilícita, culpável e punível) imputável objetiva e subjetivamente aos seus autores. Nesse contexto, a sentença penal é a culminação dos processos primários e secundários de criminalização (reação e interação social), porque o crime não é só o que a lei classifica como tal, mas também o que os promotores dizem, o que os advogados argumentam e o que os juizes decidem. Enfim: não existem fenômenos jurídicos, mas apenas uma interpretação jurídica dos fenômenos, razão pela qual, por meio da interpretação judicial, não se descobre um sentido ou um direito pré-existente; antes, cria-se por meio de um processo que não é meramente lógico-subsuntivo, e sim analógico, complexo.

Por isso não há violação ao sistema acusatório, nem necessariamente comprometimento da imparcialidade judicial — que pode ser disfarçada sob mil formas, porque, na emendatio, o juiz simplesmente dá a sua própria interpretação aos fatos, conforme é seu dever.

Finalmente, a pretexto de evitar que o juiz se converta em acusador, na verdade, se converte o acusador em juiz, ditando a este como pode interpretar/julgar/condenar, exatamente, apequenando o papel do juiz. No fundo, se está a transformar, portanto, o juiz numa espécie de ventríloquo a serviço do órgão da acusação, por meio de uma divisão de funções excessivamente rígida, em que o Ministério Público, além de dono da ação penal, passa a ser também senhor da interpretação.

Não quer isso dizer, porém, que, no caso de emendatio libelli, não possa o processo ser eventualmente anulado, por ofensa ao contraditório e ampla defesa, a ser analisado caso a caso. É que haverá situações em que a emenda é de tal modo radical ou surpreendente que a falta ou deficiência da defesa será inevitável, a justificar a anulação, especialmente em virtude da superprodução de leis penais, muitas das quais desconhecidas, total ou parcialmente. Assim, a evitar a anulação do processo, é

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conveniente que o juiz abra vista às partes a fim que se manifestem a respeito do assunto.

Notas

(1) Nesse sentido: Fauzi Hassan Choukr (Código de Processo Penal: Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005); Aramis  Nassif (Sentença Penal: O Desvendar de Themis. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005), entre outros. Criticamente sobre a mutatio libelli, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. Criticamente sobre a emendatio libelli, Andrei Schmidt. “Crítica ao Jura Novit Curia”, Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 13, nº 157, p. 9, dez. 2005; e Moysés Neto. A Questão da Denotação Jurídica em Luigi Ferrajoli: Capitulação do Fato e Filosofia da Linguagem. Porto Alegre: Mimeo, 2006.

(2) “Art. 383.  O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. Art. 384.  Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas. Parágrafo único.  Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas.”

(3) Na verdade, a tese principal, de violação do sistema acusatório e comprometimento total ou parcial da isenção, teria diversas outras implicações, tais como: 1) impossibilidade de prosseguir no processo do juiz que decretou medida constritiva contra o réu (v.g., busca e apreensão, prisões, etc.); 2) impossibilidade de o juiz decretar qualquer medida constritiva de ofício; 3) impossibilidade de o juiz proceder ao interrogatório e inquirição de testemunhas diretamente, tarefa que deverá ser conferida ao órgão da acusação exclusivamente; 4) impossibilidade de o juiz recorrer de ofício de certas decisões; 5) impossibilidade de o juiz condenar quando o Ministério Público pedir a absolvição em alegações finais; 6) impossibilidade de o juiz rejeitar pedidos de arquivamento; mas se o fizer, não poderá atuar na eventual ação penal; 7) impossibilidade de o juiz que proferiu sentença voltar a atuar no processo posteriormente anulado; 8))impossibilidade de o juiz requisitar inquérito de ofício; 9)impossibilidade de o Ministério Público recorrer nos casos em que pediu a absolvição por falta de interesse de agir; 10) etc.

Paulo QueirozProfessor do UniCEUB e procurador regional da República em Brasília

Emendatio e MUTATIO libelli de acordo com a lei 11.719/08

Jamil Chaim Alves e Juliana Burri

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Jamil Chaim AlvesEspecialista em direito penal pela ESMP/SP;Mestre em direito penal e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas de Ciências Criminais da PUC/SP;Juliana BurriAdvogada em SP;Bacharel em direito pela PUC/SP e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas de Ciências Criminais da PUC/SP.

ALVES, Jamil Chaim. e BURRI, JulianaEmendatio e mutatio libelli de acordo com a lei 11.719/08. Disponível em: www.ibccrim.org.br.

Publicado em: 20 Jun. de 2009

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Emendatio libelli – 3. Mutatio libelli – 3.1. Noções gerais – 3.2. Circunstância ou elementar – 3.3. Supressão da expressão “explícita ou implicitamente” – 3.4. Aditamento espontâneo e sistema acusatório – 3.5. Mutatio libelli e ação privada – 3.6. Procedimento – 3.7. Vinculação aos termos do aditamento – 4. Conclusão – 5. Bibliografia

1. Introdução

A emendatio e a mutatio libelli são institutos de grande importância no processo penal brasileiro, tanto por razões de utilitarismo, permitindo que a acusação formal se adéqüe à realidade fática durante o curso do processo, quanto por motivos de justiça, propiciando a correta aplicação do tipo penal incidente sobre cada situação e assegurando que a defesa possa ser realizada devidamente.

Com o objetivo de simplificar e acelerar o procedimento processual penal, foi editada a Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, que trouxe consideráveis inovações na disciplina da emendatio e da mutatio libelli. É mister, assim, que se faça uma análise atual das duas figuras, confrontando o novo regramento com as disposições anteriores à reforma.

2. Emendatio libelli

A emendatio libelli encontra previsão no artigo 383 do Código de Processo Penal, recentemente modificado pela Lei 11.719/08. A redação anterior assim estabelecia: “O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave”.

O novo texto do artigo 383 dispõe que “o juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave”.

A emendatio é aplicável nas hipóteses em que os fatos se mantém inalterados durante a instrução, modificando-se apenas sua capitulação jurídica. É o que ocorre, por exemplo, quando o promotor, na denúncia, narra um furto qualificado, mas o tipifica como simples. Em tal caso, o juiz poderá, valendo-se da emendatio libelli, sentenciar pelo

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crime na sua forma qualificada. Conforme acentua a Ministra Jane Silva em recente acórdão, “o princípio da correlação entre a peça vestibular e a sentença é um dos pilares do nosso processo penal, entretanto, tal princípio deve coexistir com o da livre dicção do direito, jura novit curia, isto é, o juiz conhece o direito, é ele quem cuida do direito, expresso na regra narra mihi factum dabo tibi jus (narra-me o fato e te darei o direito). Se o fato criminoso está descrito na denúncia, ainda que não tenha ali sido capitulado, pode o Juiz por ele condenar o acusado, posto que a defesa é contra os fatos e não contra a capitulação do delito. A emendatio libelli é procedida de ofício, tanto em primeiro como em segundo grau de jurisdição, sem qualquer formalidade prévia”[1].

Existe certa controvérsia sobre o momento processual em que a emendatio pode ser aplicada. Alguns entendem que não é lícito ao juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória, somente podendo fazê-lo no momento da prolação da sentença[2]. Em sentido contrário, entendemos que a emendatio pode ser aplicada a qualquer tempo, até mesmo no recebimento da denúncia. Apesar do entendimento uníssono de que o acusado se defende dos fatos e não da capitulação legal que lhe é atribuída na peça acusatória, não se pode olvidar que a defesa, ao formular sua tese, se debruçará também sobre a capitulação formulada pela acusação[3]. Dessa forma, quanto mais cedo processualmente se aplicar a emendatio, maior segurança a defesa terá acerca do seu âmbito de atuação. Neste sentido é a opinião de Geraldo Prado: “[...] o sistema acusatório, que demanda plenitude de defesa e contraditório, em face da pretensão do processo justo, assegura a ‘emendatio libelli’, prevista no art. 383 do Código de Processo Penal, na fase de sentença, mas aplicável a todo o tempo (quanto antes, melhor), principalmente se resultar em significativa alteração do procedimento. [...] Justamente este tipo de controle, deduzido, a princípio ou no decorrer do processo, até a sentença, permitirá que o acusado não fique ‘refém’ da classificação jurídica emanada da acusação, em virtude da qual poderá, ou não, incidir um modelo de processo consensual, poderá ou não ser cabível a prisão preventiva ou a liberdade provisória, com ou sem fiança”[4].

A Lei 11.719/08 incluiu dois parágrafos no artigo 383. De acordo com o parágrafo 1º, “se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei”.

O novo dispositivo não trouxe qualquer modificação prática, tendo apenas positivado o que já vinha sendo feito anteriormente[5]. E, já que optou por disciplinar o assunto, poderia o legislador ter mencionado também a possibilidade de transação penal. Não obstante a omissão da lei, é forçoso concluir que a transação é aplicável quando a nova classificação do fato permitir, nos termos da Lei 9.099/95. Nesta esteira é a lição de Luiz Flávio Gomes, Rogério Cunha Sanches e Ronaldo Batista Pinto: “Se para os crimes de competência do tribunal do Júri, muito mais graves, a atual redação do parágrafo único, do art. 60 da Lei 9.099/95, determina a aplicação, desde logo, pelo juiz-presidente, da transação penal (“respeitadas as regras de conexão e continência”), com muito mais razão poderia tê-lo feito também aqui. Ante a omissão, porém, não restará outra alternativa ao juiz senão determinar o envio dos autos ao JECrim”[6]. Convém lembrar que, em caso de discordância entre o juiz e o Ministério Público, aplica-se o art. 28 do Código de Processo Penal, por analogia[7].

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O parágrafo 2º, também incluído pela Lei nº 11.719/08, assim dispõe: “Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos”. Mais uma vez, não há grande novidade, uma vez que esta previsão já estava assentada pelo artigo 74, parágrafo 2º do Código de Processo Penal, segundo o qual “se, iniciado o processo perante um juiz, houver desclassificação para infração da competência de outro, a este será remetido o processo, salvo se mais graduada for a jurisdição do primeiro, que, em tal caso, terá sua competência prorrogada”.

A reforma, com acerto, introduziu no processo penal brasileiro o princípio da identidade física do juiz, segundo o qual a sentença deve ser proferida pelo magistrado que presidiu a instrução (artigo 399, parágrafo 2º, do CPP). Para compatibilizar o princípio com o dispositivo em questão, entendemos correta a solução apresentada por Eugênio Pacelli de Oliveira: quando a competência resultante da emendatio for relativa, o juiz da causa deverá, ele mesmo, proferir sentença, por força do mencionado princípio, pois “em relação às partes, a incompetência relativa deve ser argüida na resposta escrita (artigo 396 do CPP), sob pena de preclusão, e [...] ainda que se admita possa o juiz reconhecer a sua incompetência relativa, deve-se, agora, dar preferência ao princípio da identidade física”. Quando, por outro lado, houver modificação da competência absoluta, impõe-se a remessa imediata ao juiz natural da causa, sob pena de nulidade absoluta[8].

Ainda quanto à emendatio, importa consignar que sua aplicação pode se dar em qualquer grau de jurisdição, sem violação ao contraditório e ampla defesa, visto que o réu se defende dos fatos a ele imputados, e não da capitulação jurídica. Trata-se, na realidade, de simples redefinição jurídica dos fatos narrados na denúncia[9]. A única exceção ocorrerá quando, em recurso exclusivo da defesa, a alteração da classificação jurídica puder resultar em pena mais grave. Somente nesta hipótese não será aplicável a emendatio, por força da proibição da reformatio in pejus.

3. Mutatio libelli

3.1. Noções gerais

A mutatio libelli, diferentemente da emendatio, pressupõe mudança fática: nela, o acusador descreve determinado fato e, no decorrer da instrução, surge um fato novo. É o que acontece, por exemplo, quando o promotor narra ter o agente subtraído bem da vítima, e classifica corretamente o crime como furto simples. Durante a instrução, no entanto, descobre-se que a subtração se deu mediante grave ameaça e, diante desta mudança fática, faz-se necessária uma alteração na tipificação do delito, de furto (art. 155 do CP) para roubo (art. 157 do CP).

A Lei 11.719/08 trouxe sensíveis modificações na disciplina da mutatio libelli. A redação anterior do artigo 384 assim previa: “Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas. Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública,

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abrindo-se, em seguida, o prazo de três dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas”.

De acordo com o texto antigo, havia duas hipóteses de mutatio: sem aditamento e com aditamento. A primeira, que era prevista no caput, ocorria quando a pena pelo novo crime era igual ou menor que a da imputação originária. Neste caso, o magistrado baixava o processo para que a defesa, no prazo de oito dias, se manifestasse, podendo produzir prova e arrolar até três testemunhas. Já a mutatio com aditamento, antes contemplada no parágrafo 1º, ocorria quando a nova classificação importasse pena mais grave, e somente nesta hipótese o juiz baixava o processo para aditamento pela acusação.

A nova redação do caput do artigo 384 modificou substancialmente o instituto, nos seguintes termos: “Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente".

Apresentamos, a seguir, as alterações introduzidas pela Lei 11.719/08 no tocante à mutatio libelli.

3.2. Circunstância ou elementar

Primeiramente, importa observar que o legislador fez uma modificação salutar, substituindo a expressão “circunstância elementar” por “elemento ou circunstância”. A doutrina apontava que aquele era um termo inadequado, que não tem significado técnico no âmbito do direito penal, sendo fruto de equívoco do legislador da época.

O correto, como agora diz a lei, é elementar (figura fundamental do delito, como matar, no homicídio, sem a qual ocorrerá a atipicidade do fato ou a desclassificação para outro delito) e circunstância (figura acessória, como qualificadoras ou causas de aumento do crime).

3.3. Supressão da expressão “explícita ou implicitamente”

Antes da reforma, o artigo 384 dizia ser cabível a mutatio quando o juiz reconhecesse a possibilidade de nova definição jurídica em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa.

A atual redação eliminou as expressões explícita ou implicitamente, o que também nos parece benéfico. Isto porque, num modelo de direito penal mínimo e garantista, como o que supostamente existe no país, a acusação tem de ser clara e expressa, jamais implícita. Outra não é a opinião de Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró: “A descrição do fato é elemento absolutamente necessário de qualquer imputação. Como explica Sansò, o que não é descrito não é imputado, uma vez que o objeto da imputação se especifica mediante uma descrição que o determina e o indica. Se não há imputação sem descrição não se pode falar em imputação implícita. Ou o fato imputado foi descrito, e

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portanto consta da denúncia ou queixa de forma explícita, ou não há descrição, não se podendo falar em imputação, nem mesmo implícita”[10].

3.4. Aditamento espontâneo e sistema acusatório

Em nosso sentir, a principal modificação trazida pela Lei refere-se ao fato de que, agora, o Ministério Público sempre terá que fazer aditamento espontâneo. O legislador, corretamente, pretendeu resolver o problema de o juiz provocar a acusação para aumentar a carga punitiva. Tal situação representava ofensa ao sistema acusatório, como leciona Paulo Queiroz: “Efetivamente, o Código de Processo, ao admitir, inclusive, que o juiz possa, de ofício, e indiretamente, “aditar” a denúncia (art. 384, caput), suprindo omissão ministerial, ofende o sistema acusatório, pois o co-responsabiliza pela acusação, transferindo-lhe parte do ônus de acusar. Compete ao Ministério Público, por isso, promover a tempo o aditamento por iniciativa própria; se não o fizer, o juiz só poderá condenar nos termos da denúncia ou absolver, mas não poderá se substituir àquele órgão, razão pela qual é manifesta a incompatibilidade da mutatio libelli com o sistema acusatório”[11]. Também neste sentido é a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cujo relator foi Aramis Nassif: “Dispõe o artigo do 384 do CPP a respeito da necessidade da garantia do contraditório e ampla defesa quando o juiz entender que, por circunstância elementar não descrita implícita ou explicitamente na peça acusatória, o fato típico ter outra capitulação jurídica que não aquela originalmente definida. Evidente que, pela corrente tradicional, a não observância das garantias constitucionais e, por conseguinte do artigo 384 do CPP, ensejara a absolvição do acusado. No entanto, não há negar o vício de inconstitucionalidade deste artigo frente ao artigo 129 da CF, vez que furta ao Ministério Público a titularidade da ação penal, delegando-a ao juiz de direito, razão pela qual - por ser mais benéfico ao acusado - a absolvição deve se dar pelo inciso III do artigo 386 do CPP e não pelo inciso VI”[12].

Buscou-se, assim, prestigiar o sistema acusatório puro, evitando-se o aditamento provocado. A única ressalva, entretanto, relaciona-se com o parágrafo 1º., introduzido pela Lei 11.719/08, que dispõe: “Não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código”. Ou seja, se o promotor não fizer o aditamento, o juiz pode aplicar o artigo 28, remetendo os autos ao Procurador Geral de Justiça, para que este realize o aditamento, designe outro órgão do Ministério Público para realizá-lo, ou insista na imputação feita pelo promotor, à qual só então estará o juiz obrigado a atender. Poder-se-á alegar, diante deste dispositivo, que a situação é semelhante à anterior e fere o sistema acusatório. De fato, não se pode negar que o magistrado, nesta hipótese, está provocando a atuação da acusação. Todavia, entendemos que o dispositivo não é eivado de inconstitucionalidade. Primeiro porque, agora, o magistrado não pode baixar diretamente o processo para que a defesa se manifeste, fazendo as vezes da acusação, como previa o caput do primitivo artigo 384. Ao contrário, o magistrado terá de remeter os autos para que a acusação o faça. Nesta esteira, cremos que a nova redação, se não eliminou, mitigou sensivelmente a perspectiva de o magistrado atuar como acusador. E, ademais, ainda que se entenda que o dispositivo representa violação ao sistema acusatório puro, pensamos que ele é necessário no sistema. Caso contrário, o juiz não teria margem para controlar a omissão ou atuação equivocada do Ministério Público. Parece-nos perfeitamente cabível a crítica feita por Paulo Queiroz àqueles que, antes da reforma processual, vinham sustentando a inconstitucionalidade da emendatio libell por ofensa ao sistema acusatório: “[...] a

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pretexto de preservar o sistema acusatório, se está em realidade negando o direito à divergência: o juiz, se condenar, só poderá fazê-lo nos exatos termos da proposição ministerial (denúncia e/ou alegações finais), por mais equivocada que seja a definição jurídico-penal proposta. Com efeito, de acordo com esse entendimento, se o Ministério Público descrever, precisamente, um crime de roubo e o capitular, por erro, má-fé ou convicção pessoal, como furto, o juiz só poderá condená-lo por furto, ainda que o caso seja a toda evidência de roubo. Também o contrário está proibido: se narrar um furto e o capitular como roubo, não se poderia condenar senão por roubo; se o juiz entender que o caso é de furto, embora capitulado como roubo, então, deverá absolver (!). Não há meio termo. Ora, isso não é outra coisa senão a violação pura e simples dos princípios da legalidade e proporcionalidade: condenar por mais quando cabe o menos; condenar por menos quando cabe o mais; e absolver por puro formalismo quem se sabe culpado. [...] Também por isso, a tese é antidemocrática, visto que, ao fomentar uma espécie de ditadura ministerial, dificulta ou impossibilita a existência de controles dos eventuais erros e abusos, negando, inclusive, a divergência indispensável às instituições que se pretendem democráticas. Afinal, o erro passa a ser praticamente incorrigível ou, ao menos, dificilmente corrigível, em virtude do engessamento que implica”[13].

3.5. Mutatio libelli e ação privada

Outra alteração digna de nota é a impossibilidade, agora expressa, de se realizar a mutatio em crimes de ação privada. O caput do artigo 384 diz claramente que o instituto é cabível “em se tratando de processo em crime de ação pública”. Colocou-se fim, portanto, à controvérsia ora existente sobre a possibilidade de mutatio em crimes de ação privada.

Questão interessante surge quando o promotor, diante de crime de ação pública, oferece denúncia e, durante a instrução, é trazido fato novo que o transmuda em crime de ação privada. Cremos que, em tais hipóteses, como acentua Eugênio de Oliveira Pacelli, não é o caso de mutatio libelli, mas sim de reabertura integral da instrução, iniciando-se, então, o prazo decadencial. Nas palavras do autor, “seria a hipótese de aditamento da denúncia – com sua modificação, então, para queixa -, e não de mutatio libelli”. O mesmo ocorreria na situação inversa, ou seja, se no curso de ação penal privada, se apurasse que o delito praticado, na verdade, e de ação penal pública. O caminho seria a intimação do Ministério Público para o aditamento da queixa, com sua modificação para denúncia[14].

3.6. Procedimento

De acordo com parágrafo 2º, realizado o aditamento, o defensor do acusado será ouvido no prazo de cinco dias. O juiz, então, admitirá ou não o aditamento. Se admiti-lo, cada parte poderá arrolar até três testemunhas, no prazo de cinco dias (parágrafo 4º). Em seguida, reza o dispositivo que o juiz a requerimento das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado e realização de debates e julgamento. Como bem sustenta Guilherme de Souza Nucci, houve uma contradição neste ponto: “o juiz deve designar audiência, no mínimo, para interrogar novamente o réu, dando-lhe a oportunidade de exercer a autodefesa. Portanto, não depende de requerimento da parte interessada. Cuida-se de medida cogente. Se a acusação e a defesa não ofertarem rol de testemunhas, ouve-se somente o réu. Este, no entanto, precisa ser interrogado”[15]. Se, por outro lado, não for recebido o

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aditamento, o processo prosseguirá (parágrafo 5º). Contra esta decisão, é cabível recurso em sentido estrito (art. 581, I, do CPP).

O parágrafo 3º, introduzido pela Lei 11.719/08, estabelece que são aplicáveis à mutatio as disposições dos parágrafos 1º e 2º do art. 383. Aqui não houve grandes novidades, tendo sido o tema tratado anteriormente.

Vale apontar que não é possível a aplicação de mutatio em segundo grau, por representar supressão de instancia[16].

3.7. Vinculação aos termos do aditamento

Conforme estabelece o parágrafo 4º, o juiz, na sentença, ficará adstrito aos termos do aditamento. Diante desta regra, tem-se questionado se o magistrado, após o aditamento, deverá necessariamente sentenciar com base na nova imputação ou se pode, entendendo correto, valer-se da imputação originária. Haveria, neste último caso, a denominada imputação alternativa sucessiva ou superveniente.

Numa primeira leitura, o dispositivo parece indicar a primeira resposta. Todavia, entendemos ser possível que o juiz condene o réu nos termos da imputação originária. O que o parágrafo 4º quer impedir, na verdade, é tão somente que o juiz condene o acusado por uma imputação nova, não trazida originariamente e nem resultante do aditamento. Orientação diversa levaria a uma conclusão desarrazoada, no sentido de que o juiz fica engessado pelo aditamento. Imaginemos uma denúncia por crime de furto que, devido a fato novo trazido durante a instrução, venha a se transformar em acusação por apropriação indébita. Se o magistrado, ao final, viesse a se convencer plenamente da prática de crime de furto, caso estivesse adstrito aos termos do aditamento, teria de absolver o acusado, o que nos parece aviltante. Pensamos que a imputação alternativa não fere a ampla defesa, pois nela os fatos imputados estão devidamente descritos e atribuídos concretamente ao réu, como determina o artigo 41 do Código de Processo Penal[17]. Aliás, tal modalidade de acusação já é largamente admitida na prática penal, sobretudo nos delitos contra a honra, nos quais a acusação inclui todos os tipos penais em tese subsumíveis à conduta imputada, de modo a evitar o risco de demandar por uma só das alternativas[18].

4. Conclusão

A recente reforma processual, ao menos no tocante à disciplina da emendatio e da mutatio libelli, foi bastante positiva. Com relação à primeira figura houve poucas modificações, o que não é um ponto negativo, já que a disciplina da emendatio não trazia maiores problemas. A mutatio, por seu turno, foi alterada mais profundamente, corrigindo-se muitas das imperfeições técnicas até então existentes, além de estar agora mais adequada ao sistema acusatório.

5. Bibliografia

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2000.

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GIACOMOLLI, Nereu José. Os efeitos da súmula 337 do STJ no processo penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 186, p.6, maio 2008.

GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanchez; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal Pública. Rio de Janeiro : Editora Forense, 2001

MAIER, Julio B. J. Acusación alternativa o subsidiaria. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, v. 3, n. 4-5, p. 621-634, mar. 1997.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2008.

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de processo penal. Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2008.

PRADO, Geraldo. Sistema acusatório : a conformidade constitucional das leis. 4.ed. Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2006.

QUEIROZ, Paulo. Sistema acusatório e emendatio libelli. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 176, p. 4-5, jul. 2007.

SILVA, Ivan Luís Marques da. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2008.

[1] STJ - HC 47838/GO – 6ª. T. - Rel. Min. Jane Silva – j. 27.03.2008 – DJ 14.04.2008

[2] STF - HC 87324 / SP – 1ª. T. - Rel. Min. Carmen Lúcia – j. 10.04.2007 – DJ 18.05.2007

[3] É a posição de Ivan Luís Marques da Silva que, inclusive, discorda da máxima de que o acusado se defende somente dos fatos e não do direito: “Imagine um agente delitivo ser denunciado por porte de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei 11.343/06). Não aceita os benefícios da Lei 9.099/1995 e, no momento do magistrado lavrar sua decisão, valendo-se do que diz o art. 383 do CPP, atribui definição jurídica diversa daquela presente na denúncia, alterando a capitulação para o art. 33 da Lei de Drogas, que cuida do tipo penal do tráfico de drogas. Para quem milita na área das ciências criminais, fica evidente o prejuízo criado por força desta modificação, já que uma das teses de defesa para o tráfico de drogas é discutir a quantidade apreendida, o que restou prejudicado no caso da condução da defesa pelo porte para uso próprio.” Reforma Processual Penal de 2008. p.26.

[4] Sistema acusatório : a conformidade constitucional das leis. p. 160-162. Também neste sentido: TACRIM-SP - Ap. 1213911/7 – 7ª. Câm. – Rel. Salvador D’Andréa – j. 05.10.2000 – v.u.

[5] Neste sentido, vide súmula 337 do STJ: “É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva”.

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Vide também: GIACOMOLLI, Nereu José. Os efeitos da súmula 337 do STJ no processo penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 186, p.6, maio 2008. STJ – Resp 762842/MG – 5ª. T. – Rel. Min. Arnaldo Esteves – j. 15.12.2005 – DJ 05.06.2006. STF - HC 75894 / SP – pleno - Rel. Min. Marco Aurélio – j. 01.04.1998 – DJ 23.08.2002

[6] Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. p. 326.

[7] Cf. súmula 696 do STF: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”.

[8] Curso de processo penal. p. 510.

[9] STF - HC 92181/MG – 2ª. T. – Rel. Min. Joaquim Barbosa – j. 03.06.2008 – DJ 31.07.2008. p. 567.

[10] Correlação entre acusação e sentença. p. 172.

[11] Sistema acusatório e emendatio libelli. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 176, p. 4-5, jul. 2007.

[12] TJRS – EI 70001095991 - 3º. Grupo de Câmaras Criminais – Rel. Min. Aramis Nassif - j. 18.08.2000.

[13] op. cit.

[14] op. cit. p. 515.

[15] Código de processo penal comentado. p. 685.

[16] Súmula 453 do STF: “Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou queixa”.

[17] Cf. JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal Pública. p.130.

[18] Cf. MAIER, Julio B. J. Acusación alternativa o subsidiaria. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, v. 3, n. 4-5, p. 621-634, mar. 1997. Em sentido contrário, Antonio Scarance Fernandes pondera que, em razão da letra da lei e do espírito do legislador, não seria possível o juiz se valer da imputação originária, pois no sistema acusatório típico somente aopromotor é dado escolher a imputação. Reunião de trabalho para análise das Alterações do Código de Processo Penal, realizada pelo Ministério Público de São Paulo em 11.07.2008.